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A Marioneta e o Anão
O Cristianismo entre Perversão e Subversão
Tradução de
Carlos Correia Monteiro de Oliveira
Argumentos
ín d ice
N otas
1. Nota do Tradutor. Aqui, por motivos que até nos parecem plausíveis —
estamos ainda no início da Introdução —, as edições francesa e alemâ, nomea
damente, suprimiram uma extensa passagem publicada na edição inglesa, arti
culada ao desenvolvimento do pensamento hegeliano. Achámos por bem
incluí-la para os leitores portugueses mais interessados.
Moderna, por muito que admiremos a arte, deixámos há muito de nos ajoe
lharmos perante ela — e o mesmo pode dizer-se da religião.
Hoje, vivemos (em) a tensão apontada por Hegel talvez mais ainda do
que os seus próprios contemporâneos. Quando Hegel escreve: «É uma
tolice moderna querer alterar um sistema ético corrupto, a sua constitui
ção e legislação, sem mudar a religião, ter uma revolução sem uma re
forma» [G. W. F. Hegel, Enzyklopaedie der philosophischen Wissen-
schaften, Hamburgo, Felix Meiner Verlag, 1959, p. 436], está a anunciar
a necessidade daquilo que Mao chamou de «revolução cultural» como
condição para o sucesso de uma revolução social. Não será o que acon
tece hoje: a revolução (tecnológica) sem nenhuma outra reforma funda
mental? A tensão básica não se situa tanto entre razão e sentimento, mas
mais entre o conhecimento e a inconfessada crença encarnada no ritual
exterior — a situação muitas vezes descrita nos termos da razão cínica,
cuja fórmula, numa inversão da fórmula marxista, foi proposta há déca
das por Peter Sloterdijk: «Eu sei o que estou a fazer, mas, não obstante,
continuo a fazê-lo...» Contudo, esta fórmula não é tão clara como pare
ce — deve ser completada por: «... porque não sei e m q u e c r e i o ».
N otas
1. Ver F. W. J. Schelling, The Ages o f the World Albany, SUNY Press, 2000.
2. G. K. Chesterton, Orthodoxy, São Francisco, Ignatius Press, 1995, p. 139.
3. Ibid., p. 145.
4. Ibid.
5. Ibid.
6. Ver a análise pormenorizada de William Klassen em Judas. Betrayer or
Friend o f Jesus?, Minneapolis, Fortress Press, 1996.
7. Sõren Kierkegaard, Fear and Trembling, Princeton, Princeton University
Press, 1983, p. 115 (ed. port.: Temor e Tremor, Guimarães Editores, 1959).
8. Chesterton, op. cit., p. 138.
9. Darian Leader, Stealing the Mona Lisa: What Art Stops Us from Seeing,
Londres, Faber and Faber, 2002, pp. 38-39.
10. «Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam
nus» (Génesis, 3: 7). O que poderá isto significar a não ser que os olhos de Adão
e Eva se abriram pelo facto de os seus corpos estarem a ser olhados"! Quando
sei que estou nu, isso significa que sei que estou exposto ao olhar do Outro.
11. C. S. Lewis, Surprised by Joy, Londres, Fontana Books, 1977, pp. 174-175.
12. Citado em Orville Schell, Virtual Tibet, Nova Iorque, Henry Holt and
Company, 2000, p. 80.
13. Brian A. Victoria, Zen at War, Nova Iorque, Weatherhilt, 1998.
14. Shaku Soen, cit. ibid., p. 29.
15. Victoria, cit. ibid., p. 50.
16. Seki Seisetsu, cit. ibid., p. 113.
17. Fueoka Seisen, cit. ibid., p. 100.
18. Cit. ibid. p. 103.
19. Em que momento surge a histeria feminina? Numa primeira abordagem,
pode parecer que ela aparece quando uma mulher é tratada unicamente como
44 Slavoj Zizek
ponto (a causa pela qual ambos lutam, a via que ambos decidi
ram seguir).
O resultado básico da subjectivação globalizada não é o desa
parecimento da «realidade objectiva», mas o da própria subjecti
vidade, que se torna uma fantasia fútil, ao passo que a realidade
social prossegue o seu caminho. Aqui, somos tentados a parafra
sear a célebre resposta de Winston Smith quando, ao ser interro
gado, pôs em questão a existência do Big Brother — «Tu é que
não existes!»: a única resposta apropriada às dúvidas pós-
-modemas quanto à existência do grande Outro ideológico con
siste em dizer que é o próprio sujeito que não existe... Não ad
mira que a nossa época — cuja proposição de base está resumida
exemplarmente no título do recente best-seller de Phillip
McGraw, SelfM atters, que nos ensina como «recriar inteiramen
te toda a nossa vida a partir do interior» — encontre o seu com
plemento lógico em títulos como How To Disappear Completely,
manuais que nos explicam como apagar todos os vestígios da
nossa existência precedente e «reinventar» a nossa subjectivi
dade de uma ponta à outra7. É aí que o zen propriamente dito di
verge da sua versão ocidental «acomodatícia»: a verdadeira gran
deza do zen consiste em não poder ser reduzido a uma «viagem
interior» ao nosso «verdadeiro eu»; a finalidade da meditação
zen consiste, pelo contrário, em esvaziar totalmente o «eu», em
aceitar que o «eu» não existe e que não há nenhuma verdade in
terior para descobrir. Aquilo que o budismo ocidental não está
pronto a aceitar é, por conseguinte, que a vítima fundamental da
«viagem ao interior do nosso verdadeiro eu» seja o próprio «eu».
De modo mais geral, não encontramos a mesma lição em A Dia
léctica da Razão, de Adorno e Horkheimer? A vítima fundamen
tal do positivismo não são as noções metafísicas confusas, mas
os próprios factos; o prosseguimento radical da secularização, o
movimento para a nossa vida no mundo, transformam essa pró
pria vida num processo anémico «abstracto». Não há obra como
a de Sade em que esta inversão paradoxal seja mais tangível; ne
la, a afirmação liberta de qualquer constrangimento de uma se
xualidade privada dos últimos vestígios da transcendência espi-
A Marioneta e o Anão 51
Não deixa de ser significativo que esta tenha sido a cena cen
surada — os três minutos que dura a canção — quando o filme
foi projectado na ex-Jugoslávia, no final da década de 1960.
O anónimo censor socialista provou assim que compreendera o
poder verdadeiramente ameaçador que a ideologia católica podia
representar: longe de ser a religião do sacrifício, da renúncia aos
prazeres terrestres (em contraste com a afirmação pagã da vida
das paixões), o cristianismo propõe um estratagema sinuoso pa
ra satisfazer os nossos desejos sem termos de pagar um preço
por eles, para desfrutar da vida sem recear a decomposição e a
dor debilitante que nos espera no fim. Se prosseguirmos nesta via
até ao fim, será até possível dizer que essa é a função suprema do
sacrifício de Cristo: podeis ser indulgentes com os vossos dese
jo s e gozar a vida, pois eu paguei por isso\ Deste modo, existe
uma parte de verdade na charada sobre a prece ideal que uma jo
vem cristã deve endereçar à Virgem Maria: «Vós, que concebes
tes sem pecado, deixai-me pecar sem conceber!» No funciona
mento perverso do cristianismo, a religião é efectivamente
evocada como um baluarte eficaz que nos permite gozar a vida
impunemente.
A impressão de não ter um preço a pagar é, evidentemente, en
ganadora: pagamos efectivamente com o nosso desejo. Isto sig
nifica que, ao sucumbirmos a esse apelo perverso, compromete
mos o nosso desejo. Todos conhecemos o imenso alívio que
sentimos quando, após um longo período de tensão ou de absti
nência, temos finalmente o direito de «nos deixarmos ir», de sa
borear prazeres até aí proibidos. O alívio experimentado quando
podemos finalmente «fazer o que queremos» talvez seja o pró
prio modelo (não da realização, mas) do compromisso com o
nosso desejo. Isso significa que, para Lacan, o estatuto do dese
jo é intrinsecamente ético: «Não cedas sobre o teu desejo» equi
vale finalmente a «Cumpre o teu dever». E é isso que a versão
perversa do cristianismo nos incita a fazer: traí o vosso desejo,
cedei no essencial, naquilo que conta verdadeiramente, e pode
reis ter todos os pequenos prazeres com que sonhais no fundo
do coração! Ou, como diríamos hoje: renunciai ao casamento,
A Marioneta e o Anão 63
N otas
* Para Lacan, o sujeito não tem uma relação íntima com o seu corpo, mas «ex-
-time» — relaciona-se com ele como com um atributo, o que é aliás traduzido
na linguagem quando dizemos que temos um corpo e não que somos o corpo.
(N. T.)
A Marioneta e o Anão 77
«ter direito a usufruir de qualquer coisa», mesmo que ela não es
teja na nossa posse. Gozar de um bem também significa ter o seu
usufruto. [Quando, por exemplo, o proprietário de uma grande ca
sa garante a um antigo criado fiel o direito de permanecer gratui
tamente no seu apartamento até morrer, mesmo que legue a casa
aos seus descendentes, diz-se que o criado tem o usufruto (frui)
do seu apartamento.] O gozo do Outro é, deste modo, o direito
que ele tem de «usufruir» (jouir) de mim como objecto sexual. É
o que está em jogo naquilo que Lacan reconstrói como o impera
tivo kantiano da obra de Sade: «Qualquer pessoa pode dizer-me:
“Tenho o direito de usufruir (gozar) de qualquer parte do teu cor
po da maneira que mais me agrade” .» Apesar de isto parecer uma
«posição feminina» (as mulheres como usufruto dos homens), es
se Outro é fundamentalmente a Mãe pré-edipiana (por isso, Lacan
chama a atenção para o facto de, não obstante a «perversidade»
do universo sadiano, a mãe permanecer proibida nesse universo).
Através da castração simbólica, esse usufruto invasor da Mãe (do
Outro) é então ultrapassado (no preciso sentido hegeliano do ter
mo Aufhebung) num usufruto fálico localizado, que é, precisa
mente, um usufruto sob a condição do desejo, ou seja, tal como
surge depois da castração simbólica. Quando Lacan fala de «go
zo fálico», nunca nos devemos esquecer que o falo é o significan
te da castração — o gozo fálico é, portanto, o usufruto na condi
ção da castração simbólica que abre e apoia o espaço do desejo.
Na mesma ordem de ideias, Richard Boothby interpreta o ob
jecto pequeno a como o resto da Coisa materna no interior do do
mínio da lei simbólica paterna: visto que o confronto directo com
a Coisa materna, o seu aterrador desejo, é filtrado através do ecrã
da lei paterna, «cada encarnação do pequeno objecto a permite
ao sujeito não fornecer uma resposta definitiva à questão do de
sejo do Outro, à dimensão impensável do outro imaginário que
emerge primitivamente como das Ding, mas fazer passar essa
questão para o desenrolamento de um processo simbólico»4.
O problema com Boothby é que ele aprova esta «edipianização»
ou, mais precisamente, considera que Lacan a aprova: «A função
da metáfora paterna consiste em submeter o desejo da Mãe (que
A Marioneta e o Anão 79
ber até que ponto um homem pode suportar a verdade sem a di
luir ou falsear; por outro, a ideia «pós-modema» de que a apa
rência tem mais valor do que a realidade chã, o que equivale a di
zer, em última análise, que não existe Realidade última, mas
simplesmente um jogo entre uma multiplicidade de aparências,
de modo que deveríamos abandonar a própria oposição entre rea
lidade e aparência — a grandeza do homem estando na sua capa
cidade para dar prioridade à aparência estética brilhante sobre a
realidade cinzenta. Voltamos a encontrar aqui, para retomar a ter
minologia de Badiou, a paixão pelo Real contra a paixão pela
aparência. Mas como podemos ler conjuntamente estas duas po
sições opostas? Estará Nietzsche a ser simplesmente incoerente,
oscilando entre dois pontos de vista que se excluem mutuamen
te, ou haverá uma «terceira via»? Por outras palavras: e se as duas
ideias opostas (paixão pelo Real/paixão pela aparência) tomas
sem palpável o combate de Nietzsche, a sua incapacidade para ar
ticular a posição «justa» cuja formulação lhe escapou? Para vol
tar ao exemplo de Lévi-Strauss, agora deveria ser claro em que
consiste esta posição: tudo não é só um jogo entre as aparências,
há um Real; contudo, esse Real não é a Coisa inacessível mas a
distância que impossibilita o nosso acesso a essa Coisa, o «ro
chedo» do antagonismo que deforma a nossa visão do objecto
apreendido através de uma perspectiva parcial. E, mais uma vez,
a «verdade» não é o estado «real» das coisas, isto é, a visão «di
recta» do objecto sem perspectiva deformadora, mas o próprio
Real do antagonismo que causa a perspectiva deformadora. O lu
gar da verdade não é a maneira como «as coisas são realmente em
si mesmas», para lá das deformações devidas à perspectiva; é a
própria distância, a passagem que separa uma perspectiva de ou
tra (na ocorrência, um antagonismo social), que torna as duas
perspectivas radicalmente incomensuráveis. O «Real como im
possível» é a causa da impossibilidade de alcançar uma visão
«neutra» do objecto, não deformada pela perspectiva. Existe uma
verdade, tudo não é relativo — mas essa verdade é a verdade da
deformação devida à perspectiva como tal, não a verdade defor
mada pela visão parcial devida a uma perspectiva unilateral.
98 Slavoj Zizek
N otas
para que fiquem Da, e o seu oposto, a exigência xenófoba para que per
maneçam Fort, a boa distância.
3. Citado em Michio Kaku, Visions, Nova Iorque, Anchor Books,
1997, p. 64.
4. Richard Boothby, Freud as a Philosopher, Nova Iorque, Routle-
dge, 2002, p. 272.
5. Ibid., p. 264.
6. Ibid, p. 287.
7. Alain Badiou, Le Siècle, Paris, Seuil, 2004.
8. Georges Bataille, UÉrotisme, Paris, Minuit, 1957, p. 117.
9. Jacques Rancière, La Mésentente, Paris, Galilée, 1995.
10. O que é então a diferença minimal? No London Aquarium em
South Bank, há uma piscina que, à primeira vista, parece vazia, con
tendo apenas água suja, cheia de partículas de pó quase transparentes.
No entanto, se olharmos mais atentamente, veremos que essas partícu
las de pó são minúsculos animais que vivem nas profundezas do ocea
no — criaturas quase transparentes e «imateriais» que podem sobrevi
ver sob grande pressão, abrindo-se completamente ao ambiente que as
rodeia (a água), plenamente permeáveis, a sua inteira materialidade
consistindo numa fina camada que parece um desenho tridimensional
dos seus contornos, quase desprovidas de qualquer substância
material, flutuando livremente na água, sem lhe oferecer nenhuma
resistência.
11. Ernesto Laclau, Chantal Mouffe, Hegemony and Socialist Stra-
tegy, Londres, Verso, 1985.
12. Richard Keamey, Strangers, Gods and Monsters, Londres, Rout-
ledge, 2003, p. 99.
13. Joseph Campbell, The Power ofMyth, Nova Iorque, Doubleday,
1988, p. 222.
14. Bruce Fink, «Knowledge and Jouissance», in Barnard e Fink,
eds., Reading Seminar XX, Albany, Suny Press, 2002, p. 40.
15. Op. cit., p. 40.
16. Suzanne Barnard, «Tongues of Angels», in Barnard e Fink, op.
cit., p. 178.
17. «A enfermeira torna-se o paciente e vice-versa. O silêncio de Vo-
gler forma um ecrã contra o qual Alma projecta aquilo que uma disci
plina chamará de fantasmas e outra de confissões. Por fim, a actriz
toma-se um espectador e a enfermeira um performer» (Paisley Li-
vingston, Ingmar Bergman and the Rituais ofArt, Ithaca, Comell Uni-
versity Press, 1982, p. 206.) Nesta citação, a utilização do nome e do
apelido é inteiramente justificada: como sujeito-paciente histérico, Al
A Marioneta e o Anão 113
nas de milhares de pessoas que lhe reclamavam armas para atacar os al
baneses do Kosovo, Milosevic respondeu: «Não vos ouço bem!» Será
esta a origem da guerra na pós-Jugoslávia: o Líder que não ouve bem
as violentas exigências da multidão? Claro, o que Milosevic obteve da
multidão foi, como sempre, a sua própria mensagem, que ele (ainda)
não estava disposto a reconhecer — a assumir publicamente — sob a
sua verdadeira forma de violência étnica.
30. Tim Kendall, Sylvia Plath, A Criticai Study, Londres, Faber and
Faber, 2001, p. 95.
31. Roberto Harrari, Lacan ’s Seminar «on Arvciety». An Introduction,
Nova Iorque, The Other Press, 2001, p. 212.
C apítulo IV
tasma. Ela é incapaz de assumir o acto que faz dela uma nova
Medeia: de certo modo, continuar a viver como um fantasma
(que não tem consciência de o ser) é o sinal de um compromisso
ético, da sua incapacidade para enfrentar o acto terrível constitu
tivo da sua subjectividade. Esta inversão não é simplesmente
uma inversão simétrica graças à qual, em vez de estarmos peran
te fantasmas que vêm incomodar pessoas reais que aparecem à
sua frente, são pessoas reais que vêm incomodar fantasmas, sur
gindo diante deles. Não será antes a situação em que nos encon
tramos quando, para parafrasear Paulo, não estamos vivos na
nossa «verdadeira» vida? Não poderemos dizer que, neste caso,
a promessa da vida real nos assombra como um espectro? Hoje
somos como os filósofos gregos anêmicos que acolheram com
uma gargalhada irónica as palavras de Paulo sobre a ressurrei
ção. Neste horizonte, o único Absoluto aceitável é um Absoluto
negativo: o Mal absoluto, cuja figura paradigmática é hoje o Ho
locausto. A evocação do Holocausto funciona como um aviso
destinado a pôr-nos em guarda contra os resultados de uma su
bordinação da Vida a um qualquer desígnio superior.
O que caracteriza o universo humano é a complicação da rela
ção entre os vivos e a morte: como escreveu Freud a propósito
do assassínio do pai primitivo, o pai assassinado regressa mais
poderoso que nunca sob a forma da autoridade simbólica «vir
tual». Aqui, o estranho é a distância que se abre com a redupli-
cação da vida e da morte no plano simbólico, devido à não-
-coincidência dos dois círculos: temos pessoas que ainda estão
vivas, apesar de já simbolicamente mortas, e pessoas que já es
tão mortas, apesar de simbolicamente vivas. O duplo sentido da
palavra «espírito», que tanto pode designar a espiritualidade «pu
ra» como um fantasma, é, assim, uma necessidade estrutural: não
há (puros) espíritos sem o seu suplemento obsceno, os fantas
mas, sem a sua pseudomaterialidade espectral, sem os «mortos-
- vi vos». Aqui, a categoria do «não-morto» é fundamental: os
não-mortos são aqueles que não estão mortos, apesar de já não
estarem vivos, e que continuam a assombrar-nos. Neste caso, o
problema fundamental é saber como impedir os mortos de re
126 Slavoj Zizek
Agamben sublinha, aju sto título, que esta posição nada tem a
ver com uma legitimação das relações de força existentes, do ti
po: «Continuai sendo o que sois, continuai no lugar para o qual
fostes chamados (mais precisamente, o lugar do escravo, do ju
deu...) e conservai apenas uma certa distância em relação a ele,
em relação ao que sois.» Ela também não tem nada a ver com a
versão clássica da sabedoria oriental que impõe a indiferença em
relação às coisas do mundo, no espírito da Bhagavad-Guitá:
«Agi no mundo como se não fôsseis vós a agir, como se as con
sequências dos vossos actos não tivessem importância.» A dife
rença fundamental é que, em Paulo, a distância não é a de um ob
servador desprendido, consciente da nulidade das paixões
terrestres, mas a de um combatente totalmente empenhado que
ignora as diferenças que nada têm a ver com o combate a travar.
Esta posição também é muito diferente da atitude do como se,
que encontramos em pensadores como Bentham e Vaihinger —
não se trata da denegação fetichista que pertence à ordem sim
bólica («apesar de saber perfeitamente que o juiz não é um ho
mem honesto, trato-o, a ele, representante da Lei, como se o fos
se...» ), mas da denegação do próprio domínio simbólico:
sirvo-me das obrigações simbólicas, mas não estou, performati-
vamente, atado por elas. Aqui, contudo, Agamben lê esta sus
140 Slavoj Zizek
N otas
Job não é uma vítima paciente, que suporta as suas provas com
uma fé inabalável em Deus. Pelo contrário, ele não pára de se
queixar e recusa o seu destino (como Édipo em Colono, também
interpretado, erradamente, como uma vítima pacientemente re
signada ao seu destino). Quando Job recebe a visita dos seus três
amigos teólogos, a linha de argumentação deles é a clássica so
fistica ideológica (se sofres, deves, por definição, ter feito qual
quer coisa de mal, pois Deus é justo). Contudo, a sua argumen
tação não se limita a afirmar que Job deve ser culpado, de uma
ou outra maneira; o que está mais radicalmente em jogo é o sen
tido (ou a falta de sentido) dos sofrimentos de Job. Como Édipo
em Colono, Job insiste que os seus sofrimentos são completa
mente desprovidos de sentido; por isso, Job «sustenta a sua inte
gridade e inocência» (título do capítulo 27)2. Deste ponto de vis
ta, o Livro de Job talvez seja o primeiro caso exemplar da crítica
da ideologia na história da humanidade: ele põe a nu as estraté
gias discursivas básicas da legitimação do sofrimento. A digni
dade propriamente ética de Job está na maneira como ele rejeita
sistematicamente a ideia de que o seu sofrimento possa ter algum
sentido — quer se trate de um castigo pelos seus pecados passa
dos, quer se trate de um teste à sua fé — contra os três teólogos
que lhe propõem todo o tipo de sentidos possíveis. De modo sur
preendente, Deus acaba por lhe dar razão ao afirmar que tudo o
que Job diz é verdadeiro, ao passo que os três teólogos só disse
ram mentiras3.
foi que, nas suas calamidades, não era ele, mas o próprio Deus
que estava a ser efectivamente posto à prova, e que essa prova se
saldara por um fracasso lamentável. Somos até tentados a arris
car uma leitura radicalmente anacrónica: Job previu o sofrimen
to por vir de Deus — «hoje é a minha vez, mas amanhã será a
vez do teu próprio filho e não haverá ninguém para intervir por
ele. Aquilo que vês hoje em mim é a prefiguração da tua própria
paixão!»4.
Dado que a função de suplemento obsceno do superego da Lei
(divina) consiste em mascarar esta impotência do grande Outro,
e dado que o cristianismo revela essa impotência, ele é, muito
consequentemente, a primeira (e única) religião a abandonar ra
dicalmente o corte entre o texto público/oficial e o seu suple
mento iniciático obsceno: no cristianismo não há história não di
ta, história escondida. Neste sentido, o cristianismo é a religião
da Revelação: nele, tudo é revelado, a sua mensagem pública não
é acompanhada por nenhum suplemento obsceno do superego.
Nas religiões gregas e romanas da Antiguidade, o texto público
era sempre completado por ritos iniciáticos secretos e festas or-
gíacas; por outro lado, todas as tentativas para tratar o cristianis
mo da mesma maneira (para descobrir o «ensinamento secreto do
Cristo» codificado algures no Novo Testamento ou exposto nos
evangelhos apócrifos) acabam por reinscrevê-lo, de modo heré
tico, na tradição gnóstica pagã.
A propósito do cristianismo como «religião revelada», temos
portanto de colocar a inevitável questão idiota: o que é efectiva
mente revelado nele? Não desvelam todas as religiões um misté
rio, através dos profetas que transmitem a mensagem divina aos
homens? Mesmo os que sublinham o carácter impenetrável do
deus obscuro, dão a entender que existe um segredo que resiste à
revelação e, para os gnósticos, esse mistério é revelado a alguns
eleitos durante uma cerimônia iniciática. Não deixa de ser signi
ficativo que as reinscrições gnósticas do cristianismo insistam
precisamente na presença de uma mensagem escondida deste ti
po, a ser decifrada no texto oficial cristão. Portanto, o que é re
velado no cristianismo não é só todo o conteúdo, mas, mais pre-
A Marioneta e o Anão 157
tificar de que tudo está correcto e pronto para ura futuro visiona-
mento. Neste caso, o paradoxo é que vejo o filme, e até muito
atentamente, mas numa espécie de estado suspenso, sem estar
realmente a segui-lo — tudo o que me interessa é o facto de ter
tudo efectivamente ali, de a gravação correr bem. Não encontra
mos algo semelhante numa certa economia sexual perversa em
que realizo o acto apenas para me assegurar de que poderei
repeti-lo futuramente: mesmo que o acto seja, na realidade, in-
discemível do acto «normal» para alcançar o prazer, como um
fim em si, a economia libidinal subjacente é completamente di
ferente.
Portanto, tomamos a encontrar aqui a lógica da determinação
reflexiva, em que o acto de ver um filme aparece como a deter
minação da sua oposição. Por outras palavras, a estrutura é, mais
uma vez, a da fita de Moebius: se progredirmos suficientemente
longe por um dos lados da fita, alcançamos novamente o ponto
de partida (ver o filme, praticar um acto homossexual), mas si
tuado no lado oposto da fita. Lewis Carroll tinha portanto razão:
uma carta pode representar um território, na medida em que o
modelo/carta é a própria coisa na determinação da sua oposição,
na medida em que um ecrã invisível garante que a coisa não é to
mada por aquilo que ela é. Neste sentido preciso, a diferença
«primordial» não está entre as próprias coisas, nem entre elas e
os seus sinais, mas entre a coisa e o vazio de um ecrã invisível
que distorce a nossa percepção dela, de modo que não tomamos
a coisa por aquilo que ela é. O movimento das coisas para os seus
sinais não é o da substituição da coisa pelo seu sinal, mas o da
própria coisa tomando-se o sinal (não outra coisa, mas) de si
mesma, o vazio no seu próprio núcleo18. Esta distância também
pode ser a distância que separa os sonhos da realidade: quando,
a meio da noite, sonho que uma pedra pesada ou um animal sen
tado no meu peito me está a causar dor, este sonho reage, obvia
mente, ao facto de eu ter realmente uma dor no peito — o sonho
inventa a narrativa para relatar a dor. Contudo, neste caso, a as
túcia não está só em inventar uma narrativa, ela é mais radical: é
possível que, enquanto sinto a dor no peito, esteja a sonhar que
A Marioneta e o Anão 175
Notas
A IDEOLOGIA CONTEMPORÁNEA
a experiência do Outro tal como ele é «em si», mas para nos aper
cebermos de que não há qualquer mistério atrás da máscara (a su
perficie enganadora) do Outro. A idolatria suprema não é a divi
nização da máscara, da própria imagem, mas a crença de que
existe um conteúdo positivo escondido atrás da máscara15.
O que a insistência sobre a multitude e a diversidade dissimula
é, evidentemente, a monotonia deletéria da vida mundial contem
poránea. No seu incisivo pequeno livro sobre Deleuze16, Alain
Badiou chamou a atenção para a maneira como Deleuze, até mais
do que qualquer outro filósofo, redescobriu e repetiu continua
mente a mesma matriz conceptual, da filosofia à literatura e ao ci
nema. A ironia deste discernimento é que, regra geral, se trata da
crítica clássica endereçada a Hegel — qualquer que seja o tema
abordado, Hegel desenvencilha-se sempre para desenvolvê-lo sob
os auspícios exclusivos do processo dialéctico. Não haverá aqui
uma espécie de justiça poética no facto de Deleuze, o anti-
-hegeliano por excelência, ser acusado precisamente do mesmo
defeito que Hegel? Haverá algo mais monocórdico na sua tonali
dade do que a poesia deleuziana da vida contemporânea como
proliferação descentrada de multiplicidades (multitudes), de dife
renças não totalizáveis?
O que esta monocórdica tonalidade absorve (e, por isso mes
mo, mantém) é a pluralidade das reinterpretações e dos desvios a
que é submetida a textura ideológica básica. O Protegido (2000),
de Night Shyamalan, com Bruce Willis, é, devido à oposição ca
racterística (segundo Deleuze) entre forma e fundo, o paradigma
da configuração ideológica contemporânea. Quanto ao conteúdo,
não podemos deixar de julgar este filme como infantil e ridículo.
O herói descobre que é actualmente, na vida real, um persona
gem de banda desenhada, portanto intangível e invencível...
M as, quanto à forma, trata-se, em compensação, de um drama
psicológico finamente dirigido, que difunde um ambiente suave
mente melancólico e descreve a tristeza de um herói para quem
é dramático reconhecer o que é na realidade, qual a sua vocação,
o seu mandato simbólico17. Isto está muito bem ilustrado na ce
na em que o seu próprio filho quer disparar sobre ele para lhe
196 Slavoj Zizek
supérflua, ou, pelo menos, acaba por reduzi-la a uma tarefa se
cundária. Nesta segunda leitura, «Auschwitz» toma-se o nome
daquilo que, em certos aspectos, tinha de acontecer, daquilo cuja
«possibilidade essencial» estava inscrita estruturalmente na ma
triz do processo ocidental: mais cedo ou mais tarde, as duas ver
tentes do eixo deviam confundir-se.
Agamben participa assim num dos preferidos exercícios inte
lectuais preferidos do século xx: como referimos anteriormente,
trata-se da pulsão que impele a transformar qualquer situação em
«catástrofe». Qualquer que fosse a situação, era necessário
descrevê-la como portadora de catástrofe; e quanto melhor ela se
apresentava, mais apelava a esse juízo.
Heidegger denunciou o período actual como o do maior peri
go, a época do niilismo rematado; Adorno e Horkheimer viram-
-na como aquela em que a «dialéctica da razão» alcançava o seu
apogeu no «mundo administrado»; Giorgio Agamben vê nos
campos de concentração do século xx a «verdade» de todo o pro
jecto político ocidental. Lembremos a posição de Horkheimer na
Alemanha Federal durante a década de 1950: enquanto denun
ciava o «eclipse da razão» na sociedade moderna ocidental de
consumo, ao mesmo tempo defendia a dita sociedade como o
único ilhéu de liberdade no oceano do totalitarismo e das ditadu
ras corruptas que enxameavam o mundo inteiro. Era, de certo
modo, uma repetição, num tom mais sério, da famosa fórmula
irónica de Churchill segundo a qual a democracia era o pior re
gime político à excepção de todos os outros: a «sociedade oci
dental administrada» é a barbárie disfarçada de civilização, o cú
mulo da alienação, a desintegração do indivíduo autónomo, etc.,
etc., mas, visto que todos os outros regimes são ainda piores, te
mos porém de a defender... Somos tentados a propor uma leitu
ra radical desta síndrome: e se aquilo que os infelizes intelectuais
não podem suportar é o facto de levarem uma vida basicamente
feliz, tranquila e confortável, pelo que, para justificarem a sua
vocação superior, são obrigados a fabricar um cenário de catás
trofe radical? Aqui, com efeito, Adorno e Horkheimer estão es
tranhamente próximos de Heidegger:
A Marioneta e o Anão 207
1
212 Slavoj Zizek
* O autor joga com o duplo sentido entre a sigla MAD (Mutually Assured Des-
truction) e o termo mad, «louco». (N. T.)
216 Slavoj Zizek
Notas
1. Não admira que os ovos Kinder estejam hoje proibidos nos Estados Uni
dos e que seja preciso importá-los do Canadá (o que triplica o seu custo). Ofi
cialmente, esta medida fundamenta-se no facto de o objecto vendido não cor
responder àquele que é referido pela publicidade. Os ovos Kinder manifestam,
com demasiada clareza, a estrutura interna da mercadoria.
2. Patricia Fumerton, Cultural Aesthetics, Chicago, University of Chicago
Press, 1991, particularmente o capítulo IV, «Consuming the Void».
3. Brian Rotman, Signifying Nothing: The Semiotics o f Zero, Londres, Mac
Millan, 1987.
4. Martin Heidegger, «Das Ding», in Vortraege und Aufsetze, Pfullingen,
Neske, 1954.
A Marioneta e o Anão 231
O que é falso, neste caso, é o facto de a escolha real tal como ela se apresenta
va no final da década de 1980 ser sub-repticiamente reformulada, como se ti
vesse sido: «Ou a desintegração da Jugoslávia em diferentes Estados, ou a con
tinuação da velha Jugoslávia de Tito.» Com a chegada de Milosevic ao poder,
a velha Jugoslávia de Tito estava morta. Face à alternativa «ou repúblicas so
beranas ou uma “Servoslávia”», a única terceira via possível era um verdadei
ro acto político, a reinvenção total de um novo projecto jugoslavo. Ninguém te
ve a capacidade nem a vontade indispensáveis para esse projecto.
32. Bemard Brodie, War and Politi.es, Nova Iorque, MacMillan, 1973,
p. 430-431, citado in Jean-Pierre Dupuy, Pour un catastrophisme éclairé, op.
cit., pp. 208-209.
33. Jean-Pierre Dupuy, Pour un catastrophisme éclairé, op. cit., p. 164.
O itálico é do autor.
34. Os Estados Unidos justificam o seu recurso a ataques preventivos pela
putativa «irracionalidade» dos terroristas. Contrariamente aos comunistas da
Guerra Fria, que procediam a frios cálculos racionais, os terroristas fundamen-
talistas são fanáticos irracionais prontos a fazer explodir toda a Terra... Aqui é
preciso sublinhar, mais do que nunca, que esta figura do inimigo «irracional»
é uma «determinação reflexiva» (como teria dito Hegel) da posição, adoptada
pelos Estados Unidos, de única potência hegemónica mundial.
35. Terry Eagleton, Sweet Vioience, Oxford, Blackwell, 2003.
36. As grandes frases que desempenharam um papel histórico decisivo são,
regra geral, tautologias terra-a-terra — de Rosa Luxemburgo («A liberdade é
sempre a daqueles que pensam de outra maneira») a Mikhail Gorbatchev, com
o seu aviso destinado aos que não estavam prontos para prosseguir a sua polí
tica de perestroika («Os que chegarem tarde de mais serão punidos pela vida»),
O que contou não foi o conteúdo dessas frases, mas simplesmente o seu papel
estrutural. Se a observação de Rosa Luxemburgo tivesse sido proferida por um
crítico liberal da revolução bolchevique, já teria sido esquecida há muito.
37. É de notar a diferença entre esse amor pelo próximo, judeu e cristão, e a
compaixão budista para com o indivíduo que sofre. Esta última não está volta
da para o «próximo» no sentido de um abismo sem fundo do desejo do Outro,
fonte de angústia, mas antes de mais para o sofrimento, que nós, humanos, par
tilhamos com os animais (em virtude da teoria da reencarnação, um homem po
de portanto renascer como animal).
38. Não poderíamos dizer o mesmo das campanhas antiaborto? Não partici
parão da mesma lógica global da vitimação e esta não se estenderá à vida antes
do nascimento?
39. The Polish Wedding [«O Casamento Polaco»], um belo melodrama so
bre as complicações da vida no seio de uma família polaca da classe trabalha
dora em Detroit, contém uma cena que gira em torno desta fórmula, revelando
a sua própria verdade: quando o amigo de Claire Danes lhe pergunta, furioso,
«Que queres de mim?», ela responde «Tudo!», e afasta-se calmamente dele.
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