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cm 1985
Reservam-seJOSÉ
EDITORA os direitos desta edição
OLYMPIO LTDA.à
Rua Argentina, 171 - Io andar - São Cristóvão
20921-380 - Rio de Janeiro, RJ - República Federativa do Brasil
Tel.: (21) 2585-2060 Fax: (21) 2585-2086
Printed in Brazil / Impresso no Brasil
ISBN 978-85-03-00923-2
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
R74r
2a ed. O real
Rosset; e seu duplo:
[apresentação ensaio sobre
e tradução a ilusão
de José / Clément
Tho maz Brum].
- 2" ed., revis ta. - Rio de Jan eiro: José Olym pio, 2008.
. - (Sabor Literário)
CDD - 15 3.7
08-0561 CDU - 159. 937. 3
SUMÁRIO
Conclusão, 119
5
crever esta noção que foi pela primeira vez elaborada
como filosofia por Nietzsche em O nascimento da tragé
dia (1872). E nesta obra, para Rosset, que se encontra a
grande “descoberta” de Nietzsche: “a alegria deve ser
buscada não na harmonia, mas na dissonância”.i*
3
Após alguns panfletos satíricos, como Lettre sur les
chimpanzés (1965), Rosset formula em Logique du pire
(1971) as condições de possibilidade de um a filosofia da
aprovação q ue nã o é out ra coisa s enão o estabelecim ento
do caráter filosófico do discurso trágico. Util iza ndo como
conceito-chave a idéia de acaso (hasard), afirma que “o
que existe não constitui, aos olhos do pensador trágico,
uma ‘natureza’, mas um acaso... quer dizer, uma não-
natureza no sentido clássico do termo”.4
Esta filosofia afirmativa ensina que a realidade deve
ser aprovada incondicionalmente, alegremente, e que existe
um vínculo necessário entre o trágico e a afirmação.
Aprofundamento das noções encontradas em seu
prim eiro ensaio, a obra descreve um êxtase diante daquilo
que não é “nem natureza, nem ser, nem objeto adequa
do ao pensamento”, isto é, o acaso.
Trazendo o mesmo subtítulo, Elementos para um a
filosofia trágica, A antinatureza (1973) é o texto da tese
8
<l( li ndida em maio do m esm o ano na Sorbonne. Fazen
do a crítica de um “mundo como natu reza”, este livro tem
9
Esta atitud e jubilosa e t rágica diante da realidade idio
ta é um a crítica indireta às f ilosofias que pretend em in
terpretar o real para impor-lhe um sentido. Para Rosset,
leitor de filósofos materialistas como Lucrécio, o real não
é algo q ue deva ser objeto de apreciação ou reform a, mas
de júbilo sem motivo. Daí o interesse pela alegria como
índice do saber trágico. Não a alegria ordinária, “sen
timento passageiro de felicidade e, em grande parte,
ilusório”,5mas o saber alegre,a gaya scienza, onde “a in
tensidade da alegria pode ser medida segundo a quanti
dade de saber trágico que ela implica”.6
O pensamento de Clément Rosset possui conexões
com filósofos tão díspares como Gilles Deleuze e E. M.
Cioran. Com o autor de De Vlnconvénient d ’être né par
tilha a preocupação com a “insignificância, a doença e o
efêmero”.7De Deleuze, ressalta a idéia de que “o fundo
do espírito é delírio, acaso, indiferença”.8Mas ambas as
aproximações são incompletas, porque elidem o essen
cial de seu pensamen to: a concepçã o de “um real ver da
deiramente rico e desejável, que não seria apoiado pela
hipótese de u ma outra instância, relig iosa, ontológica ou
10
11istórica”.9N a realid ade sem “natureza”, onde nada é ex-
iraordinário n em ordinário, e “ tudo é constituciona lmen -
lc excepcional”, o trágico e a afirmação encontram-se em
um acorde aleatório.
A presença de Nietzsche, entrevista nas teses de Ló-
i'ira do pior eA antinatureza pode ser percebida neste O
real c seu duplo.Esta visão do único, da irredutível sin
gularidad e do que existe, foi expressa— no qu e concerne
.10 indivíduo — na terceira Intempestiva:
“No fundo, todo hom em sabe muito bem qu e só vi
verá um a vez, qu e é um caso único, e qu e jamais o aca-
Mi, por mais caprichoso que seja, poderá reunir duas vezes
uma variedade tão singular de qualidades fundidas em
um todo.”10
A ILUS ÃO E O D U PLO
13
tâncias o exijam: um pouco como as aduanas qu e podem
decidir de um dia para ou tro q ue a garrafa de ál cool ou
os dez maços de ciga rros — “tolerados” até en tão — não
passarão mais. Se os viajantes abusam da com placência
das aduan as, est as demon stram firmeza e anula m todo o
direito de passagem. Da mesma forma, o real só é admi
tido sob certas condições e apenas até certo ponto: se ele
abusa e mostra-se desagradável, a tolerância é suspensa.
Um a inte rrupç ão de per cepção col oca então a consciên
cia a salvo de qualquer espetáculo indesejável. Quanto
ao real, se ele insiste e teima em ser percebido, sempre
poderá se mostrar em outro lugar.
Esta recusa do real pode, natural men te, to mar forma s
muito variadas. A realidade pode ser recusada radical
mente, considerada p ura e simplesmente como não-s er:
“Isto — qu e julgo perceb er — não existe.” As técnicas a
serviço de uma tal negação radical são, aliás, elas mes
mas mu ito div ersas. Posso aniq uila r o real an iqu iland o a
mim mesmo: fórm ula do suicíd io, que parece a mai s se
gura de toda s, ainda que, apesar de tud o, um minúsculo
coeficiente de incerteza pareça vinculado a ela, se acre
ditarmos, por exemplo, em Hamlet: “Quem gostaria de
carregar esses fardos, geme r e suar sob u ma vida fatigante,
se o temor de algo após a morte, desta região inex plorada,
de onde nen hu m viajante retorna, não perturbasse a von
tade e não nos fizesse suportar os males que temos por
14
medo de n os lançarmos naqueles qu e não co nhecemos?”
Posso também suprimir o real com menores inconveni
15
sa percebid a, ou m elhor, diz a ela ao mesm o tem po sim e
não. Sim à coisa percebida, não às conseqüências que
norm alme nte deverí am resultar dela. Esta outra ma nei
ra de se l ivrar do real assemelha-se a um raciocíni o justo
coroado por u ma conclus ão aberrante : é uma perce pção
justa que se revela impotente para acionar um compor
tamento adaptado à percepção. Não me recuso a ver, e
não nego em nada o real que me é most rado. Mas minh a
complacência pára por aí. Vi, admiti, mas que não me
peçam mais. Q uanto ao restante, mantenho o meu p on
to de vista, persi sto no meu com portam ento, exatam ente
como se não tivesse visto nada. Coexistem parad oxalm en
É inútil apercebê-la,
consegue realidade seouofe recer à sua
a percebe percepção:
deformada, tão ele
comnão
pletamente atento que está apenas aos fantasmas de sua
imaginação e de seu desejo. Esta análise, válida sem ne
nhuma dúvida para os casos propriamente clínicos de
recusa ou ausência de percepção, parece muito sumária
16
no caso da ilusão. Menos ainda que sumária: antes à
margem de seu objeto.
Na ilusão, quer dizer, na forma mais corrente de afas
tamento do real, não se observa uma recusa de percep
ção propriamente dita. Nela a coisa não é negada: mas
apenas deslocada, colocada em outro lugar. Mas no que
concern e à aptidão p ara ver, o iludido vê , à sua m aneir a,
tão claro qu anto qua lqu er outro . Esta verd ade aparente
mente paradoxal se torna per ceptível a partir do m omento
em q ue pensa mos no qu e se passa com a pessoa cega, tal
17
doente do que o neurótico: porque, de maneira diferen-
te do segundo, ele é deliberadamente incurável. Aquele
que está cego é incurável não por ser cego, mas sim por
ser dotado de visão: porque é impossível lhe “fazer ver
de outra form a” algo que já viu e qu e ain da vê. Toda “ad-
vertência ” é vã: n ão se pode ria “adv ertir” alguém q ue já
tem, debaixo dos olhos, aquilo que se pretende que ele
veja. No recalcamento, na forclusão, o real pode even-
tualm ente reaparecer, se acreditarmos na psicanálise, gra-
ças a um “retorno do recalcado”, nos sonhos e nos atos
falhos. Mas, na ilusão, esta esperança é vã: o real não
voltará jamais, porq ue já está aí. Observaremos de pas-
sagem a que ponto o doente de que os psicanalistas se
ocupam representa um caso anódin o e, em suma, benig-
no, em comparação com o homem normal.
A expressão literária mais perfeita da recusa da re ali-
dade é talvez a oferecida por Georges Co urteli ne em sua
célebre peça Boubouroche (1893). Boubouroche instalou
a sua amante, Adèle, em um p equ eno apartam ento. U m
vizinho de andar de Adèle previne caridosamente Bou-
bouroche da traição cotidiana de que é vítima este últi-
mo: Adèle partilha o seu apartamento com um jovem
namorado que se esconde num armário toda vez que
Boubo uroche vi sita a sua amante. Louco de rai va, Bo u-
bouroche irrompe n a casa de Adèle nu m a hora in ab itua l
e descobre o amante no armário. Cólera de B oubouroche,
18
'
i qual Adèle respond e com um silêncio desgostoso e in-
i lignado: “Vocêé tão vulga r”, declara ao seu protetor, “que
ii.io merece nem a mais simples explicaçã o qu e logo te-
lia dado a outro, se ele tivesse sido menos grosseiro. É
melhor nos separarmos”. Boubouroche admite imedia-
i.uncnte os seus erros e o infundado de suas suspeitas:
depois de ser perdoado por Adèle, só lhe resta voltar-se
contra o vizinh o de andar, o odioso calu nia dor (“Você é
um velho corno e um imbecil”). Esta pe quena peça cha
ma imediatam ente atenção por u ma caracter ística singu-
lar: ao contrário do que acontece freqüentemente, a
vitima de um logro não se satisfaz aqui com nenhuma
desculpa, com ne nh um a explicação. O espe táculo de seu
infortúnio não é velado por nenhuma sombra. Há, em
suma, um impasse para o engodo: a vítima de um logro
11ão tem necessid ade de ser enganada, basta-lhe realmente
19
Imaginemos que, por uma razão ou por outra, eu
esteja ao volante do meu carro, muito apressado para
chegar ao des tino, e encontre u m sinal vermelho no m eu
caminho . Posso me resignar ao atraso que ele causa, par ar
o meu veiculo e esperar que o sinal mude para o verde:
aceitação do real . Posso também recusar um a percepção
que contraria meus propósitos; decido então ignorar a
interdição e ultrapas so o sinal, i sto é, procuro não ver um
real cuja exi stência reconhe cí: atitud e de Ed ipo fura ndo
os próprios olhos. Ainda posso, sempre na hipótese de
uma recusa de percepção, considerar rapidamente que
este obstáculo col ocado no meu c amin ho acarretará um
sofrimento demasiado cruel para minhas faculdades de
adaptação ao real; decido então acabar com iss o suicida n
do-me com o auxílio de um revólver guardado no meu
porta-luvas, ou “recalco” a imagem do sinal vermelho no
me u inconsciente. Ass im enterrado, este sinal vermelho
qu e ultrapassei j amais vir á à tona n a m inh a consciênc ia,
a menos q ue um psicanalista ou um policial se envolvam.
Nestes dois últimos casos (suicídio, recalcam ento), opus
um a recu sa de perce pção à necess idade de parar em que
a percepção do sinal vermelho teria me colocado. Mas
ainda existe outro meio de ignorar esta necessidade,
que se distingue de todos os meios precedentes no que
faz justiça ao real, concordando assim, pelo menos em
20
aparência, com a percepção “ no rm al”: percebo qu e o si
nal está vermelho— mas concluo que éa minha vez de passar.
21
Outro exemplo notável de um a tal ilusão, inteiramente
análoga à de Boubouroche, está em Proust, em No caminho
de Swann. Num dia em que se prepara para enviar sua
“mesada” habitua l a Odette (que lhe tinha sido inicialmen
*Cf! N o cam inh o de Swann, trad ução d e Mário Quintana. São Paulo: Edr
tora Globo, 1995, p. 226-7. (N. do T.)
22
I Jma tal “preguiça de espírito” consiste essencialmen-
i.Tiii separar em do is o que é apenas um , em distinguir
•mrc mulher amada e mulher paga; e Proust tem real-
Micnte razão em qualificar esta preguiç a de “congênita”.
Mas é preciso acrescentar que esta preguiça não é exclu-
•iva de Swann nem da paixão amorosa. Ela também
i mi cerne à totalidade do gênero humano, de quem re-
Ia <senta o caso principa l de ilusão: transformar um úni-
i d fato em dois fatos divergentes, uma mesma idéia em
duas idéias distintas — uma desagradável, mas a outra
"muito diferente”, como escreve justamente Proust.
A cegueira exemplar de Boubouroche (e de Swann)
ajuda a encontrar o vínculo muito profundo que une a
ilusão à duplicação, ao Duplo. Como todo iludido, Bou-
Imuroche cinde o acontecimento único em dois acon
tecimentos: ele não sofre por ser cego, mas sim por ver
duplicado. “Você viu duplicado”, lhe diz aliás Adèle em
um determinado m omen to, é verdade qu e nu m sentido
um pouco diferen te, mas q ue não deix a de ser surp reen
den temente prem onit ório e significativo. A técnica ger al
da ilusão é, na verdade, transformar uma coisa em duas,
exatamente como a técnica do i lusionista, qu e conta com
o mesm o efeito de deslocam ento e de duplicação da pa r
te do espectador: enquanto se ocupa com a coisa, dirige
o seu olhar para outro lugar, para lá onde nada acontece.
Com o Adèle para Boubouroche: “É bem verdade que há
23
um homem no arm ário— mas ol he par a o lado, ali, como
am o você. ”
O ensaio que se segue pretende esclarecer o vínculo
24
O real e seu d up lo
A ILUSÃO ORACULA R:
O ACO NTECIMEN TO E S EU DUPLO
xal um
I
dos aoráculos
carac terística
o fato ao
de mesmo temposurpreendendo
se realizarem geral e parado
pela sua própria realização. O oráculo tem o dom de
anunc iar o acontecimento por an tecipação: de modo que
aquele ao qual este acontecimento é destinado tem tem
po de se prep arar para ele e de, eventualmente, tentar
impedi-lo. Ora, o acontecimento se efetua tal como fora
vaticinado (ou anunciado por um sonho ou alguma ou
tra manifestação premonitória); mas esta efe tuação tem
a curiosa sina de não corresponder à expectativa no pró
prio m om ento em que esta deveria julgar-se satisfeita. A
é anunciado, A se produz e não o reencontramos mais
aí. Pelo menos não exatamente. Entre o acontecimento
anunciado e o acontecimento efetuado há um tipo de
27
diferença sut il qu e bast a para d esconcertar aquele que ,
no entanto, esperava precisamente aquilo de que é
testemunha. Ele reconhece sim, mas logo não o reco
28
morte. Embora fosse pintado, o leão não deixou de
matar o rapaz, para quem o artifício do pai de nada
serviu.1
29
Este é, como sempre foi dito com pertinência, o sentido
mais evidente deste tipo de fábula.
Mas, além deste primeiro sentido, existe certamente
outro, mais rico e m ais geral. A prova disso é o fat o de esta
fábula — e toda hist ória anál oga — con dnu ar a interes
sar, a revelar à atenção daqu ele que a escuta algum a ver
dade profund a, ind ependente, então, de toda consid eração
do destino e de seus ardis. Qu em sabe realmente qu e nunca
existiu nada parecido com o destino e com a inelutabilidade
— com o La Fontaine que, retomando a fábula de Esopo,
extrai do apólogo uma moral inversa e assimila os efeitos
do destino a “efeitos do acaso”2— qu e recon hece em to da
30
dos por um a frnta. Protege u-se à esquerda en qu anto era
atacado à direita. E, ao se proteger, deixou sem defesa
31
pode se torn ar u ma presa fácil: p orqu e, en quan to se pro
tege aqui, sempre haverá milhares de ali por onde pegá-
lo. Esta fragilidade, que constitui o tema da Toca de
Kafk a, dá profund idade ao dito do s nzakara, habitantes
da República Centro-Africana, tal como relata mme.
32
r
33
nascer n as encostas d e um a mon tanh a, É dipo é recolhi
do pelos soberanos de Corinto — Pólibo e Mérope —
que, na falta
seu filho. de outro
Sabend o da herdeiro, o adotam
profecia que e criam
o ameaça, Éd ipocomo
d ei
xa bruscamente Corinto e seus supostos pais, tentando
escapar ao seu des tino. No camin ho reencon trará o seu
verdadeiro pai e o mat ará, resolverá o enigma da Esfinge
e entrar á em Tebas como vencedor , pa ra lá se casar co m
a própria mãe, viúva do soberano morto.
História de Sigismundo — Basílio, rei da Po lônia, fez
o horóscopo do seu filho Sigismundo, na ocasião do
seu nascimento, e descobriu que os astros predestina
vam seu filho a se tornar o monarca mais cruel que já
existiu — “um monstro sob a forma humana” —>cuja
primeira atitude seria dirigir sua força selvagem contra o
pai para esmagá-lo. Apavorado com esses augúrios sinis
tros, manda prender Sigismundo numa torre isolada
onde este não tem ne nhum a possibilidade de contato com
os humanos, com a exceção do seu preceptor Clotaldo.
Quando
mu nd o poatinge
r um adia
maioridade, Clotaldo
e o apresenta libertapara
à s ua corte, Sigis
confi r
mar a verdade do horósc opo. F urioso pelos vinte anos de
cativeiro, Sigismu ndo se comporta de acordo com a pro
fecia. Trazido de volta à sua torre, e logo dep ois libe rtado
por um a revolta popular, Sigismundo — que daí em
diante não sabe mais se sonha ou se está acordado —
34
realiza até o fim a predição do horóscop o: ten do assum i
do o coma ndo da revolta, vence o pai, qu e nã o tem outra
saída a não ser jogar-se a seus pés para im plo rar pela sua
improvável piedade. Mas o horóscopo inte rrom per a suas
previsões nesse instante, e, segundo a habitual estrutura
oracular, a peça terminará de maneira ao mesmo tempo
inesperada e conforme a predição, já que o fim da peça
surpreende a expectativa ao mesmo tempo em que con
corda justamente com o oráculo: tornado sábio por sua
dúvida quanto ao real, Sigismundo reergue o pai e lhe
restitui todas as honras devidas à sua condição real.
Conto árabe — Era u ma vez, em Bag dá, um Calif a e
seu Vizir... Um dia, o Vizir apareceu diante do Califa,
pálido e trêmulo: “Perdoa o meu pavor, Luz dos Fiéis,
mas uma m ulher esba rrou em mim na m ultidão dia nte
do palácio. Voltei-me: e essa mulhe r de tez p álida, de ca
belos escuros, com o busto coberto por u ma m an ta ver
melha, era a Morte. Ao me ver, fez um gesto na minha
direção. (...) Já que a morte me procura aqui, Senhor,
permita que eu fuja para me esconder bem longe, em
Samarcande. Se me apressar, chegar ei lá antes desta no i
te.” En tão , afastou-se a galope no seu caval o e desa pare
ceu num a nu vem de poei ra na direçã o de Samarcande.
O Califa saiu então de seu palácio e também encon
trou a Morte: “Por que assustou o meu Vizir que é jo
vem e saudável?” , pergu ntou. E a Morte respondeu: “Não
35
quis assustá-lo, mas, ao vê-lo em Bagdá, tive um gesto
de surpresa, por que o espero esta noite, em Samarcand e.”5
A analogia estr utural das três histórias é evidente. Nos
três casos,conjurá-la:
pretende a predição Édipo,
se realiza pelo epróprio
Basílio o Vizirgesto que
encontram
o seu destino por terem desejado evitá-lo. É deixando
Co rinto qu e É dipo va i ao encon tro de se us verdadei
ros pais, é prendendo o filho que Basílio o transforma
no monstro que predisse o horóscopo, é correndo para
Samarcande que o Vizir se dirige para a morte da qual
tenta fugir. Mas esta estrutura é comum à maioria das
36
expectativa do mesmo acontecimento, o qual certamente
se julga q ue devia realmen te ter ocorr ido, mas de m an ei
ra difere nte. N o en tanto, é impo ssível dizer em q ue con
37
impossível o acon tecime nto em condições “ norma is”, ele
não tem ia ne nh um a realização pr ecisa do horósc opo, e
que a sua surpresa diante da maneira pela qual este se
realizou
A versãonreal
ão nega u ma
dos fat os, onoutra possibil
espírito do idade de recon
rei, não alização.
tradiz,
então, nenhuma outra versão, ou pelo menos só parece
con tradizer um a versão fantasmática, j amais pensada. O
caso de Édipo parece, à primeira análise, mais comple
xo. Édipo mata o pai e se casa com a própria mãe sem
conhec er suas respectivas identidades; no qu e a realiza
ção do oráculo contradiz uma versão do acontecimento
datada, desta ve z, de um conteúdo preciso: o assassi nato
de Pólibo e o casamento com Mérope, os soberanos de
Corinto, que Édipo acredita serem os seus pais. No en
tanto, trata-se aí de uma visão abstrata, incapaz de se
concretizar numa história real: uma vez prevenido da
ameaça qu e pesa sobr e o seu destino e deixando C orinto
às pressas, Édipo decide não tocar nem em Pólibo nem
em Mérope. Desde então, permanece a questão: como
Éd ipo pode ría proceder para m atar o pai e s e casar com a
mãe, a não ser matando por acaso um homem e se ca
sando ocasional mente com uma m ulhe r que seriam jus
tame nte seu pai e s ua mãe, não sendo, ao mesmo tem po,
nem Pólibo nem Mérope? P ode-se insistir, no en tanto: a
maneira como Édipo realiza a profecia é um ardil assi
nado pelo des tino. Admit amos; mas em q ue outro ardil
38
pensar? Esperaríamos em vão um a resposta precisa para
esta questão ela mesm a oblíqua: a não ser a que consiste
em reafirmar
esperado obstinadamente
em outro lugar, e deque o acontecimento
outra maneira, sem era
que
nunca se possa precisar a natureza deste outro lugar e
desta outra maneira. É verdade que poderiamos pensar
na hipótese extrema segundo a qual, sendo Pólibo e
Mérope os verdadeiros p ais de Édipo, este últim o acaba
ria por matar um e se casar com o outro por acidente ou
por engano. Podemos, por exemplo, imaginar um aces
so de cólera maníaco, uma crise de sonambulismo, ou
ainda um disfarce ou um a cara cterização qualq uer que
impediríam Édipo de reconhecer Pólibo naqu ele q ue ele
mata, e Mérope naquela com quem se casa. Este tema
do disfarce, aliás, está presente de forma profu nda — mas
*
39
dição e acaba rea lizando -a m atan do seus pai s por enga
no. A hipótese, no ca so de Édipo, é, de qua lq ue r modo,
pouco verossímil porque Édipo deixou Corinto e seus
pais para nunca mais voltar lá: onde poderia, então, en-
contrar seus pais disfarçados? E preciso admitir, então,
que Pólibo e Mérope partem em busca do filho fugido,
aban don and o o seu post o real. Esta nova hipótese, mai s
inverossímil ainda, não basta, aliás, para tornar possível
o assassinato de um e o casamento com o outro: porq ue
✓
40
não ex plica em nad a a surpres a qu e aco mp anha a desco-
berta do subterfúgio utilizado, na realidade, para a reali-
zação do oráculo: surpresa ligada ao sentimen to confuso
de que o acontecimento real tom ou o lugar de um acon-
tecimento mais esperado e mais plausível. Ora, todas as
versões possíveis parecem fmalm ente m uito mais im pro -
váveis ainda do que a versão real que, no entanto, cau-
sou surpresa: se Pólibo e Mérope são realmente os pais
de Édipo, a realização do oráculo deverá passar por ca-
minhos muito mais complicados e inesperados do que
os qu e tomou a versão real. A hipótese de um a p atern i-
dade fictícia, segu ndo a qu al Pó libo e Méro pe nã o são os
verdadeiro s pais de Éd ipo, é, em suma, a via mais simples
para passar do oráculo à sua realização. Se então a reali-
zação do oráculo causa surpresa, não é porque sua for-
ma é inesperada com parada com outra forma qu e o ser ia
menos. Co mo u m acontecimento A poderia s er conside-
rado altamente improvável com relação a um aconteci-
mento B, seéfica
ele próprio, , nadem onstradas
m elhor dohipó
q ue teses,
este acontecim ento
mu ito mais imB,-
provável ainda? Supondo que fosse realizada esta outra
versão do destino de Édipo, apare ntem ente m ais de acor-
do com o oráculo, não se distinguiria ela, por su a vez, de
mil outras versões de que, justamente, se vislumbraria
então a m aior probabilidade? A realização do destino de
s
Edip o— tal como foi selado pelo orác ulo — não elimi-
41
na então nenhuma eventual probabilidade igual ou su
perior àquela finalmente escolhida pela realidade: já que
tudo o que é imagináve l a qui é mais complicado e mai s
improvável
vra do que
do oráculo podeserá
serodita
acontecimento
“oblíqua”, areal.
via Se a pala
pela qual
Édip o realiza o seu destino é, em con trapar tida, a via reta
por excelência: não passou por nenhum desvio, e talvez
seja justamente isso o que se chama o “ardil” do destino
— ir direto ao alvo, não se atrasar no caminho, compa
recer na hora certa.
No entanto, apesar desta análise, persiste a impres
são de ter sido enganado por uma fatalidade onipotente
e astuciosa, que frustra todos os meios empregados para
se fazer frente a el a. Mas esta fatalidade assume agora um
sentido mais pr eciso, no q ue se reconheceu a sua im pre
cisão: o acontecimento fatal pega de surpresa porque
apaga outro acontecimento que nunca foi pensado, do
qual nunc a se teve nen hum a idéia.
A surpresa aprese nta aqui um carát er propriamente
inesperado: ela consiste, na realidade, em re futar o aco n
tecimen to real em nom e de um aconteci mento que nunca
seria imaginado, de uma realidade que jamais foi e ja
mais será pensada. O acontecimento tomou o lugar de
“outro” acontecimento, mas este outro acontecimento
não é nada. Precisa-se, assim, o engodo de que é vítima
42
aquele q ue espera um acontecimento mas se espanta por
vê-lo ocorrer: existe realm ente engo do em a lgum lugar e
este algum lugar reside precisamente na ilusão de estar
enganad o, de acreditar que há “algum a coisa” da qua l a
realização do acontecimento teria, em suma, tomado o
lugar. E então a sensação de estar enganado que é, aqui,
enganador a. Ao se realizar, o acontecimento não fez ou
tra coisa senão real izar-se. Ele não tom ou o lugar de o u
tro acontecimento.
Evidentemente, não se podería negar por isso a am-
bigüidade inerente à palavra profética, nem as tiradas de
duplo sentido que aparecem constantemente tanto nos
oráculos como nas tragéd ias. Trata-se apenas de com pre
ender que esta ambigüidade não consiste no desdobra
mento de uma sentença em dois sentidos possíveis, mas,
ao contrário, na coincidência dos dois sentidos que só
depois se vê que são dois em aparência, mas um na rea
lidade. O Édipo Rei de Sófocles abunda em ilustrações
desta ambigüidade, sendo a mais elementar e mais pro-
funda a sentença em que Edipo enuncia que ele é, ao
mesmo tempo, aquele q ue ele é e aquele out ro q ue p ro
cura: “Voltando, por minha vez — declara orgulhosa
mente o rei Édipo — à srcem (dos aconte cimentos que
permaneceram desconhecidos), sou eu que os porei à luz,
èyd) (pavw . O escoliasta não deixa de observar qu e há
de cer toEdipo
nhado modo,em
caiSófocles,
r na própria armcomo
dizer adilha
J.-En aVernant.:
q ual é apa-
“Quem é, portanto, Édipo? Como seu próprio discurso,
como a palavra d o oráculo, Édipo é duplo, enigmá tico.”7
6J. -E Vernan t e E V ida l-Na qu et. M ythe et tragéd ie en Grèce ancienne. Faris,
Maspero, p. 107. Cf. tradução brasileira: M ito e tragédia na Grécia antiga.
São Faulo: Livr ari a Du as Cidades, p. 87.
7 Id em .
44
Porq ue o mistéri o de Édipo é justamen te o de ser úni co,
e não duplo, exatamente como o mistério da Esfinge,
mento ” ——
imaginado “esperado” , talvez, masreal
que o acontecimento nemapagou,
pensado
ao ne
se m
45
realizar, a estrutura fundamental do duplo. N ada dist in
gue, na realidade , este outro acontecimento do aconteci
mento real, exceto esta concepção confusa segun do a qual
ele seria, ao mesmo tem po, o mesmo e um outro, o que é
a exata definição do duplo. Descobre-se, assim, uma re
lação muito profunda entre o pensamento oracular e o
fantasma da duplicação, que explica a enigmá tica surpre
sa associada ao espetáculo do oráculo realizado. A reali
zação do orácul o surpreende, em suma, no que ela vem
eliminar a possibilidade de qualquer duplicação. Ao se
produzir, o acontecim ento previsto an ula a previsão de
46
Num a passagem do seu estudo sobre ‘A Lembrança
do presen te e o falso recon hecim ento”, Bergson confirma
este vínculo entre a estrutura oracular (previsão, sentimento
do inevitável) e o tema do duplo. A nalisa ndo a ilusão se
gundo a qua l certos indivíduos desdobra m as suas percep
ções e têm a impressão de viverem, de certo modo, duas
vezes, um a vez sob a forma do pre sente e ou tra sob a for
ma do passado, Bergson não deixa de reencontrar o tema
do destino: “Aquilo que se diz e o que se faz, o que você
mesmo diz e faz, parece ‘inevitável’. Assiste-se aos seus
““EÉ ner gie sp iritue lle” , in Oeuvres, edição do Centenário. Paris: PUF,
p. 921.
47
tanto aqui quanto em qualquer lugar, aparece ligado ao
tem a da surpresa (prevê-se a coisa, sem se poder, por isso,
esperar pela sua realização concreta , qu e será, então, sem
pre motivo de surpresa).
Ent retanto, toda duplicação supõ e um srcinal e um a
cópia, e se pergu ntará qu em é o modelo e que m o dup li
ca, o “outro acontecimento” ou o acontecimento real.
Descobre-se então que o “outro acontecimento” não é
verdadeiramente o duplo do acontecimento real.
É, na verdade, o in verso: o próprio acontecim ento reã t
é que parece o duplo do “outro acontecim ento”. De modo
que é o acontecimento real que, em última análise, é o
“outro”: o outro é este real aqui, ou seja, o duplo de um
outro real que seria, ele, o próprio real , mas qu e semp re
escapa e do qua l nu nca se poder á d izer nem saber nada.
O único, o real e o acontecimento possuem, então, esta
extraordinária qualidade de ser, de certo modo, o outro
de coisa nenhuma, de parecer o duplo de uma “outra”
48
na do r e perverso . O verdadeiro real es tá em outro lugar:
residiría, para retomar os três exemplos expostos an
teriormente, num parricídio e num incesto diferentes
daqueles q ue, efeti vamente, esperam Édipo, n um a agres
sividade de Sigismundo, alheia às circunstâncias que,
efetivament e, foram as da sua infância e juventude, n um a
morte fora de Samarcande. Q uan to aos aconteciment os
qu e rea lmen te ocorreram, sã o como imitaç ões deste re al;
e o conjunto dos acontecimentos reais par ece, assim, um a
vasta caricatura d a realidade. É nesse sentido qu e a vida
é apenas um sonho, uma fábula en ganosa , ou ainda um a
história contada por um idiota, como diz Macbeth^
sentimento de ser logrado pel a realidade — que expri
me a verdade m ais geral d as históri as de oráculos — , de
ser constantemente iludido por este falso real que, in
extremis, substitui o v erdadeiro real, qu e jamais se viu e
que jamais ocorrerá, este sentimento de ser enganado
poderia ser traduzido pela expressão popular segundo a
qual certas realidades, cer tos atos não estão precisa men
te “de acordo com o jogo”. Aliás, não só certas realiza
ções ou certos atos: qualquer coisa que, ao se realizar,
coloca-se assim “fora de jogo”. Aliás, os filósofos de
Mégara já haviam dito esta verdade: o destino de toda
realidade é situar-se fora do jogo do possível. Dir-se-á
então que o acontecimento real está, de certa maneira,
falsificado, que trapaceia com o real. E, para u tiliz ar um a
49
terminologia ingênua, que combina com sentimentos
igualmente ingênuos, poderemos dizer que o aconteci
mento que se produziu não é o “bom”; o bom acon
tecimento, o único acontecimento que teria o direito de
se dizer verdadeiramen te real, é justam ente aquele que
não ocorreu, sufocado antes de nascer pelo seu duplo
falsificado. O acontecimento real, no sentido usual do
termo, é assim sempre “o outro do bom”.
Observare mos a qui qu e toda reali dade, mesmo se não
foi anunciada por um oráculo ou prevista por uma pre
monição qualquer, é, de qualquer modo, de estrutura
oracular, no sentido definido anteriormente. Com efei
to, o destino de toda coisa existente é denegar, por sua
própria existência, qualq uer outra forma de realidade.
Ora , o próprio do oráculo é sug erir, sem jamais precisá-
la, uma coisa distinta daqu ela qu e a nun cia e que se rea
liza efetivament e. Mas esta sugest ão m alograd a pod e se
manifestar em qualquer ocasião, porque todo aconteci
me nto implica a negação d o seu duplo. Eis por qu e toda
a ocasião é oracu lar (r ealizand o o “ou tro ” do seu duplo ),
e toda existência um crime (por executar o seu duplo).
Tal é o destino inevitavelmente associado ao real, e que
faz Sigismundo, preso na sua torre, dizer que “o maior
crime do homem é o de haver nascido”;9ou ainda, em
1
>
A vida é um sonho, I, 2.
50
E.-M. C ioran , qu e “perdemos tud o ao nascer”, daí ”o in
convenien te de haver n ascid o”.10Segun do este raciocínio,
todo acontecimento é, na realidade, homicídio e prodí
gio: se, por exemplo, esperando o ônibus, recebo um
número de espera, suponhamos o número 138, elimino
de uma só vez também 998 outras possibilidades. Isto é
um inconven iente e um prodígio, se esquecemos qu e um
acontecimento, se pode a rigor se produzir de qualquer
modo, deve contu do se prod uzi r necessariamente de uma
maneira qualquer. Nã o posso ser ao mesmo tem po Ciora n
51
do anun ciada, à noite, a morte do presidente surpreende
(era então justamente isso, A era então justamente A).
Aliás, é em razão desta natureza sempre surpreendente
do acontecimento que a noção do destino, sugerida pe
los oráculos, ganha um sentido real e universal. Porque
é realmente do destino que se trata, em última análise,
nas lendas oraculares, mas num sentido mais profundo
do qu e o imediatamente apa rente. H á realmente algo que
existe e qu e se cham a o destino: este designa não o c aráter
' Ine vitável do que acontece, mas o seu caráte r imprevisível.
H á, na reali dade, um desti no indepe nde ntem ente de
qu alq ue r neces sida de e de qu alq ue r previsibilidade, por
tanto, indep enden teme nte de qu alq ue r manifes tação ora-
cular, embora, em u m certo sentido, o oráculo o an un cie
ao seu modo; é o destino do homem como de toda coisa
existente. A signi ficação des te destino a pare ntem ente pa
radoxal , já qu e estranh o à noção de n ecessidade, que e n
tretanto parece contribuir para o qu e há de essen cial nele,
para n ão d izer a sua única base, está ligada a um a noção
exata me nte inver sa: à certeza da imprevisibil idade. Mas
é jus tam ente desta certez a q ue fala, em termos velad os, a
literatura oracular. Estaremos sempre certos de sermos
surpreendidos: poderemos sempre, fir mem ente, esperar
nu nca poder esper ar.
Em suma, a prof und idade e a verdade da palavra ora
cular são men os a de predizer o futuro do qu e a de expri -
52
mir a necessidade asfi xiante do presen te, o caráter ine lu
tável do que acontece agora. A predição antecipada tem
um valor sobretudo simból ico: mera projeção no tem po
daquilo que aguarda o homem a cada instante de su a vida
presente. A todo momento, ele se defrontará com isto e
com nada mais: quer a circunstância seja alegre ou tris
te, que r ela triunfe ou morra, est á de qu alqu er modo e n
curralado. N ão há escapatória — não há duplo: é isto que
o oráculo anunciava antecipa damente, e com razão. “Não
se escapa ao destino” significa simplesmente que não se
*
53
cia predo mina, assim, no mo mento do con tato com o real.
É que, até no último instante, Macbeth, como de resto
todo homem , na hora da morte , por exemp lo, es pera qu e
A difira nem que seja um pouco de A, que o aconte
cime nto não seja exatamente aqu ilo q ue ele é. A coinci
dência do real com el e mesmo, q ue é, de um certo pon to
de vista, a pró pria simplicidade, a vers ão mais lím pida do
real, aparece como o absurdo maior aos olhos do iludi
do, isto é, daquele que apostou, até o fim, na graça de
um duplo. Um real que é apenas o real, e nada mais, é
insignificante, absurdo, “idiota”, como diz Macbeth.
Aliás, Macbeth tem razão, pelo menos neste ponto: a
realidade é efetivamente idiot a. P orque, antes de signifi
car imbecil, idiota significa simples, particular, único de
sua espéci e. Assim é, na verdade, a realidad e, e o co njun
to dos acontecimentos que a compõem: simples, parti
cular, única — idiotès — , “idiota”.
Esta idiotia d a realidade é, al iás, um fato reconh eci
do desde sempre pelos metafísicos, que repetem que o
“sentido” do real não poderia ser encontrado aqui, mas
sim em outro lugar. A dialética metafísica é fundamen
talmente u ma dialét ica do aqui e do alhures, de um aqui
do qual se duvida ou que se recusa e de um alhures do
qu al se espera a salvação. Decididam ente, A não pode ria
se reduz ir a A: o aqu i deve ser esclarecido por o utro lu-
gar. “A Asia press entiu muitas vezes qu e o pro blem a
54
capital d o ho mem é o de capta r ‘outra coisa’”, escreve por
exemplo André Malraux,11fazendo eco à expressão român-
55
A ILUSÃO META FÍSI CA:
O MUN DO E S EU DUPLO
57
asseguram a sua infra-e strutura e explicam precisa mente
a aparência deste mundo-aqui, que é apenas “a mani
festação ao mesm o tempo prim ordial e fútil de um espan
toso mistério”.12
Esta estrutura da reiteração, onde o outro ocupa o
lugar do rea l, e este mu nd o-a qu i o lugar do duplo, não é
outra, repito, senão a própria estrutura do oráculo: o real
que se oferece imediatamente é um substituto, assim
como o acontecimento que verdadeiramente ocorreu é
uma impostura. Ele duplica o real, assim como a reali
zação do oráculo veio “duplicar” o acontecimento es
58
forma mais manifesta. O mito da caverna, o de Er, o Pan-
filiano, e a teoria da reminiscência são as expressões mais
precisas
platonismo deste
em tema da duplicação
geral uma filosofia dedo único oracular.
essência que faz do
Aqu i se poderia, tom ando p or base ce rtas passagen s
de Pla tão ,13objetar q ue o platonism o não é um a filosofia
do duplo , mas sim um a “filosofia do singu lar”, fund ada
precisamente na impossibilidade do duplo.14É verdade
que uma das características de todo objeto, para Platão,
é de ser inimitável, de nã o pod er ser dois. Assim, Sócrates
ensina no Crátilo que a perfeita reprodução de Crátilo
conduziría não a um duplo (duas vezes Crátilo), mas a
um absurdo; porq ue é a essência de Crátilo ser apenas um,
e não dois: esta essência, que define a singularidade, é
por definição inimitável, mas não duplicável, porq ue só
pode produzir imagens que jamais terão precisamente a
característica do duplo. A questão, en tretanto, é deter mi
na r se a impossibil idade da duplicação ou a inda a neces
sidade do singular conduzem realmente, em Platão, a
uma filosofia do único. É preciso distinguir aqui dois
níveis de duplic ação: o nível sensível e o nível metafísico.
Defr ontam o-no s, de fat o, com duas impossibili dades de
duplicação: por um lado, a impossibilidade para o objeto
59
sensível de se duplicar em um outro objeto sensível que
seria, ao mesm o tempo, ele mesm o (tese do Crátilo); p or
outro lado, a impossibilidade para o objeto sensível de
aparecer ele mesmo como o duplo de um modelo real e
supra-sensível (tese en unc iada no início do Parmênides).
Trata-se, no prim eiro caso, da não-repetição no nível dos
objetos sensíveis: a essência do objeto sensível é de jam ais
poder se repetir, quer dizer, de jam ais poder reconstituir
em ou tro lugar, em outro tempo, este mesm o objeto sen
sível. Esta impossibilidade de se repetir resume, aliás, a
essência do sensível e sublinha, ao mesmo tempo, a sua
finitude. Jamais poder “restituir” a coisa é justamente a
61
com a idéia srcinal. O pequeno escravo do Ménon não
descobre, mas redescobr e. A própria vontade só pod e re-
desejar o que a necessidade já ordenou do outro m undo ,
como ensina o mito de Er, o Panfiliano; e, neste hábito
qu e os deuses têm de atribuir à responsabilidade hu m a
na os seus próprios decretos, reencontra-se a ironia da
predição oracular, que é de delegar às suas vítimas a res
ponsabilidade delas mesmas a realizarem, como na fá
bula de Esopo citada anteriormente.
Como toda manifestação oracular, o pensamento
metafísico se fund am enta nu ma recusa , de tipo instinti
vo, do imediato, sendo este considerado de certo modo o
outro de si mesmo, ou o substituto de uma outra reali
dade. Poderiamos dizer que é a própria noção de ime-
diatidade que aparece assim falsificada: desconfia-se do
imediato precisamente p orq ue se duvida que ele seja real
me nte o imediatoyÉs te imediato aqu i apresenta-se como
primeiro; mas não seria, antes, segundo? Talvez esta seja
a srcem desta desconfiança ancestral com relação ao
“primeiro”, da qual Talleyrand fornece um eco signifi
cativo qu an do diz q ue é preciso desconfiar do primeiro
movimento, “porque, geralmente, é o bom”. Uma aná
lise desta frase profunda revela que desconfiamos do
nosso primeiro movimento, que não o consideramos o
“bom ”, precisam ente porq ue nos recusamos a considerá-
lo o “prim eiro”: não é já um a “elaboração secundária”,
62
não dei à minha inteligência o temp o para deixa r-se sur
preender por esta ou aquela interpretação enganadora,
proveniente
dade tal comodoeumeu desejoque
preferia e, portanto, imagem
fosse, e não da reali
imagem da
própria realidade? É provavelmente nesta direção que se
deve busca r a srcem de todas as manifestações de in ter
dição qu e pes am sobre a s primeiras exper iências: p orq ue
um N oli me tangere veda ao homem o contato deslum
brante com o real da prim eira vez, como é mostrado em
63
os únicos que são capazes de conhecer a alegria do pri-
meiro. Talleyrand tem realmente razão ao dizer que o
64
pronunciando — que se estava lá, no mesmo lugar, nas
mesmas atitudes, sentindo, percebendo, pensan do e de
65
qu e ela representa, enfim, po rqu e se é teórico se m o sa
ber e po rque se considera toda lembrança como posterior
à percepção qu e ela reprodu z. Mas se diz algo parecido,
fala-se de um passado que nenhum intervalo separaria
do presente: ‘ Senti se pro du zir em m im u ma espéc ie de
desencadeamento q ue sup rimiu todo o passado entre e ste
minu to de antes e o min uto em qu e eu estava’ . (F. Gregh
— citado por E. Bernard-Leroy,/4 ilusão defalso reconhe
cimento, p. 183.) Essa é, realmente, a característica do
fenômeno .”17A análise de Bergson consiste em fazer desta
ilusão um fenômeno de desconexão semimórbido, um
aba ndo no a esta “lembrança de luxo” qu e é a lembra nça
do presente, enqu anto , para a percepç ão atual, só sã o úteis
certas lembranças do passado. Há provavelmente algo
mais geral, e mais normal, neste fenômeno de dupla
percepção: não apenas u ma distração momen tânea com
relação ao presente, caracterizando “a forma mais ino
fensiva de desatenção à vida”,18m as sim um a denegação
do presente, já visível em toda percepção normal. Deve-
66
hora é grave, e o presente se torna, de súbito, claram ente
inassimiláveK Ã rejeição autom ática do presente no pa s- \
sado ou no fu turo é, geralmente, a ação de um indivíduo
que não pensa que outra co isa venha m onopolizar a sua
atenção, mas está, ao contrário, fascinado pela própria
coisa, presente, da q ual tenta desesperada mente se desli
gar, e só consegue isso relegando -a, como p or magia, pa ra
um passad o ou para um futuro próx imo, pouc o importa
onde ou quando, contanto que a coisa não esteja mais
no present e nem aq ui — anywhere out o fthe world, como
diz Baudelaire. U m duplo, por piedade, parece buscar a
pessoa que o presente sufoca: o duplo encontra o seu lu- _
gar natural um pouco antes ou um pouco depois: Um
romance de Robbe-Gril let, Les Gommes, cuja inspiração
é antiga, já que retoma o tema sofocliano da identidade
do detetive e do assassino, exprime muito precisamente
esta rejeição do presente e seu desdobramento errático,
qu e leva aqui a apresenta r o acontecimento como já ten
do ocorrido, mas també m como devendo ocor rer: porqu e
enquanto o detetive especula sobre o assassinato da ve
lha, o ass assino — qu e não é outro senão o próprio “de
tetive” — imagin a antecipad amen te o assassinato que vai
cometer. Assassinat o cujo verdadeiro “h eró i” — que não
é no fund o ne m deteti ve nem assassino (ainda não dete
tive nem já assassino, ou vice-versa) — aparece rá no fim
68
men os bem-suce dida, p orq ue mais ou meno s falsificada.
Acontece, todavi a, um pouco como no exemplo dos dois
Crátilo, q ue a imitação se ja tão bem-su cedida q ue acabà\
por se to rnar indistinguível do seu original, de modo que
o outro m un do não é outr a coisa senão este mund o-aq ui,
sem qu e se renun cie p or isso à idéia segundo a qu al este
mundo-aqui permanece realmente a cópia deste outro
mundo, que não difere dele, entretanto, em nada.'Esta
versão particular do outro m un do define bastante preci
samente a e strutu ra da metafís ica de Hegel, cuja srci
nalidade é a de fazer coincidir este mundo e aquele
mun do , o btendo assi m — ao preço de um a reit eração
tautológica — um “concreto” aparen teme nte libe rto da
ilusão metafísica, pois já contém em si mesmo todas as
características que d efinem igu almente o outro mun do.
A dialética do único e de seu duplo parece aqui enlou
quecer , no senti do que se diz de um a ag ulha de bússol a
que ela está louca; eis por que a sutileza hegeliana apa
rece aqui, não “um pouco vã” e “forçada”, como escreve
o seu comentador, Jean Hyppolite, mas, ao contrário,
muito reveladora da loucura inerente à duplicação do
únic o. An alisa ndo o conceito de força,20Heg el disting ue,
em sum a, en tre duas formas de ilusão: a ilusão grosse ira,
69
que consiste em tom ar as coisas pelo qu e elas apar entam ,
e a ilusão met afísica — que Hegel pr etend e superar — ,
que consiste em relegar o real para um outro mundo
completamente distinto do mund o da aparê ncia. É pre
ciso então distinguir não dois mundos, mas sim três: em
primeiro lugar, o mundo das aparências sensíveis; em
segundo lugar, o mun do supra-sensível, considerado dis
tinto do mun do sensível (“primeir o mu nd o supra-sensí-
vel”); em terceiro e último lugar este mesmo mundo
supra-sensível, mas considerado desta vez enquanto
coincide em última análise com o mundo primeiro das
aparências (“segundo m und o supra-sensível” ). Este ter
ceiro mun do, que é o oposto do segundo no q ue anu la a
diferença que este preten dia in stituir entre ele mesmo e
o mu nd o sensível, não se confun de, por isso, com o m un
do imediato (sendo este último incapaz de “se pensar”,
por não haver ainda percorrido o itinerário de sua dúvi
da radical — metafísica — e do retorno a si mesm o), é o
qu e Hegel chama o “mu ndo in vertido”: isto é, um d uplo
do único que seria justam ente o próprio único, mas ape
70
o sensível não é outra coisa senão a concretização pro
gressiva do além supra-sensível, do qual constitui o que
Hegel chama o “preen chim ento” — exatamente como o
duplo, segun do a estru tura oracular, pode se r considera
do a realização, o “pree nchim ento” do único. Is so Hegel
reconhece: “Mas o interior ou o além supra-sensível apa
receu, ú t provém do fenômeno, e o fenômeno é sua me
diação ou ainda o fenômeno ésua essência, e, na realidade,
o seu preenchimento. O supra-sensível é o sensível e o
percebido postos como na verdade são; mas a verdade do
sensível e do percebido é de ser fenômeno. O supra-sen
sível é então ofenômeno enquanto fenômeno";21exatamen
te como o seu comentad or: “D etenh amo-nos a inda nesta
experiência que Hegel denomina curiosamente como
‘mundo invertido’. É porque o primeiro mundo supra-
sensível — elevação ime diata do sensível ao inteligível
— se reverte ou se inverte nele mesmo, que o movimen
to é nele introduzido, que ele não é mais apenas uma
2lTrad. para o francês de J . Hyp pol ite. Paris: Au bier -M onta igne , 1.1, p. 121-2.
71
ção’ qu e é no seu devi r autêntico apenas manifestação de
si por s L ^ É m outras palavras, este mun do-aq ui é o out ro^
de um outro mun do que é just amente o mesmo que este
mu nd o-aq ui: p orqu e este itinerário mis terioso, duran te
o qual o fenômeno se mediatiza a si mesmo em si mes
mo para se tor na r manifestação da essê ncia, não é outro
senão o caminho que con duz de A até A passando por A .
Esta estranha coincid ência dest e mu ndo e do outr o m un
do (que exprime apenas a coincidência do único e de seu
duplo) não escapa a Heg el, qu e nela vê a última palavra
do mistério filosófico, isto é, do mistério que faz com qu e
as coisas sejam justa me nte o que são, e não outras. D aí a
mente satisfatória
própria do caráter
para perturbar invisívelincrédulos.
os espíritos do outro mundo,
O outro
72
mun do é invisível por qu e é precisamente du plicado por
este mu nd o-a qu i, qu e nos impede de v ê-lo. Se este m un
do diferisse, mesmo que um pouco, do mundo supra-
sensível, este últim o seria, de ce rto mod o, m ais tangível:
poderiamos reconhecê-lo na própria variação que o faria
diferir do m un do sensível. Mas, justam ente, esta variação
não existe. O mun do supra-sensível é a exata duplicação
do mundo sensível; não se diferencia dele de maneira
alguma. E esta é a razão p or qu e se custa tanto a percebê-
lo: ele estará sempre dissimulado pelo seu duplo, quer
dizer, pelo m un do real. Nã o se poderia ima gina r melhor
esconderijo. A filosofia hegeliana aparece assim como a
própria ess^nea do pensam ento oracular: ela anuncia no
real a manifestação de um outro Real do qual não se
poderia duvidar, pois já está presente integralm ente no
nível do re al imedia tam ente perce bido. E po uco im por
ta que, em Hegel, este real e este Real sejam apenas um
só; ao contrário: esta duplicação rigorosa só segue mais
de perto a estrutura oracular cujo fim é fazer coincidir,
em u m acon tecim ento ún ico, a surpresa e a satisfação da
expectativa.
Esta estrutura oracular caracteriza, aliás, como se
sabe, todas a s filosofias do sécul o XIX. En co ntra -se u m
eco particularm ente evocador de sta e strutu ra em Fichte,
principalmente, que, se acreditarmos em Schopenhauer,
repetia obstinadame nte aos seus alunos q ue é justa mente
73
porque as coisas são assim que elas são ("Es ist, weil es so
ist, wie es ist").
Esta estrutura oracular do real manifesta-se igual
mente nas filosofias do século XX, especialmente em
certas filosofias consideradas de vanguard a, po r não h a
verem ain da sido comparad as às filosofias do passado, das
quais mui tas vezes só diferem na forma ou em detalhes.
Assim, reencontr amos nitidamente a estrutura hegelia na
do real na estrutura do real segundo J. Lacan. Pouco
importa que, em Lacan, o real não seja garantido, como
em Hegel, p or um outro real , mas sim por um “signifi-
cante” que, “por sua natureza, só é símbolo de uma au
sência”.24 O que impo rta é a igual insuficiênc ia do real
para dar conta de si mesmo, para assegurar a sua própria
significação, como em Lucrécio; a igual necessidade de
buscar “em outro lugar” — mesmo que fosse em uma
“ausência” e não em um “além” — a chave que pe rmite
decifrar a realidade imediata! O que im porta é que o sen
tido não es teja aqui, mas sim em outro lugar — daí uma
duplicação do acontecimento, qu e se desdobra em dois
elementos, de um lado a sua manifestação im ediata, e do
outro o que esta manifestação manifesta, isto é, o seu
sentido.7Ó sentido é justamente o que é fornecido não
por ele mesmo, mas pelo outro; eis por qu e a metafísica,
74
que busca um sentido além das aparências, sempre foi
✓
75
significante como um eterno acessório em relação à coi
sa que ele significa (enquanto a significação hegeliana
vem, em última análise, “preencher” o real e coincidir
com ele). Daí, em L acan, a denegação constante, de apa
rência inevitavelmente maníaca: o pênis é o f alo porq ue
ele nã o é ele, e vice-versa; o ser nã o é o ser, ou melhor, só
o é po rq ue não o é; o branco só é preto p or qu e ele não o
é, ou então só o é na medida em qu e o preto é justam en-
te o branco.
Estas considerações lançam uma luz interessante
sobre a estrutu ra psic ológica daquilo que, desde a segun
76
contrário, o aprofunda e o elucida, a aversão pelo sim
ples designa um pavor diante do único, um afastamento
com relação à própria coisa: o gosto pela complicação
exprimindo, em primeiro lugar , um a n ecessi dade da du
plicação, necessária à assunção sub-reptícia de um real
cuja unicida de cru a é instinti vam ente pressentida como
indigesta. Entendida assim, esta recusa do simples per
mite co mp reende r por qu e as “precios as” fazem chichis:
menos p ara brilhar na sociedade do qu e para atenu ar o
esp lendo r do real, cujo brilho as f ere por sua intolerável
unic idad e. A coisa só é tolerável s e med iatizad a, d esdo
brada: não há nada neste mundo que possa se experi
mentar assim, “diretamente”. É o que exprime muito
claram ente Magdelon, em Molière, quando declara ao pai
que não podería “falar de um momento para outro em
união conjugal” e que ela “sente náuseas só de pensar
em tal coisa”.26 Conhecemos o sentido, confirmado pela
etimologia, da expressão francesa de but en blanc: ir di
reto ao alvo , visar diretam ente o únic o sem o auxíli o do
duplo. A complicação, aqui, é apenas um tapa-buraco,
um a atitude de pr oteção contra a inelutabili dade do ún i
co, ao qu al o chichi — seja de essên cia preci osa ou meta
física, supondo estas duas essências diferentes uma da
outra — constitui rá apenas u m obstá culo p rovisório, ou
77
pelo menos ilusório. Provisório se se trata apenas de um
chichi passageiro; de qualquer modo ilusório, mesmo se
se trata de u m chichi obstinado e def initivo: p orq ue a re
78
nevando, diga: ‘Está chovendo, nevando’ [...] Mas, res
ponda você, isso é muito simples e claro.”27
79
estava ”.28É provável qu e este desen cadeam ento graças ao
qua l o presente s e reabilita, enriqu ecen do-se sub itamen te
de todos os bens dos quais até então estava privado, ap a
reça mais clarame nte na poesia do qu e na filosofia, ainda
qu e de a finidad e poética, como é a fi losofia de Nietzsch e.
As quimeras de Gérard de Nerval, para se ater apenas a
este poeta, sugerem adm iravelme nte este tema da dup li
cação do presente em todo passado e todo futuro, mas
para a única glória e celebração do próprio presente. A
reiteração, tema dominante das Quimeras, volta-se aqui
em favor dela mesma, e não em favor daq uilo q ue é rei
terado. O qu e importa é que tud o é eternamente primei
80
por Nerval no fim de sua vida, define o estadode graça. Daí
o caráter bem-aventurado da duplicação nervaliana nas
Quimeras que, em vez de privar o presente de sua realida
de própria, acrescenta-lhe, ao contrário, a série infin ita das
outras realidades dO pres ente é, a cada instante, a soma de
todos os presentes; esta expressão “presente” devendo ser
entendida aqui no seu duplo sentido de dádiva do instan
te (dádiva deste presente aqu i) e de oferenda absoluta (dá
diva de todo “presente”, que r dizer, de toda d uração). E o
retorn o final à imobilid ade, a este único que vem selar, no
fim de Delfica, a série de todos os instantes passados no
único instante presente, não omite ne nhum a realidade. Ao
contrário, ele as afirma todas ao mesmo tempo, porque
transporta em suas baga gens a totalidade de tud o o qu e é,
será e foi, dotando assim cada instante da vida de toda a
riqueza da eternidade:
81
Eles voltarão, esses deuses que lastimas sempre!
O tempo vai restabelecer a ordem dos antigos dias;
A terra estremeceu com um sopro profético...
82
A I LUSÃO PSICO LÓG ICA:
O HOM EM E S EU DUPLO
1. “EU É UM OUTRO”
ferença comrque
Crátilo, po relação
seriaapreciso
Crátilo:qunão
e a podem
cada umexistir doisper
dos dois
tencesse paradoxalmente a propriedade fund am ental de
Crátilo, qu e é de ser ele mesmo e não u m outro. O que
caracter iza Cráti lo, as sim como qu alq ue r coisa no m un
do, é, portanto, a sua singularidade, sua unicidade. Esta
estrutura fundamental do real, a unicidade, designa ao
mesmo tem po o seu valor e a sua finitude: to da coisa tem
o privilégio de ser apenas um a, o qu e a valoriza infinita-
mente, e o inconveniente de ser insubstituível, o que a
83
desvalo riza infinitamente. Porq ue a morte do único é ir
remediável: não havia dois como ele; mas, uma vez
terminado, não há mais nenhum. Tal é a fragilidade
ontológica de toda coisa existente: a unicidade da coisa,
qu e c onstitui a sua essência e determ ina o seu v alor, pos
sui em contrapartida um a qualidade ontológi ca desast ro
sa, nada além de um a part icip ação mu ito tênue e mu ito
efêmera no ser.
Pode-se, entretanto, imaginar realizado o paradoxo
de Sócrates (não concebê-lo, pois isto implica contradi
ção, mas imaginar que o concebemos): existirão então
dois Crátilo, e um será o duplo exato do outro, de modo
que não diferirão em nada um do outro e que será mes
mo impossível falar a seu respeito de um “um” e de um
“outro ”. Esta imagem, que só faz concretizar o habitual
fantasm a da duplicação do úni co, apresenta, entretan to,
uma particularidade notável: aqui o único duplicado
não é mais um objeto ou acontecimento qualquer do
mun do exterior, mas sim um h omem , quer dizer, o sujeito,
o próprio eu. Este caso particu lar da duplicação do ú n i
co constitui o con junto dos fenômeno s cham ados de des
dobramento de personalidade, e deu srcem a inúmeras
obras literárias, como também a inúmeros comentários
de ordem filosófica, psicológica e, sobretudo, psico-
patológica, já que o desdob ramen to de person alidad e
define também a estrutu ra fund am ental das mais graves
84
demências, tal como a esquizofrenia. O tema literário do
duplo aparece com uma insistência particular no século XIX
(Hoffm ann, Chamisso, Poe, Maup assa nte Dostoiévski são
85
como fantoche que é. Assassinado pelo Mouro, outra
marionete que, por ciúme, despedaça-o com um golpe
de sabre, Petrouchka reencontra, ao morrer, a sua alma,
recuperando assim o srcinal que só conseguira até en
tão imitar: e é o seu ser real que se vê, de súbito, gesticu
lar sobre o telhado, de m ane ira fanta smátic a, e desafiar o
seu mestre que foge enqu ant o o pano cai.
O amor feiticeiro — A bela cigana Candeias ama o
jovem Carmelo, mas, toda vez que deseja se atirar em seus
braços, vê aparecer o espectro de um ho mem que outro-
ra amou e que continua a atormentá-la mesmo depois
de morto. Um a amiga devotada, Lucia, aceita desviar para
86
Petrouch\a é o único destes três exemplos que apre
senta o tem a do desdo bram ento de si sob um a form a sim
87
o retorno do outro para si, do alhures para o aqui, que
marca o reconhec imen to do únic o e a aceitação da v ida.
Um célebre estudo de O tto Ran k29chega a relacio nar
o desdobramento de personalidade com o medo ances
tral da morte. O duplo que o sujeito imagina seria um
duplo imortal, encarregado de colocar o sujeito a salvo
de sua própria morte. A superficialidade do diagnóstico
provém aqu i de que Rank não percebeu a hierarqu ia real
que liga, no desdobramento de personalidade, o único
ao seu “dup lo”. E verdade que o duplo é sempre intu iti
vamente compreendido como tendo uma realidade “me
lh or” do q ue o próprio suj ei to — e ele pode aparecer neste
sentido como representando uma espécie de instância
imortal em relação à mortalidade do sujeito. Mas o que
angustia o suj eito, m uito mais do q ue a sua morte próxi
ma, é antes de tudo a sua não-realidade, a sua não-exis-
tência. Morrer seria um mal menor se pudéssemos ter
como certo que ao menos se viveu; ora, é desta vida mes
ma, por mais perec ível qu e por ou tro lado possa s er, qu e
o sujeito aca ba por duvidar no desdobram ento de perso
nalidade. No par maléfico que une o eu a um outro
fantasmático, o real não está do lado do eu, mas sim do
lado do fantas ma: n ão é o outro q ue m e duplica, sou eu
que sou o duplo do outro. Para ele o real, para m im a som
88
bra. “E u ” é “um outro”; a “verdadeira vida” está “a u
sen te.”30Do mes mo mod o, em M aup assan t, Ele ou O
30Ri mb au d.
89
eu q ue afirmo se r, e, mais ainda, ser eu, apoian do-m e as
sim nesta “falsa evidência que o eu ostenta como título
de existência” da qual fala Lacan? Não basta dizer que
sou único, como o é qua lqu er coisa no m und o. Refletin
do mais atentam ente, eu possuo o privilégio, que é tam
bém uma maldição se quiserem, de ser duas vezes único:
porque sou este caso particular — e “único” — onde o
único não pode se ver Conheço bem a unicidade de to
das as coisas que me cercam, e a proclamo, sem grande
esforço: é que, pelo menos, me é dado vê-la, afirmá-la
como um a coisa qu e posso observar ou man ipular. N ão
acontece o mesmo com o eu, qu e nun ca vi nem vere i ja
mais, nem mesmo em um espelho. Porque o espelho é
eng anado r e constitui um a “falsa evidência” , que r dizer,
a ilusão de um a visão: ele me mostra nã o eu, mas um in
verso, um outro; não m eu corpo, mas um a superfície, um
reflexo. Ele é, em suma, apenas uma última chance de
me apreender, qu e sempre acabará por dece pcionar-me,
qualq ue r que seja a jubilação que pude experimentar, aos
dez meses,
imagem quecompreendendo
se agitava diante(mas não tinha
de mim vendo)
umaquevaga
esta
relação comigo. É por isso que a busca do eu, especial
mente nas perturbações de desdobramento, está sempre
ligada a um a espécie de retorno obstin ado ao espelh o e a
tudo o que pode apresentar uma analogia com o espe
lho: assim, a obsessão da simetria sob todas as suas formas,
90
qu e repete à sua maneira a impossibilidade de jamais re s
tit uir esta cois a invisível qu e se ten ta ver, e qu e seria o eu
diretamente, ou um outro eu, seu duplo exato. A sime
tria é el a próp ria conforme à imag em do espel ho: oferece
não a coisa mas o seu outro, seu inverso, seu contrário,
sua projeção segund o tal eixo ou tal plano. O destino do
vampiro, cuj o espelho não reflete nen hu ma imagem, nem
mesmo inver tida, simboliza aqu i o dest ino de qua lqu er
pessoa e de q ualq uer coisa: não poder provar a sua exis
tência por meio de um desdobramento real do único e,
31C£ M agd elein e M ocq uot , artigo sobr e Vermeer em Club Français de la
Mé daille, 1968, n° 18: “Vermeer et le Portrait en Double Miroir”.
91
dúvida quanto a si mesmo, da qual só liberta uma ga
rantia reiterada do outro, no caso, do público.
Sabe-se que o espet áculo do desdobram ento de per
sonali dade no outro — tema abund antem ente ilust rado
pelo romance e pelo filme de terror — é uma experiên
cia de efeito aterrorizante garantido. Pensava-se tratar
com o srcinal, mas na realidade só se havia visto o seu
duplo enga nado r e tranq üilizad or; eis de súbito o srci
nal em pessoa, que zomba e se revela ao mesmo tempo
como o outro e o verdadeiro. Talvez o fundamento da
angústia, apar entem ente ligado aqui à simples descoberta
qu e o outro vis ível não era o outro real, deva ser pro cur a
do num terror mais pr ofundo: de eu mesmo não ser aqu e
le que pensava ser. E, mais profundamente ainda, de
suspeita r nesta ocasião qu e talvez não seja algum a coisa,
mas nada.
O vínculo entre o terror e o duplo aparece de ma nei
ra exem plar em u m filme célebre de Cavalcanti, Dead o f
92
todo aqui e todo agora. Um episódio notável do fdme
coloca, aliás, diretamente em cena o homem e seu du
plo: seqüência de u m ventríloquo lutando com seu fan
toche, que escapa progressivamente ao controle de seu
mestre e acaba por apropriar-se da realidade deste. Cen a
alucinatória de desdobramento esquizofrênico, na qual
um homem morre sufocado pelo seu duplo, devorado
pela sua própria imagem.
O reconhecimento de s i, que já impli ca um parad o
xo (pois trat a-se de apreend er justam ente o que é impos
sível de apreender, e que a captura de si mesmo reside
paradoxalmen te na própria re núncia a esta captura),
implica tam bém necessa riamente um exorcismo: o exor
cismo do dup lo, q ue põe u m obstáculo para a exist ência
do único e exige que este último não seja apenas ele
mesmo, e nada mais . Nã o há eu q ue seja apenas eu, não
há aqui que seja somente aqui, não há agora que seja
93
Expulsando o espectro do duplo, a amável Lucia dissi
pou os malefícios da noite, cujo essencial é ocultar o real
sob o irreal, dissim ulando o único atrás do seu duplo. Mas
aqui
enfim,o en
véuquseantlevanta, permitindo
o o dia nasce, o feliza reencontro
Candeias celebrar,
de si con
sigo mesma.
Esta coincidência de si consigo mesmo acaba, aliás,
sempre por prev alecer, mas n em sempre tão alegrem en
te. O retorno de si a si mesmo segue caminhos muitas
vezes mais complicados ainda do que os artifícios utili
zados por C andeias para proteger-se do seu duplo. É certo
qu
eu,eenão
que se escapaseao
o único ja destino
o único.qDe
ueqfaz
ualcom
qu erque o eu seja
maneira, poro
tanto, se será si próprio. Mas dois itinerários são aqui
possíveis: o simples, que consiste em aceitar a coisa, e até
em regozijar-se com isso; e o complicado, que consiste em
recusá-la, e que retorna a ela com juros, em virtude do
antigo adágio estóico segundo o qual fa ta volentem du-
cunt, nolentem trahunt* Se tomam os o segundo itinerá
*“0 destino guia aquele que conse nte e a rras ta aquele qu e recusa.” C éle
bre verso de Sêneca. (N. do T.)
94
direção que se queria evitar ou pelo menos ocultar; ou
melhor, ela a constituirá inteiramente, como Édipo fa
brica o seu destino com os esforços pelos quais tenta es
capa r a ele. É rec usand o-se a ser o isto ou o aqu ilo que se
é, ou ainda a aparentá-lo aos olhos dos outros, que nos
tornamos precisamente o isto ou o aquilo, e que apare
cemos como tal aos olhos dos outros. Nada mais “pas
tor” do que querer mostrar que não se é, para se ater
apenas a um único exemplo, e um já é suficiente, por
que aqui não se trata de dep reciar ninguém . O qu e im
porta é apenas que a qualidade que se pretende ocultar
ou denegar, por um afastam ento de si, é just amente cons
tituída por esta própria distância; distância que contri
bui, por outro lado, para torn ar esta qualidade para
sempre invisível aos olhos do seu possuidor. Como eu
seria isto, se a minha vida inteira consiste justam ente em
estar afastado disto?
O afastamento de si por si mesmo, o qual sempre
acaba por confirmar o seu próprio eu, é igua lme nte per
ceptível no afastamento de outros que não si próprio,
qu an do parece que estes são ao mesmo tempo indesejá
veis e semelhantes. É o caso, particularmente, de certos
grandes papéis do t eatro. Qu em aparece no teatro seme
lha nte demais ao eu qu e se decidi u não ser será l ogo, ele
próprio, desdobrado, segundo a estrutura da duplicação
que, acredita-se, já demonstrou sua eficácia no que
95
concerne ao e u. E m lugar da personalidade te atral tal qual
ela é, apare ce um outro personagem q ue relega a per so-
nalidade incomodam ente semelhante para um a esp écie
96
unicidade, cujo caráter desagradável, aliás, ela agrava.
Porq ue lhe per doar iam facilmente por ser indesej ável, isto
97
se ela não a tem princ ipal mente em vista. A morte signi
fica o fim de qualquer distância possível de si para si, tanto
espacial quanto temporal, e a urgência de uma coinci
98
idêntico a ele apenas co ntem plando-o intensam ente, em
um a ce rimô nia iniciática cujos porm enor es os feiticeiros
lhe precisarão, por intermédio da rainha. Chega do o mo
mento, aparece o srcinal do retrato, isto é, o amante da
rainh a em carne e osso, que en controu aí um bom meio
de substituir, sem esforço, o monarca, graças a um assas
sinato noturno : “Com um golpe d e cimitarra, súbi to, ele
trespassa o corpo do miserável que talvez, por um segu n
do, acreditou na fulgu rante realização da metamo rfose:
99
mem ória para garantir a continuidade do único ao seu
duplo; desta memória da qual Leibniz, em seu Discurso
de metafísica, diz ser parte integ rante e necess ária da subs
2. D A BESTE IRA
* Artigo 34.
100
cura no ou tro um personagem de substit uição e um a es
capa tória do destino que a condena a ela mesm a: nos dois
casos, a segurança é um a a rma dilha q ue acaba por lig ar
o herói trágico ao seu destino e encerrar o homem nele
mesmo. A fuga e a esquiva se exprimem por um gesto
que constitui precisamente, e integralmente, o dano do
qual queríamos nos desviar. É querendo evitar matar o
pai que Édipo se precipita no caminho do homicídio, é
quere ndo a todo custo ser um outro qu e o homem habi
tualmente se confirma nele mesmo. De modo que a se
gurança com que se julga protegido aquele que tentou
esquivar-se de seu destin o con stitui o luga r exato de sua
perdição. O outro lugar aparente não é outra coisa se
não o aq ui do qu al se julgava afastado, e a proteçã o com
a qual se contava r evela-se como aquilo q ue ju stam en
te causou a desgraça: como o relógio do pescador, na
Descida no Maelstrõm de Edgar Poe, que deveria assi
nalar a hora perigosa da maré e que se percebe tarde
dem ais q ue paro u às sete horas. A falsa seguran ça é mais
do que a aliada da ilusão; ela constitui a sua própria
substân cia e é, no íntimo , a ilusão em pessoa, como d iz
Hécate em Macbeth: “A segurança é a maio r inimiga dos
mortais.”
Esta segu rança ilusória é também característica de um
fenô meno próximo mas distinto da ilusão, a bes teira. Mais
exatamente, ela caracteriza uma certa forma de besteira
101
cujo mecani smo e incontest ável vigor ela ao mesmo tem -
po esclarece.
De maneira geral, a besteira pode ser considerada de
dois pontos de vista: o de seu conteúdo e o de sua forma.
A questão do conteúdo da besteira coloca um problema
de inventário aparentemente insolúvel, que é, aliás, es-
tran ho à problemátic a do único e de seu duplo. Pod emos
então nos contentar aqui em descrever sumariamente o
conte údo da besteira como toda mani festação de apego a
temas irrisór ios, estes sendo inesgo táveis tan to em nú m e-
ro quanto em vari edade. Mas , para um conteúdo idên -
102
parece definitivamente a salvo da crítica: besteira do se
gundo grau, interio rizad a e reflexiva. Nes ta segu nda for
ma de besteira, tomou-se consciência do problema da
besteira; sabe-se que é preciso evitar ser estúpido, e, à luz
deste escrúpulo, escolheu-se uma atitude “inteligente”.
Naturalm ente, esta atitude não é outra coisa senão a bes
teira “em pessoa”, da qu al se podería d izer, para frasea n
do Hegel, que é a “besteira tornada consciente dela
mesm a”: mas não no sentido em qu e ela seria consciente
103
raciocinar bem demais, como Boubouroche é incurável
por ver bem demais, na peça de Courteline. O último fer-
rolho qu e protegia a pessoa da opção definitiva f oi pelos
ares, como um último marco que se teria perdido, ou um a
última chance que se teria deixado passar.
A analogia entre esta forma incurável de besteira e a
estrutura oracular ou psicológica da esquiva é evidente.
Como Édipo ou qualquer um encontram-se por terem
querido evitar-se, da mesma forma a besteira instala-se
definitivamente nela mesma por ter querido escapar à
besteira: ela se torna estúpida por medo de ser estúpida,
ou, mais simplesmen te ainda, torna -se ela mesma p or ter
desejado ser outra. Mesma ilusão de segurança, ligada a
um a mesm a confusão entre o aqui e o outro lugar: imagin o
a besteira afastada para sempre e uma certa inteligência
aqui, enquanto a besteira está aqui e a inteligência em
outro lugar , para sempre. Esta fatalidade é igualm ente a
do esnobismo e, de mane ira geral, a de todos aqueles qu e,
duvida ndo deles mesmos, tentam buscar a sa lvação em
um modelo : outro mágico de quem espero que me fará
104
3. O ABANDONO DO DUPLO
E O RETORNO A SI
105
na sua tela. Nada, na roupa, na estatura, na atitude do
pintor, que possa ser considerado sinal distintivo, nada,
portanto, que dem onstre uma complacência qualq uer
106
visível o invisível: ele pin to u sua a usênc ia, mais bem ex
pressa assim do que se tivesse se contentado simplesmente
em renun ciar a qualqu er for ma de auto- retr ato. Q ua n
do nada é dito, sempre é possível imaginar alguma se
gunda intenção. Este não é o caso aqui: porque o nada
está dito aí com todas as letras e mostra-se, bem à vista,
na tel a. Senão o nada, pel o menos u m muito pouco, um
quase n ada digno de n ota.
O que Vermeer pinta em seu O ateliê, considerado a
outro p onto de vista, é igua lme nte o indício de um a ple
nitu de , q ue explica a atmosfera seren a e jubilos a da obra.
Esta plenitude é a mesm a que experimenta Cande ias no
final de O amor feiticeiro: a reconciliação de si consigo
mesmo, que tem como condição o exorcismo do duplo.
Re nun ciar a pintar- se de frente equivale a ren un cia r a se
ver, qu er dizer, renu ncia r à idéia qu e o eu possa ser per
cebido num a réplica que permite ao suje ito apreender-
se a si mesmo. O duplo, que autorizaria esta apreensão,
signif icaria tam bém o assassi nato do sujeito e a ren ún cia
a si, perpe tuam en te despojado d ele mesmo em benefício
de um duplo fantasmático e cruel; cruel po r não ser, como
diz M onthe rlant: “Porque são os fantasmas qu e são cruéis;
com as realidades podemos sempre nos arranjar.” Eis por
qu e a assunção jubilosa de si mesmo, a presença verdadeir a
de si para si mesmo, implica necessariamente a renúncia
107
ao espetáculo de sua própria imagem. Porque a imagem,
aqui, mata o modelo. Intimamente, o erro mortal do
narcisismo não é querer am ar excess ivamente a si mes
mo, mas, ao contrário, no momento de escolher entre si
mesmo e seu duplo, dar preferência à imagem. O nar
cisista sofre por não se amar: ele só ama a sua repre
sentação. Amar-se com amor verdadeiro implica uma
indiferença a todas as suas próprias cópias, tais como
podem aparecer para os outros e, pelo viés dos outros, a
mim mesmo, se presto muita atenção a eles. Este é o
miserável segredo de Narcis o: um a atenç ão exagerada ao
outro. Esta, aliás , é a razão por que ele é inca paz de ama r
alguém, nem o outro nem ele mesmo, já que o amor é
108
A obsessão pelo dup lo, na literatura rom ântica, reve
la curiosam ente um a p reocupação exatamente oposta. A
109
ou em u ma duplica ta fiel, mas nos documen tos legais qu e
estabelecem a sua ide ntidade. Insignificante confirmação,
responder á, porq ue ele qu er um a imagem de carne e osso,
não uma conjetura de ser f undada sobre papéis conven
cionais, ao m esm o te mp o perecíveis e falsificáveis à von
tade. Mas isto é pedir demais: porque a única imagem
um pouco sólida qu e se pod e oferecer de si mesmo resi
de precisamente nestes documentos, e apenas neles. Os
sofistas gregos, ao que parece, haviam compreendido
basta nte pro fu ndamente que só a instituição — e não
um a hipotética naturez a — é capaz de dar cor po e exis
tência ao que Platão e Aristóteles conceberão como
“substâ ncias ”: o indiví duo será social ou n ão será; é a so
ciedade, e suas convenções, que tornarão possível o fe
nôm eno da i ndividualidade. O que garante a identidade
é e sempre foi um ato público: uma certidão de nasci
mento, u ma carte ira de i dentidade, os t estemun hos con-
cordantes do porteiro e dos vizi nhos. A pessoa hu m an a,
concebida como singularidade, só é assi m percept ível a
ela mesma como “pessoa m ora l”, no sentido jurídico do
termo: qu er dizer, não como um a substância delimitável
e definível, mas como uma entidade institucional que
garante o estado civil, e apenas o estado civil. Isto quer
dizer que a pessoa humana só existe no papel, em todos
os sentidos da expressã o: ela exist e sim, mas “no p ap el”,
110
só é perceptível do exterior, teoricamente, como possi
bilidade mais ou menos plausível. É fácil reconhecer os
limites desta plausibilidade na ocasião de múltiplas ex
periências: toda vez que, após um incidente ou uma cri
se qualqu er, n ão estamos em condições de provar noss a
identidade. Quando estamos sem documentos, é inútil
gritar que somos nós mesmos: isto não diz nada a nin
guém, como mostra um sainete de Courteline, A carta
registrada. Um empregado dos correios reconheceu num
cliente que veio buscar um a carta registr ada u m de seus
velhos conhecido s: a conversa fica anim ada, recordam -
se mutuamente lembranças comuns; depois, o cliente
solicita a sua carta. Mas o empre gado recusa-se: para le
var a sua carta, é preciso qu e o cliente prove a sua ide nti
dade. Absu rda devoção ao regulamento, observa o cliente;
mas o empreg ado retruca: “Reconheci você como ho mem
do m undo; mas como funcioná rio ignoro qu em é você.”
O cliente exibe então diferent es docu mento s cuja au ten
ticidade é reconhecida pelo empregado: entretanto, um
pequeno detalhe faz com que, sempre, o documento
apresentado dê lugar a uma dúvida possível e se revele
impo tente para a d ecisão, de modo q ue a carta perma ne
cerá finalmente nas mãos do empregado, até o dia em qu e
seu amigo lhe tiver dem onstra do, de man eira irrecusável,
qu e ele na verdade é decididamen te ele mesmo, e não um
outro.
111
Dem onstração impos sível: porqu e o empregado tei
moso não exige, em suma, outra coisa senão um duplo
do único. Faz-se ouvir aqui, por trás da sátira do for
malismo burocrático, o eco surdo de uma angústia mais
profunda, qu e tem po r objeto a identidade não apenas
legal, mas existencial: sou eu mesmo, sou realmente eu
que vivo, eu que n en hu m d ocumento garante, com o aca
ba de me dem onstrar este empregado escrupuloso? Para
assegurar-me disso , seria preciso uma d uplic ata qu e jus
tamente me falta e me faltará sempre. Tenho, portanto,
realmente razão de duvidar de mim, e descubro na mi
nha incapacidade para desdobrar-me um sério motivo
112
qu e tinha de dest ruir, no Q uai des Orfèvres, um proces
so embaraçoso
tropia, q ue im arque lhe dizia dos
a totalidade respeito , procura,
pro cessos por filan
e arquivos de
todos os edifícios públicos, prefeituras, repartições mu
nicipais, comissariados. Uma vez queimado o último
processo, constata que a humanidade se degradou: os
hom ens n ão sabem fa lar, andam de qua tro, farejam a c al
çada com a cara. Espanto do filantropo, que “acaba por
comp reender que, quere ndo libert ar a hum anida de, el e
a rebaixa a um nível bestial, porque a alma human a éf ei
ta de papel ".37
É justamente isto que pressente e teme o herói ro
mântico: que não queimem o meu duplo, porque não
sou nad a fora del e e só existo no papel . Q ueim ar o duplo
é, ao mesmo tempo, q ueim ar o único. Temo r justificado
num certo sentido: não que o indivíduo sej a de papel, mas
porque ele é incapaz de tornar-se visível — enquanto
único — em outro lugar que não no papel . A angús tia
de ver desaparecer o seu reflexo está então ligada à an
gústia de saber que se é incap az de dem ons trar a sua ex is
tência por si mesmo: a últim a prova, a prova pela própria
coisa, que se pensava gu ardar como trun fo decisivo, é para
sempre inoperante. As provas ou argumentos que se ex
põe são destinados a demonstrar a coisa; ora, pode ser que,
113
po r azar e por sorte, se seja capaz de mostrar a coisa que
nos esforçávamos para demonstrar: e o interlocutor per
manece impassível. Entretanto, não tento convencê-lo,
indico a coisa para ele com o dedo. Ele se recusa a adm i
tir, por exemplo, q ue a Córsega seja visível do conti nen te
qu an do o tempo está claro; apó s haver me esgotado em
argum entos hábeis , levo-o para o s cumes de Nice e mos
tro-lhe a Córsega: ele zomba, e me pede para demons
trar a coisa mais seriamente. Diálogo de pesadelo, que
seria o de Pascal apresentando ao libertino não mais ar
gum ento s em favor do deus de Abraão e de Jac ó, mas este
Deus em pessoa, visível e resplande cente, sem conseguir
com isso obter um assentimento de seu interl ocutor.
Eis por que todo pensamento sensa to faz um a pausa
obrigatória, na condução do raciocínio, quando se atin
ge a coisa mesma. Aristóteles e Descartes de nom inam este
momento com a mesma palavra: a evidência, o direta
mente visível, sem o auxílio e a mediação do raciocínio.
Há um momento em que cessa o domínio das provas,
em que se topa com a própria coisa, que não pode ser
garantida por nen hum outro lugar além del a mesma. É
o momento em que a discussão pára e em que se inter
rompe a filosofia: adveniente re, cessat argumentum.
Existe, entret anto, um domínio em qu e a argum en
tação não cessa , porq ue a coisa não se mos tra nun ca: e é
justam ente o m eu domínio, o eu, minha singularidade.
114
Falta-m e ser visível para qu e me deten ha ra cion alm en
te em mim mesmo. Sem dú vida, se sigo Aristóteles neste
ponto, posso decidir que sou um homem; mas não pos
so, por outro lado, conseguir pensar que sou um ho
mem, justamente aquele que sou. A idéia segundo a
qu al eu sou eu é apenas um a vaga suposição, aind a qu e
insistente: uma “impressão forte”, como diz Hume. E
Montaigne: “Nossa realidade são apenas pedaços cos
turad os .” E Sha kespeare: “Somos fe itos da ma téria dos
sonh os” — sonhos cuja próp ria ma téria é de pa pel: ca so
o papel fal te, como na história de Co urteline, o sonho
se dissipa.
Uma solução, neste caso desesperado, consiste em
agarrar-se ao papel: já que m inha pessoa é duvidosa, qu e
ao menos os documentos que demonstram sua veraci
115
casos — , torna -se assi m um hom em de papel, vítima da
invenção maléfi ca do deus Th eu th . O traço escr ito serve
de duplo onde avaliar o seu ser, ou melhor, sua falta de
ser. E igualmente assim que se fica ridículo, no sentido
bergsoniano: por nu nca dizer mais nada mas sempre re
petir, em busca de um improvável “padrão”. A angústia
de não ser nada ou quase n ada co nduz logo ao absoluta
mente nada; o “eu não sei o quê e o quase nada” de V
Jankélévitch conduz então ao eu não sei e ao absoluta
mente nada. Já que me obri go a r epetir um eu cuj o m o
delo proc uraria em vão, cond eno-m e a repetir o outr o: e
este próprio o utro q ue assim gloso é ele mesm o apenas o
reflexo de um a ausênci a. Jogo de ressonância inte rm iná
vel, onde se repete ao infinito o ec o de um a inc apacidade
para dizer “eu”, para experim entar-se como algo. Esta
seria a essênc ia da infelici dade do intelect ual con temp o
râneo, se acreditamos em François Wahl, evocando aqui
Jacques D errida: “A repeti ção como eterna ausência de
algu m prese nte verda deiro.”39
Frase profunda, contanto que seja abreviada e ra
dicalizada. Porque a repetição é sempre eterna ausência
de algum prese nte. Que m repete não diz nada, qu er di
zer, não é nem capaz de repetir-se. O srcinal deve dis
pensar qualq uer imagem: se não me encontro em mim
116
mesmo, reencon trar-me-ei a inda bem meno s no me u eco.
E preciso então que o eu seja suficiente, por menor que
seja ou pareça na realidade: porque a escolha se limita
ao único, que é muito pouco, e ao seu duplo, que não é
nada. É o que exprime admiravelmente a linguagem
corrente quand o declar a, sem tomar mu ito cuidado, que
“não se pode virar outro"
117
CONCLUSÃO
119
uma necessidade inelutável que já tem todas as caracte
rísticas de um a necessidade presente: e o gesto pelo qua l
se tenta livrar-se dela nunca poderá “fazer melhor” do
qu e reprod uzir literalmente o acontecimento temido, o u,
mais exatamente até, constituí-lo. E o que acontece a
Édipo, como a qualquer homem em crise consigo mes
mo, quer dizer, a todo homem num momento ou em
outro de sua existência. Viu-se que algo análogo ac onte
ce em setores muito diferentes da ilusão: o fantasma do
duplo interessa, por exemplo, ao mecanismo elementar
da tolice, mas está i gualme nte presente em um a te nd ên
cia fundamental da metafísica, ou pelo menos de uma
certa metafísica.
A subordinação dessas diversas ilusões ao tema do
duplo não significa, por certo, que necessariamente toda
forma de ilusão est á ligada ao duplo. Antes de considerar
certa uma tal conclusão, seria necessário proceder a um
recensea mento completo, impo ssível por definição , de to
das as manifestações da ilusão. Observaremos simplesmen
te — seguindo nisto o exemplo dos advogados, que deixam
para a acusação o encargo de fornecer a prova — que a
tese aqui apresentada permanece verdadeira até que lhe
ten ham objetado um caso de ilusão que não se reduz a, de
maneira direta ou indireta, a uma duplicação mágica da
coisa e a um a hesitação con fusa entre o único e seu duplo.
Caso que, ao que parece, ainda não foi encontrado.
120
Talvez devéssemos levar em conta, é verdade, as cé
lebres “ilusões dos sentidos”, qu e eviden temen te não têm
nenhuma relação com a recusa do real pela duplicação
121
da percepção, análogo àq uele pelo qua l se viu qu e Bou-
bouroche distinguia entre o pensamento de seu rival e o
pensamen to da fidelidade de sua amiga. O personagem
de Bélise, em LesFe mmes savantes, de Molière, é o exem
122
Sua estrutura não difere fundamentalmente da de to
das as ilusões evocadas anteriormente, e nos arriscare
mos a pensa r qu e provavelmente é o qu e ocorr e em toda
ilusão.
Restaria, enfim, mo strar a presença da ilusão — isto
é, da duplicação fantas mática — na m aior parte d os in
vestim entos psicológico-coletivos de ontem e de hoje: por
exemplo, em todas as formas de recusa ou de “contesta
ção” do real, onde é fácil provar que não chegariam a
acusar o que existe sem o auxílio de um duplo ideal e
impensável. Mas esta demonstração correría o risco de
provocar polêmicas inúteis e só conduziría, aliás, na
melhor das hipóteses, à exposição de verdades em suma
bastante banais. Um tal desenvolvimento seria então fá
cil, mas fastidioso, e o evitaremos aqui.
123
f 1
“ Se o real me incomoda e se
desejo livrar-me dele, me
desembaraçarei de uma
maneira geralmente mais
flexível, graças a um modo de
recepção do olhar que se situa
a meio-caminho entre a
admissão e a expulsão pura e
simples: que não diz sim nem
não à coisa percebida, ou
melhor, diz a ela ao mesmo
tempo sim e não. Sim à coisa
percebida, não às consequên
cias que normalmente deveriam
resultar de la.”
SBN 978-85-03-00923-2
9 78850 009232