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RELATOS DE CASOS

Famílias monoparentais –
Uma família, um caso...
ISABEL MATOS CORREIA*

RESUMO ABSTRACT
A família tem uma história natural que a faz avançar por etapas sucessivas, durante as Families have their own natural history. They move on in successive stages through
quais os seus membros sofrem mudanças e adoptam novos comportamentos. which their members change themselves and their behaviour. Those stages
Estas etapas constituem o ciclo de vida familiar, que é concebido como a sequência de make up the family life cycle, which is seen as a sequence of steps the
estadios que a família atravessa desde o seu estabelecimento até à sua dissolução. family goes through from its inception on to its dissolution.
A família monoparental, constituída por um só cônjuge e seus filhos, os quais podem ter Single-parent families are made up by one sole parent and his or her children,
diversas idades, é uma das estruturas familiares que têm vindo a aumentar nas possibly of different age groups. This type of family structure has
últimas décadas, quer a nível internacional quer a nível nacional, com especial increased both in this country and abroad in the past few decades, especially as of
incidência a partir dos anos 70, década a partir da qual esta forma familiar the 1970s when this family pattern seems to have trebled. It has been estimated
parece ter triplicado, estimando-se actualmente que este tipo de família that this type of family corresponds to over 25% of the total of family structures.
represente mais de 25% da totalidade das diversas formas familiares. Like any other family type, in this one its members have to deal with life cycle problems
Esta tipologia familiar, tem, tal como os outros tipos de família, de lidar com os problemas and crises, and still go on ensuring the functions necessary for the evolution of its mem-
e as crises do seu ciclo de vida e ainda “continuar a assegurar as funções necessárias à bers. Therefore, a diverse approach is needed to help build/re-build a novel family life so
evolução dos seus membros, pelo que se impõe a necessidade de uma diferente that it may be psychologically and emotionally satisfactory for every one of its members.
abordagem na ajuda da construção/reconstrução de uma nova vida familiar, One thus has to move from the usual therapeutic approach on to the realm
psicológica e emocionalmente satisfatória para cada um dos seus membros. of Family Therapy by acquiring deeper knowledge on the subject and by integrating it
Assim surge a necessidade de passar da área de trabalho terapêutico, habitualmente into one’s clinical practice. This is especially important for this type of family, in that it has
utilizada, para a área de Terapia Familiar através do aprofundamento de conhecimentos its own characteristics and specificity, while playing the same roles and having the same
e da sua integração na prática clínica, necessidade que se torna mais premente nesta functions and responsibilities as any nuclear type family.
tipologia familiar, que apresenta características e especificidades próprias e variáveis,
embora tenha as mesmas funções, papéis e responsabilidades da família nuclear. Key-Words:
Single-parent Family; Life Cycle; Parent-child and
Palavras-Chave: Sibling Relationships; Family Therapy; Intervention; Reference.
Família Monoparental; Ciclo de vida; Relacionamento
Parento-filial e Fraternal; Intervenção; Referência

família tem uma história lia atravessa desde o seu estabeleci- dade1.

A natural que a faz avan-


çar por etapas sucessi-
vas, durante as quais os
seus membros sofrem mudanças e
adoptam novos comportamentos.
mento até à sua dissolução1.
Em cada fase do ciclo de vida, a
família tem que mudar para se
adaptar às modificações estrutu-
rais, funcionais e de papéis a que
A família monoparental é uma ti-
pologia familiar que se origina após
um acontecimento vital stressante
tal como o falecimento de um côn-
juge, uma separação, um divórcio,
Estas etapas constituem o ciclo de cada etapa dá lugar. Mas, se há cer- ou o abandono do lar por parte de
vida familiar, que é concebido como tas modificações no ciclo de vida um dos cônjuges, mas também no
a sequência de estadios que a famí- familiar que são próprias e exclusi- caso da mulher grávida que não
vas de cada etapa, outras podem quer cohabitar com o pai do seu fi-
*Assistente Graduada de Clínica Geral surgir em qualquer estadio do ciclo lho, preferindo assumir sozinha a
Centro de Saúde Coração de Jesus, Lisboa como é o caso da monoparentali- sua maternidade. A família mono-

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parental é pois constituída por um da familiar, psicológica e emocio- mais calor humano e interagem
só cônjuge e seus filhos, os quais nalmente satisfatória para cada um mais com os seus filhos, embora
podem ter diversas idades2. dos seus membros. também apresentem conflitos mais
As famílias monoparentais têm Segundo Minuchin5 «em vez de intensos, embora não mais frequen-
vindo a aumentar nas últimas nos agarrarmos ao conceito de nor- tes, do que nas famílias nucleares8.
décadas, quer a nível internacional malidade da família nuclear intac- Estas mães parecem estar sujei-
quer a nível nacional, com especial ta, temos de aceitar que, no nosso tas a um maior stress psicológico e
incidência a partir dos anos 70, tempo e na nossa cultura, uma fa- a uma maior morbilidade psiquiá-
década a partir da qual esta forma mília onde houver uma separação/ trica, que estão relacionados não só
familiar parece ter triplicado, esti- divórcio é uma organização viável». com uma maior exposição ao stress,
mando-se actualmente que este O divórcio/separação é uma si- mas também com um menor nível
tipo de família represente mais de tuação de crise, de maior risco de económico, sabendo-se que o déficit
25% da totalidade das diversas for- disfunção familiar, mas que, se ade- de recursos económicos, só por si,
mas familiares3. quadamente ultrapassada, pode aumenta o stress e os problemas
A existência de elevada percenta- originar um processo de maturação mentais9.
gem de famílias monoparentais foi e crescimento individual dos seus No entanto, a adaptação psicoló-
comprovada pela experiência da membros2. gica destas mães e o nível de stress
minha consulta de clínica geral, em Assim, a família monoparental na educação dos seus filhos é a mes-
que com uma lista de cerca de deverá ser considerada apenas co- ma do que as das famílias com pai
1.600 utentes distribuídos por 702 mo uma variante dentro do leque presente, estando as crianças mais
famílias, cerca de 131 são famílias das estruturas familiares relativa- ligadas à mãe, embora possam ser
monoparentais, correspondendo a mente estáveis. menos independentes, quer no as-
18,2% do total das famílias identifi- O impacto de uma separação ou pecto físico, quer no aspecto cogni-
cadas. divórcio sobre os filhos depende de tivo. Estas crianças também não
E, se a simples existência de fa- vários factores como, por exemplo, apresentam qualquer desvantagem,
mílias na minha lista era, por si só, a idade, a qualidade de vida familiar quer no relacionamento com a mãe,
um factor condicionante para uma anterior, mas sobretudo da violên- nem em relação ou ao seu bem-es-
diferente abordagem, ou seja, a ne- cia do conflito entre os pais antes, tar emocional, nem ao seu sentido
cessidade de passar da área de tra- durante ou após a separação6. de segurança8.
balho terapêutico, habitualmente Face a esse conflito, a criança No entanto, vários estudos apon-
utilizada, para a área de Terapia pode sentir-se dividida na sua leal- tam para que as crianças peque-
Familiar, através do aprofunda- dade para com os pais e a sua cul- nas, entre os 4 e os 9 anos, de famí-
mento de conhecimentos e da sua pabilidade, pelo que julga ser a sua lias monoparentais, que sofreram o
integração na prática clínica, esta responsabilidade na separação dos afastamento de um dos progenito-
necessidade tornou-se mais pre- pais. res, estão em maior risco de terem
mente nesta tipologia familiar, que No entanto, o principal senti- problemas de adaptação do que as
apresenta características e especifi- mento que a criança experimenta é crianças da mesma idade de famí-
cidades próprias e variáveis, embo- um sentimento de PERDA, perda lias com os dois progenitores bio-
ra tenha as mesmas funções, pa- da unidade familiar, perda da pre- lógicos. Estas crianças parecem ser
péis e responsabilidades da família sença de um dos progenitores, per- mais hiperactivas e ter mais proble-
nuclear. da de alguma segurança e a espe- mas com as outras crianças da
De facto, a família monoparental rança que tudo volte ao «normal» mesma idade, podendo também
tem de lidar com os problemas e entre os pais, podendo levar a algu- apresentar dificuldades emocionais
outras crises do seu ciclo de vida e ma hostilidade para com o progeni- e um comportamento menos amá-
ainda «continuar a assegurar as tor com quem ficam, do que em re- vel e afável, sobretudo os rapazes6.
funções necessárias à evolução dos lação ao que parte7. Relativamente à qualidade do re-
seus membros»4, pelo que se impõe Nas famílias monoparentais em lacionamento com a mãe/pai e os
a necessidade de uma diferente que as crianças crescem sem pai irmãos mais velhos, parece haver
abordagem na ajuda da constru- desde o nascimento ou de tenra ida- uma correlação entre a adaptação
ção/reconstrução de uma nova vi- de, as mães parecem apresentar destas crianças e o seu comporta-

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mento social. Quando há mais aos adolescentes das famílias nu- – de viver o presente, porque o
queixas por parte da mãe/pai cleares11. Em contrapartida, o sexo passado está passado;
referindo irritação, frequentes «bra- masculino está mais exposto ao – de deixar as crianças partilha-
ços de ferro» e desagrado com o consumo de drogas e álcool, en- rem as situações, porque elas po-
barulho e a desarrumação efectua- quanto que o sexo feminino prefere dem e gostam de aceitar responsa-
da pela criança, pior é o relaciona- a companhia de um parceiro e o iní- bilidade, verdade e honestidade;
mento entre elas/eles7. cio de actividade sexual10. – de deixar entrar outras pessoas
Também em relação aos adoles- Também a natureza da vida fa- nas suas vidas, sem necessaria-
centes, entre os 12 e os 19 anos, pa- miliar anterior vai influenciar a vi- mente ser para casar;
rece haver alterações significativas. da das crianças. Os conflitos cróni- – de desenvolver os seus interesses
A adolescência é, por si só, uma cos no seio da família, bem como e aproveitar para fazer o que gosta-
época turbulenta, marcada por in- um relacionamento familiar frio e riam de fazer e ao mesmo tempo
tensas mudanças físicas e psicoló- distante, parecem predispor a um fazer arranjar novos amigos;
gicas em que os jovens começam a comportamento infantil delinquen- – de tomar conta da sua própria
integrar no seu Eu, identificações te e antisocial, e, se mantidos os vida, aceitando a responsabilidade
passadas, experiências e competên- conflitos para além da relação, oca- pelo que possa acontecer na sua
cias presentes e ainda futuras aspi- sionam nas crianças um intenso vida, dali por diante;
rações10. Nesta fase, o sexo femini- desassossego e confusão. No entan- – de se lembrarem que o que está
no parece ser particularmente vul- to também o oposto, esconder das menos bem irá melhorar, dando hi-
nerável aos factores stressantes em crianças o conflito existente, pode pótese de receber a ajuda dos ou-
relação ao sexo masculino, espe- levar a um sentimento de mal-estar tros.
cialmente no que diz respeito a de- por parte destas, pelo facto de pare-
pressão e a alterações de compor- cer não haver motivo para estarem Como ajudar as famílias
tamento alimentar, como a anore- tristes ou furiosos7. monoparentais ?
xia e a bulimia10. Porque, se é verdade que os filhos A intervenção terapêutica deve faci-
Estudos abrangendo este grupo de pais separados podem constituir litar a expressão dos sentimentos
de jovens, revela que os adolescen- um grupo de risco do ponto de vista contraditórios que as famílias expe-
tes de famílias monoparentais têm da saúde mental, é também ver- rimentam, e ajudá-las a compreen-
mais problemas emocionais do que dade que uma família nuclear, mas der que a não aceitação, a zanga, a
os adolescentes de famílias nu- disfuncionante, pode ser mais preju- depressão, são fases evolutivas do
cleares, apresentando menos auto- dicial do que uma situação estável, processo e não definitivas.
-estima, mais sintomas de ansieda- com pais separados e num bom A intervenção em relação ao pro-
de e de solidão, mais humor de- enquadramento familiar e social7,13. genitor com quem as crianças ficam
pressivo e ainda a existência de visa, sobretudo, ajudar a não que-
pensamentos de suicídio11. De que necessitam as famílias brar as fronteiras, evitando, por um
Em relação ao sexo também têm monoparentais? lado, demasiada tolerância, levando
sido encontradas diferenças. O sexo Estas famílias estão numa tentati- a um envolvimento excessivo com
masculino apresenta menos pro- va de adaptação rápida às mudan- as crianças e consequente quebra
blemas emocionais nas famílias ças das suas vidas (e das suas de disciplina ou, pelo contrário, evi-
monoparentais do que nas famílias crianças), pelo que as mães/pais tando a intolerância para com o
reconstruídas, enquanto que o sexo necessitam3: comportamento infantil ou expecta-
feminino parece ter mais problemas – de tempo para se adaptarem à tiva em excesso do apoio e ajuda
emocionais nas famílias monopa- nova situação, o que inclui a vivên- das crianças. As fronteiras existen-
rentais do que nas reconstruí- cia do luto da relação perdida; há tes antes da separação devem ser
das10,12. A prevalência de tentativas que ter em conta que a adaptação as mesmas após a separação, de
de suicídio dos adolescentes das fa- das crianças pode não ocorrer ao modo a manter nas crianças a no-
mílias monoparentais e reconstruí- mesmo tempo dos pais; ção de segurança e de conforto.
das são três vezes superior para o – de fazer um levantamento das A intervenção em relação ao pro-
sexo feminino e de apenas metade suas disponibilidades/forças para genitor ausente, visa sobretudo fa-
para o sexo masculino, em relação poder planear o futuro; zer-lhe compreender a importância

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que continua a ter para as crianças, função parental de suporte e con- saúde do Centro de Saúde, foi
de modo a manter-se activo em vez trolo. abordada a temática familiar tendo
de evitar o contacto com as crianças. – a falta de estabilidade emocional ficado patente dificuldades de rela-
Assim, há que ensinar a mãe/ da figura parental, tornando-a me- cionamento com as filhas, pelo que
/pai das famílias monoparentais a3: nos capaz de apoiarem os filhos. se propôs uma abordagem familiar
– não se sentirem culpados pelas onde estivessem presentes os três
coisas que não fazem elementos da família.
– priorizar e a cumprir os compro- UMA FAMÍLIA , UM CASO...
EDITORIAIS 1a Sessão
missos Após duas desmarcações, por
– delegar o máximo das activida- A Família Monoparental: dificuldade de compatibilização de
des, mesmo com crianças pequenas • a mãe: horários, compareceram à sessão a
– não se sobrecarregarem com tra- Maria Teresa mãe e as duas filhas.
balho, que pode ser efectuado nou- Licenciada em Economia Quando lhes pergunto que pedi-
tra altura • as filhas: do fazem, as filhas respondem que
– serem firmes com as crianças, Ana Paula gostavam de ter mais autonomia e
não tentando substituir o outro Estudante Universitária a mãe responde que as filhas estão
progenitor através da oferta de uma Ana Sofia diferentes e que lhe não ligam, di-
prenda Estudante zendo que, antigamente, «pareciam
– usar o seu tempo livre não só pa- Classificação de Graffar (caracte- três irmãs, sempre alegres e uni-
ra dar atenção às crianças, mas rização sócio-económica): Classe 1. das».
também para si próprios e para a Fase do ciclo de vida de Duvall: As filhas estão comunicativas/
sua privacidade. Fase V – Família com adolescentes. /receptivas e falam dos estudos e
Em relação às crianças o seu O genograma sumário desta fa- dos amigos, ou antes, das dificulda-
sentimento de perda está muito mília é o seguinte: des que sentem em poder estar com
empolgado: perda da unidade fami-
liar, perda da segurança, perda do
bem estar económico, perda da sua
casa, perda da companhia da mãe
que tem de ir trabalhar. A criança
perde, assim, num curto espaço de
tempo, muito do seu suporte emo-
1955 José MaTeresa 1956 1958 1955
cional que a ajudaria a «aguentar»
as alterações7. 12
A intervenção terapêutica deve
ajudar as crianças a poderem falar 1982 1985 1991
acerca dos seus sentimentos de
tristeza, confusão e revolta ou ódio,
Ana Paula Ana Sofia
de modo a poderem reencontrar o
seu equilíbrio, muitas vezes altera-
do pelo receio de que o problema
com os pais tenha sido provocado O Caso os amigos.
por algo que tenham feito ou dito. Maria Teresa tem 45 anos, é licen- Segundo a Ana, a mãe raramen-
Há, no entanto, verdadeiras si- ciada em Economia e está separa- te a deixa sair com os amigos e con-
tuações de risco que deve levar à re- da há nove anos. Vive com as duas trola o seu dia com pedido de to-
ferenciação destas famílias para filhas e, no último ano, sobreutili- ques telefónicos de cada vez que
um apoio psicoterapêutico2: zou os cuidados de saúde por quei- chega a um local diferente.
– a vulnerabilidade da criança. xas psico-somáticas, situação con- Pergunto-lhe se ela não vê esses
– a depressão da mãe/pai, tornado siderada como um sinal de eventual pedidos mais como uma questão de
excessivamente dependente do filho. disfunção familiar. preocupação da mãe pelo seu bem-
– a abdicação da mãe/pai da sua Assim, numa das consultas de -estar do que como repressão, uma

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vez que ela pode dar os toques e próxima sessão. «abandonado» durante vários anos
não estar no local que diz estar. Assim, decidiu-se falar acerca do – «Dificuldade/medo» em aceitar a
Surge alguma tensão face a esta passado da família, nomeadamente reaproximação do pai com as filhas
pergunta e é a Paula que responde do tempo de namoro, do tempo de – Reatamento do relacionamento
dizendo que se sentem mal em fren- casamento de Maria Teresa e do ti- de Paula com o pai, de quem sem-
te aos colegas por estarem sempre po de relação entre o casal e entre pre gostou muito, mesmo contra a
a receber telefonemas de casa ou a pai e filhas. vontade da mãe
ter de telefonar à mãe. O casal conheceu-se na Univer- Pedi para falarem acerca das re-
Durante o resto da sessão a Ana sidade e namorou durante dois lações parentais/filiais e na neces-
não torna a abordar a questão da anos, tendo casado quando a Maria sidade de pensarem na melhor so-
autonomia, preferindo falar dos Teresa terminou o curso. O José lução para evitar sofrimento de
seus receios em relação aos estudos terminou o curso três anos depois, parte a parte, motivado por esta
e da sua eventual não entrada na porque, segundo ela, gostava pouco aproximação. Pedi também para
universidade. de estudar... Foi um casamento feliz que na sessão seguinte a família es-
Foram identificados como princi- durante os primeiros anos, sobre- tivesse completa, pois só nessa
pais problemas: tudo após o nascimento da Paula, condição é que se faria nova sessão,
– Família numa fase do ciclo de vi- que segundo Maria Teresa «era a que ficou marcada para dali a mês
da que requer mudança na relação menina dos olhos do pai». Com o e meio.
entre filhas/mãe tempo José começou a ter o vício do
– Mãe como cuidadora, mas tam- jogo, pelo que o divórcio surgiu de- 3a Sessão
bém como centralizadora da família corridos doze anos de casamento. Vieram os três elementos da fa-
– Dificuldade de autonomia das fi- Após o divórcio, José teve vários mília.
lhas empregos e várias relações, não ven- Congratulo-me por ver a família
– Omissão/não revelação de algo do as filhas com regularidade, nem reunida e como a Ana não tinha es-
por parte da Ana dando dinheiro para o seu sustento. tado presente na sessão anterior
Ficou decidido que a mãe iria Há cerca de dois anos a sua vida pergunto-lhe se a família a tinha
tentar deixar crescer as filhas de melhorou, quer a nível profissional, informado acerca do que se tinha
modo a permitir que aumentassem quer a nível pessoal, tendo desde falado na sessão anterior, ao que
a sua autonomia e, em contraparti- essa altura uma relação estável, que ela responde afirmativamente.
da, as filhas fariam com que a mãe não é bem aceite por Maria Teresa. Assim, aproveito para lhe pergun-
conhecesse alguns dos seus colegas No último ano tem tentado reatar tar se tinham chegado a alguma
e amigos. Marcou-se nova sessão o seu relacionamento com as filhas, solução relativamente ao pedido que
para dali a um mês. o que tem sido bem aceite por elas, eu tinha formulado.
especialmente pela Paula. Esta re- A Ana não responde à pergunta,
2a Sessão fere não perceber porque é que a mas diz que acha bem que o pai vol-
Nesta sessão estiveram presentes a mãe fica tão nervosa com esta te a estar com a «família», tanto mais
mãe e a Paula. A Ana não veio aproximação se ele é o pai delas e que ainda hoje não percebe porque
porque estava com muitos testes e embora não tivesse tido grandes é que a mãe não o tentou ajudar
trabalhos de grupo pelo que lhe era possibilidades económicas para as quando teve problemas no emprego.
difícil perder uma tarde... segundo ajudar, sempre se tinha preocupa- Pergunto-lhe qual a recordação
informação da mãe. do com elas. que tem do tempo em que os pais
A mãe aproveita para falar da Ficou patente a tentativa de rea- viviam juntos, ao que responde que
sua desconfiança em relação à Ana, proximação do pai com as filhas, era pequena quando os pais se se-
nomeadamente das «más» compa- durante o último ano, o que provo- pararam, mas que guarda felizes
nhias e da falta de diálogo entre as ca grande ansiedade e revolta em recordações e repete que não per-
duas. Maria Teresa. cebe porque é que a mãe não aju-
Atendendo à ausência da Ana Foram identificados como princi- dou o pai quando ele precisou e diz
nesta sessão disse à Maria Teresa pais problemas: que tem saudades dele... e começa
que não iríamos abordar esse tema, – Mãe com sentimentos de revolta a chorar.
esperando pela vinda da Ana numa contra o pai das filhas por as ter Pergunto-lhe então se alguma

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vez falou com a mãe ou o pai acer- reciam guardar a esperança de do um acordo para as saídas.
ca do motivo da separação, ao que uma reentrada do pai na família. E diz que as filhas se têm encon-
responde que os pais não se enten- Compreendi que a separação fo- trado com José. Ele está diferente,
diam por terem feitios diferentes e a ra vivida em silêncio por Maria Te- mais responsável, deixou o jogo (até
mãe ser um pouco autoritária. resa que tinha preferido ocultar das ver!) e tem tentado ajudar as filhas,
Faço a mesma pergunta à Paula filhas as discussões, os problemas especialmente a Ana, que está nu-
que concorda com o que a irmã dis- e o vício do jogo do marido. ma idade difícil.
sera. Pedi para falarem em casa sobre Também ela consegue finalmen-
Confronto a mãe com a sua se- o que se tinha passado nesta sessão te fazer o que há muitos anos não
paração, quais os motivos e se o ti- e lembrei que nove anos fazem mu- podia por falta de tempo: frequenta
po de relacionamento mantido até à dar muita coisa, mas não o amor um ginásio duas vezes por semana
separação fora ou não conflituoso. parental. E marcou-se nova sessão e tem saído...
Maria Teresa começa por falar em para depois das férias. A Paula e a Ana vieram também
feitios diferentes, embora diga que o à consulta, mas separadamente.
José era um homem bom, meigo, 4a Sessão: A Ana veio pedir um atestado pa-
que gostava de dar tudo à família e Foi desmarcada, com data a com- ra a natação. Está mais autónoma
fala no vício do jogo. Tudo tinha binar posteriormente e já passaram e aproveita para dizer que a mãe
começado por uma brincadeira num seis meses... está diferente, para melhor, e até já
casino e o José tinha tido sorte. De A Maria Teresa veio à consulta de a deixou sair duas vezes, à noite,
vez em quando ia jogar e costuma- clínica geral cerca de dois meses com os amigos. Segundo ela, esta
va ter sorte. Compraram uma casa após esta (des)marcação, por um mudança não seria possível sem o
nova, tinham bons empregos... tudo problema dermatológico antigo que apoio do pai.
parecia correr bem, até que o José nos últimos meses se tinha exacer- A Paula veio à consulta de pla-
começou a perder ao jogo. Come- bado. Está com bom aspecto, muito neamento familiar, está feliz com a
çaram as discussões, sempre às es- bem arranjada e até bem disposta. vida...
condidas das filhas, e quando a Aproveita para falar de um me-
obsessão pelo jogo pôs em causa, lhor relacionamento com as filhas e
não apenas alguns bens, mas o car- dos bons resultados escolares
CEOMENTÁRIOS
DITORIAIS
ro, o emprego e até a própria casa, delas.
houve que pedir ajuda aos pais de Brinca com o namoro da Paula Maria Teresa parece ter aceite a «en-
Maria Teresa e surgiu a separação. dizendo que ela tem mais sorte do trada» de José na vida das filhas.
É patente a revolta da mãe pe- que o namorado porque ele tem Parece mesmo sentir apoio, na to-
rante um vício incontrolável que tu- muito melhor feitio do que a filha e mada de decisões. Parece também
do pôs em causa até a família. Fez- é um óptimo «cozinheiro». Segundo ter conseguido algum tempo para se
-se silêncio, as filhas nunca se ti- Maria Teresa a cozinha é um dos preocupar consigo.
nham apercebido... seus pontos fracos pelo que dá bas- As filhas seguem a sua vida, com
Foram identificados como princi- tante valor a este aspecto. A estes mais autonomia e com duplo apoio.
pais problemas: encantos não era alheio o facto de A família parece ter finalmente
– Mantém-se a dificuldade em Ma- ele ser um óptimo aluno, um dos reencontrado a sua estabilidade de
ria Teresa aceitar a «entrada» de melhores do seu ano. modo a poder continuar a percorrer
José na vida das filhas. Relativamente à Ana refere que o seu ciclo de vida.
– Durante nove anos a mãe escon- finalmente conseguem dialogar em Não há necessidade de mais ses-
deu das filhas os problemas do sis- vez dos antigos monólogos, embora sões por agora....talvez mais tarde
tema conjugal e os verdadeiros ache que ela é mais intempestiva, ou noutra fase do seu ciclo de vida.
motivos da separação. «refilona» e exigente do que a irmã. Fica a disponibilidade...
– Paula e Ana por desconhecerem Já conhece alguns dos amigos/ a disponibilidade para reatar as
os motivos da separação dos pais, /amigas da filha e está por isso sessões caso necessário;
«culpabilizavam» a mãe pela situa- mais calma em relação às compa- a disponibilidade para continuar
ção. nhias da filha, que por sua vez tem a seguir a família de um modo glo-
– As filhas, em especial a Ana, pa- tido boas notas o que tem permiti- bal através da prestação de cuida-

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dos de saúde primários, porque esta não definitivas. prosocial behaviour in step-single-parent,
família é uma família entre muitas A negociação, a não rigidificação and non-stepfamily settings. Findings from
a community study. J Child Psychiat 1998;
de uma lista de uma médica de do discurso, o desaparecimento de
39:1083-95.
família, e este caso é um sintoma podem constituir objec- 7. Waters D, Barnett L, Families with
«um caso entre muitos de tivos terapêuticos, sabendo que para special problems. Principles of Family
uma família entre muitas....» se alcançar uma mudança é funda- Medicine; Chapter 11: 91-101.
mental fixar um objectivo, que deve 8. Golombok S, Tasker F, Murray C.
ser claro e concreto. Children raised in fatherless families from
CONSIDERAÇÕES
EDITORIAIS As «directivas» (tarefas a realizar
infancy: family relationships and the so-
cioemotional development of children of les-
pela família no intervalo entre ses- bian and single heterosexual mothers. J
A família monoparental, tal como sões), visam levar as pessoas a com- Child Psychol Psychiat 1997; 38: 783-91.
outras tipologias familiares, tem de portarem-se de modo diferente e, 9. Avison W. Single motherhood and
lidar com os problemas e outras portanto, a viverem experiências que mental health: implications for primary
prevention. Can Med Assoc J 1997;
crises do seu ciclo de vida e ainda confirmem a mudança. Quando um
156:661-3.
continuar a assegurar as funções membro da família actua de modo 10. Pryor T, Wiederman M. Personality
necessárias à evolução dos seus diferente, está-se a mudar o com- features and expressed concerns of adoles-
membros2. portamento de toda a família porque cents with eating disorders. Adolescence,
O stress que a família sente quan- altera as sequências de interacção Libra Publishers, Inc.. 1998; Vol.33 nº 130.
do atravessa mudanças/transições que existem no agregado familiar. 11. Garneski N, Dieksira R. Adolescents
from one parent, stepparent and intact
de desenvolvimento podem mani- A terapia familiar das famílias
families: emotional problems and suicide
festar-se por sintomas físicos, que monoparentais, tal como para outro attempts. J Adolesc 1997; 20:201-8.
podem servir como função de tipo de famílias, deve ser um proces- 12. Florsheim P, Tolan P, Gorman-
adaptação da família e ser mantidos so terapêutico adequado e aplicável Smith D. Family relationships, parenting
por padrões familiares14. a cada fase do ciclo de vida. practices, the availability of male family
Bowen refere que, em sentido la- A terapia deve pois fomentar o members, and the behavior of inner-city
boys in single-mother and two-parent fam-
to, a «quantidade de ansiedade tende «crescimento» da família de modo a
ilies. Child Develop 1998; 69: 1437-47.
a ser paralela ao grau de ligação não que a «frustração», resultante das 13. Spruijt E, Goede M. Transitions in
resolvida na família». crises de identidade porque a família family structure and adolescent well-
Os sintomas/queixas psicosomá- passa seja antes um «enzima» acele- -being. Adolescence 1997; 32:897-911.
ticas que um ou mais elementos da rador da mudança e possa, assim, 14. Campayo J, Carrillo C, Miguel E.
família evidenciam e que condi- permitir uma vivência familiar «sau- Somatización y familia: intervención del
medico de atención primaria. Atencion
cionam o aumento do consumo de dável»15. Primaria, 1998; 21: 77-86.
consultas, sem que o modelo bio- 15. Whitaker “Retrato de uma Família
médico tradicional se apresente evi- Saudável”.
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EDITORIAIS
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