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MINISTÉRIO DA SAÐDE
Caderno de Educação
Popular e Saúde
Brasília-DF
2007
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MINISTÉRIO DA SAÐDE
Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa
Departamento de Apoio à Gestão Participativa
Caderno de
Educação Popular e
Saúde
Brasília-DF
2007
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Equipe Editorial:
Abigail Reis
Ana América Paz
Eymard Mourão Vasconcelos
Gerson Flávio da Silva
João Monteiro
José Ivo dos Santos Pedrosa
Júlia S. N. F. Bucher-Maluschke
Maria Alice Pessanha de Carvalho
Maria Verônica Santa Cruz de Oliveira
Renata Pekelman (organizadora)
Ricardo Burg Ceccim
Ricardo Rodrigues Teixeira
Sonia Acioli
Equipe Técnica:
Antonio Sérgio de Freitas Ferreira
Esdras Daniel dos Santos Pereira
José Flávio Fernandino Maciel
Luciana Ratkiewicz Boeira
Osvaldo Peralta Bonetti
Ficha Catalográfica
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa.
Caderno de educação popular e saúde / Ministério da Saúde, Secretariade Gestão Estratégica e Participativa,
Departamento de Apoio à Gestão Participativa. - Brasília: Ministério da Saúde, 2007.
160 p. : il. color. - (Série B. Textos Básicos de Saúde)
ISBN 978-85-334-1413-6
NLM WA 590
Apresentação
Educação em Saúde é inerente a todas as práticas desenvolvidas no âmbito do SUS. Como prática
A transveral proporciona a articulação entre todos os níveis de gestão do sistema, representando dis-
positivo essencial tanto para formulação da política de saúde de forma compartilhada, como às
ações que acontecem na relação direta dos serviços com os usuários.
Nesse sentido tais práticas devem ser valorizadas e qualificadas a fim de que contribuam cada vez mais
para a afirmação do SUS como a política pública que tem proporcionado maior inclusão social, não
somente por promover a apropriação do significado de saúde enquanto direito por parte da população,
como também pela promoção da cidadania.
É preciso também repensar a Educação em Saúde na perspectiva da participação social, compreendendo
que as verdadeiras práticas educativas somente têm lugar entre sujeitos sociais e, desse modo, deve estar
presente nos processos de educação permanente para o controle social, de mobilização em defesa do SUS
e como tema relevante para os movimentos sociais que lutam em prol de uma vida digna.
O princípio da integralidade do SUS diz respeito tanto à atenção integral em todos os níveis do sistema,
como também à integralidade de saberes, práticas, vivências e espaços de cuidado.
Para tanto torna-se necessário o desenvolvimento de ações de educação em saúde numa perspectiva dialógica,
emancipadora, participativa, criativa e que contribua para a autonomia do usuário, no que diz respeito à
sua condição de sujeito de direitos e autor de sua trajetória de saúde e doença; e autonomia dos profis-
sionais diante da possibilidade de reinventar modos de cuidado mais humanizados, compartilhados e
integrais.
Nesse sentido apresenta-se a educação popular em saúde como portadora da coerência política da participação social
e das possibilidades teóricas e metodológicas para transformar as tradicionais práticas de educação em
saúde em práticas pedagógicas que levem à superação das situações que limitam o viver com o máximo
de qualidade de vida que todos nós merecemos.
O Caderno de Educação Popular e Saúde apresenta um rico material para reflexão, conhecimento e for-
mação, pondo em diálogo significativas experiências de educação popular em saúde vivenciadas por
múltiplos atores sociais.
Enfim, o Caderno representa estratégia fundamental para a qualificação de nossas práticas de educação
em saúde.
Ministério da Saúde
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O Ðnico de Saúde, promovido a criação de mecanismos e espaços para a gestão participativa e incentivado
a descentralização efetiva e solidária, no sentido de aproximar a saúde tal como é vivida e sentida pela
população, à maneira como se organizam os serviços e o conhecimento que orienta a ação dos profissionais que
compõem o SUS.
O que proporciona tal aproximação é a educação popular em saúde promovendo o diálogo
para a construção da autonomia e emancipação dos grupos populacionais que historicamente foram
excluídos em seu modo de entender a vida, em seus saberes e nas oportunidades de participar dos
rumos da sociedade brasileira.
Trazer a educação popular para um plano institucional significa muito para a construção do SUS que que-
remos em termos de universalidade, integralidade, eqüidade e participação social. Em outras palavras, queremos
que estes princípios orientadores de nossa Reforma Sanitária ganhem sentido no cotidiano da vida de milhões e
milhões de brasileiras e brasileiros.
Colocar a educação popular como uma estratégia política e metodológica na ação do Ministério da Saúde
permite que se trabalhe na perspectiva da integralidade de saberes e de práticas, pois proporciona o encontro com
outros espaços, com outros agentes e com tecnologias que se colocam a favor da vida, da dignidade e do respeito
ao outro. Trabalhar com a educação popular em saúde qualifica a relação entre os cidadãos, definidos constitucio-
nalmente como sujeitos do direito à saúde, pois pauta-se na subjetividade inerente aos seres humanos.
Esperamos que este Caderno de Educação Popular e Saúde seja o primeiro de uma série e que
possa contribuir para fortalecer a vontade política de estar continuamente construindo o SUS com a
participação ativa população e de profissionais comprometidos com a saúde e com a qualidade de
vida da população brasileira.
Novos saberes, novas práticas, novas vivências é o que esperamos proporcionar com esta publicação!
Disponibilizar textos que ajudem a reflexão, que permitem a troca de experiências singulares em sua meto-
dologia e em seus princípios é o que desejamos. Queremos que este Caderno seja um dispositivo para a constru-
ção de conhecimento vivo que possa gerar ações emancipatórias contribuindo para transformar os indivíduos em
atores que se movimentam em busca da alegria e da felicidade.
Apresentação 10
Nossas Fontes
O Paulo da Educação Popular - Eymard Mourão Vasconcelos 31
Pacientes Impacientes: Paulo Freire (apresentação Ricardo Burg Ceccim) 32
Reflexões e vivências
Estórias da educação popular - Ausonia Favorido Donato 103
Em Nazaré, cercada por água...um mergulho e muito aprendizado! - Wilma 106
Suely Batista Pereira
Educação emancipatória, o processo de constituição de sujeitos operativos: 114
alguns conceitos - Eliane Santos Souza
Pensando alto - Ana América Magalhães Ávila Paz 117
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Trocando do “era uma vez...” para o “eu conto” - Ana Guilhermina Reis 120
Você tem sede de quê? Cenas do viver, adoecer morrer, transcender numa favela 122
brasileira - Iracema de Almeida Benevides
Peripécias educativas na rua - Lia Haikal Frota 131
Outras Palavras
A Educação pela Pedra - João Cabral de Melo Neto 133
Projeto sorriso - Samuca, Fred Oliveira e Érico 134
Eduardo Galeano 135
Paulo Freire 136
Roda de conversa
Uma rede em prol de comunidades rurais e urbanas auto-sustentáveis - 142
Gerson Flávio da Silva
Roteiro de leitura
Roteiro de leitura - Eymard Mourão Vasconcelos 152
Pequena enciclopédia
Pequena enciclopédia - Maria Alice Pessanha de Carvalho 157
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Construindo Caminhos
Ilustração: Lin
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Para consolidar o diálogo com os movi- onde se realiza o Encontro entre governo e
mentos sociais o Ministério da Saúde, em parceria sociedade civil qualificando o controle social e
com a Rede de Educação Popular em Saúde, pro- ampliando a gestão participativa no SUS.
moveram encontros estaduais, nos quais foi pos- Os princípios político-pedagógicos da
sível identificar movimentos populares que se Educação Popular são tomados como ferramentas
articulavam na luta por saúde. No final de 2003, de agenciamento para participação em defesa da
realizou-se o Encontro Nacional desses movimen- vida e como estratégias para a mobilização social
tos resultando na criação da Articulação Nacional pelo direito à saúde. O papel agenciador da
de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Educação Popular se faz pelo pinçar e fomentar
Saúde (ANEPS) e desencadeando processos de atitudes de participação no sentido de sempre
articulação em cada estado. mudar realidades, tornando-as vivas, criativas e
A partir de julho de 2005, o Ministério correspondentes ao desejo de uma vida mais feliz.
passa por mudanças em sua gestão resultando na A Educação Popular em Saúde, ao mobi-
criação da Coordenação Geral de Apoio à lizar autonomias individuais e coletivas, abre a
Educação Popular e a Mobilização Social do alteridade entre indivíduos e movimentos na luta
Departamento de Apoio a Gestão Participativa por direitos, contribuindo para a ampliação do
(DAGEP) da Secretaria de Gestão Estratégica e significado dos direitos de cidadania e instituíndo
Participativa (SGEP), mantendo os propósitos e a o crescimento e a mudança na vida cotidiana das
equipe que trabalhava nas SGTES. pessoas.
As duas Secretarias, ambas inexistentes na Problematizando a realidade tomada como
estrutura anterior do Ministério da Saúde, apresen- referência, a Educação Popular mostra-se como
tam projetos políticos que afirma os princípios um dispositivo de crítica social e das situções
constitucionais do SUS, tendo por missão o desen- vivenciadas por indivíduos, grupos e movimentos,
volvimento de ações com potencialidades de permitindo a visão de fragmentos que estavam
provocar mudanças na formação de trabalhadores, invisíveis e ideologias naturalizadas como reali-
na gestão dos sistemas, na organização dos serviços dades favorecendo a liberação de pensamentos e de
, na qualidade da atenção e no controle social. atos ativos de mudança social.
Ao promover espaço institucional para as Permite a produção de sentidos para a vida
ações de Educação Popular e mobilização social, o e engendra a vontade de agir em direção às
Ministério da Saúde assume o compromisso de mudanças que se julgem necessárias. As ações
ampliar e fortalecer a participação da sociedade na pedagógicas constrõem cenários de comunicação
política de saúde desde sua formulação ao exercí- em linguagens diversas, transformando as infor-
cio do controle social. mações em dispositivos para o movimento de
E, neste sentindo, a Educação Popular em construção e criação.
Saúde, localizada na SGTES e atualmente na SGEP A Educação Popular na Saúde implica atos
, representa o lugar, na estrutura do Ministério da pedagógicos que fazem com que as informações
Saúde, que atua em estreita comunicação e diálogo sobre a saúde dos grupos sociais contribuam para
com os movimentos sociais que produzem ações e aumentar a visibilidade sobre sua inserção históri-
práticas populares de saúde; com as iniciativas dos ca, social e política, elevar suas enunciações e
serviços e dos movimentos que resgatam e recriam reivindicações, conhecer territórios de subjetivação
a cultura popular e afirmam suas identidades étni- e projetar caminhos inventivos, prazeirosos e
cas, raciais, de gênero; apoiando espaços públicos inclusivos.
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REFER¯NCIAS
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nham espaço significativo. A "tranqüilidade" social onde profissionais de saúde aprendem a se relacio-
imposta pela repressão política e militar possibili- nar com os grupos populares, começando a esboçar
tou que o regime voltasse suas atenções para a tentativas de organização de ações de saúde integra-
expansão da economia, diminuindo os gastos com das à dinâmica social local. Com o processo de
as políticas sociais. Com os partidos e sindicatos abertura política, movimentos populares, que já
esvaziados, a população vai aos poucos buscando tinham avançado na discussão das questões de
novas formas de resistência. A Igreja Católica, que saúde, passam a reivindicar serviços públicos locais
conseguira se preservar da repressão política, apóia e a exigir participação no controle de serviços já
este movimento, possibilitando o engajamento de estruturados. A experiência ocorrida na zona leste
intelectuais das mais diversas áreas. O método da da cidade de São Paulo é o exemplo mais conheci-
Educação Popular, sistematizado por Paulo Freire, do, mas o Movimento Popular de Saúde (MOPS)
se constitui como norteador da relação entre inte- chegou a aglutinar centenas de outras experiências
lectuais e classes populares. Muitos profissionais de nos diversos estados. Nelas, a educação em saúde
saúde, insatisfeitos com as práticas mercantilizadas busca ser uma assessoria técnica e política às
e rotinizadas dos serviços de saúde, se engajaram demandas e iniciativas populares, bem como um
nesse processo. Nos subterrâneos da vida política e instrumento de dinamização das trocas de conheci-
institucional foi se tecendo a estrutura de novas for- mento entre os atores envolvidos.
mas de organização da vida política. Essas experiên- Assim, a participação de profissionais de
cias possibilitaram (e ainda possibilitam) que inte- saúde nas experiências de Educação Popular, a par-
lectuais tenham acesso e comecem a conhecer a tir dos anos 70, trouxe para o setor Saúde uma cul-
dinâmica de luta e resistência das classes populares. tura de relação com as classes populares que repre-
No vazio do descaso do Estado com os problemas sentou uma ruptura com a tradição autoritária e
populares, vão se configurando iniciativas de busca normatizadora da educação em saúde.
de soluções técnicas construídas a partir do diálogo Com a conquista da democracia política e a
entre o saber popular e o saber acadêmico. construção do Sistema Ðnico de Saúde, na década
O setor Saúde é exemplar neste processo. de 80, estas experiências localizadas de trabalho
Nos anos 70, junto aos movimentos sociais emer- comunitário em saúde perderam sua importância.
gentes, começam a surgir experiências de serviços Os movimentos sociais passaram a lutar por
comunitários de saúde desvinculados do Estado, mudanças mais globais nas políticas sociais. Os téc-
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nicos que nelas estiveram engajados agora ocupam em saúde são organizadas por grandes empresas de
espaços institucionais amplos onde uma convivên- comunicação bem pouco articuladas com o cotidia-
cia direta tão intensa com a população não é mais no de relação entre os profissionais de saúde e a
possível. A experiência de integração vivida por tan- população.
tos intelectuais e líderes populares, o saber ali cons-
truído e os modelos institucionais que começaram Educação Popular, um jeito especial
a ser gestados continuam presentes. Em muitas ins-
de conduzir o processo educativo
tituições de saúde, grupos de profissionais têm bus-
cado enfrentar o desafio de incorporar ao serviço
No âmbito internacional, o Brasil teve um
público a metodologia da Educação Popular, adap-
papel pioneiro na constituição do método da
tando-a ao novo contexto de complexidade institu-
Educação Popular, o que explica em parte a sua
cional e da vida social nos grandes centros urbanos.
importância, aqui, na redefinição de práticas sociais
Enfrentam tanto a lógica hegemônica de funciona-
dos mais variados campos do saber. Ela começa a se
mento dos serviços de saúde, subordinados aos inte-
estruturar como corpo teórico e prática social no
resses de legitimação do poder político e econômi-
final da década de 50, quando intelectuais e educa-
co dominante, como a carência de recursos, oriun-
dores ligados à Igreja Católica e influenciados pelo
da do conflito distributivo no orçamento, numa
humanismo personalista que florescia na Europa
conjuntura de crise fiscal do Estado. Nesse sentido,
no pós-guerra, se voltam para as questões populares.
esses grupos estão engajados na luta pela democrati-
Paulo Freire foi o pioneiro no trabalho de sistema-
zação do Estado, na qual o método da Educação
tização teórica da Educação Popular. Seu livro
Popular passa a ser um instrumento para a constru-
Pedagogia do Oprimido (1966) ainda repercute em
ção e ampliação da participação popular no geren-
todo o mundo.
ciamento e na reorientação das políticas públicas.
Educação Popular não é o mesmo que "edu-
Atualmente, há duas grandes interfaces de
cação informal". Há muitas propostas educativas
relação educativa entre os serviços de saúde e a
que se dão fora da escola, mas que utilizam méto-
população: os grandes meios de comunicação de
dos verticais de relação educador-edu-
massa e a convivência cotidiana dos
cando. Segundo Carlos Brandão
profissionais com a população nos
(1982), a Educação Popular não visa a
serviços de saúde. A segunda interface,
criar sujeitos subalternos educados:
na medida em que permite um conta-
sujeitos limpos, polidos, alfabetizados,
to muito próximo entre os vários ato-
bebendo água fervida, comendo fari-
res envolvidos no processo educativo,
nha de soja e utilizando fossas sépticas.
permite um rico aprendizado dos
Visa participar do esforço que já faz
caminhos de uma educação em saúde
hoje as categorias de sujeitos subalter-
que respeite a autonomia e valorize a
nos - do índio ao operário do ABC
criatividade dos educandos. Nesse sen-
tido, os conhecimentos construídos nessas experiên-
cias mais localizadas são fundamentais para o nor-
teamento das práticas educativas nos grandes meios
de comunicação de massa, se o objetivo é uma
metodologia participativa. É preciso superar a atual
situação em que as grandes campanhas educativas
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Paulista - para que a organização do trabalho político, Enfatiza não o processo de transmissão de
passo-a-passo, abra caminho para a conquista de sua conhecimento, mas a ampliação dos espaços de
liberdade e de seus direitos. A Educação Popular é um interação cultural e negociação entre os diversos
modo de participação de agentes eruditos (professores, atores envolvidos em determinado problema social
padres, cientistas sociais, profissionais de saúde e para a construção compartilhada do conhecimen-
outros) e de agentes sociais do povo neste trabalho to e da organização política necessários à sua supe-
político. Ela busca trabalhar pedagogicamente o ração. Em vez de procurar difundir conceitos e
homem e os grupos envolvidos no processo de partici- comportamentos considerados corretos, procura
pação popular, fomentando formas coletivas de apren- problematizar, em uma discussão aberta, o que está
dizado e investigação de modo a promover o cresci- incomodando e oprimindo. Prioriza a relação com
mento da capacidade de análise crítica sobre a realida- os movimentos sociais por ser expressão mais ela-
de e o aperfeiçoamento das estratégias de luta e enfren- borada dos interesses e da lógica dos setores subal-
tamento. É uma estratégia de construção da participa- ternos da sociedade cuja voz é usualmente desqua-
ção popular no redirecionamento da vida social. lificada nos diálogos e nas negociações. Apesar de,
Um elemento fundamental do seu método muitas vezes, partir da busca de soluções para pro-
é o fato de tomar, como ponto de partida do pro- blemas específicos e localizados, o faz a partir da
cesso pedagógico, o saber anterior do educando. perspectiva de que a atuação na microcapilaridade
No trabalho, na vida social e na luta pela sobrevi- da vida social é uma estratégia de desfazer os meca-
vência e pela transformação da realidade, as pes- nismos de cumplicidade, apoio e aliança, os micro-
soas vão adquirindo um entendimento sobre a sua poderes, que sustentam as grandes estruturas de
inserção na sociedade e na natureza. Esse conheci- dominação política e econômica da sociedade.
mento fragmentado e pouco elaborado é a matéria Está, pois, engajada na construção política da supe-
prima da Educação Popular. Essa valorização do ração da subordinação, exclusão e opressão que
saber e dos valores do educando permite que ele se marcam a vida nas sociedades desiguais. A
sinta "em casa" e mantenha suas iniciativas. Nesse Educação Popular é o saber que orienta nos difí-
sentido, não se reproduz a passividade usual dos ceis caminhos, cheios de armadilhas, da ação peda-
processos pedagógicos tradicionais. Na Educação gógica voltada para a apuração do sentir/pen-
Popular, não basta que o conteúdo discutido seja sar/agir dos setores subalternos, a como contribuir
revolucionário, mas que o processo de discussão com a construção de uma sociedade fundada na
não se coloque de cima para baixo. solidariedade, justiça e participação de todos.
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logo entre o saber popular e o saber científico. Para nologia ou de um novo sistema de conhecimento,
o setor Saúde, no Brasil, a participação histórica no como as chamadas medicinas alternativas preten-
movimento da Educação Popular foi marcante na dem ser, mas pela articulação de múltiplas, diferen-
criação de um movimento de profissionais que tes e até contraditórias iniciativas presentes em
busca romper com a tradição autoritária e norma- cada problema de saúde, em um processo que valo-
tizadora da relação entre os serviços de saúde e a riza principalmente os saberes e as práticas dos
população. Apesar de uma certa crise do conceito sujeitos usualmente desconsiderados devido à sua
da Educação Popular nos novos tempos, é ele que origem popular.
vem servindo para identificar e instrumentalizar a No atual contexto de fragmentação da
diversidade de práticas emergentes. Nessas expe- vida social, a recomposição de uma abordagem
riências, os vários aspectos metodológicos valoriza- mais globalizante da saúde não pode caber ape-
dos articulam-se de modo peculiar, diferenciando- nas às iniciativas ampliadas das instituições de
se do que ocorre em outros continentes. Há um saúde. Essa recomposição da integralidade nas
elemento inovador e pioneiro nas experiências bra- práticas de saúde cabe principalmente ao cresci-
sileiras e latino-americanas de Educação Popular mento da capacidade de doentes, famílias, movi-
em Saúde que vem sendo reconhecido internacio- mentos sociais e outros setores da sociedade civil
nalmente. em articularem, usufruírem e reorientarem os
Para muitos serviços de saúde, a Educação diversos serviços e saberes disponíveis, segundo
Popular tem significado um instrumento funda- suas necessidades e realidades concretas. Essa
mental na construção histórica de atenção integral perspectiva se diferencia do imaginário de gran-
à saúde, na medida em que se dedica à ampliação de parte do movimento sanitário brasileiro,
da inter-relação entre as diversas profissões, especia- ainda acreditando e empenhando-se na possibili-
lidades, serviços, doentes, familiares, vizinhos e dade de construção de um sistema estatal único
organizações sociais locais envolvidos num proble- de saúde capaz de, planejadamente, penetrar e
ma específico de saúde, fortalecendo e reorientan- ordenar as diversas instâncias da vida social
do suas práticas, saberes e lutas. Esta redefinição da implicadas no processo de adoecimento e de
prática médica se dá, não a partir de uma nova tec- cura (VASCONCELOS, 1997).
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Desde o início dos anos 90, profissionais de de, o modelo de atenção à saúde, buscado pelo
saúde envolvidos em práticas de Educação Popular Movimento Sanitário por intermédio do SUS, foi em
organizaram a Rede de Educação Popular em grande parte, inspirado em experiências pioneiras de
Saúde, com o intuito de fortalecer o debate sobre saúde comunitária desde a década de 70, nas quais os
as relações educativas nos serviços sanitários. Desde movimentos populares e técnicos aliados foram cons-
então, assistimos a uma importante organização truindo os caminhos para uma nova organização do
institucional do campo da Educação em Saúde. setor Saúde. Nestas experiências, a Educação Popular
Estruturaram-se encontros em vários estados, foi instrumento metodológico central.
vários congressos de âmbito nacional dedicaram A Rede de Educação Popular em Saúde,
significativos espaços ao tema, criaram-se grupos articulando e acompanhando centenas de expe-
acadêmicos e operativos, e aumentaram as publica- riências de aprofundamento da participação popu-
ções. Mas é ainda uma estruturação muito frágil, se lar nos serviços de saúde, acredita que a Educação
tivermos em vista o grande número de profissio- Popular continua sendo um instrumento metodo-
nais de saúde que vêm se preocupando e se dedi- lógico fundamental para uma reorganização mais
cando às relações educativas com a população. radical do SUS, no sentido da construção de uma
atenção à saúde integral em que as pessoas e os gru-
Educação Popular em Saúde no pos sociais assumam maior controle sobre sua
saúde e suas vidas e em que a racionalidade do
governo Lula (REDE DE EDUCA-
modelo biomédico dominante seja transformada
Ç‹O POPULAR EM SAÐDE, 2003).1 no cotidiano de suas práticas. Nesse sentido, a
Educação Popular não é mais uma atividade a ser
Um novo capítulo da história do Brasil implementada nos serviços, mas uma estratégia de
começou a ser escrito com as eleições de 2002. A reorientação da totalidade das práticas ali executa-
vitória consagradora de Lula e do PT expressou o das, na medida em que investe na ampliação da
desejo de mudança, de justiça social e de liberdade participação e que, dinamizada, passa a questionar
que pulsa na população brasileira. Expressou a e reorientar tudo.
importância que as classes populares, os intelec- O princípio da participação popular costu-
tuais e os movimentos sociais passaram a ter como ma ser aceito e defendido por todos, contudo
atores na construção de uma nova nação. tende-se a acreditar que ele se opera quase esponta-
Vislumbra-se o projeto de um novo jeito de gover- neamente, uma vez assegurados legalmente os espa-
nar, buscando alcançar o desenvolvimento social a ços formais de sua implementação, os Conselhos e
partir de um crescimento econômico voltado ao as Conferências de Saúde. Constata-se, no entanto,
atendimento das necessidades sociais. que essas instâncias, por estarem presas às questões
Os princípios que inspiraram o Movimento gerenciais do sistema, não dão conta de implemen-
Sanitário na construção do Sistema Ðnico de tar a participação dos usuários na redefinição da
Saúde encontram, no contexto político atual, a maioria das ações de saúde executadas no dia-a-dia
oportunidade para serem reafirmados e consolida- dos serviços. Há inúmeros mecanismos de boicote
dos. Dentre estes, verificamos a efetiva participação a uma participação mais efetiva dos moradores. E
popular: crítica e criativa na construção de políti- é no cotidiano das práticas de saúde que o cidadão
cas públicas saudáveis como caminho para a con- é desconsiderado pelo autoritarismo e pela prepo-
quista do direito humano à vida plena. Na verda- tência do modelo biomédico tradicional que, em
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1 Para contato, acesse os portais da Internet http://br.groups.yahoo.com/group/edpopsaude ou http://www.redepopsaude.com.br.
Comunique-se com a sua Secretaria Executiva na Av. Brasil 4036, sala 905, Rio de Janeiro, RJ, CEP 21040-360, telefone 021 2260 7453.
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vez de questionar, tem reforçado as estruturas gera- práticas extremamente criativas e produtivas que
doras de doença presentes na forma como a vida são, inclusive, reconhecidas internacionalmente. A
hoje se organiza. É preciso levar a democratização atuação de muitos profissionais e movimentos,
da assistência à microcapilaridade da operacionali- orientados pela Educação Popular, tem avançado
zação dos serviços de saúde. Sem a participação muito na desconstrução do autoritarismo de douto-
ativa dos usuários e seus movimentos na discussão res, do desprezo ao saber e à iniciativa dos doentes
de cada conduta ali implementada, os novos servi- e familiares, da imposição de soluções técnicas para
ços expandidos não conseguirão se tornar um espa- problemas sociais globais e da propaganda política
ço de redefinição da vida social e individual em embutida na forma como o modelo biomédico vem
direção a uma saúde integral. sendo implementado. No entanto, não basta alguns
O pioneirismo do Brasil no campo da saberem fazer, é preciso que este saber seja difundi-
Educação Popular e a já antiga tradição de aproxi- do e generalizado nas instituições de saúde. Temos
mação de vários profissionais de saúde junto aos condições de superar a fase em que estas práticas de
movimentos populares nos permite afirmar que esta saúde mais integradas à lógica de vida da população
tarefa é plenamente possível. Nesse sentido, defen- aconteciam apenas em experiências alternativas
demos que a implementação da Educação Popular pontuais e transitórias. É preciso encontrar os cami-
nos diferentes serviços de saúde é uma estratégia nhos administrativos e de formação profissional os
fundamental para tornar realmente efetiva a diretriz quais permitam que elas se generalizem institucio-
constitucional do SUS, a participação popular, tão nalmente. Várias iniciativas de governos municipais
cara ao Movimento Sanitário. petistas têm avançado neste sentido.
A Rede de Educação Popular em Saúde tem Como frisou Leonardo Boff, em mensagem
acompanhado centenas de experiências nas quais a aberta ao presidente Lula, após a sua eleição: "Chega
integração entre profissionais comprometidos e os de fazer para os empobrecidos. Chegou a hora de
movimentos sociais tem permitido a emergência de fazer a partir deles e com eles. Essa é a novidade que
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você traz na esteira de Paulo Freire e da Igreja da matizadoras e centradas apenas na inculcação de
libertação". hábitos individuais considerados saudáveis. Essa
Esta diretriz tem um grande impacto no forma de trabalho educativo boicota a participação
setor Saúde. No entanto, encontra resistências popular, pois faz calar os sujeitos e afasta as lideran-
mesmo em setores progressistas do Movimento ças locais do envolvimento, em conjunto com os
Sanitário, uma vez que o processo da Reforma Sani- serviços, do processo de transformação social por
tária, nos últimos 20 anos, ficou centrado principal- meio do diálogo dos saberes e da reflexão crítica de
mente nas questões da construção do arcabouço suas realidades de vida e saúde.
jurídico e institucional do sistema e no desejo de Quase todos os gestores enfatizam em seus
expandir rapidamente a cobertura dos serviços de discursos a importância da ação educativa e da pro-
saúde. Formou-se um amplo corpo técnico nas ins- moção da saúde. No entanto, com exceção de algu-
tâncias gestoras da burocracia federal, estadual, mas administrações municipais, entre as quais des-
municipal e distrital, muito competente em ativida- taco Recife e Camaragibe, pouco se tem investido
des de planejamento e com grande habilidade no em uma política consistente que busque a difusão
manejo do jogo de poder institucional, mas bastan- do saber da Educação Popular para a ampliação da
te intolerante a processos participativos nos quais a participação popular no cotidiano dos serviços. As
população e os profissionais de nível local se mani- experiências de Recife e Camaragibe têm demons-
festem de modo efetivo e autônomo. Assim, temos trado a importância do investimento tanto na for-
hoje um SUS com uma imensa rede de serviços bási- mação profissional para a transformação cultural e
cos de saúde, porém, um modelo de atenção ainda política dos padrões das práticas de saúde, como na
pouco questionado. criação de uma infra-estrutura institucional que
A expansão do Programa Saúde da Família garanta condições materiais e administrativas para a
levou a uma profunda inserção de milhares de tra- realização de atividades educativas.
balhadores de saúde no cotidiano da dinâmica de Até a gestão federal anterior ao governo Lula,
adoecimento e de cura na vida social. Nessa convi- a política adotada pelo Ministério da Saúde fez com
vência estreita, estes profissionais de saúde estão que a quase totalidade dos recursos pedagógicos fos-
sendo profundamente questionados sobre a eficácia sem gastos em propagandas nos grandes meios de
do modelo biomédico tradicional. Há uma intensa comunicação de massa e em material impresso pro-
busca de novos caminhos, a pouca ênfase da saúde duzido de forma centralizada, instrumentos mais
pública na discussão e no aperfeiçoamento das rela- adequados para uma conscientização autoritária da
ções culturais e políticas com os cidadãos e seus população dos bons caminhos de vida e saúde que
movimentos vem resultando em desperdício desta a suposta elite sanitária acredita serem adequados
oportunidade potencialmente transformadora do para suas condições de existência. As campanhas
sistema. Os cursos de formação na academia e nas educativas nos grandes meios de comunicação de
Secretarias de Saúde pouco têm priorizado a discus- massa têm sido entregues, na maioria das vezes, para
são dos difíceis caminhos, cheios de armadilhas, da empresas de comunicação sem um vínculo com o
ação pedagógica voltada para a apuração do sentir, cotidiano de dificuldades de relacionamento entre
pensar e agir dos atores envolvidos nos problemas os profissionais e a população.
de saúde de forma a se construir coletivamente as O Ministério da Saúde pouco vinha fazendo
novas soluções sanitárias necessárias. Nesse cenário, para apoiar, dinamizar e aperfeiçoar políticas con-
o que se tem assistido, na maioria dos serviços, é a sistentes nos estados e municípios que buscassem
reprodução de ações educativas extremamente nor- institucionalizar as trocas educativas como eixo reo-
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rientador das ações locais de saúde. Os poucos tralizada de materiais educativos, construídos de
recursos para ações educativas do Ministério eram forma participativa e de valorização e difusão das
canalizadas para o apoio de projetos pontuais, iniciativas educativas na lógica da problematização
desvirtuando-se, assim, a função da esfera federal coletiva, já existentes em quase todos os municípios.
que seria de implementar diretrizes e políticas que É preciso que as campanhas educativas de massa
expandam de forma descentralizada os princípios passem a ser planejadas de forma articulada com os
norteadores do SUS. No vazio de uma atuação do profissionais e as lideranças dos movimentos sociais
Ministério, no incentivo de ações educativas partici- que vivem as dificuldades e as potencialidades do
pativas em todo o sistema, o tradicional modelo trabalho educativo na rotina dos serviços de saúde.
autoritário de educação em saúde mantém-se domi- Devido à forte presença da Educação Popular no
nante, apesar de muitas vezes ser anunciado com Brasil, temos, em cada recanto da nação, profissionais de
discursos aparentemente progressistas. A maioria saúde e lideranças de movimentos sociais habilitados a
das coordenações de educação, comunicação e pro- colaborar nesta tarefa. É preciso mobilizá-los e valorizá-
moção da saúde das Secretarias Estaduais e Munici- los. Convocados, poderão colaborar com os técnicos do
pais de Saúde, em vez de investir na reorientação da Ministério da Saúde na definição dos caminhos institu-
relação cultural que acontece em cada serviço de cionais que tornem realmente efetiva a diretriz constitu-
saúde, têm se dedicado principalmente à organiza- cional do SUS, da participação popular na redefinição
ção de mobilizações da população para eventos e do modelo assistencial.
campanhas de massa ou ao desenvolvimento de A Educação Popular é um saber importante
ações educativas isoladas, desconectadas da rotina para a construção da participação, servindo não
da rede assistencial. Está mais a serviço do marke- apenas para a criação de uma nova consciência sani-
ting da instituição e de suas lideranças políticas. tária, como também para uma democratização mais
Diante disso, a Rede de Educação Popular radical das políticas públicas. Não é apenas um esti-
em Saúde tem proposto a adoção da Educação lo de comunicação e ensino, mas também um ins-
Popular como diretriz teórica e metodológica da trumento de gestão participada de ações sociais. É
Política de Educação em Saúde do Ministério da também o jeito latino-americano de fazer promoção
Saúde e que esta política se torne uma estratégia da saúde. É importante que deixe de ser uma práti-
prioritária de humanização do SUS e da adequação ca social que acontece de forma pontual no sistema
de suas práticas técnicas à lógica de vida da popula- de saúde, por intermédio da luta heróica de alguns
ção, mediante a valorização de formas participativas profissionais de saúde e de movimentos sociais, para
de relação entre os serviços de saúde e os usuários. ser generalizada amplamente nos diversos serviços
Para isso, é necessário desencadear uma ação políti- de saúde, em cada recanto da nação. Um dos gran-
ca que, bem estruturada, incentive, apóie e cobre des desafios, para isso, é a formação ampliada de
dos municípios e estados a formulação de iniciati- profissionais de saúde capazes de uma relação parti-
vas amplas desta valorização e a criação de espaços cipativa com a população e os seus movimentos.
de troca cultural, diálogo e negociação em cada ser-
viço de saúde. Chega de simpatias e discursos eno- Educação popular na formação
brecedores à educação e à promoção da saúde, sem dos profissionais de saúde
a destinação de recursos e implementação de políti-
cas bem traçadas! É urgente a criação de uma polí- Tem-se erroneamente associado o conceito de
tica nacional de formação profissional em Educação Popular à educação informal dirigida ao
Educação Popular, de incentivo à produção descen- público popular. O adjetivo "popular" presente no
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nome Educação Popular se refere não à característica de tância de outros grupos intelectuais. Muitos passam a
sua clientela, mas à perspectiva política desta concepção reorientar suas práticas buscando enfrentar de uma
de educação: a construção de uma sociedade em que as forma mais global os problemas de saúde encontrados,
classes populares deixem se ser atores subalternos e mas as atuais exigências políticas e institucionais não
explorados para serem sujeitos altivos e importantes na permitem ficar apenas aguardando esta formação
definição de suas diretrizes culturais, políticas e econô- espontânea e ocasional de profissionais abertos para as
micas. A experiência dos movimentos sociais tem mos- iniciativas populares na construção soluções sanitárias.
trado que este modo de conduzir o processo educativo É imensa a carência de profissionais capazes de uma
pode ser aplicado com sucesso na formação profissio- relação participativa com a população e seus movimen-
nal. Muitas iniciativas educacionais nas universidades tos. Ao mesmo tempo, a eleição de governos compro-
(principalmente em projetos de extensão), nos treina- metidos com os movimentos sociais em alguns muni-
mentos das Secretarias de Saúde de seus profissionais e cípios e estados, bem como a eleição de Lula para presi-
nas organizações não-governamentais vêm sendo orien- dente criaram condições institucionais para uma maior
tadas pela Educação Popular, descobrindo, aos poucos, incorporação da Educação Popular nas várias instâncias
os caminhos metodológicos de sua aplicação nesse novo de formação profissional.
contexto institucional. A educação dos trabalhadores de Hoje, um dos maiores desafios do movimen-
saúde nesta perspectiva é fundamental para a ampliação to de Educação Popular em Saúde é o delineamen-
de uma gestão participativa no SUS. to mais preciso das estratégias educativas de sua
A maioria dos atuais educadores populares se incorporação ampliada nos cursos de graduação de
formou a partir de circunstâncias bastante particulares todos os profissionais de saúde, na formação de
de sua vida pessoal que propiciaram contatos intensos agentes comunitários de saúde, na educação perma-
com movimentos sociais e experiências de Educação nente em saúde dos trabalhadores do SUS, nos cur-
Popular que os mobilizaram e os envolveram neste tipo sos de pós-graduação, etc. Por muito tempo, os edu-
de prática. Desde a década de 70, profissionais de saúde
insatisfeitos com as práticas mercantilizadas e rotiniza-
das dos serviços oficiais, desejosos de uma atuação mais
significativa para as classes populares vêm se dirigindo
às periferias dos grandes centros urbanos e das regiões
rurais em busca de formas alternativas de atuação.
Inicialmente ligaram-se às experiências informais de tra-
balho comunitário, principalmente junto à Igreja
Católica. Posteriormente, a multiplicação de serviços de
atenção primária à saúde, ocorrida no Brasil, a partir do
final dos anos 70, colaborou na criação de condições
institucionais para a inserção desses profissionais nos
locais de moradia das classes populares.
É interessante como este movimento de profis-
sionais de saúde vem se mantendo por tantos anos, con-
vivendo com a dinâmica do processo de adoecimento e
de cura no meio popular, interagindo com os movi-
mentos sociais locais e entrando em contato com a mili-
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REFER¯NCIAS
BRAND‹O, Carlos Rodrigues. Lutar com a REDE DE EDUCAÇ‹O POPULAR E SAÐDE. VASCONCELOS, Eymard Mourão. Educação
palavra: escritos sobre o trabalho do educador. Carta: a educação popular em saúde e o governo popular nos serviços de saúde. 3. ed. São
Rio de Janeiro: Graal, 1982. democrático do Partido dos Trabalhadores. Nós Paulo: Hucitec, 1997.
da Rede: Boletim da Rede de Educação Popular e
Saúde., Recife, n. 3, p. 6-8, 2003.
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Nossas Fontes
P
aulo Freire não foi o inventor da Educação Ficou, assim, mais fácil dizer o que é e o que não é
Popular. Ela foi sendo construída a partir de Educação Popular, ajudando a superar confusões.
um movimento de muitos intelectuais latino- A Educação Popular não é algo parado. Ela
americanos que, desde a década de 50, vinham se tem se modificado com a transformação da socieda-
aproximando do mundo popular na busca de uma de. Tem sido aplicada em novos e surpreendentes
metodologia de relação que superasse a forma auto- campos. Estamos sempre precisando de novos
ritária como as elites (até mesmo as lideranças de "Paulos Freires" que continuem o trabalho de elabo-
esquerda) abordavam a população. Foram descobrin- rar teoricamente essas mudanças e de sistematizar a
do que as classes populares, ao contrário de uma experiência que os movimentos sociais vão acumu-
massa de carentes passivos e resistentes a mudanças, lando em suas lutas. Este é um trabalho que tem se
eram habitadas por grandes movimentos de busca de mostrado difícil. Por isso, temos muita saudades de
enfrentamento de seus problemas e por muitas ini- Paulo Freire.
ciativas de solidariedade. Tinham um saber muito Muitas vezes, ficamos muito fascinados com
rico que as permitia viver até com alegria em meio a os avanços conseguidos por nosso grupo e esquece-
situações tão adversas. Esses intelectuais foram des- mos que fazemos parte de uma construção muito
cobrindo que, quando colocavam o seu saber e o seu antiga que envolveu a participação de muitas outras
trabalho a serviço dessas iniciativas populares, os pessoas. Desprezamos esta experiência acumulada,
resultados eram surpreendentes. correndo o risco de estarmos perdendo tempo na
O pernambucano Paulo Freire (1921-1997) foi busca de "inventar novamente a roda". Para os pro-
um desses intelectuais. Mas ele foi o primeiro a sis- fissionais de saúde que estão chegando agora no
tematizar teoricamente a experiência acumulada por desafio do trabalho comunitário, é importante
este movimento. E fez isto de uma forma muito ela- lembrar que tivemos um grande mestre: Paulo
borada, elegante e amorosa. Seu livro Pedagogia do Freire. Quantas coisas importantes os seus escritos
Oprimido, escrito em 1966, difundiu a Educação continuam a nos ensinar. E para homenageá-lo,
Popular por todo o mundo. Por isso, em muitos paí- nada melhor do que trazer um texto seu, com suas
ses, a Educação Popular costuma ser chamada de palavras originais. Para isso, nós da Rede de
pedagogia freiriana. A teorização da Educação Educação Popular e Saúde, escolhemos um texto
Popular permitiu não apenas a sua difusão, mas o bem simples, escrito há mais de 20 anos, logo
seu aperfeiçoamento, na medida em que apurou depois que ele voltou ao Brasil de seu exílio (teve
aquilo que lhe era mais fundamental e ajudou a de fugir do país, em 1964, por causa da persegui-
organizar os seus princípios de forma coerente. ção da ditadura militar).
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Paulo Freire
Ilustração: Ral
Apresentação:
Ricardo Burg Ceccim
A reflexão de
Paulo Freire nos leva
a compreender que só
iremos superar essa
postura de "querer libertar
dominando", quando entender-
mos que não estamos "sozinhos" no
mundo e que o processo de liberta-
ção não é obra de uma só pessoa ou
grupo, mas sim de todos nós.
o dia 23 de janeiro de 1982, Paulo Freire esteve com
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fundamental "saber mudar", isto é, "saber mudar ensina a gente a fazer as coisas é a prática da gente.
na direção que busca a igualdade de oportunida- Por isso Ânão faz mal nenhumÊ, que se leia um
des e de liberdade para todos e todas". O educador livro ou outro. Devemos ler e é importante ler-
lembrou que ocorrem momentos em que "nossas mos, mas o fundamental é o fazer, isto é, lançar-
ações se tornam difíceis de serem desenvolvidas e mo-nos numa prática e ir aprendendo-reaprenden-
nos perdemos no meio do caminho" e que, na do, criando-recriando com o povão. Lendo, ao
maioria das vezes, nem percebemos, pois "herda- mesmo tempo, as teorias adequadas aos temas.
mos de nossa história a tradição de não termos Isso é o que ensina a gente o necessário movimen-
tido, como povo, a chance de participar das deci- to prática-teoria-prática. Agora, se há possibilidade
sões da sociedade". Assim, ao tentarmos a partici- de se bater um papo com quem tem prática ou
pação, "acabamos por utilizar as mesmas ferra- com quem já teve prática ou, ainda, com quem
mentas das classes dominantes". tem uma fundamentação teórica a propósito da
Paulo Freire alertou a todos e a todas do experiência, isto é excelente. A prática refletida é a
grupo que só superaremos a postura "de querer práxis, e é a que indica o caminho certo a ser bus-
libertar o dominando", quando entendemos que cado‰.
"não estamos sozinhos no mundo" e que o proces- „Eu me comprometo, porque eu acho isso
so de libertação não é obra de uma só pessoa ou válido, a dar o meu assessoramento a vocês. Agora,
grupo, mas "de todos nós". Para isso, seria preciso o que é preciso é ÂfazerÊ. Assim, a gente vai tendo
"saber ler a nossa vida", isto é, procurar agir e refle- a sensação agradável de estar descobrindo as coisas
tir sobre nossas ações individuais e sobre as ações com o povo. Então, hoje, eu tenho a impressão de
sociais. A esse ato Paulo Freire chamava de "unir que não caberia uma palestra sobre um ÂMétodoÊ
teoria e prática", pois somente refletindo sobre de realizar a educação popular, não é para isso que
essas ações podemos dar validade a elas, nos reco- eu vim aqui. Eu tenho a impressão de que eu
nhecer nelas e, então, agirmos nos reconhecendo poderia colocar a nós - e não a vocês, porque eu
como „sujeitos da história‰, asumindo-nos como coloco a mim também - alguns elementos, chame-
autores e não reféns da história do mundo. mos, até, de princípios, que são válidos, não ape-
Paulo Freire chamou a atenção para o fato nas para quem está metido com alfabetização, mas
de que "os problemas sempre virão e serão solucio- para quem estiver participando de qualquer tipo
nados ou não, dependendo de nosso entendimen- de pastoral [ ou enfrentando as relações entre
to e de nossas ações", mas que o importante seria movimento e mudança]. Não importa se está
compreender que, "para lutar pela libertação ou fazendo alfabetização de adultos ou se está traba-
pela autonomia", para desenvolver nossa capacida- lhando na pastoral operária, na área da saúde ou
de autoria e autodeterminação, é preciso que qualquer outra que seja. Os princípios são válidos,
aprendamos, entre tantas outras virtudes, a de
"vivermos pacientemente impacientes".
No encontro com Paulo Freire, o debate foi
em torno das posições apresentadas pelos partici-
pantes e de uma discussão reflexiva orientada pelo
educador entre estas posições práticas e suas rela-
ções com a teoria.
Paulo Freire: „Em primeiro lugar, o moço
ali tem razão, quando afirmou que não se pode
ficar só na teoria, isso seria fazer teoricismo. O que
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também, por exemplo, para quem é médico e tra- conhece o que considera ou é mesmo verdade ou
balha com o povão‰. ciência‰.
„Isso tem uma implicação, no campo da
Paulo Freire então explanou sobre cinco Teologia, que eu acho muito importante, mas não
princípios - que considerava fundamentais - aos vamos discutir isso hoje. Eu gosto de falar dessas
educadores e às educadoras: saber ouvir; desmon- coisas, também porque, no fundo, eu sou um teó-
tar a visão mágica; aprender/estar com o outro; logo, porque sou um sujeito desperto, um homem
assumir a ingenuidade dos educandos(as) e viver em busca da preservação da sua fé, e, é inviável
pacientemente impaciente. procurar preservar a fé, sem fazer teologia, quer
dizer, sem se religar, sem ter um papo com Deus
[seria como dizer Âsem se implicarÊ]. A minha van-
Primeiro princípio: Saber ouvir
tagem é que eu nunca fiz um curso de teologia sis-
temática, aí, então, eu posso cometer heresias
Paulo Freire: „o primeiro princípio que eu
maravilhosas‰.
acho que seria interessante salientar é o de que,
como educadores/educadoras, devemos estar
muito convencidos de uma coisa que é óbvia: nin- A principal implicação de reco-
guém está só no mundo. Dá até para dizer: ÂMas, nhecer que ninguém está só é a de
Paulo, como é que você foi afirmar um negócio saber ouvir
tão besta desses?Ê Claro que todo mundo aqui está
sabendo que ninguém está só, mas vamos ver que „A primeira implicação profunda e rigoro-
implicações a gente tira dessa constatação, uma sa que surge quando eu encaro que não estou só,
vez que é mesmo uma constatação, que ninguém é exatamente o direito e o dever que eu tenho de
precisa pesquisar para, então, revelar isso‰. respeitar em ti o direito de você também Âdizer a
„Agora, o que é fundamental, portanto, sua palavraÊ. Isso significa dizer, então, que eu pre-
não é fazer a constatação. Fazer a constatação é ciso, também, saber ouvir. Na medida, porém, em
muito fácil. Basta estar aqui, estar vivo. O que é que eu parto do reconhecimento do teu direito de
importante é ÂencarnarÊ essa constatação, o que Âdizer a sua palavraÊ, quando eu te falo porque te
traz um bando de conseqüências, um bando de ouvi, eu faço mais do que falar Âa tiÊ, eu falo Âcon-
imp1icações‰. tigoÊ. Eu não sei se estou complicando, mas,
„A primeira delas, sobretudo no campo da vejam bem, eu não estou fazendo um jogo de
Educação, que é o nosso campo, é a de encarar palavras, estou usando palavras. Eu usei a prepo-
que ninguém está só e que os seres sição ÂaÊ, falar ÂaÊ ti, mas disse que
humanos estão ÂnoÊ mundo ÂcomÊ o Âfalar a tiÊ só se converte no Âfalar
outros seres. Estar ÂcomÊ os outros contigoÊ se eu te escuto. Vejam
significa respeitar nos outros o direi- como, no Brasil, está cheio de
to de Âdizer a sua palavraÊ. Aí já gente falando ÂpraÊ gente, mas não
começa a embananar para quem tem ÂcomÊ a gente. Faz mais de 480
uma posição nada humilde, uma anos que o povão brasileiro leva
posição de quem pensa que conhece porrete!‰
a verdade toda e, portanto, tem que „Então, vejam bem, o que
meter na cabeça de quem não a isso tem a ver com o trabalho do
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saúde, de saúde, de discussão do evangelho, de „Esta é uma realidade que existe. Eu não sei
religiosidade popular etc... Se eu me convenci como é que os jovens de esquerda não perceberam
desse falar ÂcomÊ, desse escutar, meu trabalho parte esse treco ainda. Então, não é possível chegar a uma
sempre das condições concretas em que o povo região como essa onde estamos hoje e fazer um dis-
está. O meu trabalho parte sempre dos níveis e das curso sobre a luta de classes. Não dá, mas não dá
maneiras como o outro entende a realidade e mesmo! É absoluta inconsciência teórica e científi-
nunca da maneira como eu a entendo. Está claro ca. É ignorância da ciência fazer um treco desses. É
assim?‰ claro que um dia vai se chegar a abordar o tema das
classes sociais, mas é impossível, enquanto não se
desmontar a visão mágica, isto é, a compreensão
Segundo princípio:
mágica da realidade. Porque, vejam bem, se houves-
Desmontar visão mágica se a possibilidade de uma participação ativa, de
uma prática política imediata, essa visão se acaba-
Paulo Freire: „um outro princípio eu regis- ria‰.
traria pra vocês refletirem. Vou dar um exemplo „É uma violência você querer esquecer que a
bem concreto. Quando eu tinha 7 anos de idade, população ainda não tem a possibilidade de um
eu já não acreditava que a miséria era punição de engajamento imediato. O que aconteceria é que
Deus para aqueles ou aquelas que tinham cometi- você falaria ÂàÊ comunidade e não ÂcomÊ a comuni-
do pecado. Então, vocês hão de convir comigo dade. Você faria um discurso brabo danado. E o
que já faz muito tempo que eu não acredito nisso, que é que você faria com esse discurso? Criaria mais
mas vamos admitir que eu chegue para trabalhar medo. Meteria mais medo na cabeça da população.
numa certa área, cujo nível de repressão e opres- Quero dizer que aquilo que a gente tem que fazer
são, de espoliação do povo é tal que, por necessi- é partir exatamente do nível em que essa massa está.
dade, inclusive de sobrevivência coletiva, essa Diante de um caso como esse, há duas possibilida-
população se afoga em toda uma Âvisão alienadaÊ des: a primeira, é a gente se acomodar ao nível da
do mundo. Nessa visão, Deus é o responsável por compreensão que a população tem e a gente passa
aquela miséria e não o sistema político-econômi- a dizer que, na verdade, é Deus mesmo que quer
co que aí está. Nesse nível de consciência, de per- dizer isso (essa é a primeira possibilidade de errar);
cepção da realidade, é preciso, às vezes, acreditar a segunda possibilidade de errar é arrebentar com
que é Deus mesmo, porque sendo Deus, o proble- Deus, é dizer que o culpado é o imperialismo.
ma passa a ter uma causa superior. É melhor acre- Vejam a falta de senso desse pessoal. Porque, no
ditar que é Deus porque, se não, se tem a necessi- fundo, isso é falta de compreensão do fenômeno
dade de brigar. É melhor acreditar que é Deus do humano, da espoliação e das suas raízes. É engra-
que sentir medo de morrer‰. çado: fala-se tanto em dialética e não se é dialéti-
co (dialética é o processo de conhecimento pelo
qual se acerta o caminho certo por meio de um
processo de reflexão em cima da realidade ou prá-
tica)‰ .
„Vamos ver o que acontece na cabeça das
pessoas se Deus é o responsável e Deus é um cabo-
clo danado de forte, o Criador desse treco todi-
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nho. O que é que não pode gerar na cabeça de um - Ah, porque os nossos eram camponeses.
cara desses se a gente chega e diz que não é Deus? Aí um deles disse:
A gente tem que brigar contra uma situação feita - O meu avô era camponês, o meu pai era
por um Ser tão poderoso como este e, ao mesmo camponês, eu sou camponês, meu filho é campo-
tempo, tão justo. Essa ambigüidade que está aí sig- nês e meu neto vai ser camponês!
nifica pecar. Então, a gente ainda mete mais sen- Temos aí uma concepção „fatalista‰ da his-
timento de culpa na cabeça da massa popular‰. tória, então podemos questionar e questionei:
„Se Deus é o culpado, o que a gente tem - O que é ser camponês?
que fazer num caso como este é aceitar. Eu me - Ah, camponês é não ter nada, é ser explo-
lembro, por exemplo - antes do Golpe de Estado, rado.
quando eu trabalhava no Nordeste - de um bate- - Mas o que é que explica isso tudo?
papo que eu tive com um grupo de camponeses - Ah, é Deus! É Deus que quis que o senhor
em que a coisa foi essa: dentro de poucos minutos tivesse e nóis não.
os camponeses se calaram e houve um silêncio - Eu concordo, Deus é um cara bacana! É
muito grande e, em certo momento, um deles um sujeito poderoso. Agora, eu queria fazer uma
disse‰: pergunta: quem aqui é pai?
- O senhor me desculpe, mas o senhor é que devia Todo mundo era. Olhei assim pra um e
falar e não nóis. disse:
- Por que? -eu disse. - Você, quantos filhos tem?
- Porque o senhor é que sabe e nóis não sabe - res- Ele respondeu:
pondeu. - Tenho seis.
- Ok, eu aceito que eu sei e que vocês não sabem. - Vem cá, você era capaz de botar 5 filhos
Mas por que é que eu sei e vocês não sabem? aqui no trabalho forçado e mandar 1 para Recife,
Vejam: eu aceitei a posição deles em lugar de me tendo tudo lá? Comida, local para morar e estu-
sobrepor à posição deles. Eu aceitei a posição dar e poder ser doutor? E os outros 5, aqui, mor-
deles, mas, ao mesmo tempo, indaguei sobre ela, rendo no porrete, no sol?
sobre a posição deles. Eles voltaram ao papo e aí - Eu não faria isso não.
me respondeu um camponês: - Então você acha que Deus, que é podero-
- O senhor sabe porque o senhor foi à esco- so e que é Pai, ia tirar essa oportunidade de vocês?
la e nóis não fomos. Será que pode?
- Eu aceito, eu fui à escola e vocês não Aí houve um silêncio e um deles disse:
foram. Mas por que, que eu fui à escola e vocês - É não, não é Deus nada, é o patrão.
não foram? Quer dizer, seria uma idiotice minha se eu
- Ah, o senhor foi porque os seus pais pude- dissesse que era o patrão imperialista „yanque‰ e
ram e os nossos, não! o cabra iria dizer:
- Muito bem, eu concordo, mas porque que - O que é, onde mora esse home?!
meus pais puderam e os seus não puderam? „Olhem, a transformação social se faz com
- Ah, o senhor pôde porque seu pai tinha ciência, com consciência, com bom senso, com
trabalho, tinha um emprego e os nossos, não. humildade, com criatividade e com coragem.
- Eu aceito, mas por que, que os meus ti- Como se pode ver, é trabalhoso, não é? Não se faz
nham e os de vocês, não? isso na marra, no peito. ÂO voluntarismo nunca
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formas de Ânão estar comÊ as classes populares: o tar uma verdade histórica, que é o meu limite his-
elitismo e o basismo‰. tórico, ou, então, eu me suicido! Eu não vou me
„O entendimento equivocado do conheci- suicidar porque é dentro dessa contradição que eu
mento intelectual como superior é o elitismo, me forjo como um novo tipo de intelectual.
mesmo que, em termos teóricos, o intelectual Então, eu entendo esse treco. E afirmo que eu
diga: Âa gente precisa é viver o conhecimentoÊ.A tenho uma contribuição a dar à massa popular.
gente precisa é viver o que se diz, essa é a minha Nós temos uma contribuição a dar, mesmo não
ênfase. Todo mundo aqui sabe que não está só no vivendo e morrendo no meio do povo‰!
mundo. Ok, mas é preciso viver a conseqüência „Agora, para mim, o que é fundamental é
disso, sobretudo se a opção é libertadora. O que é o seguinte: é que essa contribuição só é válida na
preciso é encarnar isso, sobretudo quando a gente medida em que eu sou capaz de partir do nível em
se aproxima da massa popular. Muitos de nós vão que a massa está e, portanto, de aprender com ela.
às massas populares arrogantemente, elitistamen- Se não for assim, então a minha contribuição não
te, para ÂsalvarÊ a massa inculta, incompetente, vale nada ou, pelo menos, vale muito pouco.
incapaz... Isso é um absurdo! Porque, inclusive, Então, esse é outro princípio independente de tec-
não é científico. Há uma sabedoria que se consti- nicazinha de ba-be-bi-bo-bu. Quer dizer, é esse
tui na massa popular pela prática‰. Âestar comÊ e não simplesmente ÂparaÊ e, jamais,
„Há, também, um outro equívoco, que é o ÂsobreÊ o outro. É isso o que caracteriza uma pos-
que também se chama de basismo. ÂOu vocês tura realmente libertadora. Bacana era se a gente
estão dentro da base o dia todo, a noite toda, tivesse tempo de ir mostrando essas afirmações à
moram lá, morrem lá ou não podem dar palpite luz da experiência para perceber o que signifi-
nunca!Ê Isso é conversa fiada! Esse treco também cam‰.
não está certo, não. Esse negócio de superestimar Paulo Meksenas e Nilda Lopes Penteado
a massa popular é um elitismo às avessas. Não há retomam novamente a reflexão. A reflexão é um
porque fazer isso, não senhor! Eu tenho a mão estabelecer contato com (estar com).Nesse caso,
fina. A sociedade burguesa em que eu me consti- com os leitores e também recupero, em parte suas
tuí como intelectual não poderia ter-me feito dife- questões:
rente. Eu devo ser humilde o suficiente para acei- - Revendo os questionamentos anteriores e
nossa ação social, há falhas? Por quê?
- Muitas vezes a gente fala que o
povo lá do bairro é ignorante, não sabe
das coisas. Como fica, então, essa afirma-
ção: ninguém sabe tudo e ninguém igno-
ra tudo?
- O que é ser culto?
- Por que as camadas populares conside-
ram que as pessoas que têm diploma sabem tudo?
Quais as conseqüências dessa atitude para as pes-
soas e para a sociedade?
- Como devem ser valorizadas as pessoas?
O que podemos fazer a partir dessa reflexão?
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Quarto princípio: assumir a inge- Quem sou eu? Então esse é outro treco que eu
considero absolutamente fundamental. Na medi-
nuidade dos educandos
da em que você assume a posição ingênua do edu-
cando, você supera essa posição ÂcomÊ ele / ÂcomÊ
Paulo Freire: „outro princípio que eu acho
ela e não ÂsobreÊ ele / ÂsobreÊela.
fundamental é a necessidade que a gente tem de
„Qual é a nossa opção? Desenvolver a cora-
assumir a ingenuidade do educando, seja ele ou
gem de correr risco ou desenvolver a marca do
ela universitário ou popular.Eu estou cansado de
autoritarismo? Talvez seja necessário começar a
me defrontar nas universidades onde eu trabalho
aprender tudo de novo, contar com outras expe-
com perguntas que às vezes eu não enetendo.Não
riências, porque se é fundamental assumir a
entendo a pergunta porque o cara que a está fazen-
ingenuidade do educando, é absolutamente indis-
do não sabe fazê-la.Agora vocês imaginem o
pensável assumir criticidade do educando diante
seguinte: que pedagogo seria eu se, ao ouvir uma
da nossa ingenuidade de educador. Esse é o outro
pergunta mal formulada, desorganizada e sem sen-
lado da medalha para o educador que se coloca
tido, respondesse com ironia? Que direito teria eu
como auto-suficiente, onde somente o educando
em dizer que sou um educador que penso em
nunca seria auto-suficiente. No fundo, esse edu-
liberdade e respeito se ironizo uma questão do
cador é que é ingênuo, porque a ingenuidade se
outro?‰
caracteriza pela alienação de sí mesmo ao outro,
„Não podemos fazer isso de maneira nen-
ou, ainda, pela transferência de sua ingenuidade
huma. ¤s vezes me sinto numa situação meio difí-
para outro: Âeu não sou ingênuo, o Patrício é que
cil porque um / uma estudante coloca a questão e
é ingênuoÊ. Eu transfiro para ele a minha
eu realmente não estou entendendo. Quando isso
ingenuidade. Acontece que eu sou crítico na
se dá nos Estados Unidos da América, eu até
medida em que reconheço que eu também sou
tenho a chance de dizer: Âeu não entendo bem o
ingênuo, porque não há nenhuma absolutização
inglês, poderia repetir?ÊAqui, eu não posso dizer:
da criticidade. O educador que não faz essa
Âolha eu não entendo bem o portuguêsÊ. Então eu
dinâmica, esse jogo de contrários, pra mim não
digo pro / pra estudante: Âolha eu vou repetir a
trabalha pela e para a libertação ( o desenvolvi-
sua pergunta e você presta atenção pra ver se eu
mento da autonomia)‰.
não distorço o espírito da sua questão; se eu dis-
torcer você me dizÊ. Então eu repito a pergunta
que ele / ela me fez, reformulando do modo mais A Educação é um ato político
claro a maneira como entendi. Ai o / a estudante „Para terminar essa série de conside
pode me dizer: Âera isso mesmo o que eu queria rações, eu diria a vocês o seguinte: tudo isso é
perguntar; só que eu não tava era sabendoÊ. Eu política, porque no fundo, a educação é um ato
digo: ÂAh! Então ótimo!Ê Mas se eu digo: Â Não, o político! Educação é tanto um ato político quan-
senhor / senhora é um idiotaÊ, com que autori- to um ato político-educativo. Não é possível negar
dade eu poderia dizer isso ao / a jovem estu- de um lado a politicidade da educação e de outro
dante? Que sabedoria teria eu pra dizer isso? a educabilidade do ato político.É nesse sentido
PS.: Registramos o agradecimento à APSP e ao Professor Eymard Mourão Vasconcelos, pelo repasse do material de base para esta organiza-
ção, ao Professor Nilton Bueno Fischer por incentivar essa divulgação e disseminação e por nos colocar em contato com a viúva do edu-
cador, a Dra. Ana Maria Araújo Freire (Nita), a quem agradecemos de maneira especial pela leitura e por seus comentários, e, principal-
mente, pelo acolhimento a nossa iniciativa de novo diálogo com o professor e pensador Paulo Freire.
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que todo partido é um educador sempre, mas Vieira, durante a guerra dos holandeses. Eu comecei
depende que educação é essa que esse partido faz. por aí porque não tive tempo de ir mais fundo. Eu
Depende de com quem ele está. A favor de quê está passei uns 10 minutos lendo um trechino de um
o educador ou a educadora? Então, se a educação é sermão maravilhoso em que o Padre Vieira falava ao
sempre um ato político, a questão fundamental que vice-rei do Brasil, Marquês de Montalvan, no
se coloca para mim é a seguinte: ÂQual é a nossa Hospital da Misericórdia na Bahia‰.
opção?ÊO educador, a educadora, somos todos „Ele dizia uma coisa muito bonita: em
políticos. O que é importante , entretanto, é saber a nenhum milagre Cristo gastou mais tempo, nem
favor de quem está a política que nós fazemos‰. mais trabalho teve do que em curar o endemoniado
„Clareada a nossa opção, a gente vai ter mudo. Esta tem sido a grande enfermidade deste
que ser coerente com ela: aí se fecha o cerco, país: o silêncio. Um silêncio a que tem sido, sempre,
porque não adianta que eu passe uma noite fazen- submetido o povo. O que Vieira não disse , inclu-
do esse curso aqui e, depois, vá para a área da sive porque ele não faria essa análise de classe tão
favela salvar os favelados com a minha ciência, em cedo, é que, sobretudo nesse país, quem tem ficado
lugar de aprender com os favelados a ciência deles. muda é a classe popular. Não quero dizer ficar
Na verdade, meus amigos, não é o discurso que muda no sentindo de não fazer nada, mas não
diz se a prática é válida, é a prática que diz se o terem a sua voz reinventando as coisas. Elas têm
discurso é válido ou não é. Quem ajuíza é a práti- feito rebelião constantemente, as lutas populares
ca. Sempre! Não o discurso. Não adianta uma pro- nesse país são coisas maravilhosas! Só que a histori-
posta revolucionária se no dia seguinte minha ografia oficial, em primeiro lugar, esconde as lutas
prática é de manutenção de privilégios. Isso eu populares; em segundo lugar, quando conta, conta
acho que é fundamental‰. distorcidamente e, em terceiro lugar, o poder
autoritário faz tudo pra gente esquecer. Essa é uma
marca de autoritarismo do nosso país‰.
Correr risco e reinventar as coisas
„Há uma série de outras coisas, mas eu
diria a vocês que o fundamental está na coerência Comece a reaprender de novo
com a opção de correr risco. Mudar é como uma „Se você pretende pra semana começar
aventura permanente ou não é ato criador. Não um trabalho com grupos populares, esqueça-se de
há criação sem risco. O que a gente tem que fazer tudo o que já lhe ensinaram, dispa-se, fique nú de
é reinventar as coisas. novo e comece a se vestir com as massas popu-
„Temos que combater em todos e todas nós lares. Esqueça-se da falsa sabedoria e comece a
uma marca trágica que nós carregamos, os reaprender de novo. É aí que vocês vão descobrir
brasileiros e brasileira, que é a do autoritarismo que a validade daquilo que vocês sabem, na medida
marcou os primórdios do nosso nascimento. O em que vocês trestam o que vocês sabem com o
Brasil foi inventado autoritariamente e é autoritari- que o povo está sabendo. Eu acho que isso é bási-
amente que ele continua. Não é de se espantar de co. Eu nunca escrevi nada que não tivesse feito.
maneira nenhuma que a abertura contra a repressão Nem carta eu posso fazer se eu não tiver algo
ou a opressão se faça autoritariamente. Eu fiz um importante sobre o que compartilhar‰ .
discurso em Goiânia, no Congresso Brasileiro de „Essa é uma das minhas boas limitações.
Professores, em que eu li uma série de textos Meus livros são sempre relatórios. São relatórios
começando por um sermão fantástico do Padre teóricos, mas feitos a partir da prática. Isso significa
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que aquele que pretende trabalhar com esses conversacom educador, retomando a relação entre
relatórios que são os meus livros, deve, sobretudo, movimento e mudança. Exatamente ao final da con-
estar disposto a recriar o que eu fiz, a refazer. Não versação, Feire formulou, como mais uma advertên-
copiar, mas reinventar as coisas‰. cia, que seria necessário, viver pacientemente a
„Assim que cheguei da Europa, no ano impaciência: „Uma coisa que eu sempre falo e que
passado, para morar de novo no país, eu trabalhei poria agora como um dos princípios que eu esque-
um semestre com um grupo de jovens que realizava ci‰. A advertência é recuperada como princípio, uma
uma experiência de educação numa favela.Durante vez que configura um desafio político relativo à
a construção de um barraco, eles realizaram uma própria existência: uma ética da afirmação da vida,
experiência de alfabetização muito interessante, como aparece na pedagogia de Paulo Freire.
depois sumiram. Mas tarde, eles apareceram de Paulo Freire: „a impaciência significa a rup-
novo e me disseram: ÂPaulo a coisa mais formidáv- tura com a paciência. Quando você rompe com um
el que a gente tem pra dizer é que por mais que a desses dois pólos, você rompe em favor de um deles.
gente tivesse lido você e conversado com você, a Esse é o princípio para aprender a trabalhar ÂcomÊ o
gente cometeu um erro tremendo. A gente tinha povo e para construir ÂcomÊ o povo o seu direito à
botado na cabeça da gente que o povo queria ser liberdade e à afirmação da vida com dignidade‰.
alfabetizado. Como a gente sugeriu ao povo que a „O educador e a educadora, no exercício da
alfabetização era importante, o povo passou 6 meses opção a que têm o direito de fazer, têm que viver
com a gente falando daquilo por causa da gente. pacientemente impaciente. Todo agente de lutas tem
depois que o povo ganhou intimidade com a gente de viver a relação entre impaciência e paciência. Não
eles falaram, dando risada: Ânóis nunca quis isso!Ê ‰. é possível ser só impaciente como muita gente é.
„Vocês vejam, olha era uma equipe bacana Querer fazer revolução daqui à quinta-feira. E meter
que tinha lido tudo meu, que tinha discutido comi- na cabeça da gente um desenho da realidade que
go 1 semestre. Eu também fui enrolado pela equipe. não existe, como esse por exemplo: ÂAs massas já
Essa equipe estava totalmente convencida do que o têm o poder no Brasil, só falta o governoÊ. Isso só
povo queria. na verdade, essa equipe tinha transferi- existe na cabeça de alguém, não na realidade
do ao povo a necessidade de alfabetização. Isso é econômica, política e social do Brasil. Se você
outra coisa importante. Num país que há 480 anos rompe em favor da paciência, você cai refém das
o povão leva porrete, é a coisa mais fácil do mundo vozes e dos poderes dominantes, não impondo sua
você chegar com pinta de intelectual e terminar palavra e seu poder de reinvenção.
insinuando / sugerindo que há uma necessidade Para Freire, viver a relação paciência e
que o povo deve atender a ela. O povo vai dizer: ÂÉ impaciência é não perder a crítica, assumir a
senhor, é o que eu queroÊ. Essa é uma advertência ingenuidade em si e do outro, recriar, reaprender de
que eu faço a vocês‰. novo e, afinal, fazer . Assim é que se teria o poder
de fazer com criticidade aquilo que se quer e que
precisa ser feito.
Quinto princípio:
Viver pacientemente impaciente Fechamento
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tante formulação para a qual deve estar atenta a ges- saúde, nos termos de Paulo Freire, seria a oferta de
tão do Sistema Ðnico de Saúde (SUS) e a partici- condições reais de participação e exercício do cont-
pação dos usuários (pacientes nas formulações rela- role social, segundo uma pedagogia do desenvolvi-
tivas ao cuidado e ao tratamento em saúde). O prin- mento da autonomia, co compartilhamento dos
cípio antropológico, político e do direito, tanto vários saberes e do esquecimento da Verdade, ciên-
quanto pedagógico, de que os pacientes (os cia para poder ouvir e estar com. Somente, então,
usuários, melhor dito) estejam, sempre, de fato, buscar naquilo que se aprendeu o que se pode ofer-
impacientes é para que o Sistema de Saúde a que tar, aprender em ato de ensinar e ensinar em ato de
têm acesso seja aquele que possa estar conosco em aprender. A conquisa desse direito somente se dará
nossas lutas pelo viver. Paulo Freire entendia que os se formos, na condição de pacientes, impacientes
trabalhadores e trabalhadoras de saúde deveriam ser com a falta de comunicação, com a conservacão de
desafiados a contribuir ativamente com os usuários preconceitos e exclusões, com a ausência de acolhida
de suas ações e serviços na lutapelo direito à saúde. aos nossos jeitos de ser e de estar e de demandar
Não entendendo tecnicamente o ba-be-bi-bo-bu das ajuda, impacienetes com um mundo e um sistema
ciências do cuidado e do tratamento, mas usando o de saúde que não corresponde à correlação entre
conhecimento técnico para a construção da autono- movimento e mudança para a reinvenção das ver-
mia dos usuários, de seu direito de apropriação do dades, das ciências, dos sensos comuns e das práticas.
sistema de saúde vigente no país e disputando por O SUS é o território onde estabelecemos
seu direito de satisfação com o mesmo. nossa luta pela saúde, sabendo que a própria luta é
A Lei Orgânica da Saúde assegurou, entre componente da conquista de mais saúde em nossa
seus princípios (art. 7À, Lei Federal nÀ 8.080/1990), experiência de viver (CECCIM, 2006), por isso a
a integralidade da atenção à saúde; a preservação da advertência de Paulo Freire é também nosso alívio e
autonomia das pessoas na defesa de sua integridade alegria (expressão de Emerson Merhy): os problemas
física e moral; o direito às pessoas sob assistência à sempre virão e serão solucionados ou não, depen-
informação sobre sua saúde; a divulgação de infor- dendo de nosso entendimento e de nossas ações, o
mações quanto ao potencial dos serviços de saúde e grande aprendizado , entretanto, sobrevem justa-
sua utilização pelo usuário; a participação popular mente de vivermos pacientimente impacientes.
eo exercício do controle da sociedade sobre as ações Registro o agradecimento à Associação
do Estado. Paulista de Saúde Pública (APSP) pelo repasse da
Não consta, entretanto, entre os princípios primeira publicação para ser aqui reorganizada; ao
do SUS, o direito à educação popular em saúde e o Professor Doutor José Ivo dos Santos Pedrosa pelo
dever de permeabilidade desse sistema ao "povo", cuidado com a releitura dessa organização; ao
segundo a eqüidade exigida pelas diversidades soci- Professor Doutor Nilton Bueno Fischer por incen-
ais. Para um sistema de saúde, pautado pela integra- tivar esta divulgação e disseminação, acrescer
lidade, precisaríamos, então, do cumprimento de opiniões e colocar-me em contato com a Professora
uma ação de educação popular, onde esse „direito Doutora Ana Maria Araújo Freire (Nita), viúva do
de todos e dever do Estado‰ se elevasse à condição educador, a quem agradeço de maneira muito espe-
de disponibilidade de trabalhadores capazes de estar cial a atenta leitura e as ressalvas para a maior prox-
com os usuários e a condição de aceitação dos imidade possível desse corpo textual com o acúmu-
usuários como capazes de se tornarem pacientes lo da produção de sentindos pedagógicos expressos
impacientes. Um direito à educação popular em por Paulo Freire em sua carreira. Também ao
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Professor Doutor Paulo Meksenas com quem tive a Este pequeno texto recriando um encontro e
satisfação de compartilhar o produto final desta falas de Paulo com uma comunidade popular de São
atual comunicação e ainda o estímulo à recirculação Paulo e com outros/as educadores/as, prova a minha
de idéias para as reflexões da educação popular em afirmativa: a possibilidade das contribuições de Paulo
saúde.Agradeço à Nita Freire principalmente pelo servirem para assegurar melhores condições de vida
acolhimento à nossa iniciativa de novo diálogo com para o povo brasileiro, para as suas camadas popula-
o professor e pensador Paulo Freire. res. Os que se preocupam com a área de saúde, com
o cuidado com a vida que todos e todas merecem
Ricardo Burg Ceccim.Porto Alegre, 26 de encontram em Paulo comunicação com o seu fazer.
maio de 2005. Um de seus expert, sentindo isso, vivendo isso, enten-
dendo isso resolveu que deveria procurar em meu
Comentários e conclusão, por Ana marido, através de uma de suas virtudes, dialetica-
Maria Araújo Freire (Nita Freire) mente posta em sua teoria, como uma tática pedagó-
gica dar voz e vida às camadas populares: viverem a
Por se tratar de uma composição que se apro- paciência, impacientemente. Colocada em sua com-
xima o mais possível do que dizia Paulo - e diria, preensão de educação por sua coerência entre o seu
depois, explicitamente na sua Pedagogia da Espe- sentir e o seu dizer, os que se engajam nas ciências do
rança - e não uma reprodução textual dos anos 1980 cuidado e do tratamento da saúde do povo, política
- porque assim sendo não seria de meu direito legal e eticamente, evocam esta virtude colocando-a como
aprovar uma republicação e nem seria também de um direito dos pacientes dos serviços públicos de
minha alçada comentá-la - aceitei como esposa e saúde, o de tornarem-se impacientes.
colaboradora de Paulo Freire, a solicitação de Orgulho-me de que Paulo, como pensador e
Ricardo Burg Ceccim para fazer uma leitura desse educador político possa, mesmo com seus pequenos
texto recomposto por ele (autorizado por Paulo e aparentemente simples bate-papos incentivar
Meksenas) e tecer alguns comentários. quepensares e quefazeres para a política de saúde na
Realmente, sinto e constato como a obra e a qual a sua pedagogia do oprimido ensina aos douto-
práxis de Paulo vem, cada dia mais - e mais profun- res da saúde e aos que fazem a burocracia do campo
damente -, contribuindo para aclarar temas e ques- sanitário que todos nós homens e mulheres devemos
tões em várias áreas do conhecimento científico e, ser Seres Mais.Orgulho-me que estes e aqueles estão
assim, influenciar e incentivar as transformações aliando-se a Paulo na busca de que os Seres Menos,
sociais necessárias. Valorizando o povo, o senso sem direito a comer, a estudar, a morar e a ter saúde
comum e sua prática - tanto quanto o conhecimen- ,devam e possam sonhar com a possibilidade de
to produzido por ele. Paulo deles partiu para mos- tornarem-se, conscientemente, pacientes impacientes.
trar as possibilidades de nos construirmos, em
comunhão, com tolerância e espírito de justiça, São Paulo, 1À de julho de 2005.
cidadãos solidários da sociedade brasileira, que Ana Maria Araújo Freire (Nita)
assim abriria a possibilidade fazer-se verdadeiramen- Organizador: Ricardo Burg Ceccim, maio de 2005.
te democrática.
REFER¯NCIAS
CECCIM, Ricardo Burg. Saúde e doença: FREIRE, Paulo. Pedagogia da esper- manicomial: alegria e alívio como disposi-
uma reflexão para a educação da saúde. ança.12. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005. tivos analisadores. 2004.18p.Disponível
In: MEYER, Dagmar E. Estermann (Org.). em:
Saúde e sexualidade na escola. 5. ed. Porto MERHY, Emerson Elias. Os CAPS e seus <http://paginas.terra.br/saude/merhy>.
Alegre: Mediação, 2006. p. 37-50. trabalhadores no olho do furacão anti-
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A
Educação e Saúde é, do ponto de vista do-
minante e tradicional, uma área de saber um ramo ou método da medicina preventiva.
técnico, ou seja, uma organização dos co- Em texto escrito no ano de 1990, afirma-
nhecimentos das ciências sociais e da saúde volta- mos (STOTZ, 1993, p. 14) que:
da para "instrumentalizar" o controle dos doentes
pelos serviços e a prevenção de doenças pelas pes- Embora nem todos possam concordar com essa afir-
soas. mação, parece caber razão ao autor quando observa
que a maioria dos educadores sanitários, em muitos
O aspecto principal dessa orientação reside
países, adota as bases filosóficas da medicina. Esse
na apropriação, pelos educadores profissionais e
domínio da medicina sobre a educação sanitária
técnicos em saúde do conhecimento técnico-cientí- expressa-se, segundo o mesmo autor, no conteúdo da
fico da biomedicina (ou medicina ocidental con- formação, posto que 'os problemas são definidos sob
temporânea) sobre os problemas de saúde que são, o ponto de vista médico e os diagnósticos proporcio-
a seguir, repassados como normas de conduta para nam o ponto de partida. As atividades de educação
as pessoas. sanitária são afins a esse padrão de problemas medi-
O modelo explicativo dos problemas de saú- camente definidos, que freqüentemente terminam
de vigente atualmente é o da multicausalidade do em programas e campanhas fragmentadas, focaliza-
processo de adoecer e morrer, mas as respostas das em um problema apenas.
encaminhadas assumem, em regra, o sentido da
causalidade linear. Assim, embora se saiba que as Vale dizer ainda que as bases filosóficas da
pessoas se tornam diabéticas em razão de proble- biomedicina compreendem, de acordo com o autor
mas que são tanto imunológicos, como emocionais citado, os seguintes princípios componentes:
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luções sociais que colocaram em questão o domí- lista. O que prevaleceu foi a biomedicina e a edu-
nio absoluto das leis do mercado capitalista. cação e saúde foi tributária dos pressupostos dessa
Uma corrente de esquerda surgiu no campo racionalidade médica.
da Saúde, emergindo com as primeiras manifesta-
ções revolucionárias da classe operária: Guérin, na Os sinais individuais e coletivos
França, Neumann e Virschow, na Alemanha, foram do sofrimento
os pensadores sociais da saúde, cujos nomes apare-
cem vinculados às jornadas revolucionárias que atin- Do ponto de vista das ciências da saúde
giram seu ponto culminante em 1848. Quase um anatomia, fisiopatologia, bacteriologia as definições
século depois, esse pensamento foi retomado por mais importantes são, sem dúvida, os de normal e
Henry Sigerist, durante as décadas de 30 e 40, nos de patológico. Para Canguilhem (1978), tais defini-
Estados Unidos, e por Juan César Garcia, durante as ções são de cunho operacional e não conceitual. A
décadas de 60 e de 70, na América Latina. Esta cor- distinção entre normal e patológico é o resultado da
rente de pensamento da esquerda socialista na área afirmação do saber científico sobre a experiência da
da Saúde tornou-se conhecida como medicina doença, da ciência sobre o senso comum, afirmação
social. Para esses pensadores, os fenômenos do adoe- possível graças a conceitos genéricos como os de
cimento e da mortalidade sempre foram biológicos meio interno, de homeostase e de metabolismo, vin-
e sociais e as intervenções para enfrentá-los deviam culados ao modo de funcionamento do organismo.
contemplar estes determinantes. O organismo, por sua vez, foi visto como um siste-
A medicina social foi, contudo, uma corrente ma de sistemas com funções próprias, como o siste-
de oposição minoritária dentro da sociedade capita- ma nervoso, o digestivo, etc., e disciplinas científicas
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foram se constituindo para analisar cada aspecto do tais representações é o de poder físico e mental, e de
funcionamento dos sistemas específicos, como a neu- dignidade ou, inversamente, de perda de poder e de
rologia, a gastroenterologia, etc. (CAMARGO JR, controle sobre si próprios.
1997).
A Educação e Saúde, na medida em que é, No texto, procura-se chamar atenção para o
como vimos, um saber técnico, incorpora em seu fato de que a doença, fenômeno intimamente ligado
arcabouço outros saberes disciplinares, contribuições à vida privada dos indivíduos, raramente é um caso
de outras ciências. Assim, veja-se a seguinte análise isolado, posto que processos semelhantes verificam-se
(TEIXEIRA, 1985) da contribuição da sociologia fun- em outras pessoas e são expressão de dificuldades
cionalista de Talcott Parsons para o controle dos sociais em suas vidas.
doentes e a prevenção das doenças: O problema é que as relações entre os proble-
mas percebidos no nível individual e os de sua rela-
Como elemento central no processo de definição da ção mais ampla e determinação ou condicionamento
doença e, por conseqüência, das formas de consumo de social não são facilmente percebidas e compreendidas
saúde, está a delimitação da normalidade, sendo espe- pelos indivíduos:
rado que os indivíduos desviantes adotem certas con-
dutas destinadas a restaurar o padrão normal. O doen- A própria percepção da doença é influenciada pela
te é um "desviante" que precisa assumir o seu papel de posição social e pela cultura do grupo social de referên-
paciente e que, ao seguir a prescrição médica, pode
retomar a sua condição normal.
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cia dos indivíduos. Há sinais que são identificados até aquelas outras, orientadas para a prevenção de
como doenças, vistos como expressão desviante de uma comportamentos "de risco", a exemplo da gravidez
normalidade biológica; outros não. E mesmo quando precoce, o consumo de drogas legais (álcool, tabaco)
identificados enquanto doenças, os sinais nem sempre e ilegais (maconha, cocaína), a falta de higiene corpo-
são reconhecidos nos indivíduos doentes e tampouco
ral, o sedentarismo e a falta de exercício físico.
seu caráter coletivo é assumido.
As condições e as razões que levam as pessoas
Se, como afirma ainda Berlinguer, os sinais podem ser
tanto ocultados como distorcidos, fica mais difícil esta- a adotar estes comportamentos ou atitudes ficam à
belecer espontaneamente os possíveis nexos entre os margem das preocupações da maioria dos profissio-
distúrbios vivenciados e as condições sociais nas quais nais dos serviços e dos técnicos com responsabilidade
vivem os indivíduos (STOTZ, 1993). gerencial. São dimensões que estão "fora" do setor
Saúde. Aplica-se simplesmente a norma: você tem
Daí a importância de se entender as dificulda- isso, deve fazer aquilo. A solução consiste em seguir
des que as pessoas têm de andar sua própria vida, vin- a norma, no caso, consumir medicamentos, cumprir
culando, por meio da escuta e do diálogo, as expe- prescrições.
riências com as formas de enfrentar o adoecimento a O raciocínio vale igualmente para situações
hipertensão arterial, o diabetes, os transtornos men- epidêmicas, como podemos observar a partir da pri-
tais leves em regra decorrentes da desorganização da meira epidemia de dengue ocorrida na cidade do Rio
vida em razão de desemprego, insuficiência de renda, de Janeiro, em 1987: o problema é o vizinho descui-
violência social, perda de ou rupturas na relação com dado (geralmente uma pessoa pobre), porque não
pessoas queridas. Sim, porque há itinerários percorri- tampa os reservatórios de água para evitar a entrada e
dos pelas pessoas em busca de solução para os seus deposição dos ovos do mosquito Aedes aegypti. A
problemas e que ajudam a formular diagnósticos pré- falta de água corrente não entra neste raciocínio, bem
vios, a incorporar terapêuticas e a afirmar valores de como não se consideram os grandes criadouros do
vida saudável. mosquito, a saber, os terrenos baldios, as piscinas sem
tratamento, os cemitérios, os depósitos de automó-
O papel dos serviços de saúde veis e ferros-velhos abandonados.
Compensar, no nível individual, problemas de
A medicina institucionalizada nos serviços de caráter social eis o papel fundamental a que os servi-
saúde foi organizada em práticas especializadas, ços de saúde são chamados a desempenhar. Os servi-
orientadas para atuar normativamente sobre proble- ços de saúde são como Singer, Campos e Oliveira
mas de saúde. (1988) denominaram, serviços de controle social, cuja
A educação em saúde, assim denominada por- finalidade consiste em prevenir, suprimir ou manipu-
que, na preposição "em" afirma-se o vínculo com os lar as contradições geradas pelo desenvolvimento
serviços de saúde, foi destinada a desempenhar um capitalista no âmbito da vida social, contradições que
importante papel em termos de controle social dos aparecem sob a forma de "problemas" de saúde. O sis-
doentes e/ou das populações "de risco". O âmbito da tema de atenção médica funciona, na sociedade capi-
educação em saúde é relativamente amplo. Inclui talista, como uma forma de compensar, no nível indi-
desde técnicas destinadas a assegurar a adesão às tera- vidual, problemas ou condições sociais que apontam
pêuticas lidar com o abandono do tratamento, com para situações socialmente injustas do ponto de vista
a "negociação" da prescrição médica pelos pacientes da saúde. O que acarreta, objetivamente, a legitima-
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valor da saúde é formal e institucionalmente defini- mas cujo conteúdo é extraído da clínica médica
do como um direito social. No Brasil, contudo, e/ou da epidemiologia.
vivemos a contradição do direito à saúde ser um A educação sanitária preventiva lida com
direito social, definido em termos do princípio da "fatores de risco" comportamentais, ou seja, com a
solidariedade social que, como diz o artigo 196 da etiologia das doenças modernas. A eficácia da edu-
Constituição, exige políticas sociais e econômicas cação expressa-se em comportamentos específicos
que visem a reduzir o risco de doenças e outros como: deixar de fumar, aceitar vacinação, desenvol-
agravos à saúde, mas historicamente estas políticas ver práticas higiênicas, usar os serviços para preven-
têm o sentido inverso, enquanto o sistema organi- ção do câncer, realizar exames de vista periódicos.
zado para garantir este direito responde (precaria- O repasse de informação, normalmente por meio
mente, com baixa resolutividade) à doença no da consulta ou em grupos, de palestra seguida ou
plano individual. não de perguntas e respostas, é o procedimento típi-
co do preventivismo.
Enfoques de educação e saúde O preventivismo fundamentado na clínica
serve para justificar métodos de controle que, além
Nessa seção, vamos examinar os enfoques de desconhecer os pacientes como sujeitos, inferio-
educativos, lançando mão da tipologia proposta rizam-nos com a generalização do método da admi-
por Tones, um autor usado no texto escrito em nistração supervisionada de dosagem (DOT), oriun-
1990, citado acima (STOTZ, 1993). do dos tratamentos psiquiátricos. Os programas de
O enfoque educativo predominante nos ser- controle da tuberculose passaram a adotar este pro-
viços de saúde durante décadas, praticamente exclu- cedimento estrito e, com apoio das instituições
sivo, é o preventivo. Os pressupostos básicos desse públicas internacionais, começa a se generalizar. É
enfoque são, de um lado, o de que o comportamen- o que acontece quando se percebe que o financia-
to dos indivíduos está implicado na etiologia das mento das ações de controle da hipertensão arterial
doenças modernas (crônico-degenerativas), compor- se baseia no número de grupos que ouvem pales-
tamento visto como fator de risco (dieta, falta de tras, têm consultas agendadas e recebem medica-
exercício, fumo etc.) e, de outro, o de que os gastos mentos.
com assistência médica têm alta relação em termos Com a instituição do Programa Saúde da
de custo-benefício. Ou seja, os gastos produzem Família (PSF), em 1994, o preventivismo deixou de
pequenos benefícios porque os problemas de saúde ser exclusivo. O PSF, além da proposta de ampliar
são de responsabilidade dos indivíduos. a cobertura de serviços, trouxe a perspectiva de
Nesse enfoque, não obstante a crítica de que mudar o modelo de atenção à saúde no Brasil.
a medicina curativa teria fracassado em lidar com Pode-se dizer que, ao lado do preventivismo ainda
os problemas de saúde comunitários, a educação dominante, um novo enfoque começou a ser desen-
orienta-se segundo o "modelo médico". De fato, volvido, o chamado enfoque da escolha informada
dada a associação estabelecida entre padrões com- que enfatiza o lugar do indivíduo, sua privacidade
portamentais e padrões de doença, cabe, nessa pers- e dignidade, propondo uma ação com base no prin-
pectiva, estimular ou persuadir as pessoas a modifi- cípio da eleição informada sobre os riscos à saúde.
car esses padrões, substituindo-os por estilos de Nos sistemas municipais onde houve a preocupa-
vida mais saudáveis. Elabora-se uma série de progra- ção em humanizar o atendimento, o profissional de
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saber, tão válido, no âmbito do diálogo, quanto o Por último, vale chamar atenção para o fato de
saber técnico-cientifico. que a saúde no nível dos indivíduos, das populações e
Como ressalta ainda Vasconcelos (2003), ambiental tem características de complexidade em termos
apesar do conhecimento fragmentado e pouco ela- de estudo, de incerteza quanto às soluções propostas e de
borado que as pessoas comuns têm sobre a saúde, elevado impacto sobre a vida. Em decorrência dessas
a valorização do saber popular permite a "supera- características, a saúde não pode mais ser vista como uma
ção do grande fosso cultural existente entre os ser- área restrita ao domínio dos cientistas e técnicos. Esta
viços de saúde e o saber dito científico, de um comunidade precisa ampliar-se pela inclusão de novos
lado, e a dinâmica de adoecimento e cura do pares, de diversos setores da sociedade. Esta é a proposta
mundo popular, de outro". para uma "ciência pós-normal" que já não pode desconhe-
Do que se está a falar? Das incompreensões e cer "as questões mais amplas de natureza metodológica,
mal-entendidos, dos preconceitos, das opiniões social e ética suscitadas pela atividade [da ciência] e seus
divergentes que caracterizam as relações entre pro- produtos" (FUNTOWICZ; RAVETZ, 1997, p. 222). A
fissionais de saúde e usuários, entre técnicos e ampliação da comunidade de cientistas e técnicos na área
população. Na raiz deste processo está o "biologicis- da Saúde, em parte, inclui, mas precisa formalizar esta
mo, o autoritarismo do doutor, o desprezo pelas inclusão, pacientes e seus familiares, organizações dos
iniciativas do doente e seus familiares e da imposi- portadores de patologias, movimentos que militam na
ção de soluções técnicas restritas para problemas área da Saúde e representantes dos usuários nos conselhos
sociais globais que dominam na medicina atual". de saúde.
É importante entender também que o pró- Em conseqüência desses compromissos, os partici-
prio conhecimento técnico-científico é limitado, pantes do movimento da educação popular e saúde pre-
seja porque desconhece as causas de boa parte das cisam aprender a desenvolver formas compartilhadas de
doenças crônico-degenerativas, seja porque os trata- conhecimento entre técnicos, profissionais, pesquisadores
mentos propugnados não acarretam cura e ainda e população (CARVALHO; ACIOLI; STOTZ, 2001).
provocam, em muitos casos, efeitos adversos. Várias técnicas podem ser usadas a serviço desse processo.
Daí a relevância da problematização que, no enfo- Porém, mais importante do que o uso das técnicas é o
que da educação popular, implica a identificação de ques- processo em si, a possibilidade das pessoas manifestarem-
tões de modo inseparável dos meios ou recursos de que se como sujeitos e de sentirem-se capazes de ajudar a
tanto os serviços como grupos populares envolvidos dis- encontrar novas soluções ali onde muitas vezes as certe-
põem para tentar respondê-las. Na medida em que estão zas absolutas tornam-se obstáculos para o desenvolvimen-
em interação, grupos sociais distintos, inclusive pela to das possibilidades da própria vida.
forma de conhecer, uma abordagem comum dos proble- Certamente, o alcance de iniciativas de educação
mas de saúde implica na elaboração de uma base concei- popular será tanto maior quanto mais estiverem articula-
tual comum para pensar estes problemas. A noção de cui- das em redes sociais. A interação social e, portanto, a
dado em saúde é um dos conceitos com maior poder de comunicação dialógica, tornam-se uma necessidade
integração, mas certamente são os movimentos e organi- imprescindível para lidar com a complexidade, a incerte-
zações não-governamentais que propõem pensar tais cui- za e o elevado impacto das ações de saúde.
dados em termos das relações das pessoas, dos pertenci- O resultado deste processo no âmbito dos serviços
mentos e identificações no meio das comunidades nas e do sistema de saúde será a produtividade social, porque
quais se incluem. os recursos públicos, orientados de modo a garantir ações
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de saúde integral, resultarão de fato nas melhores formas pessoas mais sabidas, quem tenta impor uma cultura pre-
de encaminhar os problemas de saúde e de garantir qua- tensamente superior. Mas também é muito conservador
lidade de vida à população. quem, desejando preservar um modo popular idealizado
Uma advertência final sobre os riscos de assumir de viver, deseja parar o mundo, privando as pessoas e gru-
uma defesa abstrata de qualquer enfoque de educação e pos do contato com outras pessoas e grupos portadores
saúde, inclusive da educação popular, aparece na seguin- de marcas biológicas e culturais diferentes e, por isso
te passagem do texto de Eymard Vasconcelos citado aqui: mesmo, enriquecedoras. Ao educador popular caberá o
"Educação Popular não é veneração da cultura investimento na criação de espaços de elaboração das per-
popular. Modos de sentir, pensar e agir interagem perma- plexidades e angústias advindas do contato intercultural,
nentemente com outros modos diferentes de sentir, pen- denunciando situações em que a diferença de poder entre
sar e agir. Na formação de pessoas mais sabidas, devem os grupos e pessoas envolvidas transforme as trocas cultu-
ser criadas oportunidades de intercâmbio de culturas. E rais em imposição".
as pessoas mudarão quando desejarem mudar e quando Eduardo Navarro Stotz Sociólogo e historiador, Doutor em
tiverem condições objetivas e subjetivas de optar por um Ciências da Saúde e Pesquisador Titular em Saúde Pública da
outro jeito de viver. Certamente, não pretende formar ENSP/Fiocruz.
REFER¯NCIAS
Construindo a resposta à
proposta de educação e saúde
Victor Vincent Valla
Maria Beatriz Guimarães
Alda Lacerda
Ilustração: Lin
A
partir da década de 80, um grupo de profis-
sionais de saúde do Núcleo de Educação,
Saúde e Cidadania da Escola Nacional de
Saúde Pública (ENSP), Fundação Oswaldo Cruz, vem
debatendo a questão da educação e saúde. Para desen-
volver a argumentação desse artigo, propõe-se um
mosaico de trechos escolhidos dos trabalhos mais uti-
lizados, inclusive os que foram produzidos e publica-
dos pelo grupo. O que segue é um esforço de sistema-
tizar esse debate.
A discussão desenvolvida tem como ponto
de partida a definição de educação e saúde a partir de
uma perspectiva histórica. Tradicionalmente, educa-
ção e saúde é entendida como um conjunto de infor-
mações que as pessoas devem incorporar com a fina-
lidade de garantir que sua vida seja mantida em con-
dições saudáveis. Pode-se dizer que educação e saúde
é a atividade mais antiga desenvolvida no campo da
Saúde, e que foi uma espécie de "invenção" dos gru-
pos hegemônicos a ser implementada como forma de
controlar "os pobres" ou subalternos, ou seja, os escra-
vos durante o Império e as classes populares na
República. Como nos ensinou Marx e Engels, uma
das funções- chave das chamadas classes dominantes
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é fazer com que seu pensamento seja socializado eixos: água, higiene, habitação e escola.
numa sociedade, de tal forma que seja incorporado Educação e Saúde:
pelos subalternos como a principal explicação de
historicamente um movimento
como essa sociedade opera.
Em se tratando de educação e saúde, os gru- de cima para baixo.
pos hegemônicos têm como interesse convencer os
trabalhadores a seguirem certas regras com intuito de Devido à necessidade de controlar as classes
preservar sua força de trabalho em condições mini- populares por meio de recomendações e regras, a
mamente saudáveis, e garantir que o trabalho execu- proposta de educação e saúde tem obedecido a um
tado produza o lucro necessário no processo de acu- movimento vertical. As orientações partem das auto-
mulação de capital. É importante ressaltar que a ridades governamentais, professores, profissionais
extração de lucro no regime da escravatura e também de saúde, em particular médicos, e outras categorias
no capitalismo, surgido nos séculos XIX e XX, vem de mediadores para as classes populares. O conheci-
sendo exercida com tanta intensidade e continuidade mento e o saber popular não são levados em consi-
que as próprias condições de vida dos grupos subal- deração.
ternos podem representar uma ameaça, não somente Certas fases históricas e obras escritas exem-
à saúde deles, mas também a dos membros dos gru- plificam este movimento. Podemos citar a questão
pos hegemônicos. Desse modo, para garantir o lucro da habitação popular no início do século XX, evi-
dos grupos hegemônicos é preciso que todos desfru- denciada a partir do ocorrido durante as grandes
tem de boas condições de saúde. Eis, portanto, a endemias e epidemias. Costa (1987) adverte que
invenção de educação e saúde: dominar, explorar, cabia ao Estado exercer pressão sobre as classes
mas se proteger. populares, no sentido de exigir consentimento e
Historicamente tem sido necessária a cons- colaboração, que acabava por transformar a liberda-
trução de um "cordão sanitário", uma linha geográfi- de desses sujeitos em imposição e coerção, com obje-
ca, que mantenha os pobres afastados com a finalida- tivo de corresponder aos interesses das classes domi-
de de não "contaminar" os ricos. Do mesmo modo nantes.
que foi preciso construir a idéia de que a raça negra Nesse contexto, as endemias e epidemias que
é inferior à branca para justificar o regime escravocra- atingiram a Cidade do Rio de Janeiro, principal-
ta, a proposta de educação e saúde também criou mente a da febre amarela, resultaram em um proje-
uma outra lógica que identifica as classes subalternas, to de disciplinarização higiênica dos programas de
ou como diz Cecília Coimbra as "classes perigosas", habitação social, uma vez que tinham como ponto
como ignorantes e sujas para a sociedade. É nesse sen- de partida os bairros pobres e em seguida alcança-
tido que nas escolas públicas e particulares transpare- vam os bairros habitados pelas classes dominantes.
ce a noção de que as pessoas que não tiveram acesso A polícia sanitária combatia a febre amarela e a
à escolaridade são ignorantes, e como conseqüência, tuberculose, e a prática higiênica cumpria a tarefa de
pobres e desempregadas, e que em função dessa pre- normatização da arquitetura do espaço urbano
cariedade e falta de conhecimento vivem em condi- visando a acabar "com a perigosa proximidade dos
ções anti-higiênicas. Daí a necessidade de educação e bairros pobres do centro nervoso das atividades
saúde. Nessa perspectiva, poderíamos dizer que, em comerciais, e em alguns casos das moradias burgue-
grande parte, a educação e saúde passa por quatro sas" (COSTA, 1987, p. 6).
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deve ser encarada como uma questão social, coleti- saúde-doença da população. Ele ressalta que as socie-
va. dades providas de sistema médico de alto custo são
Um outro fator que contribui para a dificul- impotentes para aumentar a esperança de vida, exce-
dade em compreender o fracasso escolar é a tendên- to na fase perinatal; que o conjunto de atos médicos
cia em explicá-lo como uma questão de deficiência é insuficiente para reduzir a morbidade global; e que
de saúde. Assim sendo, ouve-se com freqüência jus- os programas de ação sanitária e os atos médicos
tificativas para o mau desempenho escolar, que podem resultar em fontes de novas doenças devido
incluem tanto o fato da criança ter algum problema à iatrogenia, ou seja, algumas intervenções dos pro-
de saúde física, tais como problemas de visão, audi- fissionais podem constituir uma "epidemia" mais
ção, desnutrição, distúrbios neurológicos, entre outros, importante do que qualquer outra, apesar de ser a
quanto ser portadora de problemas psicológicos ou menos reconhecida.
distúrbios de comportamento, como o excesso de Nesse contexto, diante da imposição dos
agressividade, apatia ou dificuldade de concentra- profissionais de saúde ao determinar condutas e
ção, que as impedem de aprender e limitam seu prescrições, e desqualificar o saber da população,
desenvolvimento escolar (VALLA; HOLLANDA, reduz-se necessariamente o nível global de saúde da
1994). sociedade inteira ao reduzir o que constitui justa-
No entanto, não nos parece casual a utiliza- mente a saúde de cada indivíduo: a sua autonomia
ção da saúde como forma de explicar o fracasso. pessoal (ILLICH, 1975).
Para grande parte da população brasileira, seja ela
composta de alunos, pais ou professores, explicar o Do vertical para o horizontal
fracasso pela deficiência de saúde seria uma forma
de lançar mão de um „escudo científico‰ que pou- A questão da educação em saúde representar
cos contestariam, já que os profissionais de saúde tradicional e historicamente um movimento verti-
ainda são vistos com certa mitificação por grandes cal, dos dominantes para os dominados, era o eixo
parcelas da população. Quase sempre o problema de central do debate travado nas décadas de 80 e 90
saúde é visto como "sem solução", porém, se nin- entre os membros do Núcleo de Educação, Saúde e
guém é responsável, quais são as implicações para as Cidadania da ENSP. A argumentação que contri-
crianças fracassadas? Se essas crianças são "doentes", buiu para a criação desse núcleo tinha como funda-
quais são suas possibilidades futuras para uma vida mento o fato da ENSP ser uma instituição federal e
útil, profissional e politicamente? pública, mantida pelos impostos que a sociedade
Como se pode apreender dos exemplos da paga. Seu objetivo principal consistia não somente
habitação popular e do fracasso escolar, a questão da em formar profissionais em saúde pública, mas tam-
educação e saúde permeia vários segmentos da socie- bém oferecer subsídios técnicos e assessoria a entida-
dade. Um outro segmento importante a ser conside- des populares da sociedade civil, como os sindicatos,
rado, que representa provavelmente um dos mais associações de servidores públicos e moradores.
perniciosos de todos, é a empresa médica. Tendo em vista a tendência da educação e saúde
Dentro dessa perspectiva, Illich (1975) chama expressar um movimento de cima para baixo, uma
atenção para o fato da empresa médica ter se torna- das principais preocupações desses profissionais era
do um grande perigo à saúde, contrariando o seu a de se precaver para não reproduzir o mesmo movi-
mito de contribuir para a solução dos problemas de mento nas suas relações com as entidades da socie-
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construindo assim um processo que produz um conheci- Assim, por um lado, a procura dessas terapias não
mento síntese, ou seja, a produção de um terceiro conheci- convencionais pelas classes médias no mundo todo pode
mento que é a combinação das duas contribuições. Desse ser compreendida como uma resposta à insatisfação com a
modo, o técnico que borrifa as casas populares é a propos- resolutividade das práticas biomédicas; por outro lado, o
ta; os moradores que "catam" os barbeiros são a resposta. A extraordinário crescimento da presença das classes popula-
síntese é a dedetização gratuita das casas. res em muitos países nas igrejas de todas as religiões, prin-
Por fim, como forma de concluir esse trabalho, cipalmente nas chamadas "evangélicas" e/ou "pentecostais"
procura-se compreender melhor a relação "proposta"/"res- pode estar significando uma contra-proposta, ou uma res-
posta" e "dominação"/"resistência". Na perspectiva de um posta das camadas populares à proposta da biomedicina.
período mais longo, pode-se encarar a empresa médica e a Tem-se o exemplo dos 500 centros espiritualistas e cinco
engrenagem de uma biomedicina mais complexa e sofisti- milhões de fiéis no México que evidencia o sucesso das
cada como uma proposta claramente vertical. Porém, curas espirituais com sofrimentos crônicos de uma forma
durante o século XX, principalmente a partir das décadas que a biomedicina não é capaz de igualar (VALLA, 2001).
de 50 e 60, é possível perceber o surgimento de uma res-
posta à hegemonia da biomedicina com o surgimento dos Victor Vincent Valla Pesquisador Titular do Departamento de
Endemias Samuel Pessoa, da Escola Nacional de Saúde Pública,
"beatniks" e dos "hippies" e com a vinda para o Ocidente Fundação Oswaldo Cruz, Professor da Faculdade de Educação da
das propostas filosóficas do Oriente. Universidade Federal Fluminense.
Com o tempo, as classes médias começaram a bus- E-mail: valla@ensp.fiocruz.br
Maria Beatriz Guimarães Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto
car alternativas no campo de Saúde por meio da homeo- de Medicina Social da UERJ, Pesquisadora Visitante do Convênio
patia, florais, acupuntura, shiatsu, meditação, tai-chi-chuan, FIOCRUZ/FAPERJ.
entre outras. No entanto, essa "contra proposta" é inacessí- E-mail: beatriz.guima@ensp.fiocruz.br
Alda Lacerda Médica Homeopata e Mestre em Saúde Pública pela
vel às classes populares devido ao custo financeiro, pois ENSP/FIOCRUZ e Professora do Curso de Autogestão em Saúde
muitas dessas práticas ainda não estão disponíveis nos ser- Educação à distância da ENSP/Fiocruz.
viços públicos de saúde. Email: alda@ensp.fiocruz.br
REFER¯NCIAS
Grupos de Mulheres e a
elaboração de material educativo
Margarita Silva Diercks
Renata Pekelman
Daniela Montano Wilhelms
Ilustração: Rodrigo Rosa
2 Elaborar uma cartilha adequada à realidade social, econômica e cultural (incluindo a linguagem) dessas
mulheres, com o objetivo de reproduzir nas comunidades as discussões dos grupos. Esta cartilha é caracterizada por
seguir uma pedagogia problematizadora sobre o tema.
3 edu
Distribuir este material nos diversos espaços de convívio das pessoas que fazem parte dessas atividades
cativas, com o objetivo de formar redes de conhecimento crítico em relação a estes problemas.
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Escolaridade maioria com ensino fun- a maioria com ensino fundamental completo e
damental incompleto ensino médio incompleto.
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Os encontros ainda abordaram as DST/ têm para negociar, da necessidade de resgatar a auto-
HIV/aids apresentando aspectos objetivos de estima, da necessidade do diálogo entre os parceiros,
transmissão e características clínicas da maioria de romper o silêncio que é imposto culturalmente
das DST e a prática do uso da camisinha. para a maioria das mulheres. É fundamental con-
Todas as mulheres levaram camisinhas versar sobre a infidelidade, sobre o uso do preserva-
para tentarem utilizar com os seus parceiros. tivo nas relações, sobre o casal. Todo o grupo de
Algumas decidiram usar o preservativo já que trabalho se reuniu e montamos um roteiro que jun-
achavam que não haveria dificuldade na sua tou as falas das mulheres, tanto da cartilha como
negociação. Outras estavam temerosas da reação das reuniões, e também as falas dos técnicos, pois
dos seus parceiros. As que utilizaram tentavam um de nossos objetivos é compartilhar a construção
estimular as outras mulheres para seu uso. Cada do conhecimento.
mu-lher tentou negociar com o seu parceiro de Na Unidade Divina Providência, as mulhe-
acordo com a realidade afetiva do casal. res participaram ativamente na discussão do tipo
Temos certeza que as mulheres participantes de material educativo a ser elaborado, optando
foram „afetadas‰ nesse processo educativo, mas a por uma cartilha com desenhos mais realistas, ser
discussão sobre o uso do preservativo por parte das direto, palavras fáceis, que tenha intimidade.
mulheres com parceiro fixo deve ser continuamen- Definimos as principais idéias do roteiro: corpo e
te reforçada, esclarecida e discutida seja em grupos, sexualidade, gênero e negociação.
na consulta individual e especificamente, neste tra- As coordenadoras do grupo elaboraram
balho, quando acontece a distribuição por parte das um roteiro inicial e uma diagramação, para dar
mulheres do material educativo elaborado. concretude ao material educativo e assim discutir
novamente com o grupo .
O processo de elaboração Na Unidade Nossa Senhora Aparecida, a
discussão se deu de forma semelhante, a oficina foi
das cartilhas
intensa e houve uma boa participação na elabora-
As quatro unidades em questão desenvol- ção da cartilha. As pessoas do grupo como um
veram a elaboração dos roteiros de forma seme- todo definiram que tinha de ser uma cartilha, tam-
lhante nos aspectos técnicos do processo, embora bém com desenhos mais realistas. Decidimos fazer
as formas de participação tenham sido diferentes. uma cartilha com quatro histórias em quatro livri-
Na Unidade Jardim Leopoldina, as próprias nhos. No grupo discutimos quais os pontos que
mulheres participantes do grupo elaboraram uma havíamos abordado e que seria importante estarem
cartilha. Discutiram no grupo alguns aspectos gerais contemplados na cartilha, e os profissionais que
do roteiro e se reuniram fora do horário do grupo, ficariam encarregados de fazer os roteiros que
quando elaboraram um roteiro, desenhos e a diagra- seriam avaliados e modificados pelo grupo.
mação de uma cartilha e „surpreenderam‰ as coor- Na Unidade Jardim Itu, aprofundamos as
denadoras com uma cartilha pronta. A cartilha ela- questões de sexualidade, em especial sua descober-
borada por este grupo, começa com uma capa sim- ta quando ocorrem novos relacionamentos na
ples manuscrita com lápis de cor verde, com o terceira idade. A construção do material educati-
seguinte título: "APRENDENDO COM A VIDA". vo deu-se de forma conjunta e participativa, pois
Elas começam a discutir, por meio de histórias de cada uma das integrantes trouxe contribuições,
suas vidas, como vêem a problemática do HIV, do com textos e situações já desenhadas, inspiradas
uso da camisinha, das dificuldades que as mulheres em uma das mulheres do grupo que nesse perío-
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do redescobriu sua sexualidade, „ela com 70 sua metodologia e das mudanças que ocorreram
anos, há 20 anos viúva, encontra seu homão de com as mulheres que vivenciaram esse processo,
50 e se descobre como mulher‰. Apresenta-se a desde as trabalhadoras de saúde que foram tocadas
discussão do uso do preservativo com os homens por essa vivência levando-as a reverem suas vidas
de terceira idade e suas dificuldades. privadas, que como as usuárias encontraram um
Apresentamos a alternativa da camisinha femini- lugar para trocar experiências, falar sobre sua
na. Fazemos um cartaz colocando a situação: sexualidade, reverem aspectos de suas vidas.
pessoas de terceira idade, suas dúvidas e sugestão No Nossa Senhora Aparecida, criamos
do uso do preservativo feminino. camisetas com a capa da cartilha, que foi con-
feccionada pela cooperativa do bairro, fizemos
Lançamentos locais das uma sessão de autógrafos, numa sexta-feira à
tardinha, quando as pessoas voltam do traba-
cartilhas e cartaz
lho. Pensando na dinâmica do local, convida-
Após alguns meses de espera, o material mos no dia pelo de carro de som, cartazes e
educativo ficou pronto! Foi com grande ansiedade também colocamos um aviso em uma rádio
e alegria que recebemos o material em outubro de AM da cidade que tem alto índice de audiência
2001. Rapidamente os diferentes grupos se organi- no bairro. Fechamos a rua ao lado do super-
zaram para discutir o lançamento local, o lança- mercado a qual foi toda enfeitada com balões,
mento geral ou ato oficial e sua distribuição. vários varais de camisinhas e um painel colorido
Na Unidade Divina Providência, organi- com bexiguinhas criando um efeito estético bastan-
zamos o lançamento no final de tarde, em fren- te interessante. Houve então shows de talentos
te à casa de uma das participantes. Seriam
montadas barraquinhas no local com as carti-
lhas e também com bolos, salgados e refrige-
rantes que cada uma de nós traria. Também se
suge riu de pas sar nova men te o Vídeo
„Mulher‰, do Ministério da Saúde. As profis-
sionais da unidade colocaram uma faixa na rua
e conseguiram alguns CDs que tinham músicas
alusivas à prevenção de DST/HIV/aids. Todas
nós ficamos de convidar o máximo de mulhe-
res para este encontro. No dia, várias pessoas tra-
ziam as cadeiras de casa para poderem sentar e
conversar um pouco com as vizinhas. Muitas
delas levaram o material para ser distribuído
com suas conhecidas, vizinhas e parentes.
O grupo do Jardim Itu fez a montagem de
uma dramatização (com roteiro e direção coleti-
vas) baseada no cartaz elaborado, e foi apresentada
em duas ocasiões: para o grupo da terceira idade e
a associação de moradores. O teatro inicia com
uma narração que fala do processo da pesquisa,
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locais (música e dança), que eram interrompidos lhosas. Parceiros e amigas das mulheres comparece-
por „dicas de saúde‰, brincadeiras para as crianças ram ao local. Iniciamos a distribuição das cartilhas.
e uma barraquinha com camisinhas e cartilhas a As pessoas interagiram com bastante interesse,
serem autografadas. Grande número de pessoas par- fazendo perguntas sobre o grupo e discutindo o
ticipou do evento, que tinha um caráter bastante conteúdo da cartilha. Observamos que os homens
lúdico, que resultou em momentos divertidos, pra- demonstraram grande interesse sobre o assunto dis-
zeirosos e educativos onde brincar, aprender e cons- cutido, solicitando uma iniciativa como esta junto
truir novas formas e questionamentos em relação a eles, pois revelavam ter outras opiniões acerca do
ao problema das DST/HIV/aids. assunto. Chamou nossa atenção que após a „expla-
Na Unidade Jardim Leopoldina, marcamos nação‰, feita individualmente, todas as pessoas liam
a data (24/11/2001), um sábado à tarde, na praça ao a cartilha atentamente e queriam comentar o que
lado do Posto de Saúde, quando um maior núme- haviam lido, demonstrando identificação com as
ro de moradores utiliza a praça para lazer. situações ali retratadas e parabenizando as mulheres
Estávamos em clima de „estréia‰, todas muito orgu- pelo resultado do trabalho.
Principais resultados
Reconhecimento da vulnerabilidade ao Criação de várias estra tégias de
1 HIV. 7 negociação para o sexo seguro; o
reconhecimento de que a infi delidade
A existência de construções culturais precisa ser discutida e os acordos
2 muito arraigadas sobre o corpo, a possíveis estabelecidos.
sexualidade e o prazer, torna o proble-
ma difícil e complexo de ser discutido. A melhora da auto-estima e da auto -
8 nomia resultantes da reflexão, do
sentimento de autoria e da possibili-
A relativa facilidade no “manejo” do dade subjetiva de mudan ça.
3 preservativo masculino contrasta com a
dificuldade do diálogo com o seu A construção de três cartilhas e um
companheiro. 9 cartaz que seguem uma peda gogia
construtivista e problematizadora,
4 A dificuldade variável das mulheres em
se apropriar da sua palavra e de se sen-
permitindo a ressignificação do pro-
blema.
tir sujeita de si.
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74
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E
estranhamento, aliados ao respeito crítico pelos
equipes de saúde elaborado pelas autoras aspectos culturais, sociais e econômicos dos par-
no contexto da pesquisa descrita no capí- ticipantes, fazem com que seja possível elaborar
tulo anterior „Grupo de mulheres e a elaboração um material educativo que exponha justamente
de material educativo‰. Este Manual buscou sis- os aspectos inicialmente não visíveis dos sujeitos
tematizar a experiência do grupo que coordenou e sua realidade. Esta invisibilidade, se não for tra-
a pesquisa nos diversos grupos de mulheres, zida à tona para ser ouvida de forma sensível e
sendo um quinto material educativo resultante problematizadora, muitas vezes inviabiliza todo
dessa pesquisa. O capítulo escolhido para ser um esforço educativo, frustando tanto profissio-
apresentado foi aquele onde tratamos do trabalho nais como população.
em grupos, propondo os fundamentos teórico- Outro aspecto que gostaríamos de desta-
metodológicos da educação popular como car é que este trabalho é essencialmente interdis-
referência para o trabalho. ciplinar. Precisamos de profissionais oriundos de
O manual tem como objetivo disponibilizar vários campos do conhecimento para assim
para as equipes de saúde o desenrolar de um traba- podermos entender a realidade em toda a sua
lho educativo, que pode ser coletivo ou individual. complexidade, mas principalmente para tentar
Segue uma metodologia dialógica1 e participativa fazer, por meio do material educativo, uma sínte-
que, além de propiciar um exercício de escuta e se desse conhecimento.
reflexão, se propõe a elaborar material educativo em Este manual é resultado da nossa expe-
conjunto técnicos e população. Por isso, achamos riência de pesquisa denominada „Prevenindo
que os profissionais de saúde que se propõem a tra- DST/ HIV/aids em mulheres de baixa renda: a
balhar as questões educativas do processo saúde- elaboração de cartilhas no processo educativo‰
doença devem ter claro as bases teórico-metodológi- que foi realizada em quatro unidades de saúde do
cas deste fazer. Esta publicação se propõe a discutir Serviço de Saúde Comunitária do Grupo
o „como fazer‰ das atividades educativas. Hospitalar Conceição/Porto Alegre-RS, durante
De forma geral, podemos dizer que a pro- o período de maio de 2000 a outubro de 2001,
blematização, a evidenciação de contradições, o sendo financiado pelo Ministério da
1 Dialógico: termo utilizado pelo educador Paulo Freire e por vários autores, que se refere a prática do diálogo. Praticar o diálogo significa
ouvir o outro, tentar perceber as diferenças, trabalhar estas diferenças. Ver também: Freire, Paulo: Pedagogia da Autonomia, Editora Paz e Terra.
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bém, e muito, com os múltiplos e complexos mos produzindo conhecimento e isso tem de ser cui-
aspectos da realidade que influenciam a compreen- dadosamente guardado para que nós e outras pessoas
são desse problema. aprendamos com a nossa experiência.
A educação em saúde tem um papel fun- Temos de ter domínio técnico sobre o assun-
damental nesse entendimento, visto que sua pre- to a ser discutido, mas ao mesmo tempo estar aber-
missa mais importante deve ser „ouvir o outro‰. to a questionamentos sobre o nosso saber por parte
As atividades educativas têm de ser planejadas e da população. Dominar o MÉTODO educativo.
isso significa que temos de cuidar de vários Temos de planejar sempre e novamente.
aspectos, resumidamente, aqui listados:
Precisamos de tempo: em geral, os profis- 2 O método educativo
sionais de saúde estão cheios de coisas para fazer.
Por esse motivo, é importante ter claro que a reali- „a camisinha, eu não vou usar, meu marido não gosta‰.
zação de um trabalho educativo demanda algumas „é difícil pedir pro marido usar a camisinha, ele
horas de trabalho. Precisamos planejar como vai ser vai achar que estou aprontando...‰
a reunião, como será o registro, qual será o papel „a camisinha... (risos) Não é seguro. Eu nem me
do coordenador e realizar a avaliação da atividade. mexo. Fico quietinha... Nem me mexo. Aí se eu
De forma geral, podemos dizer que para cada hora tomo o comprimido me mexo prá tudo quanto
de conversa com a comunidade precisamos do é lado. Agora a camisinha...‰
dobro de tempo para prepará-la e avaliá-la. Por isso, „eu confio nele, por isso nós não usamos a cami-
a atividade educativa tem de ser agendada. Sem um sinha...‰
tempo disponível adequado, ela provavelmente será „o problema é que ele brocha com camisinha.‰
feita com falhas metodológicas que reverterão em
um trabalho frustrante com a população. Essas conversas, oriundas de grupos de
Precisamos de um(a) parceiro(a) com a mulheres que têm como objetivo discutir a pre-
mesma disponibilidade de horário nossa, pois venção das DST/aids, levam-nos a refletir sobre
sempre é melhor trabalhar em dupla. É mais nossa prática educativa e, principalmente, sobre
fácil fazer o registro, é possível trocar idéias e como são difíceis e às vezes „insolúveis‰ as con-
avaliar melhor. Além disso, em dupla sempre é versas que temos com mulheres de classes popu-
possível „exercitar‰ o diálogo. lares. Para que essas conversas não sejam infrutí-
O registro tem de ser pensado antes da reu- feras e durante as quais técnicos e população
nião começar. Em geral, um dos profissionais parti- dêem sua opinião fazendo de conta que se enten-
cipantes da atividade educativa ficará encarregado do dem, achamos fundamental que os profissionais
registro. O registro é a base para a nossa avaliação e de saúde tenham domínio do método ou do
para a reflexão sobre o que estamos fazendo. Para „como fazer‰ das atividades educativas.
fazer o registro, precisamos de uma caneta, papel
(uma prancheta é uma boa idéia) e gravador. Se pos-
Mas, então, como fazer?
sível, uma filmadora e/ou máquina fotográfica.
Precisamos de uma pasta para guardar as nos-
Esta pergunta não tem uma resposta fácil,
sas anotações. Lembramos que podemos sair do
já que não se trata de fornecer uma „receita‰.
posto, que os grupos „acabam‰, que as idéias não
Nossa prática educativa varia conforme cada reali-
dão certo, enfim, que estamos fazendo história, esta-
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dade, seja individual ou de grupo, e de acordo de vida‰, ou seja, propiciar aos participantes dos
com cada situação-problema por nós vivenciada, grupos, inclusive aos profissionais, que relatem
mas alguns „ingredientes‰ são necessários. Então... suas vidas, seu dia-a-dia, como lidam com deter-
minado problema e qual sua visão sobre ele.
Quais são os ingredientes da Ao propiciar que o grupo se manifeste a
partir do seu cotidiano, da sua vida prática ou do
prática educativa?
seu mundo da vida, começaremos lentamente a
desvelar o entendimento e os significados que as
O primeiro deles é que temos de partir
pessoas têm sobre seu problema. Muitas vezes isso
sempre da realidade do grupo, das pessoas, do
pode parecer confuso e sem nexo e podemos per-
paciente.
der o fio da meada, devido à complexidade das
histórias que são apresentadas. Por isso, o coorde-
Mas o que significa isto? nador tem de ter um domínio metodológico para
não ficar só no desabafo ou no subjetivismo do
Significa tentar compreender o que as pes- grupo. Temos de ir além para conhecer a realida-
soas estão pensando e/ou fazendo; captar qual a de que está nos interrogando. O que fazer com as
visão que as pessoas têm sobre determinado pro- inúmeras questões que emergem a partir desses
blema; entender como elas vivenciam o problema depoimentos? O que fazer com as questões com
que está sendo discutido; perceber se elas enten- as quais não concordamos ou que nos surpreen-
dem o seu problema como individual ou como dem nestas falas? O que fazer com as críticas que
de uma coletividade; apreender qual é a „baga- são colocadas? Como ir adiante no entendimen-
gem‰ cultural das pessoas, seu significado subjeti- to entre o técnico e a população? Aí vem o segun-
vo e, principalmente, como elas interpretam os do ingrediente...
seus problemas. Então, partir da realidade não é
tão simples assim, principalmente porque, na
grande maioria das vezes, a nossa realidade como
A argumentação
profissional de saúde é completamente diferente o estranhamento a reflexão
da dos moradores da comunidade onde trabalha-
mos. Na verdade, num grupo vivenciamos no Essas palavras têm sido usadas como sinô-
mínimo dois horizontes culturais ou percepções nimos no campo da Educação em Saúde. O estra-
da realidade dos profissionais e da população e nhamento possibilita um „distanciamento„ da
estes entendimentos da realidade têm de ir se mis- realidade e do problema que estamos vivencian-
turando, se diluindo e adquirindo novas percepções do, além de permitir-nos ver a realidade com
que te-nham validade intersubjetiva, isto é, para maior profundidade e reconhecer os aspectos cul-
todo o grupo participante. turais, sociais, pessoais, econômicos e históricos
que caracterizam o grupo com o qual estamos tra-
balhando. O sentimento de dúvida e de surpresa
Mas como conhecer a realidade dos
diante de um cotidiano tão distante do nosso é o
participantes de um grupo? primeiro passo para alcançar o entendimento e a
compreensão daquilo que estamos vivenciando.
Para responder a esta pergunta, temos que Esse estranhamento é conseguido basicamente
lançar mão daquilo que é denominado „história por duas perguntas:
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Por quê? Como assim? filhos não era só botar o DIU ou tomar compri-
mido; tinha muitas outras coisas em jogo, como
Como coordenadores de um grupo cujas a relação com o marido, como a mulher foi cria-
falas nos remetem a dúvidas e conflitos, temos de da, enfim, muitas coisas que tinham que ser dis-
problematizar para conseguir dialogar, pois enten- cutidas...‰
der não é suficiente. Temos de questionar ao outro Estas falas, extremamente comuns no tra-
e a nós mesmos. Aceitar as diferenças sem tentar balho comunitário, mostram uma argumentação
a problematização é negar a possibilidade de cons- inicial do problema que permite ver de forma
truir um conhecimento em comum, conhecimen- mais aprofundada os aspectos que compõem o
to este sobre o qual o profissional de saúde tem a fenômeno de engravidar ou não. Se não tivésse-
sua contribuição a dar, mas que a população sem mos problematizado, provavelmente, essa discus-
dúvida tem muito a acrescentar. Vejamos um são iria acabar na responsabilidade puramente
exemplo: individual e preconceituosa, desconsiderando
„Há poucos minutos atrás, D. Eduvirges aspectos culturais, sociais e econômicos da ques-
tinha dito que era mãe de dez filhos e que ela era tão. Quando problematizamos, vemos o fenôme-
uma mulher muito feliz, por isso que ela gostava no de uma forma mais complexa e com outros
de todos eles e que o marido também, que eles se olhares. Mas a argumentação também possibilita
davam bem e que se ela pudesse teria mais filhos. a busca de um entendimento exitoso entre todos
Quando entrou a discussão de como fazer os participantes. Em outras palavras, quando
para que as mulheres tentassem planejar a sua questionamos estamos usando argumentos racio-
família, D. Eduvirges disse que quem tinha dez fi- nais para ter um entendimento intersubjetivo
lhos era maluca. Não sabia o que estava fazendo. entre os participantes. Procuramos que os argu-
Era um horror. Todo o grupo concordou, inclusi- mentos levantados por cada um dos participantes
ve eu, que estava coordenando o mesmo. Mas me permitam-nos chegar a um consenso, ou melhor,
lembrei dos comentários de alguns minutos atrás que o resultado dessa argumentação tenha valida-
e falei para D. Eduvirges: de subjetiva, cultural e social para todos os parti-
- Mas a senhora não disse que tinha gosta- cipantes.
do de ter dez filhos, que se achava feliz por isso? Aí já estamos entrando no terceiro ingre-
Ela respondeu: diente do método da educação em saúde, que é...
- Sim, sim, mas eu sou diferente...
- Por quê a senhora é diferente? Aprendendo com a vida:
- Porque eu gosto dos meus filhos... eu amo voltar ao problema inicial com
meu marido. outros olhos e ressignificados
- Mas e as outras mulheres? Como é com as
outras mulheres? O problema, que parecia simples, já não é
Ela pensou, o grupo pensou junto, e fala- tão simples assim. Transformou-se numa realida-
ram que sim, que realmente planejar o número de de complexa e cheia de contradições e significa-
dos. É importante destacar que esta etapa do méto- Quanto mais complexo o assunto, mais
do tem de ser resultado de um entendimento entre difícil é a problematização e a volta à realidade
todos os participantes e, muitas vezes, é precedido de para agir, cabendo ainda destacar que as pessoas,
conflitos profundos e dolorosos, já que para que esta de forma geral, dominam alguns assuntos mais
„nova realidade‰ tenha validade prática ou coletiva do que outros. Por exemplo, uma gestante pode
tem de ter também validade subjetiva. Assim, o pro- discutir de forma problematizadora sua gravidez,
cesso de idas e vindas entre a realidade, a problema- mas ter uma relação de submissão com o seu par-
tização e a volta à realidade varia de pessoa para pes- ceiro.
soa, de assunto para assunto, de grupo para grupo. Podemos concluir, então, que para desen-
Este processo, na maioria das vezes, é lento, poden- volver uma atividade educativa na qual os saberes
do levar a vários encontros, meses ou anos para ser dos técnicos e da população contribuam para a
concluído ou não, já que estamos „mexendo‰ em construção de conhecimento em saúde, é funda-
aspectos culturais profundamente arraigados dentro mental partir da realidade dos sujeitos envolvidos
de cada um de nós. e problematizá-la.
Determina o processo a partir do cotidiano vivenciado por cada uma das pessoas ali participantes.
Exige habilidade por parte da coordenação para não induzir respostas ou comportamentos.
Exige que a coordenação do trabalho tenha clareza sobre seus objetivos e domínio de grupo. Para
isso, deve:
- Ser dialógica e disciplinada.
- Propiciar as conversas e fazer síntese claras.
- Lidar com o afeto e com a objetividade.
Finalmente, é importante lembrar que a gente só aprende este método fazendo... Refletindo... e re-
fazendo...
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porque o que estamos propondo é tornar visível turam e constituem uma construção que tem
e compreensível aquilo que nos surpreende, que validade e é verdadeira para aquele grupo social
está escondido, que está obscuro. Por exemplo, específico. Por isso, a importância de perceber-
numa oficina na qual mulheres adultas e com mos a profundidade das falas dos participantes.
filhos estão reproduzindo a sua genitália com
massa de modelar: Como já apontamos anteriormente, para a rea-
lização das atividades educativas é essencial que
„ - Eu fiz, aqui, a minha perseguida... fiz ela haja uma parceria. Essa dupla ou trio será o grupo
bem direitinho, e fiz mais um buraquinho por coordenador da atividade. Também já citado
onde sai o xixi e a menstruação. Sim, porque a acima, a interdisciplinaridade favorece o trabalho
gente tem dois buracos um por onde sai o nenê educativo, amplia a percepção da complexidade
e outro por onde sai a menstruação e o xixi...!‰ dos problemas que serão enfrentados. O grupo
Diante destas falas, a reação da maioria dos coordenador deve estar afinado com os objetivos
técnicos é de surpresa, espanto e de contestação, da atividade, ter claro o processo metodológico. É
de forma impulsiva e imediata, ao constatar que necessário que o grupo possa ter horários em
isso não está certo, que nossa anatomia não é comum, não só para a execução da atividade edu-
bem essa. Se agirmos de maneira impulsiva, cativa propriamente dita, mas também para ava-
negando de forma categórica a informação liar continuamente os encontros, praticar perma-
desta muher, perderemos a chance de poder nentemente a auto-crítica e ouvir a crítica do cole-
entender como ela construiu este conhecimen- ga, discutir a condução do grupo, os erros do dia
to, quem ou quais as fontes que a fizeram cons- e os avanços que o grupo tenha alcançado, além
truir esse „modelo‰ de corpo, porque para ela e de pensar sobre estratégias para resgatar falas que
provavelmente para várias mulheres do seu ficaram pendentes, essenciais para problematizar
grupo de convívio essa é a verdade. Não é por- no grupo educativo. O grupo coordenador tem de
que alguma coisa é verdadeira que as pessoas estudar em conjunto suas dificuldades, sejam
acreditam nela, mas sim porque as pessoas acre- metodológicas ou temáticas, falar a mesma lingua-
ditam num fato, numa fala, num acontecimen- gem e intervir de forma semelhante. A troca de
to, numa descrição ou numa experiência que papéis nas reuniões entre coordenador e relator
faz com que aquilo se torne verdadeiro para elas enriquece o grupo, em especial quando com pro-
e esta verdade tem origem no mundo prático, fissionais de diferentes áreas. A reunião fica mais
no mundo da vida no qual os fatos, as informa- ativa, o interesse se renova, pois cada um conduz
ções, as leis e as experiências subjetivas se mis- do seu próprio jeito.
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Coordenar é... - fazer per gun tas que levem à supe ra ção de
limi tes.
- aplicar o método dos „porquês‰.
a) saber integrar e animar o grupo:
- quebrar o „gelo‰.
d) Saber opinar e calar:
- criar confiança.
Controlar a „impaciência‰
- manter o grupo animado, ativo impedindo o
- respeitar os silêncios.
cansaço, o tédio e a tensão.
- perceber o momento oportuno de intervir, res-
peitando o processo do grupo.
b) conduzir o grupo na busca dos objetivos - evitar o excessivo „respeito‰ que pode levar à
propostos: desorganização.
- conhecer o objetivo de cada encontro, dominar
o assunto a ser discutido e posicionar-se clara- e) Prestar atenção à linguagem
mente. utilizada:
- ordenar os conteúdos. - a linguagem deve ser uma forma de aproxima-
- fazer sínteses contínuas. ção.
-fazer perguntas oportunas e questionar o grupo. - enfrentar o desafio de esmiuçar os conheci-
mentos complexos, usando sinônimos, metáfo-
c) Saber como perguntar, o quê ras e exemplos que facilitem a compreensão.
perguntar e quando perguntar: - conhecer com profundidade o tema tratado e
- ter clareza do processo. falar deste conhecimento com simplicidade.
- fazer perguntas oportunas. - compreender a linguagem dos participantes
- perguntar sistematicamente para alcançar novos para mergulhar no mundo subjetivo, cultural,
conhecimentos e desafios. social e econômico dos mesmos.
Resumindo...
Não haverá boa coordenação sem clareza teórica, compromisso, domínio da metodologia e conheci-
mento.
O coordenador deve...
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trar simultaneamente é uma tarefa quase impos- falas, descrever os comportamentos, realizar
sível, pois uma das duas será fatalmente prejudi- autocrítica quanto à forma de coordenação e
cada, o registro. Se for imperativo que isto acon- condução do grupo e observar a evolução indi-
teça, é preferível fazer algumas anotações ao vidual e coletiva do processo educativo.
longo da reunião e imediatamente após, descre- Sabemos que o fato de filmar é inviabilizado
ver a reunião da forma mais rica possível. lamentavelmente por motivos econômicos, por
É importante também registrar a avalia- isso é necessário lançar mão de outros recursos
ção que os coordenadores devem fazer do grupo (para reuniões de uma hora e meia, necessita-
logo após a atividade, ao término da reunião, mos de uma fita com uma hora de duração,
pois este momento proporciona, ainda sob o observar a luz e o som, conhecer a capacidade e
efeito da reunião, críticas ao funcionamento do os recursos da filmadora).
grupo, o que auxilia muito no planejamento da Registro com gravador: este é o registro
atividade. mais comum e mais acessível economicamente
para as equipes de saúde. É importante que,
Tipos de registro além do gravador que irá captar todas as falas
do grupo, um dos profissionais faça a observa-
Registro com filmadora: é o registro ção das coisas não ditas: os gestos, os silêncios,
que todo educador gostaria de fazer, já que per- as surpresas, os incômodos, os constrangimen-
mite fazer a observação do grupo como um tos, os jeitos das pessoas, as dificuldades do
todo e inclusive a gravação das falas. Esse regis- coordenador, etc. Esse registro observacional é
tro também permite que assistamos retroativa- difícil de fazer e exige treino e avaliação do pro-
mente à reunião e façamos os comentários sobre cesso de observação, mas achamos que este regis-
o processo. É possível fazer a transcrição literal tro, aliado ao gravador, é o mais viável e o que
do que aconteceu no grupo naquele dia, ou seja, dá grandes possibilidades de reflexão da ativida-
anotar fala por fala para depois analisar o texto de educativa. O registro com gravador apresenta
escrito resultante desta reunião. Com a filma- uma dificuldade que é a transcrição das fitas
gem, é possível também, além de transcrever as com as falas (sugerimos que para uma reunião
de uma hora e meia tenhamos disponível três
fitas com uma hora de duração, um jogo de pilhas
sobressalentes e/ou uma extensão elétrica com
três metros). A transcrição é o processo pelo
qual escutamos e escrevemos literalmente tudo
que está gravado na fita. Com isso, teremos na
nossa frente todas as falas literais que acontece-
ram na reunião. É um trabalho repetitivo, que
demanda muito tempo (em geral, uma fita com
meia hora de gravação leva de duas a três horas
para ser transcrita), mas extremamente revela-
dor, além de permitir uma avaliação acurada de
todo o processo.
Registro à mão: é o mais comum e tam-
bém muitas vezes o mais incompleto, já que é
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difícil fazer um acompanhamento das falas à mão Na utilização de qualquer das tecnologias
livre. O que acontece geralmente é uma síntese das propostas para o registro, é fundamental ter o
falas e a observação das coisas não ditas fica bas- domínio da tecnologia que se está empregando.
tante empobrecida, já que quem está registrando É preciso avaliar se a atividade está sendo regis-
só fixa sua atenção nas falas. Isso de forma geral trada de forma adequada, se as pessoas que estão
empobrece o registro e a avaliação da atividade falando estão de fato sendo gravadas e se o
educativa (preferencialmente, este deve ser feito ambiente em que se realiza a atividade permite o
em um caderno ou em computador; se usarmos uso de gravador. Também o posicionamento
folhas de papel, necessitamos de prancheta). tanto do gravador como da filmadora é impor-
Registro com máquina fotográfica: é tante para um registro de boa qualidade. É neces-
um coadjuvante muito importante, já que tem sário ter claro qual a utilização que se fará deste
valor histórico e subjetivo que muitas vezes registro; por exemplo, saber se uma filmagem
não aparece nos outros tipos de registro. É a servirá como registro da atividade ou poderá ser
possibilidade de gravar a imagem, o momento utilizada para outro fim, como material para uso
do grupo e como as pessoas, por meio de sua em sala de espera. Para ter qualidade e poder ser
expressão, estão integrando a atividade, seu bem aproveitado, o material fotográfico deve ter
inte res se, sua satis fa ção, sua dis cor dân cia qualidade em termos de iluminação, da capaci-
(observar a luminosidade, a capacidade do dade do filme, além da espontaneidade do
filme e os recursos da máquina fotográfica). momento.
Resumindo...
Sempre fazer o registro das atividades educativas, pois sem registro não há avaliação nem reflexão
sobre o processo educativo como um todo.
O registro é história. Por isso, tem de ser guardado numa pasta que seja acessível a todos os inte-
ressados.
Lendo os registros, podemos superar dificuldades, erros, frustrações e avaliar o sucesso de grandes
idéias.
Caneta, papel, gravador e máquina fotográfica são elementos fundamentais para o registro.
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mos atingir com determinada ação. No processo com o próprio grupo sobre o seu andamento,
aqui descrito, além do objetivo principal a elabo- apreciando o cumprimento das expectativas dos
ração de material educativo com uma metodolo- participantes, o rumo do grupo, revendo perma-
gia participativa os objetivos específicos também nentemente seus objetivos e mantendo-os ou
devem ser definidos para cada encontro. alterando-os, conforme as avaliações realizadas.
O registro nos trará os elementos da avaliação, A avaliação das atividades educativas em saúde
pois ali está a ação realizada no concreto. Pelos são avaliações mais dirigidas ao processo e reque-
nossos registros, poderemos analisar nossa práti- rem três perguntas básicas: o que está sendo feito;
ca e avaliá-la quanto ao aspecto metodológico, de para quem está sendo feito; e como está sendo
conteúdo, de processo, da participação das pes- feito? Essas questões se colocam tanto para a ava-
soas (número de participantes, qualidade da par- liação do processo como um todo quanto de suas
ticipação, contribuições, dispersões, surgimento partes. Devemos realizar, como foi dito acima, uma
de debates relevantes, capacidade reflexiva do avaliação constante, dia-a-dia, mas não podemos
grupo, qualidade da coordenação, erros de per- perder a perspectiva do resultado do todo, como
cepção do coordenador, sínteses adequadas, aná- no exemplo de nossa pesquisa, ter um produto
lise da condução e do caminho tomado pelo final o material educativo que espelhe as discus-
grupo, oportunidades perdidas, enfim, diversos sões e/ou conclusões desenvolvidas nos grupos.
aspectos do fazer educativo no cotidiano dos gru-
pos). Essa avaliação continua entre os coordena- Margarita Silva Diercks Médica de Família e Comunidade,
dores ao final de cada grupo e no planejamento Doutora em Educação e participante do Núcleo de Educação
do próximo encontro, reforçando a necessidade em Saúde/SSC/GHC/Porto Alegre/RS.
de tempo além dos encontros para execução de Email: gesssc@ghc.com.br
Renata Pekelman Médica de Família e Comunidade,
atividades educativas. A avaliação contínua tam- Mestre em Educação e participante do Núcleo de Educação
bém é necessária durante o desenvolvimento dos em Saúde/SSC/GHC/Porto Alegre/RS.
grupos; é importante ter sempre uma discussão Email: renatapek@ig.com.br
Resumindo...
A avaliação é um processo constante.
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E
dologia dialógica e participativa de elaboração de
que descreve uma experiência de construção uma cartilha para uso de multiplicadores. A meto-
de um material educativo no qual vemos a dologia indicada está pautada na referência funda-
integração de uma pesquisa-ação e de uma „elabora- mental de Paulo Freire, em sua obra Pedagogia da
ação‰. Trata-se aqui de compartilhar com os leitores Autonomia, na qual explicita o „dialógico‰ como
a percepção que tive a partir da leitura do Manual uma prática do diálogo, ou seja, como a capacida-
para Equipes de Saúde trabalhando grupos e elabo- de de ouvir o outro buscando perceber as diferen-
rando material educativo em conjunto com a popu- ças, as singularidades, e as trabalhando (p.9).
lação: as DST/AIDS no cotidiano das mulheres, Para as autoras, há a necessidade de uma
organizado por Margarita Silva Diercks e Renata maior clareza acerca das bases teórico-metodológi-
Pekelman. cas dessa ação, o que faz com que o trabalho apre-
Na introdução do Manual é apresentado o sentado vise a discutir o „como fazer‰ das ativida-
objetivo principal do trabalho que consiste em des- des educativas (p. 9) e eu acrescento que tal discus-
crever o processo educativo concebido numa meto- são deveria ocorrer sobretudo na construção de
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materiais que dão suporte aos processos educativos. conteúdo teórico do tema a ser repassado e com
O Manual descreve o trabalho educativo a metodologia, desconhece questões importantes
nos grupos desde o planejamento até o processo trazidas pela linguagem dos participantes do
de avaliação. Em seguida, apresenta a elaboração processo. A aplicação desse princípio da „troca
dos roteiros da cartilha e a forma de condução de saberes‰ fica bem evidenciada quando as auto-
dentro dos princípios da educação popular em ras assinalam na p.13 que em „uma atividade
saúde e nos itens 4, 5 e 6 estão indicadas as for- educativa, inicialmente temos de pensá-la dentro
mas de utilização das cartilhas, a elaboração de do contexto da realidade na qual estamos traba-
materiais educativos com a participação da lhando, ou seja, a realidade da população e da
população e sua respectiva avaliação. No final, unidade de saúde correspondente. As atividades
estão apontadas as referências bibliográficas uti- educativas têm de estar intimamente
lizadas na concepção do projeto e ao longo de ligadas às prioridades discutidas
sua implementação. entre profissionais e popula-
Da rica experiência descrita no Manual ção‰. Tal aplicação também
vale ressaltar o processo de integração de princí- pode ser verificada, quando
pios e os conceitos de educação popular em as autoras posteriormente
saúde e, principalmente, como eles são operacio- descrevem como a ope-
nalizados na prática, no fazer, na ação. Nele, é racionalização deste
possível observar que as organizadoras do traba- princípio se torna
lho partem de importantes princípios e concei- ação ao longo do pro-
tos pilares da educação em saúde dentre os quais cesso de „elabora-
destaca-se o de troca de saberes. Troca esta que ação‰ do referido
expressa um processo dialógico, no qual tanto o Manual.
saber que o técnico carrega consigo, fruto de seus O que está
estudos e da sua reflexão, quanto o saber da implícito no princípio
população envolvida no processo que vai se ini- da troca de saberes é o
ciar orientam a produção de um material educa- conceito de participação
tivo que se transformará em instrumento de tra- que também integra o
balho para multiplicadores. Esse saber popular processo de educação popu-
passa pelo conhecimento da linguagem, que está lar em saúde. É por meio do
além do conhecimento da língua. É importante diálogo „ouvir o outro‰ que se
enfatizar que, no Brasil, falamos a mesma lín- intensifica a participação aqui com-
gua, o português-brasileiro, mas diferentes lin- preendida como ter parte em, tomar parte
guagens. Linguagens entendidas como forma e em, compartilhar, partilhar, associar-se pelos sen-
expressão de sentimentos, de emoções, de modos timentos, pensamentos da dor, da alegria, da
de comportamento, de representações, de símbo- ação imbricada pelo sentimento de criar e de
los e metáforas que dão múltiplos significados à desenvolver algo juntos.
vida e que podem ser percebidos por diversos A participação, por sua vez, desenvolve o
órgãos dos sentidos, uma vez que se estruturam sentimento de pertença. Isso fica muito bem evi-
e se tornam produtos da experiência vivida no denciado no Manual quando nele estão registra-
cotidiano das pessoas. Contudo, por diversas dos os nomes de todas as pessoas que tiveram
vezes, o técnico, preocupado com a dimensão do uma presença „participativa‰ integradora do pro-
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cesso de „elabora-ação‰ do material, gerando e Mudança, na qual ele nos apresenta as caracterís-
sentimento de pertença por meio dessa forma ticas da consciência ingênua versus as característi-
ética de reconhecimento das contribuições de cas da consciência crítica. Essa consciência se tor-
diferentes sujeitos, para a realização do produto nou crítica ao reconhecer que a realidade é mutá-
obtido (p.4), bem como para a superação da ver- vel, que ao se deparar com um fato faz o possível
ticalidade das ações na saúde. para livrar-se de preconceitos. Não somente na cap-
Na descrição do planejamento do trabalho tação, mas também na análise e na resposta, é inda-
em grupo apresentado, destaca-se o processo a par- gadora, investiga, força, choca, arma o diálogo,
tir do qual as narrativas individuais se transfor- nutre-se dele, face ao novo, não repele o velho por
mam em discurso de um sujeito coletivo, utilizan- ser velho, nem aceita o novo por ser novo, mas
do a expressão de Lefévre no seu livro sobre aceita-os na medida em que são válidos.
Metodologia do Discurso do Sujeito Essa consciência crítica surge com a reflexão
Coletivo. Como as subjetividades e o texto do manual segue apresentando como as
se transformam a partir da pro- autoras chegaram a esse desenvolvimento e ao prin-
blematização das questões cípio da ação-reflexão-ação, como geradora dessa
levantadas produzindo consciência crítica, conforme pode ser verificado na
reflexão de intersubjetivi- pág. 18, onde é apresentada a síntese do método
dades, levando à ressig- educativo-problematizador e na qual há ênfase para
nificação ou a uma relei- o fato de que é „importante lembrar que a gente só
tura da realidade, por aprende este método fazendo... refletindo... e refa-
outra premissa básica zendo...‰ e, em seguida, no qual há um desenho
de educação popular com a imagem de um grupo, cada qual com seu
em saúde, que é da ação imaginário, e o título „Aprendendo com a Vida‰.
à reflexão. Ação e refle- O desenvolvimento da metodologia aponta,
xão que vão gerar uma embora sem tornar explícito, para a necessidade do
nova ação, ainda que de treinamento do coordenador do processo não se
outro nível, uma vez que limitar à dimensão técnica, mas principalmente
essa nova ação vai se diferen- incluir a abordagem de sua sensibilidade para cap-
ciar da anterior. A imagem de tar os aspectos mais profundos desse processo. A
uma espiral ilustra esta dinâmica preocupação das autoras em apresentar os passos,
de ação-reflexão-ação, na qual o os instrumentos a serem utilizados para a elabora-
conhecimento gerado atinge um nível ção de materiais e para o registro das experiências,
mais elevado de consciência da realidade por indica a importância da construção da história de
parte de todos os envolvidos e, nesse contexto, um processo, a história de um projeto.
quem realmente passa por um processo dessa natu- Este é outro ponto muito relevante, pois
reza não permanece no seu estado anterior ao pro- aponta para outro princípio do sentimento de
cesso vivido. Este processo de ressignificação da pertença e de identidade que é o da construção de
realidade é gerador de consciência. Embora saiba- uma memória. Sabemos que a conservação da
mos que ter consciência não se traduz necessaria- memória pessoal, familiar, da comunidade, de
mente em possibilidade de mudança, considera- uma nação é de grande importância para a cons-
mos importante atentar para a dimensão crítica tituição das identidades pessoal, familiar e nacio-
apontada por Paulo Freire em sua obra Educação nal. Esse aspecto é considerado e explicitado na
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parte do manual que apresenta o tópico sobre os Em síntese, é possível afirmar que foram rea-
registros, num país de tanta tradição oral, onde mui- lizadas avaliações internas de progresso, de processo,
tas experiências boas infelizmente se perderam. do cumprimento de expectativas dos integrantes do
A descrição do processo de construção do grupo, o que permitiu ‰rever permanentemente seus
material, seguindo passo a passo suas etapas, permi- objetivos e mantendo-os ou alterando-os conforme
te ao leitor acompanhar o como, o porque e para as avaliações realizadas‰ (pág. 24). Na síntese que as
que é necessário considerar questões conceituais autoras fazem da avaliação, apontam para a impor-
como norteadoras do processo e a necessidade de se tância de „avaliar constantemente as partes e o
estar atento para uma práxis na confecção de um todo‰ (pág. 25), indicando uma visão sistêmica a
produto que integre sempre a teoria na ação, no qual partir da qual as interações têm grande importância.
a ação seja reorientadora da própria teoria. Outra ênfase dada na avaliação „...é o exercício per-
As autoras não deixaram escapar outra manente da crítica e da autocrítica.‰ (pág.25) A ava-
dimensão de grande importância no trabalho: a liação, assim posta, visa estar sempre atenta ao que
avaliação. Avaliação não só do produto final, mas é importante, o que não funciona, o que deve
do processo educativo que envolve toda a sua cons- melhorar, o que impede a melhora e o que é possí-
trução. Partindo da crítica da avaliação dirigida vel fazer para atingirmos eficácia.
exclusivamente às mudanças de comportamento Para finalizar os comentários oriundos da lei-
ou ainda das avaliações de impacto (pág. 41), as tura deste rico e cuidadoso trabalho de educação
autoras introduzem a avaliação do processo onde, popular em saúde, aqui entendida como todo proces-
sem negar o valor da avaliação quantitativa, é con- so de educação envolvendo a população numa pers-
siderada a importância da dimensão qualitativa na pectiva dialógica pautada na troca de conhecimentos,
perspectiva hermenêutica, enquanto método de recomendo que esta experiência seja ampliada para
interpretação do universo social, histórico e psico- outros campos de saberes, tanto no âmbito da saúde
lógico. A hermenêutica cuja etmologia vem da pública, por meio das práticas em saúde, quanto no
palavra Hermes, deus grego do conhecimento, âmbito das universidades no contexto da produção
indicando também tradução e interpretação é o de conhecimentos teóricos e metodológicos calcados
pressuposto teórico metodológico da abordagem na realidade vivenciada pelas pessoas.
qualitativa que pautou a trajetória desse trabalho. Júlia S. N. F. Bucher-Maluschke Psicóloga, doutorado na
Convém observar que há uma preocupação didáti- Universidade Católica de Louvain/Bélgica, Pós- doutorado
em Saúde Pública, Professora Titular na Universidade de
ca em realizar uma descrição detalhada dos proce- Fortaleza e Pesquisadora Associada na Universidade de
dimentos e indicadores das avaliações previstas ao Brasília.
longo da trajetória. E-mail: agathon@fortalnet.com.br
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Construção compartilhada do
conhecimento: análise da produção
de material educativo
Maria Alice Pessanha de Carvalho
A
brecidas da
e conhecimento do setor Saúde que resul- população.
ta da relação entre as disciplinas das ciên- Aquelas
cias sociais, das ciências da saúde e da educação. que, supos-
Ao longo de sua história foi conhecida, como tamente,
educação sanitária em que as ações visavam à poderiam vir
aplicação de normas e atitudes para mudança de a contaminar
comportamento dos cidadãos; como educação as elites. A com-
para a saúde ações que objetivavam a saúde preensão era de
como um estado a ser alcançado depois de ser que a educação pode-
educado; como educação em saúde aplicações ria reverter o ciclo da
do referencial da educação para se obter saúde; pobreza e da doença. Aos pro-
saúde escolar como um conjunto de medidas fissionais de saúde cabia orientar e
destinadas a assegurar salubridade aos escolares e educar a população para que esta, uma vez edu-
como educação e saúde fenômenos articulados cada, obtivesse saúde. Essas ações foram chama-
junto aos movimentos sociais na demanda por das por Eymard Vasconcelos de educação „toca
serviços de consumo coletivo. Em quase todas boiada‰, em que os técnicos conduziam a popu-
essas denominações podemos perceber discursos lação, usando o berrante (palavra) ou o ferrão
e práticas autoritárias e normatizadoras na rela- (ameaça), a realizarem o que foi definido como
ção do Estado e a sociedade civil. Quase sempre conduta saudável (VASCONCELOS, 2001).
estas práticas foram marcadas por intensa impo- Vasconcelos define educação e saúde
sição de condutas, valores e normas oriundas das „como campo de prática e conhecimento do
classes dirigentes sobre as camadas mais empo- setor Saúde que tem se preocupado com a cria-
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ção de vínculos entre a ação médica e o pensar e Passaram a orientar suas ações na busca de
fazer cotidiano da população‰ (VASCONCE- alternativas que pudessem superar a lógica
LOS, 2001). autoritária e normativa. É nesse contexto que
No entanto, é importante identificar que se desenvolve a educação popular e saúde
estas práticas dialógicas ainda não se constituem como metodologia pedagógica no campo da
hegemônicas nas ações de educação e saúde. Educação e Saúde. Educação popular em
Configuram estratégias desenvolvidas no campo saúde compreendida no reconhecimento do
da Educação Popular em Saúde. saber/poder popular como elemento de trans-
Nesse texto, buscaremos refletir sobre os formação social.
princípios orientadores da produção de mate- A educação popular e saúde se apresen-
riais educativos em uma perspectiva de educação ta com uma metodologia de aprendizagem que
popular em saúde, entendendo o material educa- possibilita ao sujeito que aprende refletir sobre
tivo como uma ferramenta pedagógica que pos- sua realidade, buscar soluções e neste processo
sibilita a mediação no processo comunicacional construir um conhecimento significativo.
e educativo de diferentes sujeitos. Nesse sentido, A origem da educação popular acontece
identifica a própria produção do material educa- nas experiências de Paulo Freire no processo
tivo como espaço de construção compartilhada de alfabetização de adultos, em Angicos, na
entre sujeitos de conhecimento. Para tanto, a década de 60. O princípio orientador e meto-
análise buscou identificar na produção do mate- dológico utilizado é a problematização. Na
rial como as dimensões políticas, epistemológi- problematização, a análise crítica dos contex-
cas e educativas da construção compartilhada tos envolve processos de ação-reflexão e ação.
do conhecimento foram desenvolvidas. Ou seja, é uma pedagogia preocupada com a
reflexão dos contextos reais, seu universo de
Educação Popular e Saúde símbolos, linguagens, signos e instrumentos
voltados para uma ação que visa a solucionar
Ao longo dos últimos 30 anos, profis- problemas efetivos.
sionais insatisfeitos com as formas disciplina-
doras e mercantilistas do fazer médico hege- A prática do método tinha como base inicial o
mônico possibilitaram a criação das condições levantamento do universo vocabular dos gru-
de enfrentamento a esta lógica dominante. pos com os quais a equipe pretendia trabalhar.
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Em seguida, eram escolhidas as palavras no universo acontecem no interior dos serviços de saúde
vocabular pesquisado, devendo ser selecionadas pela que tem como princípio a relação dialógica.
sua riqueza fonêmica, pelas dificuldades fonéticas da São desenvolvidas por profissionais que fazem
língua e pelo engajamento da palavra numa dada rea- crítica ao modelo hegemônico da educação e
lidade social, cultural ou política. Tais palavras eram
saúde, autoritária, comportamentalista, pres-
relacionadas a situações existenciais típicas do grupo,
que serviam como ponto de partida da discussão, à
critiva, normatizadora e culpabilizadora da
qual se seguia a decomposição das famílias fonêmi- sociedade usuária. Essas novas formas têm
cas correspondentes aos vocábulos geradores... como processos facilitadores as mudanças
(PAIVA, 1984, p. 253). acontecidas no contexto social brasileiro. Um
cres cen te pro ces so de demo cra ti za ção do
Nessa perspectiva, a aprendizagem acon- Estado Nacional exercido pelo aumento da
tece no relacionamento de aspectos que vão permeabilidade social na formulação das polí-
além do cognitivo. Articulam o que é signifi- ticas públicas e pela perspectiva do controle
cativo, envolvem os conhecimentos prévios, os social como controle do público para com o
diferentes interesses, a afetividade, as crenças, Estado, possibilitaram novas formas político-
as emoções, a espiritualidade, o modo como pedagógicas de atuação. Especificamente, no
lidam com a vida e a morte, os sujeitos de campo da Saúde, este movimento democrático
conhe ci men to. Portanto, a apren di za gem se materializou por diferentes instâncias do
acontece nas relações entre os diferentes sujei- movi men to social pela saúde. São os
tos que inte ra gem coo pe ra ti va men te no Conselhos de Saúde, os conselhos populares,
enfrentamento de problemas concretos. os ciclos, as associações, as ONGs. Nessas ins-
Nessa metodologia os alunos são consi- tâncias, crescem uma polifonia pela saúde. São
derados como sujeitos de conhecimento e com as cobranças veiculadas nas interações de dife-
possibilidade de exercer a alteridade. Mudar rentes sujeitos e vozes, marcadas pela interdis-
sua dada realidade. Nesse sentido, a dimensão ciplinaridade e pela transdisciplinaridade.
política se apresenta como fator de valorização É nesse contexto de profundas mudanças,
pessoal que possibilita a construção da auto- na relação entre Estado e sociedade, que se insere a
estima dos sujeitos da aprendizagem. discussão sobre as propostas democráticas de
Essas novas formas de ver e fazer da edu- inclusão da perspectiva da sociedade civil ao novo
cação popular e saúde e da ação educativa campo da Saúde e especialmente da saúde coletiva.
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Podemos identificar que esses movimen- demandas, como reivindica o cuidado ou aten-
tos se expressam, também, na busca de um ção médica e como presta o autocuidado.
novo olhar da saúde pública que visa a superar No entanto, existem poucos estudos que
estratégias marcadas por campanhas verticais e refletem como as classes populares estão enten-
autoritárias e que considera a complexidade da dendo, elaborando e se aproximando das
relação saúde-doença-cuidado. informações veiculadas durante o atendimen-
A saúde coletiva passa a ser vista como to em saúde. Muito menos, são estudados
um sistema complexo que envolve os proces- como são construídas as estratégias para lidar
sos de vida, adoecimento e morte; o esgota- com a saúde e os modos de adoecer da popu-
mento das dinâmicas puramente assistenciais e lação usuária dos serviços.
curativas; a pouca efetividade da medicaliza- Eymard Vasconcelos (1999) aponta que
ção dos problemas sociais e a possibilidade de a medicina ocidental expressão da ciência não
um repensar das relações entre os diversos tem se preocupado com a compreensão dos
níveis desenvolvidos sobre a saúde, doença e o saberes, das práticas, das estratégias, dos signi-
cuidado. Níveis que articulam o individual, o ficados imaginários do conhecimento popular
grupal e o societal. senso comum diante da saúde. Quando tenta
É a partir da compreensão da saúde compreender, em regra é para facilitar meca-
como um sistema complexo que hoje estamos nismos de cooptação ou acabar como diálogo
vivenciando uma nova conjuntura da saúde entre surdos.
coletiva e da política pública em saúde. É o Victor Vincent Valla1 lembra que foi
paradigma da saúde coletiva. José de Souza Martins o criador da expressão
A saúde coletiva passa a ser definida „a crise da interpretação é nossa‰. Com essa
como um campo científico de mediação entre expressão, estamos falando das dificuldades
teoria e prática, onde se produzem saberes e que os profissionais tem em compreender as
conhecimentos a cerca do objeto saúde. É um falas dos membros das classes populares. No
campo onde se articulam diferentes conheci- fundo, as dificuldades residem na não aceita-
mentos oriundos das diferentes categorias pro- ção de que estas pessoas humildes produzem
fissionais, denotando a sua interdisciplinarida- conhecimento.
de. Um campo de prática onde se realizam A conjuntura política, gestada em um
ações em diferentes organizações e institui- governo democrático, aponta para uma con-
ções, públicas ou privadas. Portanto, podemos vergência entre os interesses dos educadores
inferir que nessas relações são produzidos dife- populares e da população e o discurso do
rentes saberes por diferentes agentes e atores Estado. Estamos vivendo uma nova conjuntu-
do setor Saúde. ra política onde Estado e sociedade podem e
A saúde coletiva tem como objetivo devem encontrar soluções de forma comparti-
atender às necessidades sociais da saúde da lhada.
população e como instrumento os distintos Acreditamos que ambos (Estado e socie-
saberes, disciplinas, tecnologias materiais e dade) possam ter interesses coletivos e que
não matérias. estes sejam orientados no fortalecimento dos
Os conhecimentos construídos em tor- princípios do SUS (Sistema Ðnico de Saúde):
no das necessidades de saúde estão expressos universalidade, eqüidade, integralidade, des-
nos modos como a população representa suas centralização e controle social. Com destaque
1 VALLA, V. V. Pesquisador do Departamento de Endemias Samuel Pessoa da ENSP/Fiocruz em aula no Curso de Especialização em
Educação e Saúde, agosto de 2002.
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2 Dimensão epistemológica:
essa dimensão, o destaque se dá no valor
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2 Interatividade é uma inter-relação mediatizada pela comunicação que acontece durante o relacionamento entre indiví-
duos e grupos em uma comunidade de aprendizagem. O participante avança em suas atividades e habilidades, realizando
asso-ciações e interligando informações por meio da participação com os outros nas atividades planejadas (Carvalho, 2000).
3 Cooperação é uma relação compartilhada estabelecida entre os participantes do programa no desenvolvimento da apren-
dizagem e na realização de projetos de interesse comum. Essa relação se caracteriza pela desigualdade do conhecimento
entre os participantes, pelo sistema de combinações e compromissos estabelecidos na solução de problemas significativos
(Carvalho, 2000).
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sobre o objeto. Os signos regulam as ações tiva. Ao falar da sua vida e a vida sexual está
sobre o psiquismo das pessoas. São represen- incluída, essas mulheres apresentam seus sen-
tações que substituem e expressam a realidade. timentos, suas formas de relação com o
Portanto, são marcas externas que servem mundo, a produção de sua auto-estima, como
como auxílio da memória: sinais de trânsito, lidam com seus preconceitos e afetos. Enfim,
letras, desenhos, etc. (REGO, 1995). Essas pre- de que forma se relacionam com o mundo em
missas fazem parte do pensamento sociointera- que vivem. Nesse sentido, é fundamental que
cionista de Vygotsky (1978), que considera a tanto o educador e o educando estabeleçam
aprendizagem como fruto de uma ação social uma relação de confiança mútua e compa-
mediada pela cultura. nheirismo.
A dimensão epistemológica é evidenciada
Produção de material educativo em todo processo metodológico proposto. É a
e a construção compartilhada relação e o diálogo entre os saberes e práticas
que pontua a proposta. No entanto, a relação
do conhecimento de diálogo e de escuta envolve a necessidade
Trabalhando com grupos e elaborando de um processo de negociação. É uma nego-
material educativo em conjunto com a ciação de sentidos, interesses, necessidades,
população, as DST/aids no cotidiano das afetividades. Enfim, todos os sentimentos da
mulhe res pri vi le giou per ce ber como as subjetividade relacionados com os da raciona-
dimensões e os princípios da construção lidade. Envolve, também, saber: Quem decide
compartilhada do conhecimento foram tra- o tema a ser trabalhado? Quais são os deter-
balhados e efetivados na construção da fer- minantes que envolvem esse tema? Quais inte-
ramenta pedagógica. resses estão envolvidos? É uma pesquisa finan-
Esse material representou um esforço de ciada ou uma demanda social explicitada ou
registrar e apresentar um trabalho coletivo de a ser explicitada?
produção de um manual voltado para os pro- Esses pontos foram trabalhados no manu-
fissionais que compõem as equipes de saúde. al quando seus autores discutem a necessida-
Sua construção apresenta a problematização e de do estranhamento e da argumentação na
o diálogo como ferramentas metodológicas. problematização. Estranhamento no sentido
Trabalhar os temas e questões a partir dos do exercício de se distanciar para ver melhor.
interesses e visão de mundo dos grupos envol- Identificar que o fato acontece com outras
vidos nem sempre é tarefa fácil. Nesse princí- pessoas. Em outros lugares, mulheres discu-
pio, o material produzido apresenta um tema tem sua vida sexual, afetiva e seu entorno.
específico, os problemas relativos a prevenção Portanto, não pode ser individualizado e sim
das DST/aids. Embora seja um problema de contextualizadado, relacionando fatores eco-
saúde pública pode não ser um problema nômicos, sociais e culturais. A argumentação
para as mulheres. Nem sempre esses interesses possibilita o exercício político da alteridade.
convergem. No entanto, mesmo que tenha- Nesse processo, é necessário que os partici-
mos uma pauta já agendada, a perspectiva pantes tenham a oportunidade de explorar os
daquele que vivencia a relação deve ser o temas e controvérsias em questão, na busca de
ponto de partida e de chegada da ação educa- um campo comum de conhecimentos, signi-
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ficados e crenças no domínio do problema. Nesse pação autônoma o grupo decide sem a participa-
processo, existe a necessidade de estruturação das ção do técnico fazer a cartilha. Essas estratégias
falas, onde as questões são processadas, ressignifi- representam formas de relação diferenciadas. Na
cadas, elaboradas, possibilitando a reconstituição primeira, embora aconteça a escuta atenta e a
do laço social na busca por soluções coletivas. negociação entre os parceiros, será sempre uma
Ao identificarmos a população como parceira, aproximação e tradução dos técnicos, restringin-
negociando sentidos, necessidades e interesses, a do a autonomia do grupo. Inversamente propor-
relação que se estabelece é de construção de sujei- cional é a participação autônoma que, embora
tos que opinam, têm formulações, constróem um reflita um grau de organização do grupo, desqua-
saber fruto da vivência científica e popular e não lifica o diálogo entre os profissionais, restringin-
de um convite/sedução para participar de uma do a interação entre os saberes. A prática do diá-
estratégia pré-definida pelos profissionais de logo implica ouvir, também, o que a ciência tem
saúde. a dizer.
Os autores sugerem uma série de recomenda- A dimensão educativa foi a mais evidenciada
ções, bastante importantes, para quem realiza tra- na elaboração do manual. Os principais elemen-
balhos participativos de educação. Entre eles, des- tos norteadores apresentados podem ser resumi-
tacamos a recomendação que os profissionais dos em quatro princípios metodológicos: prática
sejam „ousados‰ ao se expressarem e exporem dialógica e de escuta atenta; problematização da
seus sentimentos durante as práticas. No entanto, realidade; problema ressignificado. A proposta de
cabe um alerta aos profissionais de saúde. Estes elaboração do material tem como princípio a
correm o risco de se protegerem no discurso cien- identificação de que na aprendizagem o sujeito é
tífico, para não se colocarem e não se exporem e construtor do conhecimento a partir da relação
deixar de refletir que possuem os mesmos senti- com o contexto. A aprendizagem é desenvolvida
mentos, medos, desejos e dúvidas da população e ancorada aos conhecimentos prévios e significa-
usuária. O princípio da equivalência de saberes tivos que sempre existem. Para tanto, a escuta e o
aqui se aplica, também, para a equivalência de diálogo possibilitam o desenvolvimento da auto-
sentimentos frente a uma dada realidade. estima e da identificação de que os problemas, as
Podemos identificar que a dimensão política formas de ver a realidade a partir da ótica de
foi pouco explorada no material educativo. quem a vivencia são importantes para a definição
Principalmente, no sentido da formulação de política do enfrentamento dos problemas da
novas propostas de atenção e cuidado. No entan- saúde. A pedagogia problematizadora se configu-
to, podemos perceber que o exercício da partici- ra como ação metodológica mais adequada para
pação está presente em todo o desenvolvimento estes processos construtores de autonomia.
do material. Esse exercício tem como resultado as Para a criação de materiais educativos que pos-
diferentes formas de participação da população sibilitem a autonomização de sujeitos, podemos
identificadas e descritas: uma participação mais tomar como referência os pressupostos de Freire
restrita onde os roteiros são construídos pelos (1996). No livro Pedagogia da Autonomia são
profissionais a partir do diálogo com os partici- colocadas de forma didática as recomendações
pantes; participação mais conjunta que reflete a necessárias ao desenvolvimento de um trabalho
construção coletiva dos sujeitos, onde o conheci- educativo que se proponha estimulador de proces-
mento técnico tem que ser „impregnado pelo sos autônomos e também pontua as demandas
conhecimento produzido no cotidiano‰; partici- direcionadas ao educador. Freire toma como
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ponto de partida a postura de que a valorização da ca, que curiosidades orientam e na disposição para
competência tecno-científica e o rigor não devem desenvolver o diálogo e a cooperação no campo da
ser menosprezados e nem super valorizados em Educação Popular.
relação ao amor e a afeição, indispensáveis à ação Podemos inferir que a produção de um mate-
educativa. Essa relação tem a motivação e o afeto rial educativo, além de ser um processo dialógi-
como prática pedagógica a ser exercitada na relação co, é também um processo inconcluso. Será sem-
de aprendizagem, ajudando a construir ambientes pre um vir a ser e um redesenho dinâmico, histó-
favoráveis à construção do conhecimento. rico e fértil. A realidade trará novos olhares,
novas formas de ver, interagir, cooperar e enfren-
Considerações finais tar. Com certeza, novos materiais educativos
como este surgirão possibilitando a constituição
Pensar e realizar propostas de construção com- de processos que diminuam a autoria individua-
partilhada de conhecimento é fruto do desenvolvi- lizada, em busca de processos de autoria coletiva.
mento e do exercício permanente, a ser conquista-
do nas relações de respeito aos diferentes saberes Maria Alice Pessanha de Carvalho Mestra em Tecnologia
(educando e educador e a comunidade de aprendi- Educacional nas Ciências da Saúde, UFRJ. Coordenadora-
zagem), no rigor metodológico e na reflexão críti- Adjunta da Escola de Governo em Saúde: Coordenação de
ca sobre a prática. Principalmente, um rigor e refle- Ensino e Formação Profissional / ENSP/FIOCRUZ.
xão sobre como se aprende, quais as dificuldades E-mail: alicep@ensp.fiocruz.br
que enfrentam, que problemas vivenciam na práti-
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Reflexões e Vivências
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Ilustração: Samuca
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gem dirigido à população ribeirinha visa à promo- raríssima beleza, principalmente ao entardecer, quan-
ção da saúde e requer participação e troca de saberes. do a passarada busca a vegetação ao redor para se
Em busca de obter elementos para a elaboração de proteger à noite, e os nossos olhos são preenchidos
estratégias de aproximação com a população ribeiri- pelos matizes formados pela luz do sol poente inci-
nha passíveis de sistematização para serem reprodu- dindo na água, em contraste com a mata verde
zidas na formação dos estudantes de enfermagem, (FIGUEIREDO, 2002, p. 111).
sobretudo no que concerne à saúde coletiva, foram
realizados trabalhos de pesquisa e extensão com base Em Nazaré, só há escola até a 4.… série.
na educação popular junto à população de Nazaré. Muitas pessoas não sabem ler. Pais e mães que têm
Tal empreendimento constituiu um desafio constan- família em Porto Velho enviam filhos e filhas para
te, enfrentado e refletido a cada viagem à comunida- estudar na capital, muitas vezes trabalhando como
de. A experiência que vamos narrar aconteceu em empregados e empregadas nas casas de familiares
2001. É uma reflexão sobre a aproximação entre a ou conhecidos de mais posses. Não há telefones,
enfermagem e a educação popular necessária para apenas um rádio amador que não é muito utiliza-
qualquer intervenção duradoura que se pretenda rea- do pela comunidade. Os barqueiros que trafegam
lizar junto à população ribeirinha. pelo Rio Madeira servem de portadores de recados,
notícias, entrega de mercadorias de Porto Velho ou
das outras localidades ribeirinhas para os morado-
Vamos conhecer Nazaré?
res de Nazaré.
A vila de Nazaré era um antigo seringal Há uma equipe do Programa Saúde da
chamado „Boca do Furo‰, habitado por 25 famí- Família que visita a comunidade quinzenalmente.
lias e que surgiu nos anos 40, com o fim do Há dificuldades de conseguir profissionais dispos-
segundo ciclo da borracha. Localiza-se à margem tos a enfrentar viagens de voadeira1, durante cinco
esquerda do Rio Madeira, a 150 km de Porto horas debaixo do sol amazônico, expostos aos peri-
Velho e abrange atualmente 14 localidades. Os gos naturais do Rio Madeira (piranhas, candirus,
moradores plantam melancia, mandioca, feijão e jacarés, além de bancos de areia e troncos de madei-
são extrativistas, ou seja, retiram da floresta ali- ra que comumente são encontrados no leito do
mentos, caçam e pescam (LIMA; SOUZA, 2002). rio). Barcos de linha fazem o trajeto mais lenta-
As casas de Nazaré são de madeira retira-
da da mata pelos próprios moradores, que
seguem basicamente dois modelos de constru-
ção: palafitas na área que alaga com a estação
das águas (inverno amazônico) e plantadas ao
chão nas áreas de terra firme. Há apenas dois
prédios de alvenaria em toda a vila: o posto de
saúde, reformado em 2001 e a Igreja São
Sebastião, construída recentemente.
A beleza local é descrita com precisão por
Figueiredo:
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No primeiro encontro, 23 mulheres com- netas. Era bonito ver as voadeiras chegando, atra-
pareceram. No início, ficaram um tanto caladas, cando lá embaixo no rio, cheias de mulheres
mas foram se expressando, umas mais, outras empunhando as pastas cor de rosa, agitando-as no
menos. Fizemos um círculo com as cadeiras, nos ar, a nos cumprimentar de longe.
apresentamos, conversamos amenidades. A dis- Fizemos um sorteio de pequenos brindes
cussão inicial foi sobre nosso corpo de mulher. femininos: batom, presilha de cabelo, pulseira de
Perguntávamos: o que é ser mulher? Entregamos miçangas, anel, meia calça. Homenageamos as aniver-
lápis de cor, papel, borracha. Pedimos que dese- sariantes, conversamos sobre problemas que afligiam
nhassem o seu corpo. Algumas aceitaram de pron- algumas participantes, verificamos pressão arterial,
to, outras mais envergonhadas, ficavam observan- trocamos segredos do cuidado de feridas, aprendemos
do. Após desenhar, convidamos aquelas que qui- receitas de chás e lambedores. Ouvíamos histórias do
sessem mostrar seus desenhos, descrevendo-os. boto, encantamento da jibóia e outras lendas de arre-
Foi uma riqueza. Aos poucos, elas mostravam piar, contadas com gosto, na clara intenção de nos
seus desenhos, explicavam com detalhe o que haviam atrapalhar o sono no barco, à noite.
desenhado. Enquanto se referiam ao desenho, falavam Aos poucos, a amizade se instalava entre
de si mesmas: como se viam, o que achavam mais nós. Fomos cumprindo a cada encontro a pauta
bonito em si, sonhos para o futuro, relação com os sugerida pelas participantes, que elegiam os assun-
companheiros e filhos, a vida em Nazaré... tos mais urgentes para os encontros seguintes. ¤s
Após o lanche, fizemos uma brincadeira: a vezes ficava conversando enquanto algumas lava-
eleição da mais sem-vergonha do grupo, aquela vam roupa no rio. Aprendi que para evitar o ata-
que não tinha receio de falar em público. Foi ani- que das arraias, era preciso fazer a „bateção‰, ou
mado! As crianças que brincavam lá fora, sob os seja, bater com um pau na água bastante e andar
cuidados da nossa aluna, vieram ver o que estava arrastando o pé, pois elas atacam quem as pisa,
causando tanta algazarra. com um ferrão que provoca dores terríveis.
Ao final, avaliamos o encontro. Quase
todas expressaram suas opiniões. Disseram que Um mergulho nas águas de Nazaré
queriam mais encontros como aqueles. Fizemos
uma lista de assuntos a serem abordados nos pró- Em um desses encontros, discutimos a
ximos encontros: como evitar filhos, doenças do importância da água para nossas vidas. Des-
útero, prazer sexual, educação dos filhos, como taquei alguns trechos para mostrar, tomando o
evitar doenças causadas por vermes, etc. cuidado de atribuir outros nomes:
Fizemos um pacto: prometemos não per-
mitir a presença de homens nos nossos encontros,
para que se sentissem mais à vontade. A recreação
com as crianças foi mantida; decidimos que todas
limparíamos a escola após cada encontro.
Distribuímos pastas cor de rosa contendo
papel sulfite, lápis, caneta, borracha, régua. Os
encontros seguintes, realizados uma vez por mês,
foram cada vez mais animados, com a presença de
mais participantes, vindas de outras comunida-
des, acompanhadas de filhas adolescentes, noras,
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„Eu uso a água pra lavar a louça, a roupa, Dimensão água e rotina doméstica
tomar banho, fazer a comida... a água é tudo. Já
pensou, a gente que já nasce dentro dÊágua, parece As ribeirinhas se referem à água como alia-
até peixe, de repente não ter mais água em da do trabalho doméstico, na lavagem da roupa,
Nazaré?‰ (Maria) na limpeza da casa, no preparo das refeições.
„A água é a coisa mais sagrada... quando Algumas vão em grupo para a beira do igarapé.
estou de cabeça quente, vou lá pro colhereiro Lá conversam, brincam, enquanto lavam as rou-
tomar um banho, esfriar a cabeça, é bom de- pas da família.
mais...‰ (Joana)
„¤s vezes, no domingo, a gente vai todo
Dimensão água e lazer
mundo lá pro lago pescar, lá mesmo a gente assa e
come os peixes com cerveja, quando tem...‰ (Célia)
Na água há opções de lazer para homens,
„É engraçado, outro dia eu estava pensando,
mulheres, jovens, crianças. Pescarias, banhos,
o barco anda em cima da água. Quer dizer que
mais velhos dando aulas de remo, competições
quando a gente quiser, a gente pode andar em
de canoas... risos, gritos, música alta, vida cele-
cima da água, é só pegar o barco! Os barcos che-
brada na beira dÊágua.
gam, saem, levam gente para São Carlos, Calama,
Porto Velho... trazem mercadorias pra gente...‰
(Expedita) Dimensão água contato com
Pude identificar algumas dimensões do uso o mundo lá fora
da água e seu significado para o dia-a-dia das ribei-
rinhas. Chamei de dimensões porque indicam a Através do rio, Nazaré se comunica com
maneira como as mulheres vêem e se relacionam as outras localidades, os barcos trazem notícias,
com a água que, na verdade, é algo mais profundo cartas, visitas, mercadorias aguardadas ansiosa-
do que o simples uso do cotidiano . São elas: mente. Quando atracam sempre são recebidos
pelas crianças, que tratam de sair nas casas avi-
Dimensão água sagrada sando a todos a chegada do „Deus é Amor‰,
„Comandante Ribeiro II‰, e outras embarcações,
Maria enumera os usos domésticos da água todas com nomes e tripulação, bem conhecidas
e depois apresenta uma definição dos ribeirinhos, de todos.
como aqueles que já nascem dentro dÊágua, não Um detalhe que me chamou a atenção foi
podendo viver sem a água, que é tudo. Nazaré sem a referência à pesca como parte do lazer na água,
água parece um sonho ruim para Maria. não como trabalho para sustento. Conhecendo
Joana atribui à água um poder sagrado de a vida das ribeirinhas entendi que a pesca que
curá-la quando aborrecida. O colhereiro a que se praticam é aquela para consumo imediato.
refere é um igarapé lindo, de águas geladas. Mais Alguns homens é que praticam a pesca em
adiante, tem o igarapé „cura-ressaca‰ que, como o maior quantidade, saem de madrugada para
próprio nome já diz, pela baixa temperatura da lagos mais distantes e voltam com caixas de iso-
água, sempre encoberta pelas árvores das matas por cheias de peixes. Congelam e vendem aos
ciliares, é freqüentado após finais de semana mais barqueiros, vizinhos e reservam uma parte para
festejados, pelos moradores, para aliviarem o mal a família.
estar da ressaca.
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As ribeirinhas trazem para todos nós, igarapé e podem entrar no nosso corpo pela
educadores, uma riqueza de informações, um boca, pela pele e causar doenças, como a tão
mergulho num mundo imaginário nunca temida barriga dÊágua (esquistossomose). A pes-
sonhado. A água que as cerca, nos lagos, nos iga- soa doente faz cocô na beira do rio ou do igara-
rapés, no rio, tem um significado muito maior pé, os micróbios do cocô vão para a água e
do que aquele que a nossa cabeça de enfermeira começa tudo de novo.
consegue alcançar. Por isso, não bastava apenas Em relação ao „nó nas tripas‰ mostramos
ensiná-las a tratar a água e as doenças causadas figuras de áscaris e conversamos sobre como as
por água não tratada. Era preciso despir-nos e lombrigas crescem no intestino, como se pega e
mergulhar com elas naquelas águas. como se trata.
Depois destes mergulhos com as mulhe- Falamos também da dengue e da febre
res, passamos a discutir algumas questões do cui- amarela, mas as ribeirinhas, que em sua maioria
dado com a água. Trouxemos desenhos de para- têm televisão em casa, já conheciam medidas de
sitas que se multiplicam em água não tratada. precaução e outras informações sobre estas
Houve relatos de crianças e adultos que morre- doenças. Muitas famílias têm o hábito de usar
ram com „nó nas tripas‰ e „barriga dÊágua‰. mosquiteiros nas redes e nas camas, também
Então, falamos sobre estas doenças, ressaltando para se protegerem da malária.
que na água vivem micróbios invisíveis a olho Em seguida, fizemos uma lista do que se
nu. Estes micróbios moram um tempo no corpo pode fazer para cuidar da água, a partir das con-
do caramujo, que fica pregado na margem do tribuições das ribeirinhas:
ferver a água, quando não tiver hipoclorito. Para melhorar o gosto, coar
usando um paninho limpo e passado a ferro;
levar todos da família ao posto para fazer exames de fezes, urina e sangue
para saber quem está com vermes;
ensinar as crianças a não urinar nem fazer cocô na água, nem na margem
do rio ou do igarapé;
pendurar sacos de lixo em alguns lugares da vila para que as pessoas usem.
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Pelo que podemos perceber, são providências dade da água de que se servem no dia-a-dia.
ligadas a um trabalho educativo. Indicam que as Em relação à água-contato com o mundo lá fora,
mulheres reconhecem a responsabilidade da comu- as ribeirinhas colocaram a importância de um cuida-
nidade no que diz respeito à preservação da quali- do maior por parte da Prefeitura de Porto Velho:
construir um porto onde os barcos possam atracar de maneira mais organizada e limpa;
fiscalização dos barcos que vêm com turistas de outras localidades para pescar;
construção de uma rede de esgoto em Nazaré, para escoar a água das chu vas, das privadas
recém-construídas, garan tir água encanada para todas as casas, faci litando o tratamento da
água pelas famílias;
As mulheres sabem o que Nazaré precisa, Querem ser iguais, querem ser incluídas na
e a quem cabe reivindicar. Diante destas listas, o sociedade. Um dia ouvimos um relato de uma
trabalho educativo segue orientado por duas de nossas colegas, sobre o desejo de alguns ribei-
diretrizes: o despertar de mais moradores para a rinhos de preferir galinha de gelo (frango de
necessidade de modificar alguns hábitos, con- granja) à galinha caipira. É que já conhecem o
tando com a participação das crianças por meio gosto e desejam o novo. Galinha de gelo, carne
do teatrinho de fantoches (mas esta é outra his- de boi, frutas do Sul. Assim, entendemos por-
tória que outras colegas do Beradão podem con- que muitas vezes vimos frutas se estragando no
tar). chão ou no pé. Não dá para julgar se estão cer-
As reivindicações foram apresentadas à tas ou não.
Associação de Moradores e Amigos de Nazaré, a Muitas vezes, bem intencionados, propo-
fim de serem encaminhadas à prefeitura munici- mos saídas para alguns problemas e ficamos
pal. A saúde em Nazaré faz parte de uma intrin- chocados quando não há adesão a nossas „mara-
cada rede de elementos objetivos e subjetivos, vilhosas idéias‰, como fazer compotas e conge-
por isso é preciso ter paciência e procurar cons- lar polpas de frutas, fazer outros pratos com a
truir coletivamente as estratégias e soluções. As galinha caipira. Talvez seja necessário entender-
mulheres de Nazaré reclamam por coisas essen- mos que, mesmo parecendo óbvio que o uso dos
ciais: escola para as crianças, assistência à saúde recursos naturais à mão é uma saída importante
permanente, saneamento básico, direito a se para inclusão dos ribeirinhos, às vezes, essas
comunicar com o mundo lá fora. idéias precisam ser trabalhadas lenta e continua-
Convivendo com elas, entendi que não mente, para que eles não vejam estas saídas
querem soluções alternativas, querem os bens e como um reforço da inferiorização que viven-
serviços que as pessoas das cidades têm. ciam, contra a qual se revoltam.
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Muitas vezes, em reuniões com visitantes eles já perderam o status de especiais, a se auto
de fora, políticos ou candidatos, em vez de der- diagnosticar, tratar com plantas e remédios
rubar as barreiras de acesso a bens e serviços medicinais, enquanto vêem na televisão propa-
essenciais, os discursos invariavelmente elogiam gandas de supermercados, shoppings, consultó-
o rio, o igarapé, exaltam a vida ribeirinha pelo rios e clínicas de alto padrão e carrões. Querem
contato direto com a natureza, as maravilhas galinha de gelo, bife de boi e remédio de farmá-
deste viver em paz, longe da violência das gran- cia. Ah, e querem telefone também.
des cidades. Que poderiam utilizar melhor o É claro que existe também a alternativa de
que têm, ao invés de desperdiçar (Lembra aque- irem a Porto Velho, usufruir de algumas dessas
la história de que o Brasil é abençoado, não benesses, mas é uma saída que os obriga a gastar
temos terremotos, vulcões...) e assim, fica pare- dinheiro, se hospedando em casas alheias, o que
cendo que a população deveria agradecer por não pode ser por muito tempo.
tudo o que tem e se resignar com a falta de esgo- Nosso trabalho em Nazaré não terminou.
to, telefone, fumacê, médico e enfermeiro aten- Há muito por fazer, sobretudo continuar mer-
dendo todos os dias no posto... gulhando na complexidade das questões referen-
São discursos ditos e não ditos (e maldi- tes à saúde dessa comunidade, de maneira lenta
tos!) de quem ignora que é muito complicado e gradativa, sempre tendo à mão livros e escritos
conseguir vender a produção, porque os barquei- de estudiosos da saúde coletiva, educação popu-
ros (que ou são os compradores ou se tornam os lar, ecologia humana e enfermagem. Nosso
atravessadores) pagam o preço que querem, res- principal aliado, contudo, tem sido o respeito.
tando ao produtor aceitar ou perder a produção. Só ele nos fornece um par de óculos que nos
Os ribeirinhos utilizam remédios caseiros, mas permite sair da miopia técnica-acadêmica e
não vêem motivos para se orgulhar disso, são enxergar as profundas dimensões da vida ribeiri-
estratégias de sobrevivência repassadas de gera- nha.
ção em geração. Qualquer iniciativa nossa, de
ensinar mais remédios e terapias alternativas Wilma Suely Batista Pereira Enfermeira, Docente da
parece confirmar que são cidadãos de segunda Faculdade São Lucas e da Universidade Federal de Rondônia
categoria, cabendo-lhes contentar-se com o peixe E-mail: wilsue@uol.com.br
com farinha, melancia e outras frutas que para
REFER¯NCIAS
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Educação emancipatória,
o processo de constituição de sujeitos
1
operativos: alguns conceitos
Eliane Santos Souza
Ilustração: Lin
A
o começarmos nossa con- sujeito? Vale lembrar que o senso
versa, será proveitoso ressal- comum nos traz algumas acep-
tar que a educação a que ções pejorativas: esse sujeito, que
estamos nos referindo aqui é sempre sujeitinho, a sujeita. Vamos ressig-
um trabalho. Trabalho entendido nificá-las.
como a ação especificamente huma- Tomemos alguns minutos
na, essa capacidade de criar ideal- para pensarmos no nosso pró-
mente, isto é, de planejar, sonhar..., prio nome. Isso mesmo, pensar-
antes de realizar a transformação da mos no nome próprio de cada
natureza em objeto cultural concreto um, de cada uma. O que sabemos
ou mesmo de transformar a própria desse nome, como chegamos a
cultura, resignificando-a. Trabalho, receber esse nome, conhecemos a
portanto criativo, que nos produz história da escolha do nosso
como humanos, seres da cultura, ao nome?
ser por nós produzido.2 Num breve passeio por
Falamos do trabalho não tais lembranças, nos percebemos
alienado, ópera – chamemos imersos no mar da história sócio-
assim –, realizada por sujeitos cultural. Estamos pensando vín-
que, nesse ato, se percebem tutela- culos. Todas as determinações da
dos e iniciam seu caminho cons- cultura na sua dimensão cotidia-
ciente à emancipação intelectual. na, religiosa, os desejos, os encan-
Falemos um pouco de su- tamentos, os medos, os sonhos,
jeitos. Mas o que é mesmo um as dores, as esperanças, de nossos
1 Tema abordado no I Encontro de Educação Popular em Saúde, promovido pela Escola Estadual de Saúde Pública da Bahia. Salvador, julho de 2003.
2 Gramsci, ao afirmar que todos somos intelectuais, tem nesta concepção de trabalho humano (práxis) sua premissa.
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pais, tios, avós, vizinhos, amigos, todos aqueles que neces sá rias para sig ni fi car mos o mundo.
nos acolheram na cultura, marcas de um tempo, tra- Contudo, as representações internas desses afetos
dições regionais, contemporâneas ou mesmo mile- se atualizam, na nossa trajetória, tanto mais quan-
nares... múltiplas determinações. Daria até para to mais nos expusermos a novas interações. Para
reconstituirmos um bom pedaço de uma época, não nossa sorte, os vínculos primários, ainda que
é? Músicas, lugares, personagens, crenças, devoções, determinantes, podem ser resignificados com o
artes plásticas, sétima arte... Sentidos sempre elabo- trabalho do sujeito, o trabalho educativo.
rados com engenhosidade. Essa vida privada que
carregamos conosco, ainda que o espaço tradicional Mediação, amorosidade,
do trabalho moderno tenha insistido em querer des-
construção coletiva
conhecê-la.
Isso nos remete aos vínculos sociais – relações
Esse campo de interações a partir do grupo
humanas produtoras de sentido – base dos processos
da nossa primeira infância nos será útil, aqui, para
de comunicação e de aprendizagem, já que nos
apreendermos a concepção de educação tal como
constituímos em sujeitos na interação com o outro.
expressa na síntese de Paulo Freire: „Ninguém educa
ninguém, ninguém se educa sozinho, os homens se
Autonomia educam entre si, mediatizados pelo mundo‰.
É o mundo (possibilidade e ameaça à nossa
Pois é, nós já chegamos nomeados, esse ser de existência) o mediador de todo nosso aprendizado.
necessidades é que nos interessa agora. Bem, para Mundo que nos desafia e nos faz produzir nossa
nossa finalidade, pensemos esse ser que, da sujeição existência, compartilhando os próprios processos de
à necessidade, se lança à ação na busca da gratifica- re-criação (educação). Vimos que os sujeitos só se
ção que vem do outro; no movimento (dialético) constituem em interação, isto é, em grupos. Então,
necessidade/satisfação constrói seu caminho e nele trabalhemos, também, nossa concepção de grupo.
se percebe descolado, diferenciado do outro. Esse é A última vez que tivemos de nos reunir a pes-
o caminho da construção do agente, ator, protago- soas, de fora ou do nosso grupo familiar, para
nista, autor, enfim, do sujeito relativamente autô- desenvolver um trabalho específico, como foi?
nomo, pois se sabe interdependente do outro. O que era mesmo que tínhamos de fazer? O
Em síntese, chegamos ao mundo famintos e grupo todo entendeu logo o que se esperava dele?
somos assujeitados pela cultura que nos recebe e,
Você se sentia de fato em um grupo? Como as pes-
na busca da satisfação das nossas necessidades,
vamos reconhecendo no outro a nossa distinção e soas foram superando as dificuldades que encontra-
nos apropriando desses elementos ideológicos que vam para desenvolver a tarefa comum? Que outras
nos acolhem, mas também nos repelem, enquanto tarefas foram surgindo no horizonte do grupo?
que, ao deles nos apropriarmos, os vamos transfor- Pensar essas questões nos remete à concepção
mando, recriando a cultura e produzindo, em de grupo operativo, proposta por Pichon-Rivière:
constante tensão, nossa autonomia, que será, por-
tanto, sempre relativa. „Um conjunto de pessoas ligadas no tempo e no
São nossos vínculos primários que irão espaço, articuladas por mútua representação inter-
configurar o nosso primeiro auditório interno, na, que se propõe, explícita e implicitamente, a
matriz facilitadora, ou não, das interlocuções uma tarefa que constitui a sua finalidade.‰
115
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tões para pensar a cidadania: a língua e o ima- ca: primeiras aproximações. 6. ed. Campinas,
ginário. Campinas, SP: UNICAMP, 2000. SP: Autores Associados,1997.
3 Cf. Método da Economia Política, proposto por Karl Marx, tomado por inúmeros educadores como modelo do processo educativo Cf. Freire, Saviani, Maguerez.
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Pensando
alto...
Ana América Magalhães Avila Paz
Ilustração: Mascaro
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"Bebida é água
Comida é pasto
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
A gente não quer só comida
A gente quer comida, diversão e arte
A gente não quer só saída
A gente quer saída para qualquer parte."
(música do grupo Titãs)
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"Minha idade quase ninguém vai alcançar, que os tempo tão muito difícil. Enterrei minha dona dia sete de
março. Chorei demais. Quase setenta anos juntos: nove filho, vinte neto e cinco bisneto. Era bom demais
viver com ela. Era uma amiguinha que eu tinha, carinhosa. Tudo prá ela tava bom. Fiquei muito triste. Isso
aí lá ia me derrubando. A tal de solidão." (Albertino)
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Festa de aniversário
O feijão cozinhava lento sobre um fogão de em seu velho corpo. Sentia um conjunto interminá-
barro que enfumaçava as paredes da cozinha. Alguns vel de dores, em diferentes lugares, de intensidades
poucos mantimentos estavam guardados na estante, variadas. Havia dor de todo jeito, cada uma surgida
juntamente com panelas e utensílios de cozinha, em em uma situação, que queria detalhar.
um canto: arroz, café, fubá, feijão, macarrão, açúcar, Sinval, aproxima-se novamente. Chega perto e
alguns limões e algumas cebolas e batatas. Havia uma pergunta se era possível aposentar-se. Indago-lhe
ordem em tudo, embora fosse difícil compreendê-la, quantos anos tem, qual a sua idade correta. Pensou,
embora não fosse a ordem que queríamos ver. Sinval, pensou e consultou a carteira de identidade, guarda-
muito magrinho, grisalho e simplório, sorria tímido da no bolso da camisa. Inseguro, passou-a a mim,
para nós: a casa, agora, estava mesmo boa! Tanta para que eu mesma lesse os dados.
gente! ¯ta coisa boa, sô! Ofereceu o braço, todo satis- - Sinval, você tem 67 anos. Você nasceu em 5
feito, para que fosse medida a pressão arterial, arrega- de junho de 1932, correto? Mas... Sinval, hoje, é cinco
çando a manga da camisa larga, amarrotada e puída. de junho! Hoje é seu aniversário... Parabéns!
Depois ofereceu café e água, mas ninguém da equipe Ele olhou sorridente para mim. Não disse
aceitou. Aquilo pareceu constrangedor, mas a atenção nada. Então eu entendi. Estavam todos ali para feste-
foi desviada pela conversa longa e queixosa de jar com Sinval seus anos bem sobrevividos, ainda que
Serafina, a irmã de Sinval, que queixava-se de tudo nós considerássemos os copos mal lavados.
Luciano, um artista
Luciano, o filho de Amparo, tem 18 anos e "não deu para a escola", expressão que popu-
larmente é dita referindo-se a crianças com alguma deficiência intelectual. É alegre, comunica-
tivo e comparece mensalmente com sua mãe ao "grupo da pressão", como acompanhante. "Não
deu para escola", mas sabe fazer de tudo o resto. Está cadastrado no nosso serviço na pasta que
recebe o nobre título, o rótulo de DME (Deficiências Mentais). Sigla que discrimina normais
de anormais. Mas Luciano cozinha, desenha e canta. Ele canta alegre como um passarinho e
adora louvar o Senhor. Depois do Senhor Deus, é ao Cruzeiro (time de futebol mineiro) que
ele ama mais. E depois, ama sua mãe, seu pai, seu irmão e a Valéria, sua agente de saúde.
Luciano entrou, recentemente, junto com sua mãe, para uma igreja pentecostal. A pastora lhes
garantiu que não havia proibição por eles serem católicos apostólicos, batizados e devotos de
Nossa Senhora da Conceição. O importante é louvar o Senhor. Levar uma vida direita. Fazer o
bem. A igreja tem um grupo de jovens que se reúne os fins de semana para jogar futebol.
Luciano é capitão do time. Capitão e também regente do coral da sua nova igreja. Sua mãe nos
conta que aos domingos ele se ajoelha no chão com fervor e ora com toda a sua fé, com toda
a força de suas palavras. Em sua oração ele pede por nós, seus amigos do posto. Especialmente Valéria.
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MINI - CONTOS
Parte II - O adoecer
Esmeralda e Miúda
Esmeralda vai morrer em breve. O câncer lescente, Miúda.
avança implacável. Da mama para o abdome, daí Não se entende
para o reto numa feia fístula. Emagrecida, caque- porque. O banhei-
xiada, consumida. Mas os olhos vivos e brilhantes ro é uma caixa de
estão atentos ao mundo. Pode-se ver ali uma clara madeira com um
consciência de tudo, embora o corpo esteja se cano no alto, o
decompondo em vida. chuveiro. Panos,
Veio do interior para o tratamento, mas já papelões e plásti-
chegou tarde. A filha, Bila, mora num barraco cos forram as pare-
muito pequeno e precário, no meio de uma íngre- des. Comem min-
me encosta, num beco escorregadio por esgoto e gaus suspeitos. No
fezes (humanas, caninas, felinas e outras piores). É quarto único, para
muito difícil descer, não temos onde apoiar as cinco adultos e três crianças, há uma cama de casal
mãos carregadas de objetos. Os pés deslizam nos e um beliche. Esmeralda está deitada na cama de
tijolos si-nuosos. Lugar perigoso. Marginais. Só casal, moribunda. Numa pequena estante, os obje-
com o "sinal livre" deles é que podemos descer. O tos pessoais e roupas de todos. Retratos dos fami-
pequeno portão de madeira remendada está fecha- liares, recortes de revista com faces de artistas cola-
do. Um cachorro pestilento late atrevido. As crian- dos nas paredes, pequenos bibelôs, bichos de pelú-
ças estão sentadas no chão com roupas mínimas cia fazem a decoração. Limpos e sujos. Tudo no
amarrotadas, sujas e cheirando a urina. Ao redor, chão, esparramado, o que não coube na estante.
suas fezes se misturam às fezes dos cães. Duas Em meio à sujeira, brilham os olhos de Esmeralda
mulheres jovens estão a cozinhar e tossem com e a juventude de sua enfermeira dedicada, a Miúda.
tanta fumaça, num fogão de lenha improvisado no Miúda é cândida e suave. Passou a namorar o neto
chão. A amiga veio morar na casa, com a filha ado- de Esmeralda e tomou-a como avó.
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A rádio capeta
Bituca ouve vozes. Chama-me no canto e diz coxa esquerda, já me contara o caso mais de trinta
que a rádio Capeta fica enviando mensagens do mal vezes), senhora sabe, já te contei. Quebrei ela há
a toda hora para sua cabeça. Fala-lhe no ouvido. muuuuuito tempo, oh, faz mais de quinze anos.
- É verdade, dotora! Uma caixa preta, escon- Foi ... (e inicia um outro caso). Eles botaram para-
dida na casa do vizinho, é a antena que recebe as fuso, mas ficou mais curta e agora dói. A senhora
mensagens da rádio Capeta. O mal, dotora. O tem que passar os cumprimidos de insulina pra eu
MAL! Acredita, dotora? Mas Jesus tem meu cora- tomar no fim de semana, que a mulher não conse-
ção. Quanto mais alto a rádio fala, mais alto eu gue aplicar ne mim, não. Viu, dotora, os cumpri-
rezo. Eles querem me pegar, mas Jesus não deixa. midos de insulina resolve, adianta sim. Eu já usei
- Eu acredito, Bituca. Já lhe disse que acredi- deles, Dr. Juvenal passava. Não sei o que é agora
to. Eu quero saber o que é que eu vou fazer com que ela tá subindo tanto. Eu num como nada.
essa sua glicemia: 500!!! Nada mesmo. Pergunta pra mulher. É um tiqui-
- A insulina, dotora. É difícil no fim de nho só de comida. Eu num tô entendendo. É coisa
sema-na. O posto tá fechado. Tem que ir lá embai- do capeta. Eles fica falando no meu ouvido e a gli-
xo, no centro. Eu manco desta perna (aponta a cose sobe. Pois eu num era assim!
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O terrível ácaro
Clarinda recebeu uma receita enorme, extre- lias de risco que acompa-nho. Marido e esposa são
mamente bem escrita, contendo toda a medicação alcoólatras e estão desempregados há meses. O
a ser usada e as medidas ambientais a serem segui- esposo foi atendido recentemente com suspeita de
das. Uma lista meticulosa de tudo o que ela deve- hanseníase, em propedêutica para neurite do braço
ria tirar de casa. A sua criança, habitualmente direito. Eles têm três crianças menores de cinco
atendida no PSF, havia precisado de atendimento anos, em acompanhamento devido à desnutrição de
no final de semana e o pediatra da urgência o fez. terceiro grau persistente. Descobrimos que trocavam
Por acaso, era um profissional especializado em o leite distribuído pelo programa governamental de
asma, que entrava sempre em conflito com os combate à desnutrição e a farinha enriquecida por
médicos do PSF, por considerar nossa abordagem cachaça e cigarros. Moram numa habitação precá-
muito superficial. Desenhou um ácaro no alto da ria de dois cômodos e puxam a luz de uma vizinha,
página e circulou-o para Clarinda entender um vulgo "gato", numa área das mais perigosas da
melhor o bicho; e disse que aquele era o causador favela, onde a agente comunitária recebe o sinal se
da chieira, terrível inimigo. No dia seguinte, pode entrar ou não para visitas... Clarinda, que já
Clarinda me espera contrariada na porta da unida- estava em uso de Triptanol e Diazepam, agora tem
de. Está extremamente preocupada com sua filhi- dificuldades para dormir. Não consegue parar de
nha e desapontada comigo, porque nunca expli- pensar no terrível ácaro que lhe infecta a casa e
quei a ela que aquele bicho era o culpado. Além ameaça a saúde dos seus pequenos. Para esquecer, é
do mais, não podia tirar de casa tudo o que a melhor tomar uma dose.
outra doutora mandara afinal não tem aquelas coi-
sas de tapete, cortina, bicho de pelúcia, etc. O
sabão em pó também não tem jeito de trocar. Os
gatos e cães são dos vi-zinhos, entram e saem do
barraco quando querem, não há cerca ou portão
sem buracos na favela. A família está entre as famí-
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- Eu vou ensinar primeiro a benzeção de quebranto e mau olhado, viu? Depois vem a
de espinhela caída, a de cobreiro e a de carne quebrada, tá?
Segundo Geralda, o cobreiro é mais complicado, pois ele tem rabo e cabeça, assim a gente tem que pegar
uma faca ou outra ferramenta que corta e colocar em cima do cobreiro e dizer, à medida que corta o cobrei-
ro fora: Meio, rabo, cabeça ...
Iracema de Almeida Benevides Médica com formação em Saúde da Família, Homeopatia e Medicina Antroposófica. Atualmente é assessora
técnica da Coordenação de Acompanhamento e Avaliação da Atenção Básica, do Ministério da Saúde.
E-mail: iavida@uol.com.br
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Outras Palavras
A Educação
pela Pedra
Uma educação pela pedra: por lições;
Para aprender da pedra, freqüentá-la;
Captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
Ao que flui e a fluir, a ser maleada;
A de poética, sua carnadura concreta;
A de economia, seu adensar-se compacta:
Lições da pedra (de fora para dentro,
Cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
E se lecionasse, não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
Uma pedra de nascença, entranha a alma.
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outraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavra-
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Sorriso
A alegria é a prova dos
nove (Torquato Neto)
Nós queremos
que o mundo
seja menos sério
(S. Rajneesh)
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E G aleano duardo
O menino não conhecia o mar. O pai levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o
Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai
enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na fren-
te de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou
mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
- Me ajuda a olhar!
Eduardo GaIeano, O Livro dos Abraços. SP, L&PM, 1991
Ilustração: Lin
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outraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavr
„ Paulo
Freire
“Não é no silêncio que os homens se fazem,
mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão.”
Frases do livro Pedagogia do Oprimido. 31. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001
Ilustração: Mascaro
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Couve
Nome científico: Brassica oleracea, L.
Parte a ser usada: folhas e talos.
Composição química: sais minerais, vitaminas
(A, B1 e B2), proteínas, cálcio, ferro, niacina, enxofre, Gastrite e/ou úlcera gastro-duodenal liquidificar
fósforo, sódio, cloro, magnésio e zinco. uma folha grande de couve com meio copo d'água
Propriedades terapêuticas: anti-escorbútico, vermí- mineral e 1 colher de sopa de mel de abelha; tomar
fugo, anti-úlceras, antitussígeno, anti-reumático, anti- entre as refeições.
inflamatório, antidiarréico. Nota: não usar folhas de procedência desconhecida,
Toxidade: desconhecida. para evitar intoxicação por agrotóxico.
Modo de usar/como preparar/dose: o cozimento Fonte: Introdução ao Uso de Fitoterápicos nas
das folhas é bom para surdez, e por ter alto conteú- Patologias de APS, Dr. Celerino Carriconde, publica-
do de fibras, combate a prisão de ventre. ção do Centro Nordestino de Medicina Popular.
Suco de hortaliças
2 folhas de alface, 1 folha de couve, ½ pepino
1 tomate médio, ½ pimentão vermelho
½ copo de água, suco de 1 limão
Lave bem as hortaliças, pique-as e bata tudo no liqui-
dificador, junto com a água e o suco de limão. Sirva
antes das refeições.
Quebra-pedra
Nome científico: Phyllantus amarus Schum. et Toma-se, em todos os casos, o cozimento na dose de
Thorn. duas a três xícaras ao dia, intercalando-se uma sema-
Parte a ser usada: a planta toda. na de repouso, após cada três semanas de tratamento.
Composição química: flavonóides, tanino, alcalói- Nota: só tome se tiver feito a ultra-sonografia que
des, cumarinas, lignanas. comprove que as pedras são pequenas, pois esta plan-
Propriedades terapêuticas: antiespasmódica, rela- ta não quebra as pedras, só previne e dilata o ureter
xante muscular (parece ser específico para os urete- para as pedrinhas pequenas descerem.
res), diurético leve, aumenta a eliminação de ácido No caso de hepatite B, o pó ou extrato da planta deve
úrico pela urina, antilitiásico renal (por facilitar a eli- ser usado dentro de cápsulas especialmente prepara-
minação dos cálculos renais pequenos que são expeli- das para absorção entérica, pois princípios antivirais
dos sem dor), comprovada atividade contra o vírus da perdem o efeito no estômago.
hepatite B. Fonte: Introdução ao Uso de Fitoterápicos nas
Toxicidade: usada na Polinésia como veneno para os Patologias de APS, Dr. Celerino Carriconde, publica-
peixes; no Brasil, usado pelas mulheres como aborti- ção do Centro Nordestino de Medicina Popular.
vo. Não encontramos estudos sobre DL 50.
Modo de usar/como preparar/dose: usa-se a plan-
ta toda, triturada, na forma de cozimento, preparado
com 30 a 40g da planta fresca ou 10 a 20g da planta
seca em um litro de água, fervendo-se por dez minu-
tos. A planta seca, triturada e peneirada pode ser
guardada em frascos bem fechados por um período
de três meses, para preparação diária do cozimento,
na proporção de uma colher das de sopa em 200cc de
água, para ser tomado duas vezes no mesmo dia.
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Roda de conversa
Fotos: Arquivo/REDE
A
Rede de Intercâmbio de Tecnologias Alternativas (REDE), é uma organização não-governamen-
tal, sem fins lucrativos, criada em 1986. Tem como objetivo apoiar iniciativas locais inovadoras
que contribuam para um desenvolvimento sustentável de comunidades rurais e urbanas. A
REDE foi criada por lideranças comunitárias, técnicos, professores e agentes sociais, que lutam pela me-
lhoria da qualidade de vida das populações excluídas no campo e na cidade. Priorizar intervenções
junto a comunidades de agricultores familiares de Minas Gerais e comunidades urbanas da periferia de
Belo Horizonte, articulando os problemas e soluções locais com questões globais, é uma das principais
estratégias institucionais.
Conversamos com Rodica Weitzman, assessora em Segurança Alimentar da REDE, onde atua no
Programa de Desenvolvimento Sócio-Ambiental de Comunidades Urbanas. Os principais temas traba-
lhados pela REDE são os seguintes: agricultura familiar e urbana, agroecologia, meio ambiente, relações
de gênero, segurança alimentar e nutricional, plantas medicinais, reaproveitamento e reciclagem de lixo.
"O grande eixo do nosso trabalho é a assessoria aos grupos populares, aos grupos comunitários; a for-
mação de redes nas comunidades urbanas e rurais, ou seja, o fortalecimento da organização comunitá-
ria é a prio-ridade da REDE hoje. É a partir dessa organização, que a gente acredita ser possível trans-
formar a reali-dade local e intervir nas políticas públicas", afirma a assessora.
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CES - Você sabe como começou esse trabalho? alimentar, é uma questão fundamental para os
Qual é a origem dele? movimentos estarem se consolidando e lutando
para que seja uma realidade diferente.
Rodica - No Estado de Minas Gerais, existia a neces-
sidade de se fortalecer um movimento contra, esse CES - Mas começou em que época?
contraponto à Revolução Verde, ao uso de agrotóxi-
cos que era muito pesado nacionalmente. Come- Rodica - Desculpe, em 1986, por volta dessa época
çamos com essa preocupação por parte dos profes- começou esse movimento. E, a partir de 1990, a
sores, estudantes, pesquisadores, sindicatos. Aí REDE, que tinha se empenhado mais nas questões
começou um movimento em torno da questão da de articulação das experiências dentro do estado,
ecologia, a construção de um movimento de planta- começou a se preocupar com sua própria interven-
ções que não usassem adubos químicos, que pudes- ção e em fazer intervenções locais, tanto na área
sem não depender desses adubos e fazer uma produ- rural como urbana. Na área urbana, começou uma
ção saudável de alimentos. experiência que se chama CEVAE, que são os
A REDE, que é a entidade onde eu trabalho, Centros de Vivência Agroecológica. Foram criados
teve um papel muito importante na articulação des- cinco centros CEVAE em várias partes da cidade, em
sas experiências, na formação de Centros de convênio com a prefeitura, aliás, com a Secretaria de
Agricultura Alternativa no estado. Foram fundados Abastecimento e com a Secretaria de Meio
vários centros de agricultura alternativa e foi forma- Ambiente de Belo Horizonte. Foram experiências
da a Rede PTA, uma rede entre várias entidades que pilotos para tentar construir uma política pública
trabalham com ecologia e, hoje, eles transformaram- diferente que pudesse pensar na conservação
se nessa referência, até nacionalmente, e num movi- ambiental, na produção saudável dos alimentos.
mento muito forte em relação à ecologia. Esse convênio com a Prefeitura durou pouco
Hoje, a REDE também tem investido muito tempo, não teve como continuar por vários moti-
na questão da segurança alimentar e nutricional, vos, mas foi uma experiência muito inovadora de
que é um tema fundamental. Como a gente pode política pública que existia desde 1990. Tem dois
consolidar essas ações? Por exemplo, uma feira de anos que a gente rompeu esse convênio. Hoje, a
segurança alimentar, o Conselho Estadual de REDE ainda continua com seu trabalho na área
Segurança Alimentar, especialmente porque, na con- urbana, sem tanto apoio da prefeitura, mas a partir
juntura política, a questão da fome, da insegurança de parcerias locais.
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ONG para que se sustentem. Claro que podemos regiões da cidade e escolhemos locais que a gente
elaborar projetos e captar recursos, mas isso não é considerava mais precários em nível de saúde ou
algo permanente. Temos que pensar como esses gru- onde já existiam iniciativas de organização. Esses
pos vão se sustentar, essa é uma discussão recente. locais são chamados de Núcleos de Desenvolvi-
Uma idéia que tem surgido é como que esses grupos mento Local. Neles a gente escolheu dez famílias
podem trocar seus produtos e serviços entre si. para serem trabalhadas e para fazerem um trabalho
Como criar uma rede local de troca de produtos e educativo. O alvo dessas ações é as famílias, mas
serviços? Esse ano a gente começou a pensar em fei- para puxar as ações a gente pensou na consolidação
ras locais de troca, em estar efetivando isso mais de uma equipe de educadores e assessores comunitá-
entre os grupos e moradores das comunidades locais rios. Aí está o grande foco do trabalho, em vez de os
para que eles comecem a pensar isso em nível local. técnicos das entidades desempenharem essas ações,
Outra questão que temos como acontecia antes, na própria REDE tinha um
As lideranças locais trabalhado muito são os atendi- técnico local que fazia isso, passamos a considerar
mentos públicos comunitários, ou que a referência deve ser as lideranças locais. Eles são
até já têm um certo seja, os serviços que esses grupos capacitados não só nos conteúdos (já possuem esses
desempenham na comunidade. conteúdos por terem prática); trata-se de um traba-
conhecimento, mas
Por exemplo, um grupo que lho de resgate do conhecimento que já acumularam
precisam aprimorá-lo desempenha a limpeza do bairro, ao longo dos anos, em relação à medicina caseira, às
que é um serviço público, infeliz- plantas medicinais, ao lixo, à agricultura. Mais que
e aprofundá-lo. mente não é visto assim. Muitos um mero resgate, é uma complementação do conhe-
Como aplicar aquele desses agentes de desenvolvimento cimento científico. Portanto, essa capacitação é uma
local, que a REDE capacita, são troca, mas também investimos na capacitação nas
conhecimento, como quase iguais aos Agentes metodologias „alternativas‰, participativas, porque
repassá-lo, é a gran- Comunitários de Saúde, estão os grupos comunitários não têm ainda um acúmu-
fazendo um trabalho público de lo nesse conteúdo. A grande dificuldade dos grupos
de dificuldade. intervenção nas facções locais de comunitários é o como trabalhar, inclusive, a gente
fortalecimento da organização fez um diagnóstico numa comunidade local e viu
comunitária. Portanto, eles deviam ser reconhecidos que se pode ter grandes deficiências nesse aspecto.
por isso, mas infelizmente o Estado não reconhece As lideranças locais até já têm um certo co-
essa iniciativa. Estamos tentando trazer essa discus- nhecimento, mas precisam aprimorá-lo e aprofundá-
são para as políticas públicas, ver como é que esses lo. Como aplicar aquele conhecimento, como re-
agentes de desenvolvimento local podem ser reco- passá-lo, é a grande dificuldade. E aí, a Rede tem
nhecidos como interventores públicos comunitá- investido muito em trabalhar conceitos básicos de
rios. educação popular com essas lideranças, para que
consigam, sem a necessidade da presença do técnico
CES - Qual o enfoque metodológico do traba- local, elas mesmas estarem puxando as ações locais.
lho de vocês, no sentido de se caracterizar A gente trabalha principalmente com PMAS,
enquanto trabalho educativo? ou seja, com Planejamento, Monitoramento,
Avaliação e Sistematização. No planejamento, traba-
Rodica – Hoje, a REDE trabalha com sessenta lhamos com várias metodologias participativas. No
famílias em um projeto de formação em segurança monitoramento, do mesmo jeito, a gente faz um
alimentar e agricultura urbana. São trabalhadas duas plano de monitoramento participativo. Os indica-
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dores de mudanças são colocados pela própria elas não são quem
comunidade, pelas próprias lideranças e as famílias coordenam as ações
envolvidas. Quais são os indicadores de mudanças locais, são ainda os
ao longo de um tempo nesse projeto? O que é que técnicos profissionais
eles acham que vai mostrar as mudanças? Isso é que dão direção, e o
muito importante, e outra coisa é diagnosticar a rea- nosso trabalho real-
lidade local. Então, a partir desse planejamento se mente mudou esse
tem um diagnóstico participativo, através de meto- paradigma. A gente
dologias participativas. A gente usa muitas coisas faz planejamento com
lúdicas, desenhos, caminhadas, identificação de todo mundo junto e
plantas medicinais. Usamos uma dinâmica para nós somos assessores,
desenhar os quintais das pessoas, o que tem dentro isso é muito claro, os
do quintal, como poderia utilizar esse espaço de profissionais que têm
plantação, ou seja, inúmeros tipos de dinâmicas e uma formação acadê-
brincadeiras que ajudam a levantar informações e mica são assessores das
que envolvem a população local naquela metodolo- lideranças. Isso ajudou
gia. Fica um processo realmente participativo que muito a mudar o para-
envolve todo mundo. Esses são alguns exemplos de digma que é dominan-
como a gente trabalha, mas o mais importante que te na sociedade.
eu quero destacar é que as próprias lideranças, a par- Outro destaque é o próprio resultado do tra-
tir dessa capacitação que é feita, elas mesmas é que balho com as famílias. São sessenta famílias que são
fazem as ações locais, que coordenam as oficinas, trabalhadas nesse projeto de formação e vemos que
coordenam os diagnósticos, nós apenas damos uma essas famílias estão colhendo alimentos dos pró-
assessoria a essas lideranças. prios quintais. Diminuiu a dependência do super-
mercado, a dependência dos alimentos industrializa-
CES - Em relação aos resultados, que sinais no dos. Elas têm conseguido ver o valor do próprio
cotidiano das comunidades podem ser apon- quintal, da própria produção, que é possível fazer na
tados como resultados do trabalho educativo? sua própria casa e consumir a partir do seu próprio
Você poderia citar alguns? quintal. Isso foi um grande resultado, e a produção
dos remédios caseiros também. A gente tem em cada
Rodica - Em primeiro lugar, o protagonismo dessas núcleo uma farmácia caseira consolidada. Nessas
lideranças. Tem uma que ainda nem sabe ler e escre- farmácias, há mais elementos dos remédios caseiros
ver, mas consegue ser uma grande referência, isso que são produzidos para essas famílias, elas se orga-
para ela foi a grande conquista do trabalho, sentir nizaram enquanto grupos. Outra grande conquista
que mesmo com esse impedimento que existia, não foi a diminuição do lixo, o reaproveitamento desse
significava que ela não tinha inteligência, que não lixo na plantação para cercar os quintais. O uso de
tinha intuição suficiente para tocar um trabalho garrafas pet para os canteiros, por exemplo, é uma
educativo. Esse sentimento de ser capaz é o grande coisa muito interessante que aconteceu.
resultado do trabalho. Isso também tem muito a ver
com o fato de que a gente deu muito espaço para CES - Partindo para uma visão de futuro, o que
essas lideranças. É muito comum nesses projetos você veria como limites e potencialidades desse
sociais a gente achar importante capacitá-las, mas programa?
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Rodica - Essa questão de como influenciar a políti- trá-los‰. A partir daí, a REDE investiu na capacita-
ca pública é o nosso grande desafio hoje. A gente ção das lideranças e nos registros de sistematização
tem uma experiência local com sessenta famílias em participativa. Eles que registram, que sistematizam
duas regiões da periferia de Belo Horizonte, englo- os resultados da forma deles, de uma forma criativa.
bando uma equipe de assessores comunitários que A gente acha que é um vínculo muito efetivo para
são nove pessoas, ou seja, o projeto é muito micro, alcançar a política pública, porque, quando você
apenas consegue uma escala muito pequena. Para a gera algum produto, é outra história, mas precisa-
política pública, a mentalidade é uma quantidade mos aprimorar isso.
muito macro, portanto, como a gente pode transpor
uma lógica de um projeto que é desenvolvido num CES - Vocês já estão trabalhando a visibilidade
nível micro para uma lógica macro? Quando o do projeto no processamento e editoração desse
poder público entra em diálogo com as ONGs, com material?
os grupos comunitários, a lógica é essa. Como vai
ser? Qual é a receita? Como a gente vai fazer isso Rodica - Exato, mas muitas vezes só pensamos na
com uma população de sessenta mil pessoas? Essa é visibilidade, esquecendo as etapas anteriores, que são
uma dificuldade para as ONGs, porque sabemos da o registro e a sistematização. Por isso falei que o
qualidade das nossas experiências, ou seja, não nos grande eixo do nosso trabalho é o sistema de PMAS.
preocupamos com a quantidade, mas com a qualida- A ONG precisa ter isso claro, interligar uma coisa
de da intervenção educativa. É muito difícil a gente com outra, ou seja, não adianta só levantar as poten-
pensar em transpor isso para uma escala maior, esse cialidades e problemas, fazer um diagnóstico bem
é um dos enormes desafios. feito, tem que monitorar os resultados, os indicado-
Outra coisa é como registrar e sistematizar res, tem que sistematizar esses resultados e divulgá-
essas experiências que a gente desenvolve, se não los, é um sistema de funcionamento. Hoje, a REDE
temos essa cultura. Hoje, a REDE investe muito enxerga assim, que são etapas interligadas e estamos
nisso com os próprios educadores e assessores comu- tentando aprimorar esse sistema para que a divulga-
nitários. Antes era uma coisa que os técnicos faziam ção seja bem feita.
e os próprios grupos começaram a falar que que- Se não tem um processo eficiente de sistema-
riam saber os resultados dos trabalhos: „nós quere- tização dos trabalhos, não se consegue divulgar nada
mos saber se existiram esses resultados e poder mos- com qualidade. Nosso grande desafio é divulgar,
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mas mostrar a sutileza desse trabalho, a qualidade e vemos que muitos compromissos não foram cum-
com que é feito. A gente sabe que é sutil, tem muito pridos. Eu acho que é muito difícil governar, são
detalhe, tem muita coisa que tem que ser divulgada. muitos interesses em jogo, mas, vou dar um exem-
¤s vezes, quando você faz uma divulgação fica plo concreto, a questão da política de segurança ali-
muito vazio, passa por cima dos detalhes. Esse é o mentar que está muito ligada a ANEPS, tem que
grande desafio, como fazer justiça à subjetividade lembrar das articulações já existentes. A luta por
que é levantada nesse trabalho? segurança alimentar é uma luta muito forte nesse
Finalmente, queria colocar a questão da susten- país e que está ligadíssima à questão
tabilidade. A sustentabilidade é um grande desafio e, da saúde, não podemos deixar de
A luta por segu-
em relação a todos os trabalhos que realizamos, porque fazer essa articulação. Em Minas
se a gente acredita na educação popular tem que acredi- Gerais, pelo menos, essa luta é muito rança alimentar é
tar no protagonismo dos atores locais, que eles têm que forte, existe o Fórum Mundial de
fazer o trabalho educativo. Os técnicos profissionais Segurança Alimentar que é fortíssi-
uma luta muito
têm seu lugar importante, mas é de assessoria, quem mo, composto pelos movimentos forte neste país e
tem que ser referência são as lideranças locais, porque que trabalham com segurança ali-
queremos criar educadores populares que sejam produ- mentar em todo o estado. Mas aí que está ligadíssi-
zidos nas próprias comunidades. Por isso, eles também chega o programa Fome Zero e não ma à questão da
têm que ser remunerados por esse trabalho, o que é contempla, não considera as instân-
outro grande desafio. A gente tem hoje, por exemplo, cias políticas que já estavam sendo saúde, não
uma política de bolsas de aprendizado para os educa- construídas nos estados, simplesmen- podemos deixar
dores e assessores, mas sofremos muito para elaborar te cria uma outra estrutura que é
projetos que justifiquem pagar essas bolsas e não pode- realmente uma sobreposição de de fazer essa
mos depender das agências de cooperação para isso. ações. Não tinha que ter sido assim, articulação.
Quando um projeto está para acabar, fica aquela angús- poderia ter somado com o que já
tia, porque não é uma coisa constante. Por isso, insisto existia para se fortalecer.
na questão do Estado, se a gente não entra junto com Hoje, esse movimento popular em torno da
o Estado para pensar políticas de sustentabilidade des- segurança alimentar e nutricional está tentando dia-
ses projetos de desenvolvimento local, a gente não sai logar com o Programa Alimentar, para que possa-
do lugar. O Estado tem programas belíssimos no papel, mos conseguir fazer um trabalho conjunto, mais
por exemplo, o Programa Saúde da Família. Por que os integrado, porém é muito difícil. Essa foi uma gran-
educadores populares que as ONGs estão formando de decepção para os movimentos populares, pois
não podem ser considerados como protagonistas nesses quando Lula colocou uma grande bandeira escrito
programas? E as metodologias que a gente usa, porque „combate à fome, segurança alimentar‰, a gente
não são contempladas nos desenhos desses programas tinha a expectativa de qualificar mais ainda essas
governamentais? instâncias que já existiam, mas, pelo contrário, ele
desvalorizou esses espaços e criou outros.
CES - Na sua avaliação, você acha que essa Estou dando um exemplo, mas existem
mudança de governo favorece a isso? outros onde aconteceu a mesma coisa. Já havia
uma construção popular e em vez de somar com o
Rodica - Eu acho que favorece, mas claro que tem que já existia, se cria outras instâncias, outros pro-
sido um pouco desanimador para todos nós, porque gramas, sem considerá-las.
houve muita expectativa em torno do governo Lula
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CES – Fale um pouco sobre você, sua forma- com isso, buscar a valorização do sujeito e o que
ção, sua idade, você é casada, tem filhos? vem de dentro. Por isso, acho que o trabalho com
educação popular e saúde tem esse contingente.
Rodica - Eu sou socióloga. Minha formação é em Tem que se quebrar esse paradigma de que o outro
Sociologia, mas me especializei na questão das rela- é que sabe, essa questão do médico, do professor.
ções sociais de gênero. Eu tenho 31 anos de idade, No sistema educacional nutricional, a referência é
sou educadora popular. Na minha formação acadê- sempre essas figuras e, nesse trabalho de educação
mica, todos os meus trabalhos foram no campo da popular a gente quebra essas referências, tenta
educação e muito próximos dos grupos de mulhe- construir educadores populares que sejam um
res. Como eu falei, minha história é muito com o coletivo, um grupo que pode educar através da
movimento feminista, com movimentos de mulhe- troca de conhecimentos e práticas. Então, já que-
res, só hoje que eu estou trabalhando numa ONG bra um pouco o paradigma dominante. A mesma
mais ambientalista, como a Rede de Intercâmbio, e coisa é com a saúde, acreditamos que as referências
tentando trazer essa reflexão de gênero para dentro são quem praticam isso nas comunidades, que não
desse espaço misto, que antes não assumia muito sejam só os médicos que têm esse conhecimento.
essa discussão, que hoje estamos conseguindo fazer. Eu diria que essa é uma grande crença na
E não sou casada e também não tenho filhos. valorização pessoal, na busca pessoal, na transfor-
mação pessoal e, a partir disso, dessa descoberta de
CES - Você é americana? Está que se é capaz de curar, que se é capaz de ser lide-
É, mas uma coisa no Brasil desde quando? rança, de puxar e coordenar alguma ação local,
que se vai ampliando isso para o coletivo, para a
que os movimentos Rodica - Sim. Estou no Brasil há sociedade. Esse que é o nosso trabalho, partir do
sociais ainda não seis anos. Eu trabalhava em outros indivíduo para outros grupos.
países da América Latina antes de vir
conseguiram para cá, morei um tempo no CES - Esse diálogo entre a educação popular
aprofundar é essa México, em Honduras, na e a saúde permite a gente mergulhar num
Colômbia. Eu trabalhava com um poço tão bonito que é a própria religiosidade
questão religiosa. movimento internacional de mulhe- popular, onde existe um campo muito bonito,
É tão forte na res que se chama Movimento do muito rico de coisas e possibilidades de
Graal, que significa „cale-se‰. É um encon trar pes soas mara vi lho sas em cada
população. movimento muito forte que existe lugarzinho, às vezes, que você...
em diversos países e a gente fazia essa
troca de experiências, indo para um outro país para Rodica - É, mas uma coisa que os movimentos
aprender com aquela experiência e poder contribuir tam- sociais ainda não conseguiram aprofundar é essa
bém. Quando eu vim para o Brasil, vim através desse questão religiosa. É tão forte na população. Com
movimento. O Graal trabalha muito os valores huma- o que é que a gente está competindo, enquanto
nos, a questão da espiritualidade, é muito bonito. movimento social? Estamos, por exemplo, mobili-
zando a população para uma reunião ou algum
CES - A sua motivação para esse trabalho encontro e a grande concorrência nossa é a missa,
seria uma motivação religiosa? é o culto que está acontecendo, ou seja, em vez de
competir , a gente tem que aprender com as reli-
Rodica - Teria a base espiritual. Acho que essa giões para ter estratégias mais criativas de mobili-
questão de trabalhar com saúde tem muito a ver zação social. Se eles estão deixando de ir em algu-
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Roteiro de Leitura
Intercâmbio Literário
Pretendemos a cada edição apresentar algumas dicas de leitura e, para isso, queremos
provocar você, leitor(a), a contribuir com este espaço reservado para nos ajudar a com-
preender melhor a educação e a saúde. Vamos criar aqui uma espé cie de feira do livro,
um troca-troca de informações capaz de instigar nossa criatividade e colocá-la, cada vez
mais, a serviço da leitura e da reflexão aprofundada dos temas que se rela cionam com o
nosso fazer educativo. Pág. 152
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Roteiro de leitura
Eymard Mourão Vasconcelos
M
por meio de sua própria
saúde integral. Como encontrar a tota- história de doente (por-
lidade neste momento em que os vários tadora de doença de
fragmentos da medicina, suas subespecialidades, Crohn, já fez mais de 16
se rechearam de conhecimentos importantes e até grandes cirurgias). Para
mirabolantes? Como integrar esta gama de ela, a doença é um
conhecimentos tão ampla que pode estar correla- momento de crise do
cionada a um problema particular? Muitos textos viver que possibilita um
difíceis têm sido escritos sobre esta questão, a par- contato com as dimensões mais primordiais e
tir do conceito de interdisciplinariedade. fundamentais da existência. Cabe ao profissional
Para Rachel, professora da Universidade da de saúde ajudar esse contato, evitando que o
Califórnia, a totalidade está mais próxima da pro- doente, desesperado, desorganize ainda mais seu
fundidade do que da abrangência. Mostra-nos viver, ficando preso em redes de mágoas, baixa-
isto, não por uma discussão teórica cheia de con- estima e confusão de sentimentos. Para isso, pre-
ceitos complexos, mas por meio de pequenas his- cisa saber conduzir a relação para o nebuloso
tórias de sua relação com os pacientes (trabalha núcleo da subjetividade humana, onde as múlti-
no acompanhamento de pacientes graves), com plas facetas da vida se apóiam e são integradas.
seus alunos (profissionais de saúde) e também São os caminhos da espiritualidade na saúde.
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H
cação Popular na atual
to dos serviços de saúde e a vida da popu- conjuntura dos serviços de
lação. Os profissionais de saúde pouco saúde.
conhecem a dinâmica familiar e comunitária de Verificou-se que as
convivência e enfrentamento dos problemas de intensas e freqüentes
saúde. Para eles, as atitudes e falas dos usuários dos manifestações de doenças
serviços parecem desconexas e estranhas. banais no meio popular
Este livro é o resultado de uma pesquisa rea- são, muitas vezes, conseqüências de problemas mais
lizada em um centro de saúde da periferia de Belo profundos na vida familiar, tendendo a se concen-
Horizonte, em que se procurou identificar e enten- trar em famílias que vivem situações especiais de
der os bloqueios e as potencialidades existentes no crise e que são marginalizadas da rotina de atendi-
relacionamento entre os profissionais e a população, mento orientada pela demanda espontânea. Os pro-
evidenciando a forma como as questões culturais, blemas dessas famílias em situação de risco eram
cognitivas e subjetivas dificultam ou dinamizam o muito profundos e complexos para serem curados,
funcionamento dos serviços de saúde. mas não para serem cuidados.
Orientado pelo instrumental da Educação Neste momento em que se expande no Brasil
Popular, procurou mostrar como o fortalecimento o Programa Saúde da Família, os caminhos aponta-
do diálogo e da negociação entre os diversos atores dos podem ser importantes para a reorientação do
profissionais e populares que convivem em um ser- modelo de assistência, de forma a passar a priorizar
viço de saúde é capaz de reorientar a globalidade de ações voltadas para a renovação dos padrões socio-
suas práticas, tornando-as mais integradas à vida culturais e sociopsíquicos que governam a vida coti-
local e mais eficazes. Trata-se, portanto, de uma refle- diana dos cidadãos e dos profissionais de saúde.
xão sobre os caminhos e as possibilidades da Edu-
ste livro trata das das, estão a elaboração pessoal, as narrativas pes-
E estratégias concre-
tas com que pes-
soas, a partir da vivência
soais, os grupos e as associações de ajuda e o supor-
te mútuos, a defesa de direitos, a luta contra o
estigma e a militância social e política. Esse é na
da dor, discriminação e verdade o sentido desta palavra em inglês, o
opressão, podem recons- ÂempowermentÊ, de difícil tradução em português.
truir gradativamente suas O livro se destina então a um amplo leque
vidas, valorizar e trocar suas experiências pessoais de leitores. Possui partes accessíveis ao grande
e coletivas, e mostrar para a sociedade como elas público, com base na experiência cotidiana de
gostariam de ser vistas e tratadas por todos, reafir- vida, mas também contempla as exigências dos
mando um ponto de vista e um poder que só pode profissionais e do leitor universitário ao revisar a
ser defendido e assumido mais efetivamente por experiência histórica e a literatura nacional e, prin-
quem as sofreu na pele. Entre as estratégias indica- cipalmente, internacional sobre o assunto.
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maior articulação brasileira de pesquisado- sadores das ciências humanas, superando a época
o trabalho comunitário
N
e fácil de ler, escrito por uma das
em saúde, os profissionais maiores autoridades brasileiras sobre
lidam cotidianamente com movimentos sociais. Aborda temas
os movimentos sociais, mas pouco como as principais formas de organi-
têm estudado sobre eles, tendo difi- zação popular no Brasil, o caráter
culdade de uma compreensão mais educativo dos movimentos, sua evo-
ampla de seu significado para a lução histórica e a propalada crise
construção de uma sociedade mais atual dos movimentos sociais.
saudável. É um livro bem pequeno
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Pequena Enciclopédia
Dizer a palavra...
No processo educativo, é importante dizer a palavra e a pessoa diz melhor a palavra quando ela dia-
loga, ou seja, fala, escuta e é escutada. Outra condição para que ela diga melhor a palavra é o ato
de compreendê-la, saber o que está dizendo, dizer e trocar esse saber que lhe pertence. Neste espa-
ço trabalharemos alguns verbetes comuns ao universo e ao movimento da educação e saúde, visando
especialmente a criar esse sentimento de pertença. Pág. 157
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Pequena enciclopédia
Maria Alice Pessanha de Carvalho
Ilustração: Mascaro
dência com o conhecimento produzido coleti- mia, toma-se por base os pressupostos que Freire
vamente, com os conteúdos culturalmente (1996) sumarizou em seu livro Pedagogia da
constituídos, com os signos e significados. No Autonomia. Nesta obra, são colocadas de forma
entanto, também é um processo de construção didática as recomendações necessárias ao desen-
e reconstrução, de dependência e independên- volvimento de um ambiente educativo que se
cia em busca do atendimento das necessidades proponha estimulador de processos autônomos
individuais, embora a sua construção possa se , além das demandas direcionadas ao educador.
dar de forma compartilhada. Este autor toma como ponto de partida a postu-
„Ninguém é autônomo primeiro para ra de que a valorização da competência técnico-
depois decidir. A autonomia vai se constituindo científica e o rigor não devem ser menospreza-
na experiência de várias, inúmeras decisões que dos e nem supervalorizados em relação ao amor
vão sendo tomadas‰ (FREIRE, 1996, p. 20). e à afeição, indispensáveis à ação educativa. Esta
relação tem a motivação e o afeto como prática
A autonomia, enquanto amadurecimento do ser pedagógica a ser exercitada na relação de apren-
para si, é processo, vir a ser. Não ocorre em data dizagem, ajudando a construir ambientes favo-
marcada. É nesse sentido que uma pedagogia da ráveis à construção do conhecimento. A autono-
autonomia tem de ser centrada em experiências
mia, portanto, é fruto do desenvolvimento e do
estimuladoras da decisão e da responsabilidade,
vale dizer, em experiências respeitosas da liber-
exercício permanente, a ser conquistado nas
dade (FREIRE, 1996, p. 121). relações de respeito aos diferentes saberes (edu-
cando e educador e a comunidade de aprendiza-
Podemos inferir, portanto, que autono- gem), no rigor metodológico e na reflexão críti-
mia é a capacidade que o sujeito possui em ca sobre a prática, principalmente reflexão sobre
autodeterminar-se, escolher, apropriar-se e como se aprende, quais as dificuldades que
reconstruir o conhecimento produzido cultural- enfrenta, na prática, orientada pela curiosidade
mente em função de suas necessidades e interes- e, na disposição para desenvolver o diálogo e a
ses. Caracteriza-se pela responsabilização, auto- cooperação nos ambientes de educação.
determinação, decisão, auto-avaliação e compro- Maria Alice Pessanha de Carvalho - Mestra em Tecnologia
missos a partir da reflexão de suas próprias expe- Educacional nas Ciências da Saúde, UFRJ. Coordenadora
riências e vivências. Adjunta da Escola de Governo em Saúde: Coordenação de
Para a criação de ambientes educativos Ensino e Formação Profissional / ENSP/FIOCRUZ.
que possibilitem o desenvolvimento da autono- E-mail: alicep@ensp.fiocruz.br
.................. .....................................................................................
REFER¯NCIA
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Petrópolis: Vozes, 1996. Brasília : Cátedra Unesco de EAD, 1997. v. 1. MAN, D. Fried (Org.) . Novos paradigmas,
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FREIRE, P; Pedagogia da autonomia: saberes 2. ed. Mahwah, NJ: Lawrence Eribaum, gem. 3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas,
necessários à prática educativa. São Paulo: Paz 1998. 1998.
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KANT, I. Crítica da Razão Pura. 2. ed. SILVA, B. (Coord.) . Dicionário de Ciências
GADOTTI, M. Escola cidadã. São Paulo: Lisboa : Fund. Calouste Goulbenkian, Sociais. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Cortez, 1992. p.10. 1989. p. 18, par. B XIII. Vargas, 1986.