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© Éditions Gallimard 1976, nova edição revista e aumentada

cm 1985

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ISBN 978-85-03-00923-2

Capa: I sab ell a P errotta / H ybr is D esign

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Rosset, Clément, 1939-

R74r
2a ed. O real
Rosset; e seu duplo:
[apresentação ensaio sobre
e tradução a ilusão
de José / Clément
Tho maz Brum].
- 2" ed., revis ta. - Rio de Jan eiro: José Olym pio, 2008.
. - (Sabor Literário)

Tradução de: Le réel et son double


ISBN 978-85-03-00923-2

1. Alucinações e ilusões. I. Título. II. Série.

CDD - 15 3.7
08-0561 CDU - 159. 937. 3
SUMÁRIO

Apresentação: U ma filosofia do real, 7

Introdução: A ilusão e o dupl o, 13

A ilusão oracular: o acontecimento e seu duplo, 27


A ilusão metafísica: o mundo e seu duplo, 57
A ilusão psicol ógica: o hom em e seu duplo , 83

Conclusão, 119

5
crever esta noção que foi pela primeira vez elaborada
como filosofia por Nietzsche em O nascimento da tragé
dia (1872). E nesta obra, para Rosset, que se encontra a
grande “descoberta” de Nietzsche: “a alegria deve ser
buscada não na harmonia, mas na dissonância”.i*
3
Após alguns panfletos satíricos, como Lettre sur les
chimpanzés (1965), Rosset formula em Logique du pire
(1971) as condições de possibilidade de um a filosofia da
aprovação q ue nã o é out ra coisa s enão o estabelecim ento
do caráter filosófico do discurso trágico. Util iza ndo como
conceito-chave a idéia de acaso (hasard), afirma que “o
que existe não constitui, aos olhos do pensador trágico,
uma ‘natureza’, mas um acaso... quer dizer, uma não-
natureza no sentido clássico do termo”.4
Esta filosofia afirmativa ensina que a realidade deve
ser aprovada incondicionalmente, alegremente, e que existe
um vínculo necessário entre o trágico e a afirmação.
Aprofundamento das noções encontradas em seu
prim eiro ensaio, a obra descreve um êxtase diante daquilo
que não é “nem natureza, nem ser, nem objeto adequa
do ao pensamento”, isto é, o acaso.
Trazendo o mesmo subtítulo, Elementos para um a
filosofia trágica, A antinatureza (1973) é o texto da tese

iLa Philosophie Tragique. Paris: PUF, p. 50.


*Lo giq ue d u pire. Paris: PUF, 1971, p. 43. Publicado no Brasil sob o título
Lógica do pior. Rio de Janeiro: Garamond.

8
<l( li ndida em maio do m esm o ano na Sorbonne. Fazen
do a crítica de um “mundo como natu reza”, este livro tem

<nino ponto de partida um aforismo da Gaia Ciência


(n" 109) que indaga com veemência: “Quando teremos
d< sdivinizado comp letamente a Natu reza ?” Rosset toma
partido por um “mundo como artifício”, onde a existên-
i ia 6 aprovada integralmente contra qualquer “exigên-
i ia prévia de direito” vinda de um “mu ndo natural”. Para
ivso, invoca as filosofias “artificialistas” (Empédocles,
••ofistas, Lucrécio, Maquiavel, Gracián, Hobbes).
' lendo estabelecido os elementos sobre os quais é pos-
•avcl construir umafilosofia trágica: o acaso, o artifício, a
Iadi cidade, Rosset procura definir os atributos desta rea li
dade “in-significante” e aleatória em suas últimas obras.
A primeira delas, a que fornece as teses principais da nova
"ontologia do singular”, é O reale seu duplo (1976). Este
ensaio, que reúne gravidade, concisão e humor, aborda o
célebre tema do duplo (Rank, Chamisso, Dostoiévski...)

irazendo-o para sua srcem: a recusa d o real. E aí qu e se


apresenta, pela primeira vez, a idéia do real como idiota,
■.cgundo a etimologia do grego idiotès, único e singular.
I.sta noção é o funda mento de Le Réel— traité de Vidiotie
( 1977) e deLObjetsingulier (1979), onde é formu lada u ma
"ontologia do real cuja particularid ade é não se apoiar so-

I>rc o pensamento de seu ‘ser’ nem sobre o de sua ‘unida-


<le’, mas apenas sobre a consideração de sua singularidade”.

9
Esta atitud e jubilosa e t rágica diante da realidade idio
ta é um a crítica indireta às f ilosofias que pretend em in
terpretar o real para impor-lhe um sentido. Para Rosset,
leitor de filósofos materialistas como Lucrécio, o real não
é algo q ue deva ser objeto de apreciação ou reform a, mas
de júbilo sem motivo. Daí o interesse pela alegria como
índice do saber trágico. Não a alegria ordinária, “sen
timento passageiro de felicidade e, em grande parte,
ilusório”,5mas o saber alegre,a gaya scienza, onde “a in
tensidade da alegria pode ser medida segundo a quanti
dade de saber trágico que ela implica”.6
O pensamento de Clément Rosset possui conexões
com filósofos tão díspares como Gilles Deleuze e E. M.
Cioran. Com o autor de De Vlnconvénient d ’être né par
tilha a preocupação com a “insignificância, a doença e o
efêmero”.7De Deleuze, ressalta a idéia de que “o fundo
do espírito é delírio, acaso, indiferença”.8Mas ambas as
aproximações são incompletas, porque elidem o essen
cial de seu pensamen to: a concepçã o de “um real ver da
deiramente rico e desejável, que não seria apoiado pela
hipótese de u ma outra instância, relig iosa, ontológica ou

^LObjet singulier. Paris: Minuit, 1979, p. 97.


6Idem, p. 99.
L e Mond e Dip lom atiq ue, 12-12-1982.
7Entrevista a Christian De scam ps. In:
eRevista LArc, 198 0, n° 49, dedica da a Giles D eleu ze, p. 91.

10
11istórica”.9N a realid ade sem “natureza”, onde nada é ex-
iraordinário n em ordinário, e “ tudo é constituciona lmen -
lc excepcional”, o trágico e a afirmação encontram-se em
um acorde aleatório.
A presença de Nietzsche, entrevista nas teses de Ló-
i'ira do pior eA antinatureza pode ser percebida neste O
real c seu duplo.Esta visão do único, da irredutível sin
gularidad e do que existe, foi expressa— no qu e concerne
.10 indivíduo — na terceira Intempestiva:
“No fundo, todo hom em sabe muito bem qu e só vi
verá um a vez, qu e é um caso único, e qu e jamais o aca-
Mi, por mais caprichoso que seja, poderá reunir duas vezes
uma variedade tão singular de qualidades fundidas em
um todo.”10

José Thomaz Brum


Rio de Janeiro, dezembro de 1987.

"l.e Monde Diplomatique, 12-12-1982.


"TYiedrich Nietzsche. In: Considérations intempestives — Unzeitgemãsse
lirirachíugen, III-IV Pa ris: Aub ier-M ontaigne, 197 6, p . 17 (edição bilíngüe ).
INTRODUÇÃO

A ILUS ÃO E O D U PLO

“Quero falar de sua mania de negar o que é, e de


explicar o que não é.”
E. A. POE, Duplo assassinato na rua Morgue

N a d a mais frágil do que a faculdade hum ana de ad


mitir a realidade, de aceitar sem reser vas a imperiosa prer
rogativa do real . Esta faculdade falha tão freqü entem ente
que parece razoável imaginar que ela não implica o re
conh ecim ento de u m direito i mprescri tível — o do real a
ser percebido — , mas representa antes um a espéci e de
tolerância, condicional e p rovisória. Tolerância qu e cada

um p ode suspe nde r à sua vontade, assi m qu e as circuns-

13
tâncias o exijam: um pouco como as aduanas qu e podem
decidir de um dia para ou tro q ue a garrafa de ál cool ou
os dez maços de ciga rros — “tolerados” até en tão — não
passarão mais. Se os viajantes abusam da com placência
das aduan as, est as demon stram firmeza e anula m todo o
direito de passagem. Da mesma forma, o real só é admi
tido sob certas condições e apenas até certo ponto: se ele
abusa e mostra-se desagradável, a tolerância é suspensa.
Um a inte rrupç ão de per cepção col oca então a consciên
cia a salvo de qualquer espetáculo indesejável. Quanto
ao real, se ele insiste e teima em ser percebido, sempre
poderá se mostrar em outro lugar.
Esta recusa do real pode, natural men te, to mar forma s
muito variadas. A realidade pode ser recusada radical
mente, considerada p ura e simplesmente como não-s er:
“Isto — qu e julgo perceb er — não existe.” As técnicas a
serviço de uma tal negação radical são, aliás, elas mes
mas mu ito div ersas. Posso aniq uila r o real an iqu iland o a
mim mesmo: fórm ula do suicíd io, que parece a mai s se
gura de toda s, ainda que, apesar de tud o, um minúsculo
coeficiente de incerteza pareça vinculado a ela, se acre
ditarmos, por exemplo, em Hamlet: “Quem gostaria de
carregar esses fardos, geme r e suar sob u ma vida fatigante,
se o temor de algo após a morte, desta região inex plorada,
de onde nen hu m viajante retorna, não perturbasse a von
tade e não nos fizesse suportar os males que temos por

14
medo de n os lançarmos naqueles qu e não co nhecemos?”
Posso também suprimir o real com menores inconveni

entes, salvando a minha vida ao preço de uma ruína


mental : fór mula da loucura, muito segura também , mas
que não está ao alcance de qualquer um, como lembra
uma célebre frase do doutor Ey: “Não é louco quem
quer”. Em troca da perda de meu equilíbrio mental, ob
terei um a proteção mais ou m enos eficaz com relação ao
real: afasta mento provisório no caso àorecalcamento des
crito por Freud (subsistem vestígios do real em meu in
consciente), ocultação total no caso da forclusão descrita
por Lacan. Posso, enfim, sem sacrificar nada da minha
vida nem de minha lucidez, decidir não ver um real do
qual, sob outro ponto de vista, reconheço a existência:
atitude de cegueira voluntária, qu e sim boliza o g esto de
Edipo furando os olhos, no final de Édipo Rei, e que
encontra aplic ações mais ordinárias no uso im odera do do
álcool ou da droga.
Entretanto, essas formas radicais de recusa do real
permanecem marginais e relativamente excepcionais. A
atitude mais comum, face à realidade desagradável, é
bastante diferente. Se o real me incomoda e se desejo li-
vrar-me dele, me desembaraçarei de um a ma neir a geral
mente mais flexível, graças a um modo de recepção do
olhar que se situa a meio-caminho entre a admissão e a
expulsã o pura e simples: qu e não diz sim nem n ão à coi

15
sa percebid a, ou m elhor, diz a ela ao mesm o tem po sim e
não. Sim à coisa percebida, não às conseqüências que
norm alme nte deverí am resultar dela. Esta outra ma nei
ra de se l ivrar do real assemelha-se a um raciocíni o justo
coroado por u ma conclus ão aberrante : é uma perce pção
justa que se revela impotente para acionar um compor
tamento adaptado à percepção. Não me recuso a ver, e
não nego em nada o real que me é most rado. Mas minh a
complacência pára por aí. Vi, admiti, mas que não me
peçam mais. Q uanto ao restante, mantenho o meu p on
to de vista, persi sto no meu com portam ento, exatam ente
como se não tivesse visto nada. Coexistem parad oxalm en

te a minha percepção presente e o meu ponto de vista


anteri or. Aí, trata-se meno s de u ma percepção errônea do
que de uma percepção inútil.
Esta “perce pção inú til” constitui, ao qu e parece, uma
das caract erísticas mais marcan tes da ilusão. Estaríamos
provavelmente enganados em considerar esta como re
sultand o princ ipalm ente de uma deficiê ncia no olhar . Às
vezes se diz que o iludido não vê: ele está cego, cegado.

É inútil apercebê-la,
consegue realidade seouofe recer à sua
a percebe percepção:
deformada, tão ele
comnão
pletamente atento que está apenas aos fantasmas de sua
imaginação e de seu desejo. Esta análise, válida sem ne
nhuma dúvida para os casos propriamente clínicos de
recusa ou ausência de percepção, parece muito sumária

16
no caso da ilusão. Menos ainda que sumária: antes à
margem de seu objeto.
Na ilusão, quer dizer, na forma mais corrente de afas
tamento do real, não se observa uma recusa de percep
ção propriamente dita. Nela a coisa não é negada: mas
apenas deslocada, colocada em outro lugar. Mas no que
concern e à aptidão p ara ver, o iludido vê , à sua m aneir a,
tão claro qu anto qua lqu er outro . Esta verd ade aparente
mente paradoxal se torna per ceptível a partir do m omento
em q ue pensa mos no qu e se passa com a pessoa cega, tal

como nos mostra a experiência concreta e cotidiana, ou


ainda o romance e o teatro. Alceste, por exemplo, em O
misantropo, vê bem, de forma perfeita e total, que Cé-
limèn e é um a coquete: esta percepção, qu e ele acolhe todo
dia sem protestar, nunca é posta em questão. E, no en
tanto, Alceste está cego: não por não ver, mas por não
associar seus atos à sua percepção. O que vê é colocado

como fora de circuito: o coqueti smo de Célim ène é perce


bido e admitido, mas estranhamente separado dos efeitos
que seu reconhecimento deveria normalmente acarretar
no plano prático. Pode-se dizer q ue a percepção do ilu
dido é como que cindida em dois: o aspecto teórico (que
designa justamen te “aquilo qu e se vê”, de théorein) eman
cipa-se artificialme nte do aspect o prático (“aquilo que se

faz”). Aliás, é por isso que este homem afinal de contas


“normal” que é o iludido está, no íntimo, muito mais

17
doente do que o neurótico: porque, de maneira diferen-
te do segundo, ele é deliberadamente incurável. Aquele
que está cego é incurável não por ser cego, mas sim por
ser dotado de visão: porque é impossível lhe “fazer ver
de outra form a” algo que já viu e qu e ain da vê. Toda “ad-
vertência ” é vã: n ão se pode ria “adv ertir” alguém q ue já
tem, debaixo dos olhos, aquilo que se pretende que ele
veja. No recalcamento, na forclusão, o real pode even-
tualm ente reaparecer, se acreditarmos na psicanálise, gra-
ças a um “retorno do recalcado”, nos sonhos e nos atos
falhos. Mas, na ilusão, esta esperança é vã: o real não
voltará jamais, porq ue já está aí. Observaremos de pas-
sagem a que ponto o doente de que os psicanalistas se
ocupam representa um caso anódin o e, em suma, benig-
no, em comparação com o homem normal.
A expressão literária mais perfeita da recusa da re ali-
dade é talvez a oferecida por Georges Co urteli ne em sua
célebre peça Boubouroche (1893). Boubouroche instalou
a sua amante, Adèle, em um p equ eno apartam ento. U m
vizinho de andar de Adèle previne caridosamente Bou-
bouroche da traição cotidiana de que é vítima este últi-
mo: Adèle partilha o seu apartamento com um jovem
namorado que se esconde num armário toda vez que
Boubo uroche vi sita a sua amante. Louco de rai va, Bo u-
bouroche irrompe n a casa de Adèle nu m a hora in ab itua l
e descobre o amante no armário. Cólera de B oubouroche,

18

'
i qual Adèle respond e com um silêncio desgostoso e in-
i lignado: “Vocêé tão vulga r”, declara ao seu protetor, “que
ii.io merece nem a mais simples explicaçã o qu e logo te-
lia dado a outro, se ele tivesse sido menos grosseiro. É
melhor nos separarmos”. Boubouroche admite imedia-
i.uncnte os seus erros e o infundado de suas suspeitas:
depois de ser perdoado por Adèle, só lhe resta voltar-se
contra o vizinh o de andar, o odioso calu nia dor (“Você é
um velho corno e um imbecil”). Esta pe quena peça cha
ma imediatam ente atenção por u ma caracter ística singu-
lar: ao contrário do que acontece freqüentemente, a
vitima de um logro não se satisfaz aqui com nenhuma
desculpa, com ne nh um a explicação. O espe táculo de seu
infortúnio não é velado por nenhuma sombra. Há, em
suma, um impasse para o engodo: a vítima de um logro
11ão tem necessid ade de ser enganada, basta-lhe realmente

ser vítima de um logro. É q ue a ilusão não está do lado

daq uilo q ue se vê, daqu ilo q ue se percebe: assim se e x


plica que se possa, como Boubouroche, ser vítima de
um logro ao mesmo tempo que não se está sendo en
ganado por nada. E, contudo, Boubouroche, mesmo
desfru tando de um a visão correta do s acontecimentos,
mesmo tendo surpreendido o seu rival no esconderi
jo, continua a acreditar na inocência da sua am ante.
Essa “cegueir a” merece que nos detenham os um po u
co nela.

19
Imaginemos que, por uma razão ou por outra, eu
esteja ao volante do meu carro, muito apressado para
chegar ao des tino, e encontre u m sinal vermelho no m eu
caminho . Posso me resignar ao atraso que ele causa, par ar
o meu veiculo e esperar que o sinal mude para o verde:
aceitação do real . Posso também recusar um a percepção
que contraria meus propósitos; decido então ignorar a
interdição e ultrapas so o sinal, i sto é, procuro não ver um
real cuja exi stência reconhe cí: atitud e de Ed ipo fura ndo
os próprios olhos. Ainda posso, sempre na hipótese de
uma recusa de percepção, considerar rapidamente que
este obstáculo col ocado no meu c amin ho acarretará um
sofrimento demasiado cruel para minhas faculdades de
adaptação ao real; decido então acabar com iss o suicida n
do-me com o auxílio de um revólver guardado no meu
porta-luvas, ou “recalco” a imagem do sinal vermelho no
me u inconsciente. Ass im enterrado, este sinal vermelho
qu e ultrapassei j amais vir á à tona n a m inh a consciênc ia,
a menos q ue um psicanalista ou um policial se envolvam.
Nestes dois últimos casos (suicídio, recalcam ento), opus
um a recu sa de perce pção à necess idade de parar em que
a percepção do sinal vermelho teria me colocado. Mas
ainda existe outro meio de ignorar esta necessidade,
que se distingue de todos os meios precedentes no que
faz justiça ao real, concordando assim, pelo menos em

20
aparência, com a percepção “ no rm al”: percebo qu e o si
nal está vermelho— mas concluo que éa minha vez de passar.

É exatamente o qu e aconte ce com B oubouroche. O


raciocínio qu e o tranq üiliz a podería s e enunc iar mais ou
menos ass im: “H á um rapa z no arm ário — logo Adèle é
inocente, e eu não sou cornudo.” Esta é, na verdade, a
estrutura fundamental da ilusão: uma arte de perceber
com exatidão, mas de ign orar a conseq üência. Assim, o
iludido transforma o aconteci mento único q ue percebe
cm dois acontecimentos q ue não coincidem, de ta l mod o
que a coisa que percebe é posta em outro lugar, incapaz
de se confundir consigo mesma. Tudo se passa como se o
acontecimento fosse magicamente cindido em dois, ou
melhor, com o se dois aspectos do mesmo acon tecim ento
viessem a assumir cada um um a existência autô nom a. N o
caso de Boubo uroche, o fato de Adèle ter escondido um
amante e o fato de ele ser um cornudo tornam-se mi-
raculosamente independentes um do outro. Descartes
diría que a ilusão de Boubouroche consiste em tomar
uma “distinção formal” por uma “distinção real”: Bou
bouroche é incapaz de perceber a ligação essencial que,
no cogito, un e o “eu pens o” ao “eu existo”; ligação exem 

plar da qual uma das inúm eras aplicações ensinaria a


Boubouroche que é impossível distinguir realmente en
tre “minh a m ulher me trai” e “sou um cornudo ”.

21
Outro exemplo notável de um a tal ilusão, inteiramente
análoga à de Boubouroche, está em Proust, em No caminho
de Swann. Num dia em que se prepara para enviar sua
“mesada” habitua l a Odette (que lhe tinha sido inicialmen

te apresentada como uma mulher sustentada, qualidade qu e


esquecera desde que se apaixonara po r ela), Sw ann se per
gun ta subitam ente se o ato que está realizando não equiva
le precisamente a sustentar um a mulh er; se o fato de um a
mulh er receber dinheiro de um homem, como Odette re
cebe dele próprio, não coincide justamente com o fato de
ser o que se chama uma “mulher sustentada”. Percepção
fugaz do real, que o amor de Swann por Odette logo apa
gou: “Não pôde aprofundar tal idéia, pois um ataque de
preguiça de espírito, que lhe era congênita, intermitente e
providencial, veio naquele mom ento extinguir toda luz em
sua inteligência, tão subitamente como, mais tarde, depois
de instalada por toda parte a iluminação elétrica, se podería
cortar a eletricidade nu ma casa. Seu pensamento tateou um
instante nas trevas, ele redrou o pincenê, enxugou-lhe os
vidros, passou a mão pelos olhos, e só tornou a ver a luz
qua ndo se encontrou em presenç a de uma idéia muito di

ferente, isto é, de que no próximo mês deveria mandar a


Odette seis ou sete mil francos, em vez de cinco mil, por causa
da surpresa e júbilo que isso lhe causaria.”*

*Cf! N o cam inh o de Swann, trad ução d e Mário Quintana. São Paulo: Edr
tora Globo, 1995, p. 226-7. (N. do T.)

22
I Jma tal “preguiça de espírito” consiste essencialmen-
i.Tiii separar em do is o que é apenas um , em distinguir
•mrc mulher amada e mulher paga; e Proust tem real-
Micnte razão em qualificar esta preguiç a de “congênita”.
Mas é preciso acrescentar que esta preguiça não é exclu-
•iva de Swann nem da paixão amorosa. Ela também
i mi cerne à totalidade do gênero humano, de quem re-
Ia <senta o caso principa l de ilusão: transformar um úni-
i d fato em dois fatos divergentes, uma mesma idéia em
duas idéias distintas — uma desagradável, mas a outra
"muito diferente”, como escreve justamente Proust.
A cegueira exemplar de Boubouroche (e de Swann)
ajuda a encontrar o vínculo muito profundo que une a
ilusão à duplicação, ao Duplo. Como todo iludido, Bou-
Imuroche cinde o acontecimento único em dois acon
tecimentos: ele não sofre por ser cego, mas sim por ver
duplicado. “Você viu duplicado”, lhe diz aliás Adèle em
um determinado m omen to, é verdade qu e nu m sentido
um pouco diferen te, mas q ue não deix a de ser surp reen
den temente prem onit ório e significativo. A técnica ger al
da ilusão é, na verdade, transformar uma coisa em duas,
exatamente como a técnica do i lusionista, qu e conta com
o mesm o efeito de deslocam ento e de duplicação da pa r
te do espectador: enquanto se ocupa com a coisa, dirige
o seu olhar para outro lugar, para lá onde nada acontece.
Com o Adèle para Boubouroche: “É bem verdade que há

23
um homem no arm ário— mas ol he par a o lado, ali, como
am o você. ”
O ensaio que se segue pretende esclarecer o vínculo

entre a il usão e o duplo, mostrar que a estru tura fu nda -


men tal da ilusão não é outr a senão a estru tura paradoxal
do duplo. Paradoxal po rqu e a noção do duplo, como ve -
remos, implica nela mesma u m paradoxo: ser ao mesmo
tempo ela própria e outra.
O tema do du plo é, em geral, associado princ ipal me n-
te aos fenômenos de desdobramento de personalidade
(esquizofrênica ou paranóica) e à literatura, particular-
m ente a romântica, na q ual se encontram múltiplos ec os
seus: como se este tema dissesse respeito esse ncialm ente
aos confins da nor ma lidad e psico lógica e, no plan o lite-
rário, a um certo período rom ântico e moderno. Ver emos
qu e não é assim, e que o tema do duplo está presente em
um espaço cultural infinitamente mais vasto, isto é, no
espaço de toda ilusão: já presente, por exemplo, na ilu-
são oracular ligada à tragédia grega e aos seus derivados
(duplicação do acontecimento), ou na ilusão metafísica
inerente às filosofias de inspiração idealista (duplicação
do real em geral: o “outro mundo”).

24
O real e seu d up lo
A ILUSÃO ORACULA R:
O ACO NTECIMEN TO E S EU DUPLO

xal um
I
dos aoráculos
carac terística
o fato ao
de mesmo temposurpreendendo
se realizarem geral e parado
pela sua própria realização. O oráculo tem o dom de
anunc iar o acontecimento por an tecipação: de modo que
aquele ao qual este acontecimento é destinado tem tem 
po de se prep arar para ele e de, eventualmente, tentar
impedi-lo. Ora, o acontecimento se efetua tal como fora
vaticinado (ou anunciado por um sonho ou alguma ou 
tra manifestação premonitória); mas esta efe tuação tem
a curiosa sina de não corresponder à expectativa no pró
prio m om ento em que esta deveria julgar-se satisfeita. A
é anunciado, A se produz e não o reencontramos mais
aí. Pelo menos não exatamente. Entre o acontecimento
anunciado e o acontecimento efetuado há um tipo de

27
diferença sut il qu e bast a para d esconcertar aquele que ,
no entanto, esperava precisamente aquilo de que é
testemunha. Ele reconhece sim, mas logo não o reco

nhece mais. Entretanto, não ocorreu nada além do


acontecim ento an uncia do. Mas este, inexplic avelmente,
é outro.
Um a fábula de Esop o, 0 rapaz e o leão pintado — da
qual existem numerosas outras versões tanto antigas
qu an to mode rnas —•, ilustra esta particularidade geral
mente associada à realização dos oráculos:

Um ancião timorato tinha um filho único cheio de co


ragem e apaixonado pela caça: sonhou que este mor
ria nas garras de um leão. Temendo que o sonho se
realizasse, mandou construir um palácio custoso e
magnífico para servir de moradia ao filho. Para dis
traí-lo, mandara pintar nas paredes animais de todo
tipo, entre os quais figurava um leão. Mas a visão de
todas essas pinturas só fez aumentar o desgosto do ra
paz. Um dia, aproximando-se do leão, exclamou: “Fera
cruel, foi por sua causa e por causa do sonho mentiro
so do meu pai que me trancaram nesta prisão para mu
lheres.” Com estas palavras, bateu com a mão na pare
de para arrancar o olho do leão. Mas um prego se cra
vou na sua unha causando-lhe uma dor violenta e uma
inflamação que resultou em um tumor. A febre que
então ardia logo fez com que passasse da vida para a

28
morte. Embora fosse pintado, o leão não deixou de
matar o rapaz, para quem o artifício do pai de nada
serviu.1

De que se trata aqui, se abstraímos a moral exposta


por Esopo, que se lim ita a observar que “é preciso acei
tar corajosamente a sorte que nos espera, e não tentar
trapacear, po rqu e dela não saberiamos fug ir” ? Trata-se,
evidentemente, do destino, e, no presente caso, de seus
ardis: qu er dizer que o real — o conjunto do s acontec i

mentos designados para a exi stência — é dado como ine


lutável (destino), chama do en tão a se prod uz ir a despeito
de todos os esforços empreendidos para obstá-lo (ainda
que pelo subterfúgio de um “ardil”). Se acontece de es
tarmos prevenidos de antemã o desta necessi dade inerente
a todo acontecimento, e logo teoricamente capazes de
impedi-lo, o destino responderá com um estratagema qu e

frustra rá a tenta tiva de esquiva e, às vezes, até se diverti


rá — eis a sua ironia — em transformar a esqui va no
próprio meio de sua realização, de modo que, em tais
casos, aquele que procura impedir o acontecimento te
mido se torna o agente de sua própria desgraça, e o des
tino, po r elegância ou po r preguiça, delega aqui às vítimas
a responsa bilidad e de fazer todo o traba lho n o seu lugar.

'Fábula 295, trad. E. Chambry. Paris, Les Belles Lettres.

29
Este é, como sempre foi dito com pertinência, o sentido
mais evidente deste tipo de fábula.
Mas, além deste primeiro sentido, existe certamente
outro, mais rico e m ais geral. A prova disso é o fat o de esta
fábula — e toda hist ória anál oga — con dnu ar a interes
sar, a revelar à atenção daqu ele que a escuta algum a ver
dade profund a, ind ependente, então, de toda consid eração
do destino e de seus ardis. Qu em sabe realmente qu e nunca
existiu nada parecido com o destino e com a inelutabilidade
— com o La Fontaine que, retomando a fábula de Esopo,
extrai do apólogo uma moral inversa e assimila os efeitos
do destino a “efeitos do acaso”2— qu e recon hece em to da

fábula ond e figuram estes t emas u ma reconstituição feit a


posteriormente e destinada a marcar com o selo da neces
sidade o que tinha sido apenas um encadeamen to ocasio
nal e aleatório, reconhece entretanto nessas pinturas do
destino o eco de uma certa verdade. Parece que algo fala
nessas histórias.
Este algo e stá claramen te ligado, antes de tudo, à se n
sação de ter sido enganado. Diz-se que fomo s apenas um
joguete nas mãos do destino; passada a ilusão do desti
no, permanece a sensação de ter sido um joguete, quer
dizer, de ter sido enganado. Exatamente no sentido em
que, na esgrima ou em outro lugar, somos surpreendi

do horóscopo”, Fábulas, VIII, p. 16.

30
dos por um a frnta. Protege u-se à esquerda en qu anto era
atacado à direita. E, ao se proteger, deixou sem defesa

precisamente o lugar vulnerável, de modo que o gesto da


esquiva veio s e co nfu nd ir com o gest o fatal. Aind a nã o é
dizer o bastante: o gesto da esquiva e o gesto fatal são
apenas um único e mesm o gesto, como o misterioso ca 
mi nho de Heráclito, q ue ao mesmo tem po sobe e desce.3
O oráculo só se realiz ou graças a esta malfad ada p re
caução, e é o próprio ato de evitar o destino que acaba

por coincidir com a sua realização. Se bem que, em suma,


a profecia não anuncie nada além do gesto de esquiva
infeliz. Esta estrutura irônica, ou mais precisamente
elíptica, da realização dos oráculos é muito freqüente e
constitui mesmo um dos temas favoritos da literatura
oracular.
Pode-se observar, em prim eiro lugar, qu e esta falha da
“defesa ” é apenas um aspecto bastante banal d a fmitu de
hu man a. P ara se proteger de forma efi caz, para estar em
segurança total, seria necessário poder pensar em tudo
ao mesm o tempo. Ora, sabe-se qu e se o ho mem possui o
privilégio de pensar, não recebeu o dom da ubiqüidad e
intelectual: ele pensa alguma coisa num dado momen
to, e nada mais naquele momento. Eis por que sempre

3“0 cam inho qu e sobe e o cam inho que desce é um e o me sm o” ( Fr ag


me nto 60) .

31
pode se torn ar u ma presa fácil: p orqu e, en quan to se pro 
tege aqui, sempre haverá milhares de ali por onde pegá-
lo. Esta fragilidade, que constitui o tema da Toca de
Kafk a, dá profund idade ao dito do s nzakara, habitantes
da República Centro-Africana, tal como relata mme.

Retel-Laurentin: “Quem sabe o que pode acontecer na


outra extremid ade da alde ia?”4
N o en tanto , o logro ligado à defesa desastrosa do
homem diante do seu destino não é apenas o indício de
um a finitude . Significa também um logro de uma espé
cie inteiram ente diferente, qu e se refere não mais ao des

tino — sendo es te ausente e inexistent e — , mas à própria


consciência daquele que se sente enganado. E evidente
que não existe destino; também é evidente que, na au
sência de qu alq ue r destino, existe ardil, ilusão e engod o.
Como estes não podem ser atribuídos a um destino ir
responsável já que não existente, resta procurar a sua
srcem em um lugar mais responsável e mais tangível.
Se é verdade que o acontecimento surpreendeu a expec

tativa ao mesm o tem po q ue a satisfazi a, é que a expecta


tiva é culpada, e o acontecim ento, inocente. O logro nã o
está, então, do lado do acontecimento, mas do lado da
expectativa. A análise da expectativa frustr ada revela que ,
na verdade, inventa-se, paralelamente à percepção do *

*Di vin ati on et rationalitê. Paris: Ed. du Seuil, p. 303.

32
r

lato, uma idéia espontânea segundo a qual o aconteci


mento, ao se realizar, eliminou um a outra versão do acon
teciment o, aq uela mesm a qu e precisam ente se esperava.
Esta é um a impressão mu ito forte , para retomar, mod ifi
cando um pouco o sentido, as palavras de Hume: por
que é notável esta impressão de ter previsto outra coisa
;ilém da que realmente aconteceu — impres são qu e po 
dería encontrar uma aparência de fundamento no caso
de oráculos como o da fábula de Esopo citada anterior-
inente: o filho do rei podería ter morrido nas garras de
um leão feito de carne e os so — ; é notável, então , que
esta impressão de ter previsto o acontecimento de outra
maneira persiste at é nos casos em que se pode demo ns-
irar que nenhum a versão do acont ecimento for a realmen-
tc prevista nem representada, aliás, nem previsível ou
rcpresentável, antes qu e o acontecim ento te nha ocorrido.
Três outros exemplos bastarão para ilustrar esta es-
(ranha faculdade qu e possui o o ráculo de surpree nde r ao
mesmo tempo em que não frustra nen hu ma expec tativa
real: a lenda de Édipo, segundo o Édipo Rei de Sófocles;
a história de Sigismundo, em A vida é um sonho, de
Calderón; um conto árabe, narrado por Jacques Deval
em sua peça Esta noite em Samarcande.
Lenda de Édipo — um orácul o prediz aos soberanos
de Tebas — Laio e J ocast a — qu e o seu filho Édip o
mataria o pai e se casaria com a mãe. Abandonado ao

33
nascer n as encostas d e um a mon tanh a, É dipo é recolhi
do pelos soberanos de Corinto — Pólibo e Mérope —

que, na falta
seu filho. de outro
Sabend o da herdeiro, o adotam
profecia que e criam
o ameaça, Éd ipocomo
d ei
xa bruscamente Corinto e seus supostos pais, tentando
escapar ao seu des tino. No camin ho reencon trará o seu
verdadeiro pai e o mat ará, resolverá o enigma da Esfinge
e entrar á em Tebas como vencedor , pa ra lá se casar co m
a própria mãe, viúva do soberano morto.
História de Sigismundo — Basílio, rei da Po lônia, fez
o horóscopo do seu filho Sigismundo, na ocasião do
seu nascimento, e descobriu que os astros predestina
vam seu filho a se tornar o monarca mais cruel que já
existiu — “um monstro sob a forma humana” —>cuja
primeira atitude seria dirigir sua força selvagem contra o
pai para esmagá-lo. Apavorado com esses augúrios sinis
tros, manda prender Sigismundo numa torre isolada
onde este não tem ne nhum a possibilidade de contato com
os humanos, com a exceção do seu preceptor Clotaldo.

Quando
mu nd o poatinge
r um adia
maioridade, Clotaldo
e o apresenta libertapara
à s ua corte, Sigis
confi r
mar a verdade do horósc opo. F urioso pelos vinte anos de
cativeiro, Sigismu ndo se comporta de acordo com a pro
fecia. Trazido de volta à sua torre, e logo dep ois libe rtado
por um a revolta popular, Sigismundo — que daí em
diante não sabe mais se sonha ou se está acordado —

34
realiza até o fim a predição do horóscop o: ten do assum i
do o coma ndo da revolta, vence o pai, qu e nã o tem outra
saída a não ser jogar-se a seus pés para im plo rar pela sua
improvável piedade. Mas o horóscopo inte rrom per a suas
previsões nesse instante, e, segundo a habitual estrutura
oracular, a peça terminará de maneira ao mesmo tempo
inesperada e conforme a predição, já que o fim da peça
surpreende a expectativa ao mesmo tempo em que con
corda justamente com o oráculo: tornado sábio por sua
dúvida quanto ao real, Sigismundo reergue o pai e lhe
restitui todas as honras devidas à sua condição real.
Conto árabe — Era u ma vez, em Bag dá, um Calif a e
seu Vizir... Um dia, o Vizir apareceu diante do Califa,
pálido e trêmulo: “Perdoa o meu pavor, Luz dos Fiéis,
mas uma m ulher esba rrou em mim na m ultidão dia nte
do palácio. Voltei-me: e essa mulhe r de tez p álida, de ca
belos escuros, com o busto coberto por u ma m an ta ver
melha, era a Morte. Ao me ver, fez um gesto na minha
direção. (...) Já que a morte me procura aqui, Senhor,
permita que eu fuja para me esconder bem longe, em
Samarcande. Se me apressar, chegar ei lá antes desta no i
te.” En tão , afastou-se a galope no seu caval o e desa pare 
ceu num a nu vem de poei ra na direçã o de Samarcande.
O Califa saiu então de seu palácio e também encon
trou a Morte: “Por que assustou o meu Vizir que é jo
vem e saudável?” , pergu ntou. E a Morte respondeu: “Não

35
quis assustá-lo, mas, ao vê-lo em Bagdá, tive um gesto
de surpresa, por que o espero esta noite, em Samarcand e.”5
A analogia estr utural das três histórias é evidente. Nos

três casos,conjurá-la:
pretende a predição Édipo,
se realiza pelo epróprio
Basílio o Vizirgesto que
encontram
o seu destino por terem desejado evitá-lo. É deixando
Co rinto qu e É dipo va i ao encon tro de se us verdadei
ros pais, é prendendo o filho que Basílio o transforma
no monstro que predisse o horóscopo, é correndo para
Samarcande que o Vizir se dirige para a morte da qual
tenta fugir. Mas esta estrutura é comum à maioria das

histórias qu e repr esent am realizações de oráculos. Aqui,


a atenção se dirige para outra particularidade, mais sin
gular e mais profunda: para o fato dos três heróis desta
mesma desventura serem igualmente incapazes, se tal
lhes fosse pedido, de fornecer detalhes sobre a natureza
de sua desdita. Todos os três foram enganados, mas ne
nh um sabería dizer qual é o acontecimento esp erado que
o acontecimento real veio apagar de maneira inespera
da, ou ainda “oblíqua”, para retomar o adjetivo que
qualifica o oráculo de Delfos, Apollon Loxias.** O acon
tecimento temido ocorreu, mas s e prod uzi u frustrando a

5Jacques De val, Esta noite em Samarcande, ato I.


*Apollon Loxias: o adjetivo loxós significa, ao mesmo tempo, oblíquo e
equívoco. A pal avr a do oráculo é ambígua, loxós. Cf. A. Bailly, Ab régé du
Di cli on na ire Grec-Français. Paris: Hachette, p. 539. (At do T.)

36
expectativa do mesmo acontecimento, o qual certamente
se julga q ue devia realmen te ter ocorr ido, mas de m an ei
ra difere nte. N o en tanto, é impo ssível dizer em q ue con

siste esta “outr a” maneira. Essa mesma estru tura oracular


c enco ntrada no filme C’est arrivédemain , de René C lair
(1943), com a variante sutil que aqui não é mais a ma
neira como se realiza o acontecimento predito que sur
preende, mas a n atureza exata — e insuspeitável — do
acontecimento em si.
(§e sentímo s dúv idas sobre es te assun to temos apenas)
cjue consu ltar os próprios interessados, e pedir-lhe s para
se dignarem a precisar qual era, na sua mente, a versão
tio acontecim ento temid o, antes q ue este fosse subst ituíd o
pelo acontecim ento real. Caso interrogado, o Vizir res
ponderá que esperava realmente morrer naq uela noite,
mas não daquela forma nem naquele lugar (Samar
cande) : ele temia mo rrer de outra forma, e em outro lu 
gar. Que o utra forma, que ou tro lugar? N ão sei; mas nem

esta noite nem em Samarcande. O rei da Polônia, Basí 


lio, responderá que sabia, de fato, que o filho usaria de
violência e o derru baria p or terra : entretanto , n ão desta
maneira, completam ente inesperada, como se deu o acon
tecimento. De que outra maneira, então? Basílio só po
dia esperar o acontec imen to lá onde o desafiara e pensara
haver tornado a sua execução impossível: não será pre
ciso coagi-lo para que admita que, havendo tornado

37
impossível o acon tecime nto em condições “ norma is”, ele
não tem ia ne nh um a realização pr ecisa do horósc opo, e
que a sua surpresa diante da maneira pela qual este se

realizou
A versãonreal
ão nega u ma
dos fat os, onoutra possibil
espírito do idade de recon
rei, não alização.
tradiz,
então, nenhuma outra versão, ou pelo menos só parece
con tradizer um a versão fantasmática, j amais pensada. O
caso de Édipo parece, à primeira análise, mais comple
xo. Édipo mata o pai e se casa com a própria mãe sem
conhec er suas respectivas identidades; no qu e a realiza
ção do oráculo contradiz uma versão do acontecimento
datada, desta ve z, de um conteúdo preciso: o assassi nato
de Pólibo e o casamento com Mérope, os soberanos de
Corinto, que Édipo acredita serem os seus pais. No en
tanto, trata-se aí de uma visão abstrata, incapaz de se
concretizar numa história real: uma vez prevenido da
ameaça qu e pesa sobr e o seu destino e deixando C orinto
às pressas, Édipo decide não tocar nem em Pólibo nem
em Mérope. Desde então, permanece a questão: como
Éd ipo pode ría proceder para m atar o pai e s e casar com a
mãe, a não ser matando por acaso um homem e se ca
sando ocasional mente com uma m ulhe r que seriam jus
tame nte seu pai e s ua mãe, não sendo, ao mesmo tem po,
nem Pólibo nem Mérope? P ode-se insistir, no en tanto: a
maneira como Édipo realiza a profecia é um ardil assi
nado pelo des tino. Admit amos; mas em q ue outro ardil

38
pensar? Esperaríamos em vão um a resposta precisa para
esta questão ela mesm a oblíqua: a não ser a que consiste

em reafirmar
esperado obstinadamente
em outro lugar, e deque o acontecimento
outra maneira, sem era
que
nunca se possa precisar a natureza deste outro lugar e
desta outra maneira. É verdade que poderiamos pensar
na hipótese extrema segundo a qual, sendo Pólibo e
Mérope os verdadeiros p ais de Édipo, este últim o acaba
ria por matar um e se casar com o outro por acidente ou
por engano. Podemos, por exemplo, imaginar um aces
so de cólera maníaco, uma crise de sonambulismo, ou
ainda um disfarce ou um a cara cterização qualq uer que
impediríam Édipo de reconhecer Pólibo naqu ele q ue ele
mata, e Mérope naquela com quem se casa. Este tema
do disfarce, aliás, está presente de forma profu nda — mas
*

em um nível simbólico — no destino real de Edipo, já


que seus pais verdadeiros estão, de certo modo, disfar
çados sob feições estranhas, tomando emprestado de
Pólibo e Mérope uma máscara viva sob a qual dissimu
lam a si mesmos. Mas, na hipótese segu ndo a qual Pólibo
e Mérope são realm ente os pais de Éd ipo, estes não a pa
receríam disfarçados sob as feições de outras pessoas vi
vas; estariam sim plesmente c aracterizados de tal man eira,
ou interviriam em circunstâncias tais, que Édipo não os
reconhec ería — um pouco como na lend a de São J ulião,
o Hospitaleiro, que também tenta escapar de uma pre-

39
dição e acaba rea lizando -a m atan do seus pai s por enga
no. A hipótese, no ca so de Édipo, é, de qua lq ue r modo,
pouco verossímil porque Édipo deixou Corinto e seus
pais para nunca mais voltar lá: onde poderia, então, en-
contrar seus pais disfarçados? E preciso admitir, então,
que Pólibo e Mérope partem em busca do filho fugido,
aban don and o o seu post o real. Esta nova hipótese, mai s
inverossímil ainda, não basta, aliás, para tornar possível
o assassinato de um e o casamento com o outro: porq ue

Edipo sempre fugirá de seus pais, onde quer que estes


acabem por descobri-lo. A profecia não poderia, então,
se realizar graç as a u m acesso de cólera ou de son am bu-
lismo: não haveria tempo para isso — Édipo sempre es
tará já longe. Só resta então a possibilidade de um engano,
graças a um disfarce perfeito. Uma noite, saindo de uma
taberna tebana onde se e xcedeu no vi nho, Éd ipo enc on
tra Pólibo q ue proc ura, incógnito, o fi lho, protegido por
uma caracterização que o torna irreconhecível; discute
com ele e o mata. Alguns dias depo is, novam ente e mbria
gado, encontra um a mendiga na r ua, apaixona-se por e la
e a toma como mulhe r: era Mérope, tão bem disfarçada
que após vários meses de vida conjugal ele ainda não
reconheceu sua m ãe na nova esposa. Esta versão dos fatos
é, a rigor, imaginável; aliás, poderiamos imaginar ainda
muitas outras for mas possíveis de realização do oráculo.
Mas que tais itinerários sejam possíveis e imagináveis, isto

40
não ex plica em nad a a surpres a qu e aco mp anha a desco-
berta do subterfúgio utilizado, na realidade, para a reali-
zação do oráculo: surpresa ligada ao sentimen to confuso
de que o acontecimento real tom ou o lugar de um acon-
tecimento mais esperado e mais plausível. Ora, todas as
versões possíveis parecem fmalm ente m uito mais im pro -
váveis ainda do que a versão real que, no entanto, cau-
sou surpresa: se Pólibo e Mérope são realmente os pais
de Édipo, a realização do oráculo deverá passar por ca-
minhos muito mais complicados e inesperados do que
os qu e tomou a versão real. A hipótese de um a p atern i-
dade fictícia, segu ndo a qu al Pó libo e Méro pe nã o são os
verdadeiro s pais de Éd ipo, é, em suma, a via mais simples
para passar do oráculo à sua realização. Se então a reali-
zação do oráculo causa surpresa, não é porque sua for-
ma é inesperada com parada com outra forma qu e o ser ia
menos. Co mo u m acontecimento A poderia s er conside-
rado altamente improvável com relação a um aconteci-

mento B, seéfica
ele próprio, , nadem onstradas
m elhor dohipó
q ue teses,
este acontecim ento
mu ito mais imB,-
provável ainda? Supondo que fosse realizada esta outra
versão do destino de Édipo, apare ntem ente m ais de acor-
do com o oráculo, não se distinguiria ela, por su a vez, de
mil outras versões de que, justamente, se vislumbraria
então a m aior probabilidade? A realização do destino de
s

Edip o— tal como foi selado pelo orác ulo — não elimi-

41
na então nenhuma eventual probabilidade igual ou su
perior àquela finalmente escolhida pela realidade: já que
tudo o que é imagináve l a qui é mais complicado e mai s

improvável
vra do que
do oráculo podeserá
serodita
acontecimento
“oblíqua”, areal.
via Se a pala
pela qual
Édip o realiza o seu destino é, em con trapar tida, a via reta
por excelência: não passou por nenhum desvio, e talvez
seja justamente isso o que se chama o “ardil” do destino
— ir direto ao alvo, não se atrasar no caminho, compa
recer na hora certa.
No entanto, apesar desta análise, persiste a impres
são de ter sido enganado por uma fatalidade onipotente
e astuciosa, que frustra todos os meios empregados para
se fazer frente a el a. Mas esta fatalidade assume agora um
sentido mais pr eciso, no q ue se reconheceu a sua im pre
cisão: o acontecimento fatal pega de surpresa porque
apaga outro acontecimento que nunca foi pensado, do
qual nunc a se teve nen hum a idéia.
A surpresa aprese nta aqui um carát er propriamente
inesperado: ela consiste, na realidade, em re futar o aco n
tecimen to real em nom e de um aconteci mento que nunca
seria imaginado, de uma realidade que jamais foi e ja
mais será pensada. O acontecimento tomou o lugar de
“outro” acontecimento, mas este outro acontecimento
não é nada. Precisa-se, assim, o engodo de que é vítima

42
aquele q ue espera um acontecimento mas se espanta por
vê-lo ocorrer: existe realm ente engo do em a lgum lugar e
este algum lugar reside precisamente na ilusão de estar
enganad o, de acreditar que há “algum a coisa” da qua l a
realização do acontecimento teria, em suma, tomado o
lugar. E então a sensação de estar enganado que é, aqui,
enganador a. Ao se realizar, o acontecimento não fez ou 
tra coisa senão real izar-se. Ele não tom ou o lugar de o u
tro acontecimento.
Evidentemente, não se podería negar por isso a am-
bigüidade inerente à palavra profética, nem as tiradas de
duplo sentido que aparecem constantemente tanto nos
oráculos como nas tragéd ias. Trata-se apenas de com pre
ender que esta ambigüidade não consiste no desdobra
mento de uma sentença em dois sentidos possíveis, mas,
ao contrário, na coincidência dos dois sentidos que só
depois se vê que são dois em aparência, mas um na rea
lidade. O Édipo Rei de Sófocles abunda em ilustrações
desta ambigüidade, sendo a mais elementar e mais pro-
funda a sentença em que Edipo enuncia que ele é, ao
mesmo tempo, aquele q ue ele é e aquele out ro q ue p ro
cura: “Voltando, por minha vez — declara orgulhosa
mente o rei Édipo — à srcem (dos aconte cimentos que
permaneceram desconhecidos), sou eu que os porei à luz,
èyd) (pavw . O escoliasta não deixa de observar qu e há

nesse ego phanô qualquer coisa de dissimulado, que


43
Édipo não qu er dize r, mas qu e o espe ctador comp reen
de, já que tudo será descoberto no próprio Édipo, 87t£l
t ò Ttctv év aòtô) (pavríoexai. Egophanô = sou eu
que porei à luz o cri minoso — mas também: eu me des
cobrirei criminoso.”6
É evidente que dizen do èycb (pavw— “eu mostra
rei” e “eu aparecerei” — Édip o diz duas coisas ao mes
mo tempo; mas tamb ém é evidente que essas duas cois as
são uma e a mesma coisa. O que importa aqui é que se
ouve a penas uma única ver dade enqu anto se pensa ou
vir duas. Tragédia da coincidência e não da am bigüida -
de, a peça de Sófocles se desenvolve no sentido de um
retorno implacáve l em direção ao único q ue elimina, cena
após cena, a ilusão de um a duplicaçã o possível. De m odo
qu e o trágico sofocl iano não está, de forma a lgum a, liga
do ao dup lo sentido, mas, ao contrári o, à sua eliminação
progressiva. A infelicidade de Édipo é ser apenas ele
mesmo, e não dois. É desconhecer a sua infelicidade e,

de cer toEdipo
nhado modo,em
caiSófocles,
r na própria armcomo
dizer adilha
J.-En aVernant.:
q ual é apa-
“Quem é, portanto, Édipo? Como seu próprio discurso,
como a palavra d o oráculo, Édipo é duplo, enigmá tico.”7

6J. -E Vernan t e E V ida l-Na qu et. M ythe et tragéd ie en Grèce ancienne. Faris,
Maspero, p. 107. Cf. tradução brasileira: M ito e tragédia na Grécia antiga.
São Faulo: Livr ari a Du as Cidades, p. 87.
7 Id em .

44
Porq ue o mistéri o de Édipo é justamen te o de ser úni co,
e não duplo, exatamente como o mistério da Esfinge,

resolvido por Éd ipo nu ma espécie de avant-première do


seu próprio destino, é o de s e dirigir para si mesmo e não
para o outro.
No fundo, é o que acontece na realização de qualquer
oráculo. O acontecimento esperado acaba por coincidir
com ele próprio, d aí precisamen te a surpresa: po rque se
esperava algo de diferente, embora semelhante, a mes-
ma coisa, mas não exatamente desta maneira. E nesta
coincidênc ia rigoro sa do previ sto com o que efetivamen
te ocorreu que, em última análise, se resumem todos os
“ardis” do destino. Este ofer ece o próprio aco ntecim en
to, aqu i e agora, en qu an to o esp erávamos um pouco di
ferente, um pouco em outro luga r e não imediatame nte.
Tal é a natureza paradoxal da surpresa face à realização
dos oráculos, espantar-se quando não há precisamente
mais razão para se espantar, já que o fato correspondeu
exatamente à previsão: o acontecimento esperado ocor
reu, mas per cebemos, então, que aquilo qu e era espera
do não era este acontecimento aqui, mas um mesmo
acontecimento sob uma forma diferente. Pensava-se es
perar o mesmo, mas na realidade esperávamos o outro.
É hora de reconhecer, enfim, neste “outro aconteci

mento ” ——
imaginado “esperado” , talvez, masreal
que o acontecimento nemapagou,
pensado
ao ne
se m

45
realizar, a estrutura fundamental do duplo. N ada dist in
gue, na realidade , este outro acontecimento do aconteci
mento real, exceto esta concepção confusa segun do a qual
ele seria, ao mesmo tem po, o mesmo e um outro, o que é
a exata definição do duplo. Descobre-se, assim, uma re
lação muito profunda entre o pensamento oracular e o
fantasma da duplicação, que explica a enigmá tica surpre
sa associada ao espetáculo do oráculo realizado. A reali
zação do orácul o surpreende, em suma, no que ela vem
eliminar a possibilidade de qualquer duplicação. Ao se
produzir, o acontecim ento previsto an ula a previsão de

um dup lo possível. Vindo à existência, ele elim ina o seu


duplo; e é o desaparecimento deste pálido fantasma do
real que surpreende, por um momento, a consciência
quando se realiza o acontecimento. Eis por que a frase
que habitualmente pontua a descoberta do que era es
perado — “era justamente isto” — implica, ao mesmo
tempo, um reconhecimento e uma reprovação. Reconhe
cimento do fato anunciad o e repr ovação porque o acon

tecimento não se produziu de outra maneira. Reconheci


mento e reprovação são assim inseparáveis um do outro
e significam, em essência, a mesma coisa: ou seja, um
olhar sobre a “estrutura” do único. O únic o satisfaz a ex
pectativa ao se realizar, mas a frustra elim inando qual
quer outro modo de realização. Esta, aliás, é a sorte de
todo aconteci mento no mundo.

46
Num a passagem do seu estudo sobre ‘A Lembrança
do presen te e o falso recon hecim ento”, Bergson confirma
este vínculo entre a estrutura oracular (previsão, sentimento
do inevitável) e o tema do duplo. A nalisa ndo a ilusão se
gundo a qua l certos indivíduos desdobra m as suas percep 
ções e têm a impressão de viverem, de certo modo, duas
vezes, um a vez sob a forma do pre sente e ou tra sob a for
ma do passado, Bergson não deixa de reencontrar o tema
do destino: “Aquilo que se diz e o que se faz, o que você
mesmo diz e faz, parece ‘inevitável’. Assiste-se aos seus

próprios movimentos, aos seus pensamentos, às suas ações.


As coisas acontecem como se fossem desdobradas, sem que,
no entanto, se desdobrem efetivamente. Um dos indiví
duos escreve: ‘Este sentimento de desdobramento só exis
te na sensação; sob o ponto de vista material, as duas
pessoas são apenas uma.’ Sem dúvida, ele quer dizer com
isso que experimenta um sentimento de dualidade, mas
acom panh ado da consciência de que se trata de um a ú ni
ca e mesma pessoa. Por outro lado, como dizíam os no iní
cio, o indivíduo se encontra muitas vezes no estado de
espírito singular de alguém que ju lga saber o que vai acon
tecer, ao mesmo tem po q ue se sente incapaz de predizê-
lo.”8Observaremos, além disso, que o tema da predição,

““EÉ ner gie sp iritue lle” , in Oeuvres, edição do Centenário. Paris: PUF,

p. 921.

47
tanto aqui quanto em qualquer lugar, aparece ligado ao
tem a da surpresa (prevê-se a coisa, sem se poder, por isso,
esperar pela sua realização concreta , qu e será, então, sem
pre motivo de surpresa).
Ent retanto, toda duplicação supõ e um srcinal e um a
cópia, e se pergu ntará qu em é o modelo e que m o dup li
ca, o “outro acontecimento” ou o acontecimento real.
Descobre-se então que o “outro acontecimento” não é
verdadeiramente o duplo do acontecimento real.
É, na verdade, o in verso: o próprio acontecim ento reã t
é que parece o duplo do “outro acontecim ento”. De modo
que é o acontecimento real que, em última análise, é o
“outro”: o outro é este real aqui, ou seja, o duplo de um
outro real que seria, ele, o próprio real , mas qu e semp re
escapa e do qua l nu nca se poder á d izer nem saber nada.
O único, o real e o acontecimento possuem, então, esta
extraordinária qualidade de ser, de certo modo, o outro
de coisa nenhuma, de parecer o duplo de uma “outra”

realidade que se dissipa perpetuamente no limiar de


qua lqu er real ização, no m omen to de qualq uer pass agem
ao real. A totalidad e dos acontecimentos q ue se realizam
— quer dizer, a realidade no seu conjunto — só repre
senta um a espécie de real “ruim ”, qu e pe rtence à ordem
do duplo, da cópia, da imagem: é o “outro ” qu e este real
apagou que é o real absoluto, o srcinal verdadeiro do
qu al o acontecimento re al é apenas um substituto enga

48
na do r e perverso . O verdadeiro real es tá em outro lugar:
residiría, para retomar os três exemplos expostos an
teriormente, num parricídio e num incesto diferentes
daqueles q ue, efeti vamente, esperam Édipo, n um a agres
sividade de Sigismundo, alheia às circunstâncias que,
efetivament e, foram as da sua infância e juventude, n um a
morte fora de Samarcande. Q uan to aos aconteciment os
qu e rea lmen te ocorreram, sã o como imitaç ões deste re al;
e o conjunto dos acontecimentos reais par ece, assim, um a
vasta caricatura d a realidade. É nesse sentido qu e a vida
é apenas um sonho, uma fábula en ganosa , ou ainda um a
história contada por um idiota, como diz Macbeth^
sentimento de ser logrado pel a realidade — que expri
me a verdade m ais geral d as históri as de oráculos — , de
ser constantemente iludido por este falso real que, in
extremis, substitui o v erdadeiro real, qu e jamais se viu e
que jamais ocorrerá, este sentimento de ser enganado
poderia ser traduzido pela expressão popular segundo a
qual certas realidades, cer tos atos não estão precisa men
te “de acordo com o jogo”. Aliás, não só certas realiza
ções ou certos atos: qualquer coisa que, ao se realizar,
coloca-se assim “fora de jogo”. Aliás, os filósofos de
Mégara já haviam dito esta verdade: o destino de toda
realidade é situar-se fora do jogo do possível. Dir-se-á
então que o acontecimento real está, de certa maneira,
falsificado, que trapaceia com o real. E, para u tiliz ar um a

49
terminologia ingênua, que combina com sentimentos
igualmente ingênuos, poderemos dizer que o aconteci
mento que se produziu não é o “bom”; o bom acon
tecimento, o único acontecimento que teria o direito de
se dizer verdadeiramen te real, é justam ente aquele que
não ocorreu, sufocado antes de nascer pelo seu duplo
falsificado. O acontecimento real, no sentido usual do
termo, é assim sempre “o outro do bom”.
Observare mos a qui qu e toda reali dade, mesmo se não
foi anunciada por um oráculo ou prevista por uma pre
monição qualquer, é, de qualquer modo, de estrutura
oracular, no sentido definido anteriormente. Com efei
to, o destino de toda coisa existente é denegar, por sua
própria existência, qualq uer outra forma de realidade.
Ora , o próprio do oráculo é sug erir, sem jamais precisá-
la, uma coisa distinta daqu ela qu e a nun cia e que se rea
liza efetivament e. Mas esta sugest ão m alograd a pod e se
manifestar em qualquer ocasião, porque todo aconteci
me nto implica a negação d o seu duplo. Eis por qu e toda
a ocasião é oracu lar (r ealizand o o “ou tro ” do seu duplo ),
e toda existência um crime (por executar o seu duplo).
Tal é o destino inevitavelmente associado ao real, e que
faz Sigismundo, preso na sua torre, dizer que “o maior
crime do homem é o de haver nascido”;9ou ainda, em

1
>
A vida é um sonho, I, 2.

50
E.-M. C ioran , qu e “perdemos tud o ao nascer”, daí ”o in 
convenien te de haver n ascid o”.10Segun do este raciocínio,
todo acontecimento é, na realidade, homicídio e prodí
gio: se, por exemplo, esperando o ônibus, recebo um
número de espera, suponhamos o número 138, elimino
de uma só vez também 998 outras possibilidades. Isto é
um inconven iente e um prodígio, se esquecemos qu e um
acontecimento, se pode a rigor se produzir de qualquer
modo, deve contu do se prod uzi r necessariamente de uma
maneira qualquer. Nã o posso ser ao mesmo tem po Ciora n

e um a outra pessoa qu e não Cioran, mesmo se me pare


ce confusamente que é apenas por efeito de um decreto
arbitrário, e em última análise bastante decepcionante,
que sou justamen te Cioran e não out ro.
Podere mos observar qu an to a est a questão qu e a rea
lização de um acontecimento, não vaticinado por um
oráculo, mas simplesm ente previst o pelo bom senso, ob
servando a conjuntura e um conjunto de presságios, é
sempre surpreendente no sentido mesmo em que o orá
culo pode surpreender: quer dizer que a surpresa, nos
dois casos, resume-se ao fato de A ser realm ente A, e não
B. O ardil do destino, assim com o o da previsão sensata,
é escamotear o duplo do único. U ma m anh ã, no rádio, é
anunciado q ue o senhor presidente e stá muito mal; qua n-

'"Dc ilnco nv én ien t d'être n é. Paris: Gallimard.

51
do anun ciada, à noite, a morte do presidente surpreende
(era então justamente isso, A era então justamente A).
Aliás, é em razão desta natureza sempre surpreendente
do acontecimento que a noção do destino, sugerida pe
los oráculos, ganha um sentido real e universal. Porque
é realmente do destino que se trata, em última análise,
nas lendas oraculares, mas num sentido mais profundo
do qu e o imediatamente apa rente. H á realmente algo que
existe e qu e se cham a o destino: este designa não o c aráter
' Ine vitável do que acontece, mas o seu caráte r imprevisível.
H á, na reali dade, um desti no indepe nde ntem ente de
qu alq ue r neces sida de e de qu alq ue r previsibilidade, por
tanto, indep enden teme nte de qu alq ue r manifes tação ora-
cular, embora, em u m certo sentido, o oráculo o an un cie
ao seu modo; é o destino do homem como de toda coisa
existente. A signi ficação des te destino a pare ntem ente pa 
radoxal , já qu e estranh o à noção de n ecessidade, que e n
tretanto parece contribuir para o qu e há de essen cial nele,
para n ão d izer a sua única base, está ligada a um a noção
exata me nte inver sa: à certeza da imprevisibil idade. Mas
é jus tam ente desta certez a q ue fala, em termos velad os, a
literatura oracular. Estaremos sempre certos de sermos
surpreendidos: poderemos sempre, fir mem ente, esperar
nu nca poder esper ar.
Em suma, a prof und idade e a verdade da palavra ora
cular são men os a de predizer o futuro do qu e a de expri -

52
mir a necessidade asfi xiante do presen te, o caráter ine lu
tável do que acontece agora. A predição antecipada tem
um valor sobretudo simból ico: mera projeção no tem po
daquilo que aguarda o homem a cada instante de su a vida
presente. A todo momento, ele se defrontará com isto e
com nada mais: quer a circunstância seja alegre ou tris
te, que r ela triunfe ou morra, est á de qu alqu er modo e n
curralado. N ão há escapatória — não há duplo: é isto que
o oráculo anunciava antecipa damente, e com razão. “Não
se escapa ao destino” significa simplesmente que não se
*

escapa ao real. O que é é e não pode não ser. E mais ou


menos o que diz lady Macbe th ao seu marido, ou tra ilus 
tre víti ma da literatura oracular: What is done is done.
O que existe é sempre unívoco: na borda do real, sej;
acontecimento favorável ou desfavorável, os duplos
dissipam por encantamento ou maldição. Só resta o
acontecimento coincidindo com ele mesmo, como no
final de Macbeth, quando se realiza a predi ção e “a flo
resta de Birnam marcha sobre Dunsinane”: A vem se con- 1
fund ir com A, como Édip o se confund e com ele mesmo,
/
no final de Edipo Rei.
Antes de s e lançar num últim o combate contra o se u
próprio destino, isto é, contra ele mesmo, Macbeth pro
nun cia as palavras famo sas: “A vida é um a história con 
tada por um idiota, cheia de som e de fúria, que não
significa nada .” O pensa mento do caos e da insignificân-

53
cia predo mina, assim, no mo mento do con tato com o real.
É que, até no último instante, Macbeth, como de resto
todo homem , na hora da morte , por exemp lo, es pera qu e
A difira nem que seja um pouco de A, que o aconte
cime nto não seja exatamente aqu ilo q ue ele é. A coinci 
dência do real com el e mesmo, q ue é, de um certo pon to
de vista, a pró pria simplicidade, a vers ão mais lím pida do
real, aparece como o absurdo maior aos olhos do iludi
do, isto é, daquele que apostou, até o fim, na graça de
um duplo. Um real que é apenas o real, e nada mais, é
insignificante, absurdo, “idiota”, como diz Macbeth.
Aliás, Macbeth tem razão, pelo menos neste ponto: a
realidade é efetivamente idiot a. P orque, antes de signifi
car imbecil, idiota significa simples, particular, único de
sua espéci e. Assim é, na verdade, a realidad e, e o co njun 
to dos acontecimentos que a compõem: simples, parti
cular, única — idiotès — , “idiota”.
Esta idiotia d a realidade é, al iás, um fato reconh eci
do desde sempre pelos metafísicos, que repetem que o
“sentido” do real não poderia ser encontrado aqui, mas
sim em outro lugar. A dialética metafísica é fundamen
talmente u ma dialét ica do aqui e do alhures, de um aqui
do qual se duvida ou que se recusa e de um alhures do
qu al se espera a salvação. Decididam ente, A não pode ria
se reduz ir a A: o aqu i deve ser esclarecido por o utro lu-
gar. “A Asia press entiu muitas vezes qu e o pro blem a

54
capital d o ho mem é o de capta r ‘outra coisa’”, escreve por
exemplo André Malraux,11fazendo eco à expressão român-

tica de Wagner, nos Wesendonf{-Lieder:“Nos so mun do não


é, de for ma alguma, aqui.” Não é mais um duplo do acon-
tecimento qu e é então exig ido, mas um duplo da realida-
de em geral, um “outro m un do ” chamado a dar conta d este
mun do aqui que, consid erado e m si mesmo, permanece-
ría para sempre idiot a.
A ilusão oracular— desdobr amento do acontecimen-
to — enc ontra assim um camp o de expr essão mais v asto
no des dob ram ento do real em geral: na ilusão metafísica.

"Lazare, Paris: Gallimard, p. 131.

55
A ILUSÃO META FÍSI CA:
O MUN DO E S EU DUPLO

A .du pli ca çã o do real, que consti tui a estrutura oracular


de todo acontecimento, constitui igualmente, conside-
rada de outro ponto de vista, a estrutu ra fu nda mental do
discurso metafísico, de Platão aos nossos dias. Segundo
esta estrutura metafísica, o real imediato só é admitido e
compreendido na medida em qu e pode ser con sider ado
a expressão de um outro real, o único que lhe confere o
seu senti do e a sua realidade. Este mun do aqui, qu e em
si mesmo não tem nenhum sentido, recebe a sua signi-
ficação e o seu ser de outro mundo que o duplica, ou
melhor, do qual este mundo aqui é apenas um suce-
dâneo enganador. E é a particularidade da imagem “m e-
tafísica” fazer pressentir, sob as aparências insensatas, ou
falsamente sensatas, a significação e a realidade que

57
asseguram a sua infra-e strutura e explicam precisa mente
a aparência deste mundo-aqui, que é apenas “a mani
festação ao mesm o tempo prim ordial e fútil de um espan 

toso mistério”.12
Esta estrutura da reiteração, onde o outro ocupa o
lugar do rea l, e este mu nd o-a qu i o lugar do duplo, não é
outra, repito, senão a própria estrutura do oráculo: o real
que se oferece imediatamente é um substituto, assim
como o acontecimento que verdadeiramente ocorreu é
uma impostura. Ele duplica o real, assim como a reali
zação do oráculo veio “duplicar” o acontecimento es

pe rado/ Talvez esta im pressão de ter sido “du plicad o”


constitua não apenas a estr utura da metaf ísica, mas a in
da a ilusão filos ófica por excelê ncia. Observ aremo s, com
efeito, que ela está presente no próprio âmago de filoso
fias que pretendem recusar toda metafísica: por exem
plo, em Marx, qu e procura descobrir no real aparente a
lei Real que explica, ao mesmo tempo, o seu sentido e
devir, num a atitude então duplamen te oracular (à dup li

cação do v isível e do invisível, q ue pre ten de faze r a divi


são entre um Falso e um Verdadeiro, acrescenta-se aqui
a predição, o anún cio do futuro). En tretan to, é evidente
mente na obra de Platão que este parentesco estrutural
entre filosofia oracular e filosofia tout court aparece de

12J. -E A tt al . Ulm age "méta physique", Paris: Gallimard, p. 178.

58
forma mais manifesta. O mito da caverna, o de Er, o Pan-
filiano, e a teoria da reminiscência são as expressões mais

precisas
platonismo deste
em tema da duplicação
geral uma filosofia dedo único oracular.
essência que faz do
Aqu i se poderia, tom ando p or base ce rtas passagen s
de Pla tão ,13objetar q ue o platonism o não é um a filosofia
do duplo , mas sim um a “filosofia do singu lar”, fund ada
precisamente na impossibilidade do duplo.14É verdade
que uma das características de todo objeto, para Platão,
é de ser inimitável, de nã o pod er ser dois. Assim, Sócrates
ensina no Crátilo que a perfeita reprodução de Crátilo
conduziría não a um duplo (duas vezes Crátilo), mas a
um absurdo; porq ue é a essência de Crátilo ser apenas um,
e não dois: esta essência, que define a singularidade, é
por definição inimitável, mas não duplicável, porq ue só
pode produzir imagens que jamais terão precisamente a
característica do duplo. A questão, en tretanto, é deter mi
na r se a impossibil idade da duplicação ou a inda a neces
sidade do singular conduzem realmente, em Platão, a
uma filosofia do único. É preciso distinguir aqui dois
níveis de duplic ação: o nível sensível e o nível metafísico.
Defr ontam o-no s, de fat o, com duas impossibili dades de
duplicação: por um lado, a impossibilidade para o objeto

13Cr áti lo, 43 2a ss.: Parmênide s, 132a ss.


HCf. V De sco mb es, L e Platonisme, Paris: PUF, p. 40 ss.

59
sensível de se duplicar em um outro objeto sensível que
seria, ao mesm o tempo, ele mesm o (tese do Crátilo); p or
outro lado, a impossibilidade para o objeto sensível de
aparecer ele mesmo como o duplo de um modelo real e
supra-sensível (tese en unc iada no início do Parmênides).
Trata-se, no prim eiro caso, da não-repetição no nível dos
objetos sensíveis: a essência do objeto sensível é de jam ais
poder se repetir, quer dizer, de jam ais poder reconstituir
em ou tro lugar, em outro tempo, este mesm o objeto sen
sível. Esta impossibilidade de se repetir resume, aliás, a
essência do sensível e sublinha, ao mesmo tempo, a sua
finitude. Jamais poder “restituir” a coisa é justamente a

marca do que o sensível, abandonado a si mesmo, tem


de constitucionalmente insatisfatório, a tal ponto que
Kierkegaard, em A repetição, faz desta inaptidão para a
repeti ção a principal fonte do se u afastamento — de ins
piração platônica — das coisas deste mund o: ele não
podería “am ar o que jam ais se verá duas vezes”.15No se
gundo caso, deduz-se o pensamento do caráter engano
so do real, em reação a este outro real que ele é incapaz
de duplicar, d a imp ossib ilidad e do objeto sensível (isto é,
o conjunto das coisas deste mundo) de repetir um mo
delo supra-sensível (qu er dizer, a Idéia, ou o real abso lu
to ). Nos dois casos, o caráter não-duplicável da realidade

l5Vigny, La Maison du berger.


conduz a uma depreciação do objeto sensível, ao qual é
precisamente censurado o fato de não p oder ser o duplo,
nem de si mesmo enquanto sensível, nem do outro en
quanto realidade primordial. O que significa que a im
possibilidade do duplo vem paradoxalmente dem onstrar
que es te m und o-aq ui é justamen te apen as um duplo, ou
mais precisamente um mau duplo, uma duplicação fal
sificada, incapaz de restituir nem a outra nem ela pró
pria; em suma, uma realidade aparente, inteiramente
urdida no estofo de um “ser menor”, que está para o ser

assim com o o sucedâneo está para o pro du to verdadeiro.


O fato de que a duplicação seja considerada impossível
para Platão não implica, então, de modo algum, que o
platonismo não seja um a filosofia do duplo, mas sim
o contrário.
A verdade do p latonismo perm anece, poi s, realm en
te ligada ao mito da caverna: este real-aqui é o inverso

do mu ndo real, sua sombr a, seu dupl o. E os acontec imen 


tos do mundo são apenas réplicas dos acontecimentos
reais: eles constituem os momentos secundários de uma
verdade cujo primeiro momento está em outro lugar, no
outro mundo. Este é, como se sabe, o sentido da teoria
da reminiscência, qu e e nsina q ue jamais podería existir
neste m und o um a exper iência verd adeir amente prim ei

ra. Nada jamais é descoberto: tudo aqui é reencontrado,


trazido novamente à memória graças a um reencontro

61
com a idéia srcinal. O pequeno escravo do Ménon não
descobre, mas redescobr e. A própria vontade só pod e re-
desejar o que a necessidade já ordenou do outro m undo ,
como ensina o mito de Er, o Panfiliano; e, neste hábito
qu e os deuses têm de atribuir à responsabilidade hu m a
na os seus próprios decretos, reencontra-se a ironia da
predição oracular, que é de delegar às suas vítimas a res
ponsabilidade delas mesmas a realizarem, como na fá
bula de Esopo citada anteriormente.
Como toda manifestação oracular, o pensamento
metafísico se fund am enta nu ma recusa , de tipo instinti
vo, do imediato, sendo este considerado de certo modo o
outro de si mesmo, ou o substituto de uma outra reali
dade. Poderiamos dizer que é a própria noção de ime-
diatidade que aparece assim falsificada: desconfia-se do
imediato precisamente p orq ue se duvida que ele seja real
me nte o imediatoyÉs te imediato aqu i apresenta-se como
primeiro; mas não seria, antes, segundo? Talvez esta seja
a srcem desta desconfiança ancestral com relação ao
“primeiro”, da qual Talleyrand fornece um eco signifi
cativo qu an do diz q ue é preciso desconfiar do primeiro
movimento, “porque, geralmente, é o bom”. Uma aná
lise desta frase profunda revela que desconfiamos do
nosso primeiro movimento, que não o consideramos o
“bom ”, precisam ente porq ue nos recusamos a considerá-
lo o “prim eiro”: não é já um a “elaboração secundária”,

62
não dei à minha inteligência o temp o para deixa r-se sur
preender por esta ou aquela interpretação enganadora,

proveniente
dade tal comodoeumeu desejoque
preferia e, portanto, imagem
fosse, e não da reali
imagem da
própria realidade? É provavelmente nesta direção que se
deve busca r a srcem de todas as manifestações de in ter
dição qu e pes am sobre a s primeiras exper iências: p orq ue
um N oli me tangere veda ao homem o contato deslum
brante com o real da prim eira vez, como é mostrado em

A vida é um sonho, de Calderón, q ue é a tragédi a da re


cusa do imediato, da impossibilidade de aceder à ime-
diatidade. A reali dade h um an a parece só pode r começar
com a “segun da vez ”. Uma precaução para nada\ esta é a
divisa desta vi da no segundo g rau, q ue leva o agricultor
a sacrificar o primei ro alqueire de sua colheita, os jovens
roma nos a fazerem a Júpiter o sa crifício de sua prim eira

barba, os esposos cartagineses a sacrificarem o seu pri


meiro filho em h onra do deus Baal. O real só começa no
segundo lance, que é a verdade da vida hu mana, m arcada
com a rubrica do dup lo: q ua nto ao primeiro lance , que
não duplica nada, é precisamente um lance inútil. Em
suma, para ser real, segundo a definição da realidade neste
mundo, duplo de um inacessível real, é preciso copiar
algu ma coisa; ora, es te nu nc a é o caso do prim eiro lance,
que não copia nada: só resta então deixá-lo aos deuses,
os únicos qu e são dignos de viver em sob o signo do único,

63
os únicos que são capazes de conhecer a alegria do pri-
meiro. Talleyrand tem realmente razão ao dizer que o

primeiro movimento era o bom: mas tão bom qu e só é


bom para os deuses, cuja parte ele define.
Privada de imediatidade, a realidade humana está,
naturalm ente, igualmen te privada d ç.presente.O que sig -
nifica qu e o hom em está privado de realidade tout court,
se acreditarm os n o qu e diz em a este respeito o s estóicos,
cujo ponto forte foi afirma r que a realidade se conjugava
somente no presente. Mas o presente seria por demais

inq uie tan te se fosse apenas imed iato e primeiro : ele só é


acessível pelo viés da representação, portanto, segundo
uma estrutura iterativa que o assimila a um passado ou
a um futuro graças a um ligeiro deslocamento que cor-
rói o seu intolerável vigor e só permite sua assimilação
sob a forma de um duplo mais digerível que o srcinal
na sua crueza primeira. Daí a necessidade de um certo
coeficient e de “desatenção à vida”, no p róprio âmago da
percepção atenta e útil; é so mente quando se exagera
esta parte de desa tenção que se pro duz em os fenômenos
de paramnésia (falso reconhecimento, sensação do déjà
vu), tal como os descreve Bergson no estudo já citado
anteriormen te: “Bruscam ente, enq uan to se assiste a um
espetáculo ou se participa de uma conversa, surge a cer-
teza de q ue já se viu aqu ilo qu e se vê, já se ouviu o que se
está ouvindo, já se pronunciou as frases que se está

64
pronunciando — que se estava lá, no mesmo lugar, nas
mesmas atitudes, sentindo, percebendo, pensan do e de

sejando as mesmas coisas —, enfim, que se revê, até no


mínimo detalhe, alguns instantes de sua vida passada. A
ilusão é, às vezes, tão completa que, a cada momento,
enquanto dura, pensa-se estar prestes a predizer o que
vai acontecer: como já não o saberiamos, se sentimo s que
vamos sabê-lo? N ão é raro então qu e se perceb a o m un 
do exterior sob um aspecto singular, como num sonho;
tornamo-nos estran hos a nós mesmos, quas e prestes a nos
desdobrarmos e assistirmos como meros espectadores o
que dizemos e o qu e fazemos”.16Bergson vê nestes tipos
de ilusões “lembranças do presente” que reduplicam
anorm alm ente a percepção atual: “A lembran ça evocada
é um a lembrança suspensa no ar , sem ponto de apoio no
passado. Ela não corresponde a nenhuma experiência
anterior. Sabem os, estamos convencidos dela, e esta con

vicção não é a conseqüênc ia de um raciocínio: ela é ime


diata. Confunde -se com o sentimento de que a lembrança
evocada deve ser simplesmente u ma duplicata da percep
ção atual. É, então, um a ‘lemb rança do presen te’? Se não
se diz isso, é sem dúvida porque a expressão pareceria
contraditória, porque não se admite que uma repetição
possa trazer a marca do passado independentemente do

l6“EÉn erg ie spiri tuelle ”, p. 897.

65
qu e ela representa, enfim, po rqu e se é teórico se m o sa
ber e po rque se considera toda lembrança como posterior
à percepção qu e ela reprodu z. Mas se diz algo parecido,
fala-se de um passado que nenhum intervalo separaria
do presente: ‘ Senti se pro du zir em m im u ma espéc ie de
desencadeamento q ue sup rimiu todo o passado entre e ste
minu to de antes e o min uto em qu e eu estava’ . (F. Gregh
— citado por E. Bernard-Leroy,/4 ilusão defalso reconhe
cimento, p. 183.) Essa é, realmente, a característica do
fenômeno .”17A análise de Bergson consiste em fazer desta
ilusão um fenômeno de desconexão semimórbido, um
aba ndo no a esta “lembrança de luxo” qu e é a lembra nça
do presente, enqu anto , para a percepç ão atual, só sã o úteis
certas lembranças do passado. Há provavelmente algo
mais geral, e mais normal, neste fenômeno de dupla
percepção: não apenas u ma distração momen tânea com
relação ao presente, caracterizando “a forma mais ino
fensiva de desatenção à vida”,18m as sim um a denegação
do presente, já visível em toda percepção normal. Deve-

se observar que esta denegação do presente que relega


este par a o passad o (ou o coloca, ao contrário , no fu turo)
intervém, às vezes, em circunstâncias que não se pres
tam precisamente a nenhuma “desatenção”: quando a

17“LÉnergie spirituelle”, p. 921-2.


l8Idem, p. 929.

66
hora é grave, e o presente se torna, de súbito, claram ente
inassimiláveK Ã rejeição autom ática do presente no pa s- \
sado ou no fu turo é, geralmente, a ação de um indivíduo
que não pensa que outra co isa venha m onopolizar a sua
atenção, mas está, ao contrário, fascinado pela própria
coisa, presente, da q ual tenta desesperada mente se desli
gar, e só consegue isso relegando -a, como p or magia, pa ra
um passad o ou para um futuro próx imo, pouc o importa
onde ou quando, contanto que a coisa não esteja mais
no present e nem aq ui — anywhere out o fthe world, como
diz Baudelaire. U m duplo, por piedade, parece buscar a
pessoa que o presente sufoca: o duplo encontra o seu lu- _
gar natural um pouco antes ou um pouco depois: Um
romance de Robbe-Gril let, Les Gommes, cuja inspiração
é antiga, já que retoma o tema sofocliano da identidade
do detetive e do assassino, exprime muito precisamente
esta rejeição do presente e seu desdobramento errático,
qu e leva aqui a apresenta r o acontecimento como já ten 
do ocorrido, mas també m como devendo ocor rer: porqu e
enquanto o detetive especula sobre o assassinato da ve
lha, o ass assino — qu e não é outro senão o próprio “de
tetive” — imagin a antecipad amen te o assassinato que vai
cometer. Assassinat o cujo verdadeiro “h eró i” — que não
é no fund o ne m deteti ve nem assassino (ainda não dete
tive nem já assassino, ou vice-versa) — aparece rá no fim

do romance, que estala tão secamente quanto o tiro de


67
revólver que ence rra o livro: o presente. Mas o presen te é
justam en te o que não é percebido, invisível, insu portá
vel; e é de m uit o boa fé que o assassino garant e à polícia
que não matou: p orque o crime o correu no present e —
eu não estava lá. O passado e o futuro sempre estarão lá
para apagar o imperceptível e insuportá vel b rilho do pre 
sente. Aliás, també m é neste sentido qu e u m a certa fi lo
sofia pode aju dar a viver: ela apaga o real em proveito da
representação. E é ainda neste sentido que Montaigne
descreve o caráter para sempre indigesto do real, que
beneficia as lembranças como também as previsões: “No
tável exemplo da desenfreada curiosidade de no ssa na tu 
reza, que faz com que percamos nosso tempo em nos
preocupar com as coisas futuras como se não nos bastasse
digerir as presentes.”19
Colocar a imediatidade à distância, associá-la a um
outro mundo que possui a sua chave, ao mesmo tempo
do po nto de vista de sua significação e do po nto de vista
de sua realidade, tal é, portanto, o projeto metafísico por

excelência. As versões deste outro mun do pod em variar;


sua função — afastar o i mediato — permanece sempre a
mesma: a função oracular, que duplica o acontecimen
to, fazendo dest e último a imagem de um outro aconte
cimento do qu al ela só representa um a imitação mais ou

19Ensaios, I, cap. XI, “Dos prognósticos”.

68
men os bem-suce dida, p orq ue mais ou meno s falsificada.
Acontece, todavi a, um pouco como no exemplo dos dois
Crátilo, q ue a imitação se ja tão bem-su cedida q ue acabà\
por se to rnar indistinguível do seu original, de modo que
o outro m un do não é outr a coisa senão este mund o-aq ui,
sem qu e se renun cie p or isso à idéia segundo a qu al este
mundo-aqui permanece realmente a cópia deste outro
mundo, que não difere dele, entretanto, em nada.'Esta
versão particular do outro m un do define bastante preci 
samente a e strutu ra da metafís ica de Hegel, cuja srci
nalidade é a de fazer coincidir este mundo e aquele
mun do , o btendo assi m — ao preço de um a reit eração
tautológica — um “concreto” aparen teme nte libe rto da
ilusão metafísica, pois já contém em si mesmo todas as
características que d efinem igu almente o outro mun do.
A dialética do único e de seu duplo parece aqui enlou
quecer , no senti do que se diz de um a ag ulha de bússol a

que ela está louca; eis por que a sutileza hegeliana apa
rece aqui, não “um pouco vã” e “forçada”, como escreve
o seu comentador, Jean Hyppolite, mas, ao contrário,
muito reveladora da loucura inerente à duplicação do
únic o. An alisa ndo o conceito de força,20Heg el disting ue,
em sum a, en tre duas formas de ilusão: a ilusão grosse ira,

2L'Fenomenologia do espírito, Ia seção, cap. III (“Força e entendimento;


manifestação (ou fenômeno) e mundo supra-sensível”).

69
que consiste em tom ar as coisas pelo qu e elas apar entam ,
e a ilusão met afísica — que Hegel pr etend e superar — ,
que consiste em relegar o real para um outro mundo
completamente distinto do mund o da aparê ncia. É pre
ciso então distinguir não dois mundos, mas sim três: em
primeiro lugar, o mundo das aparências sensíveis; em
segundo lugar, o mun do supra-sensível, considerado dis
tinto do mun do sensível (“primeir o mu nd o supra-sensí-
vel”); em terceiro e último lugar este mesmo mundo
supra-sensível, mas considerado desta vez enquanto
coincide em última análise com o mundo primeiro das
aparências (“segundo m und o supra-sensível” ). Este ter
ceiro mun do, que é o oposto do segundo no q ue anu la a
diferença que este preten dia in stituir entre ele mesmo e
o mu nd o sensível, não se confun de, por isso, com o m un
do imediato (sendo este último incapaz de “se pensar”,
por não haver ainda percorrido o itinerário de sua dúvi
da radical — metafísica — e do retorno a si mesm o), é o
qu e Hegel chama o “mu ndo in vertido”: isto é, um d uplo
do único que seria justam ente o próprio único, mas ape

nas depo is de um a pirueta que o desvio metafísico só te-


ria executado para melhor voltar ao ponto de partida.
Desvio que não é desprovido de lucro: porque se havia
partido das aparências sensíveis, mera crosta do real, en
quanto , um a vez terminada a pirueta, reca ímos no “in
terior ou na essência das coisas”. Descobrim os, então, que

70
o sensível não é outra coisa senão a concretização pro
gressiva do além supra-sensível, do qual constitui o que
Hegel chama o “preen chim ento” — exatamente como o
duplo, segun do a estru tura oracular, pode se r considera
do a realização, o “pree nchim ento” do único. Is so Hegel
reconhece: “Mas o interior ou o além supra-sensível apa
receu, ú t provém do fenômeno, e o fenômeno é sua me
diação ou ainda o fenômeno ésua essência, e, na realidade,
o seu preenchimento. O supra-sensível é o sensível e o
percebido postos como na verdade são; mas a verdade do
sensível e do percebido é de ser fenômeno. O supra-sen
sível é então ofenômeno enquanto fenômeno";21exatamen
te como o seu comentad or: “D etenh amo-nos a inda nesta
experiência que Hegel denomina curiosamente como
‘mundo invertido’. É porque o primeiro mundo supra-
sensível — elevação ime diata do sensível ao inteligível
— se reverte ou se inverte nele mesmo, que o movimen
to é nele introduzido, que ele não é mais apenas uma

réplica imediata do fenômeno, mas confunde-se comple


tamente com o fenômeno, que assim se mediatiza a si
mesm o em si mesmo e se torna manifestação d a essência.
Comp reendemos o que queria dizer Hegel a o pretender
que não havi a dois mu ndos, mas que o mu ndo inteligí
vel era ‘o fenôm eno enquanto fenôm eno ’, a ‘manifesta

2lTrad. para o francês de J . Hyp pol ite. Paris: Au bier -M onta igne , 1.1, p. 121-2.

71
ção’ qu e é no seu devi r autêntico apenas manifestação de
si por s L ^ É m outras palavras, este mun do-aq ui é o out ro^
de um outro mun do que é just amente o mesmo que este
mu nd o-aq ui: p orqu e este itinerário mis terioso, duran te
o qual o fenômeno se mediatiza a si mesmo em si mes
mo para se tor na r manifestação da essê ncia, não é outro
senão o caminho que con duz de A até A passando por A .
Esta estranha coincid ência dest e mu ndo e do outr o m un 
do (que exprime apenas a coincidência do único e de seu
duplo) não escapa a Heg el, qu e nela vê a última palavra
do mistério filosófico, isto é, do mistério que faz com qu e
as coisas sejam justa me nte o que são, e não outras. D aí a

idéia, francamente absurda desta v ez, de qu e a coincidên 


cia do real com o real é conseqüência de um ardil: “O
grand e ardil, dizia Heg el num a observaçã o pessoal, é que
as coisas sejam co mo são. [...] A essência d a essência é se
manife star e a manifestação é manifestação da essência.” *23
Esta iden tidade da aparência e do re al qu e ela oculta é,
ao mesmo tempo, um ardil do destino e um achado de
Hegel: ela fornece, com efeito, uma explicação eterna

mente satisfatória
própria do caráter
para perturbar invisívelincrédulos.
os espíritos do outro mundo,
O outro

uGenèse et structure de la "Phénoménologie de LE spr it" de Hegel, por J.


Hyppolite. Paris: Aubier-Montaigne, 1.1, p. 132. Publicado no Brasil sob
o título de Gênese e estrutura da Fenomenologia do Espírito. São Paulo:
Discur so E dito rial .
23Idem, p. 122.

72
mun do é invisível por qu e é precisamente du plicado por
este mu nd o-a qu i, qu e nos impede de v ê-lo. Se este m un 
do diferisse, mesmo que um pouco, do mundo supra-
sensível, este últim o seria, de ce rto mod o, m ais tangível:
poderiamos reconhecê-lo na própria variação que o faria
diferir do m un do sensível. Mas, justam ente, esta variação
não existe. O mun do supra-sensível é a exata duplicação
do mundo sensível; não se diferencia dele de maneira
alguma. E esta é a razão p or qu e se custa tanto a percebê-
lo: ele estará sempre dissimulado pelo seu duplo, quer
dizer, pelo m un do real. Nã o se poderia ima gina r melhor
esconderijo. A filosofia hegeliana aparece assim como a
própria ess^nea do pensam ento oracular: ela anuncia no
real a manifestação de um outro Real do qual não se
poderia duvidar, pois já está presente integralm ente no
nível do re al imedia tam ente perce bido. E po uco im por
ta que, em Hegel, este real e este Real sejam apenas um
só; ao contrário: esta duplicação rigorosa só segue mais
de perto a estrutura oracular cujo fim é fazer coincidir,
em u m acon tecim ento ún ico, a surpresa e a satisfação da
expectativa.
Esta estrutura oracular caracteriza, aliás, como se
sabe, todas a s filosofias do sécul o XIX. En co ntra -se u m
eco particularm ente evocador de sta e strutu ra em Fichte,
principalmente, que, se acreditarmos em Schopenhauer,
repetia obstinadame nte aos seus alunos q ue é justa mente

73
porque as coisas são assim que elas são ("Es ist, weil es so
ist, wie es ist").
Esta estrutura oracular do real manifesta-se igual
mente nas filosofias do século XX, especialmente em
certas filosofias consideradas de vanguard a, po r não h a
verem ain da sido comparad as às filosofias do passado, das
quais mui tas vezes só diferem na forma ou em detalhes.
Assim, reencontr amos nitidamente a estrutura hegelia na
do real na estrutura do real segundo J. Lacan. Pouco
importa que, em Lacan, o real não seja garantido, como
em Hegel, p or um outro real , mas sim por um “signifi-
cante” que, “por sua natureza, só é símbolo de uma au
sência”.24 O que impo rta é a igual insuficiênc ia do real
para dar conta de si mesmo, para assegurar a sua própria
significação, como em Lucrécio; a igual necessidade de
buscar “em outro lugar” — mesmo que fosse em uma
“ausência” e não em um “além” — a chave que pe rmite
decifrar a realidade imediata! O que im porta é que o sen
tido não es teja aqui, mas sim em outro lugar — daí uma
duplicação do acontecimento, qu e se desdobra em dois
elementos, de um lado a sua manifestação im ediata, e do
outro o que esta manifestação manifesta, isto é, o seu
sentido.7Ó sentido é justamente o que é fornecido não
por ele mesmo, mas pelo outro; eis por qu e a metafísica,

2<Écriis. Paris: Ed. du Seuil, p. 25.

74
que busca um sentido além das aparências, sempre foi

uma metafísica do outro. E o outro do sensível que, em


Hege l, explica o se nsível, assim com o é o outr o do pênis
(o “falo”) que dá, em Lacan, o seu sentido ao pênis. A
analogia a qu i é reforçada, al iás, po r esta mes ma e estra 
nha intuição — tanto em Lacan como em Hegel — se
gun do a qu al o outro a ssim visado não é justam ente outra
coisa senão o mesmo. Hege l: sem o supra-sensível, o sen
sível não tem nenhum sentido; logo, o supra-sensível
existe; e é justamente o próprio sensível. Lacan: sem o
falo o pên is não tem n enhum sentido; logo, o falo existe;
ora, o falo não é outra coisa, precisamente, senão o pê
nis, como t odos sa bem. A estru tura oracular da am bigu i
dade é, ent re todas, a que Lacan privilegia, como indica
o Seminário sobre “
A carta roubada” sendo o real, aí,

“signifi cante” apenas p orq ue ele “não se encon tra em seu


lugar” (exatamente como o acontecimento anunciado
pelo oráculo só é, de fato, esperado porque ele é outro).
Deve-se compreender desta maneira o sentido destes
enigmát icos esquemas “E’— “que para alguns parecem
um que bra- cab eça ”25— , de onde resulta q ue o eu n ão é
justamente o eu, e que o outro difere precisamente do
outro. Re encont ramos a í a estrutura hegeliana da iteração
tautoló gica, qu e se complica apenas pelo afastam ento do

15Écrits. Paris: Ed. du Seuil, p. 42.

75
significante como um eterno acessório em relação à coi
sa que ele significa (enquanto a significação hegeliana
vem, em última análise, “preencher” o real e coincidir
com ele). Daí, em L acan, a denegação constante, de apa
rência inevitavelmente maníaca: o pênis é o f alo porq ue
ele nã o é ele, e vice-versa; o ser nã o é o ser, ou melhor, só
o é po rq ue não o é; o branco só é preto p or qu e ele não o
é, ou então só o é na medida em qu e o preto é justam en-
te o branco.
Estas considerações lançam uma luz interessante
sobre a estrutu ra psic ológica daquilo que, desde a segun

da metad e do séc ulo XIX, chama-se na F rança o chichi. *


O chichi se caracteriza, antes de tudo, evident emente, po r
um gosto pela complicação, que traduz ele mesmo uma
aversão pelo simples. Mas é preciso compreender o du
plo sentido desta recusa do simples, senão parece que as
sim caímos no próprio erro que pretendemos examinar
do exterior. Num primeiro sentido, a aversão pelo sim
ples exprime apenas um gosto pela complicação: à a titu 

de simples pref ere-se a m anob ra complicada, mesmo se


o alvo visado é o mesmo, e que se esteja, aliás, prestes a
negligenciá-lo p or este excesso de complicação. Mas, nu m
segundo sentido, que não elimina o primeiro mas, ao

*Chichi: termo onomatopaico (1898) que se refere a um tipo de compor


tamento afetado, que prima pela ausência de simplicidade. (N. do T.)

76
contrário, o aprofunda e o elucida, a aversão pelo sim
ples designa um pavor diante do único, um afastamento
com relação à própria coisa: o gosto pela complicação
exprimindo, em primeiro lugar , um a n ecessi dade da du
plicação, necessária à assunção sub-reptícia de um real
cuja unicida de cru a é instinti vam ente pressentida como
indigesta. Entendida assim, esta recusa do simples per
mite co mp reende r por qu e as “precios as” fazem chichis:
menos p ara brilhar na sociedade do qu e para atenu ar o
esp lendo r do real, cujo brilho as f ere por sua intolerável
unic idad e. A coisa só é tolerável s e med iatizad a, d esdo 
brada: não há nada neste mundo que possa se experi
mentar assim, “diretamente”. É o que exprime muito
claram ente Magdelon, em Molière, quando declara ao pai
que não podería “falar de um momento para outro em
união conjugal” e que ela “sente náuseas só de pensar
em tal coisa”.26 Conhecemos o sentido, confirmado pela
etimologia, da expressão francesa de but en blanc: ir di
reto ao alvo , visar diretam ente o únic o sem o auxíli o do
duplo. A complicação, aqui, é apenas um tapa-buraco,
um a atitude de pr oteção contra a inelutabili dade do ún i
co, ao qu al o chichi — seja de essên cia preci osa ou meta
física, supondo estas duas essências diferentes uma da
outra — constitui rá apenas u m obstá culo p rovisório, ou

16A s preciosas ridículas, cena IV

77
pelo menos ilusório. Provisório se se trata apenas de um
chichi passageiro; de qualquer modo ilusório, mesmo se
se trata de u m chichi obstinado e def initivo: p orq ue a re

cusa do único jamais ser á acom panhad a da preensão de


um duplo, de modo q ue a busca d o duplo ao qual se sa
crificou o único está condenada, de qualquer modo, ao
fracasso, já qu e é a busca do “na da ” do qua l lou cam ente
se imagina que o real é o “outro”. O chichi está assim
relacionado a uma angústia muito profunda, que pode
ser descrita sumariam ente como a inqu ietud e à idéia de
que, aceitando ser isto que se é, concorda-se ao mesmo

temp o qu e se é apenas is to. A unicida de im plica, na rea 


lidade, ao mesmo tempo um triunfo e um a humilhação:
triunfo por ser o único no mundo, humilhação por ser
apenas est e mesmo único, que r dizer, quase nada, e den
tro em breve absolutamente nada. O preciosismo dese
jaria um triunfo sem hum ilhação e esta é a razão por que
ele traduz não apenas um gosto pela complicação, mas
mais profund ame nte um desgosto de si enq uan to único.

Esta profundidade psicológica do chichi confere um sa


bor substancial a uma célebre passagem de La Bruyère:
“O que diz? Como? Não entendo; não se importa de
repetir? Percebo ainda menos. Adivinho, afi nal: você que r
me dizer, Acis, que está frio; por que não disse: ‘Está
fazendo frio’? Quer me dizer que está chovendo ou

78
nevando, diga: ‘Está chovendo, nevando’ [...] Mas, res
ponda você, isso é muito simples e claro.”27

Poderemos observar, contudo, antes de concl uir, que


o tem a da d uplicação não está forç osament e ligado a um a
estru tura de pen samen to met afísico. Ao lado da e stru tu
ra metafísica do duplo, que tende a depreciar o real
(privando o imediato de todas as outras realidades, es
vaziando o presente de todos os fatos passados assim
como de todas as possibilidades futuras), pode-se conce
ber uma estrutura não-metafísica da duplicação, que ten
da, ao contrário, a enriquecer o presente com todas as
*

potencialidades, tanto futuras quanto passadas. E o tema,


ao mesmo tem po estó ico e nietzschian o, do eterno retor
no, qu e vem paradoxalmen te su prir o prese nte de tod os
os bens dos quais o priva a duplicação metafísica. De
forma que o presente, o aqui se tornam o pleno, e que o
outro tempo, o outro lugar tomam o lugar do vazio ao
qual estava condenada a imediatidade segundo a pers
pectiva inversa. Isto graças a um “desencadeam ento” que
se assemelha ba stante ao q ue evoca F. Greg h m ais ab ai
xo, quando declara: “Senti se produzir em mim uma
espécie de desencade amento q ue sup rimiu todo o pas

sado entre este minuto de antes e o minuto em que eu

270 s caracteres, “Da sociedade e da conservação”, 7. C£ trad. brasileira de


Alcântara Silveira. São Paulo: Cultrix, p. 65.

79
estava ”.28É provável qu e este desen cadeam ento graças ao
qua l o presente s e reabilita, enriqu ecen do-se sub itamen te
de todos os bens dos quais até então estava privado, ap a
reça mais clarame nte na poesia do qu e na filosofia, ainda
qu e de a finidad e poética, como é a fi losofia de Nietzsch e.
As quimeras de Gérard de Nerval, para se ater apenas a
este poeta, sugerem adm iravelme nte este tema da dup li
cação do presente em todo passado e todo futuro, mas
para a única glória e celebração do próprio presente. A
reiteração, tema dominante das Quimeras, volta-se aqui
em favor dela mesma, e não em favor daq uilo q ue é rei
terado. O qu e importa é que tud o é eternamente primei

ro. A décima terceira vez será, ela própria, sempre a


primeira, e a única, como dizem os dois primeiros versos
d zArtémis. O itine rário nervaliano é, aqui, o i nverso do
itinerário metafísico: Nerval não apaga o presente em
benefício do passado ou do futuro, mas, ao contrário,
apaga o passado e o f uturo em benefíci o do presente, qu e
se acha assim enriquecido, ou melhor, “preenchido”,
como diri a Hegel, de tudo o qu e ocorreu e d e tudo o que
um dia ocorrerá. Este sentido da duplicação conduz,
então, não à escapada do aqui para o outro lugar, mas,
ao contrári o, a um a convergênci a qua se mágica de todo
outro lu gar para o aqui. Esta convergênci a, visl umb rada

28V sup ra.

80
por Nerval no fim de sua vida, define o estadode graça. Daí
o caráter bem-aventurado da duplicação nervaliana nas
Quimeras que, em vez de privar o presente de sua realida
de própria, acrescenta-lhe, ao contrário, a série infin ita das
outras realidades dO pres ente é, a cada instante, a soma de
todos os presentes; esta expressão “presente” devendo ser
entendida aqui no seu duplo sentido de dádiva do instan
te (dádiva deste presente aqu i) e de oferenda absoluta (dá
diva de todo “presente”, que r dizer, de toda d uração). E o
retorn o final à imobilid ade, a este único que vem selar, no
fim de Delfica, a série de todos os instantes passados no
único instante presente, não omite ne nhum a realidade. Ao
contrário, ele as afirma todas ao mesmo tempo, porque
transporta em suas baga gens a totalidade de tud o o qu e é,
será e foi, dotando assim cada instante da vida de toda a
riqueza da eternidade:

Conheces, D a fn e , esta antiga canção


Ao pé do sicômoro, ou sob os loureiros brancos
Sob a oliveira, o mirto ou os salgueiros trêmulos
Esta canção de amor que sempre recomeça?...

Reconheces o Templo de colunas imensas


E os limões amargos onde teus dentes se cravavam
E a gruta, fatal para os hóspedes imprudentes
Onde do dragão vencido dorme a antiga semente?...

81
Eles voltarão, esses deuses que lastimas sempre!
O tempo vai restabelecer a ordem dos antigos dias;
A terra estremeceu com um sopro profético...

No entanto a sibila de rosto latino


Ainda está adormecida sob o arco de Constantino
— E nada perturbou o severo pórtico.*

Seja amigo do prese nte qu e passa: o futuro e o passa -


do lhe serão dados por acréscimo.

*La connais tu, Dafné, cette ancienne ro mance, / A u pi ed du sycomore, ou


sous les lauriers blancs, / Sous 1’olivier, le myrte, ou les saules tremblants, /

Cette chanson d ’am our q ui toujours recommence?... / / Reconnais-tu le Temple


au péristyle immense, / E t les citrons amers oà s’im prim aien t tes dents, / E t la
grotte, fatale aux hôtes imprudents, / Ou du dragon vaincu dort Vantique
semence?... / / Ils reviendront, ces die ux qu e tup le ures toujo ursl / L e lem ps va
ramenerVo rdre des anciensjours; L a terre a tressaili d’un so ufflépr ophéti que...
II Cep endant la sibyll e au visage lat in / Est endormie encor sous l ’arc de
Constantin / — E t rien n ’a dérangé le sévère portique.

82
A I LUSÃO PSICO LÓG ICA:
O HOM EM E S EU DUPLO

1. “EU É UM OUTRO”

No Crátilode Platão, Sócrates mostra que a melhor


reprodução de Crátilo impli ca necessari amente um a di

ferença comrque
Crátilo, po relação
seriaapreciso
Crátilo:qunão
e a podem
cada umexistir doisper
dos dois
tencesse paradoxalmente a propriedade fund am ental de
Crátilo, qu e é de ser ele mesmo e não u m outro. O que
caracter iza Cráti lo, as sim como qu alq ue r coisa no m un
do, é, portanto, a sua singularidade, sua unicidade. Esta
estrutura fundamental do real, a unicidade, designa ao
mesmo tem po o seu valor e a sua finitude: to da coisa tem
o privilégio de ser apenas um a, o qu e a valoriza infinita-
mente, e o inconveniente de ser insubstituível, o que a

83
desvalo riza infinitamente. Porq ue a morte do único é ir
remediável: não havia dois como ele; mas, uma vez
terminado, não há mais nenhum. Tal é a fragilidade
ontológica de toda coisa existente: a unicidade da coisa,
qu e c onstitui a sua essência e determ ina o seu v alor, pos 
sui em contrapartida um a qualidade ontológi ca desast ro
sa, nada além de um a part icip ação mu ito tênue e mu ito
efêmera no ser.
Pode-se, entretanto, imaginar realizado o paradoxo
de Sócrates (não concebê-lo, pois isto implica contradi
ção, mas imaginar que o concebemos): existirão então
dois Crátilo, e um será o duplo exato do outro, de modo
que não diferirão em nada um do outro e que será mes
mo impossível falar a seu respeito de um “um” e de um
“outro ”. Esta imagem, que só faz concretizar o habitual
fantasm a da duplicação do úni co, apresenta, entretan to,
uma particularidade notável: aqui o único duplicado
não é mais um objeto ou acontecimento qualquer do
mun do exterior, mas sim um h omem , quer dizer, o sujeito,
o próprio eu. Este caso particu lar da duplicação do ú n i
co constitui o con junto dos fenômeno s cham ados de des
dobramento de personalidade, e deu srcem a inúmeras
obras literárias, como também a inúmeros comentários
de ordem filosófica, psicológica e, sobretudo, psico-
patológica, já que o desdob ramen to de person alidad e
define também a estrutu ra fund am ental das mais graves

84
demências, tal como a esquizofrenia. O tema literário do
duplo aparece com uma insistência particular no século XIX
(Hoffm ann, Chamisso, Poe, Maup assa nte Dostoiévski são

os seus ilustradores mais célebres); mas sua srcem é evi


dentemente muito antiga, pois os personagens de Sósia
ou de irmão-gêmeo ocupam um lugar importante no
teatro antigo, como no Anfitrião ou em Os Menecmas, de
Plauto. O duplo — no sentido de desdobramento da
personalidade — não está, aliás, ligado apenas à expres
são literária: também está presente na pintura, da qual
constitui mesmo um tema essencial e decisivo do ponto
de vista psicológico, se é verdade, como se pode afirmar,
que todo pintor tem como missão fundamental ter êxito
ou fracassar em seu “auto-retrato” (isto no caso de qual
que r gênero de pintura, e n a ausênci a mesmo de qualq uer
tentativ a de se fazer repre senta r a si mesm o sobre a tel a).
O duplo interessa finalmente à música e está presen
te, por exemplo, no início do século XX, em três gra n
des obras musicais, que servirão aqui de ilustração:
Petrouchka, de Stravinski, O amo r feiticeiro, de Manuel
de Falia sobre um argume nto de M artinez Sierra, z A m u
lher sem sombra, de Richard Strauss sobre libreto de
Hoffmannsthal.
Petrouchka — Petrouchk a é uma marionete, o duplo
ridículo do verdadeiro Petrouchka que ama a Bailarina,
e que só pode agir ele mesmo como duplo, quer dizer,

85
como fantoche que é. Assassinado pelo Mouro, outra
marionete que, por ciúme, despedaça-o com um golpe
de sabre, Petrouchka reencontra, ao morrer, a sua alma,
recuperando assim o srcinal que só conseguira até en
tão imitar: e é o seu ser real que se vê, de súbito, gesticu
lar sobre o telhado, de m ane ira fanta smátic a, e desafiar o
seu mestre que foge enqu ant o o pano cai.
O amor feiticeiro — A bela cigana Candeias ama o
jovem Carmelo, mas, toda vez que deseja se atirar em seus
braços, vê aparecer o espectro de um ho mem que outro-
ra amou e que continua a atormentá-la mesmo depois
de morto. Um a amiga devotada, Lucia, aceita desviar para

ela a atenção do espectro, liberta assim Candeias, que


reencontra Carmelo e desaparece com ele, enquanto os
sinos da manhã anunciam a aurora e se desvanecem to
dos os malefícios noturnos.
A mulher sem sombra — Como expiação de um cri
me cometido por seu pai, uma princesa foi privada de
sombra e também de fecundidade: ela não pode tornar-
se mãe. Um subterfúgio consistiría em comprar a som
bra de um a men dig a, privan do assim esta últim a de
fecundidade. A princesa se recusa a isso in extremis, co
movida pela sorte que se destina à infe liz. Este insta nte
de piedade é imed iatamen te recompensado por uma gra
ça sobrenatural qu e extingue a maldição e r estitui à prin 
cesa sua sombra e sua fecundidade.

86
Petrouch\a é o único destes três exemplos que apre
senta o tem a do desdo bram ento de si sob um a form a sim

ples e imediata. Em O amor feiticeiro, Candeias não é


perseguida pelo seu duplo, mas sim pelo duplo daquela
qu e foi, e qu e aparece no espectr o de seu a mante morto.
A apaixonada de hoje é perturbada pela apaixonada de
ontem; mas o amor no presente acaba felizmente por
triunf ar, como na Canção do mal-amado de Apolli naire,
ou ainda numa outra ópera de Richard Strauss e Hoff-
mannsthal, Ariana em Naxos. Em A mulher sem sombra,
a sombra não representa o duplo, mas constitui, ao con
trário, o seu inverso. A sombra simboliza aqui a ma
terialidade, a encarnação da heroína na unic idade de um
aq ui e de um agora, e, conseqü entem ente, a aptidão para
viver e para reproduzir a vida. De modo que a mulher
com sombra, na qual se transforma novamente no final
da ópera, é a mu lh er livre do malefíci o do dup lo q ue leva,
em todos os casos, a situar o real de uma pessoa precisa
me nte fora d ela própria . A m ulh er sem sombra é a m u
lher com dup lo, por qu e não ter som bra significa qu e se é
apenas uma sombra, que só se vale pelo real que se du
plica sem chegar a coincidir com ele. Graças ao milagre
term inal, a coincidência oc orre: tra nsfo rmada enfim nela
mesm a, a princesa ce ssa de duplicar qu em qu er qu e seja
e reencontra a sua sombra. A passagem da mulher sem
sombra para a m ulh er sem duplo n ão é outra coi sa senão

87
o retorno do outro para si, do alhures para o aqui, que
marca o reconhec imen to do únic o e a aceitação da v ida.
Um célebre estudo de O tto Ran k29chega a relacio nar
o desdobramento de personalidade com o medo ances
tral da morte. O duplo que o sujeito imagina seria um
duplo imortal, encarregado de colocar o sujeito a salvo
de sua própria morte. A superficialidade do diagnóstico
provém aqu i de que Rank não percebeu a hierarqu ia real
que liga, no desdobramento de personalidade, o único
ao seu “dup lo”. E verdade que o duplo é sempre intu iti
vamente compreendido como tendo uma realidade “me 
lh or” do q ue o próprio suj ei to — e ele pode aparecer neste
sentido como representando uma espécie de instância
imortal em relação à mortalidade do sujeito. Mas o que
angustia o suj eito, m uito mais do q ue a sua morte próxi
ma, é antes de tudo a sua não-realidade, a sua não-exis-
tência. Morrer seria um mal menor se pudéssemos ter
como certo que ao menos se viveu; ora, é desta vida mes

ma, por mais perec ível qu e por ou tro lado possa s er, qu e
o sujeito aca ba por duvidar no desdobram ento de perso
nalidade. No par maléfico que une o eu a um outro
fantasmático, o real não está do lado do eu, mas sim do
lado do fantas ma: n ão é o outro q ue m e duplica, sou eu
que sou o duplo do outro. Para ele o real, para m im a som 

2,“Le Double”, in Don Ju an et le double. Paris: Payot.

88
bra. “E u ” é “um outro”; a “verdadeira vida” está “a u
sen te.”30Do mes mo mod o, em M aup assan t, Ele ou O

Horla não são sombras do escritor, mas o escritor real e


verdadeiro, qu e Maupa ssant apenas imita de maneira las
timável: não é Ele que me imita, sou eu que imito Ele.
O real — neste gêner o de perturbação — está sempre do
lado do outro. E o pior er ro, para qu em é perseguido por
aquele que julga ser o seu duplo, mas que é, na realida
de, o original q ue ele próprio duplica, ser ia tenta r mata r
o seu “duplo”. Matando-o, matará ele próprio, ou me
lhor, aquele q ue desesp eradam ente tentava se r, como diz
mu ito bem E dga r Poe no final de William Wilson, quan
do o único (aparentemente o duplo de Wilson) s ucumbiu
aos golpes do seu duplo (que é o próprio narrador):
“Venceste e eu su cum bo, mas, de agora em d iante, tam 
bém estás morto. M orto para o mundo, p ara o céu, para
a esperança! Existias em mim, e agora que morro, vê
nesta imagem que é a tua, como mataste na verdade a
ti mesmo.”
A solução do problema psicológico colocado pelo
desdobramento de personalidade não se encontra, por
tanto, do l ado de minha mortalidade , que é de qualq uer
modo certa, mas, ao contrário, do lado de minha exis
tência, que aparece aqui como duvidosa. Quem sou eu,

30Ri mb au d.

89
eu q ue afirmo se r, e, mais ainda, ser eu, apoian do-m e as
sim nesta “falsa evidência que o eu ostenta como título
de existência” da qual fala Lacan? Não basta dizer que
sou único, como o é qua lqu er coisa no m und o. Refletin
do mais atentam ente, eu possuo o privilégio, que é tam 
bém uma maldição se quiserem, de ser duas vezes único:
porque sou este caso particular — e “único” — onde o
único não pode se ver Conheço bem a unicidade de to
das as coisas que me cercam, e a proclamo, sem grande
esforço: é que, pelo menos, me é dado vê-la, afirmá-la
como um a coisa qu e posso observar ou man ipular. N ão
acontece o mesmo com o eu, qu e nun ca vi nem vere i ja
mais, nem mesmo em um espelho. Porque o espelho é
eng anado r e constitui um a “falsa evidência” , que r dizer,
a ilusão de um a visão: ele me mostra nã o eu, mas um in
verso, um outro; não m eu corpo, mas um a superfície, um
reflexo. Ele é, em suma, apenas uma última chance de
me apreender, qu e sempre acabará por dece pcionar-me,
qualq ue r que seja a jubilação que pude experimentar, aos

dez meses,
imagem quecompreendendo
se agitava diante(mas não tinha
de mim vendo)
umaquevaga
esta
relação comigo. É por isso que a busca do eu, especial
mente nas perturbações de desdobramento, está sempre
ligada a um a espécie de retorno obstin ado ao espelh o e a
tudo o que pode apresentar uma analogia com o espe
lho: assim, a obsessão da simetria sob todas as suas formas,

90
qu e repete à sua maneira a impossibilidade de jamais re s
tit uir esta cois a invisível qu e se ten ta ver, e qu e seria o eu
diretamente, ou um outro eu, seu duplo exato. A sime
tria é el a próp ria conforme à imag em do espel ho: oferece
não a coisa mas o seu outro, seu inverso, seu contrário,
sua projeção segund o tal eixo ou tal plano. O destino do
vampiro, cuj o espelho não reflete nen hu ma imagem, nem
mesmo inver tida, simboliza aqu i o dest ino de qua lqu er
pessoa e de q ualq uer coisa: não poder provar a sua exis
tência por meio de um desdobramento real do único e,

portanto, só existir problematicamente. A verdadeira in 


felicidade, no desdobramento de personali dade, é no f un 
do jamais p ode r de fato des dobrar- se: o du plo falta para
aquele que o duplo persegue. A assunção do eu pelo eu
tem, assi m, como cond ição fun dam ental, a renúncia ao
duplo, o abandono do projeto de apreender o eu pelo eu
em u ma contraditória duplica ção do único: ei s por qu e o

êxito psicológico do auto-retrato, n o pintor, implica o aban


don o do p róprio auto-retrato; como em Vermeer, de que m
um dos profundos segredos foi representar-se de costas,
no célebre O ateliê .31
A “ferida narcís ica”, qu e d eterm ina o destino do q ue
se chama um temperamento de ator, está aqui: numa

31C£ M agd elein e M ocq uot , artigo sobr e Vermeer em Club Français de la
Mé daille, 1968, n° 18: “Vermeer et le Portrait en Double Miroir”.

91
dúvida quanto a si mesmo, da qual só liberta uma ga
rantia reiterada do outro, no caso, do público.
Sabe-se que o espet áculo do desdobram ento de per
sonali dade no outro — tema abund antem ente ilust rado
pelo romance e pelo filme de terror — é uma experiên
cia de efeito aterrorizante garantido. Pensava-se tratar
com o srcinal, mas na realidade só se havia visto o seu
duplo enga nado r e tranq üilizad or; eis de súbito o srci
nal em pessoa, que zomba e se revela ao mesmo tempo
como o outro e o verdadeiro. Talvez o fundamento da
angústia, apar entem ente ligado aqui à simples descoberta
qu e o outro vis ível não era o outro real, deva ser pro cur a
do num terror mais pr ofundo: de eu mesmo não ser aqu e
le que pensava ser. E, mais profundamente ainda, de
suspeita r nesta ocasião qu e talvez não seja algum a coisa,
mas nada.
O vínculo entre o terror e o duplo aparece de ma nei 
ra exem plar em u m filme célebre de Cavalcanti, Dead o f

Night (1945). Todos os acontecimentos deste filme são


apresentados como já tendo vagamente ocorrido (senti
men to de fal so reconhec imento), e é apenas no final qu e
o espectador descobre com angústia que tudo o que lhe
foi mostrado como repetindo um inapreensível e onírico
passado era, de fato, a prem onição de um futuro im in en 
te: dispersão do presente segundo o du plo eixo do passa
do e do futur o, nauf rágio vertiginoso do real, ao qual falta

92
todo aqui e todo agora. Um episódio notável do fdme
coloca, aliás, diretamente em cena o homem e seu du
plo: seqüência de u m ventríloquo lutando com seu fan
toche, que escapa progressivamente ao controle de seu
mestre e acaba por apropriar-se da realidade deste. Cen a
alucinatória de desdobramento esquizofrênico, na qual
um homem morre sufocado pelo seu duplo, devorado
pela sua própria imagem.
O reconhecimento de s i, que já impli ca um parad o
xo (pois trat a-se de apreend er justam ente o que é impos
sível de apreender, e que a captura de si mesmo reside
paradoxalmen te na própria re núncia a esta captura),
implica tam bém necessa riamente um exorcismo: o exor
cismo do dup lo, q ue põe u m obstáculo para a exist ência
do único e exige que este último não seja apenas ele
mesmo, e nada mais . Nã o há eu q ue seja apenas eu, não
há aqui que seja somente aqui, não há agora que seja

apenas agora: tal é a exigência do duplo, que quer um


pouco mais e está disposto a sacrificar tudo o q ue existe
— quer dizer, o único — em benefício de todo o resto,
isto é, de tud o o que não existe. Esta recusa do únic o, aliás,
é apenas uma das formas mais gerais da recusa da vida.
Eis por que a eliminação do duplo anuncia, ao contrá
rio, o retorno com força do real e confunde-se com a
alegria de uma manhã inteiramente nova, como a que
ressoa tão alegremente no final de O am or feiticeiro.

93
Expulsando o espectro do duplo, a amável Lucia dissi
pou os malefícios da noite, cujo essencial é ocultar o real
sob o irreal, dissim ulando o único atrás do seu duplo. Mas

aqui
enfim,o en
véuquseantlevanta, permitindo
o o dia nasce, o feliza reencontro
Candeias celebrar,
de si con
sigo mesma.
Esta coincidência de si consigo mesmo acaba, aliás,
sempre por prev alecer, mas n em sempre tão alegrem en
te. O retorno de si a si mesmo segue caminhos muitas
vezes mais complicados ainda do que os artifícios utili
zados por C andeias para proteger-se do seu duplo. É certo

qu
eu,eenão
que se escapaseao
o único ja destino
o único.qDe
ueqfaz
ualcom
qu erque o eu seja
maneira, poro
tanto, se será si próprio. Mas dois itinerários são aqui
possíveis: o simples, que consiste em aceitar a coisa, e até
em regozijar-se com isso; e o complicado, que consiste em
recusá-la, e que retorna a ela com juros, em virtude do
antigo adágio estóico segundo o qual fa ta volentem du-
cunt, nolentem trahunt* Se tomam os o segundo itinerá 

rio, procuraremos evitar a coincidência de si consigo


mesmo por um a esqui va semelhante àquelas que trans
mite a litera tura oracular , e cujo destino habitu al é preci
pitar o acontecimento. A esquiva sublinhará então a má

*“0 destino guia aquele que conse nte e a rras ta aquele qu e recusa.” C éle
bre verso de Sêneca. (N. do T.)

94
direção que se queria evitar ou pelo menos ocultar; ou
melhor, ela a constituirá inteiramente, como Édipo fa
brica o seu destino com os esforços pelos quais tenta es
capa r a ele. É rec usand o-se a ser o isto ou o aqu ilo que se
é, ou ainda a aparentá-lo aos olhos dos outros, que nos
tornamos precisamente o isto ou o aquilo, e que apare
cemos como tal aos olhos dos outros. Nada mais “pas
tor” do que querer mostrar que não se é, para se ater
apenas a um único exemplo, e um já é suficiente, por
que aqui não se trata de dep reciar ninguém . O qu e im 
porta é apenas que a qualidade que se pretende ocultar
ou denegar, por um afastam ento de si, é just amente cons
tituída por esta própria distância; distância que contri
bui, por outro lado, para torn ar esta qualidade para
sempre invisível aos olhos do seu possuidor. Como eu
seria isto, se a minha vida inteira consiste justam ente em
estar afastado disto?
O afastamento de si por si mesmo, o qual sempre
acaba por confirmar o seu próprio eu, é igua lme nte per
ceptível no afastamento de outros que não si próprio,
qu an do parece que estes são ao mesmo tempo indesejá
veis e semelhantes. É o caso, particularmente, de certos
grandes papéis do t eatro. Qu em aparece no teatro seme
lha nte demais ao eu qu e se decidi u não ser será l ogo, ele
próprio, desdobrado, segundo a estrutura da duplicação
que, acredita-se, já demonstrou sua eficácia no que

95
concerne ao e u. E m lugar da personalidade te atral tal qual
ela é, apare ce um outro personagem q ue relega a per so-
nalidade incomodam ente semelhante para um a esp écie

de exterio ridade mágic a, da qu al o eu não tem mais nada


a tem er por estar sem relação com ela . Tartufo, por exem-
plo, não está aqui, mas em outro lugar; não é n em você
nem eu, mas um outro: é i sto o que se qu er dizer qu an -
do se declara que ele não é sincero, mas sim hipócrita.
Da mesma m aneira o procurador Maillar d, em La Tête
des autres,de Marcei Aymé, não é de modo algum o ba-
nal “senhor de bem” que ele evidentemente é, mas um
crápula gr otesco, ou ainda u m “canalha ” — para se ins-
pirar aqui no diagnóstico sartriano, interessante por ilus-
trar bastante esta fatalidade que, volens nolens, condena
de preferência à semelhança aquele que procura não se
assemelhar: tendo o autor de O Ser e o nada em comum
com o procurad or Maillard precisamente a propriedade
fundame ntal de ser um “senhor de bem”.
O espetácul o da cegueir a no outro — desta segu ran-
ça que ele tem de estar em outro lugar enq uan to está aqui,
desta cert eza de ter evi tado um eu indes ejável e nqu ant o
mergulha nele por inteir o — é causa ao mesmo tempo
de regozijo cômico e de ligeira angústia psicológica.
Geralmente tenderiamos a abrir a boca para assinalar
um erro tão evidente: você está enganado — o duplo
que fabricou é apenas um a representação infeliz de sua

96
unicidade, cujo caráter desagradável, aliás, ela agrava.
Porq ue lhe per doar iam facilmente por ser indesej ável, isto

é, você mesmo, se não acrescentasse esta bufonaria de


considerar-se um outro. Mas isto é esquecer que só nos
torna mo s indes ejáveis tenta ndo não sê-l o, e qu e ped ir ao
outro pa ra reconhecer qu e é inde sejável equi vale a qu e
rer su prim ir sua próp ria indesejabilidade. Por qu e “ser si
próprio” coincide aqu i “com considerar-se um ou tro”; de
modo que, pensando criticar a sua dissimulação, critico
ele mesm o em pessoa. Mostran do-lh e qu e é difer ente do
qu e pe nsa ser, espero sec retamente q ue ele seja diferente
do qu e é, imaginan do confusam ente que ele podería real
mente não ser ele mesmo, mas justamente um outro.
M inha advert ência se ria, portanto, tão ilusóri a q ua nto a
ilusão qu e ela critica. In sistind o nisso, só entra ria n a ilu 
são de uma duplicação do único, no momento em que
pretendo percebê-la no outro e censurá-lo p or isso: cain-
*

do assim eu mesmo na cilada que queria denunciar. E


aqui, nesta evidência tão tautológica que nem sempre
aparece, qu e a fábula da pal ha e da viga gan ha a sua sig 
nific ação ess encial — mais do qu e na morn a lição de
moral qu e dela habitualm ente se qu er tirar.
Esta fantasia de s er um outro ces sa nat ural me nte com
a morte, por que sou eu que m morro, e não o meu duplo: a
frase célebre de Pascal (“Morre -se só”) design a muito bem
esta unic idad e irredutível da pess oa face à morte, me smo

97
se ela não a tem princ ipal mente em vista. A morte signi
fica o fim de qualquer distância possível de si para si, tanto
espacial quanto temporal, e a urgência de uma coinci

dência consi go mesmo; é aqui q ue a tese de Rank enco n


tra um sentido profundo, e mais ainda o provérbio de
André Ruellan em seu Manueldu savoir-mourir.32‘A mor
te é um encontro consigo mesm o: é preciso ser exato pelo
menos uma vez.”
N o entanto, há um a maneira de faltar a este últim o
encontro, ao mesmo tempo precipitando-se nele comple
tamente: a que relata Mallarmé no primeiro dos seus

Contos indianos, que é, ao mesmo tempo, uma das mais


curiosas histórias de d uplo e a mais perfeita ilustração da
estrutura oracular. A impossibilidade de ser ao mesmo
tempo isto e aquilo , si próprio e o outro, é o tema princ i
pal deste conto cruel, cuja crueldade reside paradoxal
mente no seu próprio êxito: porque, ganhando aquilo,
perde-se necessariamente isto. U m rei envelhecendo sus
pira pela sua juventude perdida: por qu e não é jovem de
novo, por q ue não se parece, por exemplo, com este bel o
rapaz cujo ret rato a rainha lhe mostr ou? Fazem -no acre
dita r que a metam orfose é p ossível, graças à magia: por 
que este retrato é encantado, e o rei poderá tornar-se

32Paris: Ed. E Horay, p. 37.

98
idêntico a ele apenas co ntem plando-o intensam ente, em
um a ce rimô nia iniciática cujos porm enor es os feiticeiros
lhe precisarão, por intermédio da rainha. Chega do o mo
mento, aparece o srcinal do retrato, isto é, o amante da
rainh a em carne e osso, que en controu aí um bom meio
de substituir, sem esforço, o monarca, graças a um assas
sinato noturno : “Com um golpe d e cimitarra, súbi to, ele
trespassa o corpo do miserável que talvez, por um segu n
do, acreditou na fulgu rante realização da metamo rfose:

ao menos, por caridade, o supõe, aquele que o tirano


considerava um a aparição de sua beleza próxima, e que
era o próprio h erói.”33A estru tura oracu lar é reduz ida
aqui à sua expressão mais simpl es, por um atalho irônico
qu e leva diretam ente da coi sa que se que r evitar à coi
sa que se qu er obter, porq ue é a mesma. O acontecimen
to se produziu tal como era desejado e anunciado: “eu”

tornou-se “um outro”, e o monarca rejuvenescido pos


sui todas a s qualid ade s q ue se esperava da metamorfose:
jovem, agradável e belo. A viagem encantada que con
du z de um ao outro, do único ao seu duplo, chegou aqui
ao seu termo; mas, no intervalo, o viajante morreu.
No entanto, estava-se quase lá. Só falta um detalhe
para o novo rei: ter permanecido ele mesmo tornando-se
ao mesmo tempo outro. Falta-lhe apenas um pouco de

33“Le Portrait enchanté”, in: Oeuvrescompletes. Paris: Bibl. de la Pléiade,


p. 595-6.

99
mem ória para garantir a continuidade do único ao seu
duplo; desta memória da qual Leibniz, em seu Discurso
de metafísica, diz ser parte integ rante e necess ária da subs

tância, porq ue “a imortalidade desejável implica a lem


brança”.34E Leibniz ilustra esta definição do único através
de uma história chinesa que poderia servir de epígrafe
para o conto indiano de Mallarm é, e que, para nós, ser
virá de epílogo: “Su pon ham os q ue a lgum pa rticular deve
tornar- se rei da Chin a de um mom ento para o outro, mas
com a co ndição de esq uecer o qu e foi, como se acabasse
de nascer inteiram ente de novo. Isto não seria o mesmo,
tanto na prática quanto nos efeitos que se podem aper
ceber, que se devesse ser aniquilado e que em seu lugar
fosse criado no mesmo momento um rei da China? E
ne nh um particular tem qu alqu er razão para dese jar isto.”
Isto qu er dizer que tudo o que é é um e que não há
duplo do único: que é preciso então resolver-se, já que
qu alq ue r outra opção est á excluída, a s er “pa rticu lar” ou
a não ser.

2. D A BESTE IRA

A segurança em qu e se encerra a vítima de um a profeci a


é pareci da com aque la na qu al repousa a pess oa que pro-

* Artigo 34.

100
cura no ou tro um personagem de substit uição e um a es
capa tória do destino que a condena a ela mesm a: nos dois
casos, a segurança é um a a rma dilha q ue acaba por lig ar
o herói trágico ao seu destino e encerrar o homem nele
mesmo. A fuga e a esquiva se exprimem por um gesto
que constitui precisamente, e integralmente, o dano do
qual queríamos nos desviar. É querendo evitar matar o
pai que Édipo se precipita no caminho do homicídio, é
quere ndo a todo custo ser um outro qu e o homem habi
tualmente se confirma nele mesmo. De modo que a se
gurança com que se julga protegido aquele que tentou
esquivar-se de seu destin o con stitui o luga r exato de sua
perdição. O outro lugar aparente não é outra coisa se
não o aq ui do qu al se julgava afastado, e a proteçã o com
a qual se contava r evela-se como aquilo q ue ju stam en 
te causou a desgraça: como o relógio do pescador, na
Descida no Maelstrõm de Edgar Poe, que deveria assi
nalar a hora perigosa da maré e que se percebe tarde
dem ais q ue paro u às sete horas. A falsa seguran ça é mais
do que a aliada da ilusão; ela constitui a sua própria
substân cia e é, no íntimo , a ilusão em pessoa, como d iz
Hécate em Macbeth: “A segurança é a maio r inimiga dos
mortais.”
Esta segu rança ilusória é também característica de um
fenô meno próximo mas distinto da ilusão, a bes teira. Mais
exatamente, ela caracteriza uma certa forma de besteira

101
cujo mecani smo e incontest ável vigor ela ao mesmo tem -
po esclarece.
De maneira geral, a besteira pode ser considerada de
dois pontos de vista: o de seu conteúdo e o de sua forma.
A questão do conteúdo da besteira coloca um problema
de inventário aparentemente insolúvel, que é, aliás, es-
tran ho à problemátic a do único e de seu duplo. Pod emos
então nos contentar aqui em descrever sumariamente o
conte údo da besteira como toda mani festação de apego a
temas irrisór ios, estes sendo inesgo táveis tan to em nú m e-
ro quanto em vari edade. Mas , para um conteúdo idên -

tico, a besteira pode apresentar duas fo rm as bastante


diferentes, conforme a adesão ao tema irrisório seja ime-
diata e espontânea, ou, ao contrário, só intervenha de
man eira retardada e refletida. N o prim eiro ca so, o tema
é admitido imediatamente por hereditariedade ou am-
biente culturais, sem q ue seja colocado o problem a geral
da besteira, isto é, a questão de saber se o tema é inteli-
gente ou não: besteira do primeiro grau, irrefletida e es-

pontânea. No segundo caso, o tema só é admitido após


madura reflexão, o que quer dizer que aqui o problema
da besteira foi examinado cuidadosamente, e aparen-
teme nte resol vido — já que o tema levad o em consi-
deração só foi selecionado após um exame crítico dos
mais severos, de modo q ue o tema ao qual nos dedicamos

102
parece definitivamente a salvo da crítica: besteira do se
gundo grau, interio rizad a e reflexiva. Nes ta segu nda for
ma de besteira, tomou-se consciência do problema da
besteira; sabe-se que é preciso evitar ser estúpido, e, à luz
deste escrúpulo, escolheu-se uma atitude “inteligente”.
Naturalm ente, esta atitude não é outra coisa senão a bes
teira “em pessoa”, da qu al se podería d izer, para frasea n
do Hegel, que é a “besteira tornada consciente dela
mesm a”: mas não no sentido em qu e ela seria consciente

de ser estúpid a, mas, ao contrário, consciente de ser int e


ligente, de constituir um brilho de lucidez sobre um
fundo de besteira outrora ameaçadora do qual se julga
doravante defmitivamente livre.
Esta besteira do segundo grau, apanágio das pessoas
geralmente consideradas — com razão, ali ás — inteli
gentes e cul tas, é evidentem ente incur ável: po rqu e cons

titui u ma forma de bes teira absolut a, diferentem ente da


besteira do primeiro grau. Pode-se sempre esperar que
esta última, imediata e espontânea, seja virtualmente
inteligente: pode-se imaginá-la livre do erro um dia, na
ocasião de uma tomada de consciência mais ou menos
hipotética. Esta esperança é vã no caso da segunda for
ma de besteira: porque nesta a tomada de consciênciayá

ocorreu. A imbecilidade confirmada encontra-se assim


num impasse semelhante ao da ilusão: incurável por

103
raciocinar bem demais, como Boubouroche é incurável
por ver bem demais, na peça de Courteline. O último fer-
rolho qu e protegia a pessoa da opção definitiva f oi pelos
ares, como um último marco que se teria perdido, ou um a
última chance que se teria deixado passar.
A analogia entre esta forma incurável de besteira e a
estrutura oracular ou psicológica da esquiva é evidente.
Como Édipo ou qualquer um encontram-se por terem
querido evitar-se, da mesma forma a besteira instala-se
definitivamente nela mesma por ter querido escapar à
besteira: ela se torna estúpida por medo de ser estúpida,
ou, mais simplesmen te ainda, torna -se ela mesma p or ter
desejado ser outra. Mesma ilusão de segurança, ligada a
um a mesm a confusão entre o aqui e o outro lugar: imagin o
a besteira afastada para sempre e uma certa inteligência
aqui, enquanto a besteira está aqui e a inteligência em
outro lugar , para sempre. Esta fatalidade é igualm ente a
do esnobismo e, de mane ira geral, a de todos aqueles qu e,
duvida ndo deles mesmos, tentam buscar a sa lvação em
um modelo : outro mágico de quem espero que me fará

escapar à min ha sorte, enqu ant o ele me encerra inexora


velment e em mim mesmo.

104
3. O ABANDONO DO DUPLO
E O RETORNO A SI

Uma das características da arte de Vermeer — como tal


vez de toda art e qu e alcançou u m certo grau de nobreza
— é pin tar coisas, e não acontecimentos. O mundo que
Vermeer percebe não é aquele, para sempre mudo, dos
acontecimentos insignificantes, mas o da matéria, eter

namente rica e viva. Poderiamos dizer que nele o ane-


dótico dissi pou o anedóti co: o acaso de um mom en to do
dia, nu m a peça onde nada de imp ortante aco ntece, apa
rece como o essencial de um real cujos acontecimentos
apa rente mente notáve is constit uem, ao contrário, a par
te acessória. Deste real captado por Vermeer o eu está
ausente, porque o eu é apenas um aconteci mento entre
outros, mud o e insignificante com o eles. N ão existe, aliás,
auto -re trato de Vermeer, e a biografi a do pi nto r está con 
tida em dez linhas anódinas. Entretanto, Vermeer pare
ce na verdade haver pintado a si mesmo um a vez, por um
jogo de duplo espelho: nesta tela sem nom e preciso, hoje
chamada O ateliê?5Mas de c ostas, como um pin tor qu al
quer, que poder ía ser qua lqu er ou tra pessoa trabalhando 3
5

35C£ supra, p. 91 e nota; c£ tam bém dr. D . H an n em a, Over Johannes Vermeer


van Delft.

105
na sua tela. Nada, na roupa, na estatura, na atitude do
pintor, que possa ser considerado sinal distintivo, nada,
portanto, que dem onstre uma complacência qualq uer

do pintor com relação a si mesmo. Ao mesmo tempo


este O ateliê — como todas as te las de Verme er — pa re
ce pleno de um a felici dade de exis tir qu e irradia de to
das as partes e atinge imed iatam ente o espect ador, e que
revela uma jubilação perp étua diante do espetáculo das
coisas: a se julgar por este instante de felicidade, fica
mos facilmente convencidos de que aq uele q ue fez i sto,
se fixou na sua tela apenas um único momento de sua
alegria , teria fei to facilmente o mesmo tanto com o ins
tante anterior como com o instante posterior. Só lhe
faltou tempo para celebrar todos os instantes e todas
as coisas.
Seria certam ente exagerado fazer derivar e sta alegria
apenas do aban don o de sua própria especi ficidade, desta
descoberta de que o eu, enq ua nto ser singular, não só não

intere ssa a ning uém , como t am bém n ão interessa a mim


mesmo, qu e só tenho vantagem em desemb araçar-me da
minha imagem. Esta indiferença para consigo mesmo é
aqui antes efeito do que causa: ela mais assinala uma
beatitude do que a provoca. Mas o vínculo entre o gozo
da vida e a indiferença para consigo não é, aqui, menos
manifesto. O pintor de O ateliê, de certo modo, tornou

106
visível o invisível: ele pin to u sua a usênc ia, mais bem ex
pressa assim do que se tivesse se contentado simplesmente
em renun ciar a qualqu er for ma de auto- retr ato. Q ua n
do nada é dito, sempre é possível imaginar alguma se
gunda intenção. Este não é o caso aqui: porque o nada
está dito aí com todas as letras e mostra-se, bem à vista,
na tel a. Senão o nada, pel o menos u m muito pouco, um
quase n ada digno de n ota.
O que Vermeer pinta em seu O ateliê, considerado a
outro p onto de vista, é igua lme nte o indício de um a ple
nitu de , q ue explica a atmosfera seren a e jubilos a da obra.
Esta plenitude é a mesm a que experimenta Cande ias no
final de O amor feiticeiro: a reconciliação de si consigo
mesmo, que tem como condição o exorcismo do duplo.
Re nun ciar a pintar- se de frente equivale a ren un cia r a se
ver, qu er dizer, renu ncia r à idéia qu e o eu possa ser per
cebido num a réplica que permite ao suje ito apreender-
se a si mesmo. O duplo, que autorizaria esta apreensão,
signif icaria tam bém o assassi nato do sujeito e a ren ún cia
a si, perpe tuam en te despojado d ele mesmo em benefício
de um duplo fantasmático e cruel; cruel po r não ser, como
diz M onthe rlant: “Porque são os fantasmas qu e são cruéis;
com as realidades podemos sempre nos arranjar.” Eis por
qu e a assunção jubilosa de si mesmo, a presença verdadeir a
de si para si mesmo, implica necessariamente a renúncia

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ao espetáculo de sua própria imagem. Porque a imagem,
aqui, mata o modelo. Intimamente, o erro mortal do
narcisismo não é querer am ar excess ivamente a si mes
mo, mas, ao contrário, no momento de escolher entre si
mesmo e seu duplo, dar preferência à imagem. O nar
cisista sofre por não se amar: ele só ama a sua repre
sentação. Amar-se com amor verdadeiro implica uma
indiferença a todas as suas próprias cópias, tais como
podem aparecer para os outros e, pelo viés dos outros, a
mim mesmo, se presto muita atenção a eles. Este é o
miserável segredo de Narcis o: um a atenç ão exagerada ao
outro. Esta, aliás , é a razão por que ele é inca paz de ama r
alguém, nem o outro nem ele mesmo, já que o amor é

um assunto importante demais para que se delegue a


outro a responsabilidade de neg ociá-lo. Qu e te importa
se te amo, dizia Goethe; isto só tem valor se concorda
mos implicitamente qu e o assentimento do outro é igual
me nte faculta tivo no am or qu e se dir ige a s i mesmo: q ue
te importa se me amo.
O pinto r de O ateliê já está livre do fardo do q ual se
desemb araça Cande ias no final de O amorfeiticeiro-, o da
ima gem de si. Fuga do duplo, aba ndo no de sua imagem,
em benefí cio do eu enq uant o tal, is to é, enqu anto invisí
vel, inapreciá vel, e digno de ser amad o so mente às cegas,
como é regra em todo amor.

108
A obsessão pelo dup lo, na literatura rom ântica, reve
la curiosam ente um a p reocupação exatamente oposta. A

perda do duplo, do reflexo, da sombra, não é aqui liber


tação, mas efeito maléfico: o homem que perdeu o seu
reflexo, como, entre muitos outros, o herói de um céle
bre conto de Hoffmann,36não é um homem salvo, mas
sim um homem perdido. Em vez de procurar se desem
baraçar de sua imagem, de considerá-la um fardo pesa
do e paralisante, o herói romântico investe nela todo o
seu ser, e só vive, afinal de contas, porque sua vida é ga
rantida pela visibilidade de seu reflexo, reflexo cuja ex
tinção sign ificaria a morte. Está assi m perp etua mente em
busca de um duplo que não pode encontrar, com o qual
conta para lhe garantir o seu ser próprio; se este reflexo
desaparece, o herói morre, como no final de William
Wilson de Poe. O angustiado rom ântico aparec e então —
pelo menos em todos os textos que colocam em cena o
dup lo — como essencialmente duvida ndo de si mesmo:
necessita a todo custo de um teste munho exterior, de algo
tangível e visível, para reconciliá-lo consigo mesmo. So
zinho, ele não é nada. Se um duplo não o garante mais

no seu ser, ele deixa de existir.


Pode- se observa r a este ang ustiado qu e ele enco ntra 
rá o reflexo de si mesmo q ue procura nã o em um espelho

,6Contos fantásticos, t. I I; cap. II, “ O reflexo perdid o”.

109
ou em u ma duplica ta fiel, mas nos documen tos legais qu e
estabelecem a sua ide ntidade. Insignificante confirmação,
responder á, porq ue ele qu er um a imagem de carne e osso,
não uma conjetura de ser f undada sobre papéis conven
cionais, ao m esm o te mp o perecíveis e falsificáveis à von
tade. Mas isto é pedir demais: porque a única imagem
um pouco sólida qu e se pod e oferecer de si mesmo resi
de precisamente nestes documentos, e apenas neles. Os
sofistas gregos, ao que parece, haviam compreendido
basta nte pro fu ndamente que só a instituição — e não
um a hipotética naturez a — é capaz de dar cor po e exis
tência ao que Platão e Aristóteles conceberão como
“substâ ncias ”: o indiví duo será social ou n ão será; é a so
ciedade, e suas convenções, que tornarão possível o fe
nôm eno da i ndividualidade. O que garante a identidade
é e sempre foi um ato público: uma certidão de nasci
mento, u ma carte ira de i dentidade, os t estemun hos con-
cordantes do porteiro e dos vizi nhos. A pessoa hu m an a,
concebida como singularidade, só é assi m percept ível a
ela mesma como “pessoa m ora l”, no sentido jurídico do
termo: qu er dizer, não como um a substância delimitável
e definível, mas como uma entidade institucional que
garante o estado civil, e apenas o estado civil. Isto quer
dizer que a pessoa humana só existe no papel, em todos
os sentidos da expressã o: ela exist e sim, mas “no p ap el”,

110
só é perceptível do exterior, teoricamente, como possi
bilidade mais ou menos plausível. É fácil reconhecer os
limites desta plausibilidade na ocasião de múltiplas ex
periências: toda vez que, após um incidente ou uma cri
se qualqu er, n ão estamos em condições de provar noss a
identidade. Quando estamos sem documentos, é inútil
gritar que somos nós mesmos: isto não diz nada a nin
guém, como mostra um sainete de Courteline, A carta
registrada. Um empregado dos correios reconheceu num
cliente que veio buscar um a carta registr ada u m de seus
velhos conhecido s: a conversa fica anim ada, recordam -
se mutuamente lembranças comuns; depois, o cliente
solicita a sua carta. Mas o empre gado recusa-se: para le
var a sua carta, é preciso qu e o cliente prove a sua ide nti
dade. Absu rda devoção ao regulamento, observa o cliente;
mas o empreg ado retruca: “Reconheci você como ho mem
do m undo; mas como funcioná rio ignoro qu em é você.”
O cliente exibe então diferent es docu mento s cuja au ten 
ticidade é reconhecida pelo empregado: entretanto, um
pequeno detalhe faz com que, sempre, o documento
apresentado dê lugar a uma dúvida possível e se revele
impo tente para a d ecisão, de modo q ue a carta perma ne
cerá finalmente nas mãos do empregado, até o dia em qu e
seu amigo lhe tiver dem onstra do, de man eira irrecusável,
qu e ele na verdade é decididamen te ele mesmo, e não um
outro.

111
Dem onstração impos sível: porqu e o empregado tei
moso não exige, em suma, outra coisa senão um duplo
do único. Faz-se ouvir aqui, por trás da sátira do for
malismo burocrático, o eco surdo de uma angústia mais
profunda, qu e tem po r objeto a identidade não apenas
legal, mas existencial: sou eu mesmo, sou realmente eu
que vivo, eu que n en hu m d ocumento garante, com o aca
ba de me dem onstrar este empregado escrupuloso? Para
assegurar-me disso , seria preciso uma d uplic ata qu e jus
tamente me falta e me faltará sempre. Tenho, portanto,
realmente razão de duvidar de mim, e descubro na mi
nha incapacidade para desdobrar-me um sério motivo

para interrogar-me, não apenas sobre o caráter efêmero


e frágil de min ha existência, mas tamb ém sobre esta pró 
pria existência, tão efêmera e frágil sob um outro ponto
de vista. A angústia de não ter ne nh um duplo o nde ap a
nh ar o modelo de seu ser próprio não está l igada fun da
me ntalm ente à angústia de dever morrer , como pensa O.
Ran k — repito: esta te se é justa, mas superficial : po rqu e
o temor de morrer é ap enas um a co nseqüência do temor
de não viv er— , mas àquela, mai s profunda, de duvi
dar de sua própria existência. Se necessito de um duplo
para atestar o meu ser, e se só existe duplo de papel, devo
concluir que minha pessoa é de papel, ou minha alma,
como imagina Michel Tournier, que conta uma fábula
estranha a este respeito: um benfeitor da humanidade,

112
qu e tinha de dest ruir, no Q uai des Orfèvres, um proces 

so embaraçoso
tropia, q ue im arque lhe dizia dos
a totalidade respeito , procura,
pro cessos por filan
e arquivos de
todos os edifícios públicos, prefeituras, repartições mu
nicipais, comissariados. Uma vez queimado o último
processo, constata que a humanidade se degradou: os
hom ens n ão sabem fa lar, andam de qua tro, farejam a c al
çada com a cara. Espanto do filantropo, que “acaba por
comp reender que, quere ndo libert ar a hum anida de, el e
a rebaixa a um nível bestial, porque a alma human a éf ei
ta de papel ".37
É justamente isto que pressente e teme o herói ro
mântico: que não queimem o meu duplo, porque não
sou nad a fora del e e só existo no papel . Q ueim ar o duplo
é, ao mesmo tempo, q ueim ar o único. Temo r justificado
num certo sentido: não que o indivíduo sej a de papel, mas
porque ele é incapaz de tornar-se visível — enquanto
único — em outro lugar que não no papel . A angús tia
de ver desaparecer o seu reflexo está então ligada à an
gústia de saber que se é incap az de dem ons trar a sua ex is
tência por si mesmo: a últim a prova, a prova pela própria
coisa, que se pensava gu ardar como trun fo decisivo, é para
sempre inoperante. As provas ou argumentos que se ex
põe são destinados a demonstrar a coisa; ora, pode ser que,

37L e Roi des Aulne s. Paris: Gallimard, p. 46.

113
po r azar e por sorte, se seja capaz de mostrar a coisa que
nos esforçávamos para demonstrar: e o interlocutor per
manece impassível. Entretanto, não tento convencê-lo,
indico a coisa para ele com o dedo. Ele se recusa a adm i
tir, por exemplo, q ue a Córsega seja visível do conti nen te
qu an do o tempo está claro; apó s haver me esgotado em
argum entos hábeis , levo-o para o s cumes de Nice e mos
tro-lhe a Córsega: ele zomba, e me pede para demons
trar a coisa mais seriamente. Diálogo de pesadelo, que
seria o de Pascal apresentando ao libertino não mais ar
gum ento s em favor do deus de Abraão e de Jac ó, mas este
Deus em pessoa, visível e resplande cente, sem conseguir
com isso obter um assentimento de seu interl ocutor.
Eis por que todo pensamento sensa to faz um a pausa
obrigatória, na condução do raciocínio, quando se atin
ge a coisa mesma. Aristóteles e Descartes de nom inam este
momento com a mesma palavra: a evidência, o direta
mente visível, sem o auxílio e a mediação do raciocínio.
Há um momento em que cessa o domínio das provas,
em que se topa com a própria coisa, que não pode ser
garantida por nen hum outro lugar além del a mesma. É
o momento em que a discussão pára e em que se inter
rompe a filosofia: adveniente re, cessat argumentum.
Existe, entret anto, um domínio em qu e a argum en
tação não cessa , porq ue a coisa não se mos tra nun ca: e é
justam ente o m eu domínio, o eu, minha singularidade.

114
Falta-m e ser visível para qu e me deten ha ra cion alm en
te em mim mesmo. Sem dú vida, se sigo Aristóteles neste
ponto, posso decidir que sou um homem; mas não pos
so, por outro lado, conseguir pensar que sou um ho
mem, justamente aquele que sou. A idéia segundo a
qu al eu sou eu é apenas um a vaga suposição, aind a qu e
insistente: uma “impressão forte”, como diz Hume. E
Montaigne: “Nossa realidade são apenas pedaços cos
turad os .” E Sha kespeare: “Somos fe itos da ma téria dos
sonh os” — sonhos cuja próp ria ma téria é de pa pel: ca so
o papel fal te, como na história de Co urteline, o sonho
se dissipa.
Uma solução, neste caso desesperado, consiste em
agarrar-se ao papel: já que m inha pessoa é duvidosa, qu e
ao menos os documentos que demonstram sua veraci

dade sejam de um a solidez à t oda prova. É a soluçã o in 


versa da de Vermeer, que aband ona o eu em beneficio do
mu ndo : a qui abandona-se o mun do em beneficio do eu,
e de um eu de pap el. O d uplo apagará o model o. É mais
ou m enos o qu e q ue r dizer Platão no m ito de Theu th :38
a lembrança escrita tomará o lugar da lem brança vi va —
valendo mais, na o pinião de alguns, um papel sól ido do
que uma vida incerta. Atormentado por não ser nunca
ele mesmo — e isto não sem alguma razão , em certos

mFedro, 274 ss.; Filebo, 18.

115
casos — , torna -se assi m um hom em de papel, vítima da
invenção maléfi ca do deus Th eu th . O traço escr ito serve
de duplo onde avaliar o seu ser, ou melhor, sua falta de
ser. E igualmente assim que se fica ridículo, no sentido
bergsoniano: por nu nca dizer mais nada mas sempre re
petir, em busca de um improvável “padrão”. A angústia
de não ser nada ou quase n ada co nduz logo ao absoluta
mente nada; o “eu não sei o quê e o quase nada” de V
Jankélévitch conduz então ao eu não sei e ao absoluta
mente nada. Já que me obri go a r epetir um eu cuj o m o
delo proc uraria em vão, cond eno-m e a repetir o outr o: e
este próprio o utro q ue assim gloso é ele mesm o apenas o
reflexo de um a ausênci a. Jogo de ressonância inte rm iná 
vel, onde se repete ao infinito o ec o de um a inc apacidade
para dizer “eu”, para experim entar-se como algo. Esta
seria a essênc ia da infelici dade do intelect ual con temp o
râneo, se acreditamos em François Wahl, evocando aqui
Jacques D errida: “A repeti ção como eterna ausência de
algu m prese nte verda deiro.”39
Frase profunda, contanto que seja abreviada e ra
dicalizada. Porque a repetição é sempre eterna ausência
de algum prese nte. Que m repete não diz nada, qu er di
zer, não é nem capaz de repetir-se. O srcinal deve dis
pensar qualq uer imagem: se não me encontro em mim

y>Q u’est-ce qu e le siruciuralist ne?. Paris: Ed. du Seuil, p. 431.

116
mesmo, reencon trar-me-ei a inda bem meno s no me u eco.
E preciso então que o eu seja suficiente, por menor que
seja ou pareça na realidade: porque a escolha se limita
ao único, que é muito pouco, e ao seu duplo, que não é
nada. É o que exprime admiravelmente a linguagem
corrente quand o declar a, sem tomar mu ito cuidado, que
“não se pode virar outro"

117
CONCLUSÃO

O s diferentes aspectos da ilusão descritos anterio rmente


reenviam para uma mesma função, para uma mesma
estrutura, para um mesmo fracasso. A função: proteger
do real. A estrutura: não recusar perceber o real, mas
desdobrá-lo. O fracasso: reconhecer tarde demais no
duplo protetor o próprio real do qual se pensava estar
protegido. Esta é a maldição da esquiva: reenviar, pelo

subterfúgio de uma duplicação fantasmática, ao indese


jável ponto de partida, o real. Vê-se agora por que a es
quiva ésempre um erro: ela é sempre inoperan te, porq ue
o real tem sem pre razã o. Certa mente podem os tent ar nos
proteger de um acontecimento futuro, se este é apenas
possível; nunca nos protegeremos de um acontecimento
passado ou presente, ou ainda “inevitável no futu ro ”,
como n a simbólica oracular que anun cia po r antecipação

119
uma necessidade inelutável que já tem todas as caracte
rísticas de um a necessidade presente: e o gesto pelo qua l
se tenta livrar-se dela nunca poderá “fazer melhor” do
qu e reprod uzir literalmente o acontecimento temido, o u,
mais exatamente até, constituí-lo. E o que acontece a
Édipo, como a qualquer homem em crise consigo mes
mo, quer dizer, a todo homem num momento ou em
outro de sua existência. Viu-se que algo análogo ac onte
ce em setores muito diferentes da ilusão: o fantasma do
duplo interessa, por exemplo, ao mecanismo elementar
da tolice, mas está i gualme nte presente em um a te nd ên
cia fundamental da metafísica, ou pelo menos de uma
certa metafísica.
A subordinação dessas diversas ilusões ao tema do
duplo não significa, por certo, que necessariamente toda
forma de ilusão est á ligada ao duplo. Antes de considerar
certa uma tal conclusão, seria necessário proceder a um
recensea mento completo, impo ssível por definição , de to
das as manifestações da ilusão. Observaremos simplesmen
te — seguindo nisto o exemplo dos advogados, que deixam
para a acusação o encargo de fornecer a prova — que a
tese aqui apresentada permanece verdadeira até que lhe
ten ham objetado um caso de ilusão que não se reduz a, de
maneira direta ou indireta, a uma duplicação mágica da
coisa e a um a hesitação con fusa entre o único e seu duplo.
Caso que, ao que parece, ainda não foi encontrado.

120
Talvez devéssemos levar em conta, é verdade, as cé
lebres “ilusões dos sentidos”, qu e eviden temen te não têm
nenhuma relação com a recusa do real pela duplicação

dele mesmo. Mas o que se chama de ilusões dos sentidos


são mais erros do que ilusões propriamente ditas. Não
colocando em jogo o d esejo ou o medo — e neste ponto
é difícil não con cordar com Freud qu ando relaciona, em
Ofu tu ro de uma ilusão, a ilusão ao desejo, diferentemen
te do erro — , elas não imp licam n en hu ma proteção com
relação ao real e podem assim ser assimiladas a simples
erros de julgamento, como os céticos gregos já haviam
observado.

E igualmente em vão que se procuraria do lado de


certas formas banais de ilusão — as qu e a lingu agem
corrent e retém cotidianamente qua nd o diz deste ou da 
quele q ue “se ilud em ” — um meio de contrad izer a tese
que liga a ilusão à duplicação. Fala-se de “iludir-se” em
situações freqüentes que podem muitas vezes parecer

distantes, na verdade, do tema do duplo. Assim, iludo-


me todos os dias, cada vez qu e me julgo inteligente, belo,
agradável, e logo rico, coberto de favores e de honras. À
primeira vista, este gênero de ilusão banal parece despro
vido de rel ação man ifesta com a duplicaçã o. U m exame
mais atento mostraria, entretanto, que, em todos os ca
sos, a visão otimista de si mesmo e de sua sorte implica
um quiasm o entre o que é pe rcebido e o qu e é deduzido

121
da percepção, análogo àq uele pelo qua l se viu qu e Bou-
bouroche distinguia entre o pensamento de seu rival e o
pensamen to da fidelidade de sua amiga. O personagem
de Bélise, em LesFe mmes savantes, de Molière, é o exem

plo típico desta dupla visão que permite associar o oti


mismo pessoal a um a percepção afinal de contas real ista
dos fatos. Bélise julga-se bela, inteligente e amada; sa
bendo que C litan dre — que ela inclui entre seus am an
tes mais devotados — está pr estes a casar -se com u ma
rival, ela se convence mais ainda dos sentimentos de
Clitandre a seu respeito. Mesma atitude quando lhe
observam q ue todos os seus outros supostos amantes afas-

taram-se da sua pres ença: nad a mais normal, ela respo n


de, já que me amam. Bélise consegue ver ao mesmo
tempo que não é cortejada por ninguém e que é amada
por todos, exatamente como Boubouroche vê ao mesmo
tempo qu e Adèle tem um am ante e que Adèl e lhe é fiel.
Toda au to-satisfação il usória — deveriamos dizer:
toda auto-sat isfação? — pertence no fu ndo a este mes 
mo esquem a duplicat ório que opera um desdobramento

paradoxal entre a coisa e ela própria. A cegueira cotidia


na q ua nto a si, ilustrada de man eira caricatural pel o per
sonagem de Bélise, é assim u m a variante entre ou tras do
fantasma do dup lo inerente à il usão. Ela é apenas u m a
forma derivada e trivial da cegueira prim eira e “nob re”,
qu e encon tramos na maldição do orácul o e na tragé dia.

122
Sua estrutura não difere fundamentalmente da de to
das as ilusões evocadas anteriormente, e nos arriscare
mos a pensa r qu e provavelmente é o qu e ocorr e em toda
ilusão.
Restaria, enfim, mo strar a presença da ilusão — isto
é, da duplicação fantas mática — na m aior parte d os in
vestim entos psicológico-coletivos de ontem e de hoje: por
exemplo, em todas as formas de recusa ou de “contesta
ção” do real, onde é fácil provar que não chegariam a
acusar o que existe sem o auxílio de um duplo ideal e
impensável. Mas esta demonstração correría o risco de
provocar polêmicas inúteis e só conduziría, aliás, na
melhor das hipóteses, à exposição de verdades em suma
bastante banais. Um tal desenvolvimento seria então fá
cil, mas fastidioso, e o evitaremos aqui.

123
f 1

“ Se o real me incomoda e se
desejo livrar-me dele, me
desembaraçarei de uma
maneira geralmente mais
flexível, graças a um modo de
recepção do olhar que se situa
a meio-caminho entre a
admissão e a expulsão pura e
simples: que não diz sim nem
não à coisa percebida, ou
melhor, diz a ela ao mesmo
tempo sim e não. Sim à coisa
percebida, não às consequên
cias que normalmente deveriam
resultar de la.”

SBN 978-85-03-00923-2

9 78850 009232

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