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DOI: 10.1590/0103-11042018S314
ABSTRACT The text seeks to present the discussion of the Brazilian agrarian issue from the per-
spective of the conflict between two models for the countryside, one focused on the agribusiness,
and one another focusing on family farming, agrarian reform, and traditional communities. The
present article intends to visit such dispute, to update it in the context of the coup d’etat of 2016,
and to present possible alternatives to the countryside in Brazil in search of new paradigms.
2 Universidade Federal do
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 42, N. ESPECIAL 3, P. 183-198, NOVEMBRO 2018
184 Noronha GS, Falcón MLO
0,88
0,86
0,84
Gini da Terra
0,82
0,8
0,78
0,76
1920 1940 1950 1960 1967 1972 1978 1985 1992 1995 1998 2000 2006
Ano
Fonte: Elaboração própria baseado em dados do IBGE2; Incra3.
O Brasil é o país da reforma agrária a reforma agrária tendo sido uma etapa ne-
perene. Ao contrário de outros países onde cessária no desenvolvimento de nações hoje
se realizou uma reformulação completa da consideradas desenvolvidas, o Brasil teria
estrutura fundiária, nosso país segue cha- perdido esse bonde da história.
mando de reforma agrária uma política que De pouco adianta a essas pessoas argu-
precariamente fiscaliza a função social da mentos sobre a eficiência maior da agricul-
propriedade da terra. tura familiar, sobre a produção de alimentos
Discutir a função social da propriedade é que é garantida por esse modo de produção,
primordial para relativizar o direito absoluto de qualquer efeito multiplicador dessa po-
sobre a propriedade. Entretanto, Caio Prado lítica sobre a economia, enfim, qualquer
Júnior4 já nos alertava que as manchas defesa mais enfática da necessidade de uma
de solo de pior qualidade são aquelas que reforma agrária.
acabam ficando na mão dos pequenos e Um dos pontos levantados por essas
médios proprietários e que a desapropriação pessoas é que não há público para essa
apenas das grandes propriedades improduti- reforma agrária e que haveria necessidade,
vas perpetuaria este cenário. no máximo, de atuar pontualmente nos con-
A fiscalização do cumprimento da função flitos existentes e assentar as cerca de 120
social sob os aspectos da produtividade, am- mil famílias acampadas no País. Isso é uma
biental e trabalhista é um dever constitucio- falácia. Os dados do Censo Agropecuário do
nal do estado, mas não pode ser entendida Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
como reforma agrária. Reforma agrária tem (IBGE) de 2017 mostram uma demanda
começo, meio e fim. muito maior, como pode ser observado na
Há, contudo, os que entendem que mesmo tabela 1 abaixo:
Fonte: IBGE5.
os menores valores para essas medidas no produtos mais elementares da dieta do bra-
País são, respectivamente, cinco e dois hec- sileiro, arroz e feijão, com as áreas plantadas
tares. A tabela 1 acima mostra que a demanda e quantidade produzida da soja (voltada ao
existente por reforma agrária, consideran- mercado externo) e cana-de-açúcar (voltada
do apenas as áreas abaixo da menor fração tanto para a produção do açúcar, boa parte
mínima de parcelamento e os produtores exportada, como para a produção do etanol,
sem área, apresenta um público potencial a o álcool combustível).
ser atendido pela democratização do acesso Em números, tínhamos, em 2002, uma
à terra no Brasil seria de mais de 1,15 milhão área plantada de 3.171.955 hectares de arroz,
de famílias. Se incluirmos todos os minifún- 4.321.809 hectares de feijão, 5.206.656 hec-
dios na conta, áreas abaixo de cinco hectares, tares de cana-de-açúcar e 16.376.035 hecta-
teríamos mais 817.425 microproprietários, ou res de soja. Em 2016, os hectares plantados
seja, a demanda por reforma agrária poderia eram 2.004.643 de arroz, 2.946.801 de feijão,
ser considerada algo como um pouco menos 10.245.102 de cana-de-açúcar e 33.309.865
de 2 milhões de família. hectares de soja. Uma diminuição da área
plantada dos produtos da dieta básica do bra-
sileiro em um período que a população saltou
A disputa territorial entre de mais de 176 milhões para cerca de 202
os modelos agrícolas milhões de pessoas. Isto evidencia um modelo
de desenvolvimento adotado pelo País.
Mencionamos antes que vivemos uma crise O argumento subsequente seria de que
alimentar e que ela também é resultante do a diminuição da área plantada seria com-
atual padrão de consumo. O melhor exemplo pensada por um aumento da produtividade.
disso é que, com o esgotamento das reservas Independentemente de qualquer melhoria
de combustíveis fósseis, tem-se colocado na produtividade, o gráfico 1 deixa claro que a
como alternativa a produção de agrocom- quantidade produzida dos alimentos básicos
bustíveis. Na prática, os agrocombustíveis da dieta do brasileiro tem diminuído (no caso
competem pelas terras férteis com a produ- do feijão) ou se mantido estável (no caso do
ção de alimentos. A discussão do modelo de arroz) mesmo diante do crescimento popu-
exploração ideal das terras é vital para a dis- lacional, ao contrário da cana-de-açúcar e da
cussão de como alimentaremos os 7 bilhões soja. Em números, saímos de 10.445.986 tone-
de habitantes do planeta. Ainda assim, nossa ladas de arroz, 3.064.228 de feijão, 364.389.416
sociedade prefere a lógica do automóvel in- de cana-de-açúcar e 42.107.618 de soja em
dividual à do transporte coletivo eficiente. 2002 para 10.622.189 toneladas de arroz,
Temos de um lado o agronegócio das 2.615.832 de feijão, 768.678.382 de cana-de-
monoculturas, do deserto verde, do uso in- -açúcar e 96.296.714 de soja em 2016.
tensivo dos agrotóxicos e da manipulação É importante destacar que, de acordo com
genética de impactos, no mínimo, incertos. o Censo Agropecuário do IBGE de 2006,
O que temos no Brasil é que as áreas volta- cerca de 4,3 milhões de estabelecimentos da
das para alimentos de consumo interno da agricultura familiar ocupam somente 24,3%
população brasileira estão a perder espaço da área agricultável e produzem 70% dos
para culturas de exportação ou que produ- alimentos consumidos no País e emprega
zem insumos não alimentícios para outras 74,4% dos trabalhadores rurais, além de
indústrias. O gráfico 2 abaixo, elaborado a ser responsável por mais de 38% da receita
partir da Pesquisa Mensal Agrícola do IBGE bruta da agropecuária brasileira2. A relação
com dados entre 2002 e 2016, compara a entre a proporção da produção de alimen-
série histórica de áreas plantadas dos dois tos oriundos da agricultura familiar e a de
Gráfico 2. Área plantada ou destinada à colheita (arroz, feijão, cana-de-açúcar e soja), em hectares
Arroz (em casca) Cana-de-açúcar Feijão (em grão) Soja (em grão)
33.309.865
30.000.000
25.000.000
20.000.000
15.000.000
10.000.000
5.000.000
0
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016
Fonte: IBGE6.
assentamentos da reforma agrária e comuni- formula essa tipologia são elementos inovado-
dades tradicionais e está fortemente vincula- res. O IBGE coteja os tradicionais indicadores
do à produção de alimentos para o mercado agrários e agrícolas – número e tamanho dos
interno, além da subsistência familiar. estabelecimentos, a propriedade da terra, valor
e volume da produção etc. – com indicadores
Mesmo assim, o potencial do Brasil rural é tão sociais obtidos por meio do acesso a bens civi-
grande que ao mesmo tempo em que se torna- lizatórios (ou direitos sociais) como educação,
va uma das maiores economias industriais do acesso à justiça e acesso a políticas públicas,
mundo, o país estruturava uma importante base tecnologia e informação. Mais além, coloca no
agropecuária e terminaria o século XX como um mapa os fluxos desses sistemas produtivos e
dos principais produtores agrícolas mundiais, identifica a Rede de Cidades que assiste e ma-
exportando alimentos para muitos outros paí- terializa os mercados nas diversas escalas logís-
ses. Ao lado de uma agropecuária de base patro- ticas, do regional até a exportação. Finalmente,
nal – que se expandiu e modernizou, avançando afirma que não é mais possível, em nenhum
na direção do centro-oeste –, se desenvolveu dos dois modelos e suas variantes territoriais,
uma agropecuária organizada em bases familia- separar a economia do rural e a do urbano. As
res, que predomina em três porções distintas do rendas e receitas que estão mantendo o sistema
amplo território nacional: a região sul, o nordeste produtivo ‘rodando’, seja no agronegócio, seja
(com destaque para a região semiárida) e a re- na agricultura familiar, há muito já são geradas
gião amazônica. A primeira estrutura se destaca em atividades integradas e simultâneas aos in-
pelos seus níveis de produtividade elevados e divíduos e empresas.
tem o mercado mundial como destino de seus
excedentes. A segunda, mais diversificada e vol- Com efeito, o debate atual em torno das rela-
tada para o mercado interno, se diferencia pela ções entre o rural e o urbano e da introdução
sua capacidade de gerar ocupação para milhões da abordagem das dinâmicas territoriais im-
de produtores e suas famílias. Ambas reafirmam plica na compreensão de novas ramificações
as potencialidades do Brasil rural7(33). temáticas que giram em torno das articula-
ções territoriais e interdependências do rural
No entanto, como a realidade sempre com o urbano, na medida em que empirica-
é mais complexa que os modelos teóri- mente o campo apresenta cada vez mais in-
cos, além dos espaços de conflito, existem junções com a cidade e suas funções, alteran-
espaços de integração e convivência entre os do a estrutura e a dinâmica de suas relações.
dois modelos, com resultados benignos e ma- A análise do espaço rural brasileiro acompa-
lignos em diferentes gradações. Dois estudos nhada pelas informações geográficas elabo-
seminais detectaram essa complexidade radas pelo IBGE contempla, portanto, não só
e apontaram os mercados de disputa e os o setor agropecuário estrito senso, como a
mercados de integração em que os modelos geografia da rede urbana local e da regional,
operam. Trata-se do Atlas do Espaço Rural, pois é nesse espaço que muitos produtores
elaborado pela Diretoria de Geociências do rurais encontrarão fontes de renda e emprego
IBGE, publicado em 2011 com dados de anos complementares, vitais para a preservação da
variados; e da Tipologia Regionalizada dos própria atividade agrícola8(11).
Espaços Rurais Brasileiros, publicado pelo
Instituto Interamericano de Cooperação A integração econômica rural-urbano leva
para a Agricultura (IICA) em 2017. os serviços financeiros, tecnologia, comuni-
No Atlas encontramos um conjunto de 33 cações, transporte, entre muitos outros, para
tipos de territórios rurais de povoamento em o cotidiano rural e traz o padrão de consume
todo o Brasil, mas o que sobressai da análise que das atividades rurais para o mundo urbano.
Forma e conforma, assim, uma nova cultura Com efeito, a expansão da fronteira agrícola do
da ruralidade, em que tanto a exclusão social território brasileiro nas últimas décadas tem signi-
rural – os sem terra – quanto a exclusão ficado um adensamento técnico-informacional e
urbana – os sem teto – são o outro lado da normativo com a participação decisiva de grandes
moeda do avanço do capitalismo no conjunto empresas ligadas ao agronegócio. A distribuição
da economia e da sociedade, quando não en- de tais densidades de fluxos, no entanto, é seleti-
contra barreiras políticas para a concentra- va, uma vez que apenas algumas áreas e pontos
ção da riqueza e da propriedade. do Território Nacional se inserem de forma mais
Três cartogramas explicam bem esse fenô- completa nas redes, cadeias e complexos agroin-
meno socioeconômico, sendo o Cartograma dustriais delineados a partir da ‘organização em
1 ilustrativo de como as mercadorias percor- rede’ da agropecuária nacional, emergente nos
rem o espaço definindo regiões e construindo anos de 1990 do século passado.
cadeias produtivas agroindustriais, seja para o Assim sendo, a agropecuária brasileira passa a ser
mercado interno, seja para exportação ( figura cada vez mais, e, sistematicamente, pautada por
1). O Cartograma 2 mostra como os municípios lógicas antes comuns apenas aos outros setores
brasileiros geram renda por meio da integração da economia e o imperativo da competitividade
dos setores primário (agricultura), secundário apodera-se da produção e da logística de distri-
(indústria) e terciário (serviços) ( figura 2). O buição em todas as suas etapas, ressaltando aí
Cartograma 3 mostra a ocorrência de ativida- os mecanismos financeiros, econômicos e, prin-
des simultâneas à agricultura que geram renda cipalmente, os inúmeros avanços tecnológicos
para o produtor fora do estabelecimento rural, que permitiram aos agentes hegemônicos articu-
sendo já essa uma característica do rural em larem-se e estruturarem-se para atender tanto ao
quase todo o País ( figura 3). mercado interno quanto ao mercado externo8(11).
Figura 1. Dimensões do espaço regional sob a ótica dos fluxos produtivos agroindustriais
Fonte: IBGE8(293).
Fonte: IBGE8(250).
Fonte: IBGE8(251).
a probabilidade de destruição dos sistemas pro- familiares que se torna sócia de um empre-
dutivos é extremamente alta. endedor privado com experiência agroin-
Finalmente, à direita, propomos uma dustrial/comercial, integrando a produção
construção nova, com mediação comercial- e a apropriação dos lucros, aportando tec-
-financeira e autocoordenação dos produ- nologia de produção e de comercialização.
tores rurais. Nossa fonte de inspiração é o A permanência do apoio até a primeira su-
modelo PPPC10 – Parceira Público-Privada cessão geracional da agricultura familiar é a
Comunitária – testado em vários sistemas chave do sucesso desse modelo, permitindo
produtivos no Acre, destacando-se o em- a elevação do conhecimento técnico (filhos
preendimento agroindustrial de pescado de agricultores) sem perda do conhecimento
e rações. Nesse caminho, o Estado apoia tácito (dos agricultores e assentados).
e fomenta a cooperativa dos agricultores
Outra forma de incrementar o orçamento à revolução verde. Ali foi desenvolvida uma
da reforma agrária seria uma eventual par- plataforma que combinava métodos cien-
ceria do Incra com a Receita Federal na fis- tificamente comprovados, conhecimentos
calização do Imposto Territorial Rural que autóctones e sabedoria tradicional.
poderia elevar a arrecadação deste tributo,
de acordo com o Sindicato Nacional dos Os objetivos iniciais da agricultura sustentá-
Peritos Federais Agrários, de cerca de R$ vel gerida pela comunidade eram proporcionar
850 milhões para cerca de R$ 8,3 bilhões. Se alimentos saudáveis, colheitas saudáveis, solo
10% destes recursos fossem destinados ao saudável e vida saudável. As práticas de manejo
Incra, já haveria um aumento orçamentário sem pesticidas e conservação do solo foram in-
de mais de R$ 800 milhões27. troduzidas por meio de Escolas de Campo para
A transformação do Funmirad, um Agricultores (FFS), onde os próprios fazendeiros
fundo contábil, em um Fundo Nacional de podiam tomar suas próprias decisões sobre as
Desenvolvimento Agrário (FNDA) como abordagens à gestão. As instituições locais fo-
um fundo especial contábil de natureza fi- ram a chave para o sucesso da transição. Elas
nanceira, vinculado ao Incra, pode garantir abrangiam grupos de autoajuda, federações
ainda uma relativa autonomia da autarquia municipais de fazendeiros (reunindo todos os
em relação ao orçamento da União livran- fazendeiros praticantes da agricultura sustentá-
do-a dos constrangimentos impostos pela vel, cada domicílio sendo representado por um
Emenda Constitucional nº 95 e dos suces- homem e uma mulher), e a federação distrital de
sivos ajustes fiscais que todos os últimos fazendeiros. O primeiro investimento foi na for-
governos fizeram. Esse fundo poderia ser mação da instituição. Então, quando a platafor-
turbinado pelo uso das áreas preservadas ma ficou pronta, foi provido apoio para a criação
em assentamentos no mercado de cotas de de capacidade produtiva. Não havia subsídios
reserva ambiental e crédito de carbono. aos insumos. Na CMSA, todos os insumos são
internalizados, de modo que o custo do cultivo é
reduzido drasticamente. O grosso da produção
Um paradigma para o é destinado a assegurar primeiro a alimentação
futuro local. O excedente da produção é vendido a mer-
cados próximos e a nichos de mercado com pre-
É preciso buscar outros paradigmas sociais ço elevado, como produtos isentos de pesticidas.
que não os dos EUA ou da Europa. Kerala, Todos os elementos essenciais, como adminis-
província indiana com população seme- tração de programas e ampliações, são liderados
lhante à do Brasil e com forte influência do pelas comunidades29(39).
Partido Comunista Indiano na construção
de suas políticas públicas, apresenta os me- Outro exemplo importante de transição que
lhores indicadores sociais da Índia, mesmo merece ser mencionado é o caso de Cuba.
sem uma economia robusta. Alguns números Quando do colapso soviético, o País tinha
apresentados: 95% de taxa de alfabetização 57% de sua demanda de alimentos aten-
(61% no resto da Índia); expectativa de vida dida pelo exterior com 30% de suas terras
de 75/78 anos (63 na Índia); um índice de 12 agriculturáveis dedicadas exclusivamente à
a 14 de mortalidade infantil a cada mil nasci- cana-de-açúcar. Cuba não possuía soberania
dos vivos (58 no restante do País)28. alimentar e era completamente dependen-
Ainda na Índia, temos o modelo de agri- te do comércio exterior. O País montou um
cultura sustentável gerida pela comuni- sistema baseado em cooperativas de créditos
dade em Andhra Pradesh em que 300 mil e serviços e promoveu uma mudança radical
fazendeiros fizeram uma opção alternativa na forma de abordar a agricultura com um
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