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Espanto feliz

O Rei ficou absolutamente transtornado; a seguir, desconsolado; pensou em morreu também; iluminou-se: “Para
que ninguém, nunca mais, sofra o que estou a sofrer, vou proibir a morte”. Assinou com uma pena de ouro (e muita
pena no coração):

Está decretado que é proibido morrer!


Peloponeso.

O povo vibrou: seremos imortais!


Como ninguém mais morria, a população dobrou. Como a população dobrou, a comida diminuiu. Como havia
gente de mais e comida de menos, o Rei pensou e assinou novo decreto.

Está decretado que é proibido nascer!!


Peloponeso.

O povo virou novamente. Todos elogiaram a medida sábia: agora, a comida dará para todos.
As crianças cresceram e viraram adultos. Como era proibido nascer, em País-lândia já não havia nem crianças nem
jovens. Só adultos e velhos. Cada vez mais pessoas velhas. E velhos cada vez mais velhos. Velhíssimos.
Como os velhíssimos velhos estavam cada vez mais ve-lhi-ssí-sse-mos, já não tinham força para trabalhar e
produzir. A comida passou a ser coisa rara.
O rei, já agora com mais de trezentos anos de idade, sempre a achar que sabia tudo, pensou, pensou, pensou e
assinou outra lei:

É proibido comer.
Peloponeso (O rei)

O tempo passou.
Com fome e devido à velhice eterna, as pessoas de País-lândia começaram a ficar cada vez mais doentes. Já tinham
vivido muito, achavam que uma vida de mais de quinhentos anos era suficiente, mas, como não podiam morrer,
ficaram a sofrer: de dores, de fome, de reumatismos, de cegueira. Os bichos começaram a imperar em País-lândia.
Devoraram tudo. Invadiram as casas. Cães famintos, lobos, ratos. Devido à fome muitos animais caíam mortos pelas
ruas. O lixo era cada vez maior e mais fedorento. O Reino de País-lândia era um deserto de mortos- vivos.
O Sol, vendo um Reino sem crianças e sem jovens, decidiu nunca mais aparecer ali. Então, caiu a noite eterna.
País-lândia era uma Reino que havia perdido todo o encanto; triste, escuro, sem sol, sem crianças, sem comida,
inundada de lixo. Como um dos habitantes estava tão velho e a sua memória falhava, ele esqueceu-se da proibição real
e, simplesmente, morreu.
O Rei, também sem memória, esqueceu-se do que havia decretado séculos atrás e resolveu dar um magnífico
banquete para os seus amigos.

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Como não sabia da proibição real, uma criança – Izadora – nasceu.
Izadora chorava, totalmente cercada pelo escuro. O Sol, ao ouvir um bebé chorando em País-lândia, decidiu dar
uma olhadinha para saber o que estava a acontecer. Ao ver Izadora, o Sol, radiante de felicidade, resolveu ir dar-lhe
um beijo.
O Sol sorriu magníficos raios sobre o Reino. E os milhões de raios solares transformaram-se em milhões de bebés
que, com os seus sorrisos, iluminaram os séculos da noite preta e desceram à Terra para re-encantar o triste reino de
País-lândia. Nos velhos-velhíssimos brilhou um delicado espanto – terno e feliz!

O Piano de calda

Era uma simpática família de bombons que adoravam música. O pai chamava-se Viola D´Amoras, porque tinha
recheio das frutinhas silvestres. A mãe, Flauta de Mel, era um bombom fininho, feito com mel e chocolate. O filho
mais velho, Trombone de Cerejas, tinha a pele cheia de pedacinhos de fruta. E o bombom mais novo, o Piano de
Calda, recebeu este nome porque, logo depois de nascer, foi mergulhado numa grossa calda de chocolate branco.
Além deles, havia os primos, os tios, os avós. A família de bombons morava na Caixa número
9.696.696.696.696.696.696.696.696.696.969.696.969.696. da Fábrica de Chocolates Musicais.
Na fachada da casa – uma bela caixa de bombons de um amarelo bem vivo – estavam pintados os retratos dos avós
e dos pais do bombom Piano de Calda: quatro magníficas delícias. Fechado na sua grande casa amarela, o Piano de
Calda queria movimento – como qualquer criança. Sempre que ouvia barulho feito pelos humanos ele ficava excitado,
à espera que abrissem a caixa-casa e ele pudesse ver um pouco do mundo. Até que um dia o Piano de Calda ouviu
uma criança a chorar. Então, abriram a caixa amarela pela primeira vez.
- Toma lá amiguinho para ti – disse mãe da criança.
E pegou num bombom da caixa, uma das primas do Piano de Calda, a Harpa de Tulipas. E não é que a Harpa de
Tulipas fez a criança parar de chorar? Piano de Calda ficou absolutamente maravilhado com aquilo.
- Nós, os chocolates, fazemos as crianças felizes! – disse bem alto.
Fecharam a caixa amarela.
Piano de Calda esperou. Estava impaciente. Depois de algumas horas fechado, perguntou à mãe Flauta de Mel:
- E a Harpa de Tulipas? Quando é que volta?
-Não volta, disse Flauta de Mel.
- Não volta? E porquê?
- Foi passear. Num lugar muito longe. Ela agora mora lá.
- Também quero passear, mãe. Também quero.
E toda a vez que o Piano de Calda ouvia vozes ficava muito ansioso, principalmente se eram risos e gritos das
crianças. Após alguns dias em silêncio, uma mão adulta abriu a caixa e levo o avô do Piano de Calda para passear.
Depois de um muito rápido “ Adeus, vó.”, o Piano de Calda começou a ficar muito triste.
- Mamã, por que nunca me escolhem? Também quero ir.
- Não tenhas pressa, filho. É porque ainda és muito pequeno. Teu dia há de chegar.

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Bombom Piano de Calda começou a chorar porque não o escolhiam nunca. No dia seguinte, quem chorava era o
Trombone de Cerejas, o irmão mais velho. As lágrimas começaram logo que abriram e fecharam muito rapidamente a
caixa.
- O que foi, Trombone? – perguntou o Piano de Calda.
- O pai e a mãe… tu não viste?
- Vi. Foram passear. Estás a chorar porque não te escolheram? Não chores. Tu não vês que de vez em quando eu
também choro? Mas passa. Um dia escolhem-te.
Piano de Calda ficou com o olho cheio de sonhos.
- Eu queria dar este passeio … deve ser tão bonito…
-Não é passeio, é morte. – disse Trombone de Cerejas, que era um chocolate bem amargo. Trombone de Cerejas,
ainda a chorar, explicou ao Piano de Calda o que acontece quando os bombons são retirados das caixas. Disse que são
comidos pelos humanos. Confessou que os bombons morrem.
Piano de Calda entrou em pânico. Sofreu pela morte dos pais. Sofreu pela morte de todos os parentes musicais. E
sofreu porque um dia iria morrer.
- Adoro a vida. Não quero morrer nunca. Não quero.
E chorou com muito medo.
Um dia, fechado em sua caixa-casa, o Piano de Calda – aquele bombom que ficava sempre excitado quando ouvia
vozes, gritos e risos – ficou paralisado: eram as terríveis vozes das crianças da casa e da vizinhança. E, quando o Piano
de Calda começou a abrir bem os ouvidos para escutar melhor, o que abriram mesmo foi a caixa. Pegaram no Piano de
Calda!!! Ele continuou paralisado de medo.
- Não! Não vou comer chocolate hoje não. Estou muito cheiinha – disse uma mulher enorme de obesa, cuja barriga
tinha três andares.
Ela largou Piano de Calda. Fechou a casa. Mas os miúdos logo gritaram.
- Ah, eu quero!
- Eu também!
- Adoro chocolate.
Abriram a caixa de novo. Pegaram muitos chocolates. O Piano de Calda encolheu-se todo para não ser escolhido.
Todos os parentes foram levados. Piano de Calda ficou sozinho. O único que restou da família. Chorou de tristeza pela
morte de todos os parentes. Já não restava mais ninguém.
Um dia pegaram nele de novo e Piano de Calda, então, derreteu de tanto medo.
- Ah, que chatice! Este já está velho! Derreteu. O menino largou na caixa o bombom Piano de Calda, todo
aborrecido.
A caixa ficou lá, aberta. Pela primeira vez. Com sua casa aberta, Piano de Calda passou a observar o mundo. Certo
dia viu chegar uma nova família de bombons musicais. Estavam felizes e sorriam inocentemente quando algum deles
era levado a passear. Piano de Calda deu um sorriso triste. E começou logo a compreender melhor a vida. Ficou velho.
Ficou sábio. Viveu muitos anos totalmente esquecido. Nunca ninguém tão desprezado foi verdadeiramente tão feliz.
Passaram-se os tempos e Piano de Calda começou a sentir-se muito sozinho. E pensou: “Para que servem os
bombons? Para dar prazer às pessoas, é claro.” Nesse instante, a Guida, de seis anos, olhou dentro da caixa. Ao ver
que ainda tinha um bombom, todo amassadinho, sorriu feliz. Piano de Calda também sorriu para ela.

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