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O plantão no domingo de manhã estava muito tranquilo, poucos pacientes, queixas simples...

o
ambiente estava muito sereno, inclusive quando o próximo paciente adentrou no consultório,
com queixa de dor precordial: era um senhor, de 63 anos, obeso, face simpática e,
aparentemente muito católico (com muitos terços no pescoço e mãos e camisa com frases e
imagens religiosas). Estava com a esposa como acompanhante, e relatava que na noite anterior
e na manhã seguinte (durante a missa) sentiu uma dor em pontada e estava preocupado. O
médico realizou anamnese, o tranquilizou e medicou.

Cerca de 30 min, o enfermeiro de plantou solicitou que o médico checasse um paciente da sala
amarela. Estávamos a caminho de lá, passando na recepção, quando a esposa do paciente que
havíamos atendido previamente nos puxou e nos chamou para conversar.

De pronto, ela já iniciou a conversa, relatando que seu marido era muito ciumento, que ele
estava na UPA por ciúmes dela, que ele era doente, que ela não fazia nada errado, saía apenas
com ele... Muita informação, num fluxo muito curto de tempo. Eu estava ainda atordoada,
quando ela afastou a gola da camisa e lateralizou o pescoço “está vendo minha filha? Ele tentou
me matar, semana passada”, falou enquanto apontava para diversos hematomas na região
cervical.

Ainda mais chocada, continuei a ouvi-la. Ela nos contou (entre várias outras informações ditas
às pressas por medo de seu marido a vê-la conversando conosco) que ele à ameaçava com “facas
e machados”, que ele a traia, não gostava de vê-la se arrumando e tinha raiva de sua vaidade.
Por seu comportamento agressivo, ela evitava sair com outras pessoas. Conversamos durante
cerca de 20 minutos.

Como mulher, me doeu profundamente ver outra de mim em um estado de abuso, físico e
psicológico, tão intenso como aquele. Me doeu ver uma mulher tão viva, vaidosa, jovem (apesar
de seus 71 anos), morrer todos os dias por causa de um homem que não aceitava sua força,
vivacidade e independência. Dói, ainda, saber que tantas outras como dona Severina, morrem
todos os dias apenas por serem mulheres. Dói saber que nossa existência já nos põe em risco.

Dói ver na minha frente o abandono de uma mulher idosa em situação de abuso, vítima da forma
mais violenta de machismo, frente a uma sociedade inerte, que “lava suas mãos” e chega a
naturalizar esse tipo de situação. Dói ser aquela pessoa, desconhecida, que uma senhora
chamou no meio de uma recepção de uma UPA para pedir socorro, tamanho era seu desespero.
E doeu não saber como ajudá-la, mas saber que era minha responsabilidade fazer alguma coisa.

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