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«Antropologia da Morte :Um fato social fatal »

por Stéphane Malysse

« Filosofar é aprender a morrer. »


Sócrates

Um medo fatal na calada noite do corpo ? Um sentimento da morte como destino ? Em muitas
culturas não-ocidentais, “um temor da morte, de origem puramente social, sem nenhuma
mistura de fatores individuais, é capaz de tantos estragos mentais e físicos, na consciência e
no corpo do indivíduo, que pode provocar sua morte a curto prazo”. Morte anunciada por que
esperada. Este “efeito físico no indivíduo da idéia de morte sugerida pela coletividade” 1,
estudado em diversas culturas, pelo antropólogo francês Marcel Mauss, parece nos enviar
irremediavelmente aos distúrbios provocados pela epidemia da AIDS 2, nas representações
coletivas da morte no Ocidente do final do séc. XX. O homem é o único ser vivo consciente
da sua própria morte. Desde a pré-história, o conhecimento da morte sempre suscitou
representações e práticas de uma diversidade3 incrível. Não existe equivalência entre todas as
maneiras de morrer, culturalmente, mas a corrupção ou a decomposição do corpo é sempre
vista como sujeira. Muitos são os ritos de purificação que as pessoas próximas do defunto
devem se submeter, pois a morte é radicalmente poluente4.

Na maioria das sociedades tradicionais o homem vive após a sua morte física. Acredita-se que
sua consciência individual continua existindo depois dele abandonar o seu corpo. Assim, o
homem se torna um cadáver incômodo que pode ser enterrado, cremado, exposto, comido ou
tratado de outras formas. O fato de morrer não transforma automaticamente uma pessoa morta
em ancestral. Esta transformação ocorre através de um rito de passagem 5 para o além

1
(tratamento cultural do status de não-ser), que normalmente se desenrola em dois tempos.
Como mostra a prática corrente de enterros duplos6 : as primeiras que são dedicadas ao
tratamento do cadáver, abrem um período nefasto no qual o espírito do morto é malévolo, por
estar ainda muito presente entre os vivos; as segundas que transformam este espírito em
ancestral, oferecem ao grupo de pessoas vivas a ocasião de reafirmarem sua coesão social,
cultural e emocional.

Esta ligação entre os vivos e os mortos, evidente nos ritos funerários, é inseparável da relação
entre a sociedade e a Terra, assim como de suas representações: “A terra é para os mortais,
uma casa comum”. A história de Moisés comprando uma gruta, que se tornará uma cova de
família, testemunha e constitui um símbolo natural: seus descendentes o encontrarão na
tumba, dentro da terra, formando uma comunidade de defuntos reunidos pela terra comum. O
morto é agregado no outro mundo através do sepultamento e dos ritos funerários que o
fundem na comunidade dos mortos. Por isso é importante dispor do corpo do defunto, nú ou
vestido7 : a identidade de homem, antes do seu desaparecimento, está ligada ao defunto.

No lim ite extremo da identidade está o fim do homem. Nas sociedades ocidentais a morte se
tornou algo proibido. Atualmente ela se passa em silêncio8 e pode permanecer invisível: a
recusa em sofrer a emoção física diante da visão da morte, a efervescência do culto ao corpo
vivo, e o declínio das concepções espirituais, convergem para fazer com que a morte deixe de
ser um rito de passagem (entre o antes e o depois, do moribundo ao cadáver9), e se torne um
acontecimento escondido que se desenrola longe de casa, em geral a morte acontece no
hospital, fora dos olhares. Apesar de sempre estarmos sozinhos na agonia da morte, nossa
morte não é a morte dos outros10 ?

Artes Moriendi11 : a finitude do homem, como problema existencial maior, também é um


assunto de arte12. O homem morre e faz morrer, a arte deve dar conta dessa pulsão ao mesmo
tempo vital e fatal. A arte mostra a morte como um problema humano, sempre presente de
forma radical, pois o homem tomou corpo e alma no seu tempo. Apesar dele sempre desejar a
imortalidade e a juventude eterna, « toda sua vida, o corpo também é um corpo morto, o corpo
de um morto, deste morto que eu sou em vida. Morto ou vivo, nem morto nem vivo, eu sou a
abertura, a tumba ou a boca, uma dentro da outra.” 13

2
1
A idéia central de Mauss, neste texto, é que a morte pode ser provocada por motivos morais e
religiosos através de « sugestão : Se trata de caso real de morte brutal, causada, em muitos indivíduos,
pelo fato deles saberem ou acreditarem (o que é a mesma coisa) que vão morrer. Nestes casos trágicos,
acontecimentos, de origem mágica ou religiosa, sugerem ao indíviduo a idéia dominante e fatal « que
ele vai morrer ». Mauss cita o caso do jovem aborígena da tribu Wakelbure, na Austrália, que depois
de comer um animal de caça proibido, caiu doente e morreu, em poucos dias, soltando os gritos do
animal tabu para consumo. Marcel Mauss, Sociologie et Anthropologie, 1950, Paris.
2
« A soropositividade, pela ameaça que contém, enfrenta uma experiência particular do silêncio. Ela é
assombrada pela perspectiva da morte anunciada. Para cada homem ela representa a destruição do
sentimento de ser levado pelo infinito do tempo, imortal e imerso, com toda confiança no seio do
mundo. O anúncio da doença corresponde à ruptura da segurança ontológica que, a princípio,
acompanha cada homem ao longo da sua vida. Ela é uma subversão integral de si, uma fratura do
sentimento de identidade pessoal: morrer de uma morte que não é a sua num corpo que não é o seu,
morrer sem ser reconhecido. David Le Breton, Du silence, Paris, 1997.
3
A Antropologia da Morte trata desta diversidade cultural das relações do homem com a Morte. Seu
objetivo é estudar as representações coletivas associadas à morte em determinada cultura, e observar
como as práticas coletivas e individuais são utilizadas para responder à angustia da morte. Através dos
ritos funerários, a Antropologia da Morte descreve o tratamento cultural da morte e interpreta seus
ritos.
4
“O horror que o cadáver inspira, portanto, não tem a ver essencialmente com as transformações
naturais que se operam no corpo. Estas transformações, por elas mesmas, não significam tanto. Elas
valem, na realidade, por aquilo a que remetem o espírito do homem. Nenhuma sociedade pode
suportar um corpo alheio ao controle, por isso, tratamos o corpo cuidadosamente depois de sua morte :
vestimo-lo, fechamos-lhe a boca e os olhos, obturamos-lhe todos os orifícios pelos quais ele pode
manifestar alguma atividade de uma natureza escapada ao domínio da coletividade : é esta atividade
incontrolodada que sobrevém ao cadáver – e que o consome – que a sociedade não pode suportar.”
José Carlos Rodrigues, Tabu do Corpo.
5
A expressão « rito de passagem » foi empregada pela primeira vez por A. Van Gennep (1909).
Segundo ele, todo o indivíduo passa por vários status ao longo da sua vida e as transições são
freqüentemente marcadas por diversos ritos, elaborados de acordo com as sociedades. A morte é o
último rito de passagem, que confere ao defunto novas propriedades que permitirão, ou não, as suas
futuras transações com os vivos.
6
Muitas culturas associam estreitamente o silêncio e a morte. O tibenti, um rito de luto dedicado aos
antigos, é celebrado em silêncio pelos Tammari do norte do Tongo. O clã do defunto se reúne em
torno do takienta, uma casa de paredes cegas que, plantada no meio dos campos, sustenta os sótãos. O
clã se mantém imóvel e calado. O silêncio é a língua dos mortos, a verdadeira palavra. Através dele os
participantes se comunicam com seus defuntos e com os ancestrais de outra casta. Ao cair da noite, o
sopro dos antigos deixa as tumbas do cemitério para ir em direção às casas, onde cada um deles tem o
seu altar. O silêncio do clã é um chamado intencional, um convite para encontrá-los. Instalados diante
das casas, eles se preparam para guiar o morto no caminho lá-onde-se-vai. Um homem monta no
terraço e religa o alto e o baixo da casa através de um buraco. Ele cochicha o nome do morto, o nome
sagrado com o qual era proibido chamá-lo em vida. A alma se sobressalta e se torna atenta. Os
tambores e as flautas oferecem a continuidade. O sopro da morte, separado da sua sombra, é suscetível
então de retornar por uma criança.Miriam Smadja, citée par David Le Breton, Du silence.
7
« Na Idade Média dormia-se nu na cama, portanto não é estranho que os mortos sejam representados
totalmente nus nesta época. Existem outras noções associadas à nudez, primeiro o estado de inocência
em que o homem deve abandonar este mundo: como ele chegou; assim é feito o paralelo entre
nascimento e morte, sua alma sendo representada muitas vezes na forma de um homem pequeno nu,

3
que evoca o recém nascido. Esta nudez expressa igualmente a humildade do homem que vai
comparecer diante de Deus, ele vai ser posto à nu. Estar nu, é também abandonar a aparência dada pela
roupa: não se pode mais esconder nada de si mesmo, da sua vida, da sua alma e perde-se até as marcas
da sua profissão e da sua identidade social. A separação está em vias de se consumar. Então o corpo nu
é este que se acha em situação de margem, em situação de passagem...” Florence Bayard, le corps à
l’agonie.
8
“A morte é a irrupção brutal de um silêncio arrasador, insustentável. O último sopro é o último som
de uma humanidade ainda concebível. No momento em que a morte se ampara do homem ela o abate
de silêncio. Em torno da morte, a palavra falta, se mostra hesitante, os gestos perdem segurança. O
silêncio marca sua presença numa intensidade rara. O sofrimento e a dificuldade de comunicar abafam
a palavra e a impotência em dar sentido ao acontecimento, em recriar a ligação, multiplica a
dor.”David Le Breton, Du silence.
9
« Antes, diante deste corpo que hesita entre a vida e a morte, nós dizemos qual é o lugar do corpo
numa sociedade, numa cultura ou numa tradição: exaltado ou esquecido, glorificado ou rejeitado;
depois, pelo culto, pela liturgia ou pelo rito, prolongamos nosso olhar sobre nosso próprio corpo: do
corpo mumificado dos Egípicios ao corpo experimental da autópsia, nós percorremos diversas
atitudes, da afirmação da fé num além do qual este corpo passado participará, ao medo de todo além
que justifica o chamado desesperado aos especialistas aos quais se confia o cuidado de investigar a
morte para prolongar a favor ou contra toda a vida que foge do corpo...” Marc Baietto, Le mourant et
le cadavre.
10
Esta idéia se expressa, perfeitamente, na dor que sentimos pela perda de um ser querido. Ao longo
dos anos, nós introduzimos este ser caro em nosso sistema nervoso. As inúmeras relações que
estabelecemos com ele foram interiorizadas, de forma que fazem parte integrante de nós-mesmos. Nós
choramos esta parte dele que estava em nós, e que era necessária ao funcionamento do nosso sistema
nervoso. A dor moral é como uma amputação física sem anestesia. Assim, o que os outros nos deram é
isto que, essencialmente, levamos para a tumba. Henri Laborit, Eloge de la fuite.
11
Na Idade Média, as Artes moriendi (Artes de morrer bem) são os libretos de preparação à morte,
destinados tanto ao moribundo, quanto ao seu “assistente”. A artes moriendi resume as diferentes
etapas pelas quais passa o agonizante, seu interesse está nas suas reações e na ajuda que podemos lhe
dar. Os libretos levam uma mensagem normativa, através deles, apreendemos a atitude modelo que a
igreja vai exigir cada vez mais do moribundo, e também do vivo. Eles propõem um ritual para
dominar a atitude do homem na sua última hora. Florence Bayard, Le corps à l’agonie.
12
« A historia da arte é um teatro da morte estetizada. A história da arte mostra que ela foi alimentada
e irrigada substancialmente com sexo, sangue e morte. Quantas cenas de guerra, de crucificação, de
assassinatos, quantos crimes, suicídios, quanto sangue derramado das forcas, quantas torturas pregadas
nas paredes dos museus. Dos murais de Lascaux aos afrescos clássicos das pinturas de batalha,
passando pela cenografia do martirólogo cristão, a pulsão da morte atravessa a arte.”Paul Ardenne,
L’image-corps.
13
Jean-Luc Nancy, Corpus.

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