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A Marioneta e o Anão

O C ristianism o entre P erversão e Subversão


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© Suhrkamp Verlag Frankfurt am Main 2003

Título: A Marioneta e o Anão — O Cristianismo entre Perversão e Subversão


Título original: Die Puppe und der Zwerg (2003)
Autor: Slavoj Zizek
Tradução: Carlos Correia Monteiro de Oliveira
Revisão de texto: Miguel Rodrigues
Capa: Relógio D ’Água Editores sobre fragmento de Corpus Hypercubicus,
1954, de Salvador Dali

© Relógio D ’Água Editores, Novembro de 2006

Composição e paginação: Relógio D ’Água Editores


Impressão: Tipografia Guerra
Depósito Legal n.° 249536/06
( p.
Slavoj Zizek

A Marioneta e o Anão
O Cristianismo entre Perversão e Subversão

Tradução de
Carlos Correia Monteiro de Oliveira

Argumentos
ín d ice

Introdução — A Marioneta Chamada Teologia 9

Capítulo I — Quando o Oriente Encontra o Ocidente 19


Capítulo II — O Romance Empolgante da Ortodoxia 45
Capítulo III — O Desvio do Real — O Real no Cristianismo 75
Capítulo IV — Da Lei ao Amor — Ida... e Volta 117
Capítulo V — A Subtracção Judia e a Subtracção Cristã 151

Epílogo — A Ideologia Contemporânea 181


Introdução

A MARIONETA CHAMADA TEOLOGIA

Hoje, quando a análise do materialismo histórico retrocede,


sendo, de certo modo, praticada clandestinamente e raramente
designada pelo seu nome, e quando assistimos a um prolonga­
mento da dimensão teológica sob a forma do movimento mes­
siânico da «pós-secularização» da desconstrução, é tempo de in­
verter a primeira tese de Walter Benjamín sobre a filosofia da
historia: «A marioneta chamada “teologia” sai sempre vencedo­
ra. Pode confrontar-se, audaciosamente, com qualquer adversá­
rio, desde que ponha ao seu serviço o materialismo histórico,
que, como sabemos, está hoje mirrado e é, de qualquer modo,
instado a manter-se longe da nossa vista.»
Uma possível definição da modernidade é a seguinte: a reli­
gião, que já não está completamente integrada na ordem social
nem identificada a uma forma particular de vida cultural, adqui­
re uma certa autonomia que lhe permite sobreviver enquanto re­
ligião idêntica em culturas diferentes. Este estatuto permite-lhe
globalizar-se: hoje há cristãos, muçulmanos e budistas em todos
os países do mundo. Porém, esta globalização tem um preço: a
religião vê-se assim reduzida a um mero epifenómeno secundá­
rio em relação ao funcionamento profano da totalidade social.
No quadro desta nova ordem mundial, há dois papéis possíveis
para ela: terapêutico ou crítico — ou ajuda os indivíduos a fun­
10 Slavoj Zizek

cionarem cada vez melhor na ordem existente, ou procura


afirmar-se como uma instância crítica e dizer o que está errado
nessa ordem como tal, ou seja, enquanto espaço aberto às vozes
contestatárias — neste último caso, a religião tende a assumir,
como tal, o papel de uma heresia1.

Nos nossos tempos do «politicamente correcto», é sempre de


bom-tom começar com o conjunto de interditos não escritos que
definem as posições que alguém está autorizado a defender.
O primeiro facto a registar quanto às questões religiosas é o da
referência à «espiritualidade profunda» estar de novo na berra: o
materialismo puro e duro está fora de moda, e somos convidados
a mostrar-nos abertos a uma Alteridade radical, para lá do Deus
ontoteológico. Consequentemente, quando questionamos hoje
um intelectual, perguntando-lhe muito directamente: «Deixemo-
-nos de rodeios, vamos aos factos básicos: acredita ou não nal­
guma forma de divino?», ele começará por reagir com um recuo
embaraçado, como se a pergunta fosse demasiado pessoal, de­
masiado indiscreta. Depois, esse recuo será geralmente explica­
do em termos mais «teóricos», com considerações do tipo: «Es­
sa não é a pergunta correcta! Não se trata simplesmente de
acreditar ou não, mas de uma experiência de um certo radicalis­
mo, da capacidade de acolher uma certa dimensão desconhecida,
do modo como a nossa abertura à alteridade radical nos permite
adoptar uma posição ética específica, experimentar uma forma
perturbante de prazer.» Hoje, lidamos com uma forma de crença
«suspensa», uma crença que só existe como algo que não é com­
pletamente reconhecido (publicamente), um segredo pessoal e
obsceno. Contra esta atitude, devemos, mais do que nunca, su­
blinhar que a pergunta, «vulgar», «É ou não verdadeiramente
crente?» é uma questão importante, talvez mais do que nunca.
O que pretendo enfatizar é o seguinte: não só sou um materialis­
ta convicto e penso que o núcleo subversivo do cristianismo tam­
bém é acessível a partir de uma abordagem materialista, como a
minha tese vai ainda muito mais longe: esse núcleo só é acessí­
vel através de uma abordagem materialista; e vice-versa — para
A Marioneta e o Anão 11

se tomar um verdadeiro adepto do materialismo dialéctico, de-


vemos passar pela experiência do cristianismo2.
Contudo, terá havido no passado uma época em que as pessoas
acreditavam «verdadeiramente» de forma directa? Como Robert
Pfaller mostrou em Illusionen der Anderer,[3, a crença directa é
uma verdade assumida de forma completamente subjectiva («Eis
aquilo em que creio!»), um fenómeno moderno que contrasta com
as crenças tradicionais que pressupunham uma certa forma de dis­
tanciamento, como as boas maneiras ou os rituais. As sociedades
pré-modemas não acreditavam directamente, mas através de um
certo distanciamento, e esse foi, digamos, o erro de leitura que os
críticos das Luzes cometeram ao criticarem os mitos «primiti­
vos». Essas críticas começaram por considerar que esta ou aque­
la tribo se julgava directa ou literalmente oriunda de um peixe ou
de um pássaro e rejeitando depois essa crença como estúpida, «fe­
tichista», néscia. Deste modo, impunham a sua própria visão da
crença ao Outro «primitivatizado». (Não será também esse o pa­
radoxo do romance de Edith Wharton, A Idade da Inocência? A
esposa de Newton não era uma mulher que acreditava ingenua­
mente, de modo «inocente», na fidelidade do marido — ela esta­
va perfeitamente ao corrente da paixão que este tinha pela con­
dessa Olenska, mas, por uma questão de delicadeza, ignorava essa
paixão e fingia, como uma actriz, acreditar na fidelidade do espo­
so...) Pfaller sublinha, com razão, que hoje cremos mais do que
nunca: a atitude mais céptica, a da desconstrução, repousa na fi­
gura de um Outro que «crê verdadeiramente»; a necessidade pós-
-modema do recurso constante a processos de distanciamento iró­
nico (uso de aspas, etc.) traduz o receio subjacente de que, sem o
recurso a esses processos, a crença seria directa e imediata — co­
mo se o facto de dizer simplesmente «amo-te», em vez do iróni­
co «amo-te, como diria o poeta», implicasse uma crença directa­
mente assumida nesse amor, como se não houvesse já uma
distância actuante na declaração directa «amo-te»...

E talvez seja isso que esteja em jogo na emergência da «cultu­


ra» como categoria central do mundo e da nossa vida contempo­
12 Slavoj Zizek

rânea. Por exemplo, no domínio religioso, já não estamos na épo­


ca do «creio verdadeiramente»; seguimos simplesmente alguns
dos rituais e dos costumes religiosos no quadro do respeito devi­
do ao «estilo de vida» da comunidade a que pertencemos (basta
evocar os judeus não crentes que comem kosher «por respeito pe­
la tradição»). O modo dominante da crença repudiada/deslocada,
típica da nossa época, parece ser, efectivamente: «Não acredito
verdadeiramente nisso, mas simplesmente isso faz parte da minha
cultura.» O que é um «estilo de vida cultural» senão o facto de,
mesmo sem acreditar no Pai Natal, haver sempre um pinheiro em
todas as casas, e até nos locais públicos, durante todo o mês de
Dezembro? Talvez esta concepção «não fundamentalista» da cul­
tura, distinta da «verdadeira» religião, da «verdadeira» arte, etc.,
seja, no fundo, o nome para o campo das crenças repudiadas/im­
pessoais. «A nossa cultura»: tal é o nome que damos a todas as
coisas que fazemos sem acreditar verdadeiramente nelas, sem as
levarmos realmente «a sério». Não será também por isso que a
ciência — demasiado real — não faz parte dessa concepção da
cultura? E não será também por isso que condenamos os crentes
fundamentalistas como «bárbaros», inimigos da cultura, para a
qual constituem uma ameaça, que têm a audácia de levar a sério
as suas crenças? Hoje, sentimos como uma ameaça para a cultu­
ra aqueles que têm uma relação imediata e viva com a sua própria
cultura, sem qualquer distanciam ento em relação a ela.
Lembremo-nos da indignação pública quando, há três anos, os ta-
libãs do Afeganistão dinamitaram as antigas estátuas de Buda em
Bamiyan: apesar de nenhum de nós, ocidentais esclarecidos, acre­
ditar na divindade de Buda, sentimo-nos indignados pelo facto de
os muçulmanos talibãs não terem mostrado nenhum respeito pelo
«património cultural» do seu próprio país e de toda a humanida­
de. Em vez de crerem através dos outros, como todas as pessoas
cultas, foi-nos dada a prova de que estavam completamente imer­
sos na crença da sua própria religião e que, consequentemente,
não mostravam grande sensibilidade pelo valor cultural dos mo­
numentos das outras religiões — para eles, as estátuas de Buda
não eram mais do que falsos ídolos e não «tesouros culturais».
A Marioneta e o Anão 13

Um dos lugares-comuns que se proferem hoje sobre os filóso­


fos consiste em dizer que a sua própria análise da hipocrisia do
sistema dominante trai, no fundo, a sua própria ingenuidade: por­
que é que ainda ficam chocados ao verem as pessoas violarem in­
congruentemente os valores que proclamam quando isso serve os
seus interesses? Esperam realmente que as pessoas sejam con­
gruentes e ajam de acordo com os seus princípios? Aqui, deve­
mos defender os autênticos filósofos: aquilo que os surpreende é
precisamente a particularidade oposta — não o facto de as pes­
soas não «crerem verdadeiramente» e agirem passando por cima
dos seus princípios declarados, mas que aqueles que professam o
seu distanciamento cínico e o seu pragmatismo radical oportu­
nista creiam, intimamente, em muito mais do que aquilo que es­
tão dispostos a admitir, mesmo que transponham essas crenças
para «outras» (não existentes).
No quadro da crença «suspensa» a que me referi anteriormen­
te, são permitidas três opções, ditas «pós-seculares»: ou somos au­
torizados a elogiar a riqueza das religiões politeístas pré-
-modemas, oprimidas pela herança patriarcal judaico-cristã, ou a
aderir à unicidade da herança judaica, à sua fidelidade relativa­
mente ao encontro com a Alteridade radical, que a distingue do
cristianismo. Aqui, gostaria de ser absolutamente claro: não creio
que o vago espiritualismo actual, a focalização na abertura ao Ou­
tro e ao seu Apelo incondicional que quase fizeram do judaísmo a
atitude ético-espiritual hegemónica junto dos intelectuais contem­
porâneos, seja, em si, a forma «natural» daquilo que podemos cha­
mar, em termos tradicionais, de espiritualidade judaica. Sinto-me
quase tentado a afirmar que, neste caso, estamos a lidar com algo
que lembra aquilo que foi a heresia gnóstica para o cristianismo, e
que a vítima fundamental dessa «vitória» pirronística do judaísmo
será o que há de mais precioso na própria espiritualidade judaica,
ou seja, o lugar que ela atribui a uma experiência colectiva única.
Quem se lembra hoje dos kibutz, a melhor prova de que os judeus
não são, «por natureza», intermediários financeiros?
Para lá destas duas opções, as únicas referências cristãs auto­
rizadas são as tradições gnóstica ou mística, ambas eliminadas
14 Slavoj Zizek

ou reprimidas para que fosse possível estabelecer a figura hege­


mónica do cristianismo. O próprio Cristo é, em si, aceitável, des­
de que procuremos isolar o Cristo «original», o «rabi Jesus», ain­
da não inscrito na tradição cristã propriamente dita — Agnes
Heller fala ironicamente da «ressurreição do Jesus judeu»: hoje,
a nossa tarefa consiste em ressuscitar o verdadeiro Jesus,
separando-o da tradição cristã mistificadora de Jesus (enquanto)
Cristo4. Tudo isto faz da referência positiva a São Paulo uma
questão muito delicada: não será ele o próprio símbolo do esta­
belecimento da ortodoxia cristã? Contudo, nos dez últimos anos,
surgiu uma pequena abertura, parecendo termos chegado a uma
espécie de acordo estabelecido entrelinhas: temos o direito de
elogiar Paulo se o reposicionarmos no quadro da herança judai­
ca — Paulo como judeu revolucionário, como autor da teologia
política judaica...
Embora concorde com esta abordagem, quero sublinhar que,
se a levarmos a sério, as suas consequências serão muito mais ca­
tastróficas do que poderíamos julgar. Quando lemos as epístolas
de Paulo, não podemos deixar de notar a sua total e terrível indi­
ferença relativamente a Jesus como pessoa viva (o Jesus que ain­
da não é Cristo, o Jesus anterior à Páscoa, o Jesus dos Evange­
lhos). Paulo desinteressa-se quase por completo dos actos
particulares de Jesus, dos seus ensinamentos, das suas parábolas,
de tudo aquilo a que Hegel se referirá mais tarde como consti­
tuindo o elemento mítico da narrativa-conto de fadas, da simples
Vorstellung (representação anterior ao conceito). Nos seus escri­
tos, Paulo nunca se situa no campo da hermenêutica, nunca bus­
ca o «sentido profundo» desta ou daquela parábola ou acto de Je­
sus. O que lhe interessa não é Jesus como figura histórica, mas
apenas a sua morte na cruz e a sua ressurreição de entre os mor­
tos; uma vez estabelecida a morte e a ressurreição de Jesus,
dedica-se à sua verdadeira tarefa, um autêntico empreendimento
leninista: a organização de um novo partido chamado comunida­
de cristã... São Paulo como leninista: não foi ele, como Lenine,
o grande «organizador» e, como tal, não foi caluniado pelos par­
tidários do cristianismo-marxismo das origens? A temporalidade
A Marioneta e o Anão 15

paulina — a do «já, mas não ainda» — não corresponderá tam­


bém à situação de Lenine entre a revolução de Fevereiro e a de
Outubro de 1917? A revolução já ficou para trás, o antigo regime
morreu, a liberdade foi conquistada, mas o verdadeiro trabalho
ainda está por fazer.
Em 1956, Lacan já propusera uma definição clara e sucinta do
Espírito Santo: «O Espírito Santo é a entrada do significante no
mundo. Isso foi certamente o que Freud nos trouxe sob a desig­
nação de “instinto de morte”»5. O que Lacan quer dizer, nesse
estádio de desenvolvimento do seu pensamento, é que o Espírito
Santo representa a ordem simbólica como aquilo que anula (ou
melhor, suspende) o domínio inteiro da «vida» — a experiência
vivida, o fluxo libidinal, a riqueza das emoções ou, para falar em
termos kantianos, o «patológico». Quando nos colocamos no in­
terior do Espírito Santo, passamos por uma transubstanciação,
entramos numa outra vida, para lá da vida biológica. E essa vi­
são paulina da vida não estará contida noutro traço característico
de Paulo? O que lhe permitiu formular os princípios fundamen­
tais do cristianismo, fazer passar o cristianismo de uma seita ju ­
dia para a religião universal (a religião da universalidade), foi
precisamente o facto de não ter feito parte do círculo estreito dos
íntimos de Cristo. Podemos imaginar o círculo íntimo dos após­
tolos recordando as suas conversas durante a ceia: «Lembras-te
que, na Última Ceia, Jesus me pediu que lhe passasse o sal?» Pa­
ra Paulo, isso é impossível: ele está de fora e, como tal, substitui
simbolicamente (ocupa o lugar de) o próprio Judas, entre os
apóstolos. De certo modo, Paulo também traiu Cristo, não se
preocupando com as suas particularidades, reduzindo-o brutal­
mente ao essencial, sem mostrar a menor ternura pela sua sabe­
doria, pelos seus milagres e outros afins.
Por conseguinte, devemos ler Paulo como alguém situado na
tradição judaica, pois essa leitura toma-nos palpável o carácter
verdadeiramente radical da sua ruptura, o modo como minou, do
interior, a tradição judaica. Para retomar uma oposição kierke-
gaardiana bem conhecida, ler São Paulo a partir do interior da
tradição judaica, como aquele que se situa nessa tradição,
16 Slavoj Zizek

permite-nos apreender «o cristianismo em devir»: não o dogma


positivo já estabelecido, mas o gesto violento da tomada de po­
sição, o «desaparecimento do mediador» entre judaísmo e cris­
tianismo, algo próximo da violência constitutiva da lei, segundo
Benjamin. Por outras palavras, o que é efectivamente «reprimi­
do» na doxa cristã, mais do que as raízes judaicas do cristianis­
mo, a sua dívida em relação ao judaísmo, é a própria ruptura, o
verdadeiro lugar da ruptura efectuada pelo cristianismo em rela­
ção ao judaísmo. Paulo não se limitou a passar da posição judia
para outra posição — ele fe z qualquer coisa com/à/da própria po­
sição judia. Fez algo, mas o quê?

N otas

1. Nota do Tradutor. Aqui, por motivos que até nos parecem plausíveis —
estamos ainda no início da Introdução —, as edições francesa e alemâ, nomea­
damente, suprimiram uma extensa passagem publicada na edição inglesa, arti­
culada ao desenvolvimento do pensamento hegeliano. Achámos por bem
incluí-la para os leitores portugueses mais interessados.

Os contornos deste impasse já tinham sido delineados por Hegel; nas


suas obras, encontramos por vezes aquilo que somos tentados a chamar
de «síntese descendente»: depois das duas posições opostas, a terceira, a
Aufhebung das duas, não é uma síntese mais elevada juntando o que va­
le a pena guardar das outras duas, mas uma espécie de síntese negativa,
o ponto mais baixo. Vejamos três exemplos notórios:
• O primeiro é a «lógica do juízo», em que a primeira tríade do «juí­
zo da existência» (positivo-negativo-juízo infinito) culmina no «juízo in­
finito»: Deus não é vermelho, a rosa não é um elefante, o entendimento
não é uma mesa — estes juízos são correctos ou verdadeiros, como cos­
tumamos dizer, mas desprovidos de sentido e cheios de mau gosto [G. W.
F. Hegel, Wissenschaft der Logik, Zweiter Teil, Hamburgo, Felix Meiner
Verlag, 1966, p. 285].
* Os outros dois encontram-se em A Fenomenologia do Espírito. Pri­
meiro, a propósito da frenologia, em que toda a dialéctica da «Razão ob­
servadora» culmina no juízo infinito: «o Espírito é um osso» [G. W. F.
Hegel, Phaenomenologie des Geistes, Hamburgo: Felix Meiner Verlag,
1952, p. 254],
A Marioneta e o Anão 17

• Depois, no final do capítulo sobre a Razão, na passagem para o Es­


pirito como Historia, em que encontramos a tríade formada pela «Razão
administradora de leis», pela «Razão que as testa» e pela «Razão que
aceita o seu insondável fundamento». Só ao aceitarmos a positividade da
lei como seu supremo paño de fundo é que passamos para a Historia pro-
priamente dita. Esta passagem ocorre quando assumimos o fracasso da
Razão para fundar reflectidamente as leis que regulam a vida de um po­
vo [ibid., pp. 305-312],
E as três modalidades da religião presentes em Glauben und Wissen e
outros escritos teológicos dos primeiros anos [G. W. F. Hegel, Glauben
und Wissen, Hamburgo, Felix Meiner Verlag, 1987], parecem tratar a
mesma tríade:
• A religião do povo (Volksreligion) — na antiga Grécia, a religião es­
tava intrinsecamente limitada a um povo particular, à sua vida e aos seus
costumes. Não exigia nenhum acto de fé especial e reflexivo: era sim­
plesmente aceite.
• A religião positiva — impunha dogmas, rituais, regras, que deviam
ser aceites por serem prescritos por uma autoridade terrestre e/ou divina
(judaísmo, cristianismo).
• A religião da Razão — o que resta da religião quando a religião po­
sitiva é submetida à crítica racional das Luzes. Há duas modalidades: Ra­
zão ou Coração — a posição da obediente moral kantiana ou a religião
do sentimento puramente interior (Jacobi, etc.). Ambas rejeitam a reli­
gião positiva (rituais, dogmas) como lastros superficiais historicamente
condicionados. Crucial, neste caso, é a inversão da posição de Kant para
a de Jacobi, do moralismo universalista para uma coabstergência do sen­
timento puramente irracional, ou seja, esta coincidência imediata dos
opostos, esta inversão directa da razão numa crença irracional.
Mais uma vez, a passagem de uma etapa para outra é clara. Primeiro, a
religião (do povo) perde a sua orgânica Naturwuechsigkeit, transforma-se
num conjunto de regras «alienadas» — contingentes e impostas pelo exte­
rior; depois, a autoridade dessas regras é logicamente interrogada pela nos­
sa Razão... Contudo, qual seria o passo em frente que permitiria quebrar o
impasse da conversão directa, um no outro, do moralismo universalista e
do sentimento interior? Não há uma solução clara. Porque precisamos ain­
da de religião nos tempos modernos? A resposta clássica é: o racionalismo
da filosofia ou da ciência é esotérico, restringido a um pequeno círculo, não
podendo substituir a religião na sua função de capturar a imaginação das
massas, servindo desse modo as finalidades da ordem moral e política. Mas
esta solução é problemática nos próprios termos hegelianos: o problema é
que, nos tempos modernos da Razão, a religião já não pode desempenhar
essa função de força orgânica de elo de ligação da substância social — ho­
je, a religião perdeu irremediavelmente o seu poder, não só para os cien­
tistas e para os filósofos, como para o mais vasto círculo das pessoas «co­
muns». Nas suas Lições sobre Estética, Hegel diz-nos que, na Idade
18 Slavoj Zizek

Moderna, por muito que admiremos a arte, deixámos há muito de nos ajoe­
lharmos perante ela — e o mesmo pode dizer-se da religião.
Hoje, vivemos (em) a tensão apontada por Hegel talvez mais ainda do
que os seus próprios contemporâneos. Quando Hegel escreve: «É uma
tolice moderna querer alterar um sistema ético corrupto, a sua constitui­
ção e legislação, sem mudar a religião, ter uma revolução sem uma re­
forma» [G. W. F. Hegel, Enzyklopaedie der philosophischen Wissen-
schaften, Hamburgo, Felix Meiner Verlag, 1959, p. 436], está a anunciar
a necessidade daquilo que Mao chamou de «revolução cultural» como
condição para o sucesso de uma revolução social. Não será o que acon­
tece hoje: a revolução (tecnológica) sem nenhuma outra reforma funda­
mental? A tensão básica não se situa tanto entre razão e sentimento, mas
mais entre o conhecimento e a inconfessada crença encarnada no ritual
exterior — a situação muitas vezes descrita nos termos da razão cínica,
cuja fórmula, numa inversão da fórmula marxista, foi proposta há déca­
das por Peter Sloterdijk: «Eu sei o que estou a fazer, mas, não obstante,
continuo a fazê-lo...» Contudo, esta fórmula não é tão clara como pare­
ce — deve ser completada por: «... porque não sei e m q u e c r e i o ».

2. A ligação entre cristianismo e ateísmo talvez se tome, de certo modo,


mais clara se levarmos em consideração o facto surpreendente de a passagem
em Ser e Tempo, de Heidegger — essa tentativa radical para tomar temática a
inultrapassável finitude da condição humana —, da «reificada» abordagem on­
tológica da realidade (o «sujeito» percepcionando «objectos») para o compro­
metimento activo do «estar-no-mundo», repousar na sua leitura de São Paulo
no início da década de 1920. Aqui, é discemível uma surpreendente ligação adi­
cional entre Heidegger e Badiou: ambos se referem a São Paulo da mesma for­
ma ambígua. Para Heidegger, a passagem em Paulo da contemplação filosófi­
ca abstracta para a existência engajada de um crente anuncia a solicitude e o
«estar-no-mundo», embora apenas no modelo ôntico daquilo que Ser e Tempo
desenvolve como estrutura básica ontologicamente transcendental; da mesma
maneira, Badiou lê Paulo como o primeiro que desenvolveu a estrutura formal
do Evento e o procedimento da verdade, embora a religião, para ele, não seja o
domínio próprio da verdade. Em ambos os casos, a experiência paulina desem­
penha o mesmo papel (tentativa): é o melhor exemplo («indicação formal») da
estrutura ontológica do Evento, embora constitua, no seu conteúdo positivo, um
«falso» exemplo, estranho a ele.
3. Robert Pfaller, Illusionen der Anderen, Frankfurt, Suhrkamp, 2002.
4. Agnes Heller, Die Auferstehung des jiidischen Jesus, Berlim, Philo, 2002.
5. Jacques Lacan, Le Séminaire, livre IV. La relation d ’objet, Paris, Seuil,
1994, p. 48.
C apítulo I

QUANDO O ORIENTE ENCONTRA O OCIDENTE

Um bom ponto de partida seria colocar a questão de Schelling:


que significado tem, para o próprio Deus, o devir-homem de
Deus na figura de Cristo, a Sua descida da eternidade para o rei­
no temporal da nossa realidade? E se aquilo que, para nós, mor­
tais finitos, parece ser a descida de Deus para junto de nós, fos­
se, do ponto de vista do próprio Deus, uma ascensãol E se, como
deixa supor Schelling, a eternidade fosse menos do que a tempo­
ralidade? E se a eternidade fosse um domínio estéril, impotente,
privado de vida, um domínio de puras potencialidades que tives­
se de passar pela existência temporal para se realizar plenamen­
te? E se a descida de Deus para junto dos homens, longe de ser
um acto de bondade para com a humanidade, fosse a única ma­
neira, para Deus, de aceder a uma actualidade plena e de se li­
bertar dos constrangimentos sufocantes da Eternidade? E se
Deus só se actualizasse a Si mesmo através do reconhecimento
dos hom ens1?
Temos de nos desembaraçar do velho topos platónico do amor
como Eros que se eleva gradualmente do amor por um indivíduo
particular para a beleza de um corpo humano em geral, e do amor
pela forma bela como tal para o amor pelo Bem soberano para lá
de todas as formas: o verdadeiro amor é precisamente o movi­
mento inverso do abandono da promessa da própria Eternidade
20 Slavoj Zizek

por um indivíduo imperfeito. (A atracção exercida pela eternida­


de pode revestir diversas formas, da busca da glória póstuma ao
desejo de realizar o seu papel social.) E se o gesto que consiste
em escolher a existência temporal, em abandonar a existência
eterna pelo amor — de Cristo ao Siegmund do segundo acto de
As Valquírias, que prefere permanecer um mortal comum caso a
sua Sieglinde bem-amada não possa segui-lo para o Walhalla, a
residência eterna dos heróis mortos —, fosse o acto ético mais
elevado? Consternada, Brunhilde comenta a sua recusa da se­
guinte forma: «Tens tão pouco apreço pela felicidade eterna? Es­
sa pobre mulher, cansada e infeliz, que jaz frouxamente no teu
regaço, representará tudo para ti? Pensas que não há mais nada
de precioso para ti?» Em st Bloch tinha razão ao dizer que aqui­
lo que faltava à história alemã era mais gestos como o de Sieg­
mund.
Regra geral, diz-se que o tempo é a prisão suprema («não se
pode escapar ao seu tempo») e que toda a filosofia e religião têm
uma única finalidade: escapar a esse encarceramento no tempo
para entrar na eternidade. M as, e se, como Schelling parece di­
zer, a eternidade fosse a prisão suprema, uma clausura sufocan­
te, e só a queda no tempo introduzisse a Abertura na experiência
humana? Não será o tempo o nome para a abertura ontológica?
Por conseguinte, o Evento da «encarnação» é menos o momento
em que a realidade vulgar alcança a Eternidade do que aquele em
que a Eternidade entra no tempo. Este ponto foi estabelecido de
forma muito clara por conservadores inteligentes como G. K.
Chesterton, um católico inglês (tal como Alfred Hitchcock). Eis
o que Chesterton diz sobre certas considerações na moda em tor­
no da «pretensa identidade espiritual entre budismo e cristianis­
mo»:

O amor deseja a individualidade; por isso, deseja a divisão.


O instinto do cristianismo regozija-se por Deus ter quebrado o
Universo em pequenos pedaços (...). Aí reside o abismo intelec­
tual entre budismo e cristianismo — para os budistas ou para os
teósofos, a individualidade é a queda do homem; para os cristãos,
A Marioneta e o Anão 21

ela é o desígnio de Deus, o propósito essencial da sua ideia do


cosmos. A alma-mundo dos teósofos pede ao homem que a ame
para que o homem possa projectar-se nela. Mas o centro divino do
cristianismo projectou o homem para fora desse centro para que
ele pudesse amá-lo. (...) Todas as filosofias modernas são gri­
lhões que unem e prendem; o cristianismo é urna espada que se­
para e liberta. E a única filosofia em que Deus se regozija pela se­
paração do Universo em almas vivas2.

E Chesterton está perfeitamente consciente do facto de não


bastar a Deus separar o homem d ’Ele, para que a humanidade
O ame. A separação tem de se reflectir no próprio Deus, de tal
modo que Deus se auto-abandona:

Não foi no momento da crucificação que o mundo foi abalado


e o sol apagado do céu, mas quando o grito foi proferido na cruz
— confissão de que Deus fora abandonado por Deus. Agora, dei­
xemos os revolucionários escolher um credo entre todos os credos
e um deus entre todos os deuses do mundo, sopesando cuidado­
samente todos os deuses de regresso inevitável e poder inalterá­
vel. Não encontrarão outro deus que se tenha revoltado contra si
mesmo. E mesmo que os ateus (a questão toma-se demasiado di­
fícil para ser abarcada pela linguagem humana), escolham um
deus, só poderão encontrar uma divindade que lhes tenha falado
do seu isolamento, só uma religião em que o próprio Deus pare­
ceu, por um momento, ser um ateu3.

Esta semelhança entre a situação do homem separado de Deus


e a de Deus separado de Si mesmo tom a o cristianismo «terrivel­
mente revolucionário. Sabemos que um homem bom pode
encontrar-se encostado à parede, mas que o mesmo possa acon­
tecer a Deus, isso já é matéria para que todos os insurgidos se
sintam eternamente orgulhosos. O cristianismo é a única religião
da Terra que sentiu que a omnipotência tom ava Deus incomple­
to. Só o cristianismo sentiu que, para Deus ser plenamente Deus,
devia ter sido tão rebelde como um rei»4.
22 Slavoj Zizek

Chesterton tem perfeita consciência de estar a tocar assim


«num tema obscuro e assustador, sobre o qual é difícil falar»,
«um tema que os maiores santos e pensadores tiveram medo de
abordar. Porém, na história aterradora da Paixão, está claramen­
te indicado que o autor de todas as coisas (de uma maneira de
certo modo impensável) conheceu não só o sofrimento extremo
como a própria dúvida»5. Na forma mais comum do ateísmo,
Deus morre para os homens que deixam de crer n ’Ele; no cris­
tianismo, Deus morre para Si mesmo. Na sua frase «Pai, porque
me abandonaste?», o próprio Cristo comete aquilo que é o peca­
do supremo para um cristão: ser abalado na sua fé.
Este «tema obscuro e assustador, do qual é difícil discutir»
diz respeito àquilo que só pode aparecer como o perverso nú­
cleo escondido do cristianismo: se é proibido provar os frutos
da árvore do conhecimento no Paraíso, então por que razão
Deus colocou aí uma árvore, logo no início? Isso não faria par­
te de uma estratégia perversa para começar por seduzir Adão e
Eva, impelindo-os para a queda, a fim de os salvar? Por outras
palavras, a concepção de Paulo, segundo a qual a interdição pe­
la lei origina o pecado, não deveria também ser aplicada a essa
interdição, a prim eira de todas? Encontramos a m esm a ambi­
guidade obscura no papel de Judas na morte de Cristo: visto que
a sua traição era necessária para levar a cabo a sua missão (re­
dimir a humanidade pela morte na cruz), não precisava Cristo
dela? As suas palavras inquietantes durante a Última Ceia não
serão uma intimação secreta endereçada a Judas para que ele o
atraiçoe? «E, respondendo Judas, aquele que o traía, disse: Por­
ventura sou eu, Rabi? Ele disse: Tu o disseste» (M ateus, 26:
25). A resposta de Cristo reveste a forma de uma ordem implí­
cita: Judas é interpelado como aquele que entregará Cristo às
autoridades, não de modo directo («Tu és aquele que me trai­
rá!»), mas de modo a que a responsabilidade seja reportada pa­
ra o outro. Não será Judas, por conseguinte, o supremo herói do
Novo Testamento, aquele que está disposto a perder a sua alma
e a ser eternamente danado para que o plano divino possa
realizar-se6?
A Marioneta e o Anão 23

Em todas as outras religiões, Deus pede aos Seus seguidores


que Lhe permaneçam fiéis; só Cristo lhes pediu que o traíssem
para cumprir a sua missão. Somos tentados a afirmar que todo o
destino do cristianismo, o seu núcleo, depende da possibilidade
de interpretar estes actos de um modo não perverso. Por outras
palavras, a leitura evidente que se impõe por si mesma é uma lei­
tura perversa: enquanto se queixa da traição por vir, Cristo orde­
na a Judas, entrelinhas, que o traia, exigindo dele o sacrifício su­
premo, não só o da sua vida, como também o da sua «segunda
vida», a sua reputação póstuma. Consequentemente, neste caso,
o problema, o nó ético obscuro, não está em Judas, mas no pró­
prio Cristo: para realizar a sua missão, terá sido obrigado a re­
correr a estas sombrias manobras estalinistas? Haverá outra lei­
tura possível da relação entre Judas e Cristo fora desta economia
perversa?
Em Janeiro de 2002, em Lauderhill, na Florida, aconteceu um
estanho lapso freudiano. Durante uma cerimónia em honra de
Martin Luther King, fora combinado instalar uma placa em ho­
menagem ao actor James Earl Jones. Em vez da inscrição pre­
vista, lia-se na placa: «Obrigado a James Earl Ray, por ter per­
mitido que o sonho permanecesse vivo» — alusão transparente
ao célebre discurso de Martin Luther King que começava por
«Eu tive um sonho». Ora, James Earl Ray é o nome do homem
que foi condenado pelo assassínio de Martin Luther King em
1968. Claro que esta substituição dos nomes é a expressão de um
racismo primário, mas ela contém uma estranha verdade: com
efeito, James Earl Ray contribuiu para que o sonho de King per­
manecesse vivo, e a dois níveis diferentes. Primeiro, porque a
morte violenta de Martin Luther King contribuiu para fazer dele
um personagem de excepcional estatura; sem essa morte, ele não
se teria certamente transformado num símbolo: hoje, há ruas com
o seu nome e a sua data de nascimento é feriado oficial. Podemos
até afirmar que Martin Luther King morreu precisamente no bom
momento: semanas antes da sua morte, orientara-se para um an-
ticapitalismo mais radical, apoiando greves de operários negros
e brancos. Caso tivesse prosseguido nessa via, ter-se-ia tomado
24 Slavoj Zizek

um personagem inaceitável para o Panteão dos heróis america­


nos.
A morte de King corresponde à lógica desenvolvida por Hegel
a propósito de Júlio César: este devia morrer para permitir o sur­
gimento do conceito universal. O conceito nietzschiano de «trai­
ção nobre», forjado no modelo de Bruto, continua a ser o da trai­
ção do indivíduo em nome da Ideia mais elevada (César deve
morrer para salvar a República) e, como tal, a sua morte pode ser
explicada pela «astúcia da razão» histórica (o nome de César res­
surge como uma vingança no título universal «césar»), O mesmo
parece aplicar-se a Cristo: a traição fazia parte do desígnio divi­
no e, nesse intuito, Cristo ordenou a Judas que o traísse para rea­
lizar esse desígnio, o que significa que a traição perpetrada por
Judas é o sacrifício supremo, o supremo acto de fidelidade. Con­
tudo, há uma diferença essencial entre a morte de Cristo e a de
César: César era, em primeiro lugar, um nome, e devia morrer
como tal (o indivíduo singular, contingente), para emergir como
um conceito/título universal («césar»); Cristo era, em primeiro
lugar, antes de morrer, um conceito universal («Jesus Cristo, o
Messias») e, pela sua morte, toma-se um ser singular, «Jesus
Cristo». Neste caso, o universal é aufgehoben (ultrapassado) no
singular, e não o inverso.
E que pensar de uma traição mais kierkegaardiana — já não a
do indivíduo em nome do universal, mas a do próprio universal
em nome do ponto de excepção singular (a «suspensão religiosa
da ética»)? E da traição «pura», da traição por amor, como der­
radeira prova de amor? E da traição em relação a si mesmo?
(Visto que sou o que sou através dos meus outros, a traição do
outro amado é a traição de mim mesmo.) Esta traição não será
inerente a qualquer decisão difícil no plano ético? Devemos trair
o que constitui o nosso núcleo mais profundo, como fez Freud
em Moisés e o Monoteísmo, quando privou os judeus da sua fi­
gura fundadora.
Judas é o «mediador que desaparece» entre o círculo original
dos doze apóstolos, e Paulo, o fundador da Igreja universal: Pau­
lo substitui literalmente Judas, ocupando o lugar deixado vazio,
A Marioneta e o Anão 25

entre os doze, numa espécie de substituição metafórica. É essen­


cial termos presente no espírito a necessidade dessa substituição:
a Igreja universal só podia estabelecer-se pela «traição» de Judas
e pela morte de Cristo; isto é, a via para o universal passa pela
morte do particular. Ou, para dizer as coisas de um modo ligei­
ramente diferente: para que Paulo fundasse o cristianismo do ex­
terior, como aquele que não pertencia ao círculo íntimo de Cris­
to, esse círculo tinha de ser quebrado do interior por um acto de
traição assustador. Não é simplesmente Cristo, é o herói como tal
que tem de ser traído para aceder a um estatuto universal: como
diz Lacan no seu Séminaire VII, o herói é aquele que pode ser
traído sem ser lesado.
A fórmula retirada do romance Um Espião Perfeito, de John
Le Carré, «o amor é tudo o que ainda podemos trair», é aqui mui­
to mais pertinente do que poderíamos pensar: qual de nós, quan­
do fascinado por uma pessoa amada que confia em nós, se nos
entrega e conta inteiramente connosco, nunca sentiu uma estra­
nha e perversa vontade de trair a confiança dessa pessoa, magoá-
-la seriamente, abalar toda a sua existência? Esta «traição como
forma suprema de fidelidade» não pode ser explicada pela refe­
rência à separação entre a pessoa empírica e o que ela represen­
ta: nesse caso, trairíamos (abandonaríamos) a pessoa amada em
nome da fidelidade que ela representa. (Outra versão desta sepa­
ração é a traição que intervém no preciso momento em que ma­
nifestaríamos publicamente a nossa impotência: deste modo, a
traição permite manter a ilusão de que, em caso de sobrevivên­
cia, as coisas teriam corrido bem para nós. Por exemplo, a única
maneira de ser verdadeiramente fiel a Alexandre, o Grande, teria
sido matá-lo quando ele morreu — se tivesse vivido mais tempo,
teria sido relegado à condição de observador impotente do declí­
nio do seu império.) Aqui, opera uma necessidade kierkegaar-
diana superior: trair a própria universalidade (ética). Para lá da
traição «estética» — a traição do universal em nome de certos in­
teresses «patológicos» (lucro, prazer, orgulho, desejo de magoar
e humilhar), que é uma simples baixeza — e da traição «ética»
— a traição da pessoa em nome do universal, como na célebre
26 Slavoj Zizek

frase de Aristóteles, «Sou amigo de Platão, mas ainda mais ami­


go da verdade» —, há a traição «religiosa», a traição por amor —
respeito-te pelos teus traços universais, mas amo-te por causa de
um X que está para lá dos teus traços, e a única maneira de dis­
cernir esse X é trair-te. Traio-te e, quando estás abatido, destruí­
do pela minha traição, trocamos um olhar: se compreenderes a
minha traição, e só nesse caso, então és um verdadeiro herói.
Qualquer verdadeiro líder, religioso, político ou filosófico, é
obrigado a provocar uma traição semelhante entre os seus discí­
pulos mais próximos. Não será assim que devemos ler a fórmu­
la empregue por Lacan nas suas últimas declarações públicas,
«Aqueles que me amam»? Aqueles que me amam quer dizer aos
que me amam o suficiente para me traírem. A traição temporária
é o único caminho para a eternidade: quando Abraão recebe a or­
dem para sacrificar Isaac, encontra-se confrontado com uma ten­
tação, mas, «nesse caso, a ética é a própria tentação», como diz
Kierkegaard7.
Por conseguinte, em que sentido preciso não estaria Cristo a
jogar com Judas um jogo perverso, manipulando o seu discípulo
mais próximo, impelindo-o a perpetrar um acto de traição neces­
sário para a realização da sua missão? Um pequeno desvio pelo
melhor (ou pior) melodrama de Hollywood, Rapsódia, de King
Vidor (1954), talvez nos possa ajudar a esclarecer este aspecto.
A lição principal deste filme é que, para conquistar o amor da
mulher amada, o homem tem de provar ser capaz de viver sem
ela, colocando em primeiro lugar a sua missão ou a sua profis­
são. Surgem imediatamente duas opções: 1 — a minha carreira
profissional é o que conta mais para mim, a mulher é simples­
mente um divertimento, uma ligação distractiva, ou 2 — a mu­
lher é tudo para mim, por ela estou disposto a humilhar-me, a re­
nunciar à minha dignidade pública e profissional. Ambas as
soluções são más e levam o homem a ser rejeitado pela mulher.
A mensagem do verdadeiro amor é então a seguinte: mesmo que
signifiques tudo para mim, posso sobreviver sem ti, estou dis­
posto a renunciar a ti para realizar a minha missão ou a minha
profissão. Assim, a melhor maneira para a mulher testar o amor
A Marioneta e o Anão 27

do homem é «traí-lo» no momento crucial da sua carreira (no


filme, o primeiro concerto em público, o exame-chave, as nego­
ciações que irão decidir a sua carreira) — e só no caso de ele po­
der sobreviver ao teste e desempenhar a sua tarefa com êxito,
apesar de profundamente traumatizado por essa deserção, é que
será merecedor dela e ela voltará para ele. O paradoxo subjacen­
te é que o amor, precisamente como Absoluto, não deve ser co­
locado como um objectivo directo, deve conservar o estatuto
conferido pelo acaso, algo que advém como uma graça não me­
recida. Talvez não haja maior amor do que o de um casal de re­
volucionários, quando um está pronto a abandonar o outro a
qualquer momento, caso a revolução o reclame. É nesta ordem
de ideias que convém procurar a leitura não perversa do sacrifí­
cio de Cristo, da mensagem endereçada a Judas: «Prova-me que
sou tudo para ti: trai-me em nome da nossa missão revolucioná­
ria!»
Chesterton também relacionou correctamente este núcleo obs­
curo do cristianismo com a oposição entre Interior (a imersão na
Verdade interior) e Exterior (o encontro traumático com a verda­
de): «O olhar do budista está voltado com uma intensidade pe­
culiar para o Interior. O cristão contempla o Exterior com uma
intensidade fulgurante»8. Neste caso, Chesterton refere-se à co­
nhecida diferença entre as representações pictóricas e plásticas
de Buda, com o seu olhar tranquilo e benevolente, e a represen­
tação tradicional dos santos cristãos, com o seu olhar intenso,
quase paranóico, transportado pelo êxtase. Esse «olhar do Buda»
é muitas vezes evocado como um possível antídoto ao olhar pa­
ranóico e agressivo do Ocidente, um olhar que visa exercer um
controlo total e que está sempre alerta, à espreita de uma even­
tual ameaça; no caso de Buda, deparamos com um olhar bene­
volente e recolhido, que se contenta em deixar as coisas ser, sem
desejar controlá-las... No entanto, apesar de a mensagem do bu­
dismo ser uma mensagem de paz interior, um estranho pormenor
na forma como as estátuas de Buda são consagradas fornece-nos
uma curiosa luz sobre essa paz. Nesse acto de consagração, é
preciso pintar os olhos de Buda. Contudo, para executar essa
28 Slavoj Zizek

operação, «o artista não deve olhar para a estátua de frente, tem


de trabalhar de costas voltadas para ela, pintando de lado ou por
cima do ombro, com a ajuda de um espelho, que capta o olhar da
imagem a que está dando vida. Acabado o trabalho, o olhar do
próprio artista é perigoso e colocam-lhe uma venda nos olhos pa­
ra o afastar. Só lhe retiram a venda quando o seu olhar puder cair
sobre qualquer coisa que ele destrói então simbolicamente. Co­
mo observa secamente Gombrich: “É impossível reconciliar o
espírito desta cerimónia com a doutrina budista e, por isso, nin­
guém tenta fazê-lo.” Mas não estará a chave precisamente nessa
estranha heterogeneidade, no facto de ser necessário excluir sim­
bolicamente, domesticar esse olhar aterrador, malévolo, para que
possa funcionar a realidade temperada e apaziguante do univer­
so budista?»9.
Não será este ritual uma prova «empírica» de que a experiên­
cia budista da paz do nirvana não é a realidade fundamental, de
que é preciso excluir algo para alcançarmos essa paz, ou seja, o
olhar do O utro10? Temos assim mais uma indicação de que o
malvado olhar «lacaniano» que constitui uma ameaça para o su­
jeito não é simplesmente uma hipóstase ideológica da atitude
ocidental de controlo e domínio, mas uma realidade que também
opera nas culturas orientais. Esta dimensão excluída é, em últi­
ma análise, a do acto. O que é pois um acto, fundado no abismo
de uma decisão livre? Pensemos no texto de C. S. Lewis sobre a
sua escolha religiosa em Surprised by Joy — o que tom a essa
passagem irresistível é o estilo «inglês» céptico e terra-a-terra do
autor, muito longe do habitual tom patético que encontramos nos
testemunhos de êxtase místico. A descrição que Lewis propõe da
sua escolha escapa desse modo a todo o pathos de tipo extático,
como em Santa Teresa, às penetrações de anjos ou de Deus que
provocam múltiplos orgasmos. Na experiência mística, não saí­
mos (em ékstasis) da nossa experiência normal da realidade: é
essa própria experiência «normal» que é «ekstatikós» (Heideg-
ger), é nela que somos projectados para o exterior como entida­
des, e a experiência mística assinala o afastamento desse êxtase.
Lewis refere-se assim à sua experiência como uma «coisa estra­
A Marioneta e o Anão 29

nha». M enciona o quadro vulgar da sua ocorrência —


«Encontrava-me então no segundo andar de um autocarro que
passava por Headington Hill» — e multiplica as fórmulas pru­
dentes como «de certo modo», «o que me parece agora», «ou, se
preferirem», «podem argumentar que... mas sinto-me mais in­
clinado a pensar que», «talvez», «era um a impressão um tanto
desagradável»:

O facto estranho foi que antes de Deus se acercar de mim, re­


cebi d’Ele o que agora me parece ter sido um momento de esco­
lha inteiramente livre. De certo modo. Encontrava-me então no
segundo andar de um autocarro que passava por Headington Hill.
Sem palavras e (creio) quase sem imagens, um facto que me di­
zia respeito acudiu-me subitamente à mente. Tomei consciência
de que havia qualquer coisa que me constrangia, que eu mantinha
à distância. Ou, se preferirem, parecia-me trazer roupas apertadas,
como espartilhos, ou mesmo uma carapaça, como uma lagosta.
E senti que me davam, naquele lugar e naquele momento, a pos­
sibilidade de fazer uma escolha livre. Podia abrir a porta ou deixá-
-la fechada; tirar a armadura ou guardá-la. Nenhuma destas op­
ções me era apresentada como uma obrigação: não havia nelas
nenhuma ameaça ou promessa, apesar de me parecer claro que
abrir a porta ou tirar o espartilho teria consequências incalculá­
veis. A escolha parecia-me temporária, mas, ao mesmo tempo, era
estranhamente impassível. Não sentia desejos nem temores. Na
realidade, não sentia nada. Escolhi abrir a porta, tirar a armadura,
largar a rédea. Digo «escolhi», embora não me parecesse que pu­
desse optar realmente por uma decisão diferente. Por outro lado,
não tinha consciência de qualquer motivação que me impelisse
nesse sentido. Podem argumentar que não era um agente livre,
mas sinto-me mais inclinado a pensar que, pelo contrário, esse ac­
to se aproximava mais de um acto perfeitamente livre do que a
maioria dos actos que sempre cometera. A necessidade pode não
ser o oposto da liberdade e o momento em que um homem é mais
livre talvez seja aquele em que, em vez de expor os motivos do
seu acto, pode dizer simplesmente: «Sou o que faço.» Depois che­
gou a repercussão ao nível da imaginação. Tive a sensação de ser
30 Slavoj Zizek

um boneco de neve que começa finalmente a derreter. O degelo


principiou nas minhas costas — primeiro gota a gota e, pouco
depois, num fio de água. Era uma impressão um tanto desagradá­
vel11.

De certo modo, tudo está contido neste relato: a decisão é pu­


ramente formal; trata-se, fundamentalmente, da decisão de deci­
dir, sem que haja uma consciência clara daquilo que o sujeito de­
cide; é um acto não fisiológico, desprovido de emoção, motivos,
desejos ou temores; é um acto incalculável e não o resultado de
uma argumentação estratégica; é um acto inteiramente livre, ape­
sar de ter sido impossível agir de outro modo. Só posteriormen­
te é que este acto puro é «subjectivado», traduzido numa expe­
riência psicológica (um tanto desagradável). Existe apenas um
aspecto potencialmente problemático na formulação de Lewis: o
acto, tal como Lacan o concebe, não tem nada a ver com uma
suspensão mística dos laços que nos ligam à realidade vulgar,
com o acesso à beatitude de uma indiferença radical em que a vi­
da, a morte e as outras categorias mundanas deixam de contar,
em que sujeito e objecto, pensamento e acto, coincidem plena­
mente. Para dizê-lo em termos místicos, o acto lacaniano é mais
o exacto oposto deste «retomo à inocência»: é o próprio Pecado
Original, a imensa perturbação da Paz primitiva, a Escolha pri­
mordial «patológica» da ligação incondicional a um objecto sin­
gular (como nos acontece quando nos apaixonamos por uma pes­
soa singular que, a partir daí, nos importa mais do que tudo).
Em termos budistas, o acto é, assim, precisa e estruturalmen­
te, o contrário da Iluminação, do alcance do nirvana: é o próprio
gesto pelo qual o Vazio é perturbado e a Diferença (e, com ela, a
falsa aparência e o sofrimento) se introduz no mundo. O acto es­
tá assim próximo do gesto de Boddhisattva que, depois de ter al­
cançado o nirvana, regressa, por compaixão, ou seja, pelo Bem
comum, à realidade fenomenal para ajudar os outros seres vivos
a alcançar o nirvana. A diferença com a psicanálise está no facto
de, segundo esta, o gesto sacrificial de Boddhisattva ser um ges­
to falso: para chegar ao próprio acto, é preciso apagar qualquer
A Marioneta e o Anão 31

referência ao Bem e realizar o acto por ele próprio. (Esta refe­


rência a Boddhisattva também nos permite responder à «grande
questão»: se temos de lutar agora para escapar ao círculo vicio­
so da espera pela paz feliz do nirvana, como é que o nirvana co­
meçou por «regressar» para se encontrar apanhado nesta roda de
espera? A única resposta coerente consiste em dizer que Boddhi­
sattva repete esse «mau» gesto primordial. A queda no Mal foi
realizada pelo «Boddhisattva original» — em suma, a fonte fun­
damental do Mal é a própria compaixão.)
Há uma estreita correlação entre a compaixão de Boddhisatt­
va e a ideia de que o «princípio de prazer» regula a nossa activi­
dade quando somos apanhados na roda da ilusão, isto é, que to­
dos nos esforçamos por alcançar o Bem e que o problema
fundamental é epistemológico (desconhecemos a verdadeira na­
tureza do Bem) — para citar o próprio Dalai Lama, o princípio
da sabedoria consiste em «compreender que todos os seres vivos
são iguais, na medida em que não desejam a infelicidade e o so­
frimento e na medida em que todos têm o mesmo direito a
desembaraçar-se do sofrimento»12. Porém, a pulsão freudiana
designa precisamente essa coisa paradoxal que nos impele a «de­
sejar a infelicidade», a sentir um prazer excessivo no próprio so­
frimento. O título de um livro de Paul Watzlawick (A Busca da
Infelicidade) exprime perfeitamente esse beco sem saída funda­
mental do comportamento humano. O horizonte ético budista é
portanto, ainda, o do Bem, ou seja, o budismo é uma espécie de
negativo da ética do Bem: consciente de que todo o Bem positi­
vo é um logro, assume o Vazio como o único Bem verdadeiro. O
que ele não pode fazer é ir «para lá do nada», naquilo que Hegel
chamou o «trabalho do negativo», que consiste em regressar a
uma realidade fenomenal que está «para lá do nada», a Algo que
dá corpo ao Nada. A vontade budista de se desembaraçar da ilu­
são (do desejo, da realidade fenomenal) é, com efeito, uma von­
tade de se desembaraçar do real desta/nesta ilusão, até ao núcleo
de Real que explica a nossa «ligação obstinada» à ilusão.
As implicações políticas desta posição são essenciais. Lem­
bremos a ideia comum de que o agressivo monoteísmo islâmico
32 Slavoj Zizek

(ou judaico) está na raiz do nosso dilema — contudo, a relação


entre o politeísmo e o monoteísmo será realmente uma relação
entre o múltiplo e a «totalização» opressiva pelo Um exclusivo
(«fálico»)? Não será antes o politeísmo que pressupõe o pano de
fundo partilhado da multiplicidade dos deuses, ao passo que o
monoteísmo pensa a distância como tal, distância que não só se­
para o Deus (único) de Si mesmo, mas que é esse Deus? Esta di­
ferença é uma diferença «pura»: não uma diferença entre enti­
dades positivas, mas diferença «como tal». Deste modo, o
monoteísmo é a única teologia consequente: contrariamente ao
múltiplo, que só pode manifestar-se no pano de fundo do Um, o
seu terreno neutro, como uma multidão de figuras no mesmo pa­
no de fundo (Espinosa, o filósofo do múltiplo, é assim, também,
muito logicamente, o grande monista, o filósofo do Um), a dife­
rença radical é a diferença do Um em relação a si mesmo, a não-
-coincidência do Um consigo próprio, com o seu próprio lugar.
Por isso, devido precisamente à Trindade, o cristianismo é o úni­
co verdadeiro monoteísmo: a lição da Trindade é o facto de Deus
coincidir plenamente com a distância entre Deus e o homem, o
facto de Deus ser essa distância — tal é Cristo, não o Deus do
além, separado do homem por uma distância, mas a distância co­
mo tal, a distância que separa, a um tempo, Deus de Deus e o ho­
mem do homem. Isso permite-nos também abordar o que há de
falso na concepção da Alteridade em Lévinas e Derrida: ela é o
preciso oposto dessa distância no Um, do redobramento inerente
do Um — a afirmação da Alteridade conduz à identidade abor­
recida, monótona, da própria Alteridade.
Uma velha anedota eslovena conta a história de um rapaz que
tem de fazer uma curta redacção intitulada «Mãe, há só uma», em
que deve ilustrar o amor que o liga à sua mãe a partir do relato de
uma experiência particular. O rapaz escreve portanto a sua redac­
ção: «Um dia voltei para casa mais cedo do que previsto porque
o professor estava doente e não houve aula. Procurei a minha
mãe, mas encontrei-a na cama, completamente nua, com um ho­
mem que não era o meu pai. Quando me viu, gritou: “Que fazes
aí, a olhar estupidamente para nós? Era melhor que fosses buscar-
A Marioneta e o Anão 33

-nos duas cervejas ao frigorífico!” Fui à cozinha, abri o frigorífi­


co, vi o que continha e depois gritei: “Uma, mãe, há só uma!”»
Não será este o exemplo supremo da interpretação que muda tu­
do pelo acrescento de um sinal diacrítico, como na paródia bem
conhecida das primeiras palavras de Moby Dick, «Chama-me,
Ishmael!»? Podemos discernir a mesma operação em Heidegger
(a maneira como ele lê «Nada é desprovido de razão» / nihil
sibne ratione», deslocando o sentido para «o Nada é desprovido
de razão»), ou na deslocação operada pelo superego no caso da
injunção proibitiva da Lei simbólica (de «Não mate» para
«Não!»... «Mate!»). Aqui, porém, deveríamos arriscar uma inter­
pretação mais pormenorizada. A piada leva à cena uma confron­
tação de tipo Hamlet entre o filho e o enigma do desejo excessi­
vo da mãe: para escapar a esse beco sem saída, a mãe encontra
refúgio, de certo modo, no desejo por um objecto parcial exterior,
a garrafa de cerveja, destinada a distrair a atenção do filho da Coi­
sa obscena, a presença da mãe, nua, na cama, com um homem.
A mensagem da mãe é: «Vês, mesmo que esteja na cama com um
homem, desejo outra coisa que podes trazer-me, não te excluo,
mesmo quando estou completamente apanhada na roda da paixão
com este homem!» As duas garrafas de cerveja representam tam­
bém a díade elementar significante, como, em Lacan, as duas por­
tas das casas de banho públicas observadas por dois miúdos a par­
tir da janela do compartimento de um comboio em «A instância
da letra no inconsciente». Nesta perspectiva, a resposta do rapaz
deve ser lida como transmitindo à mãe a elementar lição lacania-
na: «Tenho muita pena, mãe, mas só há um significante, apenas
para o homem, não há significante binário (para a mulher), esse
significante é ur-verdrangt, primitivamente reprimido!» Em su­
ma: foste descoberta nua, não estás coberta pelo significante... E,
nisto tudo, qual é a mensagem fundamental do monoteísmo? Não
a redução do Outro ao Um, mas, pelo contrário, a aceitação do
facto de que esse significante binário falta sempre/agora. Esse de­
sequilíbrio entre o Um e a sua contraparte «primitivamente repri­
mida» é a diferença radical, em contraste com os grandes pares
cosmológicos (yin e yang, etc.) que só podem emergir no hori­
34 Slavoj Zizek

zonte do Um indiferenciado (tao, etc.). E as tentativas para intro­


duzir uma dualidade equilibrada na esfera de consumo corrente,
como os pares de pacotinhos vermelhos e azuis de sacarina ex­
postos nos cafés, não serão elas novas tentativas desesperadas pa­
ra fornecer um significativo par simétrico para a diferença sexual
(pacotinhos azuis «masculinos» versus pacotinhos vermelhos «fe­
mininos»)? O essencial não é o facto de a diferença sexual ser o
significado fundamental de todos estes pares, mas de a sua proli­
feração manifestar uma tentativa para colmatar a falta do funda­
dor par binário significante que representasse directamente a di­
ferença sexual.
Além disso, não será a violência exclusivista, alegadamente
monoteísta, secretamente politeísta? O ódio fanático em relação
aos que crêem noutro Deus não testemunhará o facto de que o
monoteísmo pensa, secretamente, que está a combater não só fal­
sos crentes, mas que o seu combate é um combate entre deuses
diferentes, o combate do seu Deus contra «falsos deuses» que
existem enquanto deuses? Um tal monoteísmo é, com efeito, ex­
clusivista: é obrigado a excluir os outros deuses. Por isso, os ver­
dadeiros monoteísmos são tolerantes: para eles, os outros não são
objectos de ódio, mas simplesmente pessoas que, embora não es­
tejam iluminadas pela verdadeira crença, devem contudo ser res­
peitadas, pois não são intrinsecamente más.
Por conseguinte, o alvo que deveríamos focalizar é a própria
ideologia que nos é então proposta como uma solução possível, di­
gamos, por exemplo, a espiritualidade oriental (o budismo) e a sua
abordagem mais «suave», equilibrada, holística, ecológica (pense­
mos nas histórias de budistas tibetanos que evitam matar o menor
verme quando escavam para instalar os alicerces de uma casa). Ao
pregar o distanciamento interior e a indiferença pela concorrência
frenética do mercado, o budismo ocidental, esse fenómeno da cul­
tura pop, talvez seja o modo mais eficaz de participar plenamente
na dinâmica capitalista, guardando, pela mesma ocasião, uma apa­
rência de sanidade mental — em suma, a ideologia paradigmática
do capitalismo tardio. Mas não é tudo. Temos de dizer que tam­
bém já não é possível opor este budismo ocidental à sua «autênti­
A Marioneta e o Anão 35

ca» versão oriental; nesse aspecto, o caso do Japão fornece-nos


ensinamentos decisivos. A rápida industrialização e militarização
do Japão nos últimos cento e cinquenta anos, com a sua ética da
disciplina e do sacrifício, foi apoiada pela grande maioria dos pen­
sadores zen e hoje assistimos ao fenómeno corrente do «zen in­
dustrial» entre os dirigentes japoneses — actualmente, quem sabe
ainda que o próprio D. T. Suzuki, o grande guru zen da América
nos anos 60, foi, na sua juventude, no Japão dos anos 30, um ar­
dente defensor da disciplina total e da expansão militar13? Não há
aí qualquer contradição, qualquer perversão manipuladora da
ideia de compaixão interior: a atitude de imersão completa no
«agora» da Iluminação imediata — em que o «eu» não existe, to­
da a distância reflexiva é abolida e eu «sou o que faço», como dis­
se C. S. Lewis, em que, em suma, a disciplina absoluta coincide
com a espontaneidade total — legitima perfeitamente a subordi­
nação à máquina social militarista. Aqui, podemos ver como Al-
dous Huxley se enganara no seu livro A Eminência Parda, ao atri­
buir os aspectos destruidores do cristianismo (as cruzadas, etc.) ao
lugar essencial que os cristãos concedem aos sofrimentos de Cris­
to, opondo-lhes a benevolência do desprendimento budista.
Aqui, o elemento essencial é o modo como o zen militarista
justifica a violência de duas maneiras contraditórias. Por um la­
do, pela clássica narrativa teleológica, também aceitável pelas
religiões ocidentais: «Apesar de Buda ter proibido que matásse­
mos, também ensinou que nunca haverá paz enquanto todos os
seres sensíveis não estiverem unidos pela prática da compaixão
infinita. Por isso, o acto de matar e a guerra são necessários co­
mo meios para harmonizar as coisas incompatíveis»14. Portanto,
é a própria força da compaixão que empunha o sabre: um verda­
deiro guerreiro mata por amor, age como os pais que sovam o fi­
lho por amor, para o educar, preocupados com a sua futura feli­
cidade. Isso conduz-nos à ideia de uma «guerra de compaixão»
que dá vida, simultaneamente, ao combatente e ao inimigo, em
que o sabre que mata é o sabre que dá a vida. Foi assim que o
exército japonês entendeu e justificou a pilhagem brutal da Co­
reia e da China na década de 1930.
36 Slavoj Zizek

É certo que, em última análise, todas as coisas nada signifi­


cam, são um Vazio desprovido de substância; porém, não deve­
mos confundir o mundo transcendental desprovido de forma (mu-
kei) com o mundo temporal da forma (yükei), ignorando assim a
unidade fundamental entre essas duas dimensões. Esse foi o erro
do socialismo: querer realizar directamente a unidade fundamen­
tal (a «má igualdade») na realidade temporal, causando desse
modo a destruição social. Esta posição pode lembrar a crítica en­
dereçada por Hegel ao Terror revolucionário em A Fenomenolo­
gía do Espírito — tal como certas fórmulas propostas por alguns
pensadores do budismo zen (Shimaji Mokurai escreveu que «a
diferenciação é idêntica à igualdade»15) não podem deixar de nos
recordar a célebre asserção especulativa de Hegel sobre «a iden­
tidade entre identidade e diferença». Contudo, a cambiante é evi­
dente: Hegel nada tem a ver com a visão pseudo-hegeliana (de­
fendida por certos hegelianos conservadores como Bradley e
McTaggart) da sociedade como Totalidade orgânica harmoniosa,
em que cada membro afirma a sua «igualdade» com os outros
realizando o seu dever particular, ocupando o seu lugar peculiar
e contribuindo, desse modo, para a harmonia da Totalidade. Pelo
contrário: para Hegel, o «mundo transcendente da ausência de
forma» (em suma, o Absoluto) está em guerra consigo próprio, o
que significa que a ausência de forma (auto)destruidora (a nega-
tividade absoluta, que se refere a si mesma) deve aparecer como
tal no reino da realidade finita — o essencial da concepção he-
geliana do Terror revolucionário é precisamente que se trata de
um momento necessário no desdobramento da liberdade.

Contudo, para voltar ao budismo zen, essa justificação «teleoló-


gica» (a guerra é um mal necessário empreendido para engendrar
um bem superior: «Qualquer batalha, seja ela qual for, deve ser tra­
vada para antecipar a paz»16) é acompanhada por um raciocínio
mais radical, em que, de forma muito mais directa, «zen e sabre
formam uma mesma identidade»17. Este raciocínio fundamenta-se
numa oposição entre a atitude reflexiva que temos na vida quoti­
diana (desejamos a vida e tememos a morte, lutamos por prazeres
A Marioneta e o Anão 37

e vantagens egoístas, hesitamos e pensamos em vez de agirmos di­


rectamente) e a posição daquele que recebeu a iluminação, que
mostra que a diferença entre vida e morte deixou de ter importân­
cia, que nos permite redescobrir a unidade original em que o «eu»
não existe e em que somos directamente o nosso acto. Num curto-
-circuito único, os mestres militares do zen interpretam a mensa­
gem zen fundamental (a libertação está na perda do Eu, na união
imediata com o Vazio primordial) como idêntica à fidelidade total
do soldado, à obediência mecânica às ordens, e à realização, para
cada um, do seu dever, sem consideração pelo Eu e pelos seus in­
teresses. A clássica concepção antimilitarista — os soldados são
ensinados a marchar de modo a levá-los a uma espécie de subor­
dinação cega e a fazê-los obedecer como marionetas — é aqui afir­
mada como idêntica à iluminação zen. Eis como Ishihara Shunm-
yô exprimiu essa ideia, falando de uma interpelação directa,
excluindo a reflexão, em termos quase althusserianos:

O zen insiste muito na necessidade de não pararmos a nossa


mente. Logo que esfregamos um sílex, a faísca jorra. Não existe
o menor desfasamento temporal entre estes dois acontecimentos.
Se nos pedirem para olharmos em frente, olhamos simplesmente
em frente, tão rápidos como um raio de luz. (...) Se formos cha­
mados pelo nosso nome, por exemplo «Uemon», devemos res­
ponder simplesmente «Sim», sem nos determos para conjecturar
por que motivo pronunciaram o nosso nome... Creio que, se for­
mos chamados a morrer, não devemos sentir a menor agitação18.

Na medida em que a subjectividade como tal é histérica, uma


vez que emerge através do questionamento da interpelação do
Outro, encontramos aqui a descrição perfeita de uma dessubjecti-
vação perversa: o sujeito evita a sua divisão constitutiva posicio­
nando-se directamente como instrumento da Vontade do Outro19.
E o que é crucial nesta versão radical é que ela rejeita explicita­
mente toda a mixórdia religiosa geralmente associada ao budismo
popular e defende o regresso à versão original, terra-a-terra e
ateia, do próprio Buda: como sublinhou Furukawa Taigo 20, não
38 Slavoj Zizek

há salvação depois da morte, não há uma vida no além, nem espí­


ritos nem divindades para nos assistirem, não há reencamação, há
apenas esta vida que é directamente idêntica à morte. Nesta atitu­
de, o guerreiro já não age como uma pessoa, está totalmente des-
subjectivado — ou, para retomar os termos de D. T. Suzuki: «No
caso do homem que ergue o sabre por obrigação, (...) não é ele
que mata, mas o próprio sabre. Ele não deseja fazer mal a quem
quer que seja, mas o inimigo apresenta-se e transforma-se, ele
próprio, em vítima. É como se o sabre realizasse automaticamen­
te a sua função de justiça, que é uma função de misericórdia»21.
Não constituirá esta descrição do acto de matar o exemplo supre­
mo da atitude fenomenológica que, em vez de intervir na realida­
de, deixa as coisas aparecerem como elas são? É o próprio sabre
que realiza o acto de matar, é o próprio inimigo que se apresenta
e se transforma em vítima — eu nada posso fazer a esse respeito,
estou reduzido ao estatuto de observador passivo dos meus pró­
prios actos. Factos como este mostram que o famoso «olhar do
Buda» pode ser posto ao serviço da mais implacável máquina
mortífera. Deste modo, talvez os dois grandes papéis de Ben
Kingsley no cinema — o de Gandhi e o de um gángster inglês ex­
tremamente brutal em Sexy Beast — revelem uma profunda afini­
dade: este último não será a actualização plena das potencialida­
des escondidas do primeiro? A paradoxal conclusão pascaliana
desta versão radicalmente ateia do zen é o facto de, visto não ha­
ver substância interior à religião, a essência da fé ser o próprio de-
corum, o respeito pelo ritual como tal22. Qual é então a diferença
entre esta legitimação da violência do «guerreiro zen» e a longa
tradição ocidental que, de Cristo a Che Guevara, apregoa também
o recurso à violência como «obra de amor»? Citemos, por exem­
plo, algumas linhas do diário de Che Guevara:

Deixem-me dizer, correndo o risco de parecer ridículo, que o


verdadeiro revolucionário é guiado por fortes sentimentos de ge­
nerosidade. E impossível imaginar um autêntico revolucionário
sem essa qualidade. Talvez este seja um dos grandes dramas do
dirigente: ter de combinar um temperamento apaixonado com
A Marioneta e o Anão 39

uma inteligência fria (e tomar decisões dolorosas sem contrair um


único músculo). Os nossos revolucionários vanguardistas devem
idealizar esse amor pelos povos, pelas causas mais sagradas, e
tomá-lo único, indivisível. Não podem aplicar a sua sensibilida­
de, com pequenas doses diárias de afecto, nas coisas em que pes­
soas comuns costumam aplicar o seu amor23.

Embora seja necessário ter consciência dos perigos de uma


«cristificação do Che», a transformação deste em objecto de
consumo para a esquerda caviar, em mártir pronto a morrer por
amor pela humanidade24, talvez devêssemos correr antes o risco
inerente a este desvio radicalizando-o, para propor uma «gueva-
rização» do próprio Cristo — o Cristo, cujas palavras «escanda­
losas» transmitidas por Lucas («Se alguém vier a mim, e não
aborrecer seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs, e
ainda também a sua própria vida, não pode ser meu discípulo»,
14: 26) apontam exactamente no mesmo sentido que uma céle­
bre fórmula do Che: «Talvez tenhais de ser duros, mas não per­
dei a vossa ternura. Talvez tenhais de cortar as flores, mas isso
não impedirá o regresso da Primavera»25. Portanto, mais uma
vez, se os actos de violência revolucionária de Lenine eram
«obras de amor» no estrito sentido kierkegaardiano do termo, on­
de está a diferença entre Lenine e o «guerreiro zen»? Só há uma
resposta consequente: não se trata de dizer que, contrariamente
às agressões militares japonesas, a violência revolucionária visa,
«verdadeiramente», estabelecer uma harmonia não violenta; pe­
lo contrário, a autêntica libertação revolucionária está muito
mais directamente identificada com a violência — ela é uma vio­
lência como tal (o gesto violento de rejeitar, estabelecer uma di­
ferença, traçar uma linha de separação), que liberta. A liberdade
não é um estado perfeitamente neutro de harmonia e equilíbrio,
mas o acto violento que perturba esse equilíbrio26.
No entanto, é demasiado simplista dizer que esta versão mili­
tarista do zen é uma perversão da autêntica mensagem zen, ou
ver nela a «verdade» sinistra do zen. A verdade é muito mais in­
suportável: e se o zen, no seu próprio núcleo, fosse ambíguo, ou
40 Slavoj Zizek

melhor, completamente indiferente a esta alternativa? E se —


pensamento assustador — a técnica de meditação zen fosse fun­
damentalmente isso mesmo: uma técnica espiritual, um instru­
mento eticamente neutro que pode servir para diferentes utiliza­
ções sociopolíticas, das mais pacíficas às mais destrutivas?
(Nesse aspecto, Suzuki tinha razão ao sublinhar que o budismo
zen podia ser associado a qualquer tipo de filosofia ou de opção
política, do anarquismo ao fascismo27.) Que aspectos da tradição
budista se prestaram a uma deformação tão monstruosa? Preci­
samente os mesmos que insistem sobre o valor da compaixão e da
paz interior. Ichikawa Hakugen, o budista japonês que elaborou a
autocrítica mais radical depois da derrota do Japão em 1945, es­
tabeleceu a lista das doze especificidades históricas do budismo
japonês que prepararam o terreno para o militarismo. Não admi­
ra que tivesse de incluir praticamente todos os princípios funda­
mentais do próprio budismo: a doutrina da interdependência de
todos os fenómenos e a doutrina do não-eu a ela ligada; a ausên­
cia de dogma sólido e de deus pessoal; o privilégio dado à sere­
nidade em detrimento da justiça.. .28 Na Bhagavad-Guitá, o deus
Krishna dirige-se a Arjuna, o rei-guerreiro que hesita combater,
horrorizado pelos sofrimentos que pode provocar. Na mesma or­
dem de ideias, a resposta merece ser longamente citada:

Aquele que crê que tem poder para matar


e aquele que pensa que também há-de morrer
não entenderam nada, ambos, e só se enganam,
porque não há ninguém que mate nem que morra.

Ele nunca nasce nem tão-pouco morrerá jamais


nem começou a existir para acabar um dia:
não nascido e eterno, permanente, antigo-uno,
na verdade, não morre, quando o corpo deixa a vida.

Aquele que sabe Deste indestrutível,


eterno, não nascido e uno-imperecível,
um tal homem, ó Filho de Prithá,
pode mandar matar, ou ele próprio matar?
A Marioneta e o Anão 41

Um homem deita fora o seu fato muito velho


para trocá-lo, então, por outro fato novo em folha;
assim, do mesmo modo actua o encarnado átma,
que já não quer o corpo usado e procura um novo.

As armas não O podem matar nunca


nem tem poder, o fogo, pra queimá-Lo,
tal como a água não O molha nunca
também o vento nunca mais O seca.

Não pode ser ferido nem queimado


nem pode ser molhado nem enxuto:
eterno, omnipresente que não bule,
imóvel, imortal, invariável.
(...)

Este Eu, encarnado nestes corpos,


é imortal, ó Grão Filho de Bhárata;
portanto, tu não deves lamentar
nenhum ser em nenhuma circunstância.

E não tremas depois d ’avaliar


teu dharma pessòal, porque não há
nada, nada melhor pra um guerreiro
do que combate em harmonia com seu dharma.
(- )

Se tu morreres, então, tu ganharás o Céu;


e, sobre a Terra reinarás, se vencedor.
Levanta-te, portanto, ó Filho de Kuntí
para a batalha firmemente resoluto.

Encara dor, prazer e ganho e perda


e vitória e derrota, como iguais,
e lança-te na frente da batalha:
desta maneira evitarás pecar*.
* A Bhagavad-Guitá, Poema do Senhor, tradução portuguesa de António Bara-
hona, ed. Relógio D ’Água, 1996. (N. T.)
42 Slavoj Zizek

Mais uma vez, a conclusão é evidente: se, em última análise,


a realidade exterior não passar de uma aparência efémera, os cri­
mes mais horrorosos não têm, eventualmente, nenhuma impor­
tância. Este é o ponto essencial da doutrina do não-envolvi-
mento, da acção desinteressada: age como se isso não tivesse
importância, como se não fosses um agente, como se as coisas,
inclusive os teus próprios actos, acontecessem unicamente de um
modo impessoal... É difícil resistir à tentação de parafrasear es­
ta passagem como justificação para a destruição dos judeus nas
câmaras de gás pelo seu executor, num momento de dúvida: se
«aquele que tem poder para matar e aquele que pensa que tam­
bém há-de morrer / só se enganam», se «ele nunca nasce nem
tão-pouco morrerá jamais / nem começou a existir para acabar
um dia: / não nascido e eterno (...) na verdade, não morre, quan­
do o corpo deixa a vida», se «portanto, tu não deves lamentar /
nenhum ser em nenhuma circunstância», por conseguinte não
tens de lamentar os judeus massacrados, «encara dor, prazer e
ganho e perda / e vitória e derrota, como iguais», e executa as or­
dens que te d ão ... Não admira que a Bhagavad-Guitá tenha sido
o livro preferido de Heinrich Himmler, que, segundo consta, tra­
zia sempre um exemplar desta obra no bolso do seu uniforme29.
Isto significa que a compaixão generalizada budista (ou, aliás,
neste caso, hindu) deve ser oposta ao amor cristão, violento e in­
tolerante. A posição budista é, fundamentalmente, uma posição
de indiferença; ela consiste em apagar todas as paixões que pro­
curam estabelecer diferenças, ao passo que o amor cristão é uma
paixão violenta que visa introduzir uma Diferença, uma separa­
ção na ordem do ser, que procura privilegiar e elevar um objecto
à custa de outros. O amor é violência, e não (apenas) no sentido
vulgar do provérbio balcânico: «Se ele não me bate, então não
me ama!»; a violência é já a escolha do amor como tal, que ar­
ranca o objecto do seu contexto, elevando-o, para fazer dele a
Coisa. No folclore montenegrino, a origem do mal é uma linda
mulher: ela faz perder a cabeça aos homens que estão à sua vol­
ta, desestabiliza literalmente o universo, colora parcialmente to­
das as coisas30. Este mesmo motivo foi uma das constantes da
A Marioneta e o Anão 43

pedagogia soviética a partir do início da década de 1920: a se­


xualidade é intrinsecamente patológica, ela contamina a equili­
brada lógica fria por meio de um pathos particular; a excitação
sexual é a perturbação associada à corrupção burguesa e, na
União Soviética dessa década, numerosas investigações «mate­
rialistas» psicofisiológicas procuravam demonstrar que a excita­
ção sexual era um estado patológico31... Estas explosões antife­
ministas estão muito mais perto da verdade do que a tolerância
asseptizada em relação à sexualidade.

N otas

1. Ver F. W. J. Schelling, The Ages o f the World Albany, SUNY Press, 2000.
2. G. K. Chesterton, Orthodoxy, São Francisco, Ignatius Press, 1995, p. 139.
3. Ibid., p. 145.
4. Ibid.
5. Ibid.
6. Ver a análise pormenorizada de William Klassen em Judas. Betrayer or
Friend o f Jesus?, Minneapolis, Fortress Press, 1996.
7. Sõren Kierkegaard, Fear and Trembling, Princeton, Princeton University
Press, 1983, p. 115 (ed. port.: Temor e Tremor, Guimarães Editores, 1959).
8. Chesterton, op. cit., p. 138.
9. Darian Leader, Stealing the Mona Lisa: What Art Stops Us from Seeing,
Londres, Faber and Faber, 2002, pp. 38-39.
10. «Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam
nus» (Génesis, 3: 7). O que poderá isto significar a não ser que os olhos de Adão
e Eva se abriram pelo facto de os seus corpos estarem a ser olhados"! Quando
sei que estou nu, isso significa que sei que estou exposto ao olhar do Outro.
11. C. S. Lewis, Surprised by Joy, Londres, Fontana Books, 1977, pp. 174-175.
12. Citado em Orville Schell, Virtual Tibet, Nova Iorque, Henry Holt and
Company, 2000, p. 80.
13. Brian A. Victoria, Zen at War, Nova Iorque, Weatherhilt, 1998.
14. Shaku Soen, cit. ibid., p. 29.
15. Victoria, cit. ibid., p. 50.
16. Seki Seisetsu, cit. ibid., p. 113.
17. Fueoka Seisen, cit. ibid., p. 100.
18. Cit. ibid. p. 103.
19. Em que momento surge a histeria feminina? Numa primeira abordagem,
pode parecer que ela aparece quando uma mulher é tratada unicamente como
44 Slavoj Zizek

um meio, quando é manipulada (lembremo-nos que Dora pensa ser explorada


pelo pai e oferecida ao Sr. K. para que, em troca, o pai possa possuir a Sr." K.).
Mas, na realidade, não será precisamente o contrário? Não é precisamente na
altura em que uma mulher é tratada «não só como um meio, mas também
como um fim em si», para parafrasear o imperativo categórico kantiano, que
surge a questão histérica? É este «mais» do fim em relação ao meio que origi­
na a pergunta: o que vês em mim, o que sou afinal, que é mais do que um sim­
ples meio para satisfazer algumas das tuas necessidades?
20. Victoria, op. cit., p. 103.
21. Citado em Victoria, op. cit., p. 110.
22. Victoria, op. cit., p. 104.
23. Citado em Jon Lee Anderson, Che Guevara: A Revolutionary Life, No­
va Iorque, Grove, 1997, pp. 636-637.
24. Ver, a este respeito, duas imagens célebres — a foto do Che em que se as­
semelha a Cristo, tirada em Havana em 1963, e o Che kitsch com uma coroa de
espinhos, representado numa publicidade da Igreja anglicana de Inglaterra. Re­
produzido em Peter McLaren, Che Guevara, Paulo Freire, And the Pedagogy o f
Revolution, Oxford, Rowman and Littlefield Publishers, 2000, pp. 12-13.
25. Citado em McLaren, op. cit., p. 27.
26. Lembro-me de uma observação de Fredric Jameson durante uma con­
versa privada. Segundo ele, a violência, num processo revolucionário, desem­
penha um papel análogo ao da riqueza na legitimação protestante do capitalis­
mo: embora não tenha valor intrínseco (e, consequentemente, não deva ser
transformada em fetiche e celebrada por si mesma, contrariamente ao que fa­
zem os fascistas, fascinados por ela), ela é o sinal da autenticidade da nossa ten­
tativa revolucionária. Quando o inimigo nos resiste e nos combate violenta­
mente, isso significa que fomos eficazes e que tocámos no seu ponto sensível...
27. Brian Victoria, op. cit., p. 132.
28. Brian Victoria, op. cit., pp. 171-174.
29. Podemos recordar o relato de Caetano Veloso sobre a sua estadia nas pri­
sões da ditadura militar brasileira, na sua autobiografia Verdade Tropical. Co­
mo em muitas correntes da contracultura brasileira, os militares brasileiros ti­
nham adoptado uma espécie de misticismo de inspiração oriental como religião
não oficial. Salvavam as aparências defendendo oficialmente um catolicismo
conservador e não hesitavam prender os dissidentes acusados de defenderem
opiniões iconoclastas, estranhas ao catolicismo.
30. Não é de admirar que, no final do século xix, a noite de núpcias fosse
objecto de um estranho ritual no Montenegro:na noite do seu casamento, o fi­
lho deitava-se com a mãe e quando adormecia esta retirava-se silenciosamente,
deixando o seu lugar para a jovem esposa. Depois de ter passado o resto da noi­
te com a sua mulher, o filho tinha de escapar da aldeia para uma montanha, on­
de passava alguns dias a fim de se habituar à vergonha de estar casado.
31. Eric Naiman, Sex in Public: the Incarnation o f Early Soviet Ideology,
Princeton, Princeton University Press, 1997, nomeadamente o capítulo III.
C apítulo II

O ROMANCE EMPOLGANTE DA ORTODOXIA

O modelo fundamental de Chesterton é o do «romance em­


polgante da ortodoxia»: de um modo propriamente leninista, ele
afirma que, longe de ser aborrecida, rotineira e segura, não há
aventura mais audaciosa e perigosa do que a busca efectuada pe­
la ortodoxia (exactamente como a busca leninista pela verdadei­
ra ortodoxia marxista — quanto mais fácil, menos arriscada e
menos exigente, é a conclusão revisionista segundo a qual a mu­
dança das circunstâncias históricas exige um «novo paradigma»
e como ela se acomoda melhor ao oportunismo e à preguiça teó­
rica!):

Os homens tomaram o hábito um tanto tolo de falar da ortodo­


xia como algo de pesado, monótono, isento de perigo. Nunca hou­
ve nada tão perigoso e tão excitante como a ortodoxia1.

Lembremos o impasse em que se encontram hoje tanto a arte


como a sexualidade: haverá algo mais estéril, aborrecido e opor­
tunista do que sucumbir à injunção do superego para inventar
constantemente novas transgressões e provocações artísticas (co­
mo os artistas/autores de performances, que se masturbam no
palco ou praticam incisões no próprio corpo, e como os esculto­
res que expõem cadáveres de animais em decomposição ou ex-
46 Slavoj Zizek

crementos humanos), ou à exigência, paralela, de praticar formas


cada vez mais «atrevidas» de sexualidade? Só podemos admirar
a coerência de Chesterton: ele desenvolve o mesmo modelo con­
ceptual — o da afirmação do carácter verdadeiramente subversi­
vo, até revolucionário, da ortodoxia — na sua célebre «Defesa do
romance policial», artigo em que observa que o romance policial
«coloca, de certo modo, face ao nosso espírito, o facto de a pró­
pria civilização constituir a ruptura mais sensacional e a rebelião
mais romântica. Quando o detective de um romance policial es­
tá só e manifesta a sua coragem de forma um tanto tola, num an­
tro de bandidos, por entre facas e punhos, isso serve certamente
para nos lembrar que a figura verdadeiramente original e poética
é a figura do agente da justiça social, ao passo que os grandes as­
saltantes e bandidos não passam de velhos conservadores cósmi­
cos, felizes na respeitabilidade milenar dos macacos e dos lobos.
O romance policial baseia-se no facto de a moral ser a conspira­
ção mais sombria e audaciosa»2.
Aqui, não é difícil reconhecer a matriz fundamental do pro­
cesso dialéctico hegeliano: a oposição exterior (entre a lei e a sua
transgressão) transforma-se numa oposição interna à própria
transgressão, entre as transgressões particulares e a transgressão
absoluta que aparece como o seu oposto, ou seja, como a Lei uni­
versal3. Podemos portanto afirmar que o carácter subversivo da
obra de Chesterton reside numa variação infinita sobre o mesmo
modelo da paradoxal inversão hegeliana da negação; o próprio
Chesterton caracteriza de forma zombeteira a sua obra como uma
variação em tomo de «uma mesma e fastidiosa piada»4. E se, no
nosso mundo pós-modemo, em que a transgressão está consa­
grada e o casamento é visto como uma coisa ridícula e ultrapas­
sada, os verdadeiros subversivos fossem os que persistem agar­
rados a ele? E se hoje o casamento tradicional se tivesse tornado
na «mais sombria e audaciosa de todas as transgressões»? Esta
ideia é o ponto de partida de um filme de Em st Lubitsch, Uma
Mulher para Dois (1933), inspirado numa peça de Noel Coward:
trata-se da história de uma mulher que leva uma vida feliz e tran­
quila com dois homens; desejosa de tentar uma experiência peri-
A Marioneta e o Anão 47

gosa, procura o casamento tradicional, com um só parceiro: a


tentativa falha lamentavelmente e ela recomeça a viver tranqui­
lamente com os seus dois homens.
Nas últimas páginas de Orthodoxy, Chesterton desenvolve o
paradoxo hegeliano fundamental daqueles que fazem urna crítica
pseudo-revolucionária da religião: eles começam por denunciar a
religião como uma força opressiva que ameaça a liberdade huma­
na; mas, no seu combate contra a religião, são levados a abando­
nar a própria liberdade, sacrificando assim o que queriam precisa­
mente defender — a primeira vítima da rejeição prática e teórica
da religião pelos ateus não é a religião (que continua a existir, im­
perturbável), mas a liberdade que essa mesma religião suposta­
mente ameaçava. O universo dos ateus, privado de referência re­
ligiosa, é o mundo cinzento do terror e da tirania igualitária:

Os homens que começam por atacar a Igreja em nome da li­


berdade e da humanidade acabam por dar cabo da liberdade se
quiserem combater apenas a Igreja. (...) Conheço um homem que
põe tanta paixão a negar qualquer existência pessoal depois da
morte, que chega a negar a sua própria existência actual. (...) Co­
nheci pessoas que demonstravam não poder haver julgamento di­
vino demonstrando que não pode haver julgamento humano.(...)
Não admiramos, e dificilmente desculpamos, o fanático que des-
trói este mundo por amor pelo outro — mas que dizer do fanáti­
co que destrói este mundo por ódio pelo outro? Ele sacrifica a
existência da própria humanidade pela não-existência de Deus.
Não oferece as suas vítimas ao altar, sacrifica-as para afirmar a
futilidade do altar e o vazio do trono (...). Com as suas dúvidas
orientais sobre a personalidade, não nos dá a certeza de que não
teremos uma vida pessoal no Além — dá-nos a certeza de que não
teremos uma vida muito agradável ou completa nesta terra. (...)
Os secularistas não destruíram as coisas divinas, mas arruinaram
as coisas profanas, se isso lhes for de algum reconforto5.

A única coisa que hoje podemos acrescentar a isto é o facto de


acontecer precisamente o mesmo com os turiferários da própria
48 Slavoj Zizek

religião: quantos defensores fanáticos da religião começaram por


um ataque feroz à cultura secular contemporânea para acabarem
por abandonar a própria religião (perdendo qualquer experiência
religiosa significativa)? Também não será verdade dizer, num
sentido estritamente comparável, que os combatentes do libera­
lismo, tão prontos a lutar contra o fundamentalismo antidemo­
crático, acabam também por se desembaraçar da própria liber­
dade e da própria democracia se lutarem apenas contra o
terrorismo? Manifestam tanto entusiasmo para provar que o fun­
damentalismo não cristão é a ameaça fundamental à liberdade,
que estão dispostos a recorrer à ideia de que devemos limitar as
nossas próprias liberdades, aqui e agora, nas nossas sociedades
alegadamente cristãs. Se os «terroristas» estão dispostos a des­
truir este mundo em nome do amor pelo outro, os nossos com­
batentes contra o terrorismo, enlouquecidos de ódio pelo Outro
muçulmano, estão dispostos a destruir o seu próprio mundo de­
mocrático. Jonathan Alter e Alan Derschowitz mostram tanto
respeito pela dignidade humana, que estão dispostos a legalizar a
tortura — ou seja, a suprema degradação da dignidade humana
— em nome da sua defesa...
Quando Alan Derschowitz6 condena não só o que considera
como as reticências da comunidade internacional na luta contra
o terrorismo, como também nos convida a «pensar o impensá­
vel», por exemplo, a legalização da tortura, ou seja, uma modifi­
cação das leis de modo a que os tribunais, em circunstâncias ex­
cepcionais, tenham o direito de emitir «mandados de tortura»,
não é tão fácil responder à sua argumentação como poderíamos
julgar. Em primeiro lugar, a tortura será verdadeiramente «im­
pensável»? Não terá existido sempre e em toda a parte? Em se­
gundo lugar, se seguirmos a argumentação de tipo utilitarista de
Derschowitz, não poderíamos defender também a legitimidade
do próprio terror? Se for necessário torturar um terrorista por ele
deter informações susceptíveis de causar a morte de numerosos
inocentes, porque não apoiar completamente o terror, pelo menos
contra as forças policiais e militares que travam uma guerra in­
justa de ocupação, se o terror puder impedir a violência a uma es­
A Marioneta e o Anão 49

cala bem mais superior? Encontramos aqui um belo exemplo da


oposição hegeliana entre o «Em-si» e o «Para-si»: atendendo aos
seus objectivos explícitos, é óbvio que,para si, Derschowitz ata­
ca violentamente o terrorismo, mas, em si, sucumbe-lhe, pois a
sua argumentação contra o terrorismo retoma uma das premissas
fundamentais do próprio terrorismo.
Será que não encontramos este mecanismo no desprezo pós-
-moderno pelas grandes causas ideológicas, na noção segundo a
qual, na nossa época pós-ideológica, em vez de procurarmos mu­
dar o mundo, deveríamos antes reinventar-nos a nós próprios,
reinventar todo o nosso universo, enveredando por novas formas
(sexuais, espirituais, estéticas...) de práticas subjectivas? Como
disse Hanif Kureishi numa entrevista sobre o seu livro Intimida­
de: «Há vinte anos, procurar fazer a revolução e mudar a socie­
dade era um acto político; hoje, a política está reduzida a dois
corpos que fazem amor numa cave e podem recriar todo o uni­
verso»... Perante declarações destas, só podemos recordar a ve­
lha lição da teoria crítica: quando procuramos preservar a esfera
íntima e autêntica da vida privada contra as investidas da troca
pública «alienada», é a própria vida privada que se toma numa
esfera totalmente instrumentalizada, objectivada e mercantiliza-
da. Hoje, o retiro para a vida privada implica a adopção das fór­
mulas de autenticidade privada propaladas pela nova indústria
cultural — das lições de iluminação espiritual às últimas modas
culturais, passando pela prática regular do jogging ou do cultu-
rismo. A confissão pública destes segredos num show televisivo
tornou-se a verdade suprema do retiro para a esfera privada —
contra este tipo de concepção do privado, temos de insistir no
facto de que a única maneira de sair dos limites impostos pela
mercantilização e pela «alienação» consiste em inventar uma no­
va maneira de viver juntos. Nesse aspecto, a lição dos romances
de Marguerite Duras é mais pertinente que nunca: o meio — o
único meio — para um casal viver uma relação verdadeiramente
intensa e pessoal (sexual e amorosa) não consiste em ficarem a
olhar um para o outro, esquecendo o mundo à sua volta, mas em
olharem juntos, de mãos dadas, para o exterior, para um terceiro
50 Slavoj Zizek

ponto (a causa pela qual ambos lutam, a via que ambos decidi­
ram seguir).
O resultado básico da subjectivação globalizada não é o desa­
parecimento da «realidade objectiva», mas o da própria subjecti­
vidade, que se torna uma fantasia fútil, ao passo que a realidade
social prossegue o seu caminho. Aqui, somos tentados a parafra­
sear a célebre resposta de Winston Smith quando, ao ser interro­
gado, pôs em questão a existência do Big Brother — «Tu é que
não existes!»: a única resposta apropriada às dúvidas pós-
-modemas quanto à existência do grande Outro ideológico con­
siste em dizer que é o próprio sujeito que não existe... Não ad­
mira que a nossa época — cuja proposição de base está resumida
exemplarmente no título do recente best-seller de Phillip
McGraw, SelfM atters, que nos ensina como «recriar inteiramen­
te toda a nossa vida a partir do interior» — encontre o seu com­
plemento lógico em títulos como How To Disappear Completely,
manuais que nos explicam como apagar todos os vestígios da
nossa existência precedente e «reinventar» a nossa subjectivi­
dade de uma ponta à outra7. É aí que o zen propriamente dito di­
verge da sua versão ocidental «acomodatícia»: a verdadeira gran­
deza do zen consiste em não poder ser reduzido a uma «viagem
interior» ao nosso «verdadeiro eu»; a finalidade da meditação
zen consiste, pelo contrário, em esvaziar totalmente o «eu», em
aceitar que o «eu» não existe e que não há nenhuma verdade in­
terior para descobrir. Aquilo que o budismo ocidental não está
pronto a aceitar é, por conseguinte, que a vítima fundamental da
«viagem ao interior do nosso verdadeiro eu» seja o próprio «eu».
De modo mais geral, não encontramos a mesma lição em A Dia­
léctica da Razão, de Adorno e Horkheimer? A vítima fundamen­
tal do positivismo não são as noções metafísicas confusas, mas
os próprios factos; o prosseguimento radical da secularização, o
movimento para a nossa vida no mundo, transformam essa pró­
pria vida num processo anémico «abstracto». Não há obra como
a de Sade em que esta inversão paradoxal seja mais tangível; ne­
la, a afirmação liberta de qualquer constrangimento de uma se­
xualidade privada dos últimos vestígios da transcendência espi-
A Marioneta e o Anão 51

ritual transforma a própria sexualidade num exercício mecânico


desprovido de autêntica paixão sensual. E uma inversão do mes­
mo tipo não estará manifesta no impasse em que se encontram os
«Últimos Homens» dos nossos dias, esses indivíduos «pós-
-modernos» que rejeitam todos os propósitos «superiores» como
terroristas e consagram as suas vidas a uma sobrevivência reple­
ta de pequenos prazeres cada vez mais requintados e excita­
dos/despertos artificialmente?
Na psicanálise, o caso supremo desta inversão talvez seja a
emergência do chamado «carácter anal»: o que começa quando
a criança recusa ceder os seus excrementos ao ser solicitada a
fazê-lo, preferindo guardá-los para si, pois não deseja ver-se pri­
vada do excesso de gozo que representa fazê-lo nos seus próprios
termos, acaba na figura adulta do avarento, do sovina, um sujei­
to que dedica a sua vida a acumular o seu tesouro e que paga por
ele o preço de uma renúncia infinitamente mais elevada: não lhe
é permitido nenhum consumo, nenhuma satisfação nos prazeres,
tudo deve servir para a acumulação do seu tesouro... O parado­
xo é que, quando a criança recusa a «castração» (ceder o privile­
giado objecto destacável), toma o caminho que acabará na sua
completa autocastração no domínio do Real, ou seja, a sua recu­
sa em ceder o objecto em excesso condená-la-á à proibição de
fruir de qualquer outro objecto. Por outras palavras, a sua rejei­
ção do pedido do Outro parental (comportar-se convenientemen­
te na casa de banho) resultará na regra do superego interiorizado
de um Outro, infinitamente mais cruel, que dominará por com­
pleto o seu consumo. E isto conduz-nos ao princípio da «Alegria
Condicional» de Chesterton: ao recusar a excepção fundadora
(ceder o objecto em excesso), o avaro é privado de todos os ob­
jectos.
A versão suprema desta inversão paradoxal em Chesterton tal­
vez resida na relação entre magia e realidade. Para Chesterton,
realidade e magia estão longe de ser simples oposições: a magia
mais extraordinária é a da própria realidade, o facto de existir no
real um mundo cheio de riquezas e maravilhas. Isso também se
aplica à tensão dialéctica entre repetição e criatividade: é preci-
52 Slavoj Zizek

so abandonar a ideia errada de que a repetição equivale à morte,


ao automático movimento mecânico, ao passo que a vida repre­
sentaria a diversidade, a surpresa. A maior surpresa, a maior pro­
va da criatividade divina é o facto de a mesma coisa se repetir in­
definidamente:

O Sol levanta-se todas as manhãs. Eu não me levanto todas as


manhãs; contudo, esta variação não é devida à minha actividade,
mas à minha inacção. (...) É possível que o Sol se levante regu­
larmente por nunca se cansar de o fazer. E possível que a sua ro­
tina seja devida não a uma ausência de vida, mas a uma manifes­
tação de vida (...) Uma criança balouça cadenciadamente as
pernas por excesso, não por ausência de vitalidade. Por transbor­
darem de vitalidade, por serem livres e independentes de espírito,
as crianças querem que as coisas se repitam e permaneçam as
mesmas. Dizem sempre «Outra vez!» e o adulto recomeça até fi­
car extenuado. Mas talvez Deus seja suficientemente forte para
exultar na monotonia... E possível que diga todas as manhãs ao
Sol: «Outra vez!»°

Isto é o que Hegel chama de unidade dialéctica dos contrários:


a monotonia é a idiossincrasia mais elevada; a repetição exige o
mais elevado esforço criativo... Chesterton não estará assim a
fomecer-nos a chave para o estranho ritual asteca que consistia
em sacrificar vidas humanas ao Sol para que este despontasse no
dia seguinte? Esta atitude torna-se compreensível logo que con­
seguimos apreender o esforço infinito necessário para apoiar
uma repetição infinita deste tipo. O facto de Chesterton falar
inadvertidamente — a propósito deste milagre da repetição inin­
terrupta — de «deuses» (no plural9) talvez seja essencial: esta
percepção da repetição não como um automatismo cego, mas co­
mo um milagre do mais elevado esforço da vontade, não terá al­
go de profundamente pagão? Num outro nível, marxistas inteli­
gentes evocaram o mesmo problema: visto que as coisas mudam
quando os acontecimentos seguem o seu curso «natural», a ver­
dadeira dificuldade não está em explicar as mudanças sociais,
A Marioneta e o Anão 53

mas, ao invés, a estabilidade e a permanência. A dificuldade não


está em explicar por que razão esta ou aquela organização social
entrou em colapso, mas como conseguiu estabilizar-se e manter-
-se no meio das mudanças e do caos geral. Como é que, por
exemplo, o cristianismo, ideologia hegemónica da era medieval,
sobreviveu à ascensão do capitalismo? Não poderíamos dizer o
mesmo a propósito do anti-semitismo? O verdadeiro mistério
a explicar é a sua persistência através de tantas sociedades dife­
rentes e de tantas modalidades de produção: encontramo-lo sob
o feudalismo, o capitalismo e o socialismo.
Para Chesterton, a lição cristã fundamental dos contos de fadas
está contida naquilo que ele chama, humoristicamente, de «dou­
trina da Alegria Condicional»: «“Poderás viver num palácio de
ouro e safira, se não disseres a palavra vaca”, ou: “Poderás viver
feliz com a filha do rei, se não lhe mostrares uma cebola.” O so­
nho está sempre sujeito a uma proibição»10. Nesse caso, por que
motivo uma condição particular, aparentemente arbitrária, limita
sempre o direito universal à felicidade? A resposta profundamen­
te hegeliana de Chesterton é a seguinte: trata-se de «introduzir
um elemento estranho» no direito/lei universal, que nos recorda
que o Bem universal a que acedemos não deixa de ser contin­
gente, que as coisas teriam podido acontecer de outra forma: «Se
a Gata Borralheira pergunta: “Porque tenho de deixar o baile an­
tes da meia-noite?” , a sua madrinha também pode responder-lhe:
“Como é possível que possas ir ao baile até à meia-noite?”» 11. A
função da limitação arbitrária consiste em recordar-nos que o ob­
jecto ao qual o acesso é assim limitado é-nos dado através de um
gesto milagroso, arbitrário, inexplicável, uma doação divina, e
em ajudar-nos a reconhecer a magia inerente à possibilidade de
lhe aceder: «Ser fiel a uma mulher é um preço módico para a fe­
licidade de ver uma mulher. [...] Oscar Wilde disse que os cre­
púsculos não eram apreciados porque não pagamos para os ver.
Mas enganava-se: podemos pagar para ver crepúsculos. Não sen­
do Oscar Wilde, podemos pagar para vê-los»12.
Chesterton aborda aqui a questão da renúncia necessária à fe­
licidade. Quando podemos dizer, com exactidão, que as pessoas
54 Slavoj Zizek

são felizes? Num país como a Checoslováquia no final da déca­


da de 1970 e no início da década seguinte, podíamos dizer que,
de certo modo, as pessoas eram felizes. Aí estavam então reuni­
das as três condições fundamentais para a felicidade: em primei­
ro lugar, os bens materiais básicos eram satisfeitos, mas não ex­
cessivam ente, pois o próprio excesso de consum o pode
engendrar insatisfação, infelicidade. De vez em quando, é bom
fazer a experiência da penúria (não há café durante alguns dias,
depois é a vez da carne e, por fim, dos postos de televisão). Es­
ses breves períodos de penúria funcionavam na Checoslováquia
como excepções que lem bravam às pessoas que deviam
regozijar-se pela relativa disponibilidade dos bens de consumo:
se tudo estiver disponível a qualquer momento, as pessoas con­
sideram essa disponibilidade como um facto consumado e dei­
xam de apreciar a sorte que têm. A vida seguia portanto o seu
curso regular e previsível, sem grandes esforços ou surpresas; ca­
da um tinha o direito de se retirar para o seu próprio nicho pri­
vado. Segunda condição, extremamente importante: tudo o que
corria mal era imputável ao Outro (o Partido); desse modo, nin­
guém se sentia verdadeiramente responsável; em caso de penúria
temporária de certas mercadorias e mesmo de destruições provo­
cadas por um a tempestade, a «culpa» era deles. Por fim, mas não
menos importante, havia um Outro Espaço (o Ocidente consu-
mista) com que era permitido sonhar e que, por vezes, era até
possível visitar — esse local ficava a boa distância: nem longe de
mais, nem perto de mais.
Este frágil equilíbrio foi rompido. Como? Pelo desejo, preci­
samente. O desejo foi a força que levou as pessoas a progredir,
encontrando-se hoje num sistema em que, na sua maioria, são ni­
tidamente menos felizes do que antes...
A felicidade, para utilizarmos os termos de Alain Badiou, não
é uma categoria da verdade, mas uma categoria do Ser simples e,
como tal, é confusa, indeterminada, incoerente (pensemos na res­
posta proverbial do imigrante alemão quando, ao chegar aos Es­
tados Unidos, lhe perguntam se é feliz: «Sim, sim, sou muito fe­
liz, aber glücklich bin ich nicht. ..»). A felicidade é uma categoria
A Marioneta e o Anão 55

pagã: para os pagãos, a finalidade da vida consiste em levar uma


existência feliz (a ideia de viver «feliz para sempre» é uma ver­
são cristianizada do paganismo), sendo a própria experiência re­
ligiosa e a própria actividade política consideradas como as for­
mas mais elevadas da felicidade (ver Aristóteles). Assim, não
admira que o próprio Dalai Lama tenha encontrado recentemente
tanto sucesso ao pregar pelo mundo o seu evangelho da felicida­
de e também não admira que seja precisamente nos Estados Uni­
dos — o império, por excelência, da busca da felicidade — que
esse acolhimento tenha encontrado o maior sucesso... Em suma,
a «felicidade» é uma categoria do princípio do prazer, e aquilo
que a mina é a insistência num Além para lá desse princípio13.
No sentido estritamente lacaniano destes termos, a «felicida­
de» assenta na incapacidade ou na recusa do sujeito de se con­
frontar plenamente com as consequências do seu desejo: o preço
a pagar pela felicidade é a clausura do sujeito na inconsistência
do seu desejo. Na vida quotidiana, julgamos — ou fingimos —
desejar coisas que na realidade não desejamos e, em última ins­
tância, o pior que nos pode acontecer é obter «oficialmente» o
que desejamos. A felicidade é, portanto, intrinsecamente hipócri­
ta: ela consiste em sonharmos com coisas que não desejamos
verdadeiramente. Quando a esquerda contemporânea bombar­
deia o sistema capitalista com exigências que ele não pode cla­
ramente satisfazer por completo — «Pleno emprego!», «Defesa
do actual Estado-providência!», «Plenos direitos para os imigra­
dos!» —, está basicamente a entrar no jogo da provocação histé­
rica: endereçar ao Mestre exigências que ele não poderá satisfa­
zer, o que exporá a sua impotência. Porém, o problema desta
estratégia não está só no facto de o sistema não poder dar res­
posta a esses pedidos, como também no facto de os seus formu-
ladores não quererem verdadeiramente ver esses pedidos satis­
feitos. Quando, por exemplo, universitários «radicais» exigem a
obtenção de plenos direitos para os imigrados e a abertura das
fronteiras, estarão de facto conscientes de que a implementação
directa dessas medidas teria como repercussão imediata, por mo­
tivos óbvios, inundar os países ocidentais desenvolvidos com mi­
56 Slavoj Zizek

lhões de imigrados suplementares, provocando desse modo uma


violenta vaga de rejeição de carácter racista da parte da classe
trabalhadora, que comprometeria assim a posição privilegiada
desses mesmos universitários radicais? Sim, eles sabem-no cer­
tamente, mas contam com o facto de os seus pedidos não pode­
rem ser satisfeitos: é assim que podem preservar hipocritamente
a radicalidade da sua consciência enquanto continuam a gozar
dos seus privilégios. Em 1994, quando se preparava uma nova
vaga de emigração de Cuba para os Estados Unidos, Fidel Cas­
tro avisou os americanos para que não continuassem a incitar os
cubanos a emigrar, senão Cuba abriria realmente as suas frontei­
ras — o que as autoridades cubanas fizeram efectivamente al­
guns dias depois, colocando assim os Estados Unidos numa si­
tuação delicada devido à chegada de milhares de cubanos que
não eram minimamente desejados... Isso lembra a proverbial
história da mulher constantemente assediada pelas solicitações
de um macho e que o cala dizendo-lhe: «Ou ficas quietinho ou
terás mesmo de me fazer aquilo de que tanto te gabas!» Em am­
bos os casos, o gesto consiste em desvelar o bluff do outro, con­
tando com o facto de que aquilo que ele teme verdadeiramente é
ver o seu pedido integralmente satisfeito. Um gesto destes não
suscitaria o pânico nos nossos universitários radicais? O velho
moto de 68, «Sejamos realistas, peçamos o impossível!», adqui­
re aqui um novo significado, cínico e sinistro, que talvez revele
finalmente a sua verdade: «Sejamos realistas: nós, universitários
de esquerda, queremos parecer críticos, enquanto continuamos a
gozar plenamente dos privilégios que o sistema nos oferece. Por­
tanto, bombardeemo-lo com pedidos impossíveis de satisfazer:
sabemos perfeitamente que essas reivindicações não serão satis­
feitas e, por conseguinte, temos a certeza de que nada mudará e
que desse modo manteremos o nosso actual estatuto de privile­
giados!» Se alguém puser em causa uma grande empresa por cer­
tos crimes financeiros, correrá grandes riscos e poderá até chegar
a pôr a sua vida em perigo; mas se essa pessoa pedir à mesma
empresa para lhe financiar um projecto de investigação destina­
do a elucidar a ligação entre o capitalismo global e a emergência
A Marioneta e o Anão 57

das identidades pós-coloniais híbridas, terá muitas hipóteses de


receber um subsídio de alguns milhares de dólares...
Os conservadores estão assim plenamente fundamentados pa­
ra legitimar a sua oposição ao saber radical, invocando a felici­
dade: o saber, finalmente, traz a infelicidade. Contrariamente à
ideia de uma natureza inata da curiosidade no homem — segun­
do a qual existiria no fundo de nós uma Wissenstrieb, uma pul-
são de saber —, Jacques Lacan sustém, pelo contrário, que a ati­
tude espontânea do homem consiste no «Não quero saber disso»,
uma resistência fundamental à ideia de saber de mais. Qualquer
verdadeiro progresso na área do saber só se obtém através de um
combate doloroso contra essa propensão espontânea. A biogené-
tica contemporânea não constituirá hoje a melhor prova dos li­
mites da nossa vontade de saber? O gene responsável pela coreia
de Huntington foi isolado, de modo que qualquer pessoa pode sa­
ber não só com exactidão se terá ou não essa doença, como tam­
bém quando a contrairá. O seu desencadeamento depende de um
erro de transcrição genética: a repetição da «palavra» CAG no
meio do gene. A idade do aparecimento da doença depende, es­
trita e implacavelmente, do número de repetições da «palavra»
CAG num ponto preciso desse gene (se houver quarenta repeti­
ções, os primeiros sintomas da doença aparecerão aos 59 anos;
com quarenta e uma, aos 54... com cinquenta, aos 27). Uma boa
higiene de vida, exercícios desportivos quotidianos, o melhor
acompanhamento médico, uma alimentação de boa qualidade, o
amor e o apoio dos próximos, nada poderão fazer: trata-se de um
puro fatalismo que nenhuma variante ambiental pode alterar.
Ainda não há nenhum remédio: ninguém pode fazer nada14. Nes­
se caso, que decidir, quando sabemos que é possível efectuar tes­
tes que, caso se revelem positivos, nos permitem saber com exac­
tidão o momento em que resvalaremos para a loucura e
morreremos? Podemos imaginar uma maneira mais brutal de ser
confrontado à contingência absurda que preside à nossa vida?
A coreia de Huntington coloca-nos perante uma alternativa
perturbante: se houver um caso desses na minha família, deverei
fazer o teste que me dirá se irei ou não (e quando) contraí-la ine­
58 Slavoj Zizek

xoravelmente? Que fazer? Se não consigo suportar a ideia de sa­


ber quando irei morrer, a solução ideal (mais fantasmática do que
realista) poderia consistir em autorizar uma pessoa ou uma insti­
tuição nas quais confio plenamente a fazer-me o teste sem me co­
municar o resultado, confiando-lhe a missão de me fazer morrer
sem me prevenir, de modo indolor, caso o resultado do teste for
positivo. Contudo, esta solução não é propriamente uma solução:
com efeito, ao proceder assim, eu sei que o outro sabe (a verdade
sobre a minha doença), o que basta para arruinar tudo, expondo-
-me a uma dúvida lancinante.
Lacan chamou a atenção para este estatuto paradoxal de um sa­
ber do saber do Outro. Recordemos a reviravolta já evocada no ro­
mance A Idade da Inocência, de Edith Wharton, em que o marido,
que toda a vida alimentou uma paixão ilícita pela condessa Olens-
ka, descobre que a sua esposa sabia tudo desde o início. Talvez is­
to pudesse proporcionar também uma via de redenção em As Pon­
tes de Madison County, de Clint Eastwood (1995), se Francesca, ao
morrer no final do filme, descobrisse que o marido, que parece al­
guém terra-a-terra e um pouco simples de espírito, tinha estado des­
de o início ao corrente da sua ligação apaixonada com o fotógrafo
do National Geographic e, compreendendo a importância que isso
tinha para ela, se mantivera calado todos aqueles anos para não a
fazer sofrer. É aí que reside o enigma do saber: como é possível que
toda a economia psíquica de uma situação mude radicalmente não
pelo facto de alguém descobrir directamente qualquer coisa que ig­
norava (um segredo há muito abafado), mas por acabar por desco­
brir que o outro (suposto não saber) estava ao corrente desde o iní­
cio e fingia nada saber só para salvar as aparências? Haverá
situação mais humilhante do que a do marido que descobre subita­
mente que a sua mulher esteve sempre ao corrente da sua infideli­
dade, mas que sempre se absteve de lhe falar do assunto por uma
questão de delicadeza ou, pior ainda, por amor por ele?
A solução ideal seria então a oposta? Se eu suspeitar que o
meu filho se arrisca a contrair a coreia de Huntington, posso le­
vá-lo a fazer um teste sem ele saber e, depois, poderei assegurar-
-lhe uma morte suave, antes de a doença se declarar. O fantasma
A Marioneta e o Anão 59

supremo da felicidade seria o de uma instituição pública e anó­


nima que desempenhasse este papel para todos, sem o conheci­
mento de ninguém. Infelizmente, a questão surge mais uma vez:
sabemos ou não que o outro sabe? É o caminho aberto para uma
sociedade perfeitamente totalitária... Só há uma maneira de sair
deste enigma: reconsiderar a premissa subjacente do raciocínio,
que neste caso se revela falsa, ou seja, a ideia segundo a qual o
dever ético fundamental consiste em proteger o Outro do sofri­
mento, mantendo-o numa ignorância protectora. Assim, quando
Habermas preconiza uma limitação das manipulações genéticas
em nome das ameaças que elas fazem pairar sobre a autonomia,
a liberdade e a dignidade do sujeito hum ano15, está a «fazer ba­
tota» filosoficamente, escondendo o verdadeiro motivo pelo qual
a sua argumentação parece convincente: ele não está a referir-se
à autonomia ou à liberdade, mas à felicidade — é em nome da
felicidade que ele, grande representante da tradição das Luzes,
acaba por se encontrar ao lado dos defensores conservadores da
santa ignorância. É neste sentido que a doutrina cristã «não só
descobriu a lei, como previu as excepções»16: só a excepção nos
permite apreender o milagre da regra universal. E, para Chester-
ton, isso também se aplica à nossa compreensão racional do Uni­
verso:

Todo o segredo do misticismo está no seguinte: o homem po­


de compreender tudo com a ajuda do que não compreende. O ló­
gico mórbido procura tomar tudo transparente e só consegue tor­
nar tudo misterioso. O místico aceita um único mistério e tudo o
resto se toma transparente. (...) A única coisa criada que não po­
demos olhar é aquilo sob cuja luz olhamos para tudo. Como o Sol
ao meio-dia, o misticismo explica tudo pelo brilho da sua invisi­
bilidade vitoriosa17.

O propósito de Chesterton é portanto o de salvar a razão,


agarrando-se à sua excepção fundadora', privada dessa excep­
ção, a razão degenera em cepticismo cego e autodestruidor, em
suma, num completo irracionalismo. A ideia fundamental, a con­
60 Slavoj Zizek

vicção profunda de Chesterton, era que o irracionalismo do final


do século xix foi a consequência necessária da ofensiva raciona­
lista das Luzes contra a religião:

As crenças e as cruzadas, as hierarquias e as perseguições hor­


ríveis não foram organizadas, como se diz por ignorância, para
suprimir a razão, mas para a tarefa difícil de permitir a sua defe­
sa. O homem, devido a um instinto cego, sabia que, se tudo pu­
desse ser brutalmente posto em questão, a razão seria a primeira
a ser questionada. O poder dos padres para absolver, dos papas
para definir a autoridade e até dos inquisidores para aterrorizar
não foram mais do que obscuras defesas erigidas em tomo de um
poder central, mais indemonstrável, mais sobrenatural do que to­
dos os outros — o poder humano de pensar. (...) Uma vez a reli­
gião afastada, a razão também se vai afastando18.

O problema é o seguinte: será esta «doutrina da Alegria Con­


dicional» (ou, para dizer as coisas em termos lacanianos, a lógi­
ca da castração simbólica) o horizonte fundamental da nossa ex­
periência? Será verdade que devemos aceitar uma limitação
transcendental da nossa liberdade para fruir de uma certa dose de
liberdade real? A única maneira de salvaguardar a nossa razão se­
rá admitir um ilhéu de desrazão no seu próprio âmago? Só ama­
mos verdadeiramente alguém quando temos consciência de amar
ainda mais a Deus? Chesterton teve o mérito de exprimir a natu­
reza propriamente perversa desta solução a propósito do paga­
nismo; ele inverte a acepção (errada) comum, segundo a qual o
paganismo antigo foi uma afirmação alegre da vida, ao passo que
o cristianismo imporia uma ordem sombria, feita de culpabilida­
de e renúncia. Pelo contrário, é a posição pagã que é profunda­
mente melancólica: mesmo que apregoe uma vida agradável, é
no registo do «Aproveitem enquanto é tempo, porque tudo aca­
ba na morte e na decadência». Ao invés, atrás da aparência en­
ganadora da culpabilidade e da renúncia, a mensagem do cristia­
nismo é a da alegria infinita:
A Marioneta e o Anão 61

Visto do exterior, o cristianismo é um escudo rígido em tomo


de abnegações éticas e padres profissionais; mas, no interior des­
sa protecção inumana, encontrareis a velha vida humana dançan­
do como as crianças, bebendo vinho como os homens, pois o cris­
tianismo é o único quadro possível para a liberdade pagã19.

Poderá este paradoxo ser mais bem exprimido do que em O Se­


nhor dos Anéis, de Tolkien? Só um cristão convicto podia imagi­
nar um universo pagão tão magnífico, confirmando assim que o
paganismo é o supremo sonho cristão. Deste modo, os cristãos
conservadores, que exprimiram recentemente a sua preocupação
pelo modo como certos livros ou filmes do género O Senhor dos
Anéis ou Harry Potter minam o cristianismo através da sua men­
sagem de magia pagã, enganam-se, passando ao lado do essen­
cial; ou seja, a conclusão perversa é, neste caso, inevitável: se qui­
serem aproveitar a vida de prazer sonhada pelo paganismo sem
ter de pagar o preço de uma tristeza melancólica, escolham o cris­
tianismo! Reconhecemos as marcas deste paradoxo mesmo na
bem conhecida figura católica do padre (ou da religiosa) como
encarnação suprema da sabedoria sexual. Recordemos Música no
Coração, o filme de Robert Wise: Maria é uma jovem noviça que
entra como governanta ao serviço da família Von Trapp. Dema­
siado sensível aos encantos do barão, deixa os Von Trapp para re­
gressar ao seu convento. Aí, incapaz de dominar a sua atracção
pelo barão, não consegue reencontrar a paz e continua a pensar
nele. Numa cena memorável, talvez a mais forte do filme, a ma­
dre superiora do convento aconselha-a a voltar para junto da fa­
mília Von Trapp e a tentar esclarecer a sua relação com o barão.
Esta mensagem é transmitida numa estranha canção, «Escala to­
das as montanhas», cujo tema surpreendente é: «Vai! Arrisca-te a
experimentar tudo o que o teu coração almeja! Não te deixes de­
sencorajar por considerações mesquinhas!» O estranho poder des­
ta cena reside na sua capacidade inesperada para exibir o espec­
táculo do desejo, o que tom a a cena literalmente embaraçosa', a
voz da fidelidade pelo seu próprio desejo vem precisamente da
pessoa que esperávamos ver elogiar a abstinência e a renúncia20.
62 Slavoj Zizek

Não deixa de ser significativo que esta tenha sido a cena cen­
surada — os três minutos que dura a canção — quando o filme
foi projectado na ex-Jugoslávia, no final da década de 1960.
O anónimo censor socialista provou assim que compreendera o
poder verdadeiramente ameaçador que a ideologia católica podia
representar: longe de ser a religião do sacrifício, da renúncia aos
prazeres terrestres (em contraste com a afirmação pagã da vida
das paixões), o cristianismo propõe um estratagema sinuoso pa­
ra satisfazer os nossos desejos sem termos de pagar um preço
por eles, para desfrutar da vida sem recear a decomposição e a
dor debilitante que nos espera no fim. Se prosseguirmos nesta via
até ao fim, será até possível dizer que essa é a função suprema do
sacrifício de Cristo: podeis ser indulgentes com os vossos dese­
jo s e gozar a vida, pois eu paguei por isso\ Deste modo, existe
uma parte de verdade na charada sobre a prece ideal que uma jo ­
vem cristã deve endereçar à Virgem Maria: «Vós, que concebes­
tes sem pecado, deixai-me pecar sem conceber!» No funciona­
mento perverso do cristianismo, a religião é efectivamente
evocada como um baluarte eficaz que nos permite gozar a vida
impunemente.
A impressão de não ter um preço a pagar é, evidentemente, en­
ganadora: pagamos efectivamente com o nosso desejo. Isto sig­
nifica que, ao sucumbirmos a esse apelo perverso, compromete­
mos o nosso desejo. Todos conhecemos o imenso alívio que
sentimos quando, após um longo período de tensão ou de absti­
nência, temos finalmente o direito de «nos deixarmos ir», de sa­
borear prazeres até aí proibidos. O alívio experimentado quando
podemos finalmente «fazer o que queremos» talvez seja o pró­
prio modelo (não da realização, mas) do compromisso com o
nosso desejo. Isso significa que, para Lacan, o estatuto do dese­
jo é intrinsecamente ético: «Não cedas sobre o teu desejo» equi­
vale finalmente a «Cumpre o teu dever». E é isso que a versão
perversa do cristianismo nos incita a fazer: traí o vosso desejo,
cedei no essencial, naquilo que conta verdadeiramente, e pode­
reis ter todos os pequenos prazeres com que sonhais no fundo
do coração! Ou, como diríamos hoje: renunciai ao casamento,
A Marioneta e o Anão 63

tornai-vos padre e podereis ter todos os meninos que desejais...


Neste caso, a estrutura fundamental não é tanto a da «Alegria
Condicional» (podeis obtê-«lo» desde que se trate de uma qual­
quer excepção/proibição contingente e «irracional»), mas antes a
do falso sacrificio que consiste em fingir que não «o» temos, re­
nunciámos «a ele», a fim de ludibriar o grande Outro, de lhe es­
conder que «o» temos. Consideremos o exemplo do filme Enig­
ma, de Jeannot Szwarc (1981), urna das melhores variações
sobre o que talvez seja a estrutura fundamental dos romances de
espionagem com pretensões artísticas situados durante a Guerra
Fria, no género dos romances de John Le Carré. O filme conta a
historia de um jornalista dissidente que se tornou espião e passou
para o Ocidente, onde é recrutado pela CIA e enviado para a Ale­
manha de Leste para deitar a mão a um microprocessador que
permite 1er todas as mensagens que circulam entre o quartel-
-general do KGB e os seus postos avançados. Porém, uma série
de pequenos indícios indica ao espião que qualquer coisa está er­
rada, ou seja, mais precisamente, que tanto os alemães de leste
como os russos já foram prevenidos da sua chegada. Então, o que
se passa? Haverá uma toupeira comunista no quartel-general da
CIA que terá informado os alemães de leste sobre a sua missão
secreta? Perto do final do filme, descobrimos que a solução é
muito mais engenhosa: a CIA já possuía o famoso microproces­
sador, mas, infelizmente, os russos desconfiavam do facto e por
isso tinham deixado de utilizar temporariamente a sua rede com­
putacional para transmitir as suas mensagens secretas. O verda­
deiro objectivo dos responsáveis da CIA consistia em convencer
os russos de que não possuíam o microprocessador. Por conse­
guinte, enviaram um agente para o obter, enquanto faziam saber,
deliberadamente, aos russos, que organizavam uma operação
com esse fim. Evidentemente, a CIA conta que o seu agente seja
detido pelos russos. Estes, ao impedirem o agente americano de
alcançar o seu objectivo, convencer-se-ão finalmente que os
americanos não têm o microprocessador e que podem, portanto,
continuar a utilizar o seu sistema de comunicação... O lado trá­
gico desta história, evidentemente, é o facto de o fracasso da mis-
64 Slavoj Zizek

são ter sido previsto de antemão: a CIA deseja esse malogro, o


infeliz dissidente é antecipadamente sacrificado ao propósito
mais elevado de convencer o oponente de que a CIA não possui
o seu segredo. Aqui, a estratégia consiste em montar uma opera­
ção para convencer o Outro (o inimigo) de que não se tem ainda
o que se procura. Em suma, finge-se carecer de algo para escon­
der ao Outro que já se possui o agalma, o segredo mais íntimo
do Outro.
Não haverá uma correspondência entre esta estrutura e o para­
doxo fundamental da castração simbólica como elemento consti­
tutivo do desejo, em que o objecto deve ser perdido para ser reen­
contrado numa escala invertida do desejo regulado pela Lei?
Regra geral, a castração simbólica é definida como a perda de
uma coisa que nunca se possuiu, ou seja, o objecto-causa do de­
sejo é um objecto que emerge através do próprio gesto da sua fal­
ta/afastamento. M as, no caso de Enigma, estamos perante a es­
trutura inversa, pois trata-se de fingir que falta qualquer coisa ao
sujeito. Na medida em que o Outro da Lei simbólica proíbe o go­
zo, o único meio que o sujeito tem para gozar é fingir que lhe fal­
ta o objecto que proporciona o gozo, isto é, esconder a sua posse
do olhar do Outro, encenando o espectáculo da sua busca deses­
perada. Isto ajuda-nos também a entender, sob outra perspectiva,
a questão do sacrifício: sacrificamos não para obter algo do Ou­
tro, mas para o ludibriar, para o convencer de que ainda nos falta
qualquer coisa, isto é, o gozo. Por isso, os neuróticos obsessivos
praticam compulsivamente os seus rituais de sacrifício — para
negar o seu gozo aos olhos do Outro. E, num outro nível, não po­
deríamos dizer a mesma coisa do chamado «sacrifício» de certas
mulheres, que escolhem permanecer na sombra dos maridos,
sacrificando-se por eles ou pela família? Não será esse sacrifício
também falso, na medida em que serve para enganar o outro, pa­
ra o convencer de que, através do sacrifício, a mulher faz real­
mente um esforço desesperado para obter qualquer coisa que lhe
falta? Neste sentido preciso, sacrifício e castração devem ser co­
locados em oposição: longe de implicar a aceitação voluntária da
castração, o sacrifício é a maneira mais requintada de a negar, is­
A Marioneta e o Anão 65

to é, de agir como se possuíssemos realmente o tesouro escondi­


do que faz de mim um objecto digno de am or...
Para escapar a esta dificuldade, teremos então de passar da
Alegria Condicional para a doutrina da Alegria Incondicional,
representada pela experiência mística? E qual é o estatuto exac­
to desse gozo incondicional? Será apenas um pressuposto, que o
histérico imputa ao Outro perverso — o «sujeito suposto gozar»
—, ou será algo de acessível nos momentos de encontro místico
com o Real? Aqui, a questão essencial é a seguinte: como se re­
laciona esta «doutrina da Alegria Condicional» com a suspensão
paulina da nossa participação nas obrigações sociais terrestres
(vivam a vossa vida no modo do como se — «doravante, consi­
derai os casados como se não o fossem, os que choram como se
não chorassem, os que se regozijam como se não se regozijas­
sem, os compradores como se não possuíssem bens materiais»)?
Tratar-se-á de duas versões do mesmo princípio? Não serão an­
tes dois princípios opostos? Na «doutrina da Alegria Condicio­
nal», a Excepção (a obrigação de regressar a casa à meia-noite,
etc.) permite que nos sintamos plenamente satisfeitos, enquanto
o como se paulino nos priva da capacidade de nos sentirmos ple­
namente satisfeitos ao deslocar a limitação exterior para uma li­
mitação interior: o limite já não é aquele que separa o prazer da
sua excepção (a renúncia), ele decorre no meio do próprio pra­
zer, ou seja, devemos sentir-nos satisfeitos como se não estivés­
semos. O limite de Chesterton é claramente perceptível na sua in­
sistência sobre a necessidade de eternas regras firmes: ele
opõe-se ferozmente à «falsa teoria do progresso, que deseja que
modifiquemos os termos do teste em vez de procurarmos passá-
-lo»20. Conforme é seu hábito, ele defende o seu ponto de vista
enumerando diversos exemplos da incoerência dos modernos
críticos intelectuais:

Um denuncia o casamento como uma mentira e depois denun­


cia os aristocratas debochados, culpados de terem tratado o casa­
mento como uma mentira. Outro qualifica a bandeira de trapo e
depois denuncia os opressores da Polónia ou da Irlanda por eli­
66 Slavoj Zizek

minarem esse trapo. O discípulo dessa escola começa por ir a uma


reunião política, onde deplora que os selvagens sejam tratados co­
mo bestas; depois pega no chapéu e no chapéu-de-chuva e vai
participar numa reunião científica, onde prova que eles são prati­
camente umas bestas21.

Aqui, passamos com efeito da confirmação de que um exem­


plo concreto chumba o teste (os selvagens são tratados como bes­
tas e não como homens; os aristocratas tratam o casamento como
uma mentira) para uma conclusão universal, segundo a qual o
critério que nos permitiu mostrar o que havia de falso num caso
particular é já, por si mesmo, falso (o homem como tal é uma
besta, faz parte da espécie animal; o casamento como tal é
uma mentira). Ao rejeitar esta universalização, Chesterton rejei­
ta implicitamente a negação de si hegeliana que é também o pro­
cedimento fundamental da crítica marxista da ideologia. Recor­
demos a famosa frase de Brecht: «O que é um assalto a um banco
comparado à abertura de um novo banco?», ou a boa velha divi­
sa: «A propriedade é um roubo» (por outras palavras: a passagem
do roubo de um bem particular à ideia de que a propriedade co­
mo tal já é um roubo). Inversões semelhantes abundam no pri­
meiro capítulo do Manifesto Comunista: da prostituição como
oposição ao casamento à ideia do próprio casamento (burguês)
como forma de prostituição, etc., etc. Em todos estes exemplos,
Marx utiliza a ideia de Hegel (expressa pela primeira vez na In­
trodução à Fenomenologia do Espírito) segundo a qual, quando
o particular não corresponde à sua medida universal, devemos al­
terar a própria medida: a distância entre a noção normativa uni­
versal e os seus casos particulares deve reflectir-se nessa própria
noção, como sua tensão intrínseca e sua insuficiência. Contudo,
o modelo fundamental de Chesterton não implicará o mesmo
gesto de negação da universalização em si? A «verdade» da opo­
sição entre a Lei e as suas transgressões particulares não será a
de que a própria Lei é a transgressão suprema?
E aí que reside não só o limite de Chesterton como, mais radi­
calmente, o limite da solução perversa que constitui o próprio
A Marioneta e o Anão 67

âmago do «cristianismo realmente existente»: com a entrada na


modernidade, já não podemos contar com o Dogma preestabele­
cido para apoiar a nossa liberdade, com a Lei/Proibição preesta­
belecida para apoiar a nossa transgressão — esta é uma das leitu­
ras possíveis da tese de Lacan, segundo a qual o grande Outro já
não existe. A perversão é uma estratégia dupla que visa compen­
sar essa não-existência: uma tentativa (no fundo profundamente
conservadora, nostálgica) para estabelecer a lei artificialmente, na
esperança impossível que levaremos a sério essa autolimitação e,
de modo complementar, urna tentativa não menos desesperada
para codificar a própria transgressão da lei. Na leitura perversa do
cristianismo, Deus começou por lançar a humanidade no pecado
a fim de criar uma oportunidade para a salvar pelo sacrificio de
Cristo; na leitura perversa de Hegel, o Absoluto joga consigo pró­
prio — começa por se separar de si mesmo, introduz o distancia-
mentó do não-reconhecimento de si, a fim de se reconciliar outra
vez consigo próprio. Por isso, os esforços desesperados que fa­
zem hoje os neoconservadores para reafirmar os «valores anti­
gos» são também, em última instância, uma estratégia perversa
destinada ao fracasso, destinada a impor proibições que já não po­
dem ser levadas a sério. Sejamos mais precisos: quando é que es­
sas interdições perderam precisamente o seu poder? A resposta é
muito clara: com Kant. Não há nada de espantoso no facto de
Kant ser o filósofo da liberdade: é com ele que surge o impasse
da liberdade. Por outras palavras, com Kant, a solução clássica de
Chesterton — o recurso a um Obstáculo preestabelecido contra o
qual podemos afirmar a nossa liberdade — já não é viável, a nos­
sa liberdade afirma-se como autónoma, qualquer limitação/coac­
ção é inteiramente autopostulada. É também por isso que deve­
mos estar muito atentos ao ler Kant com Sade: na sua tese, Lacan
não nos diz que a perversão sadiana é a «verdade» de Kant, mais
«radical» que Kant, nem que ela tira as conclusões que Kant não
teve a coragem de enfrentar: pelo contrário, a perversão sadiana
aparece como o resultado do compromisso kantiano, da escolha
que Kant fez para evitar as consequências da brecha que abriu23.
68 Slavoj Zizek

Longe de ser o seminário de Lacan, L ’éthique de la psycha-


nalyse é mais o beco sem saída onde Lacan se aproxima perigo­
samente da versão clássica da «paixão pelo Real»24. Os ecos
inesperados entre esse seminário e o pensamento de Georges Ba-
taille, que foi o filósofo da paixão pelo Real, se acaso existiu al­
gum, não nos apontará, sem a menor ambiguidade, nessa direc­
ção? A máxima ética de Lacan, «Não cedas sobre o teu desejo»
(que, convém nunca esquecer, não volta a aparecer em nenhum
dos seus trabalhos posteriores), não será uma versão da exigên­
cia de Bataille de «pensar tudo ao ponto de abalar as pessoas»25,
de ir tão longe quanto possível — ao ponto em que os contrários
coincidem, a dor infinita se transforma na mais intensa alegria
(discernível na foto do chinês submetido à atroz tortura de ser
lentamente cortado em pedaços), a intensidade do gozo erótico
encontra a morte, a santidade se confunde com o deboche, e o
próprio Deus se revela uma besta cruel? A coincidência cronoló­
gica entre o seminário de Lacan sobre a ética da psicanálise e
O Erotismo, de Bataille, não passará de uma simples coincidên­
cia? Segundo Bataille, o domínio do sagrado, a «parte maldita»,
não será uma outra versão daquilo que Lácan, a propósito de An-
tígona, desenvolveu como o domínio de A tei A oposição estabe­
lecida por Bataille entre a «homogeneidade», a ordem das trocas,
e a «heterogeneidade», a ordem da despesa sem limites, não
apontará para a oposição estabelecida por Lacan entre a ordem
das trocas simbólicas e o excesso do encontro traumático com o
Real? «A realidade heterogénea é a de uma força ou a de um cho­
que»26. E como é que a elevação da mulher debochada ao esta­
tuto de Deus, operada por Bataille, não poderá deixar de nos lem­
brar a afirmação de Lacan segundo a qual a Mulher é um dos
nomes de Deus? Isto para não mencionar a palavra utilizada por
Bataille a propósito da experiência da transcendência — «im­
possível» — que é a palavra utilizada por Lacan para qualificar
o R eal... É esta necessidade de «ir até ao fim», até à experiência
extrema do Impossível como única forma de ser autêntico, que
faz de Bataille o filósofo da paixão pelo Real — não admira que
tivesse ficado obcecado com o comunismo e o fascismo, esses
A Marioneta e o Anão 69

dois excessos de vida contra a democracia, «um mundo de apa­


rências e de velhos com dentes a cair»27.
Bataille estava perfeitamente consciente do facto de essa pai­
xão transgressiva pelo Real repousar na proibição', por isso,
opunha-se explicitamente à «revolução sexual», à permissivida-
de sexual que começava a expandir-se nos últimos anos da sua
vida: «Na minha opinião, a desordem sexual é maldita. Neste as­
pecto, e apesar das aparências, oponho-me à tendência que hoje
parece levar a melhor. Não faço parte dos que vêem uma saída
no abandono dos interditos sexuais. Julgo até que o potencial hu­
mano depende dessas proibições: não podemos imaginar esse
potencial sem essas proibições»28. Deste modo, Bataille levou ao
clímax a interdependência dialéctica entre a lei e a sua trans­
gressão: «o sistema é necessário e o excesso também», gostava
de repetir. «Muitas vezes, o próprio criminoso deseja a morte co­
mo resposta para o crime, a fim de que ela lhe traga finalmente a
sanção sem a qual o crime seria possível, em vez de ser o que é,
aquilo que o criminoso quer que seja»29. Por isso, acabou por se
opor ao comunismo: era a favor do excesso revolucionário, mas
temia ver o espírito revolucionário de despesa excessiva encer­
rado numa nova ordem social ainda mais «homogénea» do que a
ordem capitalista: «A ideia de uma revolução é intoxicante, mas
o que acontece depois? O mundo reconstrói-se a si mesmo e re­
medeia aquilo que hoje nos oprime para que amanhã isso possa
surgir sob alguma outra forma»30.
Talvez seja por este motivo que Bataille é estritamente pré-
-moderno: ele permanece fechado nesta dialéctica da lei e da
sua transgressão, da lei proibitiva como elemento que engendra
o desejo transgressivo. Isso leva-o a uma conclusão perversa
desmoralizante: somos obrigados a instaurar interditos para po­
dermos gozar da sua violação — paradoxo pragmático clara­
mente impraticável. (E, aliás, esta dialéctica já não terá sido ple­
namente explorada na Epístola aos Rom anos, na célebre
passagem em que Paulo analisa a relação entre lei e pecado, a
maneira como a lei engendra o pecado, isto é, o desejo de a
transgredir?) O que Bataille não consegue discernir são simples­
70 Slavoj Zizek

mente as consequências da revolução filosófica kantiana: o fac­


to de o excesso absoluto ser o da própria lei. A lei intervém na
estabilidade «homogénea» da nossa vida orientada para o prazer
como a força perturbadora da absoluta «heterogeneidade» de-
sestabilizante. Num outro nível, mas de forma não menos radi­
cal, a sociedade «permissiva» do capitalismo avançado, assola­
da pela injunção do superego — «Goza! —, faz do excesso o
próprio princípio do seu funcionamento «normal», pelo que so­
mos tentados a parafrasear Brecht: «O que é um pobre sujeito
batailliano envolvido nas transgressões do sistema ao lado da
orgia excessiva do próprio sistema capitalista actual?» (É inte­
ressante notar como este ponto já fora bem observado por Ches-
terton: a ortodoxia é a suprema subversão, a obediência à lei é a
suprema aventura.)
É só neste sentido preciso que é justo qualificar a nossa épo­
ca de «era da angústia», apelação que, de resto, tem um valor
simplesmente jornalístico: o que provoca a angústia é a elevação
da transgressão ao estatuto de norma, a ausência de uma proibi­
ção que viria apoiar o desejo. Essa ausência coloca-nos numa
proximidade sufocante com o objecto-causa do desejo: o que nos
falta é o espaço criado pelo interdito, esse espaço que nos per­
mite respirar; com efeito, antes de podermos afirmar a nossa
singularidade resistindo à Norma, esta já nos prescreve a resis­
tência, a transgressão, convida-nos a ir sempre mais longe. Não
devemos confundir esta Norma com as regras que presidem aos
nossos contactos intersubjectivos: no curso da história da huma­
nidade, talvez as interacções subjectivas nunca tenham estado
submetidas a regras tão precisas. No entanto, estas regras já não
funcionam como interdição simbólica: elas regulam as próprias
modalidades da transgressão. Assim, quando a ideologia domi­
nante nos manda gozar o sexo, não alimentar nenhum sentimen­
to de culpa em relação a ele, pois não estamos limitados por ne­
nhumas proibições cuja violação nos faria sentir culpados, há
um preço a pagar por essa ausência de culpabilidade: a angústia.
E neste sentido preciso que, retomando os termos de Lacan, na
esteira de Freud, a angústia é a única emoção que não engana:
A Marioneta e o Anão 71

todas as outras, da tristeza ao amor, são fundadas no engano.


Voltemos mais uma vez a Chesterton, que escreveu: «O cristia­
nismo é o único quadro possível para a liberdade pagã», o que
significa precisamente que esse quadro — o quadro das proibi­
ções — é o único no interior do qual podemos fruir dos prazeres
pagãos: o sentimento de culpa é uma falsificação que nos per­
mite entregar-nos a esses prazeres. Quando este quadro desapa­
rece, surge a angustia.

Aqui, devemos referir a distinção-chave entre o objecto do de­


sejo e o seu objecto-causa. Imaginemos uma mulher promíscua
que se queixa de ser infeliz e de se sentir culpada por multiplicar
encontros para uma só noite. O que de ve fazer um psicanalista
neste caso? O que ele não deve fazer, por certo, é tentar con-
vencé-la de que os encontros efémeros são maus, que são a cau­
sa das perturbações de que ela se queixa, os signos de algum im­
passe libidinal. Ao agir dessa forma, só alimentaria o seu
sintoma, condensado na insatisfação (enganadora) experimenta­
da com esses encontros efémeros. Por outras palavras, é eviden­
te que o que proporciona a essa mulher uma verdadeira satisfa­
ção não é a promiscuidade como tal, mas o sentimento de
infelicidade que a acompanha: é aí que reside o seu gozo «ma­
soquista». Por conseguinte, a estratégia a seguir deveria ser, em
primeiro lugar, não procurar convencê-la de que os seus hábitos
são patológicos, mas, pelo contrário, convencê-la de que não tem
qualquer motivo para se sentir má ou culpada. Se, para ela, esses
encontros efémeros constituem verdadeiramente uma fonte de
prazer, então deve prosseguir nessa via sem sentir qualquer sen­
timento negativo. A astúcia é que, confrontada a esses encontros
efémeros sem o que lhe parece ser o obstáculo que a impede de
gozá-los completamente, mas que é, na realidade, o pequeno ob­
jecto a, o elemento que lhe permite ter gozo, os encontros efé­
meros perderão, para ela, a sua atracção e o seu significado.
(E se ela continuar a ter esses encontros efémeros? Afinal, por­
que não? A psicanálise não é um catecismo moral: se essa é a ma­
neira como ela obtém prazer, porque não?) É essa distância en-
72 Slavoj Zizek

tre o objecto e o objecto-causa que o sujeito tem de enfrentar


quando a proibição desaparece: estará ela pronta a desejar direc­
tamente o obstáculo como tal31?

N otas

1. G. K. Chesterton, Orthodoxy, op. cit., p. 107.


2. G. K. Chesterton, «A Defense of Detective Stories», in H. Haycraft (dir.),
The Art o fthe Mystery Story, Nova Iorque, The Universal Library, 1946, p. 6.
3. O que é a famosa ( e «infamante») tríade hegeliana? Três amigos bebem
um copo num bar; o primeiro diz: «Aconteceu-me uma coisa horrível! Quando
estava na agência de viagens, queria pedir “Um bilhete para Pittsburgh!” e dis­
se: “Um piquete para Bittsburgh!”» O segundo replica: «Isso não é nada. Ao
pequeno-almoço queria dizer à minha mulher “Passas-me o açúcar, querida?” e
disse: “Sua puta, arruinaste a minha vida!”» O terceiro conclui: «Esperem até
ouvirem o que me aconteceu. Depois de ter passado a noite a ganhar coragem,
quando chegou a hora do pequeno-almoço decidi dizer à minha mulher o que
acabaste por dizer à tua e afinal disse: “Passas-me o açúcar, querida?”»
4. G. K. Chesterton, Orthodoxy, op. cit., p. 15.
5. Ibid., pp. 146-147.
6. Alan Derschowitz, Why Terrorism Works, New Haven, Yale University
Press, 2002.
7. Doug Richmond, How to Disappear Completely and Never be Found
(«Como Desaparecer Completamente e Nunca Ser Encontrado»), Secaucus,
A Citadel Press Book, 1999. Esta obra pertence a uma colecção de manuais prá­
ticos que constitui o duplo obsceno e «refrescante» dos manuais «oficiais»,
como os de Dale Carnegie. Eles tratam, com efeito, dos nossos desejos mais se­
cretos, como testemunham outros títulos da colecção: Cheaters Always Prosper
(«Os Aldrabões Ganham Sempre»), Advanced Backstabbing and Madskinging
Techniques («Técnicas Avançadas para Apunhalar as Costas e Caluniar»), Re-
venge Tactics («Tácticas de Vingança»), Spying on Your Spouse («Espiar o Seu
Cônjuge»).
8. G. K. Chesterton, Orthodoxy, op. cit., pp. 65-66.
9. Ibid., p. 66.
10. Ibid., p. 60.
11. Ibid., p. 62.
12. Ibid., p. 63.
13. Não nos esqueçamos que tanto a impenetrável teoria da Graça divina co­
mo o materialismo se opõem ambos à ideia de Providência (à ideia de um equi­
líbrio fundamental entre as virtudes e a felicidade, garantido por Deus): Graça
e materialismo deixam a relação entre virtude e felicidade entregue ao acaso.
A Marioneta e o Anão 73

14. Matt Ridley, Genome, Nova Iorque, Perennial, 2000, p. 64.


15. Jürgen Habermas, Die Zufunkt der menschlichen Natur, Frankfurt, Suhr-
kamp, 2001.
16. G. K. Chesterton, Orthodoxy, op. cit., p. 105.
17. Ibid., p. 33.
18. Ibid., p. 39.
19. Ibid., p. 164.
20. Há alguns anos, um artigo consagrado a Música no Coração apresentou
este filme como a história de uma religiosa um tanto tola que teria podido vi­
ver tranquilamente uma vida monástica caso a madre superiora não a tivesse
convidado ao seu quarto incitando-a, histericamente, a escalar montanhas...
21. G. K. Chesterton, Orthodoxy, op. cit., p. 40.
22. Ibid., p. 47.
23. Jacques Lacan, «Kant avec Sade» (1962), Écrits, Paris, Seuil, «Points»,
t. II, 1999, pp. 243-269.
24. Jacques Lacan, Le Séminaire, livre VII. L ’éthique de la psychanalyse,
Paris, Seuil, 1986.
25. Michel Surya, Georges Bataille, «La mort à l ’œuvre», Paris, Librairie
Séguier, 1987.
26. Georges Bataille, «La structure psychologique du fascisme» [1933-
-1934], Œuvres complètes, t. I, Premiers écrits 1922-1940, Paris, Gallimard,
1970, p. 347.
27. Citado em Michel Surya, op. cit., p. 184.
28. Georges JBataille, projecto de prefácio a L ’Impossible, Œuvres complè­
tes, t. III, Œuvres littéraires, Paris, Gallimard, 1971, pp. 510-511.
29. Georges Bataille, «Sade, 1740-1814» [1953], Œuvres complètes, t. XII,
Articles, 2.1950-1961, Paris, Gallimard, 1988, p. 296.
30. Ibid., p. 232.
31. Aqui podemos remeter à distinção de Franz Rosenzweig entre o «próxi­
mo» (der Naechste) e o «perto/a coisa chegada» (das Naechste): o «próximo»
é o objecto intrigante do desejo, em face de nós, enquanto o «perto/a coisa che­
gada» é o (objecto)-causa do desejo, aquilo que, do nosso interior, atrás de nós,
fora do alcance da nossa vista, nos impele para o objecto tornando-o desejável,
o que explica a urgência com que nos aproximamos do objecto. (Devo, evi­
dentemente, esta referência a Eric Santner.)
C apítulo III

O DESVIO DO REAL - O REAL NO CRISTIANISMO

A leitura habitualmente associada à história «Fort-Da», rela­


tada por Freud no seu artigo Para lá do Princípio do Prazer, tal­
vez seja o melhor revelador do grau de compreensão que se tem
do fundador da psicanálise. Segundo a interpretação clássica, o
neto de Freud simboliza a partida e o regresso da sua mãe ati­
rando um carrete] para longe — «Fort\» — e puxando-o depois
de volta para si — «Da\». Portanto, a situação parece clara: a
criança, traumatizada pelá ausência da mãe, ultrapassa a sua an­
gústia e assenhoreia-se da situação simbolizando-a: ao substituir
a mãe pelo carretel, torna-se o realizador que decide dos apare­
cimentos e desaparecimentos da mãe. Deste modo, a angústia é
aufgehoben (ultrapassada) na alegre afirmação do seu poder.
Serão as coisas assim tão evidentes? E se o carretel não fosse
um substituto da mãe, mas daquilo que Lacan chama o objecto
pequeno a, que é, em última instância, o objecto em mim, que a
minha mãe vê em mim, que faz de mim o objecto do seu desejo?
E se o neto de Freud estivesse a brincar ao seu próprio desapare­
cimento e regresso? Neste sentido preciso, o carretel é aquilo que
Lacan chama um «bissector»: não pertencendo nem à criança
nem à mãe, é um intermediário entre ambos, a intersecção ex­
cluída dos dois conjuntos. Recordemos a célebre fórmula laca-
niana: «Amo-te, mas por amar inexplicavelmente algo em ti que
76 Slavoj Zizek

é mais do que tu, o objecto pequeno a, mutilo-te» — a fórmula


elementar da paixão destruidora do Real como esforço para ex­
trair de ti o núcleo real do teu ser. É o que está na origem da an­
gústia no encontro com o desejo do Outro: o propósito do Outro
não é apenas a minha própria pessoa, mas o meu verdadeiro nú­
cleo, que está mais em mim do que eu próprio, pelo que está
pronto a mutilar-me para obter esse núcleo... A melhor expres­
são cinematográfica do carácter «ex-timado»* do objecto peque­
no a não será o «alien» no filme do mesmo nome, aquilo que, em
mim, está literalmente «mais em mim do que eu», um corpo es­
tranho presente no meu íntimo e que, por conseguinte, só pode
ser extraído de mim à custa da minha própria destruição?
Consequentemente, devíamos inverter os termos da constela­
ção habitual: o verdadeiro problema é a Mãe que fru i de mim (o
seu filho) e a verdadeira parada do jogo consiste em escapar a es­
sa clausura. A verdadeira angústia é estar aprisionado na fruição
(gozo) do Outro. Portanto, o problema não é o facto de, angus­
tiado pela perda da minha mãe, eu procurar assenhorear-me das
suas partidas/chegadas, mas o facto de, angustiado pela sua pre­
sença invasora, eu procurar desesperadamente instaurar um es­
paço onde possa arranjar alguma distância em relação a ela, e
tornar-me desse modo capaz de apoiar o meu desejo. Chegamos
assim a um quadro completamente diferente: em vez de uma
criança que utiliza o jogo para enfrentar o trauma da ausência da
mãe, temos uma criança que procura escapar à sua ternura sufo­
cante e construir um espaço aberto para o desejo; em vez da tro­
ca divertida do «Fort-Da», temos uma oscilação desesperada en­
tre dois pólos, nenhum deles trazendo satisfação — ou, como
escreveu Kafka: «Não posso viver contigo e não posso viver sem
ti.» É esta dimensão muito elementar do «Fort-Da» que é igno­
rada pela abordagem cognitivista da mente. Num recente manual

* Para Lacan, o sujeito não tem uma relação íntima com o seu corpo, mas «ex-
-time» — relaciona-se com ele como com um atributo, o que é aliás traduzido
na linguagem quando dizemos que temos um corpo e não que somos o corpo.
(N. T.)
A Marioneta e o Anão 77

da escola cognitivista encontramos a seguinte declaração: «Se al­


guém viesse dizer-nos que se afastou de um objecto porque o de­
sejava, julgá-lo-íamos louco ou ignorante do sentido da palavra
“desejo”» 1. Mas este evitamento do objecto em nome do próprio
desejo que sentimos por ele não será o próprio paradoxo do amor
cortês? Não será uma característica do desejo como tal, naquilo
que tem de mais fundamental? Portanto, talvez, nós, psicanalis­
tas, sejamos uma espécie de loucos. Por outras palavras: não
será esse evitamento do objecto em nome do desejo que sentimos
por ele — esse Fort que persiste no próprio âmago do Da —
o próprio paradoxo do desejo como tal, naquilo que tem de mais
fundamental? Lembremos o eterno adiamento do encontro direc­
to com «dieferne Gelieble» (a longínqua bem-amada)2. Na mes­
ma índole cognitivista, Douglas Lenat procura construir um
computador dotado de bom-senso, enchendo a sua memória com
milhões de regras «evidentes», como: Um objecto não pode es­
tar em dois lugares ao mesmo tempo. Quando os homens mor­
rem, não voltam a nascer. A morte não é desejável. Os animais
não gostam de sofrer. O tempo avança ao mesmo ritmo para to­
da a gente. Quando chove, as pessoas molham-se. As coisas açu­
caradas sabem bem?. Mas serão estas regras assim tão eviden­
tes? Que dizer dos pensamentos partilhados por duas pessoas?
Da crença na reencarnação? Dos desesperados que aspiram mor­
rer? Dos masoquistas que gostam de sofrer? Dos momentos ex­
citantes em que o tempo parece acelerar? Das pessoas que não se
molham porque caminham à chuva protegidas por chapéus-de-
-chuva? Dos que preferem chocolate preto «amargo» a outros
chocolates mais açucarados?
É ao pensar nisto tudo que deveríamos conceptualizar a dife­
rença entre o desejo pelo Outro e o gozo do Outro. Esta diferença
é muitas vezes descrita como o limiar da castração simbólica: en­
quanto o desejo pelo Outro (genitivo subjectivo e objectivo) só
pode desenvolver-se na medida em que o Outro permanece um
abismo indecifrável, o gozo do Outro assinala uma proximidade
excessiva e sufocante. Lembremos aqui os dois sentidos da pala­
vra francesa jouir: ela tanto significa «gozar», «ter prazer», como
78 Slavoj Zizek

«ter direito a usufruir de qualquer coisa», mesmo que ela não es­
teja na nossa posse. Gozar de um bem também significa ter o seu
usufruto. [Quando, por exemplo, o proprietário de uma grande ca­
sa garante a um antigo criado fiel o direito de permanecer gratui­
tamente no seu apartamento até morrer, mesmo que legue a casa
aos seus descendentes, diz-se que o criado tem o usufruto (frui)
do seu apartamento.] O gozo do Outro é, deste modo, o direito
que ele tem de «usufruir» (jouir) de mim como objecto sexual. É
o que está em jogo naquilo que Lacan reconstrói como o impera­
tivo kantiano da obra de Sade: «Qualquer pessoa pode dizer-me:
“Tenho o direito de usufruir (gozar) de qualquer parte do teu cor­
po da maneira que mais me agrade” .» Apesar de isto parecer uma
«posição feminina» (as mulheres como usufruto dos homens), es­
se Outro é fundamentalmente a Mãe pré-edipiana (por isso, Lacan
chama a atenção para o facto de, não obstante a «perversidade»
do universo sadiano, a mãe permanecer proibida nesse universo).
Através da castração simbólica, esse usufruto invasor da Mãe (do
Outro) é então ultrapassado (no preciso sentido hegeliano do ter­
mo Aufhebung) num usufruto fálico localizado, que é, precisa­
mente, um usufruto sob a condição do desejo, ou seja, tal como
surge depois da castração simbólica. Quando Lacan fala de «go­
zo fálico», nunca nos devemos esquecer que o falo é o significan­
te da castração — o gozo fálico é, portanto, o usufruto na condi­
ção da castração simbólica que abre e apoia o espaço do desejo.
Na mesma ordem de ideias, Richard Boothby interpreta o ob­
jecto pequeno a como o resto da Coisa materna no interior do do­
mínio da lei simbólica paterna: visto que o confronto directo com
a Coisa materna, o seu aterrador desejo, é filtrado através do ecrã
da lei paterna, «cada encarnação do pequeno objecto a permite
ao sujeito não fornecer uma resposta definitiva à questão do de­
sejo do Outro, à dimensão impensável do outro imaginário que
emerge primitivamente como das Ding, mas fazer passar essa
questão para o desenrolamento de um processo simbólico»4.
O problema com Boothby é que ele aprova esta «edipianização»
ou, mais precisamente, considera que Lacan a aprova: «A função
da metáfora paterna consiste em submeter o desejo da Mãe (que
A Marioneta e o Anão 79

é da ordem da Coisa) à Lei do Pai (que compreende a totalidade


do sistema significante, a estrutura da ordem simbólica)»5. Para
Boothby, o facto original é a distância entre o real das paixões
corporais, a sua mobilidade, e a fixidez das identificações imagi­
nárias que coordenam a identidade do sujeito. Há duas maneiras
de tratar com o excesso do Real, com o abismo aterrador daqui­
lo que na imagem está para lá dela: ou o enfrentamos directa­
mente ou fazemo-lo passar pela mediação da ordem simbólica.
Aqui, no entanto, Boothby dá um passo problemático ao identi­
ficar o Real com o horizonte aberto do sentido, com o inexpri­
mível núcleo inapreensível da potencialidade do sentido, com o
verdadeiro cerne daquilo que queremos dizer e que nunca pode
ser plenamente explicitado:

O Real é a dim ensão de das D ing (da Coisa), daquilo que, no


o utro, é m ais do que o outro. E sta dim ensão, inassim ilável na
im agem , c im plícitam ente anim ada em cada inscrição do signifi­
cante, pelo excesso de sentido em virtude do qual cada enunciado
diz m ais do que pretende dizer6 .

Em vez da insuportável Coisa traumática com a qual não é


possível qualquer troca, entramos assim no domínio das trocas
simbólicas em cujo interior o Real aparece como o supremo pon­
to de referência elusivo que põe em movimento a deriva infinita
dos significantes. Por conseguinte, Boothby identifica o Real
com o falo como Significante-Mestre: enquanto significante, o
falo representa o «transbordar/excesso de sentido», a potenciali­
dade do sentido que escapa a qualquer significado determinado...
Há contudo um problema com esta versão: ela implica que La-
can apregoe o usufruto fálico como simbolização/normalização
do excessivo usufruto pré-simbólico da M ãe/Outro. Será real­
mente a posição de Lacan? Será a castração simbólica o hori­
zonte supremo do seu pensamento para lá do qual só existe o
abismo inacessível da M ãe/Outro, o Real da Noite Suprema que
dissolve todas as distinções? Para colocar correctamente esta
questão, temos de começar por interrogar o conceito de Real.
80 Slavoj Zizek

Alain Badiou fez da «paixão pelo Real» o elemento-chave do


século x x : contrastando com o século xix, que foi o século das
ideias utópicas ou «científicas», dos projectos para o futuro, o sé­
culo xx procurou fabricar «a própria coisa», realizar directamen­
te a tão esperada Nova Ordem — ou, como disse Fernando Pes­
soa:

N ão queiras, Lídia, edificar no espaço


que fig u ra s no fu tu ro , ou prom eter-te
am anhã. Cum pre-te hoje, não esperando.
Tu m esm a és a tua vida.

A experiência fundamental e específica do século xx foi a ex­


periência directa do Real como oposto à realidade social quoti­
diana — o Real na sua extrema violência como preço a pagar pa­
ra retirar as camadas enganadoras da realidade7. Nas trincheiras
da Primeira Guerra Mundial, Emst Jiinger já celebrara o comba­
te como o autêntico encontro intersubjectivo: a autenticidade re­
side no acto da transgressão violenta, do Real lacaniano — a
Coisa que Antígona enfrenta quando viola a ordem da Cidade —
ao excesso de sentido, tal como Bataille o entende.
Esta paixão pelo Real confronta-nos com a impossibilidade
propriamente ontológica de situar no mesmo espaço de realida­
de as nossas banais interacções quotidianas e as cenas de usufru­
to intenso. Eis o que Bataille diz a este propósito: «Subitamente,
um acesso de fúria apodera-se de alguém. Essa fúria é-nos fami­
liar, mas podemos imaginar facilmente a surpresa de um indiví­
duo que não esteja a par da ocorrência e que, graças a um expe­
diente, testemunharia, sem ser visto, os arrebatamentos sexuais
de uma mulher que o tivesse impressionado como particular­
mente distinta. Julgá-la-ia doente, como uma cadela raivosa que
tivesse usurpado a personalidade da distinta anfitriã...»8 E o fac­
to de esta dimensão ser a dimensão do sagrado é atestado pelo
pequeno escândalo que um escritor inglês provocou há alguns
anos ao iniciar um romance da seguinte maneira: «Há mulheres
que confirmam a ideia de que estaríamos dispostos a ver a nossa
A Marioneta e o Anão 81

mulher e o nosso filho afogarem-se calmamente na água gelada


a fim de podermos copular com elas repetidamente e em toda a
liberdade.» Não será esta uma formulação extrema do estatuto
«religioso» da paixão sexual, para lá do princípio do prazer e im­
plicando a suspensão teleológica da ética?
Contudo, existe outra maneira de nos aproximarmos do Real.
No século xx, a paixão pelo Real tem duas vertentes: a da puri­
ficação e a da subtracção. Contrariamente à purificação, que se
esforça por isolar o núcleo do Real arrancando violentamente
aquilo que o cobre, a subtracção parte do Vazio, da redução
(«subtracção») de todo o conteúdo determinado, para procurar
estabelecer, depois, uma diferença minimal entre esse Vazio e
um elemento que funcione como seu representante. À parte o
próprio Badiou, foi Jacques Rancière que desenvolveu essa es­
trutura como a da política do «conjunto vazio», do elemento
«supranumerário» que faz parte do conjunto, mas que não tem
qualquer lugar no seu seio. O que é a política, para Rancière9?
Um fenómeno que surge pela primeira vez na Grécia antiga,
quando os membros do demos (os que não tinham qualquer lu­
gar determinado no edifício social hierarquizado) pediram não
só que a sua voz fosse ouvida contra os que estavam no poder e
exerciam o controlo social, ou seja, não só protestaram contra a
injustiça de que eram objecto e queriam que a sua voz fosse in­
cluída na esfera pública ao mesmo título que as vozes da oligar­
quia e da aristocracia reinantes, como também se apresentaram
como representantes do Todo social, da verdadeira Universali­
dade («nós» — o «nada», não contado na ordem — «somos o
povo, somos o Todo que está contra os que representam apenas
os seus próprios interesses de privilegiados»). Em suma, o con­
flito político designa a tensão entre o corpo social estruturado,
onde cada parte tem o seu lugar, e a «parte dos sem-parte» que
abala essa ordem em nome do princípio vazio da universalidade,
daquilo que Balibar chama de «igualiberdade» , a igualdade de
princípio de todos os homens enquanto seres falantes — até aos
liumang, os hooligans da China capitalista-feudal contemporâ­
nea, os que (em relação à ordem existente) são deslocados e er-
82 Slavoj Zizek

ram sem trabalho nem residência mas, também, sem identidade


cultural ou sexual e sem estarem registados em qualquer lado.
Por conseguinte, a política propriamente dita implica sempre
uma espécie de curto-circuito entre o Universal e o Particular: o
paradoxo de um «singular universal», de um singular que surge
como representante do Universal, desestabilizando a ordem fun­
cional «natural» das relações no corpo social. Esta identificação
da não-parte com o Todo, da parte da sociedade que não tem
qualquer lugar definido no seio da sociedade (ou que resiste ao
lugar subalterno que lhe é atribuído) com o Universal, é o gesto
elementar de politização, discernível em todos os grandes even­
tos democráticos, da Revolução Francesa (na qual o Terceiro Es­
tado proclamou, contra a aristocracia e o clero, que representa­
va a Nação como tal) à queda dos ex-Estados socialistas
europeus (nos quais os «fóruns» dissidentes proclamaram-se re­
presentantes de toda a sociedade, contra a nomenklatura do Par­
tido). Neste sentido preciso, política e democracia são sinóni­
mos: o propósito fundamental da política antidemocrática é, e
sempre foi, por definição, a despolitização, ou seja, a exigência
incondicional de um «retorno das coisas à normalidade», a uma
situação em que cada indivíduo faz o seu trabalho particular.
Também podemos dizer a mesma coisa em termos antiestatais:
os que são subtraídos à alçada do Estado não são levados em
conta, ou seja, a sua presença múltipla não está conveniente­
mente representada no Um do Estado. Neste sentido, a «dife­
rença minimal» é a diferença entre o conjunto e esse elemento
supranumerário que pertence ao conjunto, mas ao qual falta
qualquer propriedade diferencial que especificaria o seu lugar
no edifício: é precisamente essa ausência de diferença (funcio­
nal) específica que faz dele uma encarnação da pura diferença
entre o lugar e os seus elementos10. Este elemento supranume­
rário é, assim, uma espécie de equivalente, em política, àquilo
que Malevitch representa na pintura: um quadrado numa super­
fície que marca a diferença minimal entre o lugar e a ocorrência,
entre o fundo e a figura. Ora, para retomar os termos de Ernes­
to Laclau e de Chantal Mouffe, este elemento «supranumerário»
A Marioneta e o Anão 83

aparece quando passamos da diferença ao antagonismo: visto


que nele estão suspensas todas as diferenças qualitativas ineren­
tes ao edifício social, ele representa a diferença «pura» como tal,
o não-social no campo do social11. Ou, para dizer as coisas nos
termos da lógica do significante: nele, o próprio Zero conta co­
mo Um.
Esta passagem da purificação à subtracção não será também a
passagem de Kant a Hegel? A passagem da tensão entre os fenó­
menos e a Coisa para uma incoerência/distância entre os próprios
fenómenos? A visão tradicional da realidade é a de um núcleo
duro que resiste à sua apreensão pelo conceito. O que Hegel faz
é tomar simplesmente esta ideia da realidade mais literalmente·.
a realidade não conceptual é algo que emerge quando o desen­
volvimento conceptual fica enredado numa incoerência e deixa
de ser transparente a si mesmo. Em suma, o limite é transposto
do exterior para o interior: há Realidade porque — e na medida
em que — a Ideia é incoerente, não coincide consigo própria...
Em suma, as múltiplas incoerências de perspectivas entre os fe­
nómenos não são um efeito do impacto da Coisa transcendente;
pelo contrário, a Coisa é simplesmente a «ontologização» da in­
coerência entre os fenómenos. A lógica desta inversão é funda­
mentalmente a mesma que a passagem da teoria da relatividade
restrita à teoria da relatividade generalizada, em Einstein. En­
quanto a teoria da relatividade restrita já introduz a ideia de um
espaço curvo, ela concebe essa curvatura como um efeito da ma­
téria: é a presença desta que curva o espaço, isto é, só um espa­
ço vazio teria sido um espaço não curvo. Com a passagem à teo­
ria geral, a causalidade é invertida: longe de provocar a curvatura
do espaço, a matéria é o seu efeito. Da mesma maneira, o Real
lacaniano — a Coisa — é menos a presença inerte que «curva»
o espaço simbólico (introduzindo nele distâncias e incoerências)
do que o efeito dessas distâncias e incoerências.
O Real como abismo primordial, aterrador, que devora tudo e
dissolve todas as identidades, é um tema que encontramos, sob
diversas formas, na literatura, do turbilhão de Edgar Poe e do
«horror» de Kurtz no final de O Coração das Trevas, de Conrad,
84 Slavoj Zizek

ao Pip de Melville, em Moby Dick, que, perdido no fundo do


oceano, encontra o Deus-demónio:

O m ar trocista poupara o seu corpo m ortal para devorar a imor­


talidade da sua alm a, m as sem a afogar com pletam ente. E la era co­
m o que levada para profundezas deslum brantes, onde estranhas for­
mas de um m undo prim itivo deslizavam à sua volta, perante os seus
olhos passivos. ( ...) Pip viu m ultidões de insectos de coral, deuses
om nipresentes que, do firm am ento das águas, içavam os orbes co­
lossais. Viu o pé de D eus pousado no pedal do tear do mundo e
falou-lhe; a partir daí, os seus com panheiros cham aram -no louco.

Este Real é precisamente o engodo supremo que, como subli­


nhou justamente Richard Kearney12, pode ser facilmente recu­
perado pela ideologia New Age, como na ideia de Deus mons­
truoso em Joseph Campbell:

P or m onstro entendo um a presença ou um a aparição assusta­


dora que faz explodir todos os critérios de harm onia, ordem e
conduta ética. ( ...) E D eus no papel de destruidor. E ssas expe­
riências vão para lá dos julgam entos éticos. Isso é varrido. ( ...)
D eus é h o rrív el13.

Contra esta visão do Real, devemos sublinhar que o Real laca-


niano não é outro Centro, um ponto central mais «profundo»,
mais «verdadeiro», ou um «buraco negro» em torno do qual flu­
tuam formações simbólicas; é antes o obstáculo devido ao qual
cada Centro é sempre deslocado, falhado. Ou, quanto ao tópico
da Coisa-em-si: o Real não é o abismo da Coisa que escapa para
sempre à nossa apreensão e que faz com que toda a simbolização
do Real seja parcial e inapropriada; é antes aquele obstáculo in­
visível, aquele ecrã deformador que «falsifica» sempre o nosso
acesso à realidade exterior, aquela «espinha na garganta» que im­
prime uma vertente patológica a toda a simbolização, ou seja, de­
vido ao qual toda a simbolização falha o seu objecto. Ou, quanto
à ideia da Coisa como derradeiro Referente traumático insupor­
A Marioneta e o Anão 85

tável que somos incapazes de enfrentar directamente, pois a sua


presença é demasiado ofuscante: e se a própria ideia segundo a
qual a ilusória realidade quotidiana é um véu que dissimula o
Horror da Coisa insuportável for falsa, e se o derradeiro véu que
esconde o Real for a própria ideia da Coisa horrível atrás do véu?
Os críticos do Real lacaniano gostam de sublinhar a natureza
problemática da distinção entre Simbólico e Real: o facto de tra­
çar uma linha de separação entre ambos não será precisamente o
acto simbólico por excelência? Contudo, esta crítica assenta
numa incompreensão mais bem explicitada através da referência
à lógica «feminina» da não-Totalidade, desenvolvida por Lacan
no seu Séminaire XX. Segundo a leitura corrente, a «não-
-Totalidade» significa que, numa mulher, nem tudo se encontra
na função fálica: há uma parte dela que resiste à castração sim­
bólica, à inclusão na ordem simbólica. Existe, porém , um pro­
blema nesta leitura: como devemos então ler a fórm ula comple­
mentar, segundo a qual não há nada numa mulher que não esteja
contido na função fálica e, desse modo, incluído na ordem sim­
bólica? Em Reading Seminar XX, há uma divergência interes­
sante entre Bruce Fink e Suzanne Barnard precisamente quanto
a este ponto. Fink segue a leitura comum: o gozo fem inino, a par­
te de uma mulher que resiste à simbolização, está para lá do di-
zível, só pode ser experimentado num silencioso arrebatamento
místico, como em Santa Teresa de Bernini; por outras palavras,
dizer que «não há gozo que não seja um gozo fálico» significa
que o gozo feminino não existe no sentido estrito da'existência
simbólica — ele não é simbolizado, existe simplesmente fora do
discurso: «É inefável. Não ocorrem palavras nesse m omento»14.
Nesse caso, como ler a identificação de Lacan do gozo feminino
com o gozo da fala, gozo inerente ao acto de falar como tal? Fink
dá-nos um sinal da sua excepcional integridade intelectual ao
confessar abertamente a sua perplexidade a este respeito, dizen­
do que talvez se trate simplesmente de um dos casos da incon­
gruência lacaniana, em que Lacan faz declarações contraditórias
durante quase uma dúzia de páginas:
86 Slavoj Zizek

C om o é que o gozo fem inino enquanto gozo d a fala é com pa­


tível com a noção de que se trata de um a experiência inefável?
( ...) N ão percebo ( ...) T am bém não sei dizer porque associa La-
can o gozo da fala especificam ente à m ulher ( ...) . N ão precisa­
m os de assum ir que haja algum a espécie de unidade ou de co n ­
gruência com pleta na sua o b ra 15.

Contudo, esta incongruência seria catastrófica para Lacan, se


pensarmos que este ponto é absolutamente fundamental para o
conceito lacaniano de diferença sexual; assim, antes de aceitar
que estamos perante uma simples incongruência, devíamos tentar
conciliar as duas asserções. E o ensaio de Barnard não nos mos­
trará uma saída possível para este impasse, quando ela insiste que
a «não-Totalidade» do feminino não significa a existência de uma
parte misteriosa da mulher fora do simbólico, mas uma simples
ausência da totalização, do Todo: a totalização ocorre através da
sua excepção constitutiva e, assim, na economia libidinal femini­
na não existe um Exterior, uma Excepção à função fálica, pela
simples razão de ela estar mais totalmente imersa na ordem sim­
bólica do que um homem — sem restrição, sem excepção:

( ...) a estrutura fem inina (e, por conseguinte, o gozo do O utro)


produz-se em relação a um «conjunto» que não existe na base de
um a excepção exterior, constitutiva. ( ...) C ontudo, por outro la­
do, isso não significa que a não-totalidade da estrutura fem inina
esteja sim plesm ente fora da estrutura m asculina ou que ela lhe se­
ja indiferente. E la está antes integralm ente na função fálica ou,
para utilizar os term os de Lacan: «Ela não está lá de m odo n e­
nhum . E la está lá com pletam ente» ( ...) A o estar então no sim bó­
lico, «sem excepção», o sujeito fem inino tem um a relação com o
O utro que produz outra form a «ilim itada» de g o zo » 16.

Recordemos a famosa cena de Persona (,A Máscara), de Berg-


man, em que Bibi Andersson fala de uma orgia na praia e da forma
como nela participou: não vemos imagens em flash-back que ilus­
trem essa recordação e, não obstante, trata-se de uma das cenas
A Marioneta e o Anão 87

rmais eróticas de toda a historia do cinema — a excitação está na


rmaneira como ela a relata e essa excitação que assenta no próprio
discurso é o gozo feminino... (E, incidentalmente, a dualidade for­
mada por Bibi Andersson e Liv Ullman, a mulher histérica «co-
tinum», faladora, e a mais aristocrática Ullman, a actriz que se re-
ciolhe num silêncio completo, não reproduzirá, por acaso, os dois
lados da fruição feminina, a «superidentificação» histérica à pala­
vra e ao silêncio, a retirada para o inefável? Além disso, como mui­
tos críticos assinalaram, não reproduzirá essa dualidade a dualida-
dle do analista e do paciente no tratamento psicanalítico? Ullman,
«¡oficialmente» uma paciente psiquiátrica, não desempenhará o pa­
pel do analista cujo silêncio frustra o analisado, provocando-lhe ex­
plosões de histeria17? E esta dualidade não será uma indicação fu­
tura de que a posição do analista é fundamentalmente feminina ($
e pequeno a , em maternas lacanianos), em contraste com a duali­
dade masculina de Sj e S2 (o Mestre e o Servo do Conhecimento)?
Isto significa que o Real não é exterior ao Simbólico: o Real é
o* próprio Simbólico na modalidade da não-Totalidade, sem um
Limite/Excepção exterior. Neste sentido preciso, a linha de sepa­
ração entre Simbólico e Real é o gesto simbólico por excelência,
o verdadeiro gesto fundador do Simbólico, e entrar no Real não
implica abandonar a linguagem, lançando-nos no abismo do Real
caótico, mas, pelo contrário, abandonar qualquer referência a um
ponto exterior que escape ao Simbólico. Esta é também a razão
por que a lógica de Hegel é (o primeiro caso de) uma lógica do
neal — precisamente por causa do «absoluto panlogismo» hege-
líano, da rasura a qualquer referência exterior. Em suma, o ino­
minável é estritamente inerente à linguagem. Como emerge? Não
por necessitarmos de palavras para designar objectos, para sim­
bolizar a realidade, pelo que haveria então um excesso de reali­
dade, um núcleo traumático que resistiria à simbolização; este
motivo obscurantista do núcleo inominável da Suprema Realida­
de que escapa ao domínio da linguagem deve ser completamente
rejeitado, não em nome de uma crença néscia de que tudo pode
ser nomeado, apreendido pela nossa razão, mas pelo facto de que
o Inominável é um efeito da linguagem. A realidade surge diante
88 Slavoj Zizek

de nós antes da linguagem e o que esta faz, no seu gesto mais


fundamental, é, como assinalou Lacan, precisamente o contrário
de designar a realidade: cava um buraco nela, abre a realidade vi­
sível/presente para a dimensão do invisível/imaterial. Quando ve­
jo uma pessoa, estou apenas a vê-la — mas só ao nomeá-la é que
indico o abismo que há nela, para lá do que vejo.
Nesse caso, o que é o Real? Jonathan Lear18 mostrou como a
viragem «pré-socrática» freudiana para Eros e Tanatos como as
duas forças polares básicas do Universo é uma falsa saída, uma
pseudo-explicação originada pela sua incapacidade para concep-
tualizar correctamente a dimensão «para lá do princípio do pra­
zer» que encontrou na sua prática clínica. Depois de estabelecer
este princípio como o «desvio», a guinada que define o funcio­
namento do nosso aparelho psíquico, Freud é compelido a regis­
tar o fenómeno (repetições de experiências traumáticas) que per­
turba o seu funcionamento: esses casos constituem uma excepção
que não pode ser explicada nos termos do princípio do prazer.
É «então que esconde a pérola da sua própria visão interior: o fac­
to de a mente poder perturbar o seu próprio funcionamento». Em
vez de procurar conceptualizar essa perturbação (negatividade)
como tal, nas suas modalidades, deseja fundá-la numa outra po-
sitividade, mais «profunda». Aqui, em termos filosóficos, trata-se
do mesmo tipo de erro que Hegel atribui a Kant: depois de este
ter descoberto a incongruência interna da forma como experi­
mentamos a realidade, em vez de aceitar a sua inconsistência,
sentiu-se compelido a postular a existência de outra realidade,
inacessível, a verdadeira realidade das Coisas-em-si:

Freud não está envolvido no processo de descobrir um a nova


força de vida, m as no processo de procurar um a explicação para
um traum a através da teoria psicanalítica. N este sentido, a invo­
cação de Platão e dos antigos fornece um falso sentido de legiti­
m idade e segurança.

Só podemos concordar inteiramente com Lear: a introdução


de Tanatos como princípio cósmico (e a elevação retroactiva da
A Marioneta e o Anão 89

libido em Eros, como o outro princípio cósmico), longe de ser a


designação apropriada para aquilo que é insuportavelmente trau­
mático e inaceitável para a maioria de nós (o facto de nos «des­
viarmos para a m orte»...), é uma tentativa para encobrir o ver­
dadeiro trauma. A «radicalização» aparente é, com efeito, uma
domesticação filosófica: as rupturas que perturbam o funciona­
mento do Universo, como se fossem uma culpa ontológica, são
transformadas num dos dois princípios cósmicos positivos, res­
tabelecendo assim a harmonia pacífica do Universo como cam­
po de batalha dos dois princípios opostos. (E, neste caso, as im­
plicações teológicas são cruciais: em vez de pensar até ao fim o
impasse subversivo do monoteísmo, Freud regressa a uma sabe­
doria pagã.) Aqui, Lear introduz a noção de «termos enigmáti­
cos», termos que parecem designar uma determinada entidade,
quando, na realidade, expressam simplesmente o fracasso da
nossa compreensão: quando menciona Tanatos, Freud

pensa nom ear um a coisa real no U niverso, m as, de facto, está a


injectar um term o enigm ático no seu discurso. N ão há nom eação
possível, pois não há nada que ele tenha genuinam ente isolado p a­
ra lhe atribuir um nom e. A sua esperança é fornecer um a explica­
ção, m as o que obtem os é a ilusão de um a explicação.

Neste aspecto, a história da ciência está repleta de exemplos


deste tipo — do flogístico (um pseudoconceito que denuncia a ig­
norância do cientista do modo como a luz viaja efectivamente) ao
«modo de produção asiático» de Marx (uma espécie de contentor
negativo, destinado a acolher «todos os modos de produção que
não se enquadram no padrão marxista de categorização dos modos
de produção»). No entanto, não estará Lear a desdenhar os «ter­
mos enigmáticos»? Serão eles realmente apenas índices do nosso
fracasso e da nossa ignorância? Não desempenharão um papel de
chave estrutural? Os «termos enigmáticos» adequam-se precisa­
mente àquilo que Lacan chama de Significante-Mestre (o falo co­
mo significante), o significante «vazio», desprovido de significa­
do: esse significante (a metáfora paterna) é o substituto para o
90 Slavoj Zizek

desejo da mãe, e o encontro com o desejo da mãe com o seu enig­


ma (che vuoil, o que é que ela quer?) é o encontro primordial com
a opacidade do Outro. O facto de o falo ser um significante e não
o significado desempenha aqui um papel de pivô: o significante
fálico não fornece uma explicação para o enigma do desejo da
mãe, não é o seu significado (não nos diz o que a mãe quer real­
mente), apenas designa o espaço impenetrável do seu desejo. E,
para além disso, como mostrou Claude Lévi-Strauss (que Lacan
seguiu neste ponto), qualquer sistema significativo contém esse
excessivo elemento paradoxal, a substituição para o enigma que o
evita.
A homologia com Lacan vai ainda mais longe: em termos la-
canianos, a observação de Lear não será a de que o princípio de
prazer freudiano é a «não-Totalidade» — não existe nada no seu
exterior, mas, no entanto, ele não é tudo, pode entrar em colap­
so? Nesse caso, porque acontecem essas perturbações? Quando é
que a nossa mente interrompe o seu funcionamento? Essas per­
turbações acontecem simplesmente, infundadas em qualquer
princípio profundo — como uma passagem ao acto cega e des­
truidora quando nos encontramos num beco sem saída; como um
encontro traum ático... Mais uma vez, o que Lear chama de se­
paração entre o funcionamento normal da psique (sob a guinada
do princípio do prazer) e a sua disrupção adequa-se perfeitamen­
te ao par lacaniano automaton e tyché (tomado a Aristóteles, ou­
tra grande referência de Lear); quando Lear descreve como «a
mente, após uma perturbação, procura regressar ao tipo de acti­
vidade impulsionada pela sexualidade, pela fantasia, pelo so­
nho», faz eco da noção lacaniana de como as formações fantas-
máticas e as ficções simbólicas se esforçam por remediar as
intrusões do Real. E, mais ainda, quando Lear sublinha que o
trauma é apenas uma espécie, uma das modalidades, da pertur­
bação, não corresponderá isso à tese de Lacan segundo a qual o
trauma é só uma das modalidades do Real?
Nesse caso, a incompreensão entre Lacan e Lear será de or­
dem pura e simplesmente terminológica? Na sua crítica ao trata­
mento de Dora por Freud, Lear diz que Freud repete o erro do se­
A Marioneta e o Anão 91

nhor K. e «assume que Dora já é uma mulher quando, precisa­


mente, o seu problema é que ela está a procurar a maneira como
pode tomar-se uma mulher. Ele assume que ela já compreende a
vida erótica, mas ela está a procurar saber o que esta é». Em su­
ma, Freud interpreta Dora como uma mulher sexualmente madu­
ra, com desejos claros (apesar de inconscientes), em vez de
percebê-la como ela era, uma jovem ainda em busca do mistério
do desejo feminino, projectando a solução deste mistério na se­
nhora K., o seu «sujeito-suposto-saber» (como desejar). Contu­
do, Lear parece falhar aqui um ponto importante, segundo o qual
a busca deste mistério é a própria definição do sujeito histérico
feminino: não há nenhuma mulher que saiba realmente como de­
sejar — uma tal mulher seria a Mulher Lacaniana, a mulher que
não existe, cuja existência é uma fantasia.
A conclusão mais geral que podemos tirar disto diz respeito à
localização de Eros relativamente à perturbação. Lear tende a si­
tuar Eros no interior da «guinada» do «princípio do prazer» —
contudo, não será o amor, a terrível experiência de se apaixonar,
uma ruptura por excelência, a mãe de todas as rupturas, a aber­
tura para a possibilidade de novas possibilidades? Consequente­
mente, não será o amor o exemplo supremo do «termo enigmáti­
co»? Ele refere-se, por definição, a um desconhecido X, um não
sei quê que me leva a apaixonar-me — a partir do momento em
que posso enumerar as razões por que amo alguém, as caracte­
rísticas dessa pessoa que me levam a apaixonar-me por ela, po­
demos ter a certeza de que isso não é amor. E, mutatis mutandis,
não se aplicará o mesmo também à sexualidade? Tal como assi­
nalou Jean Laplanche, o terrível encontro da criança com o im­
penetrável enigma da sexualidade dos pais não será a ruptura que
perturba a sua clausura narcísica e o/a obriga a confrontar-se com
novas possibilidades? A conclusão que devemos retirar desta di­
ferença talvez seja a de que uma pessoa não pode opor desvio e
ruptura como Lear tende a fazer; eis como ele define o desvio:

Chamo desvio a este tipo de funcionamento mental porque ele


exerce uma espécie de deslocação gravitacional em todo o campo
92 Slavoj Zizek

do funcionamento mental consciente, inflectindo-o para formas


idiossincráticas. Para utilizar uma analogia, detectamos a existên­
cia de buracos negros graças à maneira como a luz se desvia na
sua direcção. Detectamos também este tipo de processo incons­
ciente nas maneiras como a forma de raciocinar do nosso cons­
ciente, como as nossas expressões corporais, os nossos actos e os
nossos sonhos se desviam para eles.

Contudo, para Lacan, o Real (de um trauma) é também um


«desvio», um buraco negro que só é detectável pelos seus efei­
tos, pelo modo como «curva» o espaço menta], arqueando a li­
nha do processo mental. E a sexualidade (esse Real do animal
humano) não será também esse desvio? Aqui devemos aprovar a
visão fundamental de Freud segundo a qual a sexualidade não se­
gue o princípio do prazer: o seu modo fundamental de apareci­
mento é o de uma ruptura, o de uma intrusão de um gozo exces­
sivo que perturba o equilíbrio do funcionamento «normal» do
aparelho psíquico.
Isto significará que Lacan repete o erro de Freud e localiza ou­
tra vez a causa da ruptura numa preexistente entidade positiva
exterior, como a Coisa, das Ding, a substância impenetrável do
Real? Visto que o próprio Lear alude à física (buracos negros),
devemos recordar mais uma vez a teoria da relatividade em que
a matéria, longe de causar a curvatura do espaço, é o seu efeito:
da mesma maneira, o Real lacaniano — a Coisa — não é tanto a
presença inerte que «curva» o espaço simbólico (introduzindo
nele rupturas), mas antes o efeito dessas rupturas. Contrariamen­
te a Lear, para quem o desvio é o desvio do princípio do prazer,
actuando como força de estabilidade, ocasionalmente perturbada
por rupturas, para Lacan o desvio é a força desestabilizadora
cuja deslocação gravitacional perturba o automaton psíquico.
Aqui, uma referência à análise magistral de Lévi-Strauss na
sua Antropologia Estrutural, a propósito da disposição espacial
das cabanas no território dos Winnebago, uma tribo dos Grandes
Lagos americanos, poderá ser-nos de alguma utilidade. A tribo
está dividida em dois subgrupos (metades), «os de cima» e «os
A Marioneta e o Anão

de baixo»; quando pedimos a um membro da tribo que desenhe


num pedaço de papel, ou na areia, um plano da sua aldeia (a dis­
posição espacial das cabanas), obtemos respostas diferentes con­
soante a sua pertença a um ou outro dos subgrupos. Ambos per­
cepcionam a aldeia como um plano circular, mas, para um dos
subgrupos, temos uma estrutura concêntrica, com um grande cír­
culo exterior no interior do qual está outro círculo mais pequeno,
ao passo que para o outro subgrupo o círculo está dividido em
duas partes por uma clara linha divisória. Por outras palavras, um
membro do primeiro subgrupo (designemo-lo como «conserva­
dor corporativista») percepciona o plano da aldeia como um cír­
culo de cabanas dispostas mais ou menos simetricamente em tor­
no de um templo sagrado, ao passo que um membro do segundo
subgrupo (designemo-lo como «opositor revolucionário») per­
cepciona a aldeia como dois conjuntos distintos de cabanas, se­
parados por uma fronteira invisível19... A ideia central de Lévi-
-Strauss é que este exem plo não deveria incitar-nos ao
relativismo cultural, segundo o qual a percepção do espaço social
depende da pertença do observador a um ou outro subgrupo; a
própria clivagem em duas percepções «relativas» implica a refe­
rência escondida a uma constante que não é a disposição objec­
tiva, «actual», das cabanas, mas um núcleo traumático, um anta­
gonismo fundamental que os habitantes da aldeia são incapazes
de simbolizar, explicar, integrar, um desequilíbrio nas relações
sociais que impede a comunidade de se estabilizar num todo har­
monioso. Os dois planos diferentes são simplesmente duas tenta­
tivas que se excluem mutuamente, de forma a lidar com esse an­
tagonismo traumático, a sarar essa ferida através da imposição de
uma estrutura simbólica equilibrada. É aqui que vemos em que
sentido preciso a intervenção do Real intervém através de uma
anamorfose. Primeiro, há a distribuição efectiva, objectiva, das
cabanas; depois, as suas duas simbolizações diferentes que de­
formam, ambas, essa distribuição, como que por anamorfose.
Aqui, contudo, o «Real» não é a distribuição efectiva, mas o nú­
cleo traumático do antagonismo social que deforma a visão que
os membros da tribo têm do antagonismo efectivo. Assim, o Real
94 Slavoj Zizek

é o X negado, em virtude do qual a nossa visão da realidade é de­


formada por anamorfose. (Casualmente, há uma homologia fla­
grante entre os três níveis deste dispositivo e os três níveis da in­
terpretação dos sonhos em Freud: o núcleo real do sonho não é o
seu conteúdo latente, deslocado/transposto para a sua textura ex­
plícita, mas o desejo inconsciente que se inscreve ele próprio
através da precisa distorção do conteúdo latente na textura explí­
cita.)
Isto significa que o Real lacaniano está do lado da virtualida­
de contra a «realidade real». Consideremos o caso da dor: existe
um laço íntimo entre a virtualização da realidade e a emergência
de uma infinita e infinitizada dor física, muito mais forte do que
a dor habitual: a combinação da biogenética com a realidade vir­
tual não abrirá para novas possibilidades «acrescidas» de tortu­
ra, para horizontes novos e ainda desconhecidos de uma exten­
são incrível da nossa capacidade para suportar a dor (pela
extensão da nossa capacidade sensorial para suportar a dor e, aci­
ma de tudo, pela invenção de novas maneiras de infligir sofri­
mento atacando directamente os centros do cérebro sensíveis à
dor, passando por cima da percepção sensorial)? Talvez a supre­
ma imagem sadiana de uma vítima «não morta» da tortura, que
pode suportar uma dor infinita sem dispor de uma fuga para a
morte, também esteja à espera de se tom ar realidade. Numa pai­
sagem destas, a suprema dor real/impossível já não é a dor do
corpo real, mas a «absoluta» dor real-virtual, provocada pela rea­
lidade virtual em que evoluímos (e, evidentemente, podemos di­
zer o mesmo quanto ao prazer sexual). Uma abordagem ainda
mais «real» está em aberto com a perspectiva da manipulação di­
recta dos neurônios: apesar de não ser «real» no sentido em que
não faz parte da realidade em que vivemos, essa dor é real-im-
possível.
Não acontecerá o mesmo com as nossas emoções? Lembre­
mos que Hitchcock sonhava manipular directamente as emoções:
no futuro, um realizador de cinema já não precisará de inventar
intricadas histórias e filmá-las de modo convincente a fim de
provocar a apropriada reacção emocional no espectador; disporá
A Marioneta e o Anão 95

de um teclado de computador conectado directamente ao cérebro


do espectador e, carregando nas teclas, despoletará neste a triste­
za, o terror, a simpatía, o m edo... O espectador senti-los-á real­
mente, em proporções jamais igualadas pelas situações da «vida
real» que evoquem medo ou tristeza. É extremamente importan­
te não confundir esta maneira de proceder com a da realidade vir­
tual: o medo é causado não pelas imagens e pelos sons virtuais
que o provocam, mas por uma intervenção directa que passa por
cima do nível de percepção. Isto, e não um «retorno à vida real»
a partir do meio virtual artificial, é o Real engendrado pela pró­
pria virtualização radical. O que vivemos neste caso sob a sua
forma mais pura é a distância entre realidade e Real: o Real, por
exemplo, do prazer sexual originado pela intervenção directa so­
bre os neurônios não se situa na realidade dos contactos físicos
e, no entanto, é «mais real, mais intenso que a realidade». Este
Real mina assim a divisão entre os objectos situados na realida­
de e o seu simulacro virtual: se, na realidade virtual, eu enceno
um fantasma impossível, posso então fazer a experiência de um
gozo sexual «artificial» muito mais real do que tudo aquilo que
eu possa experimentar na «realidade real».
Por conseguinte, o Real é simultaneamente a Coisa à qual é
impossível aceder directamente e o obstáculo que impede esse
acesso directo; a Coisa que escapa à nossa apreensão e o ecrã de­
formador que nos leva a falhar a Coisa. Mais precisamente, o
Real é, em última análise, a própria passagem do primeiro ao se­
gundo ponto de vista. Lembremos a velha e bem conhecida aná­
lise de Adorno sobre o carácter antagonista da noção de socieda­
de: numa primeira leitura, a cisão entre as duas concepções da
sociedade (a concepção individualista-nom inalista anglo-
-saxónica e a concepção organicista durkheimiana da sociedade
como um todo que preexiste aos indivíduos) parece irredutível;
temos a impressão de estar perante uma verdadeira antinomia
kantiana que não pode ser resolvida por uma síntese dialéctica
superior e que eleva a sociedade ao estatuto de Coisa-em-si ina­
cessível; porém, numa segunda leitura, deveríamos simplesmen­
te notar que essa antinomia radical que parece impedir o nosso
96 Slavoj Zizek

acesso à Coisa é já a própria Coisa — o traço fundamental da so­


ciedade actual é o antagonismo irreconciliável entre a Totalidade
e o indivíduo. E não haverá uma homología estrutural entre esta
passagem e a piada sobre um certo Rabinovitch da época sovié­
tica? Rabinovitch quer deixar a União Soviética por dois moti­
vos. «Primeiro, receio que, no caso de a ordem socialista se de­
sintegrar, todos os crimes perpetrados pelos comunistas sejam
atribuídos a nós, judeus.» Nessa altura, um burocrata exclama:
«Mas nada mudará jamais na União Soviética! O socialismo é
eterno!» Então, Rabinovitch responde calmamente: «Esse é o
meu segundo motivo para emigrar!» O verdadeiro problema —
o obstáculo — aparece retrospectivamente como a sua própria
solução, pois o que nos impede de ter acesso directamente à Coi­
sa é a própria Coisa. Neste caso, a mudança está simplesmente
na alteração de perspectiva — e, precisamente da mesma manei­
ra, a última viragem da parábola de Kafka sobre a Porta da Lei
repousa numa simples alteração de perspectiva: o homem do
campo, confrontado com a Porta da Lei que o impede de ter aces­
so à Coisa aterradora (a Lei), ouve dizer que a porta estava lá
apenas para ele, desde o início, ou seja, que ele estava desde o
início incluído na Lei — a Lei não era simplesmente a Coisa que
fascinava o seu olhar, ela sempre/agora reflectia o seu olhar.
E, para irmos um pouco mais longe, não será exactamente esta
mudança aquela que está no âmago da experiência cristã? (É a
separação muito radical entre o homem e o próprio Deus que nos
une com Deus, pois, na figura de Cristo, Deus está profunda­
mente separado de Si m esm o) A questão não está, portanto, em
«ultrapassar» a distância que nos separa de Deus, mas em ver
bem que essa separação é interior ao próprio Deus (o cristianis­
mo como versão suprema da piada sobre Rabinovitch).
Esta ideia de mudança de perspectiva também nos permite
uma nova abordagem de Nietzsche que, no mesmo texto, Para lá
do Bem e do M al20, parece defender duas posições epistemológi­
cas opostas: por um lado, a ideia de que a verdade é a Coisa Real
insuportável, tão perigosa, e até mortal, como a contemplação di­
recta do Sol em Platão, de modo que o problema consiste em sa­
A Marioneta e o Anão 97

ber até que ponto um homem pode suportar a verdade sem a di­
luir ou falsear; por outro, a ideia «pós-modema» de que a apa­
rência tem mais valor do que a realidade chã, o que equivale a di­
zer, em última análise, que não existe Realidade última, mas
simplesmente um jogo entre uma multiplicidade de aparências,
de modo que deveríamos abandonar a própria oposição entre rea­
lidade e aparência — a grandeza do homem estando na sua capa­
cidade para dar prioridade à aparência estética brilhante sobre a
realidade cinzenta. Voltamos a encontrar aqui, para retomar a ter­
minologia de Badiou, a paixão pelo Real contra a paixão pela
aparência. Mas como podemos ler conjuntamente estas duas po­
sições opostas? Estará Nietzsche a ser simplesmente incoerente,
oscilando entre dois pontos de vista que se excluem mutuamen­
te, ou haverá uma «terceira via»? Por outras palavras: e se as duas
ideias opostas (paixão pelo Real/paixão pela aparência) tomas­
sem palpável o combate de Nietzsche, a sua incapacidade para ar­
ticular a posição «justa» cuja formulação lhe escapou? Para vol­
tar ao exemplo de Lévi-Strauss, agora deveria ser claro em que
consiste esta posição: tudo não é só um jogo entre as aparências,
há um Real; contudo, esse Real não é a Coisa inacessível mas a
distância que impossibilita o nosso acesso a essa Coisa, o «ro­
chedo» do antagonismo que deforma a nossa visão do objecto
apreendido através de uma perspectiva parcial. E, mais uma vez,
a «verdade» não é o estado «real» das coisas, isto é, a visão «di­
recta» do objecto sem perspectiva deformadora, mas o próprio
Real do antagonismo que causa a perspectiva deformadora. O lu­
gar da verdade não é a maneira como «as coisas são realmente em
si mesmas», para lá das deformações devidas à perspectiva; é a
própria distância, a passagem que separa uma perspectiva de ou­
tra (na ocorrência, um antagonismo social), que torna as duas
perspectivas radicalmente incomensuráveis. O «Real como im­
possível» é a causa da impossibilidade de alcançar uma visão
«neutra» do objecto, não deformada pela perspectiva. Existe uma
verdade, tudo não é relativo — mas essa verdade é a verdade da
deformação devida à perspectiva como tal, não a verdade defor­
mada pela visão parcial devida a uma perspectiva unilateral.
98 Slavoj Zizek

Portanto, quando Nietzsche afirma que a verdade é uma pers­


pectiva, essa afirmação deve ser lida tendo presente na mente a
ideia de Lenine de que o conhecimento tem um carácter partidá­
rio/parcial [a (tristemente) célebre pa rtij’nost]: numa sociedade
de classes, o «verdadeiro» conhecimento objectivo só é possível
de um ponto de vista revolucionário «interessado». Isso não sig­
nifica uma confiança epistemológicamente «néscia» no «conhe­
cimento objectivo» acessível quando nos desembaraçamos das
nossas parcialidades e preconceitos e adoptamos uma visão
«neutra», nem uma visão relativista (complementar) de que não
há uma verdade última, mas simplesmente múltiplas perspecti­
vas subjectivas. Os dois termos devem ser completamente afir­
mados: existe, na multitude de opiniões, um conhecimento ver­
dadeiro, e esse conhecimento só é acessível a partir de uma
posição partidária «interessada»21.
Para nós, existem duas maneiras fundamentalmente diferentes
de nos posicionarmos em relação ao vazio do Real, bem apreen­
didas pelo paradoxo de Aquiles e da tartaruga: se Aquiles pode
ultrapassar facilmente a tartaruga, nunca poderá alcançá-la. Ou
consideramos o Vazio como o Limite real-impossível da expe­
riência humana do qual só nos podemos aproximar indefinida­
mente, a Coisa absoluta que devemos manter sempre a uma dis­
tância conveniente — se nos aproximarmos demasiado dela,
seremos queimados pelo Sol... (a nossa atitude em relação ao
Vazio é assim profundamente ambígua, marcada, simultanea­
mente, pela atracção e pela rejeição); ou consideramos o Vazio
como aquilo por que devemos passar (e, de certo modo, através
do qual já/sempre passámos) — é aí que reside o essencial do
conceito hegeliano de um «trabalho do negativo», que Lacan re­
tomou na sua ideia de um laço profundo entre pulsão de morte e
sublimação criativa: para que a criação (simbólica) aconteça, a
pulsão de morte (a negatividade absoluta hegeliana, relativa a si
mesma) deve realizar o seu trabalho, que consiste precisamente
em instaurar o vazio e preparar assim um espaço para a criação.
Em vez do antigo tópico dos objectos fenomenais desaparecen­
do/dissolvendo-se no vórtice da Coisa, temos objectos que são
A Marioneta e o Anão 99

apenas o Vazio da Coisa encarnada ou, em linguagem hegeliana,


objectos em que a negatividade assume uma existência positiva.
Em termos religiosos, esta passagem da (Coisa) Una Real-
-Impossível, refractada/reflectida na multitude das suas aparên­
cias, para a Dualidade é a própria passagem do judaísmo ao cris­
tianismo: o Deus judeu é a Coisa Real do Além, ao passo que a
dimensão divina de Cristo não passa de um pequeno trejeito,
uma sombra imperceptível, que o diferencia dos outros humanos
(comuns). Cristo não é «sublime» no sentido de um «objecto ele­
vado à dignidade de uma Coisa», não é um representante do
Deus-Coisa impossível; é antes a «própria Coisa» ou, mais pre­
cisamente, a «própria Coisa» não é senão a ruptura/distância que
faz com que Cristo não seja plenamente humano. Assim, Cristo
é o supremo Mann ohne Eigenschaften, o homem sem qualida­
des, como teria dito Musil: ele é «mais do que homem» — e por­
que não arriscar aqui a referência a Nietzsche: ele é o super-
-homeml — precisamente na medida em que podemos dizer a
propósito da sua figura «ecce homo», na medida em que é um
homem ka t’exochen, «como tal», um homem sem traços distin­
tivos, particulares. Isto quer dizer que Cristo é um universal sin­
gular — da mesma maneira que, para Rancière, os que não têm
um lugar particular na ordem social representam a humanidade
como tal, na sua dimensão universal22. Isto não significa que
Cristo esteja dividido entre a parte «humana» e «divina» da sua
natureza: a diferença minimal que encontramos na lógica da sub­
tracção não é a diferença entre as duas partes, mas a diferença en­
tre dois aspectos de — ou, para dizê-lo mais uma vez como
Nietzsche, duas perspectivas sobre — uma única e mesma iden­
tidade; é a diferença de uma entidade consigo própria. Cristo não
é homem e super-homem: é super-homem na medida em que é
um homem «sem frase», ou seja, na medida em que aquilo que
separa os dois é apenas uma mudança de perspectiva23.
Por outras palavras, Cristo é a diferença minimal entre «ho­
mem» e «super-homem» — aquilo que Nietzsche, esse supremo
e declarado Anticristo, chamava de «meio-dia»: o fino limite en­
tre Antes e Depois, Velho e Novo, Real e Simbólico, entre Deus-
100 Slavoj Zizek

-Pai-Coisa e a comunidade do Espírito. Como tal, ele é ambos ao


mesmo tempo: o ponto extremo do Velho (o culminar da lógica
do sacrifício, representando ele próprio o sacrifício extremo, a
troca pela qual já não somos nós que pagamos a Deus, mas Deus
que paga a Si mesmo por nós, tornando-nos assim indefinida­
mente devedores) e a sua ultrapassagem (a mudança de perspec­
tiva) para entrar no Novo. O que distingue o sacrifício de Cristo
da afirmação ateia de uma vida que não precisa de sacrifício é
apenas uma cambiante ínfima, uma mudança de perspectiva qua­
se imperceptível. Isto talvez seja, portanto, a única coisa que
acontece na passagem do judaísmo ao cristianismo: esta mudan­
ça da purificação para a subtracção.
Não admira portanto que a posição de Nietzsche quanto ao
próprio Cristo tenha sido muito mais ambígua do que a sua posi­
ção quanto ao cristianismo: quando Nietzsche faz do am orfati, a
plena aceitação do sofrimento e da dor, a única via para a reden­
ção, isto é, a plena afirmação da vida, não estará estranhamente
próximo da mensagem de Cristo que faz da morte na cruz o
triunfo da vida eterna? Isto significa que a Redenção propria­
mente cristã não é simplesmente a anulação da Queda, mas,
stricto sensu, a sua repetição. A chave da teologia de São Paulo
é a repetição: Cristo é a repetição redentora de Adão. Adão caiu,
Cristo ressuscitou; Cristo é portanto «o último Adão» (Primeira
Epístola aos Corintios, 15: 45). Por Adão, enquanto filhos de
Adão, estamos perdidos, condenados ao pecado e ao sofrimento;
por Cristo, estamos redimidos. No entanto, isto não significa que
a Queda de Adão (e a subsequente instauração da Lei) tenha si­
do uma simples contingência, ou seja, que não teria havido pe­
cado nem Lei se Adão tivesse escolhido a obediência a Deus:
nesse caso, também não teria havido amor.
A primeira escolha de Adão foi portanto uma escolha forçada:
tinha de ser a escolha do pecado. Esta lógica foi inicialmente de­
senvolvida na oposição hegeliana entre o universal abstracto e o
universal concreto. Numa primeira leitura, as coisas podem pare­
cer evidentes e desprovidas de ambiguidade: o filósofo da uni­
versalidade abstracta é Kant (e, logo depois dele, Fichte); na fi-
A Marioneta e o Anão 101

losofia de Kant, o Universal (a lei moral) funciona como Sollen


abstracto, aquilo que «devia ser», e que, como tal, tem um po­
tencial terrorista/subversivo — o Universal representa uma exi­
gência incondicional/impossível, cujo poder de negatividade está
destinado a minar qualquer totalidade concreta; contra esta tradi­
ção da universalidade abstracta/negativa oposta ao seu conteúdo
particular, Hegel sublinha quanto a verdadeira universalidade é
actualizada na série de determinações concretas apreendidas pe­
lo ponto de vista abstracto do Entendimento como obstáculo à
plena realização do Universal (por exemplo, o Dever moral uni­
versal é actualizado, toma-se efectivo, através da riqueza concre­
ta das paixões humanas particulares e dos esforços desvaloriza­
dos por Kant como obstáculos «patológicos»). Contudo, serão as
coisas assim tão simples? Lembremo-nos da análise hegeliana da
frenología que conclui o capítulo sobre a «Razão Observadora»
em A Fenomenología do Espirito: ai, ele recorre a urna metáfora
fálica explícita para explicar a oposição entre as duas leituras
possíveis da proposição «o Espírito é um osso» (a vulgar leitura
materialista e reducionista — a forma do nosso crânio determina
de forma directa e efectiva os traços da mente de um homem —
e a leitura especulativa — o espirito é suficientemente forte para
afirmar a sua identidade na matéria totalmente inerte e para a «ul­
trapassar», o que significa que mesmo a matéria totalmente iner­
te não pode escapar ao poder de mediação do Espirito). A vulgar
leitura materialista assemelha-se à abordagem que vê apenas no
falo o órgão da micção, enquanto a leitura especulativa também
é capaz de ver nele a função muito mais elevada da inseminação
(ou seja, precisamente a «concepção» como antecipação biológi­
ca do conceito)... Numa primeira leitura, estamos aqui perante o
bem conhecido movimento elementar da Aufhebung («ultrapas­
sagem»): temos de passar pelo mais baixo para alcançar de novo
o mais elevado, a totalidade perdida (temos de perder a realidade
im ediata na autocontracção da «noite do mundo» para
reconquistá-la como «posicionada», mediada pela actividade
simbólica do sujeito; temos de renunciar à Totalidade orgânica
imediata e entregarmo-nos à actividade mortificante do Entendi­
102 Slavoj Zizek

mento abstracto para reconquistar a totalidade perdida a um nivel


superior, «mediado», como a totalidade da Razão). Este movi­
mento parece assim prestar-se a ser um alvo ideal para a crítica
clássica: sim, é verdade, Hegel reconhece evidentemente o horror
da autocontracção psicótica e a sua «perda de realidade»; sim, é
verdade, ele reconhece a necessidade do desmembramento abs­
tracto, mas apenas como um passo, um desvio pela via triunfal
que, segundo a inexorável necessidade dialéctica, nos reconduz à
Totalidade orgânica reconstituída... Penso que esta leitura falha
o essencial da argumentação de Hegel:

A profundidade que o espírito vai b uscar ao interior e traz p a­


ra o exterior — m as só na m edida em que a sua consciência re­
presentativa ficar onde a deixou — e a ignorância desta cons­
ciência quanto ao que ela diz realm ente são a m esm a conjunção
do superior e do inferior que, nos seres vivos, a natureza exprim e
ingenuam ente quando com bina o órgão n a sua perfeição suprem a,
o órgão da gestação, com o órgão da m icção. O ju ízo infinito, co ­
m o infinito, seria a realização com pleta da vida que se com preen­
de a si m esm a, m as, quando a consciência do ju ízo infinito p er­
m anece ao nível da representação, com porta-se com o a função da
m icção24.

Uma leitura atenta desta passagem mostra claramente que He­


gel não diz que a atitude verdadeiramente especulativa consiste
em escolher a inseminação contra o espírito empírico vulgar que
só vê a micção. O paradoxo é que a escolha directa da insemina­
ção é o meio mais seguro para a falhar: não é possível escolher
directamente o «verdadeiro sentido», ou seja, é preciso começar
por efectuar a escolha «errada» (da micção). O verdadeiro signi­
ficado especulativo só aparece através da leitura repetida, como
efeito posterior (ou subproduto) da primeira, a «errada». Aconte­
ce o mesmo com a vida social, onde a escolha directa da «uni­
versalidade concreta» de um particular mundo-vida ético só
pode acabar numa regressão para uma sociedade orgânica pré-
-modema que nega o direito infinito da subjectividade como ca-
A Marioneta e o Anão 103

racterística fundamental da modernidade. Dado que o cidadão-


-sujeito de um Estado moderno já não pode aceitar a sua imersão
num papel social particular que lhe confere um lugar determina­
do no interior da Totalidade social orgânica, a única via que leva
à totalidade racional do Estado moderno passa pelo horror do
Terror revolucionário: é preciso destruir brutalmente os cons­
trangimentos da pré-modema «universalidade concreta» orgâni­
ca e afirmar plenamente o direito infinito da subjectividade na
sua negatividade abstracta. Por outras palavras, o que Hegel
mostra na sua justa e célebre análise do Terror em A Fenomeno-
logia não é a ideia bastante evidente segundo a qual o projecto
revolucionário implicava a unilateral afirmação directa da Razão
universal abstracta, e estava, como tal, condenado a dissolver-se
numa fúria autodestruidora, pois foi incapaz de organizar a trans­
posição da sua energia revolucionária numa ordem social estável
e diferenciada; o enigma que interessa Hegel consiste antes em
perguntar, apesar de o Terror ter sido um impasse histórico, por­
que temos de passar por ele para chegar ao Estado moderno ra­
cional...
Há um paralelo evidente entre a necessidade de fazer uma es­
colha errada para chegar ao bom resultado (a escolha da «mic­
ção» para chegar à «inseminação») e a estrutura da piada sobre
Rabinovitch, em que a única maneira de chegar à verdadeira ra­
zão consiste também em passar pela primeira, a «errada». Esta é
também a lição surpreendente que podemos extrair de From
Atlantis to the Sphinx, um livro de Colin Wilson, uma das infini­
tas variações sobre os temas New Age dos livros de bolso para
quiosques de aeroportos, a «redescoberta da sabedoria perdida
do mundo antigo» (é o subtítulo do livro). Na sua conclusão,
Wilson opõe dois tipos de conhecimento, o «antigo», intuitivo,
global, que nos faz viver directamente o ritmo subjacente da rea­
lidade (a «consciência do cérebro direito») e o moderno, da cons­
ciência de si e da dissecção racional da realidade (a «consciência
do cérebro esquerdo»). Depois de ter elogiado demoradamente
as potências mágicas da antiga consciência colectiva, o autor re­
conhece que, apesar de esse tipo de conhecimento ter tido enor-
104 Slavoj Zizek

mes vantagens, «era essencialmente limitado. Era demasiado


agradável, descontraído, e os seus êxitos tendiam a ser comuns»;
para evoluir, a humanidade tinha portanto de sair desse estádio
para passar a uma atitude mais activa de dominação tecnológica
racional. Hoje, claro, estamos confrontados com a possibilidade
de juntar as duas metades e «reencontrar a sabedoria perdida»,
associando-a aos êxitos modernos: encontramos aqui a ideia ba­
nal de que a ciência moderna, nos seus sucessos mais radicais —
física quântica, etc. — já se orienta para um a auto-ultrapassagem
da visão mecanicista para a visão holista de um Universo domi­
nado por uma estrutura escondida da «dança da vida». Aqui, no
entanto, o livro de Wilson opera uma viragem inesperada. Como
advirá essa síntese? Wilson é suficientemente inteligente para re­
jeitar as duas visões dominantes. Por um lado, a visão directa­
mente pré-moderna, segundo a qual a história do «Ocidente ra­
cionalista» não passou de uma longa aberração da qual devemos
sair para regressar rapidamente à sabedoria antiga; por outro, a
ideia pseudo-hegeliana de uma «síntese» que manteria o equilí­
brio entre os dois princípios espirituais, permitindo-nos guardar
o melhor dos dois mundos, ou seja, reencontrar a Unidade perdi­
da, conservando, ao mesmo tempo, os sucessos fundados na per­
da dessa unidade (o progresso técnico, a dinâmica individualista,
etc.). Contra estas duas versões, Wilson sublinha que a próxima
etapa, a ultrapassagem da limitação da posição ocidental racio­
nalista/individualista, terá de vir do próprio interior da posição
ocidental. Wilson situa a sua fonte na força da imaginação: o
princípio ocidental da consciência de si e da individuação trouxe
também um desenvolvimento considerável da capacidade da
nossa imaginação e, se desenvolvermos essa capacidade ao má­
ximo, ela levar-nos-á a um novo nível de consciência colectiva,
de imaginação partilhada. A conclusão, surpreendente, é que a
próxima etapa, muito aguardada, na evolução humana, a etapa
que permitirá sair da alienação em relação à natureza e ao Uni­
verso como Totalidade, «já aconteceu. Tem ocorrido durante os
últimos três mil e quinhentos anos. A única coisa que nos resta
fazer é reconhecê-lo» (esta é a última frase do livro).
A Marioneta e o Anão 105

Então, que se passou há 3500 anos, ou seja, cerca de 1500


a. C.? O declínio do velho reino egipcio, a suprema realização da
sabedoria antiga, e a ascensão das novas culturas violentas, das
quais saiu a moderna consciência europeia — em suma, a Que­
da, o esquecimento fatal da sabedoria antiga que nos permitia es­
tar directamente em contacto com a «dança da vida». Se levar­
mos estas considerações à letra, a conclusão inevitável é que o
momento da Queda (o esquecimento da sabedoria antiga) coin­
cide com o seu exacto oposto, com a etapa seguinte e tão ansia­
da da evolução. Reencontramos aqui a matriz hegeliana propria­
mente dita do desenvolvimento: a Queda já é, em si, a sua própria
ultrapassagem, a ferida já é, em si, a sua própria cura, de modo
que a ideia de estarmos a lidar com a Queda é finalmente urna
percepção errada, um efeito de urna perspectiva errada. A única
coisa que temos de fazer é efectuar a passagem do Em-si para o
Para-si, ou seja, mudar a nossa perspectiva e reconhecer que o re­
torno há muito aguardado já está a operar no longo curso do tem­
po. A lógica interna do movimento de urna etapa para outra não
é a do movimento de um extremo para o extremo oposto e, de­
pois, para a sua unidade superior: a segunda passagem é mais
simplesmente a radicalização da primeira. O problema com a
«atitude mecanicista ocidental» não é o facto de ela ter esqueci­
do/reprimido a antiga Sabedoria holista, mas o de não ter rompi­
do suficientemente com ela: ela continuou a ver o novo universo
(da posição discursiva) a partir da perspectiva do antigo, o da
«antiga sabedoria» e, evidentemente, nessa perspectiva, o novo
universo só pode surgir como o mundo catastrófico que existe
«após a Queda». Ressuscitamos da Queda não ao anular os seus
efeitos, mas ao reconhecer que a própria Queda é a Libertação há
muito esperada25.
É em tomo do motivo da Queda que a oposição entre gnósti­
cos e cristãos é mais evidente. Ambos partilham a ideia de Que­
da, mas para os gnósticos trata-se de uma queda da dimensão pu­
ramente espiritual para o mundo material inerte, com a ideia de
que nos esforçamos por regressar à pátria espiritual que perde­
mos, enquanto para os cristãos a Queda não é verdadeiramente
106 Slavoj Zizek

uma queda, mas, «em si», o seu contrário, a emergência da liber­


dade. Não há lugar de onde tenhamos caído: a existência que pre­
cede a Queda não passa de uma estúpida existência natural.
A nossa tarefa não consiste portanto em regressar a uma anterior
existência «superior», mas em transformar as nossas vidas neste
mundo. No Evangelho de Tomás, lemos o seguinte: «Os seus dis­
cípulos perguntaram-lhe: “Quando ocorrerá a ressurreição dos
mortos e quando chegará o novo mundo?” Ele respondeu-lhes:
“Essa ressurreição que esperais já aconteceu, mas não a reco­
nheceis”»26. É a í que reside o elemento-chave hegeliano do cris­
tianismo: a ressurreição dos mortos não é um «acontecimento
real» que terá de ocorrer num futuro qualquer, mas algo que já
está presente — basta adoptar uma outra posição subjectiva.
Deste modo, o problema da Queda não é o facto de ela ser, em
si, uma Queda, mas, precisamente, de ela ser já, em si, uma Sal­
vação, que nós tomamos, erradamente, por uma Queda. Conse­
quentemente, a Salvação não consiste em inverter a direcção da
Queda, mas em reconhecer a Salvação na própria Queda. Em
simples termos narrativos, não se trata de fazer inicialmente um
movimento errado, introduzindo um corte, para podermos sarar
depois a ferida e regressar a uma unidade superior: o primeiro
movimento já é o movimento correcto, mas só o podemos perce­
ber quando já é tarde de mais. Aqui deveríamos, mais uma vez,
aplicar a fórmula de Hegel, segundo a qual o Mal está no olhar
daquele que vê o Mal: a verdadeira Queda está no próprio olhar
que apreende, erradamente, o primeiro movimento como uma
Queda. Não se trata de o facto de as coisas terem começado mal,
caindo, com Adão, sendo depois restabelecidas com Cristo: Adão
e Cristo são uma única e mesma figura («Cristo é Adão» — tal­
vez este seja o supremo juízo especulativo); a perspectiva é a
única coisa que muda para que passemos de um ao outro. Aqui
devemos efectivamente recordar a noção hegeliana de juízo es­
peculativo que deveríamos ler duas vezes: para alcançar a verda­
de, não deveríamos passar a outro juízo, mas tornar a ler sim­
plesmente o mesmo juízo, incluindo nele a nossa posição de
enunciação.
A Marioneta e o Anão 107

Podemos dizer o mesmo da relação entre o universal «abstrac­


to» e «concreto»: num primeiro movimento, o universal deve ser
afirmado na sua negatividade, como exclusivo de qualquer con­
teúdo particular, isto é, não como um recipiente que pode englobar
tudo, mas como a força destruidora que mina qualquer conteúdo
particular. Não devemos opor a esta violenta força de Abstracção
— que rasga o tecido concreto da realidade — o universal concre­
to como a totalidade que medeia todo o conteúdo particular no in­
terior da sua totalidade orgânica; pelo contrário, a verdadeira «uni­
versalidade concreta» hegeliana é o próprio movimento da
negatividade que divide o universal do interior, reduzindo-o a um
dos seus elementos particulares, a um elemento da sua própria es­
pécie. Só nessa altura, quando a universalidade perde, de certo mo­
do, a distância de um contentor abstracto e entra no seu próprio
quadro, é que se toma verdadeiramente concreta.
A relação entre Adão e Cristo é também a relação entre a «ne­
gação» e a «negação da negação», mas no sentido preciso já evo­
cado — Adão é Cristo «em si» e a Redenção de Cristo não é a
«negação» da Queda, mas a sua efectivação, precisamente no
mesmo sentido em que, segundo Paulo, Cristo efectiva a Lei.
Num magnífico ensaio de ficção histórica intitulado «Pôncio Pi-
latos poupa Jesus»27, Josiah Ober imagina que Pilatos resiste à
pressão da multidão e poupa Cristo, que sobrevive e conhece o
sucesso, como pregador, até uma idade muito avançada, apoiado
pelas autoridades romanas contra os representantes oficiais do
judaísmo; a sua seita torna-se gradualmente predominante, mas
numa versão mais judaizada, sem a cruz nem a Redenção pela
morte de Cristo. A coincidência entre a Queda e a Redenção tor­
na esta hipótese, stricto sensu, despropositada28.
Tanto o cristianismo como Hegel transpõem a distância que
nos separa do Absoluto para o próprio Absoluto. Quanto à dis­
tância que nos separa de Deus, isso significa que essa mesma dis­
tância é transposta para o próprio Deus, como a distância entre
Cristo e Deus-Pai — Cristo é o novo Job, o segundo Job. Em ter­
mos éticos, isto significa que devíamos reconhecer a força posi­
tiva do Mal sem tornar a cair no dualismo maniqueísta. A única
108 Slavoj Zizek

maneira de proceder dessa forma foi desenvolvida por Schelling:


o Mal não é «substancialmente» diferente do Bem, uma força po­
sitiva que se lhe opõe — o Mal é substancialmente a mesma coi­
sa que o Bem, é apenas um modo diferente (ou uma perspectiva
diferente sobre) desse bem. Para utilizar termos kierkegaardia-
nos, o Mal é o Bem «em devir»: o corte radicalmente negativo,
a ruptura com a velha ordem substancial como condição para
uma nova universalidade.
Uma clássica piada bósnia conta a história de um indivíduo
que vai visitar o seu melhor amigo e o encontra a jogar ténis no
jardim da sua casa. Mas o amigo não está só: Agassi, Sampras e
alguns outros campeões mundialmente conhecidos aguardam a
vez de jogar com ele. Surpreendido, o visitante confessa o seu es­
panto: «Mas nunca foste um grande jogador de ténis! Como pu­
deste progredir tão depressa?» O amigo responde-lhe: «Vês o pe­
queno lago atrás da casa? Há nele um peixe vermelho mágico.
Vai lá, exprime um desejo e o peixe realizá-lo-á imediatamente!»
O amigo vai até à beira do lago, vê o peixe e diz-lhe que gosta­
ria de ter os bolsos cheios de money (dinheiro). Volta apressada­
mente a casa, ansioso por conhecer o resultado desta experiência.
Mas, ao levar as mãos aos bolsos, apercebe-se que elas estão pe­
ganhentas, cheias de honey (mel). Furioso, vai contar a história
ao amigo: «Pedi money e não honey.» O outro responde-lhe tran­
quilamente: «Ah! É verdade, esqueci-me de te dizer que esse fa­
moso peixe é um pouco surdo. As vezes ouve mal o que lhe di­
zem. Julgas que me diverte ter de passar o tempo neste estúpido
jogo, a correr atrás de uma bola segurando numa raqueta, julgas
que pedi para ser campeão de ténis?» Não haverá algo de kaf­
kiano nesta história? Há um Deus, ele é bom e responde aos nos­
sos desejos; a origem do mal e das nossas infelicidades está sim­
plesmente no facto de ele não ouvir bem e de, muitas vezes,
compreender mal as nossas preces29...
Na leitura que propõe do poema de Sylvia Plath, intitulado
«O Outro», Tim Kendall fala das limitações em que esbarramos
ao querermos «descodificar» os últimos poemas de Sylvia Plath,
ao querermos identificar com exactidão os elementos biográficos
A Marioneta e o Anão 109

a que o poema alude. Essa descodificação é impossível. O leitor


perde-se nas múltiplas indicações contraditórias que dizem res­
peito não só aos próprios acontecimentos em questão (será uma
alusão a esta ou àquela disputa precisa com Ted Hughes que
Sylvia menciona no seu diário?), como também à identidade do
locutor (o «eu» que fala será Sylvia ou a sua rival, Assia?) e ao
tom com que é preciso 1er esses versos (irónico?, desdenhoso?
Sylvia vê Assia como uma ameaça ou como o seu duplo, uma
parte de si mesma?, ou ambas as coisas?). Tudo isto «obriga o
leitor a implicar-se neste mundo instável, onde o sentido só pode
vir do tom e da ênfase impostos do exterior. O leitor tem de pas­
sar pelas mesmas etapas cognitivas, fiar-se nos mesmos indícios
e alimentar as mesmas dúvidas que o locutor do poema»30.
Mais ainda: não se trata apenas de um fracasso se sobrepor a
outro. É através da sua incapacidade em fornecer directamente
a sua «verdadeira referência na realidade» que um poema ultra­
passa a sua idiossincrasia «patológica» e adquire um impacto ar­
tístico propriamente universal. Essa viragem, esse reconheci­
mento súbito de como o obstáculo que nos impede de alcançar a
Própria Coisa nos impossibilita de nos identificarmos imediata­
mente com ela (com o impasse que está no seu âmago), define a
identificação sob a sua forma propriamente cristã: em última
análise, é uma identificação com um fracasso. Assim, visto que
o objecto dessa identificação é Deus, temos de mostrar que o
próprio Deus fracassou.
Em Le Séminaire X. L ’angoisse (1962-1963), Lacan mostrou
como um dado fragmento da nossa vida quotidiana é escolhido
como elemento no qual um desejo inconsciente é investido du­
rante o sonho. É a função dos «resíduos diurnos/Tages reste » ; re­
gra geral, o fragmento seleccionado tem o carácter de algo ina­
cabado, aberto (uma frase curta inacabada, um acto que não foi
levado até ao fim, uma coisa que estava prestes a acontecer, mas
que, por um motivo qualquer, não aconteceu): «O carácter de in­
terrupção, ligado à mensagem, permite uma coincidência com a
estrutura do desejo, ao qual falta, por definição, a dimensão de
uma co n clu sã o » ^.
110 Slavoj Zizek

Não estaremos, nos termos da identificação cristã, perante al­


go de semelhante? No nosso próprio fracasso, identificamo-nos
ao fracasso divino, à confrontação de Cristo com o «Che vuoil»,
o enigma do desejo do Outro («Pai, porque me fazes isto? Que
queres de mim?»). Numa das passagens mais misteriosas da Se­
gunda Epístola aos Coríntios, Paulo defende-se contra os falsos
apóstolos adoptando a posição da tolice carnavalesca:

Oxalá me suportásseis um pouco, na minha loucura! Suportai-


-me, porém, ainda. (...) Porque tais falsos apóstolos são obreiros
fraudulentos, transfigurando-se em apóstolos de Cristo. E não é
maravilha, porque o próprio Satanás se transfigura em anjo de
luz. Não é muito, pois, que os seus ministros se transfigurem em
ministros da justiça, o fim dos quais será conforme as suas obras.
Outra vez digo: ninguém me julgue insensato, ou, então,
recebei-me como insensato, para que, também, me glorie um pou­
co. O que digo não o digo segundo o Senhor, mas, como por lou­
cura, nesta confiança de gloriar-me. Pois que muitos se gloriam
segundo a carne, eu também me gloriarei. Porque, sendo vós sen­
satos, de boa mente tolerais os insensatos.
(...) De boa vontade, pois, me gloriarei nas minhas fraquezas,
para que em mim habite o poder de Cristo. Pelo que sinto prazer
nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições,
nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando estou fraco,
então sou forte.
Fui néscio em gloriar-me: vós me constrangestes; porque eu
devia ser louvado por vós, visto que em nada fui inferior aos mais
excelentes apóstolos; ainda que nada sou.

Esta referência à inversão carnavalesca não deve ser entendi­


da segundo o modelo: «Sou fraco para tomar visível a força de
Deus», etc. Na realidade, quando sou fraco e ridículo, quando
sou troçado e se riem de mim, assemelho-me a Cristo, que foi ob­
jecto de escárnio. Cristo é o supremo louco divino, privado de
qualquer majestade e dignidade... Segundo Paulo, são os falsos
apóstolos que são poderosos e se levam a sério; um verdadeiro
A Marioneta e o Anão 111

profeta só pode ter um a conduta: deve rir-se dele próprio como


um louco. Contudo, identificar a posição de Paulo à inversão car­
navalesca bakhtiniana das relações da autoridade existente tam­
bém seria um erro: esta ideia é profundamente pagã, está fundada
na ideia de que as relações de poder são frágeis, pois perturbam
o equilíbrio natural da Ordem das Coisas e que, por conseguinte,
a autoridade está destinada, mais cedo ou mais tarde, a regressar
ao pó.
A verdadeira intervenção da Eternidade no Tempo ocorre
quando o Senhor do Desgoverno, o Rei-Louco, não representa
apenas uma suspensão carnavalesca e provisória da Ordem, que
tem por função lembrar-nos a instabilidade das coisas no seu ci­
clo eterno, a grande roda da Fortuna («O que está em cima terá
de descer!»), mas começa a funcionar como a figura fundadora
de uma Nova Ordem. Só fazemos «um» com Deus a partir do
momento em que Deus deixou de fazer «um» consigo próprio, se
auto-abandonou, «interiorizou» a distância radical que nos sepa­
ra d ’Ele. A nossa experiência radical da separação com Deus é
precisamente o que nos une com Ele, não no habitual sentido
místico segundo o qual só através de uma experiência deste tipo
é que podemos abrir-nos à alteridade radical de Deus, mas no
sentido em que Kant afirma que a humilhação e a dor são os úni­
cos sentimentos transcendentais. E ridículo pensar que posso
identificar-me à felicidade divina: só quando faço a experiência
infinitamente dolorosa da separação com Deus é que partilho
uma experiência com o próprio Deus (Cristo na cruz).

N otas

1. Michael Pauen, Grundprobleme der Philosophie des Geistes,


Frankfurt, Fischer Verlag, 2001, p. 203.
2. Este paradoxo elementar talvez nos forneça também a chave para
a tensão político-cultural que está no cerne da nossa relação com os es­
trangeiros: a abertura tolerante, o convite endereçado aos estrangeiros
112 Slavoj Zizek

para que fiquem Da, e o seu oposto, a exigência xenófoba para que per­
maneçam Fort, a boa distância.
3. Citado em Michio Kaku, Visions, Nova Iorque, Anchor Books,
1997, p. 64.
4. Richard Boothby, Freud as a Philosopher, Nova Iorque, Routle-
dge, 2002, p. 272.
5. Ibid., p. 264.
6. Ibid, p. 287.
7. Alain Badiou, Le Siècle, Paris, Seuil, 2004.
8. Georges Bataille, UÉrotisme, Paris, Minuit, 1957, p. 117.
9. Jacques Rancière, La Mésentente, Paris, Galilée, 1995.
10. O que é então a diferença minimal? No London Aquarium em
South Bank, há uma piscina que, à primeira vista, parece vazia, con­
tendo apenas água suja, cheia de partículas de pó quase transparentes.
No entanto, se olharmos mais atentamente, veremos que essas partícu­
las de pó são minúsculos animais que vivem nas profundezas do ocea­
no — criaturas quase transparentes e «imateriais» que podem sobrevi­
ver sob grande pressão, abrindo-se completamente ao ambiente que as
rodeia (a água), plenamente permeáveis, a sua inteira materialidade
consistindo numa fina camada que parece um desenho tridimensional
dos seus contornos, quase desprovidas de qualquer substância
material, flutuando livremente na água, sem lhe oferecer nenhuma
resistência.
11. Ernesto Laclau, Chantal Mouffe, Hegemony and Socialist Stra-
tegy, Londres, Verso, 1985.
12. Richard Keamey, Strangers, Gods and Monsters, Londres, Rout-
ledge, 2003, p. 99.
13. Joseph Campbell, The Power ofMyth, Nova Iorque, Doubleday,
1988, p. 222.
14. Bruce Fink, «Knowledge and Jouissance», in Barnard e Fink,
eds., Reading Seminar XX, Albany, Suny Press, 2002, p. 40.
15. Op. cit., p. 40.
16. Suzanne Barnard, «Tongues of Angels», in Barnard e Fink, op.
cit., p. 178.
17. «A enfermeira torna-se o paciente e vice-versa. O silêncio de Vo-
gler forma um ecrã contra o qual Alma projecta aquilo que uma disci­
plina chamará de fantasmas e outra de confissões. Por fim, a actriz
toma-se um espectador e a enfermeira um performer» (Paisley Li-
vingston, Ingmar Bergman and the Rituais ofArt, Ithaca, Comell Uni-
versity Press, 1982, p. 206.) Nesta citação, a utilização do nome e do
apelido é inteiramente justificada: como sujeito-paciente histérico, Al­
A Marioneta e o Anão 113

ma figura «pessoalmente», em seu próprio nome, revelando a sua inti­


midade idiossincrática, ao passo que Elizabeth aparece aqui precisa­
mente como «Vogler», o ecrã impessoal, e não como pessoa.
18. As citações que se seguem, não numeradas, são extraídas de Jo-
nathan Lear, «Give Dora a Break! A Tale of Eros and Emocional Dis-
ruption», in E rotikon E ssays on Eros, A ncient a nd M odern, a ser bre­
vemente publicado por Shadi Bartsch e Thomas Bartscherer, Chicago,
Chicago University Press.
19. Claude Lévi-Strauss, «Les organisations dualistes existent-
-elles?» [1956\, A nthropologie structurale, Paris, Plon, 1958, pp. 147-
-180. Os dois planos da aldeia encontram-se nas pp. 148-149.
20. Aqui, apoio-me numa comunicação de Alenka Zupancic, «Truth
according to Nietzsche», apresentada durante o colóquio «Antinomies
of Postmodem Reason» (Essen, 15 de Março de 2002).
21. Foi evidentemente Georg Lukács que desenvolveu plenamente
este ponto em H istória e C onsciência de Classe.
22. Foi evidentemente Kant que, no espírito da celebração da Hu­
manidade universal das Luzes, já desenvolvera a ideia de Cristo como
o «indivíduo universal», ou seja, como o indivíduo que representava
imediatamente a universalidade da espécie humana, ultrapassando to­
das as restrições particulares.
23. Hoje parece que Nietzsche já não choca ninguém — contudo, is­
to só tem cabimento se o reduzirmos a um filósofo que professou um
conjunto de «opiniões» (por exemplo, sobre as origens da moral, a re­
ligião, a crise da modernidade...), e o compararmos depois com outros
(como Freud), para argumentar contra ou a favor dele. O que se perde
assim é o estilo de Nietzsche — não aquilo que é muitas vezes mal in­
terpretado como o carácter «patético» dos seus escritos, mas antes o
oposto, a insuportável seriedade néscia de muitas das suas declarações
excessivas: na oposição schilleriana entre o néscio e o sentimental,
Nietzsche é completamente néscio. Será a este nível que Nietzsche per­
manece insuportavelmente chocante? Imaginemos que, a propósito de
um teórico chegado a Nietzsche, como Judith Butler, alguém proferis­
se frases do tipo: «Mas Butler é mesmo humana? E uma pessoa ou é o
nome de uma doença? Não é uma hiena que faz poesia sobre os túmu­
los da masculinidade? Uma vaca leiteira esvaziada do seu leite, com um
“estilo fino”?» Imaginemos ainda alguém que escolhesse um teórico da
corrente maioritária e o utilizasse contra Butler (como fez Nietzsche
com Bizet, contra Wagner): «Quanto mais vida há numa simples asser­
ção de Martha Nussbaum do que na ribombante histeria de toda a obra
de Butler?»... Alguém que julgue estas declarações «inadmissíveis»
114 Slavoj Zizek

(o que é o meu caso, para confessar a minha incompreensão) e se de­


clare um nietzschiano é um fingidor rematado.
24. G. W. F. Hegel, Phenomenology of Spirit, Oxford, Oxford Uni-
versity Press, 1977, p. 210.
25. E não encontramos uma mudança semelhante na história da her­
menêutica? Quando, há dois séculos, o progresso das ciências naturais
tomou cada vez mais problemática a leitura literal da Bíblia, a herme­
nêutica surgiu como um estudo do modo como poderíamos ainda enten­
der a Bíblia de maneira significativa; a partir daí, desenvolveu-se como
arte de entender convenientemente os textos antigos. A hermenêutica,
como tal, era uma arte especificamente introdutória que, mais tarde, te­
ve de ceder lugar a um adequado raciocínio (filosófico): a partir do mo­
mento em que entendemos convenientemente o autor, podemos começar
a argumentar com ele... Porém, mais tarde (com Heidegger e Gadamer),
a hermenêutica foi elevada ao estatuto da «própria coisa», da ontologia
fundamental: se, no modo como o entendemos, Ser é linguagem, como
indicou Gadamer, ou seja, se a forma como o Ser nos é revelado se arti­
cula no horizonte do pré-entendimento contido na linguagem, então a
própria ontologia (a busca da estrutura fundamental do Ser) toma-se
uma questão de hermenêutica, consistindo em trazer à luz o horizonte
implícito do significado no qual os seres nos são revelados. O que é fun­
damental aqui é o modo como aquilo que começou por aparecer como
uma etapa introdutória/preparatória, uma questão técnica ou científica
especial ou uma prática interpretativa, se tomou na «própria coisa».
26. The Fifth Gospel, Harrisburg, Trinity Press International, 1998,
p. 19.
27. Josiah Ober, «Pontius Pilate Spares Jesus», in What ff?, Robert
Cowley (ed.), Nova Iorque, Berkley Books, 2001. Contudo, podemos
dizer que a história de Ober fornece uma resposta adequada aos que
proclamam (como Richard Wagner) que a morte de Cristo não foi cru­
cial para a sua missão, mas apenas consequência de uma traição judia:
se Jesus tivesse sido poupado, teríamos tido um cristianismo muito
mais «judaizado».
28. Isto retira igualmente todo o significado a uma boa piada, co­
nhecida dos cristãos: quando Cristo diz aos que querem lapidar a mu­
lher adúltera: «Aquele que, de entre vós, está sem pecado, seja o pri­
meiro a atirar-lhe uma pedra» (João, 8: 1-11), uma pedra atinge Cristo.
Furioso, ele volta-se e diz: «Mãe, eu bem te tinha pedido que ficasses
em casa!»
29. Esta piada recordará a todos os cidadãos da ex-Jugoslávia um
episódio da sua história: em Belgrado, em 1989, respondendo a cente-
A Marioneta e o Anão 115

nas de milhares de pessoas que lhe reclamavam armas para atacar os al­
baneses do Kosovo, Milosevic respondeu: «Não vos ouço bem!» Será
esta a origem da guerra na pós-Jugoslávia: o Líder que não ouve bem
as violentas exigências da multidão? Claro, o que Milosevic obteve da
multidão foi, como sempre, a sua própria mensagem, que ele (ainda)
não estava disposto a reconhecer — a assumir publicamente — sob a
sua verdadeira forma de violência étnica.
30. Tim Kendall, Sylvia Plath, A Criticai Study, Londres, Faber and
Faber, 2001, p. 95.
31. Roberto Harrari, Lacan ’s Seminar «on Arvciety». An Introduction,
Nova Iorque, The Other Press, 2001, p. 212.
C apítulo IV

DA LEI AO AMOR - ID A ... E VOLTA

Entre os especialistas da física das partículas, o paradoxo do


«campo de Higgs» é objecto de acaloradas discussões. Todos os
sistemas físicos, colocados num meio que lhes permita transmi­
tir a sua energia, acabam por adoptar o estádio de energia mais
baixo. Por outras palavras, quanto mais diminuímos a massa de
um sistema, mais diminuímos a sua energia, até alcançarmos o
estádio de vácuo em que a energia é igual a zero. Existem toda­
via fenómenos que nos obrigam a considerar a hipótese de que
deve existir qualquer coisa (uma substância) que não podemos
tirar de um dado sistema sem aumentar a sua energia. Esse
«qualquer coisa» chama-se o «campo de Higgs». Quando este
campo aparece num recipiente onde foi instalado o vácuo e cuja
temperatura foi baixada tanto quanto possível, a sua energia ain­
da diminuirá. Esse «qualquer coisa» que aparece é, portanto, al­
go que contém menos energia do que nada, um «qualquer coisa»
caracterizado por uma energia negativa. Em suma, temos aqui a
versão física da questão de saber «como aparece qualquer coisa
a partir de nada».
Ao nível filosófico-ontológico, é isso que Lacan visa quando
sublinha a diferença entre a pulsão de morte freudiana e o cha­
mado «princípio do nirvana», segundo o qual qualquer sistema
vivo tende para o seu nível mais baixo de tensão possível, ou se-
118 Slavoj Zizek

ja, em última instância, para a morte. O «nada» (o vazio privado


de qualquer substância) e o nível mais baixo de energia já não
coincidem paradoxalmente, o que quer dizer que é mais «econó­
mico» (para o sistema, é menos dispendioso em energia) persis­
tir em «qualquer coisa» do que estar no «nada», no nível de ten­
são mais baixo, ou no vazio, a dissolução de toda a ordem. É esta
distância que sustém a pulsão de morte. Longe de ser a mesma
coisa que o princípio do nirvana (o movimento para a dissolução
de toda a tensão vital, a aspiração de regressar ao nada original),
a pulsão de morte é aquela que persiste e insiste para lá e contra
o princípio do nirvana. Por outras palavras, longe de estar em
oposição com o princípio do prazer, o princípio do nirvana é a
sua expressão mais radical e elevada. Neste sentido, a pulsão de
morte representa, muito precisamente, o seu contrário, a dimen­
são do «não-morto», de uma vida espectral que insiste para lá da
morte (biológica)... E, em psicanálise, não representará este pa­
radoxo do campo de Higgs também o mistério da castração sim­
bólica — uma privação, uma supressão que é, em si, uma doa­
ção, que produz, engendra, abre e apoia o espaço onde qualquer
coisa pode aparecer?
Na medida em que, para Paulo, «morte» e «vida» designam
duas posições existenciais (subjectivas) e não factos «objecti­
vos», faz plenamente sentido colocar a velha questão paulina:
hoje, quem está verdadeiramente v/vo1? E se só estivermos ver­
dadeiramente vivos quando nos comprometemos numa intensi­
dade excessiva que nos põe em contacto com um para-além da
«simples vida»? E se, quando nos focalizamos na mera sobrevi­
vência, mesmo que isso seja considerado como «passar uns bons
tempos», estivermos afinal a perder a própria vida? E se o terro­
rista palestiniano prestes a perpetrar um atentado suicida estiver,
formalmente, «mais vivo» do que o soldado americano engaja­
do na frente de guerra diante do ecrã de um computador situado
a quilómetros do inimigo, mais «vivo» do que um jovem quadro
nova-iorquino, dinâmico e ambicioso, que pratica jogging ao
longo do rio Hudson para manter a forma? E se, para utilizar os
termos da psicanálise, um(a) histérico(a), através do seu ques­
A Marioneta e o Anão 119

tionamento permanente, excessivo e provocador sobre a sua pró­


pria existência, estiver verdadeiramente vivo e a escolha do ob-
sessivo(a) representar o modelo da «vida na morte»? Por outras
palavras, o propósito de todos estes comportamentos rituais não
será o de procurar impedir precisamente a «Coisa» de acontecer,
essa «Coisa» sendo o próprio excesso de vida? A catástrofe que
o sujeito teme não será, afinal, que lhe aconteça realmente qual­
quer coisa? Ou, para empregar os termos do processo revolu­
cionário: e se a diferença que separa a época leninista do perío­
do estalinista fosse, mais uma vez, a que existe entre vida e
morte? Um aspecto considerado geralmente como marginal dis­
tingue claramente essas duas dimensões: enquanto a básica ati­
tude comunista e estalinista consiste em seguir escrupulosamen­
te a linha correcta do Partido contra os seus desvios, tanto de
«direita» como de «esquerda» (em suma, mantendo-se num jus­
to centro seguro), para o verdadeiro leninismo só há um desvio
supremo, o centrista — a deriva que consiste em «jogar pelo se­
guro», em evitar, de forma cuidadosa e oportunista, correr o ris­
co de tomar um partido claro e excessivo. Por exemplo, em 1921
não havia nenhuma necessidade histórica profunda para uma
mudança brutal da política soviética, para a passagem da linha
do «comunismo de guerra» a uma «nova política económica»:
era apenas uma desesperada estratégia ziguezagueante entre a li­
nha esquerdista e a direitista ou, como o próprio Lenine decla­
rou em 1922, um período em que os bolcheviques cometeram
«todos os erros possíveis». Esta excessiva tomada de partido, es­
te contínuo desequilíbrio ziguezagueante é, em última instância,
a própria vida (politicamente revolucionária): para um leninista,
é o próprio centro que designa definitivamente a direita contra-
-revolucionária, ou seja, o medo de introduzir um desequilíbrio
radical no edifício social.
Será então um paradoxo caracteristicamente nietzschiano di­
zer que o grande perdedor desta afirmação aparente da vida con­
tra todas as causas transcendentes é a própria vida real? O que
toma a vida digna de ser vivida é o próprio excesso de vida: a
consciência de que existe qualquer coisa em nome da qual esta-
120 Slavoj Zizek

mos dispostos a arriscar a vida (podemos chamar a esse excesso


«liberdade», «honra», «dignidade», «autonomia», etc.). Só esta­
mos verdadeiramente vivos quando estivermos prontos a assumir
esse risco. Portanto, quando Hõlderlin escreveu que «viver é de­
fender uma forma», essa forma não é só uma Liebensform, mas
a forma do excesso-de-vida, o modo como esse próprio excesso
se inscreve na textura da vida. É o que Chesterton explica a pro­
pósito do paradoxo da coragem:

Se um soldado cercado pelo inimigo quiser encontrar uma saí­


da, tem de aliar um intenso desejo de viver com uma estranha in­
diferença em relação à morte. Não deve contentar-se simples­
mente em agarrar-se à vida, pois então seria um cobarde e não
conseguiria escapar. Também não deve contentar-se em esperar
pela morte, pois então suicidar-se-ia e não conseguiria escapar.
Deve procurar a vida num espírito de indiferença exaltada; deve
desejar a vida como água e estar todavia pronto a beber a morte
como vinho2.

A posição do sobrevivente «pós-metafísico» representada pe­


los «Últimos Homens» encontra o seu desfecho no espectáculo
anémico de uma vida que já não passa de uma sombra de si mes­
ma. É nesta perspectiva que devemos compreender a rejeição
crescente pela pena de morte e sermos capazes de discernir a
«biopolítica» subjacente que sustém essa rejeição. Os que defen­
dem o «carácter sagrado da vida», que consideram ameaçado por
poderes transcendentes que a parasitam, acabam num «mundo
supervisionado onde viveremos certamente com toda a seguran­
ça, sem dor, mas esse será um mundo supremamente entedian-
te»3, um mundo onde, por amor ao seu próprio desígnio —■uma
longa vida hedonista —, todos os prazeres reais serão proibidos
ou severamente controlados (cigarros, estupefacientes, comi­
da. ..). O filme O Resgate do Soldado Ryan, de Steven Spielberg,
é o exemplo mais recente dessa atitude de sobrevivência perante
a morte. Com a sua «desmistificação» da guerra, apresentando-a
como uma carnificina insensata que nada pode realmente justifi­
A Marioneta e o Anão 121

car, dá-nos a melhor ilustração e a melhor justificação possível


da doutrina militar de Colin Powell da «guerra sem perdas do
nosso lado».
Encontramos hoje no mercado numerosos produtos dos quais
foram extirpadas as suas propriedades nocivas: café sem cafeína,
natas sem matéria gorda, cerveja sem álcool... E a lista continua:
poderíamos também falar da sexualidade virtual como uma se­
xualidade sem sexo, da doutrina militar de Colin Powell da guer­
ra sem perdas (do nosso lado, como é óbvio...) como de uma
guerra sem guerra, da redefinição contemporânea da política, en­
quanto arte da administração confiada a peritos, como de uma
política sem política, e até do multiculturalismo liberal contem­
porâneo como de uma experiência do Outro, mas privado da sua
Alteridade (um Outro idealizado, que pratica danças fascinantes
e que, no domínio da ecologia, tem uma abordagem holista da
realidade, desde que nunca sejam levantadas certas questões, co­
mo as violências perpetradas contra as mulheres). A realidade
virtual não faz mais do que generalizar este processo que consis­
te em oferecer um produto privado da sua substância, privado do
seu núcleo de real, de resistência material — tal como o café des-
cafeinado com sabor e aroma a café, mas que não é verdadeiro
café, a realidade virtual é vivida como uma realidade sem ser
uma.
Esta atitude não será a atitude hedonista do «Ultimo Ho­
mem»? Tudo é permitido, podes fruir de tudo, mas sem a subs­
tância que torna as coisas perigosas — é também a revolução do
«Último Homem»: a «revolução sem revolução». Não tomamos
a encontrar aqui uma das duas versões da fórmula antidostoievs-
kiana de Lacan, segundo a qual «Se Deus não existe, tudo é proi­
bido»? 1 — Estando Deus morto, pois vivemos num mundo per­
missivo, é preciso procurar os prazeres e a felicidade, mas, como
é preciso evitar os excessos perigosos para levar uma vida desse
tipo, tudo é proibido enquanto as coisas não forem privadas da
sua substância; 2 — Se Deus estiver morto, o superego ordena-
-nos que gozemos, mas, como todo o gozo determinado já é uma
traição ao gozo incondicional, ele deveria ser proibido. No do­
122 Slavoj Zizek

mínio da alimentação, mais vale desfrutar directamente da pró­


pria Coisa: para quê dar-se ao trabalho de beber café? Injectemos
directamente a cafeína no sangue! Para quê efectuar um desvio
pelas percepções sensuais e pelas excitações engendradas pela
realidade exterior? Tomemos drogas que ajam directamente no
cérebro! E, se Deus existir, então tudo é permitido — aos que
pretendem agir em Seu nome, ser instrumentos da Sua vontade;
evidentemente, uma ligação directa com Deus justifica a viola­
ção de todos os limites e de todas as considerações «simples­
mente humanas» (da mesma maneira que, no estalinismo, a refe­
rência ao grande Outro da Necessidade histórica justificava a
brutalidade mais extrema).
Hoje, o hedonismo conjuga habilmente prazer com constran­
gimento: já não se trata da velha ideia da «medida correcta» en­
tre prazer e constrangimento, mas, numa espécie de pseudo-
-hegelianismo, da promoção de um tipo de coincidência imediata
dos opostos: acção e reacção devem coincidir — aquilo que pro­
voca a nocividade já deve ser o seu próprio remédio. O melhor
exemplo desta atitude é o chocolate laxativo, disponível nos Es­
tados Unidos, e a sua injunção paradoxal: «Tem prisão de ven­
tre? Coma mais deste chocolate!» — ou seja, aquilo que provo­
ca precisamente a prisão de ventre. Não estaremos aqui perante
uma curiosa versão da célebre fórmula de Wagner em Parsifal·.
«Só a espada que provocou a ferida poderá sará-la»? O facto de
o consumo irreprimível real (sob todas as formas dominantes:
drogas, sexo livre, tabagism o...) estar a tomar-se um perigo so­
cial crucial não será a prova negativa da hegemonia deste ponto
de vista? A luta contra estes perigos é uma das principais priori­
dades da «biopolítica» actual, mas as soluções procuradas são as
que reproduzem o paradoxo do chocolate laxativo. O principal
favorito é o «sexo seguro», uma expressão que nos faz apreciar
a verdade do velho adágio: «Ter relações sexuais com um pre­
servativo é um pouco como tomar duche com um impermeável.»
Aqui, a finalidade última, seguindo o princípio do café «desca-
feinado», seria inventar um «ópio sem ópio»: não admira que a
marijuana seja tão apreciada pelas pessoas de esquerda favorá­
A Marioneta e o Anão 123

veis à sua legalização — a marijuana já é uma espécie de «ópio


sem ópio».
Nas suas observações contundentes sobre Wagner, Nietzsche
diagnostica a decadência deste como uma mistura de ascetismo
e excitação mórbida: a excitação é falsa, artificial, mórbida, his­
térica, e a paz que lhe sucede também é falsa, como a paz alcan­
çada à custa de tranquilizantes. Tal era, para Nietzsche, o univer­
so de Parsifal, obra em que Wagner sucumbira ao charme do
cristianismo: a falsificação suprema do cristianismo consiste em
apoiar a sua mensagem «oficial» de paz interior e de redenção
por meio de uma excitação mórbida, nomeadamente ao fixar-se
no sofrimento do corpo mutilado de Cristo. O próprio termo
«paixão» revela aqui uma ambição eloquente: a paixão como so­
frimento, a paixão como paixão — como se a única coisa que
pudesse excitar a paixão fosse o espectáculo atroz do sofrimento
passivo... A questão que se coloca aqui é, evidentemente, a se­
guinte: podemos reduzir Paulo a uma simples mistura de excita­
ção mórbida e renúncia ascética? Não será o ágape paulino pre­
cisamente uma tentativa para quebrar o ciclo mórbido da lei e do
pecado, que se apoiam mutuamente?
De modo mais geral, qual é, precisamente, o estatuto do ex­
cesso desse too-muchness (excesso) de vida (Eric Santner) em
relação a si mesmo? Será esse excesso engendrado apenas pela
reviravolta da vida contra si mesma, de modo que ela só se ac­
tualiza sob a forma do não-morto mórbido da paixão doentia?
Utilizando a linguagem de Lacan: o excesso de gozo sobre o pra­
zer será engendrado apenas pela inversão do recalcamento do de­
sejo em desejo de recalcamento, da renúncia do desejo em dese­
jo de renúncia, etc.? É essencial rejeitar esta versão das coisas e
afirmar um género de excesso original ou de too-muchness da
própria vida: a vida humana nunca coincide consigo mesma; es­
tar «verdadeiramente vivo» significa ser «maior do que a vida»,
e a negação mórbida da vida não é a negação da própria vida,
mas antes a negação desse excesso. Qual é então a relação entre
esses dois excessos: o excesso inerente à própria vida e o exces­
so causado pela negação da vida? Não será este último uma es­
124 Slavoj Zizek

pécie de «vingança», um regresso do excesso reprimido pela ne­


gação da vida?
A fórmula política que corresponde a esta situação difícil é o
estado de emergência que coincide com o estado normal: na ac­
tual luta política contra o terrorismo, encontramos a mesma mis­
tura de excitação mórbida e de tranquilidade provocada artifi­
cialmente. No início de 2003, o propósito «oficial» dos apelos
dirigidos pelos responsáveis dos serviços de segurança interna à
população am ericana quanto aos ataques terroristas era
tranquilizá-la: está tudo sob controlo, sigam as instruções que
vos serão transmitidas e prossigam uma vida norm al... Contudo,
o próprio facto de estar pronto a enfrentar uma agressão em gran­
de escala contribuía para alimentar a tensão. O esforço desen­
volvido para manter a situação sob controlo afirmava, de modo
negativo, a perspectiva de uma catástrofe. A sua finalidade era
habituar os cidadãos a viverem diariamente com a ameaça de
uma catástrofe suspensa sobre as suas cabeças e introduzir desse
modo uma espécie de estado de emergência permanente (não nos
esqueçamos que, no Outono de 2002, nos disseram que a guerra
contra o terrorismo duraria décadas, portanto, pelo menos até ao
fim das nossas vidas). Por conseguinte, deveríamos interpretar os
diferentes níveis do código Alerta (alerta vermelho, laranja,
etc...) como uma estratégia do Estado para controlar o nível ne­
cessário de excitação. É precisamente através desse estado de
emergência permanente, ao qual somos convidados a participar
pela nossa «prontidão», que o poder afirma o domínio que exer­
ce sobre nós.
Em Os Outros, filme de Alejandro Amenabar (2001), Nicole
Kidman desempenha o papel de uma mãe que vive com os seus
dois filhos numa casa assombrada das ilhas Jersey e acaba por
descobrir que eles são todos fantasmas. Alguns anos antes, ela
suicidara-se depois de ter estrangulado os filhos. (Os verdadeiros
humanos são os «intrusos», as pessoas interessadas pela compra
da casa, que vêm incomodá-los episodicamente.) O único lado
interessante desta inversão, do género Sexto Sentido, é a razão
precisa por que Nicole Kidman regressa sob a forma de um fan­
A Marioneta e o Anão 125

tasma. Ela é incapaz de assumir o acto que faz dela uma nova
Medeia: de certo modo, continuar a viver como um fantasma
(que não tem consciência de o ser) é o sinal de um compromisso
ético, da sua incapacidade para enfrentar o acto terrível constitu­
tivo da sua subjectividade. Esta inversão não é simplesmente
uma inversão simétrica graças à qual, em vez de estarmos peran­
te fantasmas que vêm incomodar pessoas reais que aparecem à
sua frente, são pessoas reais que vêm incomodar fantasmas, sur­
gindo diante deles. Não será antes a situação em que nos encon­
tramos quando, para parafrasear Paulo, não estamos vivos na
nossa «verdadeira» vida? Não poderemos dizer que, neste caso,
a promessa da vida real nos assombra como um espectro? Hoje
somos como os filósofos gregos anêmicos que acolheram com
uma gargalhada irónica as palavras de Paulo sobre a ressurrei­
ção. Neste horizonte, o único Absoluto aceitável é um Absoluto
negativo: o Mal absoluto, cuja figura paradigmática é hoje o Ho­
locausto. A evocação do Holocausto funciona como um aviso
destinado a pôr-nos em guarda contra os resultados de uma su­
bordinação da Vida a um qualquer desígnio superior.
O que caracteriza o universo humano é a complicação da rela­
ção entre os vivos e a morte: como escreveu Freud a propósito
do assassínio do pai primitivo, o pai assassinado regressa mais
poderoso que nunca sob a forma da autoridade simbólica «vir­
tual». Aqui, o estranho é a distância que se abre com a redupli-
cação da vida e da morte no plano simbólico, devido à não-
-coincidência dos dois círculos: temos pessoas que ainda estão
vivas, apesar de já simbolicamente mortas, e pessoas que já es­
tão mortas, apesar de simbolicamente vivas. O duplo sentido da
palavra «espírito», que tanto pode designar a espiritualidade «pu­
ra» como um fantasma, é, assim, uma necessidade estrutural: não
há (puros) espíritos sem o seu suplemento obsceno, os fantas­
mas, sem a sua pseudomaterialidade espectral, sem os «mortos-
- vi vos». Aqui, a categoria do «não-morto» é fundamental: os
não-mortos são aqueles que não estão mortos, apesar de já não
estarem vivos, e que continuam a assombrar-nos. Neste caso, o
problema fundamental é saber como impedir os mortos de re­
126 Slavoj Zizek

gressarem, como encontrar a maneira apropriada para lhes dar


descanso.
Aqui, somos quase tentados a elaborar uma paródia da tríade
hegeliana: um organismo vivo começa por ser negado pela sua
morte (um organismo que já viveu morre); depois, mais radical­
mente, numa negação absoluta, por qualquer coisa que já/sempre
esteve morta (uma coisa inanimada, uma pedra); por fim, numa
«negação da negação», surge então uma paródia de síntese sob a
forma da aparição do «morto-vivo», do «não-morto», uma enti­
dade espectral que, na sua própria morte, continua a viver en­
quanto morto. Ou, para utilizar os termos do quadrado semiótico
greimasiano: a principal oposição é entre o vivo e o morto (co­
mo inanimado, nunca tendo estado vivo); este par é então redo­
brado pelo par do morto (que já não vive) e do não-morto (como
vivo depois da sua morte).
Talvez devamos acrescentar outra dimensão à interdição do
assassínio. No fundo, esta proibição não diz respeito aos vivos,
mas aos mortos. «Não matarás» — mas quem? Os mortos. Po­
demos matar os vivos, desde que os enterremos correctamente e
observemos os ritos apropriados. Esses ritos são, claro, funda­
mentalmente ambíguos: através deles, mostramos o nosso res­
peito pelos mortos e impedimos que eles regressem para nos as­
sombrar. Esta ambiguidade do trabalho de luto é claramente
identificável nas duas posições opostas em relação aos mortos:
por um lado, não devemos ignorar os mortos, é preciso celebrar
convenientemente a sua morte, realizar os ritos funerários; por
outro, há algo de obsceno, uma transgressão, no simples facto de
falar deles... Encontramos esta ambiguidade na fórmula «Não
devemos julgar os mortos»; não devemos julgá-los e, no entanto,
os mortos não serão precisamente os únicos que podem ser con­
venientemente julgados, pois a sua vida já foi completada?
Em Ser e Tempo, quando Heidegger insiste que a morte é a
única experiência que outra pessoa não pode fazer no nosso lu­
gar — ninguém pode morrer por nós, no nosso lugar —, o
contra-exemplo evidente é o próprio Cristo: num gesto extremo
de interpassividade, não terá ele feito, para nós, no nosso lugar,
A Marioneta e o Anão 127

a suprema experiência passiva da morte? Cristo morre para que


nos seja dada uma oportunidade de viver eternam ente... Neste
caso, o problema não é só o facto de, como é evidente, não vi­
vermos eternamente (só o Espírito Santo, a comunidade dos
crentes, vive eternamente), mas o estatuto subjectivo de Cristo:
no momento em que morria na cruz, sabia que ia ressuscitar? Se
a resposta for afirmativa, então foi tudo um jogo, a suprema co­
média divina, pois Cristo sabia que o seu sofrimento era sim­
plesmente um espectáculo que ele próprio sabia ir acabar em
bem — em suma, fingiu estar desesperado ao dizer: «Pai, porque
me abandonaste?» Se a resposta for negativa, nesse caso em que
consistia precisamente a divindade de Cristo? Deus, o Pai, teria
limitado a extensão do conhecimento de Cristo à de uma vulgar
consciência humana, para que ele pensasse realmente que morria
abandonado pelo pai? Ocuparia Cristo a posição do filho na pia­
da desse rabino que se volta desesperado para Deus a fim de lhe
perguntar o que deve fazer com o seu filho que o desiludiu cruel­
mente e a quem Deus responde calmamente: «Faz como eu: es­
creve um novo testamento!»?
O que é fundamental aqui é a ambiguidade radical da fórmu­
la «A fé de Jesus Cristo». Este genitivo será um genitivo sub­
jectivo ou objectivo? Tanto pode ser a «fé de Cristo» como «a fé
que nós, crentes, temos em Cristo». Ou somos redimidos pela fé
pura de Cristo, ou pela fé que temos nele, se e na medida em que
cremos nele. Talvez haja uma maneira de ler os dois sentidos
conjuntamente: não somos chamados a crer na divindade de
Cristo como tal, mas antes na sua fé, na sua pureza desprovida
de pecado. O que o cristianismo propõe é a figura de Cristo co­
mo o nosso sujeito-suposto-crer: na vida comum, nunca cremos
verdadeiramente, mas, pelo menos, podemos consolar-nos sa­
bendo que há Um que crê verdadeiramente (é a função daquilo
que Lacan, no seu seminário Encore, chamava de « y ’a de
l ’un»)... Contudo, na cruz, o próprio Cristo tem de suspender
momentaneamente a sua crença. Portanto, a um nível mais pro­
fundo, Cristo talvez seja antes o nosso (de nós, os crentes) su­
jeito suposto-NÃo-CRER: o que transpomos para os outros não é a
128 Slavoj Zizek

nossa crença, mas antes a nossa descrença. Em vez de duvidar,


questionar e troçar das coisas, continuando a acreditar nelas
através do Outro, também podemos transpor para o Outro a dú­
vida lancinante que nos atormenta, recuperando assim a capaci­
dade de crer. (Não haverá também, da mesma forma, uma fun­
ção do sujeito suposto-não-saberl Lembremo-nos das crianças
supostas desconhecer as «realidades da vida». Nós, os adultos
que sabem, somos supostos proteger a sua abençoada ignorância
preservando-as da realidade brutal. Ou lembremo-nos da mulher
que supostamente não deve conhecer a ligação secreta do mari­
do e que continua a desempenhar de boa vontade esse papel
quando já está efectivamente ao corrente de tudo, como a jovem
esposa de A Idade da Inocência, o romance de Edith Wharton.
Ou, ainda, o papel que desempenhamos no mundo universitário,
quando dizemos a alguém: «Muito bem, vou fazer como se não
soubesse nada desse assunto e você vai tentar explicar-me tudo
a partir do início!») E a verdadeira comunhão com Cristo, o ver­
dadeiro imitatio Christi, talvez consista em participar nas suas
dúvidas e na sua descrença.
Há duas maneiras principais de interpretar a relação entre a
morte de Cristo e o pecado. Podemos ver a morte de Cristo co­
mo um sacrifício ou como uma participação4. Na primeira inter­
pretação, nós, os humanos, somos culpados devido aos nossos
pecados: a morte de Cristo é a sua consequência. Mas Deus
enviou-nos Cristo, aquele que não pecou, para que morresse, em
sacrifício, no nosso lugar. Pelo sangue derramado por Cristo,
Deus perdoa-nos e liberta-nos da danação. Na segunda interpre­
tação, os seres humanos viviam até aí «em Adão», na esfera da
humanidade pecadora, sob o reino do pecado e da morte. Cristo
tornou-se um ser humano e partilhou até ao fim (a morte na cruz)
o destino dos que estavam em Adão. Mas, neste caso, como ele
não pecou e permaneceu fiel a Deus, Deus ressuscitou-o por en­
tre os mortos para que ele se tomasse o primogénito de uma no­
va humanidade, redimida. Pelo baptismo, os crentes morrem
com Cristo: morrem para a sua antiga vida «em Adão» e tomam-
-se novas criaturas, libertas do fardo do pecado.
A Marioneta e o Anão 129

A primeira interpretação é legalista: há um pecado que é pre­


ciso pagar e, ao pagar pelo nosso pecado, no nosso lugar, Cristo
redimiu-nos (fazendo evidentemente de nós seus devedores para
sempre). Na segunda, pelo contrário, os homens não são libertos
do pecado pela morte de Cristo como tal: são libertos ao parti-
lharem a morte de Cristo, morrendo para o pecado, para a carne.
Deste modo, Adão e Cristo são, num certo sentido, «pessoas co­
lectivas», nas quais as pessoas vivem; ou vivemos «em Adão»
(sob o reino do pecado e da morte) ou vivemos «em Cristo» (co­
mo filhos de Deus, libertos da culpa e do domínio do pecado).
Morremos com Cristo «em Adão» (como criaturas adâmicas) e,
depois, começamos uma nova vida «em Cristo». Como disse
Paulo, «não sabeis que, todos quantos fomos baptizados em Je­
sus Cristo, fomos baptizados na sua morte?»:

De sorte que fomos sepultados com ele, pelo baptismo, na


morte; para que, como Cristo ressuscitou dos mortos, pela glória
do Pai, assim andemos nós, também, em novidade de vida (Epís­
tola aos Romanos, 6: 2-4).

Esta leitura tende também a negar a natureza directamente di­


vina de Cristo: Cristo é um homem que, devido à sua pureza e ao
seu sacrifício, foi, depois da sua morte, «designado como, ou
tornou-se, M essias, quando Deus o ressuscitou de entre os mor­
tos e o “adoptou” assim como seu filho»5. Nesta perspectiva, a
divindade de Cristo não é a sua «propriedade» natural, mas o
seu mandato simbólico, o título que lhe fo i conferido por Deus
— depois de seguirmos os seus passos, tornamo-nos todos «fi­
lhos de Deus»:

Porque todos sois filhos de Deus, pela fé em Cristo Jesus. Por­


que, todos quantos fostes baptizados em Cristo já vos revestistes
de Cristo. Nisto não há judeu nem grego; não há servo nem livre;
não há masculino nem feminino; porque todos vós sois um, em
Cristo Jesus (Epístola aos Gálatas, 3: 26-28).
130 Slavoj Zizek

Qual das duas interpretações é a correcta? Mais uma vez, es­


tamos perante a estrutura da escolha forçada: de modo abstracto,
a leitura da morte de Cristo como participação é, evidentemente,
a correcta, ao passo que a interpretação sacrificial «passa ao la­
do» do sentido do gesto de Cristo; contudo, a única via que leva
à leitura da participação é a da leitura sacrificial, através do seu
inerente triunfo. A leitura sacrificial é aquela em que o gesto de
Cristo surge no interior do horizonte do qual Cristo desejava
triunfar, no interior do horizonte em que morremos por ele, nos
identificamos com ele: no interior do horizonte da Lei (a troca
simbólica, a culpa e a sua expiação, o pecado e o preço a pagar
por ele), a morte de Cristo só pode surgir como a afirmação ab­
soluta da Lei, como a elevação da Lei ao estatuto de instância
todo-poderosa do superego que nos esmaga, a nós, seus sujeitos,
com uma culpabilidade e uma dívida que nunca poderemos pa­
gar. Num movimento propriamente dialéctico, amor e graça
coincidem assim com o seu radical oposto, com o fardo insupor­
tável de uma lei kafkiana «irracional». O «amor» surge então co­
mo o nome (ou mesmo a máscara) de uma Lei Infinita, de uma
Lei que, de certo modo, se ultrapassa a si mesma, de uma Lei que
já não impõe proibições ou injunções específicas e determinadas
(faz isto, não faças a q u ilo ..), mas que repete simplesmente uma
Interdição tautológica vazia, n ã o ..., de uma Lei em que tudo é si­
multaneamente proibido e autorizado (ou seja, obrigatório).
Recordemos aqui um pormenor estranho, mas esclarecedor, de
O Decálogo, de Krzysztof Kieslowski: na série de filmes que o
constituem, a lista dos mandamentos só é mencionada uma vez
— na canção rock interpretada no genérico — e sob a form a in­
vertida de injunções para violar os mandamentos: «Mata, viola,
rouba, ergue a mão contra os teus pais.» Esta subversão do inter­
dito numa injunção obscena para transgredir a Lei é consequên­
cia do próprio procedimento formal da dramatização da lei por
Kieslowski: a encenação dramática anula automaticamente a ne­
gação (puramente intelectual), mudando a focalização para a
imagem imponente do acto, por exemplo, do assassínio, inde­
pendentemente do preâmbulo ético que o acompanha (+ ou - , re­
A Marioneta e o Anão 131

comendação ou proibição). Tal como o inconsciente freudiano, a


encenação dramática não conhece a negação. Nas suas célebres
observações sobre a negatividade e o Decálogo, Kenneth Burke
lê os Dez Mandamentos através da oposição entre o nível da
ideia e o da imagem: «Apesar da injunção “Não matarás” ser, na
sua essência, uma ideia, no seu carácter imagético não pode des­
pertar outra ressonância que não seja “Mata!”»6. Temos aqui, sob
a sua forma mais pura, a oposição lacaniana entre a Lei simbóli­
ca e o apelo obsceno do superego; todas as negações são impo­
tentes e transformam-se em meras denegações, de modo que
aquilo que resta é o intrusivo eco obsceno que repete: «Mata!
M ata!»...
Esta inversão, que transforma as proibições em ordens, é um
gesto estritamente tautológico que só explica o que já está conti­
do nas proibições, na medida em que, segundo São Paulo, a pró­
pria lei engendra o desejo de a violar. Na mesma lógica, contra­
riamente às proibições precisas da lei («Não matarás, não
roubarás...»), a verdadeira injunção do superego é simplesmente
uma fórmula truncada: «Não deves!» Mas não deves fazer o quê?
Este vazio abre o abismo do superego: devias saber ou adivinhar
o que não deves fazer, de modo que estás na posição impossível
de ser sempre, e a priori, suspeito de infringir uma proibição (des­
conhecida). Sejamos mais precisos: o superego divide qualquer
mandamento determinado em duas partes complementares, ape­
sar de simétricas. A fórmula «Não deves matar» é dividida entre
a proibição indeterminada («Não deves!») e uma injunção direc­
ta obscena («Mata!»). O diálogo mudo que sustém esta operação
é o seguinte: «“ — Não deves!” Não devo fazer o quê? Não
tenho a menor ideia do que exigem de mim. Che v u o iT Não
deves!” “ — Esta obrigação de fazer qualquer coisa sem saber o
quê está a enlouquecer-me, faz-me sentir culpado sem saber de
quê; portanto, vou explodir e matar alguém!”» O assassínio é as­
sim a resposta desesperada à proibição abstracta e impenetrável
promulgada pelo superego.
Aos olhos desta Lei «louca», já somos sempre culpados, sem
mesmo saber exactamente de quê. Esta Lei é a meta-Lei, a Lei do
132 Slavoj Zizek

estado de emergência em que a ordem do direito positivo é sus­


pensa, a Lei «pura», a form a da ordem/interdição «como tal», o
enunciado de uma injunção privada de qualquer conteúdo. O regi­
me estalinista, entre outros, não provará que esta Lei incondicio­
nal «irracional» coincide efectivamente com o amor? Aos olhos da
lei estalinista, qualquer indivíduo pode ser declarado culpado a
qualquer momento (acusado de actividade contra-revolucionária);
a própria recusa em reconhecer a sua culpabilidade é considerada
como a suprema prova de culpabilidade... Mas, ao mesmo tempo,
obedecendo a uma profunda necessidade estrutural, a relação do
sujeito estaliniano com o seu Líder é uma relação de amor, sendo
esse amor o amor infinito pela sabedoria do Líder.
Como eram dadas as directivas políticas sob o estalinismo?
A primeira vista, as coisas parecem claras: o estalinismo era um
sistema com um comando extremamente centralizado, o que sig­
nifica que a direcção publicava as directivas que deviam ser se­
guidas por todos os escalões da hierarquia. Aqui, surge contudo
uma primeira questão: «Como obedecer na ausência de uma or­
dem precisa?»7 Por exemplo, durante a passagem à colectiviza-
ção no Inverno de 1929-1930, «não foi publicada qualquer ins­
trução precisa sobre as modalidades da colectivização e os
responsáveis locais que pediram essas instruções foram mal aco­
lhidos». Na realidade, só foi dado um sinal: o discurso pronun­
ciado por Estaline na Academia Comunista em Dezembro de
1929, em que declarou que os kulaks deviam ser «liquidados en­
quanto classe». Os quadros subalternos, animados pelo desejo de
aplicar a linha indicada e temendo serem acusados de fraqueza
em relação ao inimigo de classe e de falta de vigilância, execu­
taram a ordem com um zelo excessivo. Só então surgiu «o que se
aproximava mais de uma declaração política explícita», a célebre
carta de Estaline intitulada «A Vertigem do Sucesso», publicada
no Pravda do dia 1 de Março de 1930, em que denunciava os ex­
cessos perpetrados pelos responsáveis locais que tinham agido
sem instruções precisas.
Nessas condições, como podiam orientar-se os quadros lo­
cais? Estariam totalmente perdidos, face a uma ordem geral não
A Marioneta e o Anão 133

especificada? Não completamente: essa lacuna era colmatada de


modo ambiguo pelos «sinais», elemento-chave do espaço semió-
tico estalinista: «Mudanças políticas importantes foram muitas
vezes mais “assinaladas” do que comunicadas sob a forma de
urna directiva clara e precisa.» Todos esses sinais indicavam
«mudanças em domínios particulares, sem dizer explicitamente
o que seria a nova política nem como ela devia ser implementa­
da» . Estes sinais podiam revestir a forma de um artigo de Estali-
ne consagrado a uma questão secundária de política cultural, de
um comentário desfavorável publicado no Pravda, de uma críti­
ca endereçada a um responsável local do partido, de uma home­
nagem inesperada a um trabalhador da província ou até de uma
pequena nota explicativa sobre um episódio histórico já com vá­
rios séculos.
A mensagem a ser decifrada por esses sinais era, geralmente,
quantitativa: ela indicava mais níveis de intensidade do que um
conteúdo concreto: por exemplo, ir «mais depressa» ou «mais
devagar» (na implementação da política de colectivização...),
etc. Existiam dois tipos básicos de sinais: os mais importantes
iam no sentido da «linha dura»: era preciso ir mais depressa, es­
magar impiedosamente o inimigo, mesmo que isso implicasse a
violação das leis existentes. Por exemplo, na altura da radicali­
zação do combate político contra a Igreja ortodoxa no final dos
anos 20, um sinal recomendava o fecho e a destruição das igre­
jas, a detenção dos padres, actos contrários às leis existentes (es­
sas instruções eram transmitidas às organizações locais do Parti­
do, mas consideradas como secretas, interditas de publicação).
Esta maneira de proceder apresenta vantagens evidentes: visto
que os sinais nunca eram explicitados, era muito mais fácil
repudiá-los ou reinterpretá-los do que se fossem declarações pú­
blicas explícitas. Os sinais complementarmente opostos preconi­
zavam uma espécie de relaxação e tolerância: geralmente, esses
sinais eram atribuídos ao próprio Estaline, ao passo que os «ex­
cessos» eram atribuídos aos responsáveis subalternos que não
compreendiam a política de Estaline. Estes sinais também eram
emitidos de modo informal: por exemplo, Estaline telefonava a
134 Slavoj Zizek

um escritor (Pastemak) e perguntava-lhe, num tom falsamente


surpreendido, porque não publicara recentemente nada de novo.
A notícia circulava rapidamente nos meios intelectuais. Ao agir
desta forma, a ambiguidade era completa. Um responsável local,
confrontado com uma ordem geral sem qualquer precisão, era
apanhado num dilema insolúvel: como evitar ser acusado de fra­
queza, mas como evitar também correr o risco de se tomar o bo­
de expiatório, designado como responsável por todos os «exces­
sos»? Contudo, não devemos esquecer que a direcção do partido
que emitia esses sinais se encontrava num impasse não menos
debilitante: os dirigentes, que dispunham de um poder absoluto,
nem sequer eram capazes de dar ordens explícitas sobre o que era
preciso fazer...
O problema (para Giorgio Agamben, entre outros) consiste em
saber como assegurar (se possível) a passagem deste superego
hiperbólico da Lei ao amor propriamente dito: será o amor so­
mente o modo de surgimento dessa Lei, será essa hipérbole do
superego a «verdade» escondida do amor, será assim a Lei infi­
nita «irracional» o terceiro termo escondido, o mediador que de­
saparece, entre a Lei e o Amor, ou haverá também amor para lá
da Lei obscena-infinita? A contracapa da edição francesa do li­
vro de Agamben, Le temps qui reste, a sua leitura da Epístola aos
Romanos de São Paulo, propõe um resumo tão preciso do con­
teúdo da obra, que podemos supor que ele foi redigido pelo pró­
prio autor. Este texto merece ser integralmente citado:

Se é verdade que cada obra do passado só alcança uma legibi­


lidade em certos momentos da sua própria história que é impor­
tante saber como apreender, na origem deste livro há a convicção
de que existe uma espécie de ligação secreta, que não devemos
imperativamente falhar, entre as epístolas de Paulo e a nossa épo­
ca. Nesta perspectiva, um dos textos mais lidos e mais comenta­
dos de toda a nossa tradição cultural adquire, sem dúvida, uma
nova legibilidade, que desloca e reorienta os cânones da sua in­
terpretação: Paulo já não é o fundador de uma nova religião, mas
o representante mais exigente do messianismo judeu; já não é o
A Marioneta e o Anão 135

inventor da universalidade, mas aquele que ultrapassa a divisão


dos povos através de uma nova divisão e que introduz nela um
resto; já não é a proclamação de uma nova identidade e de uma
nova vocação, mas a revocação de qualquer identidade e de qual­
quer vocação; já não é a simples crítica da Lei, mas a sua abertu­
ra para um uso para lá de todo o sistema do direito. E, no centro
de todos estes motivos, há uma nova experiência do tempo que,
ao inverter a relação entre passado e futuro, entre memória e es­
perança, constitui o kairos messiânico, não como o fim do tempo,
mas como o próprio paradigma do tempo presente, de todos os
presentes8.

O primeiro problema com esta focalização — não sobre o fim


do tempo, mas sobre o tempo condensado ao qual chegamos no
fim do tempo — é o seu formalismo mais do que evidente. O que
Agamben descreve como uma experiência mística é a pura es­
trutura formal de uma tal experiência, sem que sejam fornecidas
quaisquer determinações específicas que permitiriam apoiar a
afirmação segundo a qual Benjamin «repete» Paulo: por que mo­
tivo o momento actual é um momento único que torna legíveis as
epístolas de Paulo? Será porque podemos estabelecer um parale­
lismo entre a Nova (Des)Ordem Mundial emergente e o Império
Romano (a tese de Hardt e Negri)? Além disso, para defender
Alain Badiou (cujo livro sobre Paulo9 é o alvo implícito da pas­
sagem citada), somos tentados a afirmar a identidade fundamen­
tal das declarações apresentadas como opostas no resumo de
Agamben: e se o meio para fundar uma nova religião fosse pre­
cisamente seguir a lógica precedente até ao seu termo (na ocor­
rência, o messianismo judeu)? E se o único meio para inventar
uma nova universalidade fosse precisamente ultrapassar a antiga
divisão dos povos através de uma nova divisão, mais radical, que
introduz um resto indivisível no corpo social? E se a proclama­
ção de uma nova identidade e de uma nova vocação só fosse pos­
sível se funcionasse como revocação de qualquer identidade e de
qualquer vocação? E se a crítica verdadeiramente radical da Lei
equivalesse à sua abertura a uma utilização para lá de todo o sis­
136 Slavoj Zizek

tema jurídico? Além disso, ao introduzir a tríada do Todo, da Par­


te e do Resto, não estará Agamben a seguir o paradoxo hegelia-
no de um género com uma só espécie, sendo a outra o próprio gé­
nero? O Resto não é mais que o elemento excessivo que dá corpo
ao próprio género, a «determinação reflexiva» sob cuja forma o
próprio género se encontra no interior da sua espécie.
Quando Agamben afirma que a dimensão messiânica não é a
universalidade neutra que integra todas as espécies, indiferente
às suas diferenças (específicas), mas antes a não-coincidência de
cada elemento particular consigo próprio, não estará a reinventar
a tese central da «lógica do significante», segundo a qual a uni­
versalidade adquire uma existência actual num elemento particu­
lar incapaz de alcançar a sua plena identidade? O universal «ace­
de a ele próprio», é dado «como tal», na distância que separa um
elemento particular não dos outros elementos, mas de si mesmo.
Por exemplo, em política, como mostraram Laclau e Rancière, o
sujeito propriamente democrático é o «resto», o elemento do To­
do privado de todos os traços particulares que lhe dariam um lu­
gar específico no interior do Todo, o elemento que está numa po­
sição de exclusão exterior relativamente ao Todo. Incapaz de
ocupar o seu lugar específico, este tipo de sujeito democrático
encarna a universalidade como tal. Portanto, quando opomos a
universalidade política radical (o igualitarismo radical emanci­
pador) à universalidade fundada na excepção (por exemplo, uma
«universalidade dos direitos do homem» que privilegia secreta­
mente certos grupos e exclui outros), o problema não é só o fac­
to de a universalidade fundada na excepção não integrar todos os
casos particulares, de haver um resto, ao passo que a universali­
dade radical «inclui realmente tudo e todos»; o problema é antes
que o agente singular da universalidade radical é o próprio Res­
to, aquele que não tem lugar particular na universalidade «ofi­
cial» fundada na excepção. A universalidade radical «cobre todo
o seu conteúdo particular» precisamente na medida em que está
ligada ao Resto por uma espécie de cordão umbilical. A sua ló­
gica é a seguinte: «São os excluídos, aqueles que não têm lugar
particular no interior da ordem global, que encarnam directa-
A Marioneta e o Anão 137

mente a verdadeira universalidade, que representam o Todo por


oposição a todos os outros que representam apenas os seus inte­
resses particulares.» Não tendo diferença específica, este ele­
mento paradoxal representa a diferença absoluta, a Diferença pu­
ra como tal. Neste sentido, a universalidade paulina não é a
universalidade muda como recipiente neutro, vazio, do seu con­
teúdo particular, mas uma «universalidade combatente», uma
universalidade cuja existência real é uma divisão radical que
atravessa todo o conteúdo particular.
E quando Agamben descreve, de modo convincente, a dimen­
são «kafkiana» da distância paulina relativamente à Lei do Anti­
go Testamento, quando interpreta a oposição da Lei e do Amor
como uma oposição no interior da própria Lei, como a oposição
entre uma lei positiva com prescrições e proibições precisas e a
Lei incondicional kafkiana que não pode ser executada como po­
tencialidade pura, nem sequer traduzida em normas positivas,
mas que permanece uma injunção abstracta que faz de todos nós
culpados10 precisamente por não sabermos do que somos culpa­
dos, não estará assim a transcrever a oposição entre a Lei e o seu
suplemento-excesso do superego? Com efeito, devíamos correla­
cionar a culpabilidade incondicional do superego e a misericórdia
do amor — duas figuras do excesso, o excesso da culpabilidade,
desproporcionada relativamente ao que fiz realmente, e o exces­
so da misericórdia, desproporcionado relativamente ao que mere­
ço atendendo aos meus actos. Em suma, o excesso do superego
não é, em última análise, nada mais do que a inscrição retroacti­
va no domínio da Lei, o seu reflexo-na-Lei, do Amor que elimi­
na («ultrapassa») a Lei. Assim, o advento da Nova Aliança não só
é uma nova ordem que vai mais longe do que a antiga Lei, mas o
«Grande Meio-Dia» de Nietzsche, o momento da clivagem em
dois, da diferença mínima, invisível, que separa o excesso da pró­
pria Lei do Amor para lá da Lei.
A relação entre a lei (a ordem legal jurídica) e a misericórdia
(o perdão) não será aquela que existe efectivamente entre neces­
sidade e escolha (temos de obedecer à lei, ao passo que a miseri­
córdia é, por definição, dispensada como um acto livre e exces­
138 Slavoj Zizek

sivo, como algo cujo agente tem a liberdade de conceder ou não


— a misericórdia sob compulsão não é misericórdia, mas, na me­
lhor das hipóteses, um travestismo de misericórdia)? E se, a um
nível mais profundo, a relação fosse a oposta? E se, relativa­
mente à lei, tivéssemos a liberdade de escolher (de lhe obedecer
ou de a violar), ao passo que a misericórdia é, obrigatoriamente,
algo que temos de dispensar — a misericórdia como excesso des­
necessário que, como tal, tem de ocorrer. (E a lei não levará sem­
pre em conta essa nossa liberdade, castigando-nos não só pela
sua transgressão, como permitindo também escapatórias a serem
punidas pela sua ambiguidade e inconsistência?) O facto de mos­
trar misericórdia não será a única via para um Mestre demonstrar
a sua autoridade supralegal? Se o Mestre existisse apenas para
garantir a aplicação integral da lei, ou os seus regulamentos, se­
ria privado da sua autoridade e reduzido a uma mera figura do
conhecimento, a um agente do discurso universitário11. Isto
aplica-se até ao próprio Estaline: nunca devemos esquecer que,
como demonstram os pormenores (agora disponíveis) das reu­
niões do Politburo e do Comité Central dos anos 30, as suas in­
tervenções directas eram, regra geral, demonstrações de miseri­
córdia. Quando jovens membros do Comité Central, ansiosos por
provarem o seu fervor revolucionário, pediam a pena de morte
imediata para Bukharine, Estaline intervinha sempre e dizia:
«Paciência! A sua culpa ainda não foi provada!», ou algo do gé­
nero. Claro que era uma atitude hipócrita — sabia perfeitamente
que fora ele próprio a engendrar o fervor destruidor, e que os jo ­
vens membros estavam ansiosos por lhe agradar — mas, não
obstante, nessa altura era necessária uma aparência de graça.
Neste ponto, somos porém confrontados com uma alternativa
fundamental: será o amor paulino o reverso da Lei obscena do
superego que não pode ser executada e especificada em regras
particulares? Estaremos de facto perante as duas faces da mesma
moeda? Agamben concentra-se na posição do «como-se-não» da
célebre passagem em que Paulo pede aos que crêem no tempo
messiânico para não escaparem do mundo das obrigações sociais
— não devem fazer uma revolução social, substituir uma série de
A Marioneta e o Anão 139

obrigações por outra, mas continuar a participar no mundo das


obrigações sociais adoptando uma atitude de suspensão («Chorai
como se não chorásseis, tratai o dinheiro como se não tivésseis
dinheiro...):

Cada um fique na vocação em que foi chamado (...) Isto, po­


rém, vos digo, irmãos: que o tempo se abrevia; o que resta é que,
também, os que têm mulheres, sejam como se não as tivessem; e,
os que choram, como se não chorassem; e, os que folgam, como
se não folgassem; e, os que compram, como se não possuíssem;
e, os que usam deste mundo, como se dele não usassem, porque
a aparência deste mundo passa (Primeira Epístola aos Coríntios,
7: 20, e 7: 29-31).

Agamben sublinha, aju sto título, que esta posição nada tem a
ver com uma legitimação das relações de força existentes, do ti­
po: «Continuai sendo o que sois, continuai no lugar para o qual
fostes chamados (mais precisamente, o lugar do escravo, do ju ­
deu...) e conservai apenas uma certa distância em relação a ele,
em relação ao que sois.» Ela também não tem nada a ver com a
versão clássica da sabedoria oriental que impõe a indiferença em
relação às coisas do mundo, no espírito da Bhagavad-Guitá:
«Agi no mundo como se não fôsseis vós a agir, como se as con­
sequências dos vossos actos não tivessem importância.» A dife­
rença fundamental é que, em Paulo, a distância não é a de um ob­
servador desprendido, consciente da nulidade das paixões
terrestres, mas a de um combatente totalmente empenhado que
ignora as diferenças que nada têm a ver com o combate a travar.
Esta posição também é muito diferente da atitude do como se,
que encontramos em pensadores como Bentham e Vaihinger —
não se trata da denegação fetichista que pertence à ordem sim­
bólica («apesar de saber perfeitamente que o juiz não é um ho­
mem honesto, trato-o, a ele, representante da Lei, como se o fos­
se...» ), mas da denegação do próprio domínio simbólico:
sirvo-me das obrigações simbólicas, mas não estou, performati-
vamente, atado por elas. Aqui, contudo, Agamben lê esta sus­
140 Slavoj Zizek

pensão como uma distanciação puramente formal: a «fé» não


tem conteúdo positivo, ela é simplesmente essa distância em re­
lação a si mesmo, essa auto-suspensão da Lei. Aqui, refere-se ao
conceito hegeliano da Aufhebung. O amor paulino não é a anula­
ção ou a negação destruidora da Lei, mas a sua realização (no
sentido de Aufhebung, ultrapassagem) da Lei, em que a Lei é
conservada na sua própria suspensão, como momento subordina­
do (potencial) de uma unidade real superiora. De modo signifi­
cativo, Agamben também se refere aqui ao conceito de «estado
de excepção» de Cari Schmitt: este «estado de excepção» é uma
negação do reino da Lei que não é a sua destruição, mas o pró­
prio gesto que a funda. No entanto, persiste a questão de saber se
o amor paulino pode ser reduzido a esta suspensão fundadora da
Lei. Em suma, e se a Epístola aos Romanos tivesse de ser lida
com a Epístola aos Corintios?
O que encontramos em Paulo é um comprometimento, uma
posição empenhada de combatente, uma estranha «interpelação»
para lá da interpelação ideológica, uma interpelação que sus­
pende a força performativa da interpelação ideológica «normal»
e nos compele a aceitar o nosso lugar particular no interior do
edifício sócio-simbólico. Se lermos Paulo com Schmitt, podere­
mos dizer que o amor tem a estrutura de um «estado de emer­
gência ou de excepção» que suspende o funcionamento «nor­
mal» da vida emocional? Neste sentido preciso, o amor não será
também a guerra? Quando me apaixono violentamente, o meu
equilíbrio é perturbado, o curso da minha vida descarrila, o logos
transforma-se em patologia, perco a faculdade de reflectir e jul­
gar de modo neutro, todas as minhas (outras) faculdades são sus­
pensas na sua autonomia, subordinadas a um único desígnio, co­
loridas por ele — na verdade, o amor não será uma doença? Para
parafrasear Paulo, quando estamos apaixonados, «compramos
como se não possuíssemos e usamos do mundo como se dele não
usássemos», dado que a única coisa que importa, em última ins­
tância, é o próprio am or12... Talvez não haja situação em que a
distância que separa o prazer do gozo seja mais palpável do que
quando nos apaixonamos subitamente depois de termos levado
A Marioneta e o Anão 141

algum tempo uma vida tranquila e agradável, repleta de peque­


ños prazeres: o amor abala a nossa vida quotidiana, como um pe­
sado dever cuja execução impõe grandes sacrifícios ao nível do
«princípio do prazer». Temos de renunciar a toda uma série de
coisas: à nossa «liberdade», aos copos com os amigos no café,
aos jogos de cartas à noite... Por conseguinte, é essencial distin­
guir o «estado de emergência» judaico-paulino, a suspensão da
imersão «normal» na vida quotidiana e o clássico «estado de ex­
cepção» carnavalesco bakhtiniano, em que as normas morais e as
hierarquias habituais são provisoriamente suspensas, e em que
somos convidados a multiplicar as transgressões. Estes dois es­
tados opõem-se: aquilo que o estado paulino suspende é menos a
Lei explícita que rege a nossa vida quotidiana do que, precisa­
mente, a sua obscena face escondida, não escrita: quando, na sua
série de prescrições como se, Paulo nos diz fundamentalmente
«obedecei às leis como se não lhe obedecêsseis», isso significa,
precisamente, que deveríamos suspender o nosso obsceno inves­
timento libidinal na Lei, investimento na base do qual a Lei en­
gendra / solicita a sua própria transgressão. O paradoxo supre­
mo, evidentemente, é que esta é a maneira como funciona a Lei
judaica, alvo essencial da crítica de Paulo: ela já é uma lei priva­
da do seu suplemento de superego, uma lei que não se apoia em
nenhum suporte obsceno. Em suma, no seu funcionamento «nor­
mal», a imposição da Lei engendra um «dano colateral»: a sua
própria transgressão, o seu próprio excesso (círculo vicioso da
Lei e do pecado, descrito de forma inultrapassável na Epístola
aos Corintios), ao passo que, no judaísmo e no cristianismo, é es­
se próprio excesso que nos interpela directamente.

Aqui, estamos perante a suprema alternativa: a oposição entre


Lei e Amor reduzir-se-á à sua «verdade», a oposição — interna
à própria Lei — entre a Lei positiva determinada e a injunção ex­
cessiva do superego, a Lei para lá de qualquer medida, ou, por
outras palavras, será o excesso de Amor relativamente à Lei o
modo de surgimento de uma Lei-superego, de uma «Lei para lá
de qualquer lei determinada», ou a excessiva Lei-superego será
142 Slavoj Zizek

o modo como a dimensão para lá da Lei aparece no interior do


domínio da Lei, de forma que o passo essencial (comparável ao
«Meio-Dia» nietzschiano) a dar é aquele que vai da Lei excessi­
va ao amor, do amor, tal como ele surge no domínio da Lei, ao
amor para lá da Lei? Lacan não cessou de se debater com este
problema profundamente paulino: haverá amor para lá da Lei?
Paradoxalmente (dado que a ideia de Lei inultrapassável é geral­
mente considerada como judia), na última página de Quatre con-
cepts fondamentaux de la psychanalyse, ele identifica essa posi­
ção do amor para lá da Lei com a de Espinosa, opondo-a à ideia
kantiana da Lei moral como horizonte supremo da nossa expe­
riência. Em L ’éthique de la psychanalyse, Lacan trata extensiva­
mente, nomeadamente no capítulo 4, da dialéctica paulina da Lei
e da sua transgressão. Talvez devamos então ler esta dialéctica
paulina com o seu corolário, a outra passagem paradigmática de
São Paulo consagrada à caridade, na Primeira Epístola aos Co­
rintios:

Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não


tivesse caridade, seria como o metal que soa, ou como o sino que
tine. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os
mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de ma­
neira tal que transportasse os montes, e não tivesse caridade, na­
da seria. E, ainda que distribuísse toda a minha fortuna, para sus­
tento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser
queimado, e não tivesse caridade, nada disso me aproveitaria.
(...) A caridade nunca falha, mas, havendo profecias, serão ani­
quiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desapare­
cerá; porque em parte conhecemos, e em parte profetizamos; mas,
quando vier o que é perfeito, então, o que é em parte será aniqui­
lado. (...) Porque, agora, vemos por espelho, em enigma, mas, en­
tão, veremos face a face; agora conheço em parte, mas, então, co­
nhecerei como também sou conhecido. Agora, pois, permanecem
a fé, a esperança e a caridade, estas três; mas a maior destas é a
caridade.
A Marioneta e o Anão 143

Aqui, o fundamental é o lugar nitidamente paradoxal da cari­


dade em relação ao Todo (à totalidade dos conhecimentos e das
profecias). Primeiro, São Paulo afirma que a caridade existiria
mesmo que possuíssemos todo o conhecimento; depois, na se­
gunda passagem citada, afirma que a caridade só existe para
seres incompletos, isto é, para seres possuidores de um conheci­
mento incompleto. Haverá ainda caridade quando eu «conhece­
rei como sou conhecido»? Mesmo se, contrariamente ao conhe­
cimento, «a caridade nunca falha», é evidente que só «agora»
(agora, que sou incompleto) «estas três coisas permanecem: a fé,
a esperança, a caridade». A única maneira de sair deste impasse
é ler estas duas afirmações incoerentes segundo as fórmulas fe­
m ininas13 de Lacan da «sexuação»: mesmo quando é o «todo»
(completo, sem excepção), o campo do conhecimento continua
sendo, de certo modo, um não-todo, incompleto. A caridade (o
amor) não é uma excepção ao Todo do conhecimento, mas preci­
samente esse «nada» que tom a incompleto até o campo com ple­
to do conhecimento. Por outras palavras, na afirmação segundo a
qual, mesmo que eu possua todo o conhecimento, eu nada seria
sem a caridade, a ideia essencial não é apenas que eu sou «qual­
quer coisa» com a caridade, mas que na caridade também não sou
nada, mas um Nada de certo modo humildemente consciente de
si, um Nada paradoxalmente enriquecido pela própria consciên­
cia do que lhe falta. Só um ser que sofre por saber que lhe falta
alguma coisa, só um ser vulnerável, é capaz de caridade (de
amor). Portanto, o grande mistério do amor é que a incompletu-
de é, num certo sentido, superior à completude. Por um lado, só
um ser que sofre com a falta de algo, um ser imperfeito, é capaz
de amor: amamos porque não conhecemos tudo. Por outro, m es­
mo que conhecêssemos tudo, o amor seria ainda inexplicavel­
mente superior ao conhecimento completo. Talvez o verdadeiro
sucesso do cristianismo tenha sido o de elevar um ser que ama
(imperfeito) ao lugar de Deus, ou seja, da perfeição suprema. É
aí que reside o ceme da experiência cristã. Na atitude dos pagãos
anterior ao cristianismo, certos fenómenos terrestres imperfeitos
podiam servir de sinais da perfeição divina impossível de alcan­
144 Slavoj Zizek

çar. No cristianismo, ao invés, é a própria perfeição física (ou


mental) que é sinal de imperfeição de si como pessoa absoluta
(finitude, vulnerabilidade, incerteza). A própria beleza corporal
torna-se um sinal dessa dimensão espiritual, não o sinal de uma
perfeição espiritual «superior», mas o sinal que nós mesmos so­
mos pessoas vulneráveis, finitas. Só desta maneira é possível es­
capar à idolatria. Deste modo, a relação propriamente cristã entre
sexo e amor não é a relação entre corpo e alma, mas quase o seu
oposto: no sexo «puro», o parceiro é reduzido a um objecto fan-
tasmático, isto é, o sexo «puro» é masturbação com um parceiro
real que funciona como um suporte para satisfazer os nossos fan­
tasmas, ao passo que só através do amor podemos alcançar o real
do Outro. (Isto também se aplica ao estatuto da dama, no amor
cortês: devido ao interminável adiamento da consumação do ac­
to sexual, o amor cortês permanece ao nível do desejo sexual, não
do amor — a prova é que a dama se encontra reduzida a uma en­
tidade puramente simbólica, indistinguível de todas as outras,
não tocada na realidade da sua singularidade.)
Deste modo, o longo desenvolvimento de Lacan sobre o amor,
em Encore, deve ser lido num sentido paulino, ou seja, em oposi­
ção à dialéctica da Lei e da sua transgressão: esta segunda dialéc­
tica é nitidamente «masculina»/fálica, implica a tensão entre o To­
do (a Lei universal) e a sua excepção constitutiva, ao passo que o
amor é «feminino», implica os paradoxos do não-Todo14. Como
escreve Eric Santner a propósito da leitura de Alain Badiou sobre
São Paulo: «A questão paulina, na reformulação proposta por Ba­
diou, é a seguinte: estará o sujeito globalmente na figura da sub­
missão à Lei? Há duas respostas (lacanianas) para esta pergunta:
1) há um lugar de excepção; 2) o sujeito não está globalmente no
interior da figura da submissão à Lei. Contudo, na minha opinião,
o essencial é notar que não existe uma via directa que leve da sub­
missão à Lei ao “não-todo”; o “não-todo” só é aberto através de
uma travessia do fantasma da excepção, que, por sua vez, apoia a
força da figura da submissão à Lei. Por outras palavras, o “não-
-todo” é aquilo que obtemos quando atravessamos o fantasma»15.
A co-dependência da Lei e do pecado (transgressão da Lei) obe-
A Marioneta e o Anão 145

dece assim à lacaniana lógica «masculina» da excepção: o «peca­


do» é a própria excepção que apoia a Lei. Isto significa que o amor
não só está para lá da Lei, como se articula enquanto posição de
imersão total na Lei: «o não-todo do sujeito está no interior da fi­
gura da submissão ã Lei» significa «não há nada no sujeito que es­
cape à submissão da Lei». O «pecado» é o núcleo resistente mui­
to íntimo, em nome do qual o sujeito faz a experiência da sua
relação com a Lei como relação de sujeição; é a esse título que a
Lei deve aparecer ao sujeito como um poder alheio que o esmaga.
Por conseguinte, é deste modo que devemos apreender a ideia
de que o cristianismo «realizou» a Lei judia: não a completando
pela dimensão do amor, mas realizando-a completamente na
própria Lei — nesta perspectiva, o problema do judaísmo não é
o de estar «demasiado ligado à Lei», mas o de «não estar sufi­
cientemente ligado ã Lei». Aqui, uma rápida referência a Hegel
pode ser de certa utilidade. Quando Hegel se esforça por resol­
ver o conflito entre Lei e amor, não mobiliza a sua tríada habi­
tual (o imediatismo da ligação amorosa transformar-se-ia no seu
contrário, o odio e a disputa, que apelaria a um a Lei exterior-
-alienada para regular a vida social, e, finalmente, num acto de
«síntese» mágica, Lei e amor seriam reconciliados na totalidade
orgânica da vida social). O problema da Lei não é o facto de ela
não conter suficiente amor, mas antes o de ela conter demasiado
amor, o que significa que a vida social me aparece dominada por
uma Lei imposta do exterior, na qual sou incapaz de me reco­
nhecer, precisamente na medida em que continuo agarrado ao
imediatismo do amor que se sente ameaçado pelo reino da L ei.
Consequentemente, a Lei perde o seu carácter «alienado» de for­
ça alheia, impondo-se brutalmente ao sujeito no momento em
que ele renuncia, no fundo, à sua ligação à agalma patológica, à
noção de que há um tesouro precioso no seu foro mais íntimo
que só pode ser amado e não pode ser submetido ao reino da L ei.
Por outras palavras, o problema (ainda hoje) não é o de saber co­
mo devemos completar a Lei com um verdadeiro amor (laço so
ciai autêntico), mas, pelo contrário, como devemos realizar ;i
Lei desembaraçando-nos da mácula patológica do amor.
146 Slavoj Zizek

O julgamento negativo de Paulo sobre a lei é claro e despro­


vido de ambiguidade: «Por isso, nenhuma carne será justificada
diante dele pelas obras da lei, porque pela lei vem o conheci­
mento do pecado» (Epístola aos Romanos, 3: 20); «Ora o agui­
lhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a lei» (Primeira
Epístola aos Coríntios, 15: 56). Por isso «Cristo nos resgatou da
maldição da lei» (Epístola aos Gálatas, 3: 13). Portanto, quando
Paulo diz que «a letra mata, e o espírito vivifica» (Segunda Epís­
tola aos Coríntios, 3: 6), esta letra é precisamente a letra da Lei.
Os representantes mais convencidos desta oposição radical entre
lei e amor divino, que o aproxima da misericórdia, são os teólo­
gos luteranos como Rudolf Bultmann, para quem «a via das
obras da Lei e a via da misericórdia e da fé são vias opostas que
se excluem mutuamente. [...] O esforço do homem para obter a
sua salvação obedecendo à Lei só pode conduzi-lo ao pecado; na
realidade, esse próprio esforço já é, no fundo, um pecado. [...]
A Lei traz à luz o facto de o homem ser um pecador, ou porque
o seu desejo culpado o leva a transgredir a Lei, ou porque esse
desejo se disfarça em zelo para manter a Lei» 16.
Como compreender isto? Nesse caso, porque é que Deus pro­
clamou a Lei em primeiro lugar? Segundo a leitura habitual de
Paulo, Deus deu a Lei aos homens para os fazer tomar consciên­
cia dos seus pecados, para os tornar ainda mais pecadores e levá-
-los, desse modo, a compreender que precisam da salvação, que
só pode vir da misericórdia divina. Contudo, não implicará essa
leitura uma concepção estranhamente perversa de Deus? Como
vimos, a única maneira de evitar uma leitura perversa desse tipo
consiste em insistir sobre a identidade absoluta dos dois gestos
— Deus não nos lança primeiro no pecado para criar a necessi­
dade da salvação, para se apresentar depois como o redentor que
poderá tirar-nos das atribulações em que nos mergulhou inicial­
mente; a Queda não é seguida da Redenção: a Queda é idêntica
à redenção, ela já é, «em si», redenção. O que é portanto a «re­
denção»? A explosão da liberdade, a evasão para fora da servi­
dão natural — t é isso que acontece precisamente na Queda.
Aqui, não devemos perder de vista a tensão central do conceito
A Marioneta e o Anão 147

cristão de Queda: a Queda (a «regressão» ao estado de natureza,


a escravidão relativamente às paixões) é, stricto sensu, idêntica à
dimensão da qual caímos, ou seja, o próprio movimento da que­
da cria, abre, aquilo que nela se perde.
Aqui, temos de ser muito precisos sobre o «desprendimento»
do domínio da vida social, da substância social do nosso ser. Nes­
te caso, a Lei judia tem um significado essencial. Porquê? Como
Eric Santner assinalou, a Lei judia já é fundada num gesto de
«desprendimento»: através da referência à Lei, os judeus na diás-
pora mantêm uma certa distância relativamente à sociedade no
seio da qual vivem. Em suma, a Lei judia não é uma lei social co­
mo as outras: enquanto as outras leis (pagãs) regulam as trocas so­
ciais, a Lei judia introduz uma outra dimensão, a da justiça divi­
na, que é de uma heterogeneidade radical em relação à lei
social17. (Além disso, esta justiça é diferente do conceito pagão
de justiça como restabelecimento de um equilíbrio, como proces­
so inexorável do Destino que restabelece o equilíbrio perturbado
pela hubris humana: a justiça judia é precisamente o contrário da
reafirmação vitoriosa do direito/potência do Todo sobre as suas
partes — é a visão do estádio final, em que serão anuladas todas
as injustiças infligidas aos indivíduos.) Quando os judeus «se des­
ligam» e mantêm uma certa distância relativamente à sociedade
em que vivem, não o fazem em nome de uma identidade substan­
cial diferente. Neste aspecto, os anti-semitas têm, de certo modo,
razão: os judeus são, efectivamente, os «desenraizados», a sua Lei
é «abstracta», ela «extrapola-os» da Substância social.
Esta é a distância radical que separa a suspensão cristã da Lei
— a passagem da Lei ao amor — da suspensão pagã da lei so­
cial: o ponto mais elevado (ou melhor, o mais profundo) de toda
a sabedoria pagã é também, evidentemente, um «desprendimen­
to» radical (ou a orgia carnavalesca ou a imersão directa no abis­
mo do Vazio primordial em que são suspensas todas as diferen­
ças articuladas), mas o que é suspenso aqui é a imanente lei pagã
do social, não é a lei judia, que já nos «desliga» do social. Quan­
do os místicos cristãos se aproximam de mais da experiência
mística dos pagãos, evitam a experiência judia da Lei e, por con­
148 Slavoj Zizek

seguinte, não admira que se tornem muitas vezes anti-semitas fe­


rozes. Com efeito, o anti-semitismo cristão é um sinal evidente
de regressão da posição cristã para o paganismo: desembaraça-
-se da posição universalista «desenraizada» do cristianismo pro­
priamente dito, transferindo-a para o Outro judeu; consequente­
mente, quando um cristão perde a mediação da Lei judia, perde
a dimensão especificamente cristã do próprio amor, reduzindo
este ao «sentimento cósmico» pagão de unidade com o Univer­
so. Só a referência à Lei judia sustém a concepção especifica­
mente cristã do amor, um amor que precisa de uma certa distân­
cia, que se alimenta das diferenças, que não tem nada a ver com
qualquer rasura dos limites nem com a imersão no Um. (E, no in­
terior da experiência judia, o amor permanece a este nível pagão,
isto é, a experiência judia é uma combinação única da nova Lei
e do amor pagão, o que explica a sua tensão interna.)
Aqui, devemos evitar cair na armadilha da oposição entre a lei
social «exterior» (regras sociais, «legalidade pura») e a lei moral
«interior», superior, em que a lei social exterior pode chocar-nos
como contingente e irracional, ao passo que aceitamos plena­
mente a lei interior como sendo «a nossa própria lei». Devemos
abandonar radicalmente a ideia de que as instituições sociais ex­
teriores traem a autêntica experiência interior da verdadeira
transcendência da Alteridade (por exemplo, na forma da oposição
entre a autêntica experiência «interior» do divino e a sua reifica-
ção «exterior» numa instituição religiosa, em que a experiência
religiosa propriamente dita degenera numa ideologia que legiti­
ma as relações de forças). Se há uma lição a aprender com Kaf­
ka, é que, na oposição entre interior e exterior, a dimensão divi­
na está do lado do exterior. O que poderia ser mais «divino» do
que o encontro traumático com uma burocracia completamente
enlouquecida, por exemplo quando um empregado nos declara
que não existimos legalmente? São encontros deste tipo que nos
dão um vislumbre sobre uma outra ordem, situada para lá da sim­
ples realidade quotidiana terrestre. Não há experiência do Divino
sem suspensão deste tipo de Ética. E, longe de ser simplesmente
exterior, essa própria exterioridade (ao sentido, à integração sim-
A Marioneta e o Anão 149

bólica) agarra-nos do interior: o tópico de Kafka é precisamente


a fruição obscena com que a burocracia se dirige ao sujeito ao ni­
vel do mais profundo núcleo negado (ex-timado, como teria dito
Lacan) do cerne do seu ser.
O conhecimento burocrático, como tal, é precisamente o con­
trário do conhecimento científico interessado pelos factos positi­
vos. A sua generalização origina urna certa distância, cujos me­
lhores exemplos são o «certificado de existência» francês ou
aquelas estranhas histórias que ouvimos de vez em quando (vin­
das geralmente de Itália), em que um indivíduo que solicita um
favor a um organismo público tem a infelicidade de ser informa­
do que, segundo os registos oficiais, está oficialmente morto ou
deixou de existir, e que, antes de poder fazer qualquer reclama­
ção, tem de começar por apresentar documentos oficiais que pro­
vem a sua existência — não encontramos aqui a versão burocrá­
tica do «entre duas mortes»? Quando a ciência burocrática torna
assim manifesta a discórdia absoluta entre Simbólico e Real, dá-
-nos acesso a uma ordem radicalmente diferente da vulgar reali­
dade positiva comum. Kafka estava perfeitamente consciente do
laço profundo entre a burocracia e o divino. Na sua obra, temos
a impressão de que a tese de Hegel sobre o Estado como exis­
tência terrestre de Deus é «parasitada» no sentido deleuziano do
termo, adquirindo uma feição obscena.

N otas

1. Fui buscar esta ideia a Alain Badiou (intervenção no coloquio


«Paulo e a modernidade»), UCLA, 14-16 de Abril de 2002).
2. G. K. Chesterton, Orthodoxy, op. ch., p. 99.
3. Christopher Hitchens, «We Know Best», Vanity Fair, Maio de
2001, p. 34.
4. Nas páginas seguintes recorro a David Horell, An Introduction to
the Study of Paul, Nova Iorque e Londres, Continuum, 2000, pp. 57-59.
5. Ibid., p. 20.
150 Slavoj Zizek

6. Kenneth Burke, Language as Symbolic Action, Berkeley, Univer-


sity of Califórnia Press, 1966, p. 431.
7. Sheila Fitzpatrick, Everyday Stalinism, Oxford, Oxford Univer-
sity Press, 1999, pp. 26-28.
8. Giorgio Agamben, Le temps qui reste. Un commentaire de VÉpt-
tre aux Romains, Paris, Payot-Rivages, 2000.
9. Alain Badiou, Saint Paul ou la naissance de 1’universalisme, Pa­
ris, Presses universitaires de France, 1998.
10. Agamben, Le temps qui reste, op. cit., pp. 170-171.
11. Por isso, até um grande juiz é uma figura do Mestre: de certo mo­
do, ele altera sempre a lei na sua aplicação ao interpretá-la criativa­
mente.
12. E a ligação entre a política e as emoções seria fornecida por uma
observação passageira, mas essencial, de Adorno, segundo a qual o
amor é o modo particular de legitimação dos regimes totalitários e au­
toritários. Precisamente, e na medida em que eles são incapazes de pro­
por uma legitimação «racional» do seu funcionamento, esses regimes
são obrigados a apelar a uma emoção «irracional», o amor, que não es­
tá ligado a um objecto pelas suas qualidades particulares, mas pela sua
própria existência.
13. Jacques Lacan, Le Séminaire, livre XX. Encore, Paris, Seuil,
1993.
14. O próprio amor também pode, evidentemente, funcionar no mo­
do do universal e da excepção (amamos verdadeiramente alguém se
não fizermos dele o centro do nosso universo, se lhe dermos a entender
que estamos prontos a deixá-lo por uma Causa superior). Este é um dos
grandes motivos do melodrama: um homem só merece o amor de uma
mulher se for suficientemente forte para resistir à tentação de renunciar
a tudo por ela. Se renunciar a tudo por ela e se comportar como seu es­
cravo, mais cedo ou mais tarde ela acabará por desprezá-lo.
15. Mensagem pessoal de 24 de Outubro de 2002.
16. Rudolf Bultmann, Theology ofthe New Testament, vol. 1, Lon­
dres, SCM, 1952, pp. 264-265.
17. Eric Santner, On the Psychotheology of Everyday Life, Chicago,
University of Chicago Press, 2001.
Capítulo V

A SUBTRACÇÃO JUDIA E A SUBTRACÇÃO CRISTÃ

Perante um texto erótico-religioso como o Cântico dos Cânti­


cos, os comentadores apressam-se a recomendar-nos uma leitura
alegórica das suas imagens explicitamente eróticas; para eles, es­
sas imagens devem ser vistas como metáforas: quando, por
exemplo, o amante beija os lábios da mulher, na realidade isso
«significa» que entrega os Dez Mandamentos aos judeus. Em su­
ma, o que aparece como a descrição de um encontro sexual «pu­
ramente humano» exprime simbolicamente a comunhão de Deus
com o povo judeu. Contudo, os especialistas mais perspicazes da
Bíblia são os primeiros a sublinhar os limites desse tipo de leitu­
ra metafórica, que expulsa o conteúdo sensual dessas descrições
através de uma «simples comparação»: é essa leitura «simbóli­
ca» que é, precisamente, «puramente humana», porque persiste
em opor exteriormente o símbolo e o seu significado, ligando de­
sajeitadamente um «sentido profundo» ao conteúdo explosivo do
texto. A leitura literal (por exemplo, a do Cântico dos Cânticos
como a de um texto carregado de um erotismo quase pornográfi­
co) e a leitura alegórica são as duas faces de uma mesma opera­
ção: elas partem do mesmo pressuposto, segundo o qual a se­
xualidade «real» é «puramente humana», desprovida de toda e
qualquer dimensão divina. (Coloca-se, evidentemente, uma
questão: se a sexualidade não passa de uma metáfora, nesse caso
152 Slavoj Zizek

porque precisamos deste desvio problemático logo inicialmente?


Porque não se transmite directamente o verdadeiro conteúdo es­
piritual? Será porque, devido aos limites da nossa natureza fini­
ta e sensual, esse conteúdo não nos é directamente acessível?)
E se, todavia, o Cântico dos Cânticos não devesse ser lido como
uma alegoria, mas de forma muito mais literal, como um texto
erótico puramente sensual? E se a dimensão espiritual «profun­
da» já estivesse presente na apaixonada interacção sexual? A ver­
dadeira tarefa não consiste, portanto, em reduzir a sexualidade a
uma mera alegoria, mas em trazer à luz a dimensão espiritual in­
trínseca que separa sempre a sexualidade humana do acopla­
mento animal. Será contudo possível dar este passo no judaísmo,
passo que vai da alegoria à plena identidade? Não será esta pas­
sagem antes um tema do cristianismo, que afirma a identidade
directa entre Deus e o hom em 1?

O Cântico dos Cânticos coloca outro problema. A defesa tra­


dicional do «judaísmo psicanalítico» contra o cristianismo re­
pousa em duas afirmações: primeiro, que a angústia do Real trau­
mático da Lei, do abismo do desejo do Outro («Que queres?»),
só está presente no judaísmo; o cristianismo dissimula este abis­
mo por meio do amor, ou seja, da reconciliação imaginária entre
Deus e os homens, em que o encontro com o Real, gerador de an­
gústia, é mitigado (agora sabemos aquilo que o Outro quer de
nós, Deus ama-nos, o sacrifício de Cristo é a prova suprema des­
se am or...); segundo, que textos como o Cântico dos Cânticos
demonstram que o judaísmo, longe de ser (apenas) uma religião
da angústia, é também, e sobretudo, a religião do amor, de um
amor ainda mais intenso que o dos cristãos. Não será a aliança
entre Deus e o povo judeu o supremo acto de amor? Porém, co­
mo acabámos de precisar, este amor judeu permanece «metafóri­
co»; como tal, ele próprio é a reconciliação imaginária entre
Deus e a humanidade, em que o encontro com o Real, gerador de
angústia, é mitigado. Ou, para dizer as coisas brutal e directa­
mente: não será o Cântico dos Cânticos a ideologia no seu esta­
do puro, se a considerarmos como uma atenuação imaginária de
A Marioneta e o Anão 153

um Real traumático, como «o Real do encontro divino com um


rosto humano»?
Como passamos então daí ao cristianismo propriamente dito?
A chave de Cristo é fornecida pela figura de Job, cujo sofrimen­
to prefigura o de Cristo. O que torna o Livro de Job tão provo­
cador não é simplesmente a existência de uma pluralidade de
perspectivas sem a resolução evidente da tensão assim criada (o
sofrimento de Job implica uma perspectiva diferente da perspec­
tiva da confiança religiosa em Deus); a perplexidade de Job resi­
de no facto de ele fazer a experiência de Deus como de uma Coi­
sa impenetrável, de não saber o que Deus quer com as provas a
que é submetido (o «Che vuoi» de Lacan). Consequentemente,
Job é incapaz de dizer como se integra à ordem divina geral, é in­
capaz de reconhecer o seu lugar na ordem divina.
A força quase insuportável do Livro de Job reside menos no seu
quadro narrativo (em que Deus e o Diabo são dois interlocutores
que põem cruelmente à prova a fé de Job) do que no seu desfecho.
Longe de fornecer explicações aos sofrimentos imerecidos de Job,
a aparição final de Deus resume-se afinal a uma pura fanfarrona­
da, a uma cena de horror com alguns elementos de farsa. Aí, Deus
recorre a um puro argumento de autoridade fundado numa impres­
sionante demonstração de força: «Viste tudo o que sou capaz de fa­
zer? Serás capaz do mesmo? Quem és tu para ousares queixar-te?»
Portanto, não estamos nem perante um Deus bom que faz saber a
Job que os seus sofrimentos são apenas uma prova destinada a tes­
tar a sua fé, nem perante um Deus obscuro para lá da Lei, um Deus
puramente caprichoso, mas antes perante um Deus que age como
alguém surpreendido num momento de impotência, ou, pelo me­
nos, num momento de fraqueza, e que procura sair de uma situa­
ção delicada por meio de fanfarronadas. O que obtemos no fim é
uma espécie de filme de terror americano, barato, com muitos efei­
tos especiais — não admira que muitos comentadores tendam a
considerar a história de Job como um resto da precedente mitolo­
gia pagã, que devia ter sido excluída da Bíblia.
Contra esta tentação, devemos definir precisamente a verda­
deira grandeza de Job: contrariamente ao que se costuma dizer,
154 Slavoj Zizek

Job não é uma vítima paciente, que suporta as suas provas com
uma fé inabalável em Deus. Pelo contrário, ele não pára de se
queixar e recusa o seu destino (como Édipo em Colono, também
interpretado, erradamente, como uma vítima pacientemente re­
signada ao seu destino). Quando Job recebe a visita dos seus três
amigos teólogos, a linha de argumentação deles é a clássica so­
fistica ideológica (se sofres, deves, por definição, ter feito qual­
quer coisa de mal, pois Deus é justo). Contudo, a sua argumen­
tação não se limita a afirmar que Job deve ser culpado, de uma
ou outra maneira; o que está mais radicalmente em jogo é o sen­
tido (ou a falta de sentido) dos sofrimentos de Job. Como Édipo
em Colono, Job insiste que os seus sofrimentos são completa­
mente desprovidos de sentido; por isso, Job «sustenta a sua inte­
gridade e inocência» (título do capítulo 27)2. Deste ponto de vis­
ta, o Livro de Job talvez seja o primeiro caso exemplar da crítica
da ideologia na história da humanidade: ele põe a nu as estraté­
gias discursivas básicas da legitimação do sofrimento. A digni­
dade propriamente ética de Job está na maneira como ele rejeita
sistematicamente a ideia de que o seu sofrimento possa ter algum
sentido — quer se trate de um castigo pelos seus pecados passa­
dos, quer se trate de um teste à sua fé — contra os três teólogos
que lhe propõem todo o tipo de sentidos possíveis. De modo sur­
preendente, Deus acaba por lhe dar razão ao afirmar que tudo o
que Job diz é verdadeiro, ao passo que os três teólogos só disse­
ram mentiras3.

É a propósito da afirmação desta falta de sentido do sofrimen­


to de Job que é preciso insistir no paralelo entre Job e Cristo, no
facto de o sofrimento de Job anunciar o caminho da Cruz: o so­
frimento de Cristo também é desprovido de sentido, não é um ac­
to de troca cheio de significado. A diferença, claro, é que, no ca­
so de Cristo, a distância que separa o desesperado que sofre (Job)
de Deus é transposta para o próprio Deus: essa distância toma-se
a cisão radical de Deus, ou melhor, o seu auto-abandono. Isto
significa que é preciso arriscar uma leitura muito mais radical do
que a leitura tradicional da frase pronunciada por Cristo, «Pai,
A Marioneta e o Anão 155

porque me abandonaste?»: visto que não se trata aqui da distân­


cia entre o homem e Deus, mas da cisão interna ao próprio Deus,
a solução não pode ser, para Deus, a de (re)aparecer em toda a
sua majestade, revelando a Cristo o sentido profundo do seu so­
frimento (ele é o Inocente sacrificado para redimir a humanida­
de). As palavras de Cristo, «Pai, porque me abandonaste?», não
são uma queixa dirigida a Deus, o Pai, todo-poderoso e capri­
choso, de vias incompreensíveis para nós, pobres mortais, mas
uma queixa que deixa adivinhar a impotência de Deus. É a quei­
xa da criança que, depois de ter acreditado no poder absoluto do
pai, descobre, horrorizada, que o pai não pode ajudá-la. (Para
evocar um exemplo da história recente: no momento da crucifi­
cação de Cristo, Deus, o Pai, encontra-se numa posição de certo
modo semelhante à dos pais bosnios obrigados a assistir à viola­
ção das filhas e a suportar o supremo traumatismo do seu olhar
cheio de recriminação e compaixão: «Pai, porque me abando­
naste?» Em suma, com este «Pai, porque me abandonaste?», é
Deus, o Pai, quem morre efectivamente, revelando a sua total im­
potência, após o que ressuscita sob a forma do Espírito Santo.)
Porque é que Job se manteve calado depois dos aparecimentos
ridículos de Deus? Essa fanfarronada ridícula, essa sucessão de
perguntas retóricas — «Quem é este que escurece o conselho,
com palavras sem conhecimento? (...) Onde estavas tu, quando
eu fundava a terra? Faz-mo saber, se tens inteligência» (Job, 38:
2-4) —, não serão o modo de aparição do seu oposto, a quem po­
deríamos dizer simplesmente: «Muito bem, então se podes fazer
isso tudo, porque me deixaste sofrer de maneira tão absurda?»
As palavras tonitruantes de Deus não tomarão particularmente
sensível o seu silêncio, a sua ausência de resposta? E se fosse is­
so que Job percebeu e o levou a ficar calado? Se ele guardou o
silêncio, não foi por estar paralisado pela presença esmagadora
de Deus, nem por querer manifestar desse modo a sua resistên­
cia, ou seja, pelo facto de Deus ter evitado responder à sua per­
gunta, mas porque, num gesto de solidariedade silenciosa,
apreendeu a impotência divina. Deus não é justo nem injusto, é
simplesmente impotente. O que Job compreendeu subitamente
156 Slavoj Zizek

foi que, nas suas calamidades, não era ele, mas o próprio Deus
que estava a ser efectivamente posto à prova, e que essa prova se
saldara por um fracasso lamentável. Somos até tentados a arris­
car uma leitura radicalmente anacrónica: Job previu o sofrimen­
to por vir de Deus — «hoje é a minha vez, mas amanhã será a
vez do teu próprio filho e não haverá ninguém para intervir por
ele. Aquilo que vês hoje em mim é a prefiguração da tua própria
paixão!»4.
Dado que a função de suplemento obsceno do superego da Lei
(divina) consiste em mascarar esta impotência do grande Outro,
e dado que o cristianismo revela essa impotência, ele é, muito
consequentemente, a primeira (e única) religião a abandonar ra­
dicalmente o corte entre o texto público/oficial e o seu suple­
mento iniciático obsceno: no cristianismo não há história não di­
ta, história escondida. Neste sentido, o cristianismo é a religião
da Revelação: nele, tudo é revelado, a sua mensagem pública não
é acompanhada por nenhum suplemento obsceno do superego.
Nas religiões gregas e romanas da Antiguidade, o texto público
era sempre completado por ritos iniciáticos secretos e festas or-
gíacas; por outro lado, todas as tentativas para tratar o cristianis­
mo da mesma maneira (para descobrir o «ensinamento secreto do
Cristo» codificado algures no Novo Testamento ou exposto nos
evangelhos apócrifos) acabam por reinscrevê-lo, de modo heré­
tico, na tradição gnóstica pagã.
A propósito do cristianismo como «religião revelada», temos
portanto de colocar a inevitável questão idiota: o que é efectiva­
mente revelado nele? Não desvelam todas as religiões um misté­
rio, através dos profetas que transmitem a mensagem divina aos
homens? Mesmo os que sublinham o carácter impenetrável do
deus obscuro, dão a entender que existe um segredo que resiste à
revelação e, para os gnósticos, esse mistério é revelado a alguns
eleitos durante uma cerimônia iniciática. Não deixa de ser signi­
ficativo que as reinscrições gnósticas do cristianismo insistam
precisamente na presença de uma mensagem escondida deste ti­
po, a ser decifrada no texto oficial cristão. Portanto, o que é re­
velado no cristianismo não é só todo o conteúdo, mas, mais pre-
A Marioneta e o Anão 157

cisamente, o facto de não haver nada, nenhum segredo a revelar


para lá do seu conteúdo. Para parafrasear a famosa fórmula de
A Fenomenología do Espirito, de Hegel, atrás da cortina do tex­
to público, só há o que lá pusermos. Ou, para dizer as coisas de
uma maneira ainda mais precisa, em termos mais patéticos: o que
Deus revela não é o seu poder escondido, mas simplesmente a
sua impotencia como tal.
Qual é então a posição do judaismo relativamente a esta opo­
sição? O aparecimento final de Deus na historia de Job, em que
se vangloria dos milagres e dos monstros que engendrou, não se­
rá precisamente um fantasmático espectáculo obsceno desse tipo,
destinado a dissimular a sua impotência? No entanto, aqui as coi­
sas são mais complexas. Na sua análise da figura freudiana de
M oisés, Eric Santner introduz uma distinção-chave entre a histo­
ria simbólica (o conjunto das narrativas míticas explícitas e das
prescrições ético-ideológicas que constituem a tradição de uma
comunidade, aquilo que Hegel teria chamado a sua «substância
ética») e o seu Outro obsceno, a historia secreta fantasmática,
não reconhecida, «espectral», historia secreta que sustém efecti­
vamente a tradição simbólica explícita, mas que de ve permane­
cer fechada para poder funcionar5. A reconstituição tentada por
Freud no seu livro sobre Moisés (a historia do assassínio de Moi­
sés, etc.) é uma historia espectral deste tipo, que assombra o es­
paço da tradição religiosa judaica. Tomamo-nos membros por in­
teiro de uma comunidade não quando nos identificamos com a
sua tradição simbólica explícita, mas só quando assumimos tam­
bém a dimensão espectral que apoia essa tradição, os fantasmas
não mortos que assombram os vivos, a história secreta dos fan­
tasmas traumáticos transmitidos «entrelinhas», através das ca­
rências e das deformações da tradição simbólica explícita — co­
mo diz Fernando Pessoa: «Todos os m ortos estão ainda
provavelmente vivos algures.» A ligação obstinada do judaísmo
a um acto fundador violento, não reconhecido, que assombra a
ordem pública jurídica como seu complemento espectral, permi­
tiu aos judeus persistirem e sobreviverem milhares de anos sem
terra e sem tradição institucional comum: eles recusaram aban­
158 Slavoj Zizek

donar o seu fantasma, cortar o laço que os ligava ao seu segredo,


à sua tradição negada. O paradoxo do judaísmo é que ele man­
tém a sua fidelidade ao evento violento fundador, precisamente
não o reconhecendo, não o simbolizando: esse estatuto «reprimi­
do» do Evento é o que dá ao judaísmo a sua vitalidade sem pre­
cedentes.
Contudo, significará isso que a cisão entre os textos «oficiais»
da Lei, com o seu juridismo abstracto assexuado (a Tora — o An­
tigo Testamento, a Mishná — a formulação das Leis, e o Talmu-
de — o comentário das Leis — todos supostos fazerem parte da
revelação divina no monte Sinai), e a Cabala (esse conjunto de
visões obscuras profundamente sexualizadas, destinadas a per­
manecer secretas — lembremos as célebres passagens sobre os
mucos vaginais), reproduz no interior do judaísmo a tensão entre
a Lei simbólica pura e o seu suplemento do superego, o conheci­
mento iniciático secreto? Aqui, temos de introduzir uma distin­
ção essencial entre a fidelidade judaica aos fantasmas negados e
a obscena sabedoria iniciática pagã que acompanha o ritual pú­
blico: a negada narrativa espectral judia não conta a história obs­
cena do impenetrável poder absoluto de Deus, mas o seu oposto:
a história da sua impotência, escondida pelos clássicos suple­
mentos obscenos pagãos. O segredo a que os judeus permanecem
fiéis é o horror da impotência divina — e é esse segredo que o
cristianismo «revela». Por isso, o cristianismo só pôde aparecer
depois do judaísmo: ele revela o horror com que os judeus foram
os primeiros a ser confrontados. Portanto, só ao levar em consi­
deração esta linha de demarcação entre paganismo e judaísmo é
que podemos apreender convenientemente o próprio avanço do
cristianismo.
Isto significa que, ao forçar-nos a enfrentar o abismo do dese­
jo do Outro (sob a forma do Deus impenetrável), ao recusar co­
brir esse abismo com um cenário fantasmático determinado (ar­
ticulado no mito iniciático obsceno), o judaísmo coloca-nos pela
primeira vez face ao paradoxo da liberdade humana. Não há li­
berdade fora do encontro traumático com a opacidade do desejo
do Outro: a liberdade não significa que me desembaraço sim­
A Marioneta e o Anão 159

plesmente do desejo do Outro — de certo modo, estou imerso na


minha liberdade quando enfrento essa opacidade como tal, pri­
vada da cobertura fantasmática que me diz aquilo que o Outro
quer de mim. Nessa situação difícil, angustiante, em que eu sei
que o Outro quer qualquer coisa de mim sem que eu saiba o quê,
sou remetido para mim mesmo, obrigado a assumir o risco de de­
terminar livremente as coordenadas do meu desejo.
Segundo Franz Rosenzweig, a diferença entre os crentes ju­
deus e cristãos não é o facto de estes últimos não conhecerem a
angústia, mas de o foco da angústia ser deslocado: os cristãos vi­
vem a sua angústia na intimidade do seu contacto com Deus (co­
mo Abraão?), enquanto, no caso dos judeus, a angústia surge ao
nível da sua entidade colectiva, sem terra própria, ameaçada na
sua existência6. Aqui, talvez devamos estabelecer uma ligação
com o ponto fraco de Ser e Tempo, de Heidegger (a passagem
«ilegítima» do ser-para-a-morte individual e do facto de assumir
o seu destino contingente individual para a historicidade de uma
colectividade): só no caso do povo judeu é que essa passagem do
nível individual ao colectivo terá sido «legitimada».
Em que aspecto a comunidade cristã difere então da judia?
Paulo concebe a comunidade cristã como a nova encarnação do
povo eleito: os cristãos são os verdadeiros «filhos de Abraão».
O que, na sua primeira encarnação, era um grupo étnico distinto
é agora uma comunidade de crentes que suspende todas as divi­
sões étnicas (ou melhor, que faz passar uma linha de separação
pelo interior de cada grupo étnico) — o povo eleito é formado
por todos os que têm fé em Cristo. Temos assim uma espécie de
«transubstanciação» do povo eleito: Deus cumpriu a promessa
de redenção do povo judeu, mas, no próprio curso desse proces­
so, mudou a identidade do povo eleito7. 0 interesse teórico (e po­
lítico) desta noção de comunidade é o de nos fornecer o primeiro
exemplo de uma comunidade que não foi formada e mantida coe­
sa pelo mecanismo descrito por Freud em Totem e Tabu e em
Moisés e o Monoteísmo (a culpa partilhada do parricídio). O par­
tido revolucionário e a sociedade de psicanálise não serão novas
versões de uma colectividade desse género? O «Espírito Santo»
160 Slavoj Zizek

designa uma nova colectividade unida não por um Significante-


-Mestre, mas pela fidelidade a uma Causa, pelo esforço para tra­
çar uma nova linha de separação que vá «para lá do bem e do
mal», ou seja, que atravesse e suspenda as distinções do corpo so­
cial existente. Deste modo, a dimensão-chave do gesto de Paulo
é a sua ruptura com qualquer forma de comunitarismo: o seu uni­
verso já não é o de uma multiplicidade de grupos que desejam
«encontrar a sua via» e afirmar a sua identidade particular, o seu
«modo de vida», mas o de uma colectividade combatente enrai­
zada na referência a um universalismo incondicional.
Qual é então a relação entre a subtracção judia e a subtracção
cristã? Não haverá um género de subtracção inscrita na própria
identidade judaica? Não será por isso que os nazis quiseram ma­
tar todos os judeus: porque, entre todas as nações, os judeus são
«a parte que não é uma parte», uma nação que não é como as ou­
tras, mas um resto, aquilo que não ocupa um lugar particular na
«ordem das nações»? Aí reside, evidentemente, o problema es­
trutural do estado de Israel: será possível formar com esse resto
um Estado como os outros? Franz Rosenzweig já precisava esse
ponto:

O judaísmo, e só ele em todo o mundo, mantém-se por sub­


tracção, por contracção, pela formação constante de novos restos.
(...) No judaísmo, o homem é sempre, de um ou outro modo, um
sobrevivente, um interior cujo exterior foi apreendido pela cor­
rente do mundo e por ela levado, ao passo que ele próprio, ou se­
ja, o que resta dele, permanece na margem. Nele há algo que per­
manece na espera8.

Assim, os judeus são um resto, num duplo sentido: não só em


relação a uma outra série de nações «normais», mas, sobretudo,
em relação a eles próprios, um resto neles próprios e em relação
a eles próprios — o que resta e persiste depois de todas as per­
seguições e aniquilamentos. Há uma estreita correlação entre es­
tas duas dimensões: se os judeus tivessem de ser um resto no pri­
meiro sentido (exterior), teriam formado apenas mais um grupo
A Marioneta e o Anão 161

étnico auto-autêntico, entre tantos outros; portanto, quando con­


cebemos os judeus como um resto, é preciso definir com preci­
são o seguinte ponto: são um resto em relação a quê? Eles são um
resto de eles próprios, evidentemente, mas também da humani­
dade como tal, na medida em que ela foi abandonada por Deus.
E como tal, como «fora do lugar», que eles ocupam o lugar da
humanidade universal como tal. É só neste pano de fundo que
podemos compreender verdadeiramente a transubstanciação
paulina do Povo Eleito (que não é só um grupo étnico particular
— os judeus —, mas também o conjunto dos que se reconhecem
em Cristo, independentemente da sua origem): de certo modo,
Paulo regressa à universalidade, isto é, para ele, os cristãos são o
resto da humanidade. Por outras palavras, todos nós, toda a hu­
manidade, considerada como redimida, é um resto — mas um
resto de quê?
Aqui, devemos regressar à ideia de Hegel segundo a qual o
Todo universal está dividido na sua Parte (espécie particular) e
no seu Resto. A Parte (particular, enquanto oposta ao universal)
é o elemento obsceno da existência — por exemplo, ao nível da
lei, o suplemento obsceno não escrito que apoia a existência real
da Lei universal, a Lei como potência operatória. Lembremos a
tensão entre universal e particular no uso do termo «especial»:
quando alguém diz que «temos fundos especiais», isso significa
que eles são ilegais ou, pelo menos, secretos, que não são apenas
uma secção especial dos fundos públicos; quando, numa relação
sexual, um dos parceiros pergunta ao outro: «Desejas alguma
coisa especial?», refere-se a uma prática não clássica, «perver­
sa»; quando um polícia ou um jornalista fala de meios «espe­
ciais» de interrogatório, refere-se à tortura ou a outros meios de
pressão ilegais. (Nos campos de concentração nazis, as unidades
que eram mantidas à parte, formadas para matar e cremar milha­
res de prisioneiros e desembaraçar-se dos seus corpos, não se
chamavam Sonderkommando, «unidades especiais»?) Em Cuba,
o período difícil que se seguiu à desintegração dos regimes co­
munistas da Europa Oriental também foi qualificado de «espe­
cial».
162 Slavoj Zizek

Na mesma ordem de ideias, temos de prestar homenagem ao


génio de Walter Benjamín, que brilha no próprio título do seu en­
saio de juventude, «Sobre a linguagem em geral e a linguagem
humana em particular». Aqui, a questão não é o facto de a lin­
guagem humana ser uma espécie de linguagem universal «como
tal», que compreende também outras espécies (a linguagem dos
deuses e dos anjos?, a linguagem animal?, a linguagem de outros
seres inteligentes vivendo no espaço?, a linguagem informática?,
a linguagem do ADN?): actualmente, não existe outra linguagem
para lá da humana — mas que, para compreender essa linguagem
«particular», é necessário introduzir uma diferença minimal,
concebendo-a em relação à distância que a separa da linguagem
«como tal» (a estrutura pura da linguagem, privada da insígnia
da finitude humana, das paixões eróticas e da mortalidade, das
lutas pela dominação e da obscenidade do poder). Assim, a lin­
guagem particular é a «linguagem realmente existente», a lin­
guagem como série dos enunciados realmente produzidos, em
contraste com a estrutura linguística formal. Foi esta lição de
Benjamín que Habermas falhou: ele faz precisamente o que não
devia ser feito — considerou directamente a «linguagem em ge­
ral» ideal (o universal pragmático) como a norma da linguagem
que existe realmente. Por conseguinte, na mesma ordem de
ideias que o título do artigo de Benjamín, devíamos descrever a
constelação fundamental da lei social como a de «a Lei em geral
e a da sua faceta obscena do superego em particular»... Assim, a
«Parte» como tal é o aspecto não redimido e não redimível, «pe­
cador», do Universal. Para utilizar termos políticos actuais, toda
a política fundada na referência a uma particularidade substan­
cial (étnica, religiosa, sexual, modo de vida...) é, por definição,
reaccionária. Consequentemente, a divisão introduzida e apoiada
pela luta («de classes») emancipadora não é a divisão entre duas
classes particulares do Todo, mas a luta entre o Todo-nas-suas-
-partes e o seu Resto que, no interior das Particularidades, repre­
senta o Universal, o Todo «como tal», oposto às suas partes.
Ou, para dizer as coisas ainda de outra maneira, devemos ter
sempre presente no espírito os dois aspectos do conceito de res-
A Marioneta e o Anão 163

to: o resto como aquilo que resta depois da subtracção de todo


o conteúdo particular (elementos, partes específicas do todo) e o
resto como resultado último da divisão do Todo nas suas partes,
quando, na última operação de uma divisão, já não obtemos duas
partes particulares ou dois elementos, duas coisas quaisquer, mas
uma coisa qualquer (o Resto) e um Nada. Neste sentido preciso,
deveríamos dizer que, na perspectiva da Redenção (do «Juízo Fi­
nal»), a parte não redimida é irrevogavelmente perdida, atirada
para o nada — o que resta é precisamente apenas o próprio Res­
to. Talvez seja assim que devemos ler o moto de A Internacional,
o hino da revolução proletária: «Não somos nada, sejamos o To­
do.» Devemos lê-lo na perspectiva da Redenção: aquilo que, no
quadro da ordem estabelecida, conta como nada, o resto dessa
ordem, a sua parte sem parte, tornar-se-á o T odo...
Aqui, a homologia estrutural entre o antigo tempo messiânico
judaico ou paulino e a lógica do processo revolucionário é essen­
cial: «Sem esta antecipação [da «finalidade» no instante que vem]
e a pressão interior para a realizar, sem “o desejo de fazer chegar
o Messias antes do seu tempo” e a tentação para “forçar a efecti­
vação do Reino dos céus” , o futuro não é futuro, mas simples­
mente um passado infinitamente esticado e projectado para a fren­
te»9. Não corresponderão perfeitamente estas palavras à análise
de Rosa Luxemburgo sobre a ilusão necessária à acção revolucio­
nária? Contra os revisionistas, ela mostra bem que, se esperarmos
pelo «momento oportuno» para desencadear uma revolução, esse
momento nunca chegará — é preciso arriscar e ousar tentativas re­
volucionárias, pois só através de uma sucessão de tentativas «pre­
maturas» (e, portanto, de fracassos) é que se encontram reunidas
as condições (subjectivas) para criar o «momento oportuno»10.
Agamben afirma que Paulo só se tornou legível no século xx,
através do «marxismo messiânico» de W alter Benjamin: a chave
para a abordagem da emergência do «fim dos tempos» paulino é
fornecida pelo estado de emergência revolucionário que deve ser
rigorosamente oposto ao actual estado de emergência liberal-
-totalitário da «guerra contra o terror»: quando uma instituição
estatal proclama o estado de emergência, ele inscreve-se, por de­
164 Slavoj Zizek

finição, no quadro de uma estratégia desesperada para evitar a


verdadeira emergência e regressar ao «estado normal das coi­
sas». Lembremos um traço característico de todas as proclama­
ções reaccionárias do «estado de emergência»: elas são sempre
dirigidas contra a agitação popular (a «balbúrdia») e são sempre
apresentadas como uma decisão para restabelecer a normalidade.
Na Argentina, no Brasil, na Grécia, no Chile, na Turquia, os mi­
litares proclamaram sempre o estado de emergência para pôr ter­
mo ao «caos» provocado por uma politização excessiva: «Esta
loucura tem de acabar! As pessoas têm de voltar ao trabalho, o
trabalho tem de continuar!»
Num certo sentido, podemos efectivamente dizer que nos
aproximamos hoje de uma espécie de «fim dos tempos»: a espi­
ral explosiva do capitalismo global parece encaminhar-se para
um momento de colapso (social, ecológico e até subjectivo) em
que o grande dinamismo total, a actividade frenética, coincidirá
com um profundo imobilismo. A história será abolida no eterno
presente dos múltiplos processos de construção narrativa; a na­
tureza será abolida quando se tom ar transparente à manipulação
biogenética; a transgressão permanente da norma afirmar-se-á,
ela própria, como a norma incondicional... Contudo, a pergunta
«Em que momento o tempo corrente é apanhado no movimento
messiânico?» é uma falsa pergunta: não é possível deduzir a
emergência do tempo messiânico a partir de uma «análise objec­
tiva do processo histórico». O «tempo messiânico» representa
fundamentalmente a intrusão de uma subjectividade irredutível
ao processo histórico «objectivo», o que significa que as coisas
podem, em qualquer momento, tomar um contorno messiânico
— o tempo pode «adensar-se».
O tempo do Evento não é um outro tempo para lá e acima do
tempo histórico «normal», mas uma espécie de laço interior den­
tro desse tempo. Pensemos numa das situações correntes relata­
das nas viagens através do tempo: o herói regressa ao passado pa­
ra nele intervir, modificando portanto o presente; mas então
descobre que a emergência do presente que ele queria modificar
foi causada precisamente pela sua intervenção — a sua viagem
A Marioneta e o Anão 165

no tempo já estava incluída no curso das coisas. O que temos


aqui, nesta clausura radical, é não só um determinismo completo,
mas também uma espécie de determinismo absoluto que inclui
antecipadamente os nossos actos decididos livremente. Quando
observamos o processo de longe, ele parece desenrolar-se em li­
nha recta; porém, o que perdemos de vista são os laços subjecti­
vos interiores que sustêm essa linha recta «objectiva». Por isso, a
pergunta «Em que circunstâncias aparece o tempo condensado do
Evento?» é uma falsa pergunta, pois ela implica a reinscrição do
Evento no processo histórico positivo. Isto significa que não po­
demos estabelecer o tempo da explosão do Evento através de
uma apertada análise histórica «objectiva» (do tipo «As coisas
explodirão quando as contradições objectivas atingirem um de­
terminado nível»): não há Evento fora da decisão subjectiva do
envolvimento que o cria — se esperarmos que a situação se tor­
ne madura para o Evento, este nunca virá. Lembremo-nos da Re­
volução de Outubro: o momento em que a sua autêntica urgência
revolucionária se esgotou foi precisamente aquele em que se im­
pôs, na discussão teórica, a questão das diferentes etapas do so­
cialismo, da transição de uma etapa inferior para uma superior.
Nesse momento, o tempo revolucionário foi reinscrito no tempo
histórico linear «objectivo», com as suas diferentes fases e com
as suas transições de uma fase para outra. Em contraste, a autên­
tica revolução realiza-se sempre num Presente absoluto, na ur­
gência incondicional de um Agora.
É neste sentido preciso que, numa autêntica revolução, a pre­
destinação e a responsabilidade radical se recortam: o trabalho
mais difícil espera-nos no dia seguinte, passado o momento da
explosão e do entusiasmo revolucionários, quando somos con­
frontados com a tarefa de traduzir essa explosão numa nova Or­
dem das Coisas, de tirar as suas consequências, de lhe permane­
cermos fiel. Por outras palavras, o trabalho verdadeiramente
difícil não é o da preparação silenciosa, o da criação das condi­
ções para o Evento da explosão revolucionária; o trabalho sério
começa depois do Evento, quando temos a certeza de que ele já
aconteceu11.
166 Slavoj Zizek

Relativamente ao Evento, a passagem do judaísmo ao cristia­


nismo está mais bem exemplificada quando encaramos o estatu­
to do Messias: em contraste com a atitude dos judeus, que se en­
contram na espera messiânica, os cristãos consideram que o
Messias tão aguardado já chegou, ou seja: já estamos redimidos.
O tempo das esperas angustiadas, em que os homens podiam
precipitar-se para a ansiada Chegada já acabou, vivemos nos tem­
pos que se seguiram ao Evento, tudo — a Grande Coisa — já
aconteceu12. De forma paradoxal, evidentemente, o resultado
desse Evento não é o atavismo («já aconteceu, estamos redimi­
dos, portanto descansemos e esperem os...»), mas, pelo contrá­
rio, o sentimento de uma extrema urgência: já aconteceu, portan­
to temos de carregar um fardo quase insuportável e mostrar-nos
à sua altura, tirando as consequências desse A cto... «O homem
propõe, Deus dispõe» — o homem está constantemente activo,
intervém, mas é o acto divino que decide do desfecho. Com o
cristianismo, sucede o inverso: não se trata de «Deus propõe, o
homem dispõe», mas da ordem inversa: «Deus/o primeiro/dis­
põe Je depois/o homem propõe.» É a espera pela chegada do
Messias que nos obriga a adoptar uma posição passiva, ao passo
que a chegada do Messias funciona como um sinal despoletador
de actividade.
Isto significa que a lógica habitual da «astúcia da razão» (agi­
mos, intervimos, mas nunca podemos ter a certeza do verdadei­
ro sentido e do resultado final dos nossos actos, visto que quem
decide é o grande Outro descentrado, a Ordem substancial sim­
bólica) é também estranhamente contornada. Para dizer as coisas
em termos lacanianos, neste caso o grande Outro é a humanida­
de e não os deuses. O próprio Deus fez uma aposta pascaliana:
ao morrer na cruz, realizou um gesto arriscado sem garantia
quanto ao resultado final, ou seja, forneceu-nos, a nós, homens,
o SI vazio, o Significante-Mestre, e é a humanidade que deve
completá-lo com a cadeia dos S2. Longe de pôr o último ponto
nos «is», o acto divino representa antes a abertura para um Novo
Começo: cabe à humanidade mostrar-se à altura, decidir do seu
significado, fazer qualquer coisa dele. Podemos estabelecer um
A Marioneta e o Anão 167

paralelo com a Predestinação, que nos condena a uma actividade


frenética: o Evento é um signo puro-vazio cujo sentido deve ser
criado pelo nosso trabalho. A fórmula «O Messias chegou» mos-
tra que a Revelação é um risco tremendo: «Revelação» significa
que Deus se arriscou a pôr tudo em jogo, se «comprometeu com­
pletamente existencialmente», entrando de certo modo no seu
próprio quadro ao tomar-se ele próprio uma parte da criação, ao
expor-se à contingência da existência. Aqui, somos quase tenta­
dos a referir-nos à oposição hegeliano-marxista entre ultrapassa­
gem formal e real: através do Evento (a chegada de Cristo), so­
mos formalmente redimidos, subsumidos sob a Redenção, e
temos de nos envolver no trabalho difícil que consiste em
actualizá-la. A verdadeira Abertura não é a da «indecibilidade»,
mas a de viver o que se segue ao Evento, tirar as consequências
— mas as consequências de quê? Do novo espaço aberto, preci­
samente, pelo Evento.
Em termos teológicos, isso significa que nós, homens, não po­
demos repousar-nos contando com a ajuda de Deus: pelo contrá­
rio, somos nós que devemos ajudar a Deus. Hans Jonas desen­
volveu esta ideia a propósito do diário de Etty Hillesum, uma
jovem judia que, em 1942, partiu voluntariamente para um cam­
po de concentração a fim de poder ajudar os outros e partilhar o
destino do seu povo: «Só há uma coisa que se tom a cada vez
mais clara para mim: não podes ajudar-nos, nós é que temos de
te ajudar e, ao ajudar-te, ajudamo-nos a nós mesmos. (...) Não te
peço contas nenhumas; tu é que nos pedirás contas mais tar­
de»13. Jonas estabelece uma ligação entre esta posição e a ideia
radical de que Deus não é todo-poderoso — a única maneira, se­
gundo ele, de explicar como Deus pode permitir ocorrências co­
mo a de Auschwitz. A própria ideia de Criação implica a ideia da
autocontracção de Deus: primeiro, Deus tem de se retirar para
dentro de si mesmo, limitar a sua omnipresença, a fim de criar o
Nada a partir do qual criou então o Universo. Ao criá-lo, deixou-
-o livre, deixou-o seguir o seu curso, e renunciou ao seu poder de
intervenção: essa autolimitação equivale a um verdadeiro acto de
criação. Deste modo, perante horrores como o de Auschwitz,
168 Slavoj Zizek

Deus é um observador trágico impotente: para ele, a única inter­


venção possível na história era, precisamente, «cair nela», apare­
cer nela sob a forma do Filho.
Esta queda pela qual Deus perde o seu distanciamento, se en­
volve e se insere na série humana, é discemível numa história que
circulava outrora na República Democrática Alemã: Richard Ni-
xon, Leonid Brejnev e Erich Honecker encontram-se todos pe­
rante Deus e fazem-lhe perguntas acerca do futuro dos seus res­
pectivos países. Deus diz a Nixon que os Estados Unidos serão
comunistas em 2000. Nixon desvia a cabeça e começa a chorar.
Deus diz a Brejnev que a URSS será controlada pelos Chineses
em 2000: Brejnev desvia a cabeça e começa a chorar. Por fim,
chega a vez de Erich Honecker, que pergunta a Deus: «E o que
acontecerá na minha bem-amada RDA?» Desta vez, porém, é
Deus quem desvia a cabeça e começa a chorar... Existe outra ver­
são da mesma história: três russos detidos na mesma cela da pri­
são de Lubianka foram condenados por crimes políticos. Quando
começam a conhecer-se, o primeiro diz: «Fui condenado a cinco
anos de prisão porque me opus ao Popov.» O segundo diz: «Nes­
se caso, a linha do Partido mudou, porque fui condenado a uma
pena de dez anos por ter apoiado o Popov.» Por fim, o terceiro pri­
sioneiro declara: «Quanto a mim, fui condenado à prisão perpé­
tua: sou o Popov.» (Será necessário precisar que existiu um ver­
dadeiro Popov, um búlgaro responsável do Kom intern,
colaborador próximo de Georgi Dimitrov e que desapareceu nas
purgas dos finais dos anos 30?) Não poderíamos utilizar estas pia­
das como um modelo para nos permitir compreender os sofri­
mentos de Cristo? «Fui lançado aos leões na arena por causa da
minha fé em Cristo!» «Fui queimado numa fogueira por ter zom­
bado de Cristo!» «Quanto a mim, morri na cruz: sou o Cristo!»
Talvez seja esse momento em que Deus se põe ao lado dos ho­
mens, essa inversão final pela qual a Excepção fundadora (Deus)
cai, de certo modo, na sua própria criação e se integra na série das
criaturas comuns, que confere ao cristianismo aquilo que ele tem
de único: o mistério da encarnação, o mistério de Deus que não só
aparece como um homem, mas se toma também um homem.
A Marioneta e o Anão 169

Isto levar-nos-á a separar radicalmente o lema cristão «Ama o


teu próximo» do tópico levinassiano do Outro como próximo im­
penetrável? Na medida em que o Outro supremo é o próprio
Deus, devemos arriscar dizer que a performance histórica do
cristianismo é a recondução da Alteridade à Identidade: o pró­
prio Deus é um homem, «um de nós». Se, como sublinha Hegel,
o que morre na cruz é o próprio Deus do Além, o Outro radical,
nesse caso a identificação com Cristo («a vida em Cristo») sig­
nifica, precisamente, a suspensão da Alteridade. O que emerge
nesse lugar é o Espírito Santo, que não é o Outro, mas a comu­
nidade (ou melhor, o colectivo) dos crentes: o «próximo» é um
membro do nosso colectivo. O supremo horizonte do cristianis­
mo não é portanto o do respeito pelo próximo, pelo abismo da
sua impenetrável Alteridade; é possível ir mais longe — não pa­
ra ir directamente ao fundo do Outro, para fazer a experiência do
Outro tal como ele é «em si», mas para nos apercebermos de que
não há mistério atrás da máscara (a superfície enganadora) do
Outro. A idolatria suprema não é a divinização da máscara, da
própria imagem, mas a crença de que existe um conteúdo positi­
vo escondido atrás da m áscara14.
E aqui, nenhuma «desconstrução» nos pode ajudar: a forma
suprema de idolatria é a purificação desconstrutiva desse Outro,
de modo que tudo o que resta do Outro é o seu lugar, a forma pu­
ra da Alteridade como Promessa messiânica. E aqui que depara­
mos com os limites da desconstrução: como se tornou claro para
o próprio Derrida nas duas últimas décadas, a desconstrução
mais radical — aquela que tem de assentar ainda mais na sua ine­
rente condição, ou seja, naquilo que não pode ser desconstruído
na própria desconstrução — é a promessa messiânica de Justiça.
Esta promessa é o verdadeiro objecto derridiano da crença, e o
supremo axioma ético de Derrida é a irredutibilidade desta cren­
ça, a sua «impossível desconstrução». Derrida pode então propor
todo o tipo de paradoxos, dizendo, entre outras coisas, que só os
ateus rezam verdadeiramente — precisamente porque se recu­
sam a dirigir-se a Deus como entidade positiva, dirigem-se, si­
lenciosamente, à pura Alteridade m essiânica... É aqui que deve-
170 Slavoj Zizek

mos sublinhar a distância que separa Derrida da tradição hege-


liana:

Seria demasiado fácil mostrar que, comparativamente ao fra­


casso do estabelecimento da democracia liberal, a distância entre
facto e essência ideal aparece não só nas chamadas formas primi­
tivas de governo, teocracia e ditadura militar, como esse fracasso
e essa distância também caracterizam, a priori e por definição, to­
das as democracias, incluindo as mais antigas e estáveis das cha­
madas democracias ocidentais. O que está aqui em jogo é o pró­
prio conceito de democracia como conceito de uma promessa que
só pode surgir num tal diastema (fracasso, inadequação, disjun­
ção, desajustamento, «exterior da junção»). Por isso, falamos
sempre de uma democracia por vir; e não de uma futura demo­
cracia no futuro do presente, e nem sequer de uma ideia regula­
dora, no sentido kantiano, ou de uma utopia — pelo menos, des­
de que a sua inacessibilidade mantivesse ainda a forma temporal
de um futuro do presente, de uma futura modalidade de um pre­
sente V ÍV O 1 5 .

Aqui encontramos a diferença entre Hegel e o mais puro Der­


rida: este aceita a lição hegeliana fundamental segundo a qual
não podemos afirmar o ideal inocente contra a sua realização dis­
torcida. Isto aplica-se não só à democracia, mas também à reli­
gião — a distância que separa o conceito ideal da sua actualiza­
ção já está compreendida no próprio conceito: tal como Derrida
diz que «Deus já se contradiz a si próprio», qualquer determina­
ção conceptual positiva do divino como pura promessa messiâ­
nica já a trai, também podemos dizer que a «democracia já se
contradiz a si própria». Foi também neste pano de fundo que
Derrida elaborou a implicação mútua entre religião e mal radical:
o mal radical (politicamente, o totalitarismo) surge quando a fé
religiosa ou a razão (a própria democracia) é dada no modo do
futuro do presente. Contudo, contra Hegel, Derrida insiste no
facto de o irredutível excesso no conceito ideal não poder ser re­
duzido à dialéctica entre o ideal e a sua actualização — a estru-
A Marioneta e o Anão 171

tura messiânica do «por vir», o excesso de um abismo que nem


sequer pode ser actualizado no seu conteúdo determinado. Aqui,
a posição de Hegel é mais intricada do que parece: ele não nos
diz que podemos assenhorear-nos da distância entre o conceito e
a sua actualização e alcançar a autotransparéncia plena do con­
ceito (o «Conhecimento Absoluto») através de uma progressão
dialéctica gradual; o que ele diz, antes, para falar em termos es­
peculativos, é que devemos afirmar uma contradição «pura» que
já não seja a contradição entre a pura Alteridade impossível de
desconstruir e as suas fracassadas actualizações e determinações,
mas a «contradição» imanente anterior a qualquer Alteridade. As
actualizações e/ou as determinações conceptuais não são «traços
da impossibilidade de desconstrução da Alteridade divina», mas
simplesmente traços que marcam o seu intermédio. Ou, por ou­
tras palavras, numa espécie de epochê fenomenológica invertida,
Derrida reduz a Alteridade ao «por vir» de uma pura potenciali­
dade, retirando-lhe completamente a sua ontologização, pondo
entre parênteses o seu conteúdo positivo, pelo que tudo o que
resta é o espectro de uma promessa. E se o passo seguinte con­
sistisse em largar este espectro minimal da própria Alteridade, de
modo que tudo o que resta é a ruptura, a distância como tal, que
impede as entidades de alcançarem a sua auto-identidade? Lem­
bremos a velha crítica que os filósofos franceses comunistas en­
dereçavam ao existencialismo sartriano: Sartre desembaraçou-se
de todo o conteúdo do sujeito burguês, guardando apenas a sua
forma pura, e o passo seguinte consiste em desembaraçar-se da
própria forma — Derrida não se terá desembaraçado também,
mutatis mutandis, de todo o conteúdo ontológico positivo do
messianismo, guardando apenas a forma pura da promessa mes­
siânica, consistindo o passo seguinte em desembaraçar-se da pró­
pria forma? E, mais uma vez, isto não será a passagem do ju ­
daísmo ao cristianismo? O judaísmo reduz a promessa de uma
Outra Vida à Alteridade pura, à promessa messiânica que nunca
se tornará completamente presente e actualizada (o Messias está
sempre «por vir»), ao passo que o cristianismo, longe de procla­
m ar a plena realização dessa promessa, realiza uma coisa muito
172 Slavoj Zizek

mais estranha: o Messias já cá está, já chegou, o Evento final já


aconteceu, e, não obstante, a distância (a distância que sustinha
a promessa messiânica) perm anece... Aqui, somos quase tenta­
dos a propor um regresso ao primeiro Derrida da différance*: e
se o percurso de Derrida para o messianismo «pós-secular» fos­
se uma consequência necessária (como Ernesto Laclau, entre ou­
tros, já tinha assinalado15) do elã inicial do seu «desconstrutivis-
mo»? E se a ideia de uma infinita justiça messiânica que opera
numa suspensão infinita, sempre por vir, como horizonte da des-
construção impossível de desconstruir, já toldasse a «pura» dif­
férance, a distância que diferencia uma entidade de si mesma?
Não será possível pensar esse puro intermédio como anterior a
qualquer noção de justiça messiânica? Derrida age como se a es­
colha fosse entre a onto-ética positiva, o gesto de transcender a
ordem existente para alcançar uma outra ordem positiva mais
elevada, e a pura promessa de uma Alteridade espectral — e se
abandonássemos contudo por completo essa referência à Alteri­
dade? O que restaria seria Espinosa — a pura positividade do Ser
— ou Lacan — a contorção minimal do impulso, o «vazio» mi-
nimal da (auto)diferença, que opera quando algo começa a fun­
cionar como substituto para ele próprio·.

O que é substituído pode aparecer também no papel do substi­


tuto, numa escala 1:1, desde que haja uma particularidade garan­
tindo que ele não será considerado como aquilo que é substituído.
Essa particularidade é fornecida pelo limiar que separa o lugar da­
quilo que está substituindo daquilo que é substituído — ou sim­
boliza o seu desprendimento. Tudo o que aparece frente ao limiar
é então assumido como um sucedâneo, tal como tudo o que resi­
de atrás dele é considerado como o que está a ser substituído.
Existem múltiplos exemplos deste tipo de encobrimentos obti­
dos não através da miniaturização, mas de uma engenhosa locali­
zação. Como Freud observou, os próprios actos proibidos pela re­

* Para analisar o conceito de différance em Derrida, aconselhamos o leitor a vi­


sitar o site: http://web.utk.edu/~misty/Derrida376.html. (N. T.)
A Marioneta e o Anão 173

ligião são praticados em nome dessa mesma religião. Nesses ca­


sos — como, por exemplo, o assassínio em nome da religião — a
religião opera também sem qualquer miniaturização. Por exem­
plo, os ardentes militantes pró-vida que se opõem actualmente ao
aborto não vão deixar de continuar a matar o pessoal clínico. Os
opositores à homossexualidade masculina da direita radical ame­
ricana agem de modo semelhante. Organizam os chamados «es­
pancamentos de homossexuais», durante as quais os sovam e, por
fim, os violam. A suprema gratificação homicida ou homossexual
dos impulsos também pode portanto ser alcançada, mas só se
preencher completamente a condição de evocar a aparência de
uma contramedida. O que parece ser então a «oposição» tem co­
mo efeito que o X a ser banido também pode surgir e ser tomado
por um não-Xl7.

O que encontramos aqui novamente é a «determinação por


oposição» hegeliana: na figura do espancador de homossexuais
que viola um homossexual, o próprio homossexual encontra-se a
si próprio na sua determinação por oposição, ou seja, a tautolo­
gia (auto-identidade) aparece como a sua mais elevada contradi­
ção. Este limiar também pode funcionar como o próprio olhar do
outro: por exemplo, quando um desencantado sujeito ocidental
considera o Tibete como a solução para a sua crise, o próprio Ti­
bete perde imediatamente a sua auto-identidade e toma-se um
signo dele próprio, a sua «determinação por oposição». Contra­
riamente à violação perpetrada no «espancamento do homosse­
xual», em que o desejo homossexual é satisfeito no disfarce do
seu oposto, neste caso do admirador ocidental do Tibete, a rejei­
ção completa do Tibete, a traição relativamente à civilização ti-
betana é realizada sob o disfarce do seu oposto, a admiração pe­
lo Tibete. Outro exemplo é-nos dado pelo caso extremo da
interpassividade: quando gravo um vídeo em vez de ver sim­
plesmente o filme na televisão e quando esse adiamento adquire
uma forma inteiramente auto-reflectida: preocupado pelo facto
de algo poder correr mal durante a gravação, olho ansiosamente
para a televisão enquanto o filme está a ser gravado para me cer­
174 Slavoj Zizek

tificar de que tudo está correcto e pronto para ura futuro visiona-
mento. Neste caso, o paradoxo é que vejo o filme, e até muito
atentamente, mas numa espécie de estado suspenso, sem estar
realmente a segui-lo — tudo o que me interessa é o facto de ter
tudo efectivamente ali, de a gravação correr bem. Não encontra­
mos algo semelhante numa certa economia sexual perversa em
que realizo o acto apenas para me assegurar de que poderei
repeti-lo futuramente: mesmo que o acto seja, na realidade, in-
discemível do acto «normal» para alcançar o prazer, como um
fim em si, a economia libidinal subjacente é completamente di­
ferente.
Portanto, tomamos a encontrar aqui a lógica da determinação
reflexiva, em que o acto de ver um filme aparece como a deter­
minação da sua oposição. Por outras palavras, a estrutura é, mais
uma vez, a da fita de Moebius: se progredirmos suficientemente
longe por um dos lados da fita, alcançamos novamente o ponto
de partida (ver o filme, praticar um acto homossexual), mas si­
tuado no lado oposto da fita. Lewis Carroll tinha portanto razão:
uma carta pode representar um território, na medida em que o
modelo/carta é a própria coisa na determinação da sua oposição,
na medida em que um ecrã invisível garante que a coisa não é to­
mada por aquilo que ela é. Neste sentido preciso, a diferença
«primordial» não está entre as próprias coisas, nem entre elas e
os seus sinais, mas entre a coisa e o vazio de um ecrã invisível
que distorce a nossa percepção dela, de modo que não tomamos
a coisa por aquilo que ela é. O movimento das coisas para os seus
sinais não é o da substituição da coisa pelo seu sinal, mas o da
própria coisa tomando-se o sinal (não outra coisa, mas) de si
mesma, o vazio no seu próprio núcleo18. Esta distância também
pode ser a distância que separa os sonhos da realidade: quando,
a meio da noite, sonho que uma pedra pesada ou um animal sen­
tado no meu peito me está a causar dor, este sonho reage, obvia­
mente, ao facto de eu ter realmente uma dor no peito — o sonho
inventa a narrativa para relatar a dor. Contudo, neste caso, a as­
túcia não está só em inventar uma narrativa, ela é mais radical: é
possível que, enquanto sinto a dor no peito, esteja a sonhar que
A Marioneta e o Anão 175

tenho uma dor no peito — consciente de que estou a sonhar, o


facto de transpor a dor para o sonho tem um efeito calmante
(«Não é um a dor verdadeira, é só um sonho!»).
Este paradoxo traz-nos de volta à relação entre o homem e
Cristo: a tautologia «O homem é o homem» deve ser lida como
um infinito juízo hegeliano, como o encontro do homem com a
sua determinação por oposição, com a sua contraparte na outra
face da fita de Moebius. Tal como, no nosso entendimento quo­
tidiano, a afirmação «A lei é a lei» significa o oposto daquilo que
enuncia, ou seja, a coincidência da lei com a violência arbitrária
(«Mesmo que certas coisas sejam injustas e arbitrárias, que po­
demos fazer, a lei é a lei, temos de lhe obedecer!»), «O homem é
o homem» assinala a não-coincidência do homem com o homem,
o excesso propriamente inumano que perturba a identidade do
homem. E, em última instância, o que é Cristo senão o nome des­
se excesso inerente ao homem, o núcleo ex-time do homem, o ex­
cedente monstruoso que, segundo o infeliz Pôncio Pilatos, um
dos raros heróis éticos da Bíblia (o outro sendo, obviamente, Ju­
das), só pode ser designado como «ecce homo»!

Notas

1. O celibato nos católicos — a proibição do casamento de padres e


freiras — não será, em definitivo, anticristão, um resto da atitude pagã?
Não estará fundado na ideia de que aqueles que renunciam aos praze-
res sexuais terrestres obtêm assim o acesso ao usufruto divino?
2. Segundo Jung, no sofrimento consciente de Cristo, Deus expia o
sofrimento de Job: «Pois tal como o homem sofreu em Deus e por Ele,
Deus deve sofrer pelo homem. De outro modo, não pode haver “recon­
ciliação entre ambos”» (Cari Gustav Jung, Answer to Job, Princeton,
Bollingen, 1958, p. 39). Aqui, a estrutura ainda é a da troca: um sofre
pelo outro...
3. O interesse de Paraíso Reconquistado, de Milton, reside no facto
de Satanás ser um personagem completamente diferente daquilo que é
em Paraíso Perdido: já não é o heróico Anjo caído, mas um simples
176 Slavoj Zizek

agente da tentação — na realidade, é o próprio Cristo que, em Paraíso


Reconquistado, é o equivalente de Satanás em Paraíso Perdido. O tó­
pico dos dois poemas é o mesmo: como resistir à tentação? Mas Cristo
tem sucesso onde Satanás falha. Portanto, Cristo é menos o «segundo
Adão» do que o «segundo Satanás»: ele tem sucesso onde Satanás fa­
lhou. Esta focalização no tópico da fidelidade e da resistência às tenta­
ções liga também Paraíso Reconquistado ao Livro de Job: podemos es­
tabelecer não só um paralelo entre a resistência de Cristo e a de Job às
tentações, como dizer também que Satanás, em Paraíso Reconquista­
do, é uma nova versão dos quatro (três?) amigos teólogos que vêm tran­
quilizar Job. Os argumentos dos quatro teólogos correspondem às qua­
tro tentações de Satanás: prazeres terrestres, riqueza, poder e falso
sacrifício religioso (mais precisamente, o sacrifício como acto de troca,
como «preço pago» pelos pecados). Em suma, a tentação é inerente à
religião: Satanás reside na falsa teologia, a teologia como ideologia. Tal
como os quatro amigos propõem a Job as quatro versões fundamentais
da legitimação ideológica, Satanás tenta Cristo com quatro versões da
ideologia.
4. Quanto à excepção judaica, somos assim tentados a arriscar uma
releitura radical de Freud, que atribuía aos judeus a denegação do cri­
me primordial (o parricídio de Moisés): e se mesmo as leituras freudia­
nas alternativas, que propõem a hipótese de um crime deslocado (o pró­
prio Moisés cometeu um parricídio ao matar o faraó) forem falsas? E se
o verdadeiro crime de Moisés não foi o parricídio, mas a humilhação
do faraó, a revelação pública da sua impotência? Isso não será pior do
que um assassínio directo? Depois do assassínio, o pai regressa como o
agente ideal da Lei, ao passo que o pai humilhado se contenta em so­
breviver como um excremento ridículo e impotente. E se esta humilha­
ção do pai for a pré-condição para estabelecer o judaísmo como a pri­
meira grande religião que, originalmente e quase sempre, não foi uma
religião de Estado, mas a religião de um grupo que não dispunha de
uma identidade ligada ao Estado? Além disso, e se for precisamente is­
so que toma problemática a ideia do estado de Israel?
5. Eric Santner, «Traumatic Revelations: Freud ’s Moses and the Ori-
gins of Anti-Semitism», in Renata Salecl (ed ),Sexuation, Durham, Du­
ke University Press, 2000.
6. Franz Rosenzweig, L’Étoile de la rédemption, Paris, Seuil, 1982.
7. David Horeel, An Introduction to the Study o f Paul, op. cit., p. 82.
8. Franz Rosenzweig, op. cit., p. 477. Devo esta citação a Eric Sant­
ner que aprofundou esta concepção da identidade judaica num livro ex­
cepcional, On the Psychotheology ofEveryday Life {op. cit). Notemos
A Marioneta e o Anão 177

que esta ideia de resto é também um elemento da tradicional identida­


de nacional eslovena. O corte traumático da historia eslovena foi a
ofensiva da Contra-Reforma no fim do século xvi. Como consequência
dessa ofensiva, um terço da população eslovena foi morta, e outro ter­
ço emigrou para a Alemanha, a fim de permanecer fiel ao protestantis­
mo; o terço restante são os Eslovenos, o resto, a corja que renunciou à
sua fé...
9. Franz Rosenzweig,, op. cit., p. 268.
10. Não é também o que diz Martin Luther King na sua «Carta da
Prisão de Birmingham» (1963)? «Aprendemos pela nossa dolorosa ex­
periência que o opressor nunca concede voluntariamente a liberdade
àqueles que oprime. Os oprimidos são obrigados a reclamá-la. Franca­
mente, nunca estive envolvido numa campanha de acção directa que
parecesse “oportuna” aos que nunca sofreram do excesso de segrega­
ção. Há anos que ouço dizer: “Esperem!”, e esta palavra soa aos ouvi­
dos de um negro com uma familiaridade lancinante. Este famoso “es­
perem” foi quase sempre sinónimo de “nunca”. Tem sido como que um
tranquilizante para a gestação, que nos liberta momentaneamente do
stress emocional, para engendrar depois uma criança doente, enforma­
da de frustração. Assim chegamos à conclusão, como diz um dos nos­
sos distintos juristas, que “demorar tempo de mais a fazer justiça, é
recusá-la”.
«Há mais de trezentos e quarenta anos que esperamos poder usufruir
dos nossos direitos constitucionais e dos simples direitos humanos que
Deus nos deu. Nações da África e da Ásia caminham a velocidade es­
tonteante para a sua independência política, enquanto nós ainda cami­
nhamos a passo de tartaruga para a conquista do direito a beber uma
chávena de café ao balcão de um snack-bar da esquina. Para os que
nunca sentiram os dardos acerados da segregação, talvez seja fácil di­
zer: “Esperem!” Mas quando a populaça cheia de ódio enforca o vosso
pai e a vossa mãe e afoga os vossos irmãos e irmãs ao sabor da sua fan­
tasia; quando polícias medonhos, com a injúria na boca, brutalizam e
por vezes até matam os vossos semelhantes com toda a impunidade;
quando a imensa maioria dos vossos vinte milhões de irmãos negros vi­
ve esmagada pela miséria no meio de uma sociedade opulenta; quando
as palavras vos faltam subitamente e começais a gaguejar ao procurar­
des explicar à vossa filha de seis anos porque não pode ir ao novo par­
que de atracções sobre o qual acabou de ver uma reportagem na televi­
são e quando os seus pequeninos olhos se marejam de lágrimas quando
lhe explicais que esse parque (Funtown) é proibido às crianças de cor;
quando as nuvens sombrias de um complexo de inferioridade tomam
178 Slavoj Zizek

forma no seu espírito infantil e a sua pequena personalidade se altera ao


desenvolver um rancor inconsciente em relação aos brancos; quando
tendes de encontrar uma resposta para o vosso filho de cinco anos que
vos pergunta, num sofrimento agonizante: “Papá, porque é que os bran­
cos tratam tão mal as pessoas de cor?”; quando, durante uma viagem fo­
ra da cidade, tendes de dormir noite após noite nos assentos desconfor­
táveis do vosso carro porque nenhum motel vos aceitará; quando sois
humilhados dia e noite pela visão de painéis com as inscrições: “bran­
cos” e “pessoas de cor”; quando sois invariavelmente chamados de “ne­
gro” seja qual for o vosso nome, quando sois tratados por “meu velho”
mesmo se fordes jovem e quando o vosso apelido é sempre “John” e os
nomes da vossa mulher ou da vossa mãe nunca são antecedidos pela ele­
mentar fórmula de cortesia “senhora”, e quando sois assediados todo o
dia e assombrados toda a noite pelo facto de serdes um negro, vivendo
constantemente sobressaltado e sem saber aquilo que vos espera; quan­
do o medo e o rancor se instalam dentro de vós e tendes de lutar conti­
nuamente contra um sentimento degradante de “não ser alguém”; nesse
caso, sim, compreenderíeis porque não podemos esperar mais. Chega
um tempo em que a taça da paciência transborda e o homem recusa que
o mergulhem num abismo de injustiça onde vive a frialdade do deses­
pero corrosivo. Espero, Senhores, que compreendereis o que há de legí­
timo e inevitável na nossa impaciência.» Martin Luther King, Révolu-
tion non violente, Paris, Payot, 1969, pp. 99-101.
11. E talvez seja a este nível que deveríamos abordar também a ve­
lha questão, que recentemente parece ter encontrado uma certa actuali­
dade, da linha de separação entre o animal e o homem: ao nível do ser
positivo, não há diferença, o homem é simplesmente um animal dotado
de propriedades e capacidades particulares; a diferença só se toma dis-
cemível a partir da posição engajada em que nos envolvemos ao sermos
apanhados no processo.
12. Talvez Kafka tenha fornecido a resposta mais sucinta ao cristia­
nismo, à ideia cristã segundo a qual o Messias já cá está, afirmando que
o Messias chegaria efectivamente, mas demasiado tarde, quando a hu­
manidade já estiver cansada de esperar por ele. A sua chegada já não te­
ria qualquer importância e deixaria as pessoas indiferentes.
13. Hans Jonas, Mortality and Morality, Evanston, Northwestern
University Press, 1996, p. 192.
14.0 que é verdadeiro sobre a mulher em análise — a mascarada da
feminilidade significa que, sob as diversas camadas da máscara, não
encontramos o X feminino inacessível, pois, em última instância, as
máscaras têm apenas como função esconder o facto de que não há na­
A Marioneta e o Anão 179

da a esconder — também é verdadeiro para o próximo: «os segredos


dos Egípcios também eram segredos para os próprios Egípcios».
15. Jacques Derrida, Specters of Marx, Londres, Routledge, 1994,
pp. 64-65.
16. Ernesto Laclau, Emancipation(s), Londres, Verso Books, 1995.
17. Robert Pfaller, «The Potential of Thresholds to Obstruct and to
Facilitate. On The Operation of Displacement in Obsessional Neurosis
and Perversion» (ensaio não publicado, 2002).
18 .0 mesmo aplica-se à máscara. Em Dezembro de 2001, os argen­
tinos saíram à rua para protestar contra o governo, especialmente con­
tra Cavallo, o ministro da Economia. Quando a multidão se juntou à
volta do seu edifício, ameaçando derrubá-lo, ele escapou utilizando
uma máscara dele próprio (vendida em lojas de disfarces, de modo que
as pessoas podiam troçar dele utilizando a sua máscara). Pelo menos,
ele parece ter aprendido qualquer coisa com a ampla expansão do mo­
vimento lacaniano na Argentina — o facto de a coisa ser a melhor más­
cara dela própria. E não será esta também a definição suprema da di­
vindade — Deus também tem de pôr uma máscara dele próprio? Talvez
«Deus» seja a palavra para a sua suprema divisão entre o absoluto co­
mo a Coisa numenal e o absoluto como a sua própria aparência, para o
facto de ambos serem o mesmo, de a diferença entre ambos ser pura­
mente formal. Neste sentido preciso, «Deus» nomeia a contradição su­
prema: Deus — o absolutamente irrepresentável Além — tem de apa­
recer como tal. Na mesma ordem de ideias, lembremos a cena no
esplêndido A Última Hora, de Spike Lee, em que os próprios artistas
negros besuntam os rostos de negro, como Al Johnson — talvez o fac­
to de utilizar uma máscara negra seja a única estratégia para parecer
branco (isto é, para criar a expectativa de que o «verdadeiro» rosto sob
as suas máscaras negras seja o de um branco). Neste logro propriamen­
te lacaniano, o facto de pôr uma máscara negra destina-se a dissimular
o facto de ser negro — não admira, portanto, que o efeito de descobrir
o negro sob o negro, quando a máscara é tirada, seja um choque. Tal­
vez, como defesa contra este choque, apreendamos todavia o «verda­
deiro» rosto dissimulado pela máscara como sendo mais negro do que
a própria máscara — comprovando assim que o escurecimento do ros­
to deles é uma estratégia da sua assimilação pela cultura branca...
E pilogo

A IDEOLOGIA CONTEMPORÁNEA

Os irritantes anti-intelectuais que nos são mais chegados, e


que nem sempre podemos evitar durante as férias, atacam-me
muitas vezes com provocações vulgares do tipo: «Como filóso­
fo, que pode dizer acerca da chávena de café que estou a sabo­
rear?» Um dia, no entanto, quando um conhecido meu, um tanto
parcimonioso, trouxe um ovo Kinder ao meu filho e me pergun­
tou, com um sorriso irónico: «Então, qual é o teu comentário fi­
losófico sobre este ovo?», teve a surpresa da sua vida — uma res­
posta longamente pormenorizada.
Os ovos Kinder, um dos mais populares produtos de chocola­
te à venda em toda a Europa Central, são cascas de ovos de cho­
colate embaladas em papel colorido. Quando tiramos a embala­
gem de papel que envolve o ovo e partimos a casca, descobrimos
um pequeno brinquedo de plástico (ou peças de um pequeno
brinquedo que devemos montar). As crianças que compram estes
ovos, com a pressa de tirar a embalagem e partir a casca, nem
sempre se dão ao trabalho de comer o chocolate. O que lhes in­
teressa é o brinquedo escondido no interior do ovo. Estes apre­
ciadores de chocolate não ilustrarão, à sua maneira, a fórmula de
Lacan, «Amo-te, mas, por amar inexplicavelmente algo em ti
que é mais do que tu, mutilo-te»? O brinquedo não será o objec­
to pequeno a na sua forma mais pura, o pequeno objecto que en­
182 Slavoj Zizek

che o vazio central do nosso desejo, o tesouro escondido, o agal-


ma que está no centro daquilo que desejamos?
Esse vazio material («real») central, representa evidentemente
a distância estrutural («formal») devido à qual nenhum produto
é «verdadeiramente isso», nenhum produto corresponde real­
mente à expectativa que cria. Por outras palavras, o pequeno
brinquedo de plástico não é apenas diferente do chocolate (o pro­
duto comprado); sendo materialmente diferente, preenche o va­
zio que está no próprio chocolate, isto é, encontra-se no mesmo
plano que o chocolate. Como Marx nos ensinou, a mercadoria é
uma entidade misteriosa cheia de caprichos teológicos, um ob­
jecto particular que satisfaz uma necessidade particular, mas, ao
mesmo tempo, é a promessa de «outra coisa», de um prazer in­
sondável cujo verdadeiro lugar é o fantasma. É a esse espaço fan-
tasmático que a publicidade se dirige. («Beba X, não é só uma
bebida, também é ...» ) O brinquedo de plástico é o resultado de
uma estratégia arriscada para materializar directamente, para tor­
nar visível, esse excesso misterioso: «Ao comer o nosso choco­
late, estará não só a comer chocolate, como terá tam bém ... um
brinquedo de plástico (completamente inútil).» O ovo Kinder é
portanto o modelo de todos esses produtos que nos prometem
«mais» qualquer coisa: «Compre um leitor DVD e terá 5 DVD
gratuitos» ou ainda, de forma mais directa, «Ao comprar esta
pasta dentífrica, levará um terço dela gratuitamente», sem falar
das garrafas de Coca-Cola: «Verifique a tampa e habilite-se as­
sim a ganhar numerosos prémios, desde uma garrafa gratuita a
carros magníficos.» A função deste «mais» consiste em preen­
cher qualquer coisa que falta, um «menos», compensar o facto de
que uma mercadoria nunca realiza, por definição, as suas pro­
messas (fantasmáticas). Por outras palavras, a «verdadeira» mer­
cadoria seria aquela que não precisaria de qualquer suplemento,
que se contentaria em realizar as suas promessas: «Vai levar o
que equivale ao preço que pagou, nem mais nem menos»1.
Esta referência ao vazio no meio de uma sobremesa, este va­
zio envolvido por uma sobremesa, tem uma longa história2. Com
o desenvolvimento da subjectividade moderna, apareceu na In-
A Marioneta e o Anão 183

glaterra isabelina uma distinção entre alimentos «substanciais»


(a carne), consumidos na sala de banquete, e sobremesas açuca­
radas, consumidas numa pequena sala à parte enquanto se levan­
tava («esvaziava») a mesa da grande sala de jantar — assim, a
pequena sala onde se comia a sobremesa acabou por se chamar
«the void» (o vácuo, o vazio). As próprias sobremesas começa­
ram a ser chamadas de «voids» e, ademais, a sua forma evocava
a do vazio: tratava-se, por exemplo, de bolos açucarados repre­
sentando muitas vezes animais, vazios por dentro. O essencial
era o contraste entre os pratos «substanciais» consumidos na
grande sala de jantar e as sobremesas não substanciais, decorati­
vas, sobremesas de «void». Este era uma ilusão, um falso, urna
aparência pura, como, por exemplo, um pavão de açúcar pareci­
do com um pavão, sem o ser: o grande momento do ritual da so­
bremesa era aquele em que se quebrava o exterior do animal pa­
ra revelar o vazio dissimulado no seu interior. Temos aquí o
antepassado da versão moderna do café descafeinado ou dos ado­
çantes artificiais, o primeiro exemplo de um alimento privado da
sua substância: assim, quando o comemos, de certo modo não
comemos nada. Outro elemento importante: esse «void» era o es­
paço reservado ao desenrolar da subjectividade «privada», por
oposição ao espaço «público» da sala de banquete. O «vazio» era
consumido num local para onde nos retirávamos depois da ceri­
mónia pública da refeição. Nesse local à parte, as máscaras arti­
ficiais caíam. Aí, numa atmosfera relaxada, circulavam os rumo­
res, as impressões, as opiniões e as confissões de toda a espécie,
das mais triviais às mais íntimas. A oposição entre «coisa real»,
substancial, e pura aparência decorativa cobrindo apenas o vazio
sobrepôs-se assim à oposição entre substância e sujeito: não ad­
mira que durante esse mesmo período o «void» tenha servido
também para aludir ao próprio sujeito, esse Vazio escondido
atrás da aparência enganadora das máscaras sociais. Talvez en­
contremos aqui a primeira versão, culinária, da famosa fórmula
de Hegel, segundo a qual deveríamos conceber o Absoluto «não
só como substância, mas também como Sujeito»: deveríamos co­
mer não só pão e carne, mas também boas sobremesas...
184 Slavoj Zizek

Não deveríamos ligar este uso do termo «void» a uma inven­


ção que data também da alvorada dos tempos modernos, a in­
venção do «zero»? Brian Rotman sublinhou que esta invenção
estava ligada ao desenvolvimento da troca e produção de merca­
dorias, de tal modo que vazio e mercadoria se encontram ligados
desde o início3. Na sua análise clássica do vaso grego em A Coi­
sa, à qual Lacan também se refere na sua L'Éthique de la Psycha-
nalyse, Heidegger sublinha que o vaso como Coisa emblemática
é formado à volta de um vazio central, ou seja, serve de reci­
piente a um vazio4. Somos portanto tentados a ler conjuntamen­
te o vaso grego e o ovo Kinder como designando dois momentos
da Coisa na história do Ocidente, a Coisa sagrada no início da
sua história, e a mercadoria ridícula no seu final: o ovo Kinder é
o vaso grego do nosso tem po... A imagem resumindo, por si só,
toda a «história do Ocidente», talvez seja então a dos antigos
Gregos trazendo uma oferenda aos seus deuses num vaso con­
tendo... um brinquedo de plástico encontrado num ovo Kinder.
Devemos retomar aqui o método de Adorno e Horkheimer em A
Dialéctica da Razão, que consiste em condensar todo o desen­
volvimento da civilização ocidental sob a forma de uma longa li­
nha que vai da manipulação mágica da pré-história às manipula­
ções tecnológicas, ou do vaso grego ao ovo Kinder. Nesta
perspectiva, não devemos esquecer que a alvorada da filosofia
grega é contemporânea do primeiro desenvolvimento da produ­
ção e troca de mercadorias. Diz-se que Tales, o primeiro filósofo
da Grécia antiga, enriqueceu no mercado antes de voltar à filo­
sofia, para provar aquilo de que era capaz na vida rea l... A am­
biguidade do termo «especulação», que tem um sentido metafí­
sico e um sentido financeiro, está assim presente desde a origem.
Talvez devêssemos arriscar a hipótese de que o vaso grego de
que fala Heidegger já era, historicamente, uma mercadoria, e
que esse facto explica o seu centro vazio, o que confere a esse va­
zio a sua verdadeira dimensão. Só como mercadoria é que uma
coisa não é apenas ela própria, como aponta «para lá» dela pró­
pria, para outra dimensão inscrita na própria coisa como o seu
vazio central. Miguel de Beistegui analisou a hegemonia secreta
A Marioneta e o Anão 185

da noção de oikos como economía fechada em Heidegger, ou se­


ja, por outras palavras, a recusa de Heidegger em levar em con­
sideração as condições do mercado, a maneira como este substi­
tui sempre/já o oikos fechado5: poderíamos dizer que a melhor
prova disso é o vaso como das Ding.
Não admira que exista uma homología entre os ovos Kinder, o
«vazio» de hoje, e a abundância de mercadorias que nos propõem
como produto privado da sua substância: café sem cafeína, saca­
rina sem açúcar, cerveja sem álcool, etc. — em ambos os casos,
encontramos uma superfície privada do seu núcleo. Mas, mais
fundamentalmente, como indica a referência ao «void» isabelino,
não haverá uma clara homología estrutural mais profunda entre
esta estrutura da mercadoria e a estrutura do sujeito burguês?
O sujeito, enquanto sujeito dos direitos do homem universais,
não funcionará como uma espécie de ovo K inderl Nas pastela­
rias francesas ainda se vendem «cabeças de negro» (têtes de nè-
gre), bolos cujo nome tem relentos de racismo: são merengues
redondos recheados de creme e cobertos de chocolate, vazios por
dentro («como estúpidas cabeças de negro»), O ovo Kinder
preenche esse vazio. A lição a tirar disto é que todos nós temos
«cabeças de negro», com um buraco no meio. A resposta dos de­
fensores do humanismo universalista à «cabeça de negro», a ma­
neira como rejeitam a ideia de que todos temos «cabeças de ne­
gro», não se assemelhará precisamente a um ovo Kinder? Para os
ideólogos humanistas, bem podemos ser todos infinitamente
diferentes uns dos outros — brancos, negros, altos, baixos, ho­
mens, mulheres, ricos, pobres, etc. —, mas no fundo de cada um
de nós há o equivalente moral do brinquedo de plástico, o mes­
mo não sei bem o quê, um X inapreensível, que é, de certo mo­
do, o fundamento da dignidade comum a todos os homens. Cite­
mos Francis Fukuyama:

O pedido de igualdade de reconhecimento implica que, quan­


do despojamos alguém de todas as suas características contingen­
tes e acidentais, resta uma qualidade humana essencial merecedo­
ra de um certo respeito — digamos, o «factor X». A pele, a cor, a
186 Slavoj Zizek

aparência, a classe social e a saúde, o género, o pano de fundo


cultural e até os talentos naturais de cada um, tudo isso são aci­
dentes de nascença relegados ao nível de características não es­
senciais. (...) Mas, no domínio público, somos chamados a res­
peitar as pessoas de modo igual, com base no factor X que elas
possuem**.

Contrariamente aos adeptos da filosofia transcendental que


sublinham que esse factor X é uma espécie de «ficção simbóli­
ca» sem equivalência na realidade de um indivíduo, Fukuyama
situa heroicamente esse facto na nossa «natureza humana», na
nossa herança genética específica. Com efeito, não será o geno-
ma a figura suprema do brinquedo de plástico escondido dentro
do nosso envelope humano de chocolate? A casca poderá ser
constituída de chocolate branco, o clássico chocolate de leite, de
chocolate negro, poderá ter ou não avelãs, amêndoas ou passas,
mas no interior de todas essas cascas encontramos sempre o
mesmo brinquedo de plástico (contrariamente aos ovos Kinder
que são iguais por fora, mas que no interior têm sempre brin­
quedos diferentes). Em resumo, o que Fukuyama teme é que, se
interviermos demasiado na fabricação da casca de chocolate,
acabemos por produzir um ovo sem brinquedo de plástico no seu
interior. Como? Fukuyama sublinha, aju sto título, que é essen­
cial considerar as nossas qualidades «naturais» como uma ques­
tão de contingência e de sorte: se o meu vizinho é mais belo ou
inteligente do que eu, é porque teve a sorte de nascer assim e até
os seus pais podem não ter nada a ver com isso. Paradoxalmen­
te, no plano filosófico, se suprimirmos esse elemento de sorte
casual, se as nossas qualidades «naturais» se tomarem controla­
das e reguladas por manipulações biogenéticas ou científicas,
perdemos o factor X.
Evidentemente, também podemos dar um conteúdo ideológi­
co específico ao brinquedo de plástico escondido no ovo — por
exemplo, o facto de encontrarmos sempre um americano atrás de
todas as variedades étnicas da camada de chocolate (mesmo que
o brinquedo seja, muito possivelmente, fabricado na China). Es-
A Marioneta e o Anão 187

se X misterioso, o tesouro interior do nosso ser, também pode


revelar-se um intruso estrangeiro, até uma monstruosidade ex-
crementicial. Aqui, a relação com o funcionamento anal é plena­
mente justificada: a aparência imediata do Interior é um excre­
mento informe7. A criança que entrega o seu excremento está,
de certo modo, a oferecer o equivalente imediato do seu factor X.
A célebre análise de Freud sobre o excremento como forma pri­
mitiva de doação, como objecto interior dado pela criança aos
seus pais, não é portanto tão néscia como poderíamos julgar: ig­
noramos muitas vezes que este pedaço de nós próprios dado ao
Outro varia radicalmente do sublime — não ao ridículo, mas,
precisamente — ao excrementicial. Por isso, segundo Lacan, um
dos traços que distingue o homem dos animais é o facto de o ex­
cremento se tornar um problema para o homem: não por cheirar
mal, mas por vir do seu próprio interior. Envergonhamo-nos do
nosso excremento porque nele expomos/exteriorizamos a nossa
intimidade. Os animais não têm esse problema porque, contra­
riamente aos homens, não possuem «interioridade». Aqui deve­
mos referir Otto Weininger, que designa «a lava como o excre­
mento da Terra»8. Ela vem do interior do corpo, e esse interior é
malvado, criminoso: «O interior do corpo é aquilo que há de
mais criminoso»9. Reencontramos aqui a mesma ambiguidade
especulativa que tínhamos observado com o pénis, órgão de mic­
ção e procriação: quando o nosso interior é exteriorizado direc­
tamente, o resultado é asqueroso. Esse excremento exteriorizado
é precisamente o equivalente de um monstro estranho, vindo pa­
ra colonizar um corpo humano, um desses monstros que pene­
tram e dominam o corpo do interior, e que, nos filmes de terror
de ficção científica, quando a tensão atinge o seu paroxismo,
saem de um corpo humano pela boca ou pelo ventre. Neste as­
pecto, o filme Hidden, de Jack Sholder, talvez seja ainda mais
exemplar do que Alien, de Ridley Scott. O extraterrestre expulso
de um corpo humano no final do filme assemelha-se a um verme
e evoca associações directamente anais: gigantesca bosta, esse
extraterrestre transforma em comedores vorazes os humanos nos
quais se introduz, provocando neles vómitos nojentos10.
188 Slavoj Zizek

Como é que Israel, uma das sociedades mais militarizadas do


mundo, consegue tornar esse facto praticamente invisível e
apresentar-se como uma sociedade tolerante, liberal e secular11?
Aqui, é fundamental a apresentação ideológica da figura do sol­
dado israelita; ela parasita de forma mais geral a autopercepção
ideológica do indivíduo israelita como alguém mal vestido e até
vulgar, mas caloroso e delicado. Neste caso, podemos ver como
a própria distância relativamente à nossa identidade ideológica, a
referência ao facto de que «sob a máscara da nossa identidade
pública existe um ser humano caloroso e delicado, com as suas
fraquezas», é o problema fundamental da ideologia. E o mesmo
se aplica ao soldado israelita: ele é eficaz, está pronto para reali­
zar legalmente o necessário trabalho sujo, porque sob a sua fa­
chada se dissimula uma pessoa profundamente ética, até senti­
m ental... Por isso, a imagem do soldado a chorar desempenha
um papel tão importante em Israel: um soldado que é implaca­
velmente eficaz, mas que, não obstante, se desfaz ocasionalmen­
te em lágrimas perante os actos que é obrigado a fazer. Aqui, em
termos psicanalíticos, temos a oscilação entre os dois lados do
objecto pequeno a, o excremento e o precioso agalma, o tesouro
escondido: sob a superfície excrementicia (uma pessoa de insen­
sibilidade comum, gulosa, que rouba toalhas e cinzeiros dos ho­
téis, etc. — todos os lugares-comuns sobre os Israelitas propa­
gandeados pelas anedotas israelitas), está um núcleo de ouro
sensível. Nos termos do nosso exemplo sobre o chocolate Kin­
der, isto significa que o chocolate negro / excremento está aqui
no lado exterior, envolvendo o tesouro precioso que esconde.
O factor X não garante apenas a identidade fundamental de su­
jeitos aparentemente diferentes, garante também a permanência
de identidade num mesmo sujeito. Há vinte anos, a revista N a­
tional Geographic publicou uma foto que deu a volta ao mundo:
o retrato de uma jovem afegã de magníficos olhos amarelados e
brilhantes. A mesma mulher foi identificada no Afeganistão em
2001, apesar de o seu rosto ter mudado, marcado pelo trabalho e
pelas provas por que tinha passado. Mas os seus olhos, imedia­
tamente reconhecíveis, apareciam como um factor de continui-
A Marioneta e o Anão 189

dade. Contudo, há vinte anos, o semanário de esquerda Stern or­


ganizou uma experiência um tanto cruel na Alemanha, que, de
certo modo, contradizia essa tese: pagou a um a mulher e a um
homem indigentes, sem-abrigo, que concordaram em deixar-se
lavar, cortar o cabelo e passar pelas mãos dos melhores estilistas
e costureiros da moda. Depois, o semanário publicou duas gran­
des fotos de cada um, lado a lado: a primeira quando eram vaga­
bundos miseráveis e sujos, mal lavados; a segunda, arranjados ao
último grito da moda. O resultado era efectivamente perturbante:
apesar de ser claro que se tratava das mesmas pessoas, as mu­
danças efectuadas punham em questão a ideia de que um indiví­
duo permanece sempre o mesmo, quaisquer que sejam as mu­
danças na sua aparência. A mudança não estava só na aparência:
o facto perturbante era que nós, espectadores, tínhamos a im­
pressão de apreender uma personalidade diferente sob as aparên­
cias... Stern recebeu uma correspondência abundante. Muitas
pessoas acusaram o semanário de violar a dignidade dos sem-
-abrigo e de os humilhar, sujeitando-os a uma piada cruel; na rea­
lidade, o que foi abalado nesta experiência foi a crença no factor
X, na existência de um núcleo sempre idêntico que fundamenta
a nossa dignidade e persiste para lá das aparências. Em suma, es­
ta experiência era, de certo modo, a demonstração empírica do
facto de termos todos uma «cabeça de negro», de o núcleo da
nossa subjectividade ser um vazio enchido pelas aparências.
Regressemos ao nosso miúdo, que parte e atira violentamente
fora a casca do seu ovo Kinder para obter o brinquedo de plásti­
co — não será isto um emblema do chamado «totalitarismo» que
também quer desembaraçar-se da camada «não essencial», histo­
ricamente contingente, a fim de libertar a «essência» do homem?
A suprema visão «totalitária» não será a de um Novo Homem
que se ergue sobre as ruínas dos destroços da violenta aniquila­
ção da velha e corrupta humanidade? Por conseguinte, parado­
xalmente, liberalismo e «totalitarismo» partilham a mesma cren­
ça no factor X, o brinquedo de plástico no meio do envelope
humano de chocolate... O elemento problemático desse factor X
que faz de nós seres iguais, apesar das nossas diferenças, é evi-
190 Slavoj Zizek

dente: atrás de uma profunda ideia humanista segundo a qual «no


fundo somos todos iguais, somos todos seres humanos vulnerá­
veis», encontramos a declaração cínica: «Para quê darmo-nos ao
trabalho de combater diferenças superficiais se já somos, no fun­
do, iguais?» Isto lembra a história do milionário que descobre,
pungentemente, que tem as mesmas paixões, os mesmos temores
e os mesmos amores que um miserável mendigo.
Mas a ontologia da subjectividade como carência, a afirmação
patética de que «todos temos uma cabeça de negro», será real­
mente a resposta final? A posição basicamente materialista de La-
can não é a de que a própria carência tem de ser apoiada por um
mínimo de resto material, por um «indivisível resto» contingente
que não tem qualquer consistência positiva ontológica, mas que
é apenas um vazio encarnado? O sujeito não precisará de um ir­
redutível suplemento «patológico»? É nessa direcção que aponta
a fórmula da fantasia ($ — a, o sujeito dividido acoplado com o
objecto-causa do desejo). Uma estrutura rebuscada como esta
(um objecto emerge como resultado do próprio acto de limpar o
campo de todos os objectos) é claramente discemível naquilo que
é o mais elementar gesto retórico da filosofia transcendental: a
identificação da dimensão essencial (o «factor X») pela elimina­
ção de todos os conteúdos contingentes. A estratégia mais sedu­
tora em relação ao factor X talvez resida num dos exercícios in­
telectuais favoritos ao longo de todo o século xx: a pulsão que
impele a transformar qualquer situação em catástrofe. Deste mo­
do, independentemente das nossas diferenças «meramente ônti-
cas», participamos todos na mesma catástrofe ontológica.

The Land Before Time, a conhecida série de filmes de anima­


ção produzida por Steven Spielberg, poderá ser a expressão mais
marcante desta ideologia do «factor X». A mesma mensagem é
constantemente repetida: somos todos diferentes — uns são
grandes, outros, pequenos, uns sabem lutar, outros, fugir... —
mas devemos aprender a viver com essa diversidade e considerá-
-la como uma realidade enriquecedora para a nossa vida (recor­
demos aqui, como eco a este estado de espírito, as reportagens
A Marioneta e o Anão 191

sobre os prisioneiros da Al-Qaeda e os tratamentos de que são


objecto: recebem alimentos que respeitam as suas específicas ne­
cessidades culturais e religiosas, são autorizados a rezar, etc.).
Vistos do exterior, todos nós temos comportamentos diferentes,
mas interiormente somos todos iguais — indivíduos marcados
pelo medo que, entregues a eles próprios, sentir-se-iam perdidos
no mundo e dependeriam da ajuda dos outros. Num dos episó­
dios da série, os grandes e malvados dinossauros entoam uma
canção que afirma o direito dos grandes a quebrar todas as re­
gras, a comportar-se mal e a «dar cabo» dos pequenos indefesos:

«Se fores grande / Podes muito simplesmente / Esmagar os pe­


quenos / Eles são obrigados a olhar para cima / Ao passo que tu
olhas para baixo / (...) Tudo corre pelo melhor quando és grande
(...) Todas as regras feitas pelos adultos / Só se aplicam a ti.»

Na estrofe seguinte, a resposta dos pequenos oprimidos não é


um apelo para combater os grandes, mas para fazer compreender
que, atrás da sua aparência ameaçadora, afinal eles não são assim
tão diferentes de nós, também se sentem secretamente amedron­
tados e debatem-se com os seus próprios problemas:

«Como nós, eles também têm sentimentos / Também têm pro­


blemas / Por serem grandes / Julgamos que não conhecem tudo is­
so. / Mas é falso. / Eles são mais numerosos e fortes / E fazem
mais pandemónio que nós / Mas bem lá no fundo / Penso que são
miúdos como nós...»

A conclusão só pode ser uma apologia da diferença:

«Precisamos de tudo / Para fazer este mundo / Miúdos e graú­


dos / Gordos e franzinos / Para encher este belo planeta / De amor
e alegria / Para que a vida seja melhor / Amanhã e depois / Preci­
samos de tudo / Não há dúvida / Precisamos de espertos e tolos /
De todos os tamanhos / Para fazer todas as coisas / Que precisam
de ser feitas / Para termos uma vida feliz.»
192 Slavoj Zizek

Coloca-se então a questão de saber até onde iremos nesta di­


recção? Precisamos de tudo — isso significa gentis e monstros,
pobres e ricos, vítimas e carrascos? Neste caso, a referência ao
reino dos dinossauros, com o carácter brutal das espécies animais
que se devoram umas às outras, é particularmente ambígua —
será também uma dessas coisas que «precisam de ser feitas para
termos uma vida feliz»? É precisamente a contradição interna
desta visão de um a «terra paradisíaca antes do tempo» (título da
série), anterior à queda, que manifesta até que ponto estamos em
presença de um a «colaboração mútua, apesar de todas as dife­
renças». Porquê? Porque nesta visão, precisamente, qualquer
ideia de um antagonismo «vertical» que corte através do corpo
social é estritamente excluída e substituída e/ou traduzida pela
ideia, completamente diferente, de diferenças «horizontais» com
as quais devemos aprender a viver porque se completam mutua­
mente.
A visão ontológica subjacente desta representação é a de uma
diversidade irredutível de figuras particulares, cada uma múlti­
pla e descentrada, que nunca pode ser subsumida numa matriz
neutra e universal. Quando nos encontramos neste nível de re­
flexão, Hollywood cai sob a mais radical crítica pós-colonial da
universalidade abstracta. O problema principal toma-se o da im­
possível universalidade. Em vez de impormos a nossa visão da
universalidade (o universal dos direitos do homem, etc.), devía­
mos considerar a universalidade, esse espaço partilhado de com­
preensão entre as diferentes culturas, como uma tarefa infinita
de tradução, um trabalho constante de reelaboração da nossa
posição particular... Será necessário precisar que este trabalho
de tradução infinita não tem estritamente nada a ver com esses
momentos mágicos em que a universalidade efectiva faz brutal­
mente irrupção sob a forma de um acto ético-político que quebra
tudo à sua passagem? A universalidade efectiva não é o espaço
neutro, nunca atingido, da tradução de uma cultura particular pa­
ra outra, mas antes a experiência violenta do facto de continuar­
mos divididos pelo mesmo antagonismo para lá da linha de de­
marcação cultural.
A Marioneta e o Anão 193

A atitude hegemónica actual é a da «resistência» — toda a


poética das «multitudes» dispersas, marginais, sexuais, étnicas,
com outro estilo de vida (homossexuais, doentes mentais, prisio­
neiros, etc.) que se opõem ao misterioso poder central (capitalis­
ta). Dos gays e lésbicas aos autênticos survivalists12, todos pra­
ticam a sua «resistência» — nesse caso, porque não chegar à
conclusão lógica de que o discurso da «resistência» é hoje a nor­
ma que, como tal, se tomou o principal obstáculo à emergência
de um discurso que interrogaria verdadeiramente as relações do­
m inantes'3? A primeira coisa a fazer consiste portanto em atacar
o próprio núcleo dessa atitude hegemónica, a ideia de que «o res­
peito pela Alteridade» seria o mais elementar axioma ético:

Aqui, devo insistir particularmente no facto de a fórmula «res­


peito pelo Outro» não ter nada a ver com uma definição séria do
Bem e do Mal. Que pode significar o «respeito pelo Outro» quan­
do se está em guerra com o inimigo, quando uma mulher nos dei­
xa cruelmente por causa de um outro, quando somos obrigados a
julgar as obras de um «artista» medíocre, quando a ciência é ata­
cada pelas seitas obscurantistas, etc.? Muitas vezes, é precisa­
mente esse «respeito pelo Outro» que é nocivo, que constitui o
próprio Mal. Mais ainda: é a resistência contra os outros, e até o
ódio pelos outros, que motiva uma acção justa do ponto de vista
subjectivo14.

É evidente que o ponto crítico desta opinião de Badiou é o fac­


to de os seus exemplos revelarem imediatamente os limites da
sua lógica. Claro, ódio pelo inimigo, recusa pelas falsas «sabe-
dorias», etc.: mas a lição a tirar dos últimos séculos não será a de
que, quando estamos implicados nesses conflitos, deveríamos
precisamente respeitar um certo limite, na ocorrência o da alteri­
dade radical do Outro? Nunca deveríamos reduzir o Outro ao es­
tatuto de inimigo, portador de um falso saber, etc., pois há sem­
pre nele(a), o Absoluto do abismo sem fundo de um outro
homem. O totalitarismo do século xx, com os seus milhões de
mortos, mostrou-nos precisamente, nas suas consequências ex-
194 Slavoj Zizek

tremas, o que significa realizar nos factos «uma acção justa do


ponto de vista subjectivo». Não admira que Badiou tenha acaba­
do por apoiar o terror comunista. Mas é precisamente este tipo de
argumentação que se trata de recusar.
Consideremos o caso extremo de um conflito violento e mor­
tal contra um inimigo fascista. Deveremos mostrar respeito pe­
rante o abismo da alteridade radical da personalidade de Hitler,
presente atrás de todos os seus actos? Aqui, devemos recordar a
célebre sentença de Cristo: «Não cuidais que vim trazer a paz
à terra; não vim trazer a paz, mas a espada» (Mateus, 10: 34).
Precisamente, em nome do amor pela humanidade, incluindo a
dos próprios nazis (ou o que lhes restava dela), importa combatê-
-los impiedosamente. Há um provérbio judeu muito conhecido,
citado muitas vezes quando se fala do Holocausto: «Quando al­
guém salva um homem da morte, salva toda a humanidade.» Em
suma, devíamos completar esta proposição por: «Quando alguém
mata nem que seja um só verdadeiro inimigo da humanidade,
não está a matar, mas a salvar toda a humanidade.» A verdadei­
ra prova ética é sem dúvida menos a disponibilidade para salvar
vítimas do que, de modo mais firme, a vontade decidida e sem
escrúpulos de eliminar aqueles que os transformaram em víti­
mas.
Mas, então, e «o amor pelo próximo» dos cristãos, e o Outro
como próximo insondável? Na medida em que Deus é o Outro su­
premo, devíamos ousar o seguinte comentário: a performance
histórica do cristianismo é a recondução da Alteridade à Identi­
dade: o próprio Deus é um homem, «um de nós». Se, como su­
blinha Hegel, aquele que morre na cruz é o próprio Deus do
Além, o Outro radical, nesse caso a identificação com Cristo («a
vida em Cristo») significa, precisamente, a suspensão da Alteri­
dade. O que emerge nesse lugar é o Espírito Santo, que não é o
Outro, mas a comunidade (ou melhor, o colectivo) dos crentes: o
«próximo» é um membro do nosso colectivo. O supremo hori­
zonte do cristianismo não é portanto o do respeito pelo próximo,
pelo abismo da sua impenetrável Alteridade. É possível ir mais
longe — não para ir directamente ao fundo do Outro, para fazer
A Marioneta e o Anão 195

a experiência do Outro tal como ele é «em si», mas para nos aper­
cebermos de que não há qualquer mistério atrás da máscara (a su­
perficie enganadora) do Outro. A idolatria suprema não é a divi­
nização da máscara, da própria imagem, mas a crença de que
existe um conteúdo positivo escondido atrás da máscara15.
O que a insistência sobre a multitude e a diversidade dissimula
é, evidentemente, a monotonia deletéria da vida mundial contem­
poránea. No seu incisivo pequeno livro sobre Deleuze16, Alain
Badiou chamou a atenção para a maneira como Deleuze, até mais
do que qualquer outro filósofo, redescobriu e repetiu continua­
mente a mesma matriz conceptual, da filosofia à literatura e ao ci­
nema. A ironia deste discernimento é que, regra geral, se trata da
crítica clássica endereçada a Hegel — qualquer que seja o tema
abordado, Hegel desenvencilha-se sempre para desenvolvê-lo sob
os auspícios exclusivos do processo dialéctico. Não haverá aqui
uma espécie de justiça poética no facto de Deleuze, o anti-
-hegeliano por excelência, ser acusado precisamente do mesmo
defeito que Hegel? Haverá algo mais monocórdico na sua tonali­
dade do que a poesia deleuziana da vida contemporânea como
proliferação descentrada de multiplicidades (multitudes), de dife­
renças não totalizáveis?
O que esta monocórdica tonalidade absorve (e, por isso mes­
mo, mantém) é a pluralidade das reinterpretações e dos desvios a
que é submetida a textura ideológica básica. O Protegido (2000),
de Night Shyamalan, com Bruce Willis, é, devido à oposição ca­
racterística (segundo Deleuze) entre forma e fundo, o paradigma
da configuração ideológica contemporânea. Quanto ao conteúdo,
não podemos deixar de julgar este filme como infantil e ridículo.
O herói descobre que é actualmente, na vida real, um persona­
gem de banda desenhada, portanto intangível e invencível...
M as, quanto à forma, trata-se, em compensação, de um drama
psicológico finamente dirigido, que difunde um ambiente suave­
mente melancólico e descreve a tristeza de um herói para quem
é dramático reconhecer o que é na realidade, qual a sua vocação,
o seu mandato simbólico17. Isto está muito bem ilustrado na ce­
na em que o seu próprio filho quer disparar sobre ele para lhe
196 Slavoj Zizek

provar que ele é realmente invencível: enquanto o pai resiste, o


filho começa a chorar, desesperado por ver que o pai não aceita
a verdade sobre si próprio. Mas porque é que Bruce Willis não
quer que disparem sobre si? Terá simplesmente medo ou não es­
tará antes angustiado com a ideia de ver confirmada a sua imor­
talidade'? Não será o dilema kierkegaardiano da «doença mor­
tal»? Ficamos mais aterrorizados com a ideia de descobrir a
nossa imortalidade do que a nossa mortalidade. É aqui que de­
vemos fazer uma ligação entre B adiou e Kierkegaard: para o ani­
mal humano é difícil, e, para bem dizer as coisas, traumático,
aceitar que a sua vida esteja também ao serviço da verdade e que
ela não seja simplesmente um processo mudo de reprodução e
gozo acumulados. E desta forma que a ideologia parece funcio­
nar hoje no nosso autoproclamado universo pós-ideológico, com
a sua autonomia esclarecida: desempenhamos os nossos manda­
tos simbólicos sem os assumirmos verdadeiramente, sem os le­
varmos realmente a sério. Um pai, por exemplo, não pára de
acompanhar essa função com sarcasmos irónicos sobre si mes­
mo, sobre a idolatria de ser pai, etc.

Shrek (com Andrew Adamson e Vicky Jenson, 2001), um re­


cente blockbuster de animação da produtora Dreamworks, expri­
me perfeitamente esta função primordial da ideologia. A trama
narrativa do clássico conto de fadas (o herói parte com o seu com­
panheiro trapalhão, divertido e anafado, a fim de vencer o dragão
e libertar a princesa do domínio que ele exerce sobre ela) lança
«piscadelas de olho» a Brecht, está repleta de «distanciamentos»
brechtianos divertidos (quando a multidão vem assistir ao casa­
mento na igreja, recebe instruções precisas sobre a maneira como
deve proceder convenientemente nos diferentes momentos da ce­
rimónia, mimando por exemplo a falsa espontaneidade das emis­
sões televisivas: «Riam!», «Silêncio respeitoso!»); assistimos a
reviravoltas «politicamente correctas» (depois dos dois apaixona­
dos se terem beijado, não é o ogre monstruoso que se vê trans­
formado em príncipe encantado, mas a linda princesa que se tor­
na uma vulgar rapariga rechonchuda), a farpas irónicas contra a
A Marioneta e o Anão 197

vaidade feminina (enquanto a bela adormecida espera pelo beijo


do seu salvador, dá um novo jeito no penteado para parecer mais
atraente); uma metamorfose inesperada transforma os maus em
bons (o vil dragão revela-se uma mulher atenta e apaixonada que
estará mais tarde ao lado dos heróis), sem esquecer as referências
anacrónicas aos costumes modernos e à cultura pop.
Em vez de nos extasiarmos depressa de mais com estes des­
vios e divertimentos em nome do seu conteúdo potencialmente
subversivo, e antes de elevarmos Shrek à dignidade de um novo
«site de resistência», devíamos limitar-nos a constatar que, mais
uma vez, para lá de todos esses «desvios», é sempre a mesma
história que nos é contada. Em suma, a verdadeira função des­
ses «desvios» e dessas subversões consiste precisamente em
conformar a velha história tradicional aos cânones da nossa
época pós-modema — impedindo-nos assim de substituí-la por
uma história nova... Não admira que a sequência final do filme
consista numa versão irónica da canção I ’m a Believer, o velho
sucesso dos Monkeys da década de 1960 — é a maneira como
somos actualmente crentes: gozamos das nossas crenças, mas,
ao mesmo tempo, continuamos a praticar a fé, isto é, continua­
mos a entregar-nos a ela para apoiar, sem o dizermos, os nossos
actos quotidianos.
Na boa velha RDA era impossível alguém combinar três ca­
racterísticas: convicção (crença na ideologia oficial), inteligência
e honestidade. Se fosse convicto e inteligente, não era honesto;
se fosse inteligente e honesto, não era convicto; se fosse convic­
to e honesto, não era inteligente. Não podemos dizer o mesmo da
ideologia da democracia liberal? Supondo que levamos (even­
tualmente) a sério a ideologia liberal actualmente dominante, não
é possível ser ao mesmo tempo inteligente e honesto: ou somos
completamente idiotas ou cinicamente corruptos. Deste modo, se
me puderem perdoar uma alusão de bastante mau gosto ao homo
sacer18 de Agamben, poderíamos arriscar-nos a declarar que o
modo liberal predominante da subjectividade contemporânea de­
ve ser declinado no registo do homo sucker. na sua constante ten­
tativa para explorar e instrumentalizar outrem, o homo sucker
198 Slavoj Zizek

acaba por se tomar, ele próprio, o último dos papalvos (sucker).


Quando julgamos estar a zombar da ideologia dominante, esta­
mos apenas a reforçar o domínio que ela exerce sobre nós.

Há duas lições a retirar desta configuração ideológica. Primei­


ro, mostrar-se prudente e não atribuir ao Outro a crença néscia na
qual nós mesmos não somos capazes de acreditar, evitando
transformá-lo num «sujeito-suposto-crer». Mesmo num caso
aparentemente banal — o exemplo tristemente conhecido do
«fundamentalista muçulmano» que perpetra um atentado suicida
—, as coisas não são tão claras como poderíamos julgar à pri­
meira vista: será assim tão evidente que os fundamentalistas
acreditam realmente que irão despertar no Paraíso onde as seten­
ta virgens os esperam? (Lembremo-nos contudo de um terrorista
que se perfumou antes de um atentado suicida para poder agra­
dar às virgens em questão.) E se, pelo contrário, duvidassem ter­
rivelmente no fundo deles próprios e se servissem da passagem
ao acto suicida como meio para resolver o impasse da dúvida
afirmando esta nova crença: «Não sei se sou verdadeiramente
crente, mas visto que dou a minha vida pela causa, mostro que o
sou pelos meus actos.»
Da mesma maneira, convém evitar a conclusão que Alexandre
Fadeiev, emérito escritor estalinista e presidente da União dos
Escritores Soviéticos, tirou do relatório secreto de Khruschev no
XX Congresso do Partido Comunista da URSS: o suicídio. Ele
era um membro do Partido, convencido e honesto. Tudo leva a
crer que estava perfeitamente ao corrente da completa corrupção
do sistema; porém, acreditava no grande Outro, isto é, no apare­
cimento, no espaço público, do Homem Novo socialista, etc.
Portanto, não se suicidou por ter aprendido o que quer que fosse
de novo no relatório de Khruschev. O que foi abalado não foram
as suas ilusões, mas a sua fé na força performativa da ilusão ideo­
lógica.
O suicídio de Fadeiev pode ser comparado com o daquele co­
mandante alemão, no início de 1945, quando o exército america­
no ocupou a sua aldeia natal. Então, foi obrigado a visitar o cam-
A Marioneta e o Anão 199

po de concentração situado ñas proximidades e, ao regressar,


suicidou-se. Cometeu o irreparável não por ignorar os crimes
perpetrados em nome do regime que servia e por não suportar a
ideia de ser confrontado à verdade, pois estava mais ou menos ao
corrente de tudo; quem não estava ao corrente era o grande Ou­
tro, a ordem das aparências sociais, e esse suicídio era, portanto,
uma verdadeira encenação para fazer crer que ignorava esses cri­
mes e procurar salvar as aparências fazendo crer numa honesta
ignorância (pelo menos, em relação a casos deste tipo, é possível
que Estaline tivesse razão ao condenar o suicídio como o acto
mais cobarde, a suprema traição ao Partido).
Acontece o mesmo com o «honesto nazi», tão celebrado, pre­
sidente da câmara de uma pequena cidade da Alemanha de Les­
te onde os russos chegaram em Fevereiro de 1945. Contraria­
mente a muitos outros que apagaram o mais depressa possível os
vestígios do seu passado nacional-socialista, vestiu o seu melhor
fato, pôs as suas medalhas e foi passear na rua, onde os russos o
abateram. Porém, terá sido verdadeiramente um gesto tão nobre
manifestar abertamente a sua sim patia pela Alemanha nazi na ho­
ra da derrota? De que podia ele orgulhar-se? Como se não sou­
besse em que tipo de Estado vivia! N ão terá sido esse gesto mais
uma tentativa desesperada e hipócrita para conferir uma espécie
de nobreza a uma vida que estivera, n a melhor das hipóteses, re­
pleta de compromissos com os piores crimes?
Segunda lição: em vez de fazermos antecipadamente conces­
sões ao inimigo, deveríamos, pelo contrário, ir ao encontro des­
se extrem o oposto, lutar por noções que podem parecer
pertencer-lhe «naturalmente». Na segunda parte do Tratado da
Harmonia, a sua principal obra teórica (1911), Schõnberg justi­
fica a sua rejeição da música tonal em termos que, pelo menos
superficialmente, podem recordar os posteriores panfletos nazis
anti-semitas: o mundo da música tonal tornou-se «doentio», «de­
generado», necessitando de uma purificação; o sistema tonal caiu
na «consanguinidade» e no «incesto»; os acordes românticos, co­
mo o da sétima diminuta, são «hermafroditas», «vagabundos» e
«cosmopolitas»... Nada mais fácil do que concluir que esta ati-
200 Slavoj Zizek

tude messiano-apocalíptica faz parte das «situações espirituais


profundas» que originaram a «solução final» nazi. Mas essa é
precisamente a conclusão a evitar: o que toma o nazismo tão
repugnante não é a retórica da «solução final» como tal, mas o
cunho concreto que lhe conferiu.
Outro tópico corrente deste tipo de análises é o carácter putati­
vamente «protofascista» da coreografia de massas orquestrando
os movimentos disciplinados de milhares de corpos (paradas, de­
monstrações de massas nos estádios, etc.). Ao encontrar os mes­
mos fenómenos no socialismo, conclui-se de bom grado na exis­
tência de «laços muitos profundos» entre os dois totalitarismos.
Este procedimento, típico do liberalismo ideológico, falha o seu
alvo: essas demonstrações de massas não são inerentemente fas­
cistas, nem sequer neutras, esperando para serem apropriadas pe­
la esquerda ou pela direita; foi o nacionalismo que se apropriou
delas, indo buscá-las ao movimento operário, seu ponto de ori­
gem, e foi ele que as adaptou aos seus próprios objectivos. Neste
caso, seria necessário confrontar a genealogia classicamente his­
tórica (busca das origens, das influências, etc.) com a genealogia
estritamente nietzschiana. Relativamente ao nacional-socialismo,
a genealogia corrente interessa-se pela busca concreta de elemen­
tos «protofascistas» para construir o núcleo a partir do qual ele se
formou (quando, no Anel dos Nibelungos, Hagen não pára de pro­
curar o ouro do Reno; quando os românticos alemães estetizaram
a política...); a genealogia de Nietzsche, pelo contrário, leva em
consideração a ruptura constitutiva de um novo evento histórico;
nenhum dos pretensos elementos «protofascistas» é fascista per
se·, eles tomam-se fascistas devido à forma da sua articulação es­
pecífica ou, para retomar um termo de Stephen Jay Gould, todos
esses elementos são novamente moldados pelo fascismo. Por ou­
tras palavras, não há fascismo avant la lettre, pela simples razão
de que é a própria letra (a nominação) — portanto, a designação
nascida de uma soma de elementos singulares — que cria o ver­
dadeiro fascismo.
Nesta perspectiva, devíamos rejeitar radicalmente a ideia de
que a disciplina (do autocontrolo aos métodos para robustecer o
A Marioneta e o Anão 201

corpo) procede de um fenómeno de tipo «protofascista»; deve­


mos portanto excluí-la tão radicalmente quanto ao próprio predi­
cado «protofascista». É o exemplo típico do pseudoconceito cuja
função consiste em bloquear qualquer análise conceptual. Quan­
do dizemos que o espectáculo organizado de milhares de corpos
(ou, digamos, a admiração por desportos, como o alpinismo, que
exigem grande esforço e autodomínio) manifesta uma atitude
«protofascista», não estamos a dizer absolutamente nada, esta­
mos apenas a exprimir uma vaga associação destinada a dissimu­
lar a nossa ignorância. Por exemplo, há algumas décadas, quan­
do os filmes de kung fu (com Bruce Lee) foram acolhidos com
um fervor extraordinário, não era evidente que estávamos peran­
te a ideologia original de uma jovem classe trabalhadora para a
qual a única maneira de ter talvez sucesso passava pelo treino
metódico da única coisa que possuíam, ou seja, os seus próprios
corpos? A espontaneidade e o gozo que ela proporciona estão as­
sim reservados às liberdades extremas daqueles que têm meios
para as pagar. Aqueles que nada possuem só têm a sua disciplina.
Na realidade, a «má» disciplina corporal, se existe algo do géne­
ro, não se exprime no treino colectivo, mas nos fenómenos como
o jogging e o culturismo, que fazem parte da economia objectiva
para realizar o seu próprio potencial. Não admira que a obsessão
pelo próprio corpo se tenha tomado um elemento quase obriga­
tório da metamorfose de antigos «radicais» de esquerda em polí­
ticos «pragmáticos» amadurecidos. De Jane Fonda a Joschka Fis-
cher, o «período de latência» entre essas duas fases das suas vidas
foi marcado pela concentração no seu próprio corpo.
Há uma piada israelita muito famosa: ao fazer uma visita a
Benyamin Netanyahu («Bibi»), Clinton vê um misterioso telefo­
ne azul na secretária de Netanyahu e pergunta-lhe para que ser­
ve; Bibi responde que é a sua linha directa para chamar Deus, lá
no Céu. Ao regressar aos Estados Unidos, Clinton pede aos seus
serviços secretos que lhe arranjem a mesma linha secreta. De­
corridas duas semanas entregam-lhe a linha e ela funciona. Mas
a factura do telefone é astronómica — um minuto de conversa
com o Altíssimo custa dois milhões de dólares! Furioso, Clinton
202 Slavoj Zizek

telefona a Netanyahu e pergunta-lhe: «Como podes pagar uma


instalação destas quando nós, que vos apoiamos, achamos o pre­
ço tão exorbitante? É para isso que serve o nosso dinheiro?» En­
tão, Bibi responde-lhe calmamente: «Claro que não. Sabe, para
nós, judeus, trata-se de uma chamada local!»
É interessante observar que, na versão soviética desta piada,
Deus é substituído pelo Inferno. Nixon vai visitar Brejnev e
interroga-o sobre o seu telefone especial. Brejnev responde-lhe
que se trata de uma linha directa para o Inferno. No fim da piada,
quando Nixon deplora o preço demasiado elevado do engenho,
Brejnev responde-lhe calmamente: «Para nós, na União Soviéti­
ca, uma chamada para o Inferno é uma chamada local.» A pri­
meira reacção a esta piada, quase automática, de um democrata
liberal pós-moderno consiste em dizer: ora aí está precisamente a
fonte do Mal! Há homens que por julgarem que têm uma comu­
nicação directa com Deus (com a Verdade, a Justiça, a Democra­
cia ou qualquer outro Absoluto) julgam poder atribuir aos outros
— aos seus inimigos — uma comunicação directa com o Inferno
(os «Estados párias» ou os «eixos do Mal»); perante esta absolu-
tização, devíamos aceitar, modestamente, que todas as nossas po­
sições são relativas, estão condicionadas por uma série de dados
históricos contingentes. Não há portanto soluções definitivas,
mas apenas soluções pragmáticas e provisórias.
A falsidade desta mentalidade já foi criticada por Chesterton:

Em todas as esquinas podemos cruzar-nos com homens dis­


postos a proferir uma declaração delirante e blasfema, dizendo
que podem muito bem enganar-se. Todos os dias encontramos al­
guém disposto a confessar que o seu ponto de vista talvez não se­
ja o correcto. Claro que deve ser, senão não seria o seu ponto de
vista19.

Não se manifestará esta falsidade também na retórica de mui­


tos adeptos da desconstrução pós-moderna? Chesterton tem toda
a razão quando recorre à noção muito forte de blasfémia, à qual
devemos tomar a dar, neste caso, todo o seu peso: o relativismo
A Marioneta e o Anão 203

ilustrado por este exemplo, aparentemente todo feito de modéstia,


é o modo de aparição do seu exacto oposto, ou seja, o privilégio
dado à sua própria posição. Para nos convencermos disso, basta
comparar o combate e o sofrimento do «fundamentalista» com a
paz serena do democrata liberal que, protegido na sua posição
subjectiva, rejeita ironicamente qualquer envolvimento intenso,
qualquer abandono «dogmático» seja a que realidade for.
Na nossa época pós-ideológica completamente resignada, que
não deixa nenhuma abertura para um Absoluto positivo, o para­
doxo está no facto de os únicos candidatos legítimos ao título de
Absoluto serem os actos do Mal Radical. Este estatuto teologica­
mente negativo do Holocausto encontra a sua suprema expressão
em O Que Resta de Auschwitz, de Giorgio Agamben, livro em
que o filósofo propõe uma espécie de prova ontológica da exis­
tência de Auschwitz, refutando a negação revisionista. Agamben
conclui a existência do Holocausto a partir do seu «conceito»
(noções como a de «Muselmann», o deportado «morto-vivo», são
tão «intensas» que não teriam podido surgir sem a realidade his­
tórica do Holocausto). A melhor prova não será o facto de — nu­
ma parte do campo da reflexão contemporânea — o Holocausto
ser elevado à dignidade da Coisa, entendida como o negativo Ab­
soluto? O facto de o único Absoluto ser o Mal sublime e irrepre-
sentável diz-nos muito sobre o estado actual da nossa cultura.
Agamben apoia-se nas quatro categorias modais (possibilidade,
impossibilidade, contingência, necessidade) para as articular ao
longo do eixo dos processos de subjectivação e dessubjectivação:
a possibilidade (poder ser) e a contingência (poder não ser) são
os operadores da subjectivação; a impossibilidade (não poder ser)
e a necessidade (não poder não ser) são os operadores da dessub­
jectivação — o que aconteceu em Auschwitz foi o colapso mo­
mentâneo das duas vertentes do eixo:

Nesta perspectiva, Auschwitz constitui o momento de um co­


lapso histórico destes processos, a experiência traumática em que
o impossível foi introduzido à força no real. Auschwitz é a exis­
tência do impossível, a negação mais radical da contingência —
'204 Slavoj Zizek

portanto, a necessidade mais absoluta. O Muselmann [o «morto-


-vivo» do campo], produzido por Auschwitz, é a catástrofe do su­
jeito que daí resulta, a sua eliminação como lugar da contingên­
cia e a sua conservação como existência do impossível20.

Auschwitz designa portanto a catástrofe devida a uma espécie


cie curto-circuito ontológico: a subjectividade (a abertura do es-
fcaço da contingência, em que a possibilidade conta mais do que
k realidade factual) confunde-se com a objectividade, em que
$ impossível as coisas deixarem de seguir a necessidade «cega».
A fim de apreender este movimento, temos de considerar de mais
loerto as duas vertentes do termo «impossibilidade»: em primei­
ro lugar, a impossibilidade é uma simples inversão da necessida-
cie («as coisas não teriam podido acontecer de outra forma»); de-
F)ois, a impossibilidade designa o limite supremo e impensável
4 a própria possibilidade («uma coisa tão horrível não pode acon­
tecer realmente; ninguém pode encarnar o Mal a este ponto»).
O ra , em Auschwitz, são estas duas dimensões que se confundem.
E possível transpor esta coincidência em termos kantianos e
dlescrevê-la como o cruzamento entre o númeno e o fenómeno:
Ha figura do Muselmann, do morto-vivo, emerge o sujeito des-
Subjectivado, a dimensão numenal (do sujeito livre) na própria
r<ealidade empírica e, como tal, ela testemunha aquilo que não
P)ode ser dado por um testemunho.
Num segundo tempo, Agamben interpreta a figura, única no
S'eu género, do Muselmann como prova irrefutável da existência
die Auschwitz:

Consideremos Auschwitz como aquilo que é impossível teste­


munhar e consideremos o Muselmann como a absoluta impossi­
bilidade de testemunhar: se a testemunha testemunhar pelo Mu­
selmann, se conseguir pôr em palavras a impossibilidade de falar
— se, por conseguinte, o Muselmann se toma a testemunha inte­
gral —, então o negacionismo é refutado no seu próprio princípio.
No Muselmann, a impossibilidade de testemunhar já não é, com
efeito, uma simples privação; ela tomou-se real, existe como tal.
A Marioneta e o Anão 205

Se o sobrevivente testemunha não sobre as câmaras de gás ou


Auschwitz, mas sobre o Muselmann, se fala apenas a partir de
uma impossibilidade de falar, então o seu testemunho é inegável.
Auschwitz — aquilo que é impossível testemunhar — é provado
de forma absoluta e irrefutável21.

Só podemos admirar a fineza deste esforço teórico. Longe


de se opor a uma prova, seja ela qual for, de que Auschwitz ti­
vesse realmente existido, o próprio facto de ser impossível
testemunhá-lo de forma directa demonstra a sua existência... É
aí, nessa inversão reflexiva, que reside o erro de cálculo fatal do
célebre argumento cínico dos nazis, citado por Primo Levi e tan­
tos outros: «O que fazemos aos judeus é tão aterrador, que é
simplesmente impossível representá-lo; mesmo que haja sobre­
viventes dos campos, aqueles que não estiveram lá não acredi­
tarão neles, chamar-lhes-ão mentirosos ou loucos!» O argumen­
to invertido de Agamben assenta no seguinte: «Com efeito, é
impossível, no fim de contas, testemunhar sobre o horror máxi­
mo que foi Auschwitz; mas e se essa própria impossibilidade se
encarnasse num sobrevivente? E se, portanto, existir uma sub­
jectividade como a do Muselmann, subjectividade levada a um
extremo tal, que implode na objectividade, uma tal subjectivi­
dade dessubjectivada só pode ter surgido nas condições que f o ­
ram as de Auschwitz· ■.»
Contudo, por implacável que seja esta forma de argumentação
na sua simplicidade radical, ela permanece profundamente ambi­
valente: ela não responde ao dever de analisar concretamente a
singularidade histórica do Holocausto. Isto significa que é possí­
vel lê-la de duas maneiras opostas — como apresentação con­
ceptual de uma posição extrema, de que se prestará posterior­
mente contas através de uma investigação histórica concreta;
como uma espécie de curto-circuito ideológico, como compreen­
são da estrutura apriorística inerente ao fenómeno Auschwitz; es­
ta segunda via afasta a investigação histórica concreta sobre a
singularidade do nazismo como projecto político e sobre os mo­
tivos por que desencadeou o Holocausto; toma essa investigação
206 Slavoj Zizek

supérflua, ou, pelo menos, acaba por reduzi-la a uma tarefa se­
cundária. Nesta segunda leitura, «Auschwitz» toma-se o nome
daquilo que, em certos aspectos, tinha de acontecer, daquilo cuja
«possibilidade essencial» estava inscrita estruturalmente na ma­
triz do processo ocidental: mais cedo ou mais tarde, as duas ver­
tentes do eixo deviam confundir-se.
Agamben participa assim num dos preferidos exercícios inte­
lectuais preferidos do século xx: como referimos anteriormente,
trata-se da pulsão que impele a transformar qualquer situação em
«catástrofe». Qualquer que fosse a situação, era necessário
descrevê-la como portadora de catástrofe; e quanto melhor ela se
apresentava, mais apelava a esse juízo.
Heidegger denunciou o período actual como o do maior peri­
go, a época do niilismo rematado; Adorno e Horkheimer viram-
-na como aquela em que a «dialéctica da razão» alcançava o seu
apogeu no «mundo administrado»; Giorgio Agamben vê nos
campos de concentração do século xx a «verdade» de todo o pro­
jecto político ocidental. Lembremos a posição de Horkheimer na
Alemanha Federal durante a década de 1950: enquanto denun­
ciava o «eclipse da razão» na sociedade moderna ocidental de
consumo, ao mesmo tempo defendia a dita sociedade como o
único ilhéu de liberdade no oceano do totalitarismo e das ditadu­
ras corruptas que enxameavam o mundo inteiro. Era, de certo
modo, uma repetição, num tom mais sério, da famosa fórmula
irónica de Churchill segundo a qual a democracia era o pior re­
gime político à excepção de todos os outros: a «sociedade oci­
dental administrada» é a barbárie disfarçada de civilização, o cú­
mulo da alienação, a desintegração do indivíduo autónomo, etc.,
etc., mas, visto que todos os outros regimes são ainda piores, te­
mos porém de a defender... Somos tentados a propor uma leitu­
ra radical desta síndrome: e se aquilo que os infelizes intelectuais
não podem suportar é o facto de levarem uma vida basicamente
feliz, tranquila e confortável, pelo que, para justificarem a sua
vocação superior, são obrigados a fabricar um cenário de catás­
trofe radical? Aqui, com efeito, Adorno e Horkheimer estão es­
tranhamente próximos de Heidegger:
A Marioneta e o Anão 207

As «catástrofes» mais violentas da natureza e do cosmos não


são nada em termos de estranheza em si (Unheimlichkeit) quando
comparadas à estranheza que é o homem em si, na medida em que
o homem, colocado na existência como tal e ao serviço dela,
esquece-se do ser, de modo que para ele o «estar-em-si» (das Hei-
mische) torna-se uma errância vã que preenche com as suas ocu­
pações. Aqui, a estranheza em si do não-estar-em-si (Uhheimis-
chkeit) reside no facto de o homem ser, na sua própria essência,
uma katastrophê — uma inversão que o desvia da sua autêntica
essência. No meio dos seres, o homem é a única catástrofe22.

A qui, a primeira coisa que só pode chamar a atenção do filó­


sofo é a referência implícita ao sublime kantiano: da mesma ma­
neira que, para Kant, as explosões mais violentas da natureza não
são nada quando comparadas ao poder da Lei moral, para Hei-
degger, as catástrofes mais violentas da natureza e da vida social
não são nada quando comparadas à catástrofe que é o próprio ho­
mem — ou, como teria dito Heidegger na sua outra grande figu­
ra de retórica, a essência da catástrofe não tem nada a ver com as
catástrofes ônticas, pois a essência da catástrofe é a catástrofe da
própria essência, a sua queda, o seu esquecimento pelo homem.
(Isso incluirá o Holocausto? Será possível afirmar, de uma ma­
neira que não seja obscena, que o Holocausto não é nada quando
comparado à catástrofe do esquecimento do ser?) A diferença
(ambígua) é que, nesse caso, para Kant, a violência natural torna
palpável, de maneira negativa, a dimensão sublime da Lei moral,
enquanto para Heidegger o outro termo da comparação é a ca­
tástrofe que representa o homem em si. O outro ponto ambíguo
é que Kant vê um aspecto positivo na experiência das explosões
catastróficas da natureza: ao contemplá-las, fazemos a experiên­
cia, de uma maneira negativa, da incomparável grandeza subli­
me da Lei moral, enquanto em Heidegger não é evidente que pre­
cisemos da ameaça (ou do facto) de uma efectiva catástrofe
ôntica para experimentar de maneira negativa a verdadeira ca­
tástrofe que pertence à essência humana como tal. (Esta diferen­
ça estará ligada ao facto de, na experiência do Sublime kantiano,
208 Slavoj Zizek

o sujeito desempenhar o papel de observador ao apreender a vio­


lência natural excessiva a partir de uma distância que garante a
sua segurança, sem ser ameaçado directamente por ela, ao passo
que essa distância é inexistente no caso de Heidegger?)
É fácil troçar destas fórmulas de Heidegger. Contudo, elas con­
têm um «núcleo racional». Adorno e Horkheimer acolheriam es­
tas fórmulas com um riso desdenhoso, mas não se debaterão com
a mesma dificuldade? Quando eles definem os contornos do
«mundo administrado» ( Verwáltete Welt) do capitalismo activo,
apresentam-nos o mundo como coincidindo com a barbárie, co­
mo o ponto em que a própria civilização regressa à barbárie,
como uma espécie de telos negativo de todo o progresso das Lu­
zes, como o reino nietzschiano dos «Últimos Homens»: «Temos
o nosso pequeno prazer para o dia e o nosso pequeno prazer
para a noite, mas estamos atentos à saúde. / “Inventámos a felici­
dade” — dizem os Últimos Homens, e piscam os olhos»23. Con­
tudo, ao mesmo tempo, avisam-nos contra as mais directas catás­
trofes «ônticas» (as diferentes formas de terror, etc.). A sociedade
demócrata-liberal dos «Últimos Homens» é assim, literalmente, a
pior das sociedades possíveis, sendo o único problema que todas
as outras são ainda piores, de modo que a escolha aparece como
uma opção entre o Mal e o Pior. Aqui, a ambiguidade é irredutí­
vel: por um lado, o «mundo administrado» é o catastrófico resul­
tado final das Luzes; por outro, o curso «normal» das nossas so­
ciedades está continuamente ameaçado por catástrofes, da guerra
e do terror às catástrofes ecológicas, de modo que, enquanto de­
vemos combater essas catástrofes «ônticas», ao mesmo tempo
nunca devemos esquecer que a catástrofe suprema é o próprio
curso «normal» do «mundo administrado», na ausência de qual­
quer catástrofe «ôntica»24. Aqui, somos confrontados com uma
autêntica aporia: é evidente que a solução desta ambiguidade por
meio de um tipo de «juízo infinito» pseudo-hegeliano, afirmando
a suprema coincidência entre os sujeitos da sociedade de consu­
mo capitalista e as vítimas do Holocausto («Os Últimos Homens
são Muselmenn»), não funciona. O problema é o facto de não ser
possível qualquer identificação patética com os Muselmenn («os
A Marioneta e o Anão 209

mortos-vivos dos campos de concentração») — não podemos di­


zer «somos todos Muselmenn» como ouvimos dizer, há dez anos,
«vivemos todos em Sarajevo»: as coisas foram longe de mais em
Auschwitz. (E, inversamente, também seria ridículo afirmar a
nossa solidariedade com as vítimas do 11 de Setembro dizendo:
«Somos todos Nova-Iorquinos!» Milhões de habitantes do Ter­
ceiro Mundo diriam: «Claro que somos!»)
Como devemos então tratar as actuais catástrofes éticas?
Quando, há vinte anos, Helmut Kohl falou da «graça de um nas­
cimento tardio» [die Gnade des spacten Geburt] a propósito da
situação dos alemães nascidos tarde de mais para estarem impli­
cados no Holocausto, numerosos comentadores consideraram es­
ta fórmula moralmente ambígua e oportunista e sublinharam que
os Alemães podiam servir-se dela para situar o Holocausto fora
do campo das suas responsabilidades. Contudo, a fórmula de
Kohl toca num aspecto paradoxal da moral, que Bernard Wil­
liams baptizou de «sorte moral»25. Ele evoca o caso de um pin­
tor ironicamente chamado «Gauguin» que deixa a mulher e os fi­
lhos para partir para o Taiti, a fim de exprimir livremente o seu
génio artístico: será o seu acto moralmente justificável? Para
Williams, a justificação só pode ser retrospectiva: ela só é possí­
vel quando conhecemos o resultado dessa decisão. Afinal, o pin­
tor tornou-se ou não uma das maiores figuras da história da pin­
tura? Como Jean-Pierre Dupuy assinalou, encontramos o mesmo
dilema quando reflectimos sobre a urgência das medidas a adop­
tar para enfrentar os riscos de catástrofes ecológicas26: ou leva­
mos essa ameaça a sério e tomamos decisões que parecerão ridí­
culas se a catástrofe não acontecer, ou não fazemos nada e
perdemos tudo se ela acontecer. A pior das escolhas é a posição
mediana que consiste em tomar um número limitado de medidas,
dado que ela é sinónimo de fracasso, aconteça o que acontecer.
(O problema é que no domínio das catástrofes ecológicas não há
posição mediana: elas acontecem ou não.) Uma situação destas
horrorizaria um kantiano radical, pois faz o valor moral de um
acto depender de condições completamente «patológicas», ou se­
ja, do resultado inteiramente contingente do acto em questão. Em
210 Slavoj Zizek

suma, quando tomo uma decisão difícil que envolve um dilema


ético, só posso dizer: «Se tiver sorte, aquilo que estou a fazer te­
rá sido moral!» Porém, não será este fundamento «patológico»
da nossa posição moral uma necessidade a priori — e não ape­
nas no sentido em que só podemos agir moralmente (na maioria
dos casos) se tivermos a sorte de não sermos expostos à pressão
de tentações demasiado fortes? (A maioria das pessoas cometem
as piores traições se lhes infligirem torturas atrozes.) Quando
conservamos o nosso orgulho moral e a nossa dignidade na vida
quotidiana, agimos sob a protecção de uma ficção: supomos que
agiremos moralmente, mesmo se formos colocados em circuns­
tâncias difíceis. Isso não significa que devamos duvidar da nos­
sa posição moral, mas que deveríamos adoptar a atitude de Don
Alfonso, o filósofo de Cosi fa n tutte, de Mozart, que dá o se­
guinte conselho aos dois amantes enganados: «Confiai nas mu­
lheres, mas não as exponhais a demasiadas tentações!»
É fácil compreender que o nosso sentimento de dignidade está
fundado na negação dos factos «patológicos» de que temos co­
nhecimento, negação que nos permite suspender a sua eficácia
simbólica. Pensemos, por exemplo, na situação de um persona­
gem respeitável apanhado por uma foto numa posição pouco
«digna» (por exemplo, a chorar ou a vomitar): ele arrisca-se a ver
a sua carreira arruinada, apesar de essa situação fazer parte do
dia-a-dia de todos nós. A um nível ligeiramente diferente, pense­
mos na arte consumada com que certos dirigentes políticos sa­
bem ausentar-se quando é preciso, por exemplo nos momentos
em que seriam obrigados a tomar decisões humilhantes. Ao
ausentarem-se, permitem que os seus partidários continuem a
crer inconscientemente no seu poder absoluto: se o nosso líder es­
tivesse cá no devido momento, pensam eles, tudo teria sido dife­
rente. Num plano mais íntimo, imaginemos um primeiro encon­
tro amoroso entre dois apaixonados. O rapaz tenta impressionar a
rapariga. Infelizmente, os dois apaixonados cruzam-se com um
brutamontes que assedia a rapariga e humilha o rapaz, que não é
suficientemente corajoso para responder às provocações. A rela­
ção entre os dois apaixonados corre o risco de ser estragada por
A Marioneta e o Anão 211

um incidente deste tipo: terá o rapaz vontade de voltar a ver urna


jovem cuja presença lhe recorda uma humilhação terrível?
Contudo, para lá do facto brechtiano de que a moral está re­
servada aos que podem dar-se a esse luxo, há uma zona cinzenta
mais radical, cujo melhor exemplo é a figura dos Muselmenn nos
campos de concentração nazis: eles representam o «grau zero»
da humanidade, uma espécie de «mortos-vivos» que deixaram de
reagir até aos estímulos mais elementares, que deixaram de se
defender quando agredidos, e que deixaram, gradualmente, de
sentir fome ou sede, comendo e bebendo mais por força de hábi­
to do que para satisfazer uma necessidade natural elementar. Por
esse motivo, eles representam o ponto do Real sem Verdade sim­
bólica: não há nenhuma maneira de poder «simbolizar» a sua si­
tuação, de a organizar numa narrativa de vida com sentido. Po­
rém, é fácil ver o perigo que representam estas descrições: elas
confirmam e reproduzem inadvertidamente a própria «desuma-
nização» que os nazis lhes impuseram. Por isso, devemos insis­
tir mais do que nunca na sua humanidade, sem esquecer que eles
foram, de certo modo, desumanizados, privados dos aspectos es­
senciais da humanidade: a linha que separa a dignidade humana
«normal» e o envolvimento «normal» do mundo da indiferença
«inumana» pelos Muselmenn é inerente à «humanidade», o que
significa que existe uma espécie de núcleo traumático inumano
ou uma brecha no seio da própria «humanidade». Para utilizar
termos lacanianos, os Muselmenn são «humanos» de um modo
ex-time, o que significa, como Agamben bem sublinhou, que as
regras «normais» se encontram aqui suspensas: não podemos
contentar-nos em deplorar a sorte desses deportados, lastimando
que eles tenham sido privados da sua mais elementar dignidade
de seres humanos, pois ser «decente», conservar a sua «digni­
dade» fa ce a um Muselmann é, em si, um acto da maior inde­
cência. Não podemos contentar-nos em ignorar os Muselmenn:
qualquer postura moral que não olhe de frente para o paradoxo
aterrador que eles constituem é, por definição, imoral, não pas­
sando de uma mascarada obscena da ética; quando somos efecti­
vamente confrontados com os Muselmenn, certas ideias, como a

1
212 Slavoj Zizek

de «dignidade», são, de certo modo, privadas da sua substância.


Por outras palavras, os Muselmenn não representam simples­
mente o nível «mais baixo» na hierarquia dos tipos éticos («não
só não têm nenhuma dignidade, como perderam até a sua vitali­
dade animal e o seu egoísmo»), mas também o grau zero que re­
tira todo o sentido a qualquer hierarquia. Não levar em conside­
ração este paradoxo equivale a partilhar o cinismo dos próprios
nazis que começaram por obrigar os judeus a viverem brutal­
mente como sub-homens, para apresentarem depois esse modo
de vida como prova da sua infra-humanidade, levando até ao seu
extremo a técnica clássica da humilhação. Como se faz para hu­
milhar um indivíduo respeitável? Começa-se, por exemplo, por
lhe roubar o cinto das calças, o que o obriga a caminhar segu­
rando as calças com uma mão, o que nos permite troçar depois
dele como de um indivíduo bem pouco respeitável... Neste sen­
tido preciso, a nossa dignidade moral é sempre falsa: ela depen­
de do facto de termos a sorte de não conhecermos o destino dos
Muselmenn. Talvez seja isso que explica o sentimento irracional
de culpa que assombrou os sobreviventes dos campos: aquilo
com que foram confrontados, sob a sua forma mais pura, não foi
com o carácter completamente contingente da sua sobrevivência,
mas, mais radicalmente, com o carácter completamente contin­
gente da nossa dignidade moral, o núcleo mais precioso da nos­
sa personalidade, segundo Kant.
Esta talvez seja também a lição principal do século xx no pla­
no ético: devemos abandonar qualquer arrogância ética e aceitar
humildemente a sorte de poder agir moralmente. Ou, para utili­
zar termos teológicos: longe de se opor, autonomia e misericór­
dia entrelaçam-se, ou seja, somos abençoados pela misericórdia
quando podemos actuar autonomamente como agentes éticos.
E temos de confiar na mesma mistura de misericórdia e coragem
quando enfrentamos a perspectiva de uma catástrofe. Em As
Duas Fontes da M oral e da Religião, Bergson analisa as sensa­
ções estranhas que experimentou a 4 de Agosto de 1914, mo­
mento em que foi declarada a guerra entre a França e a Alema­
nha: «Apesar da minha agitação, e apesar de uma guerra, mesmo
A Marioneta e o Anão 213

vitoriosa, me aparecer como urna catástrofe, experimentei aqui­


lo de que [William] James falou: um sentimento de admiração
pela facilidade como se efectuara a passagem do abstracto ao
concreto: quem teria acreditado que uma eventualidade tão es­
pantosa pudesse surgir no real com tão pouco estrondo?»27.
Aqui, o essencial é a modalidade do corte entre antes e depois:
antes do desencadeamento das hostilidades, a guerra aparecia a
Bergson como «simultaneamente provável e impossível: ideia
complexa e contraditória, que persistiu até à data fatídica»28. De­
pois do dia 4 de Agosto de 1914, a guerra toma-se subitamente
real e possível, e o paradoxo está nessa aparência retrospectiva
de probabilidade:

Nunca pretendi que pudéssemos inserir realidade no passado e


trabalhar assim às arrecuas no tempo. Contudo, podemos sem dú­
vida inserir o possível no passado, ou melhor, o próprio possível
vai aí inserir-se, em qualquer momento. A medida que a realida­
de se cria, imprevisível e nova, a sua imagem reflecte-se atrás de­
la no passado indefinido: essa nova realidade terá sido sempre
possível; mas só no momento preciso da sua actual emergência é
que começa a ter sido sempre possível, e é por isso que eu dizia
que a sua possibilidade, que não precede a sua realidade, tê-la-á
precedido quando essa realidade emerge29.

Por conseguinte, falhamos sempre o encontro com o Real co­


mo impossível: ou o experimentamos como impossível mas não
real (a perspectiva de uma futura catástrofe que, apesar de saber­
mos ser provável, não acreditamos que possa efectivamente
acontecer, pelo que a rejeitamos como impossível) ou aparece-
-nos como real mas já não como impossível (uma vez registada
a catástrofe, ela é «re-normalizada», «re-situada» no curso nor­
mal das coisas, como tendo sido sempre/já possível). Como
Jean-Pierre Dupuy mostrou muito bem, a distância que separa
esses paradoxos possíveis é a distância que separa o conheci­
mento da crença: sabemos que a catástrofe é possível, até prová­
vel, mas não cremos que ela aconteça realmente30.
214 Slavoj Zizek

O que estas experiências mostram são os limites da vulgar no­


ção «histórica» do tempo: em qualquer momento do tempo exis­
tem múltiplas possibilidades que esperam por ser realizadas; lo­
go que uma delas se actualiza, as outras são canceladas. O caso
extremo de um agente do tempo histórico deste tipo é o Deus de
Leibniz, que criou o melhor dos mundos possíveis: antes da
Criação, tinha no seu espírito a totalidade dos mundos possíveis,
e a sua decisão consistiu em escolher a melhor dessas opções
possíveis. Neste caso, a possibilidade precede a escolha: a esco­
lha é uma escolha entre diferentes possibilidades. O que é im­
possível pensar nesta visão linear da evolução histórica é a ideia
de uma escolha/acto que abra retrospectivamente a sua própria
possibilidade: a ideia de que a emergência de uma novidade ra­
dical muda retrospectivamente o passado — não o passado real,
evidentemente, pois não estamos numa história de ficção cientí­
fica, mas as possibilidades passadas, ou, para nos exprimirmos
mais formalmente, o valor das proposições modais relativas ao
passado. É precisamente o que se passa no caso evocado por
Bergson31. Jean-Pierre Dupuy mostra que, se quisermos fazer fa­
ce à ameaça de uma catástrofe (cósmica ou ambiental), temos de
sair dessa concepção «histórica» da temporalidade: precisamos
de introduzir uma nova concepção do tempo. Dupuy chama a es­
se tempo o «tempo de um projecto», de um circuito fechado en­
tre o passado e o futuro: o futuro é produzido pelos actos que rea­
lizámos no passado e a nossa maneira de agir é determinada pela
maneira como antecipamos o futuro e pelas nossas reacções a es­
sa antecipação. Este circuito gera, evidentemente, todos os co­
nhecidos paradoxos associados à ideia de profecia que se auto-
-realiza: se esperamos que um dado evento aconteça e agirmos
em função dessa previsão, ele acontecerá. As versões negativas
do mesmo princípio são mais interessantes: se esperamos/predi­
zemos uma catástrofe e agimos para a impedir, o resultado será
o mesmo, quer ela aconteça ou não. Se ela acontecer, as nossas
medidas preventivas serão consideradas como irrelevantes («na­
da podemos fazer contra o destino»); se ela não acontecer, isso
equivalerá ao mesmo, ou seja, visto que a catástrofe (em que não
A Marioneta e o Anão 215

acreditávamos, apesar do nosso conhecimento) era considerada


como impossível, as nossas acções preventivas serão novamente
julgadas como irrelevantes (lembremos o que se seguiu ao fa­
moso bug da passagem para o ano 2000!). Esta segunda opção
será então a única estratégia racional possível? Desenhamos o
quadro de uma catástrofe e depois agimos de forma a impedi-la,
esperando que o próprio sucesso das nossas acções preventivas
tome ridícula e irrelevante a perspectiva que nos levou a agir —
deveríamos assumir heroicamente o papel de semeador de pâni­
co excessivo a fim de salvar a hum anidade... Contudo, o círculo
não está completamente fechado: na década de 1970, Bemard
Brodie assinalou o meio para sair deste impasse, a propósito da
estratégia militar MAD* (destruição mútua assegurada) na Guer­
ra Fria:

É um curioso paradoxo do nosso tempo que um dos factores


essenciais que fazem funcionar tão bem a dissuasão [nuclear] se­
ja o medo subjacente de que ela pudesse fracassar se acontecesse
uma crise muito grave. Nestas circunstâncias, não se tenta o des­
tino. Se estivéssemos absolutamente seguros de que a dissuasão
nuclear era eficaz a cem por cento no seu papel de protecção con­
tra um ataque nuclear, então o seu valor dissuasivo contra uma
guerra convencional baixaria quase até zero32.

Os termos do paradoxo são aqui muito precisos: a estratégia


MAD é eficaz não por ser perfeita, mas devido precisamente a
essa sua imperfeição. Isto significa que a estratégia perfeita —
caso um dos campos desencadeie um ataque nuclear, o outro res­
ponderá automaticamente e ambos serão destruídos — apresenta
um defeito fatal: o que acontecerá se o primeiro campo, mesmo
depois do seu primeiro ataque, contar com o facto de o campo
adverso continuar a comportar-se como um agente racional? Ora,
tendo o seu país sido praticamente destmído por completo, ele

* O autor joga com o duplo sentido entre a sigla MAD (Mutually Assured Des-
truction) e o termo mad, «louco». (N. T.)
216 Slavoj Zizek

pode ou ripostar e provocar uma catástrofe total, o fim da huma­


nidade, ou não ripostar, assegurando assim a sobrevivência da
humanidade e, desse modo, pelo menos, a possibilidade de um
renascimento futuro do seu próprio país. Um agente racional es­
colheria a segunda opção... O que torna a estratégia MAD eficaz
é o próprio facto de nunca podermos ter a certeza absoluta de que
funcionará perfeitamente: que acontecerá se uma situação se tor­
nar incontrolável por toda a espécie de motivos fáceis de imagi­
nar (da agressividade «irracional» de um dos campos aos even­
tuais falhanços técnicos ou aos problemas de comunicação)?
É por causa deste risco permanente que os dois campos não que­
rem aproximar-se muito da perspectiva MAD, de modo que tam­
bém evitam as guerras convencionais. Se a estratégia MAD fos­
se perfeita, ela permitiria, pelo contrário, adoptar outra atitude:
«Vamos travar uma guerra convencional, pois sabemos ambos
que nenhum campo se arriscará a tomar a decisão fatal de desen­
cadear um ataque nuclear!» Portanto, a actual configuração
MAD não é «se seguirmos a estratégia MAD, a catástrofe nu­
clear não acontecerá», mas, «se seguirmos a estratégia MAD, a
catástrofe nuclear não acontecerá, excepto se acontecer um aci­
dente imprevisível». Isto também é válido, actualmente, para as
catástrofes ecológicas: se não fizermos nada, a catástrofe aconte­
cerá, e, se fizermos tudo o que pudermos, ela não acontecerá, ex­
cepto se acontecer um acidente imprevisível. Esse «imprevisível
factor Y» é precisamente o resto do Real que perturba a perfeita
autoclausura do «tempo do projecto» — se representarmos esse
tempo por um círculo, o resto do Real é um espaço que impede
a clausura perfeita do círculo (exactamente como na representa­
ção por Lacan do pequeno objecto a). O que confirma o estatuto
paradoxal desse factor Y é o facto de nele coincidirem possível e
impossível, positivo e negativo: ele torna a estratégia de pre­
venção eficaz precisamente na medida em que a impede de ser
totalmente eficaz.
Portanto, é essencial que não apreendamos esta «estratégia ca-
tastrofista» nos velhos termos da causalidade histórica linear: ac­
tualmente, ela não funciona porque enfrentamos múltiplas possi­
A Marioneta e o Anão 217

bilidades futuras e porque, no seio dessa multiplicidade, esco­


lhemos a opção que consiste em agir para impedir uma catástro­
fe. Visto que a catástrofe não pode ser «domesticada» como uma
possibilidade entre muitas outras, a única opção possível consis­
te em postulá-la como real·. «É preciso inscrever a catástrofe no
futuro de uma maneira muito mais radical. É preciso tomá-la ine­
vitá vel» ^ .
Aqui, devemos introduzir a noção de «alienação» minimal,
constitutiva da ordem simbólica e do campo social como tal: ape­
sar de eu saber perfeitamente que a minha sorte futura e a da so­
ciedade em que vivo depende causalmente da actividade presen­
te de milhões de indivíduos como eu, mesmo assim acredito no
destino, isto é, acredito que o destino é regido por uma potência
anónima independente da vontade e dos actos de qualquer indi­
víduo. A «alienação» consiste na «objectivação» minimal pela
qual me abstraio do meu papel activo e apreendo o processo his­
tórico como um processo «objectivo» que segue o seu próprio
curso independentemente dos meus planos. (A um nível diferen­
te, isto também é verdade para o agente que actua no mercado:
estando plenamente consciente de que o preço de um produto no
mercado depende [também] dos seus actos [vender e comprar],
mesmo assim ele considera o preço de um produto como fixo,
apreendendo-o como uma dada quantidade à qual reagirá conse­
quentemente.) O essencial, evidentemente, é que os dois níveis
se recortem: não ajo cegamente no presente, mas reajo à pers­
pectiva daquilo que o futuro vier a ser.

Este paradoxo designa a ordem simbólica como a ordem da


virtualidade: apesar de ser uma ordem que não tem existência
própria, independentemente dos indivíduos que com ela se rela­
cionam, ou, por outras palavras, como diz Hegel a propósito da
substância social, apesar de ela só ser actual nos actos do indi­
víduos, é porém a sua substância, o Em-si objectivo da sua exis­
tência social — é assim que devemos compreender o «Em e
Para-si» hegeliano: enquanto está no Em-si, existindo indepen­
dentemente do sujeito, ela é «postulada» como independente por
218 Slavoj Zizek

este, ou seja, ela só existe independentemente do sujeito na me­


dida em que este a reconhece como tal, na medida em que este
se relaciona com ela como sendo independente. Por esse moti­
vo, longe de assinalar uma simples «alienação», o reino dos es­
pectros mortos sobre os sujeitos vivos, essa «autonomização»
coexiste com a ética: as pessoas sacrificam as suas vidas por es­
sa virtualidade. Dupuy tem portanto razão ao sublinhar que aqui
é preciso rejeitar a «crítica» marxista simplista que pretende «ul­
trapassar» essa alienação, transformar a sociedade num corpo
autotransparente, no seio do qual os indivíduos realizam direc­
tamente os seus projectos colectivos, sem o desvio do «destino»
(a posição atribuída ao Lukács de História e Consciência de
Classe): um mínimo de alienação é a própria condição da ordem
simbólica como tal.
Por conseguinte, é preciso inverter o lugar-comum existencia­
lista segundo o qual, quando estamos envolvidos num processo
histórico, apreendem o-lo como cheio de possibilidades e
apreendemo-nos como agentes com a liberdade de escolher entre
essas múltiplas possibilidades, quando, retrospectivamente, o
mesmo processo parece completamente determinado e necessá­
rio, sem nenhum lugar para alternativas: pelo contrário, são os
agentes envolvidos que se vêem a si mesmos como que apanha­
dos num destino, reagindo simplesmente a ele, quando retros­
pectivamente, do ponto de vista da última observação, discerni­
mos alternativas nesse passado, vemos que os acontecimentos
teriam podido seguir um curso diferente daquele que seguiram.
(E o paradoxo da Predestinação — o facto de a teologia da pre­
destinação ter legitimado a actividade frenética do capitalismo
— não será a confirmação suprema desse paradoxo?) Eis como
Jean-Pierre Dupuy propõe que enfrentemos a catástrofe: primei­
ro, temos de apreendê-la como sendo o nosso destino, como uma
inevitabilidade; depois, temos de projectar-nos nela, adoptar o
seu ponto de vista e, a partir daí, inseri-la retrospectivamente no
passado (o passado do futuro) das coisas que teriam sido possí­
veis («Se tivéssemos tomado esta ou aquela medida, a catástrofe
em que hoje nos encontramos não teria acontecido!»), sobre as
A Marioneta e o Anão 219

quais fundamos depois a nossa acção. E a passagem do clássico


materialismo histórico à posição defendida por Adorno e Hor-
kheimer em A Dialéctica da Razão não será um bom exemplo da
inversão do destino positivo em destino negativo? Enquanto o
marxismo tradicional apelava ao nosso envolvimento e à nossa
acção para engendrar a necessidade (do comunismo), Adorno e
Horkheimer projectaram-se no resultado catastrófico apreendido
como já fixado (o advento da «sociedade administrada», a mani­
pulação total e o fim da subjectividade) para nos apelar a agir no
nosso presente contra esse resultado.

Na sua «guerra contra o terrorismo», os Estados Unidos es­


colheram a estratégia inversa, que consiste em escapar a urna
ameaça atacando preventivamente os inimigos potenciais. Em
M inority Report, o filme de Steven Spielberg, criminosos são
detidos mesmo antes de terem perpetrado o seu crime. Com
efeito, graças a monstruosas experiências científicas, três indi­
víduos adquiriram o poder de predizer o futuro e sabem anteci­
padamente que actos as pessoas irão praticar. Esta situação apre­
senta semelhanças evidentes com a nova doutrina Cheney, que
defende o direito de atacar um Estado inimigo mesmo antes de
ele ser considerado como capaz de ameaçar os Estados Unidos
ou, por outras palavras, no momento em que ele poderá tornar-
-se uma ameaça34. E, para continuar o paralelismo com o filme
de Spielberg, a oposição de Gerhard Schroeder ao projecto de
ataque preventivo contra o Iraque não será uma espécie de «mi­
nority report» bem real, exprimindo o seu desacordo quanto à
maneira como os outros encaram o futuro? A situação em que
vivemos actualmente, a da «guerra contra o terrorismo», é a de
uma ameaça terrorista indefinidamente suspensa: a Catástrofe (a
próxima agressão terrorista) é considerada como uma evidência
indiscutível, mas indefinidamente adiada. O evento que aconte­
cerá efectivamente, seja ele qual for, mesmo que se trate de uma
agressão muito mais horrível do que a dos atentados do 11 de
Setembro, nunca será a catástrofe temida. Aqui, é essencial rea­
lizar a «inversão transcendental»: a verdadeira catástrofe é esta
220 Slavoj Zizek

vida que já levamos, constantemente na sombra da ameaça de


uma catástrofe.
Terry Eagleton chamou recentemente a nossa atenção para a
existência de dois modos opostos da tragédia: o grande Evento
espectacular, a brutal irrupção de um outro mundo e a desolado­
ra persistência de uma condição desesperada, de uma existência
infeliz que prossegue indefinidamente, de uma vida vivida como
uma longa urgência35. É a diferença que encontramos entre as
grandes catástrofes do mundo desenvolvido, como o 11 de Se­
tembro e, por exemplo, a desoladora catástrofe permanente dos
palestinianos da Cisjordânia. O primeiro modo da tragédia, o de
uma figura que se destaca num pano de fundo «normal», é ca­
racterística do mundo desenvolvido, ao passo que, em boa parte
do Terceiro M undo, a catástrofe designa o presente pano de fun­
do inamovível.
Foi deste modo que a catástrofe do 11 de Setembro funcionou
efectivamente: como uma figura catastrófica que nos fez tomar
consciência, a nós, Ocidentais, do bendito pano de fundo da nos­
sa felicidade e da necessidade de defendê-la contra as agressões
do estrangeiro... Em suma, ela funcionou exactamente de acordo
com o princípio da Alegria Incondicional de Chesterton. À per­
gunta «Porquê esta catástrofe? Porque não podemos ser sempre
felizes?», a resposta é: «E por que motivo devíamos ser sempre
felizes, sem catástrofes?» O 11 de Setembro foi a prova de que
estamos felizes e de que outros invejam a nossa felicidade. Nes­
ta lógica, é preciso arriscar a tese de que os atentados do 11 de
Setembro, longe de terem tirado os Estados Unidos do seu sono
ideológico, foram utilizados como um sedativo permitindo que a
ideologia hegemónica se «re-normalizasse». O período que se se­
guiu à Guerra do Vietname foi um traumatismo prolongado para
a ideologia hegemónica — ela teve de se defender contra dúvidas
críticas, contra um remorso que a trabalhava permanentemente e
que ninguém podia simplesmente silenciar; cada tentativa de re­
gresso à inocência era logo vivida como uma escroqueria... Até
ao 11 de Setembro, dia em que os Estados Unidos se encontraram
na posição de vítima, podendo assim reafirmar a inocência da sua
A Marioneta e o Anão 221

missão. Em suma, longe de nos despertar, o 11 de Setembro ser­


viu para tomar a mergulhar-nos no nosso sono, para prosseguir­
mos o nosso sonho depois do pesadelo das últimas décadas.
A ironia suprema é que, para permitir que o patriotismo ame­
ricano reencontrasse a sua inocência, o estado-maior conserva­
dor americano apelou a um elemento essencial da ideologia do
«politicamente correcto», pelo qual professa, oficialmente, o
maior desdém: a lógica da vitimação. Partindo da ideia de que a
autoridade só pertence aos que falam numa posição de vítimas,
os conservadores repousaram implicitamente no seguinte racio­
cínio: «Agora, somos vítimas, o que nos autoriza a falar (e a agir)
numa posição de autoridade.» Portanto, quando ouvimos hoje di­
zer que os sonhos progressistas da década de 1990 acabaram, que
com os ataques ao WTC fomos reenviados brutalmente para o
mundo real, que os pequenos jogos intelectuais terminaram, de­
vemos lembrar que esse apelo para nos confrontarmos à dura rea­
lidade é a ideologia no seu estado puro. O actual grito «América,
acorda!» é um eco longínquo do «Deutschland, erwache!» de
Hitler, que, como Adorno escreveu há muito, tinha um sentido
precisamente oposto.
Tal como Freud sublinhou muitas vezes, o elemento-chave
dos sonhos em que o indivíduo está nu diante de uma multidão
indiferente, o elemento que provoca angústia, é o facto estranho
de essa nudez não parecer incomodar quem quer que seja: as pes­
soas prosseguem simplesmente o seu caminho, como se nada
fosse. Não haverá aí uma analogia com o pesadelo da violência
racista quotidiana que testemunhei um dia, pessoalmente, em
Berlim, em 1992? A princípio, pareceu-me ver, do outro lado da
rua, um alemão e um vietnamita que se divertiam efectuando
uma espécie de dança à volta um do outro. Levei algum tempo a
compreender que assistia a um caso actual de assédio racista: o
vietnamita, perplexo e, depois, assustado, procurava prosseguir
caminho, mas o alemão impedia-o, dando-lhe bem a entender
que ali não era o lugar dele, que não havia qualquer lugar onde
ele pudesse refugiar-se em Berlim. Por que motivo comecei por
interpretar mal a cena?
222 SIavoj Zizek

Por dois motivos. Primeiro, foi o facto de o alemão efectuar o


seu assédio de uma maneira estranhamente codificada, respei­
tando certos limites, sem chegar a atacar fisicamente o vietnami­
ta; basicam ente, nunca chegou a tocá-lo verdadeiramente,
limitava-se a bloquear-lhe o caminho. Depois foi, evidentemen­
te, o facto de os transeuntes de passagem (o acontecimento
registava-se numa rua muito animada e não num impasse escu­
ro!) ignorarem o que se passava — ou melhor, fingirem ignorar,
desviando o olhar, concentrados nos seus passos apressados, co­
mo se não se passasse nada de especial. A diferença entre este as­
sédio «suave» e um a brutal agressão física por um cabeça-rapada
neonazi será tudo o que restou da diferença entre civilização e
barbárie? Em muitos aspectos, esse assédio «suave» não será
ainda pior? De facto, ele permitia aos transeuntes de passagem
ignorarem tudo do acontecimento e considerarem-no como per­
feitamente normal, o que não teria sido possível no caso de uma
agressão física brutal e directa. Somos tentados a dizer que uma
ignorância semelhante, uma espécie de epochê ética, é mobiliza­
da quando somos levados a tratar o outro como um homo sacer.
Mas como escapar ao dilema?

Um fenómeno histórico aconteceu em Israel entre Janeiro e


Fevereiro de 2002: centenas de reservistas recusaram, em bloco,
cumprir o seu serviço militar nos territórios ocupados. Esses re-
fuzniks (como lhes chamam) não eram simples «pacifistas». Pe­
lo contrário, lembravam publicamente que tinham feito tudo por
Israel durante as guerras contra os Estados árabes — alguns ob­
tiveram até as mais elevadas condecorações. Eles afirmavam
simplesmente (e há sempre qualquer coisa de simples num acto
ético36) que não podiam aceitar uma guerra destinada a dominar
um povo para expulsá-lo, reduzi-lo à fome e rebaixá-lo. Justifi­
cavam as suas críticas com descrições pormenorizadas de actos
repreensíveis perpetrados pelas forças israelitas: crianças mortas
à bala, destruições de casas palestinianas... No site dos contesta-
tários, Gil Nemesh descreveu o pesadelo que reinava nos territó­
rios ocupados:
A Marioneta e o Anão 223

Amigos — eles obrigam um velho a ver o escândalo de fazer


sofrer crianças, exercem violência sobre pessoas simples e, ainda
por cima, vêm depois vangloriar-se e rir-se dessa horrível brutali­
dade... Não tenho bem a certeza de ainda poder considerá-los co­
mo amigos. [Eles] esqueceram a sua dignidade humana, não por
pura maldade, mas porque teria sido difícil adoptar outro com­
portamento nesta situação.

Uma certa realidade toma-se então perceptível: a de centenas


de pequenas (e não tão pequenas) vexações quotidianas e siste­
máticas às quais os Palestinianos estão expostos e o facto de es­
tarem desfavorecidos, como, aliás, os árabes israelitas (oficial­
mente, cidadãos do estado de Israel de pleno direito), no que toca
ao abastecimento de água, ao acesso à propriedade, etc.
Mas ainda mais decisiva é a «micropolítica» sistemática das
humilhações psicológicas: os Palestinianos são basicamente tra­
tados como criancinhas mal-comportadas que têm de ser repos­
tas no bom caminho pela imposição de uma disciplina de ferro e
de punições severas. A questão não é a arbitrariedade e a cruel­
dade deste tratamento, mas o facto de os palestinianos que vivem
nos territórios ocupados serem reduzidos ao estatuto de homo sa­
cer serem objecto de medidas disciplinares e/ou de ajuda huma­
nitária, sem serem considerados como cidadãos de pleno direito.
São os refuzniks que realizaram a passagem do homo sacer ao
«próximo», ao decidirem considerar os Palestinianos não como
«cidadãos com direitos iguais», mas como seus «próximos» no
sentido estritamente judaico-cristão do termo37. É aí que reside
precisamente o teste ético mais difícil para os Israelitas: «amor
pelo próximo» significa «amor pelos Palestinianos» (os seus pró­
ximos, por excelência), ou não significa absolutamente nada.
Não podemos ser suficientemente entusiásticos em relação a
esta recusa que foi, significativamente, pouco relatada pelos me­
dia: com efeito, esse gesto de demarcação, essa recusa de parti­
cipar, é o autêntico acto ético. É aí, nesses actos, que já não há
— como diria São Paulo — judeus ou Palestinianos, cidadãos de
pleno direito da polis ou homo sacer... Neste caso, não devemos
224 Slavoj Zizek

envergonhar-nos de ser platónicos: este «Não!» designa o mo­


mento milagroso em que a Justiça eterna aparece momentanea­
mente na esfera temporal da realidade empírica. A consciência
desses momentos é o melhor antídoto contra a tentação anti-
-semítica tantas vezes perceptível nas críticas endereçadas à po­
lítica do Estado de Israel.
Nada melhor do que simples experiências mentais para ilustrar
a fragilidade da presente conjuntura global: se, por exemplo, sou­
béssemos que a vida iria ser ameaçada na Terra (se, digamos, um
asteroide devesse colidir com a Terra dentro de oito meses), os
nossos conflitos mais ardentes, ideológicos ou políticos, parecer-
-nos-iam subitamente tão insignificantes como ridículos... Por
outro lado, se um atentado terrorista sem precedentes (o que, ad­
mitamos, talvez seja uma expectativa bem mais realista) tivesse
de acontecer (digamos, a destruição nuclear de Nova Iorque e
Washington, ou o envenenamento de milhões de pessoas por ar­
mas químicas), a nossa percepção da situação global alterar-se-ia
completamente. A resposta não é tão simples como poderíamos
julgar à primeira vista. De qualquer modo, mesmo na perspecti­
va de uma catástrofe global deste tipo, o que não pareceria insig­
nificante ou ridículo seriam os actos éticos «impossíveis». Parti­
cularmente, neste momento (Primavera de 2002) em que o ciclo
de violência entre Israelitas e Palestinianos se autonomiza pro­
gressivamente numa dinâmica de auto-engendramento — que até
as intervenções americanas parecem incapazes de travar — só
um acto milagroso poderia pôr-lhe termo.
Hoje, o nosso dever consiste em lembrarmo-nos desses actos,
desses momentos éticos. A inocência reconquistada do patriotis­
mo americano é apenas uma das versões do clássico procedi­
mento liberal quando confrontado com um conflito violento: a
adopção de um distanciamento seguro, a partir do qual todos os
participantes no conflito são igualmente condenados sob a falsa
universalidade da fórmula «Ninguém é puro». É um jogo fácil,
sem envolvimento pessoal. Deste modo, ganha-se duplamente:
preserva-se a superioridade moral sobre os que estão implicados
na guerra («No fundo, são todos os mesmos») e evita-se a difícil
A Marioneta e o Anão 225

tarefa de um envolvimento pessoal para analisar o problema e to­


mar uma posição.
Nestes últimos anos, o pacto antifascista herdado da Segunda
Guerra Mundial parece esboroar-se lentamente: dos revisionistas
históricos aos populistas da Nova Direita, assistimos à queda de
certos tabus... Paradoxalmente, são os que trabalham para pôr
termo a esse pacto que recorrem à mesma lógica vitimária libe­
ral e universalizada: «Houve certamente vítimas do fascismo;
mas, e os que foram forçados a deslocar-se depois Segunda
Guerra Mundial? E os alemães expulsos de suas casas na Che­
coslováquia, depois de 1945? Também não terão direito a com­
pensações financeiras?»38
Esta estranha conjunção entre dinheiro e vitimação é uma das
formas (talvez até a «verdade») do actual fetichismo pelo dinhei­
ro. Por um lado, sublinha-se que o Holocausto foi o crime por ex­
celência; por outro, luta-se denodadamente para obter compensa­
ções financeiras à sua altura... Um dos grandes topoi da crítica
desconstrutivista da ideologia é a noção de que um sujeito autó­
nomo, livre e responsável, é uma ficção legal cuja função consis­
te em construir um agente a quem seja possível imputar a respon­
sabilidade de actos socialmente inaceitáveis, ocultando assim a
necessidade de analisar de forma mais precisa as condições sociais
concretas que poderão ter engendrado os fenómenos considerados
como deploráveis. Quando um afro-americano desempregado,
que sofreu uma série de humilhações e desaires, rouba para ali­
mentar a sua família ou explode numa violência incontrolável, não
será cínico evocar a sua responsabilidade como agente moral au­
tónomo? No entanto, a velha regra sobre a ideologia também é vá­
lida para este caso: a inversão simétrica de uma proposição ideo­
lógica nem por isso deixa de ser ideológica — não estaremos hoje
perante a tendência oposta que consiste em atribuir a culpa (e, por­
tanto, a responsabilidade jurídica) a instâncias exteriores?
Eis um comunicado da Associated Press de 26 de Julho de 2002:

A obesidade em questão num processo movido aos fast-food —


Um homem intentou uma acção judicial contra quatro grandes ca-
226 Slavoj Zizek

deias defast-food, afirmando que se tomou obeso e contraiu gra­


ves problemas de saúde por ter consumido os seus produtos. Esta
quarta-feira, Caesar Barber, de 56 anos, intentou um processo, no
Tribunal do Bronx, contra a McDonald’s, a Wendy’s, a Burger
King e a Kentucky Fried Chicken. «Eles diziam “ 100% carne de
vaca”. Julgava que isso significava que era bom para a saúde», de­
clarou Barber à Newsday. «Julgava que era bom para mim. Na pu­
blicidade, as pessoas não dizem aquilo que os alimentos contêm
verdadeiramente: gordura, gordura e mais gordura. E, agora, sou
obeso.» Caesar Barber pesa 136 quilos, teve duas crises cardíacas,
em 1996 e 1999, sofre de diabetes, hipertensão arterial e tem uma
taxa de colesterol elevada. Diz ter frequentado os restaurantes de
fast-food durante dezenas de anos, convencido de que era bom pa­
ra a saúde, até ao dia em que o médico lhe explicou o contrário.

A mensagem contida numa queixa deste género é evidente:


não tenho nada a ver com isso, não é culpa minha, sou apenas
uma vítima passiva das circunstâncias, a responsabilidade não é
minha — e, se não sou responsável, outra pessoa tem de ser ju ­
ridicamente responsável pela minha desgraça. É isto que também
está errado na Síndrome da Falsa Memória: o esforço compulsi­
vo para explicar perturbações psíquicas actuais na base de uma
agressão sexual ocorrida no passado. Mais uma vez, a verdadei­
ra parada desta operação é a recusa do sujeito em aceitar a res­
ponsabilidade dos seus investimentos sexuais: se a causa das mi­
nhas perturbações é a experiência traumática do assédio de que
fui objecto, então o meu próprio investimento fantasmático nos
meus problemas sexuais é secundário e, em última análise, irre­
levante.
A questão que se coloca é a seguinte: até onde podemos ir nes­
ta via? Muito longe, segundo as últimas notícias. Não é signifi­
cativo que, quando os media mencionam o Holocausto, é quase
sempre para falar de compensações financeiras, somas que as ví­
timas ou os seus descendentes deveriam obter dos que sucede­
ram juridicamente aos responsáveis? E, visto que os judeus são,
por excelência, o grupo lesado, não admira que outros grupos
A Marioneta e o Anão 227

também lesados sigam esta via e reclamem igualmente compen­


sações. Eis um comunicado da Associated Press de 17 de Agos­
to de 2002:

Comício para obter o pagamento de compensações financei­


ras para os escravos — Centenas de negros juntaram-se diante do
Capitólio neste sábado, para reclamar compensações financeiras
pela escravatura, dizendo que estas lhes são devidas há muito
tempo pelos danos causados por essa instituição. «A América tem
uma grande dívida para com os negros por tudo o que lhes infli­
giu», declarou aos manifestantes Louis Farrakhan, presidente da
Nation of Islam. «Não aceitaremos ninharias. Precisamos de mi­
lhões de hectares de terra que os negros são capazes de desenvol­
ver. Não mendigamos nada aos brancos, apenas reclamamos o
que nos é justamente devido.»

Não seria lógico, na mesma ordem de ideias, imaginar o fim da


luta de classes: após longas e árduas negociações, representantes
da classe operária e do capital mundial deveriam chegar a um
acordo sobre o montante das compensações a dar à classe operá­
ria pela mais-valia de que os capitalistas se apropriaram ao longo
da história? Se tudo parece ter um preço, porque não levar essa
iniciativa até ao fim e reclamar a Deus indemnizações por ter
achavascado a Criação e causado assim o nosso infortúnio? E se
Ele já tivesse pago essa dívida ao sacrificar o seu filho único,
Cristo? O facto de esta hipótese já ter sido objecto de uma obra de
ficção é revelador da nossa época. Em The Man Who Sued God
[«O Homem Que Processou Deus»], uma comédia australiana de
2002, Billy Connolly desempenha o papel de um proprietário de
um acampamento situado à beira-mar, cujo barco é destruído du­
rante uma tempestade: os representantes da sua companhia de se­
guros dizem-lhe que esse acidente constitui um caso de força
maior (literalmente, «Act o f God»: acto de Deus) e recusam
indemnizá-lo. Entra então em cena um advogado habilidoso
(Judy Davis) que apresenta um argumento inteligente: se Deus é
responsável pela destruição do barco, porque não processá-lo na
228 Slavoj Zizek

pessoa dos seus representantes terrestres, as Igrejas? Este proces­


so coloca os representantes das Igrejas numa situação delicada: se
eles se defendem dizendo que não são os representantes de Deus
na Terra, perdem o trabalho; mas também não podem dizer que
Deus não existe, pois isso redundaria na destruição da religião or­
ganizada. Além disso, se Deus não existe, que fazer da cláusula
sobre os casos de força maior (o «acto de Deus») que permite
efectuar negócios aos tubarões dos seguros?
Este reductio ad absurdum revela bem o que esta lógica tem de
fundamentalmente errado: não se trata de dizer que ela é dema­
siado radical, mas sim que não é suficientemente radical. A ver­
dadeira tarefa não consiste em obter compensações da parte des­
ses responsáveis, mas em privá-los da posição que faz deles
responsáveis. Em vez de pedir compensações a Deus (à classe di­
rigente, ou a quem quer que seja), é preciso colocar a questão:
precisamos realmente de Deus? Isto significa algo muito mais ra­
dical do que pode parecer: não há ninguém para quem possamos
voltar-nos, dirigir-nos, ninguém para apoiar o nosso testemunho,
receber a nossa queixa ou o nosso lamento. Esta posição é extre­
mamente difícil de sustentar: na música moderna, Webern foi o
primeiro capaz de sustentar a inexistência do Outro; mesmo
quando Schoenberg ainda compunha para um futuro ouvinte
ideal, Webern já aceitava que ele não existia.
Contrariamente a todas as aparências, é o que acontece na psi­
canálise: o tratamento acaba quando o paciente assume a inexis­
tência do grande Outro. O destinatário ideal do nosso discurso, o
ouvinte ideal, é o psicanalista, exactamente o oposto da figura do
Mestre que garante o significante; o que acontece no fim da aná­
lise, com a dissolução da transferência, isto é, com a queda do
«sujeito-suposto-saber», é a aceitação da ausência dessa garantia
por parte do paciente. Não admira que a psicanálise subverta o
próprio princípio do reembolso: o preço que o paciente paga pe­
lo tratamento é, por definição, caprichoso, «injusto», sem equi­
valência possível entre si e os serviços que presta. É também por
isso que a psicanálise é profundamente antilevinassiana: não
existe frente-a-frente entre paciente e analista, pois aquele está
A Marioneta e o Anão 229

deitado no divã e este está sentado atrás dele — a análise pene­


tra nos mistérios mais recônditos do sujeito evitando o frente-a-
-frente. Este evitamento permite que o paciente não «perca a fa­
ce» e possa contar os pormenores mais embaraçosos. Neste
sentido preciso, o rosto é um fetiche: quando aparece para m ani­
festar o imperfeito abismo vulnerável da pessoa atrás do objecto-
-corpo, dissimula o núcleo real obsceno do sujeito.
Neste aspecto, não será o cristianismo exactamente o oposto
da psicanálise? Ele não representará esta lógica do reembolso le­
vada ao seu extremo: o próprio Deus paga o preço de todos os
nossos pecados? É por isso que qualquer tentativa para conside­
rar o Deus cristão como uma entidade de pura misericórdia, que
nada pede e cuja mensagem é «Não quero nada de ti!», falha m i­
seravelmente — não devemos esquecer que estas foram precisa­
mente as palavras utilizadas pelo Sacerdote para designar o Tri­
bunal em O Processo, de Kafka: «O Tribunal não quer nada de
ti.» Quando uma falsa figura crística inocente, de sofrimento pu­
ro e de sacrifício para o nosso bem, nos diz «Não quero nada de
ti!», podemos ter a certeza de que esta declaração dissimula o re­
quisito « ... excepto a tua própria alma». Quando alguém insis­
te dizendo que não quer nada do que possuímos, significa sim­
plesmente que tem os olhos postos naquilo que somos, no
verdadeiro núcleo do nosso ser. Ou, para utilizarmos um nível
mais anedótico, não será claro que quando assistimos a uma que­
rela entre apaixonados e a mulher responde «Nada!» à desespe­
rada pergunta do homem, «Mas afinal o que queres de mim?», is­
so significa exactamente o oposto, um pedido para uma rendição
total para lá de qualquer acordo negociado39? «A cavalo dado
não se olha o dente» — não será precisamente o que devíamos
fazer para discernir se estamos perante uma verdadeira prenda ou
uma secreta instrumentalização? Recebemos uma prenda, mas
um exame mais atento mostra-nos que essa oferta «livre» está
destinada a colocar-nos numa posição de dívida permanente — e
isto talvez se aplique especialmente à noção de «oferta» na re­
cente versão teológica da desconstrução, de Derrida a Marion.
230 Slavoj Zizek

Este livro procurou mostrar a existência de outra dimensão no


verdadeiro núcleo do cristianismo. Quando Cristo morre, o que
morre com ele é a esperança secreta discemível na frase: «Pai,
porque me abandonaste?», esperança de que existe um pai que
me abandonou. O «Espírito Santo» é a comunidade privada do
seu suporte no grande Outro. O ponto essencial do cristianismo,
como a da religião do ateísmo, não é a vulgar questão humanis­
ta do «tomar-se homem de Deus» que revela que o homem é afi­
nal o segredo de Deus (Feuerbach et a l.);é antes o ataque ao nú­
cleo religioso duro que sobrevive mesmo no humanismo, até no
estalinismo, com a sua crença na história como o «grande Outro»
que decide do «significante objectivo» dos nossos actos.
Naquilo que talvez seja o melhor exemplo da Aufhebung («ul­
trapassagem») hegeliana, hoje só é possível redimir esse núcleo
do cristianismo pelo gesto que consiste em abandonar o escudo
da sua organização institucional (e, mais ainda, da sua experiên­
cia religiosa específica). Aqui, a distância é irredutível: ou aban­
donamos ou conservamos a forma religiosa mas perdemos a es­
sência. E aí que reside o supremo gesto heróico que espera o
cristianismo: para poder salvar o seu tesouro, tem de se sacrifi­
car a si mesmo, como Cristo teve de morrer para que o cristia­
nismo pudesse emergir.

Notas

1. Não admira que os ovos Kinder estejam hoje proibidos nos Estados Uni­
dos e que seja preciso importá-los do Canadá (o que triplica o seu custo). Ofi­
cialmente, esta medida fundamenta-se no facto de o objecto vendido não cor­
responder àquele que é referido pela publicidade. Os ovos Kinder manifestam,
com demasiada clareza, a estrutura interna da mercadoria.
2. Patricia Fumerton, Cultural Aesthetics, Chicago, University of Chicago
Press, 1991, particularmente o capítulo IV, «Consuming the Void».
3. Brian Rotman, Signifying Nothing: The Semiotics o f Zero, Londres, Mac­
Millan, 1987.
4. Martin Heidegger, «Das Ding», in Vortraege und Aufsetze, Pfullingen,
Neske, 1954.
A Marioneta e o Anão 231

5. Miguel de Beistegui, Heidegger and the Political: Dystopias, Londres,


Routledge, 1998.
6. Francis Fukuyama, Our Posthuman Future, Londres, Profile Books,
2002,p p . 149-150.
7. Dominique Laporte, Histoire de la merde, Paris, Christian Bourgois,
1993.
8. Otto Weininger, Ueber die letzten Dinge, Munique, Matthes und Seitz
Verlag, 1997, p. 187.
9. Ibid., p. 188.
10. Poderíamos também explorar o exemplo dos ovos Kinder no sentido in­
verso: porque não privilegiar o facto de a casca de chocolate ser sempre idên­
tica, enquanto o brinquedo contido no interior é sempre diferente (daí, o nome
Kinder Surprise)? Não se passará o mesmo com os homens? Podemos parecer
idênticos, mas dentro de cada um de nós encontra-se o mistério da nossa psi­
que, cada um de nós dissimula uma insondável riqueza interior. Poderíamos
também utilizar o facto de o brinquedo de plástico ser composto por pequenas
peças — da mesma maneira como devemos supostamente proceder para formar
o nosso ego.
11. A passagem que se segue é baseada numa conversa que tive com Noam
Yuran, em Telavive.
12. Nos Estados Unidos, os survivalists são pessoas que consideram que a
sociedade está prestes a ser destruída pela guerra, pela delinquência, pelos pro­
blemas ambientais, etc. Consequentemente, a fim de se preparem para a catás­
trofe, vivem à parte, muitas vezes em regiões isoladas, e acumulam armas de
fogo de que necessitarão um dia. Regra geral, são brancos da extrema-direita.
13. A este respeito, devemos sublinhar, antes de mais, o carácter oscilante
(ou, como se diz modestamente, «indecidível») do feminismo contemporâneo
nos estados industriais contemporâneos. O feminismo americano dominante,
com o cunho legalista que encontramos em Catherine MacKinnon, é afinal um
movimento ideológico profundamente reaccionário, sempre pronto a justificar,
através de argumentos feministas, as intervenções do exército americano, sem­
pre pronto, quando a oportunidade se apresenta, a fazer observações deprecia­
tivas sobre as pessoas do Terceiro Mundo (do sacrossanto fascínio pela questão
da excisão às alusões racistas de Catherine MacKinnon sobre os Sérvios, gene­
ticamente programados para as depurações e para as violências étnicas).
14. «On Evil: An Interview with Alain Badiou», Cabinet, 5, Inverno de
2001, p. 72.
15. O que é verdadeiro sobre a mulher em análise — a mascarada da femi­
nilidade significa que, sob as diversas camadas da máscara, não encontramos o
X feminino inacessível, pois, em última instância, as máscaras têm apenas por
função esconder o facto de que não há nada a esconder — também é verda­
deiro para o «próximo».
16. Alain Badiou, Deleuze, Paris, Hachette, 1997.
17. A dificuldade para aceitar o apelo em geral é o grande tema do cinema
hollywoodiano pós-tradicional. Qual o ponto comum entre A Ultima Tentação
232 Slavoj Zizek

de Cristo e Kudiin, dois filmes de Martin Scorcese? Ambos apresentam encar­


nações humanas da figura divina (Cristo num caso e o Dalai Lama no outro)
durante o doloroso processo de aceitação dos seus respectivos mandatos.
18. Em Agamben, o homo sacer é uma noção extraída do antigo direito ro­
mano. Ela designava um homem executado sem ter cometido qualquer crime
— mas nem por isso era sacrificado aos deuses —, ao passo que, no nosso con­
texto, sacer significa qualquer coisa como o «imbecil feliz».
19. G. K. Chesterton, Orthodoxy, op. cit., p. 19.
20. Giorgio Agamben, Ce qui reste d ’Auschwitz, Rivages, 1999, Rivages Po­
che, 2003, p. 161.
21. Ihid, pp. 178-179.
22. Martin Heidegger, «Holderlin’s Hymne “Der ister”», Gesamtausgabe,
t. 53, Frankfurt, Klostermann, 1984, p. 94.
23. Friedrich Nietzsche, Assim Falava Zaratustra, citado em The Portable
Nietzsche, Nova Iorque, Viking, 1968, p. 130.
24. Curiosamente, o mesmo aplica-se à crítica heideggeriana da psicanálise:
não podemos deixar de ser atraídos pelos dois níveis em que ela opera. Por um
lado, há o fácil jogo filosófico da rejeição transcendental (que pode até ser
acompanhado por uma admissão condescendente do seu uso para finalidades
médicas): «Apesar de a psicanálise ter uma utilidade clínica, permanece uma
ciência ôntica que repousa em pressupostos fisicalistas e biológicos néscios, ca­
racterísticos do final do século xix.» Por outro lado, deparamos com rejeições
concretas, tentativas concretas para demonstrar a sua insuficiência — por
exemplo, como Freud falha o ponto essencial do fenómeno que interpreta ao
focalizar-se demasiado na cadeia causai do inconsciente, etc. Como se relacio­
nam estes dois procedimentos? Será o segundo simplesmente um acrescento
desnecessário ou um suplemento necessário, uma admissão implícita da insufi­
ciência da rejeição directamente filosófica? Não encontramos aqui reproduzi­
da, num outro nível, a ambiguidade da noção de catástrofe, a um tempo um fac­
to ontológico que já/sempre ocorreu e uma ameaça ôntica?
25. Bernard Williams, Moral Luck, Cambridge, Cambridge University
Press, 1981.
26. Jean-Pierre Dupuy, Pour un catastrophisme éclairé, Paris, Seuil, 2002
[«Points», 2004], pp. 124-126.
27. Henri Bergson, Les Deux Sources de la morale et de la religion, Œuvres,
Paris, Presses universitaires de France, 1970, p. 1110.
28. Ihid. O itálico é do autor.
29. Henri Bergson, La Pensée et le Mouvant, Œuvres, op. cit., pp. 142-143.
30. Jean-Pierre Dupuy, Pour un catastrophisme éclairé, op. cit., pp. 142-
-143.
31. Há também, evidentemente, uma maneira ideológica de projectar/inserir
possibilidades no passado. A atitude de numerosos esquerdistas libertários a
respeito da desintegração da Jugoslávia é a seguinte: «A soberania das repúbli­
cas da ex-Jugoslávia pode ser, em si, uma finalidade legítima, mas valerá o pre­
ço a pagar — centenas de milhares de mortos, incontáveis destruições...?»
A Marioneta e o Anão 233

O que é falso, neste caso, é o facto de a escolha real tal como ela se apresenta­
va no final da década de 1980 ser sub-repticiamente reformulada, como se ti­
vesse sido: «Ou a desintegração da Jugoslávia em diferentes Estados, ou a con­
tinuação da velha Jugoslávia de Tito.» Com a chegada de Milosevic ao poder,
a velha Jugoslávia de Tito estava morta. Face à alternativa «ou repúblicas so­
beranas ou uma “Servoslávia”», a única terceira via possível era um verdadei­
ro acto político, a reinvenção total de um novo projecto jugoslavo. Ninguém te­
ve a capacidade nem a vontade indispensáveis para esse projecto.
32. Bemard Brodie, War and Politi.es, Nova Iorque, MacMillan, 1973,
p. 430-431, citado in Jean-Pierre Dupuy, Pour un catastrophisme éclairé, op.
cit., pp. 208-209.
33. Jean-Pierre Dupuy, Pour un catastrophisme éclairé, op. cit., p. 164.
O itálico é do autor.
34. Os Estados Unidos justificam o seu recurso a ataques preventivos pela
putativa «irracionalidade» dos terroristas. Contrariamente aos comunistas da
Guerra Fria, que procediam a frios cálculos racionais, os terroristas fundamen-
talistas são fanáticos irracionais prontos a fazer explodir toda a Terra... Aqui é
preciso sublinhar, mais do que nunca, que esta figura do inimigo «irracional»
é uma «determinação reflexiva» (como teria dito Hegel) da posição, adoptada
pelos Estados Unidos, de única potência hegemónica mundial.
35. Terry Eagleton, Sweet Vioience, Oxford, Blackwell, 2003.
36. As grandes frases que desempenharam um papel histórico decisivo são,
regra geral, tautologias terra-a-terra — de Rosa Luxemburgo («A liberdade é
sempre a daqueles que pensam de outra maneira») a Mikhail Gorbatchev, com
o seu aviso destinado aos que não estavam prontos para prosseguir a sua polí­
tica de perestroika («Os que chegarem tarde de mais serão punidos pela vida»),
O que contou não foi o conteúdo dessas frases, mas simplesmente o seu papel
estrutural. Se a observação de Rosa Luxemburgo tivesse sido proferida por um
crítico liberal da revolução bolchevique, já teria sido esquecida há muito.
37. É de notar a diferença entre esse amor pelo próximo, judeu e cristão, e a
compaixão budista para com o indivíduo que sofre. Esta última não está volta­
da para o «próximo» no sentido de um abismo sem fundo do desejo do Outro,
fonte de angústia, mas antes de mais para o sofrimento, que nós, humanos, par­
tilhamos com os animais (em virtude da teoria da reencarnação, um homem po­
de portanto renascer como animal).
38. Não poderíamos dizer o mesmo das campanhas antiaborto? Não partici­
parão da mesma lógica global da vitimação e esta não se estenderá à vida antes
do nascimento?
39. The Polish Wedding [«O Casamento Polaco»], um belo melodrama so­
bre as complicações da vida no seio de uma família polaca da classe trabalha­
dora em Detroit, contém uma cena que gira em torno desta fórmula, revelando
a sua própria verdade: quando o amigo de Claire Danes lhe pergunta, furioso,
«Que queres de mim?», ela responde «Tudo!», e afasta-se calmamente dele.
Obras do autor nesta editora

Bem-Vindo ao Deserto do Real


Elogio da Intolerância
A Subjectividade por Vir
As Metástases do Gozo
N e st a C o l e c ç ã o

1. Nuno Brederode Santos: Rumor Civil


2. Júlio Machado Vaz: O Sexo dos Anjos
3. Júlio Machado Vaz: Domingos, Sábados e Outros Dias
4. Miguel Sousa Tavares: Um Nómada no Oásis
5. Carlos Amaral Dias e Fernando Alves: Avenida de Ceuta, n.° 1
6. Edgar Morin: Os Fratricidas
7. António Barreto: Sem Emenda
8. Vasco Pulido Valente: Esta Ditosa Pátria
9. Clara Pinto Correia: Â Deriva dos Continentes
10. Maria Filomena Mónica: Os Filhos de Rousseau
11. Júlio Machado Vaz: Conversas no Papel
12. Hans Magnus Enzensberger: Perspectivas da Guerra Civil
e A Grande Migração
13. António Barreto: Uma Década
14. Júlio Machado Vaz: Estilhaços
15. Naomi Klein: No Logo
16. Carlos Vaz Marques: Pessoal... e Transmissível
17. Vários: O Mundo depois da Guerra no Iraque
18. John Gray: Al-Qaeda e o Significado de Ser Moderno
19. Rohan Gunaratna: No Interior da Al-Qaeda, Rede Global do Terror
20. Clara Pinto Correia: Trinta Anos de Democracia, e Depois Pronto
21. José Gil: Portugal, Hoje: O Medo de Existir
22. Slavoj Zizek: Bem-Vindo ao Deserto do Real
23. Slavoj Zizek: Elogio da Intolerância
24. Slavoj Zizek: A Subjectividade por Vir

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