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MINISTÉRIO DA SAÐDE

Caderno de Educação
Popular e Saúde

Brasília-DF
2007
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MINISTÉRIO DA SAÐDE
Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa
Departamento de Apoio à Gestão Participativa

Caderno de
Educação Popular e
Saúde

Série B. Textos Básicos de Saúde

Brasília-DF
2007
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© 2007 Ministério da Saúde.


Todos os direitos reservados. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e que não seja para a venda ou
qualquer fim comercial.
A responsabilidade pelos direitos autorais de textos e imagens desta obra é da área técnica.
A coleção institucional da Ministério da Saúde pode ser acessada, na íntegra, na Biblioteca Virtual em Saúde do Ministério da Saúde:
http://www.saude.gov.br/bvs

Série B. Textos Básicos de Saúde

Tiragem: 1.a edição - 2007 - 15.000 exemplares

Elaboração, distribuição e informações:


MINISTÉRIO DA SAÐDE
Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa
Departamento de Apoio à Gestão Participativa
Coordenação Geral de Apoio à Educação Popular e à Mobilização Social
Esplanada dos Ministérios, Edifício Sede, Bloco G, 4À andar 422
CEP: 70058-900 - Brasília, DF
Tels.: (61)3315-2676/ 3315-3521
Fax: (61)3322-8377
E-mail: sgep.dagep@saude.gov..br
Homepage: www.saude.gov.br/segep

Equipe Editorial:
Abigail Reis
Ana América Paz
Eymard Mourão Vasconcelos
Gerson Flávio da Silva
João Monteiro
José Ivo dos Santos Pedrosa
Júlia S. N. F. Bucher-Maluschke
Maria Alice Pessanha de Carvalho
Maria Verônica Santa Cruz de Oliveira
Renata Pekelman (organizadora)
Ricardo Burg Ceccim
Ricardo Rodrigues Teixeira
Sonia Acioli
Equipe Técnica:
Antonio Sérgio de Freitas Ferreira
Esdras Daniel dos Santos Pereira
José Flávio Fernandino Maciel
Luciana Ratkiewicz Boeira
Osvaldo Peralta Bonetti

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Ficha Catalográfica

Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa.
Caderno de educação popular e saúde / Ministério da Saúde, Secretariade Gestão Estratégica e Participativa,
Departamento de Apoio à Gestão Participativa. - Brasília: Ministério da Saúde, 2007.
160 p. : il. color. - (Série B. Textos Básicos de Saúde)

ISBN 978-85-334-1413-6

1. Educação em saúde. 2. Política de saúde. 3. Saúde pública. I. Título. II. Série.

NLM WA 590

Catalogação na fonte - Coordenação-Geral de Documentação e Informação - Editora MS - OS 2007/0701

Titulos para indexação:


Em inglês: Handbook of Popular Education and Health
Em espanhol: Cuaderno de la Educación Popular y Salud
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Apresentação
Educação em Saúde é inerente a todas as práticas desenvolvidas no âmbito do SUS. Como prática

A transveral proporciona a articulação entre todos os níveis de gestão do sistema, representando dis-
positivo essencial tanto para formulação da política de saúde de forma compartilhada, como às
ações que acontecem na relação direta dos serviços com os usuários.
Nesse sentido tais práticas devem ser valorizadas e qualificadas a fim de que contribuam cada vez mais
para a afirmação do SUS como a política pública que tem proporcionado maior inclusão social, não
somente por promover a apropriação do significado de saúde enquanto direito por parte da população,
como também pela promoção da cidadania.
É preciso também repensar a Educação em Saúde na perspectiva da participação social, compreendendo
que as verdadeiras práticas educativas somente têm lugar entre sujeitos sociais e, desse modo, deve estar
presente nos processos de educação permanente para o controle social, de mobilização em defesa do SUS
e como tema relevante para os movimentos sociais que lutam em prol de uma vida digna.
O princípio da integralidade do SUS diz respeito tanto à atenção integral em todos os níveis do sistema,
como também à integralidade de saberes, práticas, vivências e espaços de cuidado.
Para tanto torna-se necessário o desenvolvimento de ações de educação em saúde numa perspectiva dialógica,
emancipadora, participativa, criativa e que contribua para a autonomia do usuário, no que diz respeito à
sua condição de sujeito de direitos e autor de sua trajetória de saúde e doença; e autonomia dos profis-
sionais diante da possibilidade de reinventar modos de cuidado mais humanizados, compartilhados e
integrais.
Nesse sentido apresenta-se a educação popular em saúde como portadora da coerência política da participação social
e das possibilidades teóricas e metodológicas para transformar as tradicionais práticas de educação em
saúde em práticas pedagógicas que levem à superação das situações que limitam o viver com o máximo
de qualidade de vida que todos nós merecemos.
O Caderno de Educação Popular e Saúde apresenta um rico material para reflexão, conhecimento e for-
mação, pondo em diálogo significativas experiências de educação popular em saúde vivenciadas por
múltiplos atores sociais.
Enfim, o Caderno representa estratégia fundamental para a qualificação de nossas práticas de educação
em saúde.

Ministério da Saúde
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Convite ao Caderno de Educação


Popular e Saúde
Ministério da Saúde tem tido como pauta prioritária a retomada dos princípios fundamentais do Sistema

O Ðnico de Saúde, promovido a criação de mecanismos e espaços para a gestão participativa e incentivado
a descentralização efetiva e solidária, no sentido de aproximar a saúde tal como é vivida e sentida pela
população, à maneira como se organizam os serviços e o conhecimento que orienta a ação dos profissionais que
compõem o SUS.
O que proporciona tal aproximação é a educação popular em saúde promovendo o diálogo
para a construção da autonomia e emancipação dos grupos populacionais que historicamente foram
excluídos em seu modo de entender a vida, em seus saberes e nas oportunidades de participar dos
rumos da sociedade brasileira.
Trazer a educação popular para um plano institucional significa muito para a construção do SUS que que-
remos em termos de universalidade, integralidade, eqüidade e participação social. Em outras palavras, queremos
que estes princípios orientadores de nossa Reforma Sanitária ganhem sentido no cotidiano da vida de milhões e
milhões de brasileiras e brasileiros.
Colocar a educação popular como uma estratégia política e metodológica na ação do Ministério da Saúde
permite que se trabalhe na perspectiva da integralidade de saberes e de práticas, pois proporciona o encontro com
outros espaços, com outros agentes e com tecnologias que se colocam a favor da vida, da dignidade e do respeito
ao outro. Trabalhar com a educação popular em saúde qualifica a relação entre os cidadãos, definidos constitucio-
nalmente como sujeitos do direito à saúde, pois pauta-se na subjetividade inerente aos seres humanos.
Esperamos que este Caderno de Educação Popular e Saúde seja o primeiro de uma série e que
possa contribuir para fortalecer a vontade política de estar continuamente construindo o SUS com a
participação ativa população e de profissionais comprometidos com a saúde e com a qualidade de
vida da população brasileira.
Novos saberes, novas práticas, novas vivências é o que esperamos proporcionar com esta publicação!
Disponibilizar textos que ajudem a reflexão, que permitem a troca de experiências singulares em sua meto-
dologia e em seus princípios é o que desejamos. Queremos que este Caderno seja um dispositivo para a constru-
ção de conhecimento vivo que possa gerar ações emancipatórias contribuindo para transformar os indivíduos em
atores que se movimentam em busca da alegria e da felicidade.

Antônio Alves de Souza


Secretário de Gestão Estratégica e Participativa - SGEP - Ministério da Saúde
Ana Maria Costa
Diretora do Departamento de Apoio à Gestão Participativa
SGEP - Ministério da Sáude
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Apresentação 10

Sumário Convite ao Caderno de Educação Popular e Saúde


Construindo caminhos
11

Educação Popular no Ministério da Saúde: identificando espaços e referências 13


José Ivo dos Santos Pedrosa
Educação popular: instrumento de gestão participativa dos serviços de saúde 18
Eymard Mourão Vasconcelos

Nossas Fontes
O Paulo da Educação Popular - Eymard Mourão Vasconcelos 31
Pacientes Impacientes: Paulo Freire (apresentação Ricardo Burg Ceccim) 32

Enfoques sobre educação popular e saúde - Eduardo Stotz 46


Construindo a resposta à proposta de educação e saúde - Victor Vicent Valla, Maria 58
Beatriz Guimarães e Alda Lacerda

Diálogos com a experiência


Grupos de mulheres e a elaboração de material educativo - Margarita S. Diercks, Renata 68
Pekelman e Daniela M. Wilhelms
Manual para equipes de saúde:o trabalho educativo nos grupos - Margarita S. 75
Diercks, Renata Pekelman
Como passar da teoria à experiência ou da experiência à teoria: uma lição 87
aprendida - Júlia S.N. F. Bucher
Construção compartilhada do conhecimento: análise da produção de material 91
educativo- Maria Alice Pessanha de Carvalho

Reflexões e vivências
Estórias da educação popular - Ausonia Favorido Donato 103
Em Nazaré, cercada por água...um mergulho e muito aprendizado! - Wilma 106
Suely Batista Pereira
Educação emancipatória, o processo de constituição de sujeitos operativos: 114
alguns conceitos - Eliane Santos Souza
Pensando alto - Ana América Magalhães Ávila Paz 117
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Trocando do “era uma vez...” para o “eu conto” - Ana Guilhermina Reis 120
Você tem sede de quê? Cenas do viver, adoecer morrer, transcender numa favela 122
brasileira - Iracema de Almeida Benevides
Peripécias educativas na rua - Lia Haikal Frota 131

Outras Palavras
A Educação pela Pedra - João Cabral de Melo Neto 133
Projeto sorriso - Samuca, Fred Oliveira e Érico 134
Eduardo Galeano 135
Paulo Freire 136

Entre sementes e raízes


Entre sementes e raízes 138

Roda de conversa
Uma rede em prol de comunidades rurais e urbanas auto-sustentáveis - 142
Gerson Flávio da Silva

Roteiro de leitura
Roteiro de leitura - Eymard Mourão Vasconcelos 152

Pequena enciclopédia
Pequena enciclopédia - Maria Alice Pessanha de Carvalho 157
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Construindo Caminhos

Educação popular no Ministério da Educação popular:


Saúde: identificando espaços e instrumento de gestão participativa
referências dos serviços de saúde
A aproximação de muitos profissionais de saúde
No atual governo federal foram criados espaços com o Movimento da Educação Popular e a luta
institucionais que atuam sob os princípios éticos, dos movimentos sociais pela transformação da
políticos e metodológicos da educação popular e atenção à saúde possibilitaram a incorporação,
saúde. Pág. 13 em muitos serviços de saúde, de formas de
relação com a população bastante participativas e
que rompem com a tradição autoritária domi-
nante. Essas experiências foram importantes para
o delineamento de muitas das propostas mais
avançadas do SUS. Pág. 18
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Educação Popular no Ministério da Saúde:


identificando espaços e referências

José Ivo dos Santos Pedrosa

Ilustração: Lin

partir de 2003, passa a fazer parte da estru-

A tura do Ministério da Saúde uma „área téc-


nica‰ que torna os princípios teóricos,
políticos e metodológicos acumulados e ainda a
construção no campo da Educação Popular em
Saúde, como orientadores de suas ações e de seu
projeto político.
A institucionalização, ou seja, a definição
de um espaço formalizado tem como pressuposto
a participação de sujeitos sociais, ativos, criativos,
transformadores e como missão o apoio ao desen-
volvimento de práticas que fortaleçam a constituição
desses sujeitos. Este processo encontra-se estrita-
mente vinculado ao movimento de reflexão crítica,
ressignificação e (re)descoberta de outras práticas
de educação que aconteciam no âmbito dos
serviços e dos movimentos populares.
Protagonizado por múltiplos atores da
sociedade civil: movimentos sociais, profissionais cujas práticas são consideradas impositivas, pres-
que atuam nos serviços de saúde, professores e critivas de comportamentos „ideais‰ desvinculados
pesquisadores de universidades, educadores popu- da realidade e distantes dos sujeitos sociais, torna-
lares e agentes populares de saúde, o processo de dos objetos passivos das intervenções, na maioria
construção tem como base a reflexão sobre o esta- das vezes, preconceituosas, coercitivas e punitivas.
do da arte das práticas de educação em saúde nos E afirma-se a educação em saúde como
serviços e a formulação de proposições com possi- prática na qual existe a participação ativa da comu-
bilidades de transformar tais práticas. nidade, que proporciona informação, educação
Critica-se a concepção positivista, na qual a sanitária e aperfeiçoa as atitudes indispensáveis
educação em saúde é vista de forma reducionista, para a vida.

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Esta construção, toma como base a Gestão da Educação na Saúde (DEGES), da


conepção de Educação Popular que segundo Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação
Paludo (2001, p. 181) sempre esteve histórica e na Saúde (SGTES).
organicamente vinculada ao movimento de forças Ao fazer parte do DEGES como uma das
políticas e culturais (as organizações populares, os coordenações, ao lado da Coordenação de Ações
agentes e as estruturas/organizações de mediação) Estratégicas e da Coordenação de Ações Técnicas
empenhadas na contrução das condições a Coordenação de Ações Populares, chamada no
humanas imediatas para a elevação da qualidade cotidiano de Coordenação de Educação Popular,
de vida das classes sulbalternas e na construção de passou por momentos de indefinição e incerteza
uma sociedade onde realidade e liberdade fossem a respeito de qual seria seu objeto e qual a relação
cada vez mais concretas... que existiria entre a política de Educação
Vasconcelos (2001) resgata historicidade de Permanente e a Educação Popular em Saúde,
constituição da Educação Popular em saúde no construção política, teórica e conceitual considera-
Brasil a partirt da participação de profissionais de da como „marco orientador inicial‰das ações da
saúde em experiências de educação popular de coordenação.
bases freirianas nos anos 70, inaugurando uma Mas, estas inquietações e indagações con-
ruptura com as práticas tradicionais de educação tribuiram para o esboço inicial de que a
em saúde. Coordenação poderia atuar como dispositivo para
Para o autor, estas práticas que remon- a formação de agentes sociais para atuarem na
tavam à participação de técnicos de saúde inseri- gestão da política pública de saúde e que seu
dos em pequenas comunidades periféricas identifican- campo de atuação se encontrava próximo ao
do lideranças e temas mobilizadores criando cidadão/usuário do SUS.
espaços de debates e apoio às lutas emergentes Não se tinha acúmulo suficiente para
atualmente ganham espaços em instituições definir com clareza qual o significado dessa for-
estando voltadas para a superação do fosso cultural mação mas havia sensibilidade política para perce-
existente, por um lado, entre serviços de saúde, ber que esse era o caminho possível para encon-
organizações não governamentais, saber médico e trar a articulação entre a Educação Popular e a
movimentos sociais e, por outro lado, a dinâmica política de Educação Permanente em Saúde.
do adoecimento e a cura do mundo popular. Enquanto persistiam as „dúvidas produti-
Tais experiências, mesmo convivendo com vas‰, duas estratégias se fizeram presentes e represen-
mudanças organizacionais pouco profundas, con- taram fontes de agendamentos para a construção da
tribuiram para que novos sujeitos e novas temáticas identidade da Coordenação.
oriundas dos movimentos sociais populares fossem A continuidade do Programa de Apoio ao
incorporados aos cenários de construção da política de Fortalecimento do Controle Social no SUS
saúde, tornando evidente a necessidade de fortalecer a (PAFCS), que objetivava a formação de con-
participação desses sujeitos nos cenários políticos de selheiros de sáude. Para o cumprimento das
modo que projetos de proteção à vida (libertadores) metas pré-estabelecidas, a Coordenação assumiu o
possam ser efetivados. papel de articulador do processo de formação,
Sob tais considerações, a Educação Popular negociando estratégias de continuidade, amplian-
no Ministério da Saúde tem seu lugar, inicial- do as vagas para lideranças sociais, dinamizando
mente na Coordenação Geral de Ações Populares metodologias pedagógicas e identificando edu-
de Educação na Saúde, do Departamento de cadores populares.

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Para consolidar o diálogo com os movi- onde se realiza o Encontro entre governo e
mentos sociais o Ministério da Saúde, em parceria sociedade civil qualificando o controle social e
com a Rede de Educação Popular em Saúde, pro- ampliando a gestão participativa no SUS.
moveram encontros estaduais, nos quais foi pos- Os princípios político-pedagógicos da
sível identificar movimentos populares que se Educação Popular são tomados como ferramentas
articulavam na luta por saúde. No final de 2003, de agenciamento para participação em defesa da
realizou-se o Encontro Nacional desses movimen- vida e como estratégias para a mobilização social
tos resultando na criação da Articulação Nacional pelo direito à saúde. O papel agenciador da
de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Educação Popular se faz pelo pinçar e fomentar
Saúde (ANEPS) e desencadeando processos de atitudes de participação no sentido de sempre
articulação em cada estado. mudar realidades, tornando-as vivas, criativas e
A partir de julho de 2005, o Ministério correspondentes ao desejo de uma vida mais feliz.
passa por mudanças em sua gestão resultando na A Educação Popular em Saúde, ao mobi-
criação da Coordenação Geral de Apoio à lizar autonomias individuais e coletivas, abre a
Educação Popular e a Mobilização Social do alteridade entre indivíduos e movimentos na luta
Departamento de Apoio a Gestão Participativa por direitos, contribuindo para a ampliação do
(DAGEP) da Secretaria de Gestão Estratégica e significado dos direitos de cidadania e instituíndo
Participativa (SGEP), mantendo os propósitos e a o crescimento e a mudança na vida cotidiana das
equipe que trabalhava nas SGTES. pessoas.
As duas Secretarias, ambas inexistentes na Problematizando a realidade tomada como
estrutura anterior do Ministério da Saúde, apresen- referência, a Educação Popular mostra-se como
tam projetos políticos que afirma os princípios um dispositivo de crítica social e das situções
constitucionais do SUS, tendo por missão o desen- vivenciadas por indivíduos, grupos e movimentos,
volvimento de ações com potencialidades de permitindo a visão de fragmentos que estavam
provocar mudanças na formação de trabalhadores, invisíveis e ideologias naturalizadas como reali-
na gestão dos sistemas, na organização dos serviços dades favorecendo a liberação de pensamentos e de
, na qualidade da atenção e no controle social. atos ativos de mudança social.
Ao promover espaço institucional para as Permite a produção de sentidos para a vida
ações de Educação Popular e mobilização social, o e engendra a vontade de agir em direção às
Ministério da Saúde assume o compromisso de mudanças que se julgem necessárias. As ações
ampliar e fortalecer a participação da sociedade na pedagógicas constrõem cenários de comunicação
política de saúde desde sua formulação ao exercí- em linguagens diversas, transformando as infor-
cio do controle social. mações em dispositivos para o movimento de
E, neste sentindo, a Educação Popular em construção e criação.
Saúde, localizada na SGTES e atualmente na SGEP A Educação Popular na Saúde implica atos
, representa o lugar, na estrutura do Ministério da pedagógicos que fazem com que as informações
Saúde, que atua em estreita comunicação e diálogo sobre a saúde dos grupos sociais contribuam para
com os movimentos sociais que produzem ações e aumentar a visibilidade sobre sua inserção históri-
práticas populares de saúde; com as iniciativas dos ca, social e política, elevar suas enunciações e
serviços e dos movimentos que resgatam e recriam reivindicações, conhecer territórios de subjetivação
a cultura popular e afirmam suas identidades étni- e projetar caminhos inventivos, prazeirosos e
cas, raciais, de gênero; apoiando espaços públicos inclusivos.

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Considerando que a Educação Popular em O fortalecimento da gestão participativa


Saúde representa o conjunto de conceitos polis- no SUS envolve ações de comunicação e de infor-
sêmicos, que ganham expressão concreta nas mação em saúde como potência para desencadear
ações sociais orientadas pela construção de a mobilização social; fundamentar o relaciona-
correspondência entre as necessidades sociais e a mento com o Ministério Público e com o Poder
configuração de políticas públicas, proporcionan- Legislativo no que tange à saúde e possibilitar a
do lutas coletivas em torno de projetos que levem criação e/ou consolidação de instrumentos para
à autonomia, solidariedade, justiça e eqüidade. a ação participativa dos movimentos sociais e
As ações de Educação Popular em Saúde entidades da sociedade civil.
impulsionam movimentos voltados para a pro- Para consolidar a participacão social no
moção da participação social no processo de for- SUS, a formulação da política de saúde deve
mulação e gestão das políticas públicas de saúde emergir dos espaços das rodas de discussão onde
direcionando-as para o cumprimento efetivo das acontecem aproximações entre a construção da
diretrizes e dos princípios do SUS: universali- gestão descentralizada; o desenvolvimento da
dade, integralidade, eqüidade, descentralização, atenção integral à saúde, entendida como acolhi-
participação e controle social. da e responsabilidade do conjunto integrado do
Ao trabalhar com atores sociais, a sistema de saúde; e o fortalecimento do controle
Educação Popular contribui para a construção de social.
cenários nos quais os movimentos populares pos- Educação Popular como processo e
sam se fazer presentes, apresentando novas relações pedagógicas emergentes de cenários e
temáticas, experiências e desejos. vivências de aprendizagens que articulam as sub-
Ao colocar-se como referência no campo jetividades coletivas e as relações de interação que
de práticas dos profissionais de saúde, a Educação acontecem nos movimentos sociais, implicando
Popular contribui para a formação de profissionais na aproximação entre agentes formais de saúde e
comprometidos com as questões sociais, não população, diminuindo a distância entre a
somente pela mudança de atitudes e comporta- assistência que representa intervenção pontual
mentos, mas, principalmente, pelo engajamento sobre a doença em um tempo e espaço determi-
ativo nas lutas por direitos e comprometimentos nados, e o cuidado, que significa o estabelecimen-
com posturas acolhedoras e de construção da to de relações intersubjetivas em tempo contínuo
autonomia das pessoas e dos grupos sociais. e espaço de negociação e inclusão dos saberes, dos
Estes princípios trazem maior densidade desejos e das necessidades do outro.
ao conceito de gestão participativa como compar- A reflexão crítica, o diálogo e a construção
tilhamento do poder nos processos que constrõem e compartilhada do conhecimento representam fer-
decidem as formas de enfrentamento aos determi- ramentas que propiciam o encontro entre a cul-
nantes e condicionantes da saúde, bem como a tura popular e a científica. Aqui é importante a
presença do conjunto dos atores que atuam no disponibilidade de escuta e fala dos atores que se
campo da saúde. põem em relação, cada qual portanto uma visão
Processos que se realizam nos serviços, em que de saberes e práticas diferentes, convivendo em
o sentido das ações volta-se para a promoção do bem situações de reciprocidade e cooperação.
viver do modo de vida e, no encontro com sujeitos de De maneira sucinta a institucionalização
novos saberes e práticas de saúde, que acontecem nos da Educação Popular em Saúde no Ministério da
movimentos sociais que apresentam propostas e proje- Saúde tem como referencial a Educação Popular
tos políticos que ressignificam o direito à saúde, na luta em Saúde em suas dimensões epistemológica,
pela inclusão social. ético-política e metodológica.
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Nesse processo tem contribuído para a


visibilidade e emergência de temas no campo da
Educação Popular haja vista o crescente número
de pesquisas e trabalhos produzidos e apresenta-
dos em eventos científicos. A problematização da
relação governo e movimentos populares tem for-
talecido a ética de respeito à autonomia dos
movimentos sociais e populares e permitido a
construção de ferramentas para a consecução de
agendas partilhadas.
Na dimensão metodológica há que se for-
talecer a formação e articulação dos sujeitos das
práticas populares de saúde, dos educadores
populares e dos profissionais que atuam nos
serviços no sentido de mobilizar a população na
construção de uma política nacional de educação
popular.
O Caderno de Educação Popular e Saúde
se inscreve neste contexto, com objetivo de por
em relação profissionais, educadores populares e
movimentos sociais. Nessa relação, os próprios
conteúdos da publicação devem servir como dis-
positivos de outras concepções e experiências a
respeito do processo saúde/doença vivenciados
no cotidiano dos serviços de saúde e das práticas
populares, comprometendo-as com a humaniza-
ção e a integralidade fundamentais, ao cuidar do
outro, propiciando relações que se movimentam
em direção à produção da vida.

* José Ivo dos Santos Pedrosa - Coordenador


Geral de Apoio à Educação Popular e à Mobilização Social
/ DAGEP / SGEP / MS.
E-mail: jose.pedrosa@saude.gov.br

REFER¯NCIAS

PALUDO, C. Educação popular em busca de VASCONCELOS, E. M. Redefinindo as


alternativas: uma leitura desde o campo práticas de saúde a partir de experiências de
democrático popular. Porto Alegre, RS: educação popular nos serviços de saúde.
Tomo Editorial, 2001. Interface: comunicação, saúde, educação, [S.
l.], v. 8, p. 121-126, 2001.

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Educação popular: instrumento de gestão


participativa dos serviços de saúde
Eymard Mourão Vasconcelos
Ilustração: Samuca

No atual governo federal foram criadas condições


para que o saber da educação popular buscasse
novos caminhos institucionais para a sua generalização e
para a consolidação do SUS.
educação em saúde é um campo de práticas e de conhecimen-

A to do setor Saúde que tem se ocupado mais diretamente com a


criação de vínculos entre a ação assistencial e o pensar e fazer
cotidiano da população. Diferentes concepções e práticas têm marca-
do a história da educação em saúde no Brasil, mas, até a década de 70,
a educação em saúde foi basicamente uma iniciativa das elites políti-
cas e econômicas e, portanto, subordinada aos seus interesses. Voltava-
se para a imposição de normas e comportamentos por elas considera-
dos adequados. Para os grupos populares que conquistaram maior
força política, as ações de educação em saúde foram esvaziadas em
favor da expansão da assistência individualizada à saúde.

A aproximação do setor Saúde com


o Movimento da Educação Popular
O governo militar, imposto pela Revolução de 1964, criou contra-
ditoriamente condições para a emergência de uma série de experiências de
educação em saúde que significaram uma ruptura com esse padrão acima
descrito. Nessa época, a política de saúde se voltava para a expansão de
serviços médicos privados e dos hospitais, onde as ações educativas não ti-

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nham espaço significativo. A "tranqüilidade" social onde profissionais de saúde aprendem a se relacio-
imposta pela repressão política e militar possibili- nar com os grupos populares, começando a esboçar
tou que o regime voltasse suas atenções para a tentativas de organização de ações de saúde integra-
expansão da economia, diminuindo os gastos com das à dinâmica social local. Com o processo de
as políticas sociais. Com os partidos e sindicatos abertura política, movimentos populares, que já
esvaziados, a população vai aos poucos buscando tinham avançado na discussão das questões de
novas formas de resistência. A Igreja Católica, que saúde, passam a reivindicar serviços públicos locais
conseguira se preservar da repressão política, apóia e a exigir participação no controle de serviços já
este movimento, possibilitando o engajamento de estruturados. A experiência ocorrida na zona leste
intelectuais das mais diversas áreas. O método da da cidade de São Paulo é o exemplo mais conheci-
Educação Popular, sistematizado por Paulo Freire, do, mas o Movimento Popular de Saúde (MOPS)
se constitui como norteador da relação entre inte- chegou a aglutinar centenas de outras experiências
lectuais e classes populares. Muitos profissionais de nos diversos estados. Nelas, a educação em saúde
saúde, insatisfeitos com as práticas mercantilizadas busca ser uma assessoria técnica e política às
e rotinizadas dos serviços de saúde, se engajaram demandas e iniciativas populares, bem como um
nesse processo. Nos subterrâneos da vida política e instrumento de dinamização das trocas de conheci-
institucional foi se tecendo a estrutura de novas for- mento entre os atores envolvidos.
mas de organização da vida política. Essas experiên- Assim, a participação de profissionais de
cias possibilitaram (e ainda possibilitam) que inte- saúde nas experiências de Educação Popular, a par-
lectuais tenham acesso e comecem a conhecer a tir dos anos 70, trouxe para o setor Saúde uma cul-
dinâmica de luta e resistência das classes populares. tura de relação com as classes populares que repre-
No vazio do descaso do Estado com os problemas sentou uma ruptura com a tradição autoritária e
populares, vão se configurando iniciativas de busca normatizadora da educação em saúde.
de soluções técnicas construídas a partir do diálogo Com a conquista da democracia política e a
entre o saber popular e o saber acadêmico. construção do Sistema Ðnico de Saúde, na década
O setor Saúde é exemplar neste processo. de 80, estas experiências localizadas de trabalho
Nos anos 70, junto aos movimentos sociais emer- comunitário em saúde perderam sua importância.
gentes, começam a surgir experiências de serviços Os movimentos sociais passaram a lutar por
comunitários de saúde desvinculados do Estado, mudanças mais globais nas políticas sociais. Os téc-

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Construíndo Caminhos Caderno de Educação Popular e Saúde


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nicos que nelas estiveram engajados agora ocupam em saúde são organizadas por grandes empresas de
espaços institucionais amplos onde uma convivên- comunicação bem pouco articuladas com o cotidia-
cia direta tão intensa com a população não é mais no de relação entre os profissionais de saúde e a
possível. A experiência de integração vivida por tan- população.
tos intelectuais e líderes populares, o saber ali cons-
truído e os modelos institucionais que começaram Educação Popular, um jeito especial
a ser gestados continuam presentes. Em muitas ins-
de conduzir o processo educativo
tituições de saúde, grupos de profissionais têm bus-
cado enfrentar o desafio de incorporar ao serviço
No âmbito internacional, o Brasil teve um
público a metodologia da Educação Popular, adap-
papel pioneiro na constituição do método da
tando-a ao novo contexto de complexidade institu-
Educação Popular, o que explica em parte a sua
cional e da vida social nos grandes centros urbanos.
importância, aqui, na redefinição de práticas sociais
Enfrentam tanto a lógica hegemônica de funciona-
dos mais variados campos do saber. Ela começa a se
mento dos serviços de saúde, subordinados aos inte-
estruturar como corpo teórico e prática social no
resses de legitimação do poder político e econômi-
final da década de 50, quando intelectuais e educa-
co dominante, como a carência de recursos, oriun-
dores ligados à Igreja Católica e influenciados pelo
da do conflito distributivo no orçamento, numa
humanismo personalista que florescia na Europa
conjuntura de crise fiscal do Estado. Nesse sentido,
no pós-guerra, se voltam para as questões populares.
esses grupos estão engajados na luta pela democrati-
Paulo Freire foi o pioneiro no trabalho de sistema-
zação do Estado, na qual o método da Educação
tização teórica da Educação Popular. Seu livro
Popular passa a ser um instrumento para a constru-
Pedagogia do Oprimido (1966) ainda repercute em
ção e ampliação da participação popular no geren-
todo o mundo.
ciamento e na reorientação das políticas públicas.
Educação Popular não é o mesmo que "edu-
Atualmente, há duas grandes interfaces de
cação informal". Há muitas propostas educativas
relação educativa entre os serviços de saúde e a
que se dão fora da escola, mas que utilizam méto-
população: os grandes meios de comunicação de
dos verticais de relação educador-edu-
massa e a convivência cotidiana dos
cando. Segundo Carlos Brandão
profissionais com a população nos
(1982), a Educação Popular não visa a
serviços de saúde. A segunda interface,
criar sujeitos subalternos educados:
na medida em que permite um conta-
sujeitos limpos, polidos, alfabetizados,
to muito próximo entre os vários ato-
bebendo água fervida, comendo fari-
res envolvidos no processo educativo,
nha de soja e utilizando fossas sépticas.
permite um rico aprendizado dos
Visa participar do esforço que já faz
caminhos de uma educação em saúde
hoje as categorias de sujeitos subalter-
que respeite a autonomia e valorize a
nos - do índio ao operário do ABC
criatividade dos educandos. Nesse sen-
tido, os conhecimentos construídos nessas experiên-
cias mais localizadas são fundamentais para o nor-
teamento das práticas educativas nos grandes meios
de comunicação de massa, se o objetivo é uma
metodologia participativa. É preciso superar a atual
situação em que as grandes campanhas educativas

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Paulista - para que a organização do trabalho político, Enfatiza não o processo de transmissão de
passo-a-passo, abra caminho para a conquista de sua conhecimento, mas a ampliação dos espaços de
liberdade e de seus direitos. A Educação Popular é um interação cultural e negociação entre os diversos
modo de participação de agentes eruditos (professores, atores envolvidos em determinado problema social
padres, cientistas sociais, profissionais de saúde e para a construção compartilhada do conhecimen-
outros) e de agentes sociais do povo neste trabalho to e da organização política necessários à sua supe-
político. Ela busca trabalhar pedagogicamente o ração. Em vez de procurar difundir conceitos e
homem e os grupos envolvidos no processo de partici- comportamentos considerados corretos, procura
pação popular, fomentando formas coletivas de apren- problematizar, em uma discussão aberta, o que está
dizado e investigação de modo a promover o cresci- incomodando e oprimindo. Prioriza a relação com
mento da capacidade de análise crítica sobre a realida- os movimentos sociais por ser expressão mais ela-
de e o aperfeiçoamento das estratégias de luta e enfren- borada dos interesses e da lógica dos setores subal-
tamento. É uma estratégia de construção da participa- ternos da sociedade cuja voz é usualmente desqua-
ção popular no redirecionamento da vida social. lificada nos diálogos e nas negociações. Apesar de,
Um elemento fundamental do seu método muitas vezes, partir da busca de soluções para pro-
é o fato de tomar, como ponto de partida do pro- blemas específicos e localizados, o faz a partir da
cesso pedagógico, o saber anterior do educando. perspectiva de que a atuação na microcapilaridade
No trabalho, na vida social e na luta pela sobrevi- da vida social é uma estratégia de desfazer os meca-
vência e pela transformação da realidade, as pes- nismos de cumplicidade, apoio e aliança, os micro-
soas vão adquirindo um entendimento sobre a sua poderes, que sustentam as grandes estruturas de
inserção na sociedade e na natureza. Esse conheci- dominação política e econômica da sociedade.
mento fragmentado e pouco elaborado é a matéria Está, pois, engajada na construção política da supe-
prima da Educação Popular. Essa valorização do ração da subordinação, exclusão e opressão que
saber e dos valores do educando permite que ele se marcam a vida nas sociedades desiguais. A
sinta "em casa" e mantenha suas iniciativas. Nesse Educação Popular é o saber que orienta nos difí-
sentido, não se reproduz a passividade usual dos ceis caminhos, cheios de armadilhas, da ação peda-
processos pedagógicos tradicionais. Na Educação gógica voltada para a apuração do sentir/pen-
Popular, não basta que o conteúdo discutido seja sar/agir dos setores subalternos, a como contribuir
revolucionário, mas que o processo de discussão com a construção de uma sociedade fundada na
não se coloque de cima para baixo. solidariedade, justiça e participação de todos.

De uma prática alternativa


à uma estratégia de reorientação da
política de saúde
Passados 40 anos do início deste movi-
mento no Brasil, muita coisa mudou. As práticas
de Educação Popular em Saúde já não se restrin-
gem ao modelo dominante na década de 70: um
técnico inserido em uma pequena comunidade

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periférica, identificando as lideranças e os proble-


mas mobilizadores, criando espaços de debate,
apoiando as lutas emergentes e trazendo subsídios
teóricos para alargar as discussões locais. Com o
processo de democratização da sociedade brasileira,
houve espaço para que a participação popular
pudesse também ocorrer nas grandes instituições.
Muitos técnicos, formados nos espaços informais
dos movimentos sociais, passaram a ocupar cargos
importantes nos órgãos implementadores das polí-
ticas de saúde procurando aplicar, nesse novo espa-
ço, a metodologia da Educação Popular. Apesar de
uma certa crise inicial da pretensão de transposição
direta e sem adaptações da metodologia de ação
nos espaços informais para as instituições, novas
experiências floresceram. A Rede de Educação
Popular em Saúde que, desde 1991, articula profis-
sionais de saúde e lideranças populares envolvidas
nessas experiências, vem se expandindo e consoli-
dando a trajetória de atuação nos novos serviços de
saúde a partir do instrumental da Educação
Popular.
Pode-se afirmar que uma grande parte das niões, cursos, visitas, etc.) entre os diversos grupos
experiências de Educação Popular em Saúde está populares e os diversos tipos de profissionais e ins-
hoje voltada para a superação do fosso cultural tituições.
existente entre os serviços de saúde, as organizações A partir desse diálogo, soluções vão sendo
não-governamentais, o saber sanitário e as entida- delineadas. Nesse sentido, a Educação Popular tem
des representativas dos movimentos sociais. De significado não uma atividade a mais que se realiza
outro lado, a dinâmica de adoecimento e de cura nos serviços de saúde, mas uma ação que reorienta
do mundo popular é feita desde a perspectiva dos a globalidade das práticas ali executadas, contri-
interesses das classes populares, reconhecendo, cada buindo para a superação do biologicismo, do auto-
vez mais, a sua diversidade e heterogeneidade. ritarismo de doutor, desprezo pelas iniciativas do
Atuando a partir de problemas de saúde específicos doente e seus familiares e da imposição de soluções
ou de questões ligadas ao funcionamento global técnicas restritas para problemas sociais globais que
dos serviços, busca-se entender, sistematizar e os atuais serviços de saúde. É, assim, um instru-
difundir a lógica, o conhecimento e os princípios mento de construção de uma ação de saúde mais
que regem a subjetividade dos vários atores envol- integral e mais adequada à vida da população.
vidos, de forma a superar incompreensões e mal A Educação Popular não é o único proje-
entendidos ou tornar conscientes e explícitos os to pedagógico a valorizar a diversidade e heteroge-
conflitos de interesse. A Educação Popular dedica- neidade dos grupos sociais, a intercomunicação
se à ampliação dos canais de interação cultural e entre diferentes atores, o compromisso com as clas-
negociações (cartilhas, jornais, assembléias, reu- ses subalternas, as iniciativas dos educandos e o diá-

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logo entre o saber popular e o saber científico. Para nologia ou de um novo sistema de conhecimento,
o setor Saúde, no Brasil, a participação histórica no como as chamadas medicinas alternativas preten-
movimento da Educação Popular foi marcante na dem ser, mas pela articulação de múltiplas, diferen-
criação de um movimento de profissionais que tes e até contraditórias iniciativas presentes em
busca romper com a tradição autoritária e norma- cada problema de saúde, em um processo que valo-
tizadora da relação entre os serviços de saúde e a riza principalmente os saberes e as práticas dos
população. Apesar de uma certa crise do conceito sujeitos usualmente desconsiderados devido à sua
da Educação Popular nos novos tempos, é ele que origem popular.
vem servindo para identificar e instrumentalizar a No atual contexto de fragmentação da
diversidade de práticas emergentes. Nessas expe- vida social, a recomposição de uma abordagem
riências, os vários aspectos metodológicos valoriza- mais globalizante da saúde não pode caber ape-
dos articulam-se de modo peculiar, diferenciando- nas às iniciativas ampliadas das instituições de
se do que ocorre em outros continentes. Há um saúde. Essa recomposição da integralidade nas
elemento inovador e pioneiro nas experiências bra- práticas de saúde cabe principalmente ao cresci-
sileiras e latino-americanas de Educação Popular mento da capacidade de doentes, famílias, movi-
em Saúde que vem sendo reconhecido internacio- mentos sociais e outros setores da sociedade civil
nalmente. em articularem, usufruírem e reorientarem os
Para muitos serviços de saúde, a Educação diversos serviços e saberes disponíveis, segundo
Popular tem significado um instrumento funda- suas necessidades e realidades concretas. Essa
mental na construção histórica de atenção integral perspectiva se diferencia do imaginário de gran-
à saúde, na medida em que se dedica à ampliação de parte do movimento sanitário brasileiro,
da inter-relação entre as diversas profissões, especia- ainda acreditando e empenhando-se na possibili-
lidades, serviços, doentes, familiares, vizinhos e dade de construção de um sistema estatal único
organizações sociais locais envolvidos num proble- de saúde capaz de, planejadamente, penetrar e
ma específico de saúde, fortalecendo e reorientan- ordenar as diversas instâncias da vida social
do suas práticas, saberes e lutas. Esta redefinição da implicadas no processo de adoecimento e de
prática médica se dá, não a partir de uma nova tec- cura (VASCONCELOS, 1997).

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Desde o início dos anos 90, profissionais de de, o modelo de atenção à saúde, buscado pelo
saúde envolvidos em práticas de Educação Popular Movimento Sanitário por intermédio do SUS, foi em
organizaram a Rede de Educação Popular em grande parte, inspirado em experiências pioneiras de
Saúde, com o intuito de fortalecer o debate sobre saúde comunitária desde a década de 70, nas quais os
as relações educativas nos serviços sanitários. Desde movimentos populares e técnicos aliados foram cons-
então, assistimos a uma importante organização truindo os caminhos para uma nova organização do
institucional do campo da Educação em Saúde. setor Saúde. Nestas experiências, a Educação Popular
Estruturaram-se encontros em vários estados, foi instrumento metodológico central.
vários congressos de âmbito nacional dedicaram A Rede de Educação Popular em Saúde,
significativos espaços ao tema, criaram-se grupos articulando e acompanhando centenas de expe-
acadêmicos e operativos, e aumentaram as publica- riências de aprofundamento da participação popu-
ções. Mas é ainda uma estruturação muito frágil, se lar nos serviços de saúde, acredita que a Educação
tivermos em vista o grande número de profissio- Popular continua sendo um instrumento metodo-
nais de saúde que vêm se preocupando e se dedi- lógico fundamental para uma reorganização mais
cando às relações educativas com a população. radical do SUS, no sentido da construção de uma
atenção à saúde integral em que as pessoas e os gru-
Educação Popular em Saúde no pos sociais assumam maior controle sobre sua
saúde e suas vidas e em que a racionalidade do
governo Lula (REDE DE EDUCA-
modelo biomédico dominante seja transformada
Ç‹O POPULAR EM SAÐDE, 2003).1 no cotidiano de suas práticas. Nesse sentido, a
Educação Popular não é mais uma atividade a ser
Um novo capítulo da história do Brasil implementada nos serviços, mas uma estratégia de
começou a ser escrito com as eleições de 2002. A reorientação da totalidade das práticas ali executa-
vitória consagradora de Lula e do PT expressou o das, na medida em que investe na ampliação da
desejo de mudança, de justiça social e de liberdade participação e que, dinamizada, passa a questionar
que pulsa na população brasileira. Expressou a e reorientar tudo.
importância que as classes populares, os intelec- O princípio da participação popular costu-
tuais e os movimentos sociais passaram a ter como ma ser aceito e defendido por todos, contudo
atores na construção de uma nova nação. tende-se a acreditar que ele se opera quase esponta-
Vislumbra-se o projeto de um novo jeito de gover- neamente, uma vez assegurados legalmente os espa-
nar, buscando alcançar o desenvolvimento social a ços formais de sua implementação, os Conselhos e
partir de um crescimento econômico voltado ao as Conferências de Saúde. Constata-se, no entanto,
atendimento das necessidades sociais. que essas instâncias, por estarem presas às questões
Os princípios que inspiraram o Movimento gerenciais do sistema, não dão conta de implemen-
Sanitário na construção do Sistema Ðnico de tar a participação dos usuários na redefinição da
Saúde encontram, no contexto político atual, a maioria das ações de saúde executadas no dia-a-dia
oportunidade para serem reafirmados e consolida- dos serviços. Há inúmeros mecanismos de boicote
dos. Dentre estes, verificamos a efetiva participação a uma participação mais efetiva dos moradores. E
popular: crítica e criativa na construção de políti- é no cotidiano das práticas de saúde que o cidadão
cas públicas saudáveis como caminho para a con- é desconsiderado pelo autoritarismo e pela prepo-
quista do direito humano à vida plena. Na verda- tência do modelo biomédico tradicional que, em

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1 Para contato, acesse os portais da Internet http://br.groups.yahoo.com/group/edpopsaude ou http://www.redepopsaude.com.br.
Comunique-se com a sua Secretaria Executiva na Av. Brasil 4036, sala 905, Rio de Janeiro, RJ, CEP 21040-360, telefone 021 2260 7453.
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vez de questionar, tem reforçado as estruturas gera- práticas extremamente criativas e produtivas que
doras de doença presentes na forma como a vida são, inclusive, reconhecidas internacionalmente. A
hoje se organiza. É preciso levar a democratização atuação de muitos profissionais e movimentos,
da assistência à microcapilaridade da operacionali- orientados pela Educação Popular, tem avançado
zação dos serviços de saúde. Sem a participação muito na desconstrução do autoritarismo de douto-
ativa dos usuários e seus movimentos na discussão res, do desprezo ao saber e à iniciativa dos doentes
de cada conduta ali implementada, os novos servi- e familiares, da imposição de soluções técnicas para
ços expandidos não conseguirão se tornar um espa- problemas sociais globais e da propaganda política
ço de redefinição da vida social e individual em embutida na forma como o modelo biomédico vem
direção a uma saúde integral. sendo implementado. No entanto, não basta alguns
O pioneirismo do Brasil no campo da saberem fazer, é preciso que este saber seja difundi-
Educação Popular e a já antiga tradição de aproxi- do e generalizado nas instituições de saúde. Temos
mação de vários profissionais de saúde junto aos condições de superar a fase em que estas práticas de
movimentos populares nos permite afirmar que esta saúde mais integradas à lógica de vida da população
tarefa é plenamente possível. Nesse sentido, defen- aconteciam apenas em experiências alternativas
demos que a implementação da Educação Popular pontuais e transitórias. É preciso encontrar os cami-
nos diferentes serviços de saúde é uma estratégia nhos administrativos e de formação profissional os
fundamental para tornar realmente efetiva a diretriz quais permitam que elas se generalizem institucio-
constitucional do SUS, a participação popular, tão nalmente. Várias iniciativas de governos municipais
cara ao Movimento Sanitário. petistas têm avançado neste sentido.
A Rede de Educação Popular em Saúde tem Como frisou Leonardo Boff, em mensagem
acompanhado centenas de experiências nas quais a aberta ao presidente Lula, após a sua eleição: "Chega
integração entre profissionais comprometidos e os de fazer para os empobrecidos. Chegou a hora de
movimentos sociais tem permitido a emergência de fazer a partir deles e com eles. Essa é a novidade que
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você traz na esteira de Paulo Freire e da Igreja da matizadoras e centradas apenas na inculcação de
libertação". hábitos individuais considerados saudáveis. Essa
Esta diretriz tem um grande impacto no forma de trabalho educativo boicota a participação
setor Saúde. No entanto, encontra resistências popular, pois faz calar os sujeitos e afasta as lideran-
mesmo em setores progressistas do Movimento ças locais do envolvimento, em conjunto com os
Sanitário, uma vez que o processo da Reforma Sani- serviços, do processo de transformação social por
tária, nos últimos 20 anos, ficou centrado principal- meio do diálogo dos saberes e da reflexão crítica de
mente nas questões da construção do arcabouço suas realidades de vida e saúde.
jurídico e institucional do sistema e no desejo de Quase todos os gestores enfatizam em seus
expandir rapidamente a cobertura dos serviços de discursos a importância da ação educativa e da pro-
saúde. Formou-se um amplo corpo técnico nas ins- moção da saúde. No entanto, com exceção de algu-
tâncias gestoras da burocracia federal, estadual, mas administrações municipais, entre as quais des-
municipal e distrital, muito competente em ativida- taco Recife e Camaragibe, pouco se tem investido
des de planejamento e com grande habilidade no em uma política consistente que busque a difusão
manejo do jogo de poder institucional, mas bastan- do saber da Educação Popular para a ampliação da
te intolerante a processos participativos nos quais a participação popular no cotidiano dos serviços. As
população e os profissionais de nível local se mani- experiências de Recife e Camaragibe têm demons-
festem de modo efetivo e autônomo. Assim, temos trado a importância do investimento tanto na for-
hoje um SUS com uma imensa rede de serviços bási- mação profissional para a transformação cultural e
cos de saúde, porém, um modelo de atenção ainda política dos padrões das práticas de saúde, como na
pouco questionado. criação de uma infra-estrutura institucional que
A expansão do Programa Saúde da Família garanta condições materiais e administrativas para a
levou a uma profunda inserção de milhares de tra- realização de atividades educativas.
balhadores de saúde no cotidiano da dinâmica de Até a gestão federal anterior ao governo Lula,
adoecimento e de cura na vida social. Nessa convi- a política adotada pelo Ministério da Saúde fez com
vência estreita, estes profissionais de saúde estão que a quase totalidade dos recursos pedagógicos fos-
sendo profundamente questionados sobre a eficácia sem gastos em propagandas nos grandes meios de
do modelo biomédico tradicional. Há uma intensa comunicação de massa e em material impresso pro-
busca de novos caminhos, a pouca ênfase da saúde duzido de forma centralizada, instrumentos mais
pública na discussão e no aperfeiçoamento das rela- adequados para uma conscientização autoritária da
ções culturais e políticas com os cidadãos e seus população dos bons caminhos de vida e saúde que
movimentos vem resultando em desperdício desta a suposta elite sanitária acredita serem adequados
oportunidade potencialmente transformadora do para suas condições de existência. As campanhas
sistema. Os cursos de formação na academia e nas educativas nos grandes meios de comunicação de
Secretarias de Saúde pouco têm priorizado a discus- massa têm sido entregues, na maioria das vezes, para
são dos difíceis caminhos, cheios de armadilhas, da empresas de comunicação sem um vínculo com o
ação pedagógica voltada para a apuração do sentir, cotidiano de dificuldades de relacionamento entre
pensar e agir dos atores envolvidos nos problemas os profissionais e a população.
de saúde de forma a se construir coletivamente as O Ministério da Saúde pouco vinha fazendo
novas soluções sanitárias necessárias. Nesse cenário, para apoiar, dinamizar e aperfeiçoar políticas con-
o que se tem assistido, na maioria dos serviços, é a sistentes nos estados e municípios que buscassem
reprodução de ações educativas extremamente nor- institucionalizar as trocas educativas como eixo reo-

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rientador das ações locais de saúde. Os poucos tralizada de materiais educativos, construídos de
recursos para ações educativas do Ministério eram forma participativa e de valorização e difusão das
canalizadas para o apoio de projetos pontuais, iniciativas educativas na lógica da problematização
desvirtuando-se, assim, a função da esfera federal coletiva, já existentes em quase todos os municípios.
que seria de implementar diretrizes e políticas que É preciso que as campanhas educativas de massa
expandam de forma descentralizada os princípios passem a ser planejadas de forma articulada com os
norteadores do SUS. No vazio de uma atuação do profissionais e as lideranças dos movimentos sociais
Ministério, no incentivo de ações educativas partici- que vivem as dificuldades e as potencialidades do
pativas em todo o sistema, o tradicional modelo trabalho educativo na rotina dos serviços de saúde.
autoritário de educação em saúde mantém-se domi- Devido à forte presença da Educação Popular no
nante, apesar de muitas vezes ser anunciado com Brasil, temos, em cada recanto da nação, profissionais de
discursos aparentemente progressistas. A maioria saúde e lideranças de movimentos sociais habilitados a
das coordenações de educação, comunicação e pro- colaborar nesta tarefa. É preciso mobilizá-los e valorizá-
moção da saúde das Secretarias Estaduais e Munici- los. Convocados, poderão colaborar com os técnicos do
pais de Saúde, em vez de investir na reorientação da Ministério da Saúde na definição dos caminhos institu-
relação cultural que acontece em cada serviço de cionais que tornem realmente efetiva a diretriz constitu-
saúde, têm se dedicado principalmente à organiza- cional do SUS, da participação popular na redefinição
ção de mobilizações da população para eventos e do modelo assistencial.
campanhas de massa ou ao desenvolvimento de A Educação Popular é um saber importante
ações educativas isoladas, desconectadas da rotina para a construção da participação, servindo não
da rede assistencial. Está mais a serviço do marke- apenas para a criação de uma nova consciência sani-
ting da instituição e de suas lideranças políticas. tária, como também para uma democratização mais
Diante disso, a Rede de Educação Popular radical das políticas públicas. Não é apenas um esti-
em Saúde tem proposto a adoção da Educação lo de comunicação e ensino, mas também um ins-
Popular como diretriz teórica e metodológica da trumento de gestão participada de ações sociais. É
Política de Educação em Saúde do Ministério da também o jeito latino-americano de fazer promoção
Saúde e que esta política se torne uma estratégia da saúde. É importante que deixe de ser uma práti-
prioritária de humanização do SUS e da adequação ca social que acontece de forma pontual no sistema
de suas práticas técnicas à lógica de vida da popula- de saúde, por intermédio da luta heróica de alguns
ção, mediante a valorização de formas participativas profissionais de saúde e de movimentos sociais, para
de relação entre os serviços de saúde e os usuários. ser generalizada amplamente nos diversos serviços
Para isso, é necessário desencadear uma ação políti- de saúde, em cada recanto da nação. Um dos gran-
ca que, bem estruturada, incentive, apóie e cobre des desafios, para isso, é a formação ampliada de
dos municípios e estados a formulação de iniciati- profissionais de saúde capazes de uma relação parti-
vas amplas desta valorização e a criação de espaços cipativa com a população e os seus movimentos.
de troca cultural, diálogo e negociação em cada ser-
viço de saúde. Chega de simpatias e discursos eno- Educação popular na formação
brecedores à educação e à promoção da saúde, sem dos profissionais de saúde
a destinação de recursos e implementação de políti-
cas bem traçadas! É urgente a criação de uma polí- Tem-se erroneamente associado o conceito de
tica nacional de formação profissional em Educação Popular à educação informal dirigida ao
Educação Popular, de incentivo à produção descen- público popular. O adjetivo "popular" presente no

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nome Educação Popular se refere não à característica de tância de outros grupos intelectuais. Muitos passam a
sua clientela, mas à perspectiva política desta concepção reorientar suas práticas buscando enfrentar de uma
de educação: a construção de uma sociedade em que as forma mais global os problemas de saúde encontrados,
classes populares deixem se ser atores subalternos e mas as atuais exigências políticas e institucionais não
explorados para serem sujeitos altivos e importantes na permitem ficar apenas aguardando esta formação
definição de suas diretrizes culturais, políticas e econô- espontânea e ocasional de profissionais abertos para as
micas. A experiência dos movimentos sociais tem mos- iniciativas populares na construção soluções sanitárias.
trado que este modo de conduzir o processo educativo É imensa a carência de profissionais capazes de uma
pode ser aplicado com sucesso na formação profissio- relação participativa com a população e seus movimen-
nal. Muitas iniciativas educacionais nas universidades tos. Ao mesmo tempo, a eleição de governos compro-
(principalmente em projetos de extensão), nos treina- metidos com os movimentos sociais em alguns muni-
mentos das Secretarias de Saúde de seus profissionais e cípios e estados, bem como a eleição de Lula para presi-
nas organizações não-governamentais vêm sendo orien- dente criaram condições institucionais para uma maior
tadas pela Educação Popular, descobrindo, aos poucos, incorporação da Educação Popular nas várias instâncias
os caminhos metodológicos de sua aplicação nesse novo de formação profissional.
contexto institucional. A educação dos trabalhadores de Hoje, um dos maiores desafios do movimen-
saúde nesta perspectiva é fundamental para a ampliação to de Educação Popular em Saúde é o delineamen-
de uma gestão participativa no SUS. to mais preciso das estratégias educativas de sua
A maioria dos atuais educadores populares se incorporação ampliada nos cursos de graduação de
formou a partir de circunstâncias bastante particulares todos os profissionais de saúde, na formação de
de sua vida pessoal que propiciaram contatos intensos agentes comunitários de saúde, na educação perma-
com movimentos sociais e experiências de Educação nente em saúde dos trabalhadores do SUS, nos cur-
Popular que os mobilizaram e os envolveram neste tipo sos de pós-graduação, etc. Por muito tempo, os edu-
de prática. Desde a década de 70, profissionais de saúde
insatisfeitos com as práticas mercantilizadas e rotiniza-
das dos serviços oficiais, desejosos de uma atuação mais
significativa para as classes populares vêm se dirigindo
às periferias dos grandes centros urbanos e das regiões
rurais em busca de formas alternativas de atuação.
Inicialmente ligaram-se às experiências informais de tra-
balho comunitário, principalmente junto à Igreja
Católica. Posteriormente, a multiplicação de serviços de
atenção primária à saúde, ocorrida no Brasil, a partir do
final dos anos 70, colaborou na criação de condições
institucionais para a inserção desses profissionais nos
locais de moradia das classes populares.
É interessante como este movimento de profis-
sionais de saúde vem se mantendo por tantos anos, con-
vivendo com a dinâmica do processo de adoecimento e
de cura no meio popular, interagindo com os movi-
mentos sociais locais e entrando em contato com a mili-

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cadores populares tiveram preconceitos com os No ensino profissional em saúde brasileiro,


doutores do setor Saúde, vistos como opressores. nos últimos anos, tem se divulgado a abordagem
Uma aproximação mais atenta dos profissionais de educacional denominada "Aprendizagem Baseada
saúde tem mostrado como sua realidade de trabalho em Problemas" (PBL - Problem-Based Learning),
é marcada também por angústias e injustiças. proveniente das experiências realizadas inicialmente
Empresários e dirigentes políticos, preocupados no Canadá, EUA e Holanda. Ela tem ajudado a
com os ganhos eleitorais e financeiros, cobram dos criar alternativas ao modelo de ensino em saúde tra-
trabalhadores de saúde, situados em serviços precá- dicional, baseado em disciplinas especializadas e
rios, recebendo salários aviltantes, marcados pelo estanques que fragmentam a análise dos problemas
clientelismo político e por uma gestão autoritária, a de saúde, procurando substituí-las pelo estudo de
solução de complexos e difíceis problemas da socie- problemas concretos de forma interdisciplinar e
dade. Numa imagem figurada, pode-se dizer que os cooperativa. A experiência acumulada pela
profissionais de saúde funcionam como pára- Educação Popular, a que Paulo Freire, muitas vezes,
choques no embate entre a população carregada de se referia como pedagogia da problematização, é a
problemas graves de saúde e exigências e de outro de caracterizar os problemas a serem debatidos,
lado, as instituições de saúde esvaziadas pela crise articulá-los com a realidade social e encaminhar as
fiscal do Estado e o descaso político. Do mesmo soluções parciais num processo contínuo de
modo que a Educação Popular nos movimentos reflexão-ação-reflexão. Essa noção pode ser impor-
sociais deve partir das situações de opressão e angús- tante para que o Aprendizado Baseado em
tia ali vividas, a Educação Popular dos doutores Problemas na América Latina assuma características
pode fazer o mesmo. No campo da Saúde, há uma transformadoras radicais e que apontem para uma
grande diversidade de movimentos sociais, impor- prática sanitária capaz de romper com as práticas
tantes aliados nos processos educativos. técnicas individuais, restritas a ações medicamento-
Atitude reflexiva e crítica diante da socie- sas, e às tentativas de mudanças de comportamen-
dade, a compaixão com o sofrimento humano, tos de risco ou, ainda, às tradicionais medidas de
a sensibilidade com a sutileza das manifestações saneamento básico. Uma prática sanitária integrada
das dinâmicas subjetivas e o engajamento com a uma ação coletiva e solidária poderia estar volta-
os movimentos sociais não podem ser ensinados da a superar as raízes políticas, culturais e econômi-
massivamente por meio de disciplinas teóricas. cas do sofrimento humano e efetivamente incluir a
Todavia, podem-se criar situações pedagógicas, população na gestão dos sistemas de saúde, na orga-
orientadas pela experiência acumulada da nização da atenção e nas práticas assistenciais.
Educação Popular, em que são problematizadas
as vivências e indignações dos profissionais em Eymard Mourão Vasconcelos - Professor do Depar-
tamento de Promoção da Saúde da Universidade
sua relação com a realidade, compartilhadas ini-
Federal da Paraíba. Aluno do Curso de Pós-Doutorado
ciativas de enfrentamento e busca de soluções e da ENSP/FIOCRUZ, no Rio de Janeiro.
valorizada a curiosidade na busca de entendi- E-mail: eymard@terra.com.br
mento das raízes das questões sociais mais
importantes.

REFER¯NCIAS

BRAND‹O, Carlos Rodrigues. Lutar com a REDE DE EDUCAÇ‹O POPULAR E SAÐDE. VASCONCELOS, Eymard Mourão. Educação
palavra: escritos sobre o trabalho do educador. Carta: a educação popular em saúde e o governo popular nos serviços de saúde. 3. ed. São
Rio de Janeiro: Graal, 1982. democrático do Partido dos Trabalhadores. Nós Paulo: Hucitec, 1997.
da Rede: Boletim da Rede de Educação Popular e
Saúde., Recife, n. 3, p. 6-8, 2003.
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Nossas Fontes

O Paulo da Pacientes impa- Enfoques sobre Construindo


Educação Popular cientes educação e saúde a resposta
A Educação Popu- Reflexão feita por Paulo Este artigo pretende ser Um artigo instigante que
lar não é algo parado. Freire, em 1982, na Vila uma aproximação à área apresenta a definição de
Ela tem se modificado Alpina, em São Paulo, num do saber denominada Edu- educação e saúde a partir
com a transformação da bate papo com militantes cação e Saúde, com inten- de uma perspectiva históri-
sociedade.Tem sido apli- da Pastoral da Juventude, ção de apresentar os dife- ca e da produção de um
cada em novos e sur- Pastoral Operária, rentes enfoques ou modos grupo de profissionais de
preen den tes cam pos. Oposição Sindical como esta área lida com os saúde do Núcleo de Edu-
Estamos sempre preci- Metalúrgica e membros de problemas de saúde da cação, Saúde e Cidadania
sando de novos "Paulos diversas Comunidades população. Pág. 46 da Escola Nacional de
Freires". Pág. 31 Eclesiais de Base. Pág. 32 Saúde Pública, da Funda-
ção Oswaldo Cruz. Pág. 58
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O Paulo da Educação Popular


Eymard Mourão Vasconcelos
Ilustração: Mascaro

P
aulo Freire não foi o inventor da Educação Ficou, assim, mais fácil dizer o que é e o que não é
Popular. Ela foi sendo construída a partir de Educação Popular, ajudando a superar confusões.
um movimento de muitos intelectuais latino- A Educação Popular não é algo parado. Ela
americanos que, desde a década de 50, vinham se tem se modificado com a transformação da socieda-
aproximando do mundo popular na busca de uma de. Tem sido aplicada em novos e surpreendentes
metodologia de relação que superasse a forma auto- campos. Estamos sempre precisando de novos
ritária como as elites (até mesmo as lideranças de "Paulos Freires" que continuem o trabalho de elabo-
esquerda) abordavam a população. Foram descobrin- rar teoricamente essas mudanças e de sistematizar a
do que as classes populares, ao contrário de uma experiência que os movimentos sociais vão acumu-
massa de carentes passivos e resistentes a mudanças, lando em suas lutas. Este é um trabalho que tem se
eram habitadas por grandes movimentos de busca de mostrado difícil. Por isso, temos muita saudades de
enfrentamento de seus problemas e por muitas ini- Paulo Freire.
ciativas de solidariedade. Tinham um saber muito Muitas vezes, ficamos muito fascinados com
rico que as permitia viver até com alegria em meio a os avanços conseguidos por nosso grupo e esquece-
situações tão adversas. Esses intelectuais foram des- mos que fazemos parte de uma construção muito
cobrindo que, quando colocavam o seu saber e o seu antiga que envolveu a participação de muitas outras
trabalho a serviço dessas iniciativas populares, os pessoas. Desprezamos esta experiência acumulada,
resultados eram surpreendentes. correndo o risco de estarmos perdendo tempo na
O pernambucano Paulo Freire (1921-1997) foi busca de "inventar novamente a roda". Para os pro-
um desses intelectuais. Mas ele foi o primeiro a sis- fissionais de saúde que estão chegando agora no
tematizar teoricamente a experiência acumulada por desafio do trabalho comunitário, é importante
este movimento. E fez isto de uma forma muito ela- lembrar que tivemos um grande mestre: Paulo
borada, elegante e amorosa. Seu livro Pedagogia do Freire. Quantas coisas importantes os seus escritos
Oprimido, escrito em 1966, difundiu a Educação continuam a nos ensinar. E para homenageá-lo,
Popular por todo o mundo. Por isso, em muitos paí- nada melhor do que trazer um texto seu, com suas
ses, a Educação Popular costuma ser chamada de palavras originais. Para isso, nós da Rede de
pedagogia freiriana. A teorização da Educação Educação Popular e Saúde, escolhemos um texto
Popular permitiu não apenas a sua difusão, mas o bem simples, escrito há mais de 20 anos, logo
seu aperfeiçoamento, na medida em que apurou depois que ele voltou ao Brasil de seu exílio (teve
aquilo que lhe era mais fundamental e ajudou a de fugir do país, em 1964, por causa da persegui-
organizar os seus princípios de forma coerente. ção da ditadura militar).

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Pacientes impacientes: Paulo Freire

Paulo Freire
Ilustração: Ral

Apresentação:
Ricardo Burg Ceccim

A reflexão de
Paulo Freire nos leva
a compreender que só
iremos superar essa
postura de "querer libertar
dominando", quando entender-
mos que não estamos "sozinhos" no
mundo e que o processo de liberta-
ção não é obra de uma só pessoa ou
grupo, mas sim de todos nós.
o dia 23 de janeiro de 1982, Paulo Freire esteve com

N a Comunidade Eclesial de Base Catuba, agrupa-


mento social no bairro Vila Alpina, distrito de Vila
Prudente, Cidade de São Paulo, para uma conversa com pes-
soas que, direta ou indiretamente, estavam envolvidas com
o trabalho de educação popular. Estiveram presentes repre-
sentantes de diversas entidades, como a Pastoral da
Juventude, a Pastoral Operária, a
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a Oposição Sindical Metalúrgica e outros grupos Mourão Vasconcelos, docente e pesquisador


das Comunidades Eclesiais de Base (CEB), bem brasileiro da educação popular em saúde e da edu-
como outros participantes interessados em com- cação no âmbito do Sistema Ðnico de Saúde, para
preender sua proposta de mediação pedagógica no nova divulgação e disseminação.Para a recom-
exercício da educação com as camadas populares, posição, entretanto, abri nova comunicação com
o desenvolvimento de uma metodologia educati- leitores de Paulo Freire na contemporaneidade,
va que fosse adequada para trabalhar com as classes como José Ivo dos Santos Pedrosa,l da área da
populares, com os coletivos sociais ou, dizendo saúde e Nilton Bueno Fischer, da área da edu-
mais simplesmente, com o povo.. Da gravação cação.
desta conversa foi organizado um documento, Meksenas, ao concordar e autorizar a
que foi e segue sendo usado como referência por „reciruclação‰de seu original, declara: „É com satis-
diversos movimentos da sociedade, com o objeti- fação que li a reorganização de Ricardo Ceccim
vo de orientar as ações de intervenção social nas sobre a comunicação de Paulo Freire. Não sabia
diferentes formas de luta coletiva por democracia, que aquele texto, vinculado aos tempos áureos do
cidadania, e reinvenção da vida. movimento social e popular, tivesse trilhado os
Paulo Meksenas, à época ligado á Pastoral caminhos na educação popular em saúde que ele
da Juventude, Setor Pastoral de Vila Prudente, me relatou, fico feliz ! Havia falhas no texto origi-
hoje professor da Faculdade de Educação da na de Como Trabalhar com o Povo, desde aqueles
Universidade Federal de Santa Catarina, sistemati- decorrentes de problemas de aúdio e que se refle-
zou a gravação daquela roda de conversa e, em tiram na transcrição das fitas, até a ausência de
maio de 1982, organizou, em colaboração com uma revisão gramatical qualificada. A transcrição
Nilda Lopes Penteado, um documento a que inti- das fitas e a organização do texto foram de minha
tularam Como Trabalhar com o Povo. O corpo de responsabilidade, e Nilda edição com conteúdo
texto que apresento a seguir reproduz o temário que fosse também visual. Lancei perguntas ao
do diálogo ocorrido naquela roda de conversa longo do texto que se vinculavam a uma prática
(um círculo de cultura, nos termos que propunha religiosa político-popular própria do trabalho que
Paulo Freire) e recompòe o documento de referên- fazíamos junto às Comunidades Eclesias de Base.
cia dali extaído.Um círculo de cultura não seria O que precisava ser destacado, entretanto e agora
para expor uma prescrição ou prestar receitas de podemos dispor de uma nova maneira eram as
conduta social, mas pôr em reflexão (em ato de falas do Professor Paulo Freire. Era um texto que
pensamento) os desafios colocados às práticas expressava um conteúdo significativo do pensa-
sociais. Nessa roda em particular estavam em mento do grande mestre e a atualidade de suas
questão os movimentos e as práticas de educação idéias justificam o novo texto, tendo ficado ótima
popular. a recomposição‰.
O corpo textual que, então, apresento
constitui uma composição sobre o registro origi-
União entre teoria e prática
nal do professor Paulo Meksenas. Seu pequeno
livrinho, como era intitulado Como Trabalhar
Paulo Freire procurou, inicialmente,
com o Povo, em valorização de seu poder argumen-
naquela roda acentuar a importância das posturas
tativo ao pensar a prática educativa com os coletivos
adotadas frente às práticas populares, destacando
sociais, pertencente à Associação Paulista de Saúde
que não bastava "querer mudar a sociedade", seria
Pública (APSP) e repassado ao Prof. Dr. Eymard

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fundamental "saber mudar", isto é, "saber mudar ensina a gente a fazer as coisas é a prática da gente.
na direção que busca a igualdade de oportunida- Por isso Ânão faz mal nenhumÊ, que se leia um
des e de liberdade para todos e todas". O educador livro ou outro. Devemos ler e é importante ler-
lembrou que ocorrem momentos em que "nossas mos, mas o fundamental é o fazer, isto é, lançar-
ações se tornam difíceis de serem desenvolvidas e mo-nos numa prática e ir aprendendo-reaprenden-
nos perdemos no meio do caminho" e que, na do, criando-recriando com o povão. Lendo, ao
maioria das vezes, nem percebemos, pois "herda- mesmo tempo, as teorias adequadas aos temas.
mos de nossa história a tradição de não termos Isso é o que ensina a gente o necessário movimen-
tido, como povo, a chance de participar das deci- to prática-teoria-prática. Agora, se há possibilidade
sões da sociedade". Assim, ao tentarmos a partici- de se bater um papo com quem tem prática ou
pação, "acabamos por utilizar as mesmas ferra- com quem já teve prática ou, ainda, com quem
mentas das classes dominantes". tem uma fundamentação teórica a propósito da
Paulo Freire alertou a todos e a todas do experiência, isto é excelente. A prática refletida é a
grupo que só superaremos a postura "de querer práxis, e é a que indica o caminho certo a ser bus-
libertar o dominando", quando entendemos que cado‰.
"não estamos sozinhos no mundo" e que o proces- „Eu me comprometo, porque eu acho isso
so de libertação não é obra de uma só pessoa ou válido, a dar o meu assessoramento a vocês. Agora,
grupo, mas "de todos nós". Para isso, seria preciso o que é preciso é ÂfazerÊ. Assim, a gente vai tendo
"saber ler a nossa vida", isto é, procurar agir e refle- a sensação agradável de estar descobrindo as coisas
tir sobre nossas ações individuais e sobre as ações com o povo. Então, hoje, eu tenho a impressão de
sociais. A esse ato Paulo Freire chamava de "unir que não caberia uma palestra sobre um ÂMétodoÊ
teoria e prática", pois somente refletindo sobre de realizar a educação popular, não é para isso que
essas ações podemos dar validade a elas, nos reco- eu vim aqui. Eu tenho a impressão de que eu
nhecer nelas e, então, agirmos nos reconhecendo poderia colocar a nós - e não a vocês, porque eu
como „sujeitos da história‰, asumindo-nos como coloco a mim também - alguns elementos, chame-
autores e não reféns da história do mundo. mos, até, de princípios, que são válidos, não ape-
Paulo Freire chamou a atenção para o fato nas para quem está metido com alfabetização, mas
de que "os problemas sempre virão e serão solucio- para quem estiver participando de qualquer tipo
nados ou não, dependendo de nosso entendimen- de pastoral [ ou enfrentando as relações entre
to e de nossas ações", mas que o importante seria movimento e mudança]. Não importa se está
compreender que, "para lutar pela libertação ou fazendo alfabetização de adultos ou se está traba-
pela autonomia", para desenvolver nossa capacida- lhando na pastoral operária, na área da saúde ou
de autoria e autodeterminação, é preciso que qualquer outra que seja. Os princípios são válidos,
aprendamos, entre tantas outras virtudes, a de
"vivermos pacientemente impacientes".
No encontro com Paulo Freire, o debate foi
em torno das posições apresentadas pelos partici-
pantes e de uma discussão reflexiva orientada pelo
educador entre estas posições práticas e suas rela-
ções com a teoria.
Paulo Freire: „Em primeiro lugar, o moço
ali tem razão, quando afirmou que não se pode
ficar só na teoria, isso seria fazer teoricismo. O que
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também, por exemplo, para quem é médico e tra- conhece o que considera ou é mesmo verdade ou
balha com o povão‰. ciência‰.
„Isso tem uma implicação, no campo da
Paulo Freire então explanou sobre cinco Teologia, que eu acho muito importante, mas não
princípios - que considerava fundamentais - aos vamos discutir isso hoje. Eu gosto de falar dessas
educadores e às educadoras: saber ouvir; desmon- coisas, também porque, no fundo, eu sou um teó-
tar a visão mágica; aprender/estar com o outro; logo, porque sou um sujeito desperto, um homem
assumir a ingenuidade dos educandos(as) e viver em busca da preservação da sua fé, e, é inviável
pacientemente impaciente. procurar preservar a fé, sem fazer teologia, quer
dizer, sem se religar, sem ter um papo com Deus
[seria como dizer Âsem se implicarÊ]. A minha van-
Primeiro princípio: Saber ouvir
tagem é que eu nunca fiz um curso de teologia sis-
temática, aí, então, eu posso cometer heresias
Paulo Freire: „o primeiro princípio que eu
maravilhosas‰.
acho que seria interessante salientar é o de que,
como educadores/educadoras, devemos estar
muito convencidos de uma coisa que é óbvia: nin- A principal implicação de reco-
guém está só no mundo. Dá até para dizer: ÂMas, nhecer que ninguém está só é a de
Paulo, como é que você foi afirmar um negócio saber ouvir
tão besta desses?Ê Claro que todo mundo aqui está
sabendo que ninguém está só, mas vamos ver que „A primeira implicação profunda e rigoro-
implicações a gente tira dessa constatação, uma sa que surge quando eu encaro que não estou só,
vez que é mesmo uma constatação, que ninguém é exatamente o direito e o dever que eu tenho de
precisa pesquisar para, então, revelar isso‰. respeitar em ti o direito de você também Âdizer a
„Agora, o que é fundamental, portanto, sua palavraÊ. Isso significa dizer, então, que eu pre-
não é fazer a constatação. Fazer a constatação é ciso, também, saber ouvir. Na medida, porém, em
muito fácil. Basta estar aqui, estar vivo. O que é que eu parto do reconhecimento do teu direito de
importante é ÂencarnarÊ essa constatação, o que Âdizer a sua palavraÊ, quando eu te falo porque te
traz um bando de conseqüências, um bando de ouvi, eu faço mais do que falar Âa tiÊ, eu falo Âcon-
imp1icações‰. tigoÊ. Eu não sei se estou complicando, mas,
„A primeira delas, sobretudo no campo da vejam bem, eu não estou fazendo um jogo de
Educação, que é o nosso campo, é a de encarar palavras, estou usando palavras. Eu usei a prepo-
que ninguém está só e que os seres sição ÂaÊ, falar ÂaÊ ti, mas disse que
humanos estão ÂnoÊ mundo ÂcomÊ o Âfalar a tiÊ só se converte no Âfalar
outros seres. Estar ÂcomÊ os outros contigoÊ se eu te escuto. Vejam
significa respeitar nos outros o direi- como, no Brasil, está cheio de
to de Âdizer a sua palavraÊ. Aí já gente falando ÂpraÊ gente, mas não
começa a embananar para quem tem ÂcomÊ a gente. Faz mais de 480
uma posição nada humilde, uma anos que o povão brasileiro leva
posição de quem pensa que conhece porrete!‰
a verdade toda e, portanto, tem que „Então, vejam bem, o que
meter na cabeça de quem não a isso tem a ver com o trabalho do

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educador? Numa posição autoritária, evidente- do um criador da sua aprendizagem‰.


mente, a educadora/o educador, falam ÂaoÊ „Pois bem, esse é um outro princípio que
povo/falam ÂaoÊ estudante. O que é terrível é ver eu acho fundamental: uma conseqüência desse
um montão de gente que se proclama de esquerda falar ÂaÊ ou do falar ÂcomÊ: eu só falo ÂcomÊ na
e continua falando ÂaoÊ povo e não ÂcomÊ o povo, medida em que eu também escuto. Eu só escuto
numa contradição extraordinária com a própria na medida em que eu respeito inclusive aquele que
posição de esquerda. Porque o correto da direita é fala me contradizendo. Porque se a gente só escu-
falar ÂaoÊ povo, enquanto o correto da esquerda é ta aquele ou aquilo que concorda com a gente...
falar ÂcomÊ o povo. Pois bem, esse ÂtrequinhoÊ eu Puxa, é exatamente o que está aí no poder! Quer
acho de uma importância enorme. Então, essa é a dizer, desde que vocês aceitem as regras do jogo, a
primeira conclusão que eu acho que a gente tira abertura brasileira prossegue...‰
quando percebe que não está só no mundo‰. „Quando eu era muito moço, me conta-
ram uma história que se deu, dizem, com Henry
O ÂMétodo Paulo FreireÊ não é, Ford. Diz-se que um dia Henry Ford reuniu, pos-
sivelmente em Detroit, os técnicos dele, os assesso-
na realidade, um método, não há
res etc. e disse: ÂOlha, vamos discutir o problema
um ÂmodeloÊ a seguir do novo modelo dos carros FordÊ. Então, os técni-
cos disseram: ÂSr. Henry, vamos dar um jeito de
„Quando a gente encarna e vive este não acabar com esses carros só pretos, feios, danados,
estar só no mundo, percebe a necessidade da vamos tacar carros marrom, carro verde, carro
comunicação, daí da alfabetização de todos e azul, mudar o estilo, fazer um negócio mais dinâ-
todas e logo se pensa no chamado ÂMétodo Paulo micoÊ. Então, quando deu 5h, dizem que Henry
FreireÊ, mas eu não gosto de falar nisso, que é um Ford falou: ÂOlha, eu tenho um negócio agora,
negócio chato pra burro. Ele, no fundo, não é um vamos fazer o seguinte: amanhã a gente se reúne
método, não é nada assim como muitos dizem. aqui às 5 horas pra resolver sobre as propostasÊ.
Porque não deve haver um modelo a seguir, trata- No dia seguinte, às 15 para as 5h, os assessores
se de uma Âconcepção de mundoÊ, é uma Âpedago- estavam todos na sala e às 10 para as 5h a secretá-
giaÊ, não é um método cheio de técnicas pautado ria de Ford entrou e anunciou: ÂSenhores, o Sr.
pelas prescrições [ou normativas - as receitas] que Ford não pode vir, mas ele pede que os senhores
deve estar ai. Eu acho que a gente sabe muito mais façam a reunião. Ele disse que concordará com os
as coisas quando a gente apreende o significado senhores, desde que seja preta a cor dos carrosÊ.
disso que eu abordei e, portanto, põe em prática. Isso é exatamente o que está aí. Se o povo brasilei-
Isso é mais relevante e significativo do que quan- ro concordar que a abertura deve ser assim, ela
do se está pensando no ba-be-bi-bo-bu do método. existe, senão... É uma coisa extraordinária isso!
O ba-be-bi-bo-bu só se encarna quando esse prin- Uma coisa fantástica! É o que está aí!!!‰
cípio de apreender o significado das coisas (daí ser „Então, eu falo ÂcontigoÊ quando eu sou
possível aprender verdadeiramente) é respeitado‰. capaz de escutar e, se não sou capaz, eu falo Âa tiÊ.
„Se o alfabetizador está, sobretudo, dispos- O falar ÂaÊ é um falar ÂsobreÊ, falar ÂaÊ significa falar
to a viver ÂcomÊ o alfabetizando uma experiência ao ÂentornoÊ. Eu falo ÂaÊ ti sobre a situação tal ou
na qual o alfabetizando Âdiz a sua palavraÊ ao alfa- qual. Se eu, pelo contrário, escuto também, então
betizador e não apenas escuta a do alfabetizador, a conseqüência é outra. É assim para um trabalho
a alfabetização se autentica, tendo no alfabetizan- de alfabetização de adultos, de educação em

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saúde, de saúde, de discussão do evangelho, de „Esta é uma realidade que existe. Eu não sei
religiosidade popular etc... Se eu me convenci como é que os jovens de esquerda não perceberam
desse falar ÂcomÊ, desse escutar, meu trabalho parte esse treco ainda. Então, não é possível chegar a uma
sempre das condições concretas em que o povo região como essa onde estamos hoje e fazer um dis-
está. O meu trabalho parte sempre dos níveis e das curso sobre a luta de classes. Não dá, mas não dá
maneiras como o outro entende a realidade e mesmo! É absoluta inconsciência teórica e científi-
nunca da maneira como eu a entendo. Está claro ca. É ignorância da ciência fazer um treco desses. É
assim?‰ claro que um dia vai se chegar a abordar o tema das
classes sociais, mas é impossível, enquanto não se
desmontar a visão mágica, isto é, a compreensão
Segundo princípio:
mágica da realidade. Porque, vejam bem, se houves-
Desmontar visão mágica se a possibilidade de uma participação ativa, de
uma prática política imediata, essa visão se acaba-
Paulo Freire: „um outro princípio eu regis- ria‰.
traria pra vocês refletirem. Vou dar um exemplo „É uma violência você querer esquecer que a
bem concreto. Quando eu tinha 7 anos de idade, população ainda não tem a possibilidade de um
eu já não acreditava que a miséria era punição de engajamento imediato. O que aconteceria é que
Deus para aqueles ou aquelas que tinham cometi- você falaria ÂàÊ comunidade e não ÂcomÊ a comuni-
do pecado. Então, vocês hão de convir comigo dade. Você faria um discurso brabo danado. E o
que já faz muito tempo que eu não acredito nisso, que é que você faria com esse discurso? Criaria mais
mas vamos admitir que eu chegue para trabalhar medo. Meteria mais medo na cabeça da população.
numa certa área, cujo nível de repressão e opres- Quero dizer que aquilo que a gente tem que fazer
são, de espoliação do povo é tal que, por necessi- é partir exatamente do nível em que essa massa está.
dade, inclusive de sobrevivência coletiva, essa Diante de um caso como esse, há duas possibilida-
população se afoga em toda uma Âvisão alienadaÊ des: a primeira, é a gente se acomodar ao nível da
do mundo. Nessa visão, Deus é o responsável por compreensão que a população tem e a gente passa
aquela miséria e não o sistema político-econômi- a dizer que, na verdade, é Deus mesmo que quer
co que aí está. Nesse nível de consciência, de per- dizer isso (essa é a primeira possibilidade de errar);
cepção da realidade, é preciso, às vezes, acreditar a segunda possibilidade de errar é arrebentar com
que é Deus mesmo, porque sendo Deus, o proble- Deus, é dizer que o culpado é o imperialismo.
ma passa a ter uma causa superior. É melhor acre- Vejam a falta de senso desse pessoal. Porque, no
ditar que é Deus porque, se não, se tem a necessi- fundo, isso é falta de compreensão do fenômeno
dade de brigar. É melhor acreditar que é Deus do humano, da espoliação e das suas raízes. É engra-
que sentir medo de morrer‰. çado: fala-se tanto em dialética e não se é dialéti-
co (dialética é o processo de conhecimento pelo
qual se acerta o caminho certo por meio de um
processo de reflexão em cima da realidade ou prá-
tica)‰ .
„Vamos ver o que acontece na cabeça das
pessoas se Deus é o responsável e Deus é um cabo-
clo danado de forte, o Criador desse treco todi-

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nho. O que é que não pode gerar na cabeça de um - Ah, porque os nossos eram camponeses.
cara desses se a gente chega e diz que não é Deus? Aí um deles disse:
A gente tem que brigar contra uma situação feita - O meu avô era camponês, o meu pai era
por um Ser tão poderoso como este e, ao mesmo camponês, eu sou camponês, meu filho é campo-
tempo, tão justo. Essa ambigüidade que está aí sig- nês e meu neto vai ser camponês!
nifica pecar. Então, a gente ainda mete mais sen- Temos aí uma concepção „fatalista‰ da his-
timento de culpa na cabeça da massa popular‰. tória, então podemos questionar e questionei:
„Se Deus é o culpado, o que a gente tem - O que é ser camponês?
que fazer num caso como este é aceitar. Eu me - Ah, camponês é não ter nada, é ser explo-
lembro, por exemplo - antes do Golpe de Estado, rado.
quando eu trabalhava no Nordeste - de um bate- - Mas o que é que explica isso tudo?
papo que eu tive com um grupo de camponeses - Ah, é Deus! É Deus que quis que o senhor
em que a coisa foi essa: dentro de poucos minutos tivesse e nóis não.
os camponeses se calaram e houve um silêncio - Eu concordo, Deus é um cara bacana! É
muito grande e, em certo momento, um deles um sujeito poderoso. Agora, eu queria fazer uma
disse‰: pergunta: quem aqui é pai?
- O senhor me desculpe, mas o senhor é que devia Todo mundo era. Olhei assim pra um e
falar e não nóis. disse:
- Por que? -eu disse. - Você, quantos filhos tem?
- Porque o senhor é que sabe e nóis não sabe - res- Ele respondeu:
pondeu. - Tenho seis.
- Ok, eu aceito que eu sei e que vocês não sabem. - Vem cá, você era capaz de botar 5 filhos
Mas por que é que eu sei e vocês não sabem? aqui no trabalho forçado e mandar 1 para Recife,
Vejam: eu aceitei a posição deles em lugar de me tendo tudo lá? Comida, local para morar e estu-
sobrepor à posição deles. Eu aceitei a posição dar e poder ser doutor? E os outros 5, aqui, mor-
deles, mas, ao mesmo tempo, indaguei sobre ela, rendo no porrete, no sol?
sobre a posição deles. Eles voltaram ao papo e aí - Eu não faria isso não.
me respondeu um camponês: - Então você acha que Deus, que é podero-
- O senhor sabe porque o senhor foi à esco- so e que é Pai, ia tirar essa oportunidade de vocês?
la e nóis não fomos. Será que pode?
- Eu aceito, eu fui à escola e vocês não Aí houve um silêncio e um deles disse:
foram. Mas por que, que eu fui à escola e vocês - É não, não é Deus nada, é o patrão.
não foram? Quer dizer, seria uma idiotice minha se eu
- Ah, o senhor foi porque os seus pais pude- dissesse que era o patrão imperialista „yanque‰ e
ram e os nossos, não! o cabra iria dizer:
- Muito bem, eu concordo, mas porque que - O que é, onde mora esse home?!
meus pais puderam e os seus não puderam? „Olhem, a transformação social se faz com
- Ah, o senhor pôde porque seu pai tinha ciência, com consciência, com bom senso, com
trabalho, tinha um emprego e os nossos, não. humildade, com criatividade e com coragem.
- Eu aceito, mas por que, que os meus ti- Como se pode ver, é trabalhoso, não é? Não se faz
nham e os de vocês, não? isso na marra, no peito. ÂO voluntarismo nunca

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fez revolução em canto nenhum. Nem „esponta-


neísmoÊ, tampouco. A transformação social, a Paulo Freire: „um outro princípio que a
revolução, implica convivência com as massas gente tira daquele ÂcomÊ e daquele ÂaÊ é o seguinte:
populares e não distância delas. Esse é o outro é que ninguém sabe tudo, nem ninguém ignora
princípio que eu deixaria registrado aqui para tudo, o que equivale a dizer que não há, em termos
vocês refletirem‰. humanos, sabedoria absoluta, nem ignorância
Paulo Meksenas e Nilda Lopes Penteado, absoluta.
neste ponto da abordagem de Paulo Freire, desafi- Eu me lembro, por exemplo, de um jogo
avam aos que tinham lido seu registro, propondo que fiz no Chile, no interior, numa casa campone-
em seu ÂlivrinhoÊ que ÂrefletissemÊ. Esta ÂparadaÊ sa, onde os camponeses também estavam inibidos,
propunha refletir, gerando interrogações (pergun- sem querer discutir comigo, dizendo que eu era o
tar o mundo), buscando as implicações de si com doutor. Eu disse que não e propus um jogo que era
o mundo. Em um sentido freireano, contribuiria o seguinte: eu peguei um giz e fui pro quadro
para um novo despertar da consciência, tornando- negro. Disse: eu faço uma pergunta a vocês e, se
se cada vez mais crítica. A proposta de comuni- vocês não souberem, eu marco um gol. Em segui-
cação acessível com um texto de Paulo Freire não da, vocês fazem uma pergunta pra mim, se eu não
é uma leitura ilustrativa do seu pensamento souber, vocês marcam um gol.
intelectual, mas para uma apreensão da nossa Continuei:
implicação, para a apreensão de nossa capacidade - Quem vai fazer a primeira pergunta sou eu,
de ler o mundo. Não se trata de mais erudição eu vou dar o primeiro chute: eu gostaria de saber o
sobre um tema, mas a capacidade de operar, por que é a hermenêutica socrática?
meio do conhecimento, com práticas de vida e Eu disse, de início, esse treco difícil mesmo,
ação na sociedade, por isso, reproduzo, mais ou um treco que vem de um intelectual. Eles ficaram
menos aquelas interrogações: rindo, não sabiam lá o que era isso. Aí eu botei um
- O que mais lhe chamou atenção no texto? gol pra mim.
- Que tipo de vivência temos com pessoas - Agora, são vocês! Um deles se levanta de lá
alienadas, no ônibus, no bairro, na escola? Quais e me faz uma pergunta sobre semeadura. Eu não
seriam bons exemplos? entendia pipocas! - Como semear num o quê? Aí eu
- Na prática dos nossos grupos, estamos perdi, foi um a um. Eu disse a segunda pergunta:
com o povo ou para o povo? - O que é alienação em Hegel? -Dois a um.
- Por que existem poucas experiências de Eles levantaram de lá e me fizeram uma per-
falar com o povo e muitas experiências de falar gunta sobre praga. Foi um negócio maravilhoso.
para o povo? Chegou a 10 a 10 e os caras se convenceram, no
- Como podemos viver a experiência dos final do jogo, que, na verdade, ninguém sabe tudo
companheiros e escutá-los para, assim, despertar e ninguém ignora tudo.
neles a consciência crítica por meio de um proces-
so de ação-reflexão-ação? Quais seriam pistas con- Elitismo e basismo, duas
cretas?
formas de não „estar com‰
Terceiro princípio: „Há dois erros importantes relativos ao
Aprender / Estar com o outro Âestar dianteÊ das classes populares e que são duas

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formas de Ânão estar comÊ as classes populares: o tar uma verdade histórica, que é o meu limite his-
elitismo e o basismo‰. tórico, ou, então, eu me suicido! Eu não vou me
„O entendimento equivocado do conheci- suicidar porque é dentro dessa contradição que eu
mento intelectual como superior é o elitismo, me forjo como um novo tipo de intelectual.
mesmo que, em termos teóricos, o intelectual Então, eu entendo esse treco. E afirmo que eu
diga: Âa gente precisa é viver o conhecimentoÊ.A tenho uma contribuição a dar à massa popular.
gente precisa é viver o que se diz, essa é a minha Nós temos uma contribuição a dar, mesmo não
ênfase. Todo mundo aqui sabe que não está só no vivendo e morrendo no meio do povo‰!
mundo. Ok, mas é preciso viver a conseqüência „Agora, para mim, o que é fundamental é
disso, sobretudo se a opção é libertadora. O que é o seguinte: é que essa contribuição só é válida na
preciso é encarnar isso, sobretudo quando a gente medida em que eu sou capaz de partir do nível em
se aproxima da massa popular. Muitos de nós vão que a massa está e, portanto, de aprender com ela.
às massas populares arrogantemente, elitistamen- Se não for assim, então a minha contribuição não
te, para ÂsalvarÊ a massa inculta, incompetente, vale nada ou, pelo menos, vale muito pouco.
incapaz... Isso é um absurdo! Porque, inclusive, Então, esse é outro princípio independente de tec-
não é científico. Há uma sabedoria que se consti- nicazinha de ba-be-bi-bo-bu. Quer dizer, é esse
tui na massa popular pela prática‰. Âestar comÊ e não simplesmente ÂparaÊ e, jamais,
„Há, também, um outro equívoco, que é o ÂsobreÊ o outro. É isso o que caracteriza uma pos-
que também se chama de basismo. ÂOu vocês tura realmente libertadora. Bacana era se a gente
estão dentro da base o dia todo, a noite toda, tivesse tempo de ir mostrando essas afirmações à
moram lá, morrem lá ou não podem dar palpite luz da experiência para perceber o que signifi-
nunca!Ê Isso é conversa fiada! Esse treco também cam‰.
não está certo, não. Esse negócio de superestimar Paulo Meksenas e Nilda Lopes Penteado
a massa popular é um elitismo às avessas. Não há retomam novamente a reflexão. A reflexão é um
porque fazer isso, não senhor! Eu tenho a mão estabelecer contato com (estar com).Nesse caso,
fina. A sociedade burguesa em que eu me consti- com os leitores e também recupero, em parte suas
tuí como intelectual não poderia ter-me feito dife- questões:
rente. Eu devo ser humilde o suficiente para acei- - Revendo os questionamentos anteriores e
nossa ação social, há falhas? Por quê?
- Muitas vezes a gente fala que o
povo lá do bairro é ignorante, não sabe
das coisas. Como fica, então, essa afirma-
ção: ninguém sabe tudo e ninguém igno-
ra tudo?
- O que é ser culto?
- Por que as camadas populares conside-
ram que as pessoas que têm diploma sabem tudo?
Quais as conseqüências dessa atitude para as pes-
soas e para a sociedade?
- Como devem ser valorizadas as pessoas?
O que podemos fazer a partir dessa reflexão?

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Quarto princípio: assumir a inge- Quem sou eu? Então esse é outro treco que eu
considero absolutamente fundamental. Na medi-
nuidade dos educandos
da em que você assume a posição ingênua do edu-
cando, você supera essa posição ÂcomÊ ele / ÂcomÊ
Paulo Freire: „outro princípio que eu acho
ela e não ÂsobreÊ ele / ÂsobreÊela.
fundamental é a necessidade que a gente tem de
„Qual é a nossa opção? Desenvolver a cora-
assumir a ingenuidade do educando, seja ele ou
gem de correr risco ou desenvolver a marca do
ela universitário ou popular.Eu estou cansado de
autoritarismo? Talvez seja necessário começar a
me defrontar nas universidades onde eu trabalho
aprender tudo de novo, contar com outras expe-
com perguntas que às vezes eu não enetendo.Não
riências, porque se é fundamental assumir a
entendo a pergunta porque o cara que a está fazen-
ingenuidade do educando, é absolutamente indis-
do não sabe fazê-la.Agora vocês imaginem o
pensável assumir criticidade do educando diante
seguinte: que pedagogo seria eu se, ao ouvir uma
da nossa ingenuidade de educador. Esse é o outro
pergunta mal formulada, desorganizada e sem sen-
lado da medalha para o educador que se coloca
tido, respondesse com ironia? Que direito teria eu
como auto-suficiente, onde somente o educando
em dizer que sou um educador que penso em
nunca seria auto-suficiente. No fundo, esse edu-
liberdade e respeito se ironizo uma questão do
cador é que é ingênuo, porque a ingenuidade se
outro?‰
caracteriza pela alienação de sí mesmo ao outro,
„Não podemos fazer isso de maneira nen-
ou, ainda, pela transferência de sua ingenuidade
huma. ¤s vezes me sinto numa situação meio difí-
para outro: Âeu não sou ingênuo, o Patrício é que
cil porque um / uma estudante coloca a questão e
é ingênuoÊ. Eu transfiro para ele a minha
eu realmente não estou entendendo. Quando isso
ingenuidade. Acontece que eu sou crítico na
se dá nos Estados Unidos da América, eu até
medida em que reconheço que eu também sou
tenho a chance de dizer: Âeu não entendo bem o
ingênuo, porque não há nenhuma absolutização
inglês, poderia repetir?ÊAqui, eu não posso dizer:
da criticidade. O educador que não faz essa
Âolha eu não entendo bem o portuguêsÊ. Então eu
dinâmica, esse jogo de contrários, pra mim não
digo pro / pra estudante: Âolha eu vou repetir a
trabalha pela e para a libertação ( o desenvolvi-
sua pergunta e você presta atenção pra ver se eu
mento da autonomia)‰.
não distorço o espírito da sua questão; se eu dis-
torcer você me dizÊ. Então eu repito a pergunta
que ele / ela me fez, reformulando do modo mais A Educação é um ato político
claro a maneira como entendi. Ai o / a estudante „Para terminar essa série de conside
pode me dizer: Âera isso mesmo o que eu queria rações, eu diria a vocês o seguinte: tudo isso é
perguntar; só que eu não tava era sabendoÊ. Eu política, porque no fundo, a educação é um ato
digo: ÂAh! Então ótimo!Ê Mas se eu digo: Â Não, o político! Educação é tanto um ato político quan-
senhor / senhora é um idiotaÊ, com que autori- to um ato político-educativo. Não é possível negar
dade eu poderia dizer isso ao / a jovem estu- de um lado a politicidade da educação e de outro
dante? Que sabedoria teria eu pra dizer isso? a educabilidade do ato político.É nesse sentido

PS.: Registramos o agradecimento à APSP e ao Professor Eymard Mourão Vasconcelos, pelo repasse do material de base para esta organiza-
ção, ao Professor Nilton Bueno Fischer por incentivar essa divulgação e disseminação e por nos colocar em contato com a viúva do edu-
cador, a Dra. Ana Maria Araújo Freire (Nita), a quem agradecemos de maneira especial pela leitura e por seus comentários, e, principal-
mente, pelo acolhimento a nossa iniciativa de novo diálogo com o professor e pensador Paulo Freire.

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que todo partido é um educador sempre, mas Vieira, durante a guerra dos holandeses. Eu comecei
depende que educação é essa que esse partido faz. por aí porque não tive tempo de ir mais fundo. Eu
Depende de com quem ele está. A favor de quê está passei uns 10 minutos lendo um trechino de um
o educador ou a educadora? Então, se a educação é sermão maravilhoso em que o Padre Vieira falava ao
sempre um ato político, a questão fundamental que vice-rei do Brasil, Marquês de Montalvan, no
se coloca para mim é a seguinte: ÂQual é a nossa Hospital da Misericórdia na Bahia‰.
opção?ÊO educador, a educadora, somos todos „Ele dizia uma coisa muito bonita: em
políticos. O que é importante , entretanto, é saber a nenhum milagre Cristo gastou mais tempo, nem
favor de quem está a política que nós fazemos‰. mais trabalho teve do que em curar o endemoniado
„Clareada a nossa opção, a gente vai ter mudo. Esta tem sido a grande enfermidade deste
que ser coerente com ela: aí se fecha o cerco, país: o silêncio. Um silêncio a que tem sido, sempre,
porque não adianta que eu passe uma noite fazen- submetido o povo. O que Vieira não disse , inclu-
do esse curso aqui e, depois, vá para a área da sive porque ele não faria essa análise de classe tão
favela salvar os favelados com a minha ciência, em cedo, é que, sobretudo nesse país, quem tem ficado
lugar de aprender com os favelados a ciência deles. muda é a classe popular. Não quero dizer ficar
Na verdade, meus amigos, não é o discurso que muda no sentindo de não fazer nada, mas não
diz se a prática é válida, é a prática que diz se o terem a sua voz reinventando as coisas. Elas têm
discurso é válido ou não é. Quem ajuíza é a práti- feito rebelião constantemente, as lutas populares
ca. Sempre! Não o discurso. Não adianta uma pro- nesse país são coisas maravilhosas! Só que a histori-
posta revolucionária se no dia seguinte minha ografia oficial, em primeiro lugar, esconde as lutas
prática é de manutenção de privilégios. Isso eu populares; em segundo lugar, quando conta, conta
acho que é fundamental‰. distorcidamente e, em terceiro lugar, o poder
autoritário faz tudo pra gente esquecer. Essa é uma
marca de autoritarismo do nosso país‰.
Correr risco e reinventar as coisas
„Há uma série de outras coisas, mas eu
diria a vocês que o fundamental está na coerência Comece a reaprender de novo
com a opção de correr risco. Mudar é como uma „Se você pretende pra semana começar
aventura permanente ou não é ato criador. Não um trabalho com grupos populares, esqueça-se de
há criação sem risco. O que a gente tem que fazer tudo o que já lhe ensinaram, dispa-se, fique nú de
é reinventar as coisas. novo e comece a se vestir com as massas popu-
„Temos que combater em todos e todas nós lares. Esqueça-se da falsa sabedoria e comece a
uma marca trágica que nós carregamos, os reaprender de novo. É aí que vocês vão descobrir
brasileiros e brasileira, que é a do autoritarismo que a validade daquilo que vocês sabem, na medida
marcou os primórdios do nosso nascimento. O em que vocês trestam o que vocês sabem com o
Brasil foi inventado autoritariamente e é autoritari- que o povo está sabendo. Eu acho que isso é bási-
amente que ele continua. Não é de se espantar de co. Eu nunca escrevi nada que não tivesse feito.
maneira nenhuma que a abertura contra a repressão Nem carta eu posso fazer se eu não tiver algo
ou a opressão se faça autoritariamente. Eu fiz um importante sobre o que compartilhar‰ .
discurso em Goiânia, no Congresso Brasileiro de „Essa é uma das minhas boas limitações.
Professores, em que eu li uma série de textos Meus livros são sempre relatórios. São relatórios
começando por um sermão fantástico do Padre teóricos, mas feitos a partir da prática. Isso significa

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que aquele que pretende trabalhar com esses conversacom educador, retomando a relação entre
relatórios que são os meus livros, deve, sobretudo, movimento e mudança. Exatamente ao final da con-
estar disposto a recriar o que eu fiz, a refazer. Não versação, Feire formulou, como mais uma advertên-
copiar, mas reinventar as coisas‰. cia, que seria necessário, viver pacientemente a
„Assim que cheguei da Europa, no ano impaciência: „Uma coisa que eu sempre falo e que
passado, para morar de novo no país, eu trabalhei poria agora como um dos princípios que eu esque-
um semestre com um grupo de jovens que realizava ci‰. A advertência é recuperada como princípio, uma
uma experiência de educação numa favela.Durante vez que configura um desafio político relativo à
a construção de um barraco, eles realizaram uma própria existência: uma ética da afirmação da vida,
experiência de alfabetização muito interessante, como aparece na pedagogia de Paulo Freire.
depois sumiram. Mas tarde, eles apareceram de Paulo Freire: „a impaciência significa a rup-
novo e me disseram: ÂPaulo a coisa mais formidáv- tura com a paciência. Quando você rompe com um
el que a gente tem pra dizer é que por mais que a desses dois pólos, você rompe em favor de um deles.
gente tivesse lido você e conversado com você, a Esse é o princípio para aprender a trabalhar ÂcomÊ o
gente cometeu um erro tremendo. A gente tinha povo e para construir ÂcomÊ o povo o seu direito à
botado na cabeça da gente que o povo queria ser liberdade e à afirmação da vida com dignidade‰.
alfabetizado. Como a gente sugeriu ao povo que a „O educador e a educadora, no exercício da
alfabetização era importante, o povo passou 6 meses opção a que têm o direito de fazer, têm que viver
com a gente falando daquilo por causa da gente. pacientemente impaciente. Todo agente de lutas tem
depois que o povo ganhou intimidade com a gente de viver a relação entre impaciência e paciência. Não
eles falaram, dando risada: Ânóis nunca quis isso!Ê ‰. é possível ser só impaciente como muita gente é.
„Vocês vejam, olha era uma equipe bacana Querer fazer revolução daqui à quinta-feira. E meter
que tinha lido tudo meu, que tinha discutido comi- na cabeça da gente um desenho da realidade que
go 1 semestre. Eu também fui enrolado pela equipe. não existe, como esse por exemplo: ÂAs massas já
Essa equipe estava totalmente convencida do que o têm o poder no Brasil, só falta o governoÊ. Isso só
povo queria. na verdade, essa equipe tinha transferi- existe na cabeça de alguém, não na realidade
do ao povo a necessidade de alfabetização. Isso é econômica, política e social do Brasil. Se você
outra coisa importante. Num país que há 480 anos rompe em favor da paciência, você cai refém das
o povão leva porrete, é a coisa mais fácil do mundo vozes e dos poderes dominantes, não impondo sua
você chegar com pinta de intelectual e terminar palavra e seu poder de reinvenção.
insinuando / sugerindo que há uma necessidade Para Freire, viver a relação paciência e
que o povo deve atender a ela. O povo vai dizer: ÂÉ impaciência é não perder a crítica, assumir a
senhor, é o que eu queroÊ. Essa é uma advertência ingenuidade em si e do outro, recriar, reaprender de
que eu faço a vocês‰. novo e, afinal, fazer . Assim é que se teria o poder
de fazer com criticidade aquilo que se quer e que
precisa ser feito.
Quinto princípio:
Viver pacientemente impaciente Fechamento

O desafio polítivo de „viver pacientemente A tática pedagógica "viver pacientemente


impaciente‰ configuou a conclusão daquela roda de impaciente", de Paulo Freire, contém uma impor-

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tante formulação para a qual deve estar atenta a ges- saúde, nos termos de Paulo Freire, seria a oferta de
tão do Sistema Ðnico de Saúde (SUS) e a partici- condições reais de participação e exercício do cont-
pação dos usuários (pacientes nas formulações rela- role social, segundo uma pedagogia do desenvolvi-
tivas ao cuidado e ao tratamento em saúde). O prin- mento da autonomia, co compartilhamento dos
cípio antropológico, político e do direito, tanto vários saberes e do esquecimento da Verdade, ciên-
quanto pedagógico, de que os pacientes (os cia para poder ouvir e estar com. Somente, então,
usuários, melhor dito) estejam, sempre, de fato, buscar naquilo que se aprendeu o que se pode ofer-
impacientes é para que o Sistema de Saúde a que tar, aprender em ato de ensinar e ensinar em ato de
têm acesso seja aquele que possa estar conosco em aprender. A conquisa desse direito somente se dará
nossas lutas pelo viver. Paulo Freire entendia que os se formos, na condição de pacientes, impacientes
trabalhadores e trabalhadoras de saúde deveriam ser com a falta de comunicação, com a conservacão de
desafiados a contribuir ativamente com os usuários preconceitos e exclusões, com a ausência de acolhida
de suas ações e serviços na lutapelo direito à saúde. aos nossos jeitos de ser e de estar e de demandar
Não entendendo tecnicamente o ba-be-bi-bo-bu das ajuda, impacienetes com um mundo e um sistema
ciências do cuidado e do tratamento, mas usando o de saúde que não corresponde à correlação entre
conhecimento técnico para a construção da autono- movimento e mudança para a reinvenção das ver-
mia dos usuários, de seu direito de apropriação do dades, das ciências, dos sensos comuns e das práticas.
sistema de saúde vigente no país e disputando por O SUS é o território onde estabelecemos
seu direito de satisfação com o mesmo. nossa luta pela saúde, sabendo que a própria luta é
A Lei Orgânica da Saúde assegurou, entre componente da conquista de mais saúde em nossa
seus princípios (art. 7À, Lei Federal nÀ 8.080/1990), experiência de viver (CECCIM, 2006), por isso a
a integralidade da atenção à saúde; a preservação da advertência de Paulo Freire é também nosso alívio e
autonomia das pessoas na defesa de sua integridade alegria (expressão de Emerson Merhy): os problemas
física e moral; o direito às pessoas sob assistência à sempre virão e serão solucionados ou não, depen-
informação sobre sua saúde; a divulgação de infor- dendo de nosso entendimento e de nossas ações, o
mações quanto ao potencial dos serviços de saúde e grande aprendizado , entretanto, sobrevem justa-
sua utilização pelo usuário; a participação popular mente de vivermos pacientimente impacientes.
eo exercício do controle da sociedade sobre as ações Registro o agradecimento à Associação
do Estado. Paulista de Saúde Pública (APSP) pelo repasse da
Não consta, entretanto, entre os princípios primeira publicação para ser aqui reorganizada; ao
do SUS, o direito à educação popular em saúde e o Professor Doutor José Ivo dos Santos Pedrosa pelo
dever de permeabilidade desse sistema ao "povo", cuidado com a releitura dessa organização; ao
segundo a eqüidade exigida pelas diversidades soci- Professor Doutor Nilton Bueno Fischer por incen-
ais. Para um sistema de saúde, pautado pela integra- tivar esta divulgação e disseminação, acrescer
lidade, precisaríamos, então, do cumprimento de opiniões e colocar-me em contato com a Professora
uma ação de educação popular, onde esse „direito Doutora Ana Maria Araújo Freire (Nita), viúva do
de todos e dever do Estado‰ se elevasse à condição educador, a quem agradeço de maneira muito espe-
de disponibilidade de trabalhadores capazes de estar cial a atenta leitura e as ressalvas para a maior prox-
com os usuários e a condição de aceitação dos imidade possível desse corpo textual com o acúmu-
usuários como capazes de se tornarem pacientes lo da produção de sentindos pedagógicos expressos
impacientes. Um direito à educação popular em por Paulo Freire em sua carreira. Também ao

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Professor Doutor Paulo Meksenas com quem tive a Este pequeno texto recriando um encontro e
satisfação de compartilhar o produto final desta falas de Paulo com uma comunidade popular de São
atual comunicação e ainda o estímulo à recirculação Paulo e com outros/as educadores/as, prova a minha
de idéias para as reflexões da educação popular em afirmativa: a possibilidade das contribuições de Paulo
saúde.Agradeço à Nita Freire principalmente pelo servirem para assegurar melhores condições de vida
acolhimento à nossa iniciativa de novo diálogo com para o povo brasileiro, para as suas camadas popula-
o professor e pensador Paulo Freire. res. Os que se preocupam com a área de saúde, com
o cuidado com a vida que todos e todas merecem
Ricardo Burg Ceccim.Porto Alegre, 26 de encontram em Paulo comunicação com o seu fazer.
maio de 2005. Um de seus expert, sentindo isso, vivendo isso, enten-
dendo isso resolveu que deveria procurar em meu
Comentários e conclusão, por Ana marido, através de uma de suas virtudes, dialetica-
Maria Araújo Freire (Nita Freire) mente posta em sua teoria, como uma tática pedagó-
gica dar voz e vida às camadas populares: viverem a
Por se tratar de uma composição que se apro- paciência, impacientemente. Colocada em sua com-
xima o mais possível do que dizia Paulo - e diria, preensão de educação por sua coerência entre o seu
depois, explicitamente na sua Pedagogia da Espe- sentir e o seu dizer, os que se engajam nas ciências do
rança - e não uma reprodução textual dos anos 1980 cuidado e do tratamento da saúde do povo, política
- porque assim sendo não seria de meu direito legal e eticamente, evocam esta virtude colocando-a como
aprovar uma republicação e nem seria também de um direito dos pacientes dos serviços públicos de
minha alçada comentá-la - aceitei como esposa e saúde, o de tornarem-se impacientes.
colaboradora de Paulo Freire, a solicitação de Orgulho-me de que Paulo, como pensador e
Ricardo Burg Ceccim para fazer uma leitura desse educador político possa, mesmo com seus pequenos
texto recomposto por ele (autorizado por Paulo e aparentemente simples bate-papos incentivar
Meksenas) e tecer alguns comentários. quepensares e quefazeres para a política de saúde na
Realmente, sinto e constato como a obra e a qual a sua pedagogia do oprimido ensina aos douto-
práxis de Paulo vem, cada dia mais - e mais profun- res da saúde e aos que fazem a burocracia do campo
damente -, contribuindo para aclarar temas e ques- sanitário que todos nós homens e mulheres devemos
tões em várias áreas do conhecimento científico e, ser Seres Mais.Orgulho-me que estes e aqueles estão
assim, influenciar e incentivar as transformações aliando-se a Paulo na busca de que os Seres Menos,
sociais necessárias. Valorizando o povo, o senso sem direito a comer, a estudar, a morar e a ter saúde
comum e sua prática - tanto quanto o conhecimen- ,devam e possam sonhar com a possibilidade de
to produzido por ele. Paulo deles partiu para mos- tornarem-se, conscientemente, pacientes impacientes.
trar as possibilidades de nos construirmos, em
comunhão, com tolerância e espírito de justiça, São Paulo, 1À de julho de 2005.
cidadãos solidários da sociedade brasileira, que Ana Maria Araújo Freire (Nita)
assim abriria a possibilidade fazer-se verdadeiramen- Organizador: Ricardo Burg Ceccim, maio de 2005.
te democrática.

REFER¯NCIAS

CECCIM, Ricardo Burg. Saúde e doença: FREIRE, Paulo. Pedagogia da esper- manicomial: alegria e alívio como disposi-
uma reflexão para a educação da saúde. ança.12. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005. tivos analisadores. 2004.18p.Disponível
In: MEYER, Dagmar E. Estermann (Org.). em:
Saúde e sexualidade na escola. 5. ed. Porto MERHY, Emerson Elias. Os CAPS e seus <http://paginas.terra.br/saude/merhy>.
Alegre: Mediação, 2006. p. 37-50. trabalhadores no olho do furacão anti-

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Enfoques sobre educação


popular e saúde
Eduardo Stotz
Ilustração: Lin

A evolução histórica da educação e saúde, seus


fundamentos e as mudanças individuais e coletivas
analisadas a partir de um olhar do autor sobre o valor
social da saúde.
O que se entende por e sociais, estes problemas são
quase sempre reduzidos à sua dimensão fisiopato-
Educação e Saúde e quais
lógica. É por isso que um autor (VUORI, 1987)
são os seus fundamentos? afirmou que a educação sanitária (termo que aqui
vai ser usado no duplo sentido de educação em
saúde e de educação para a saúde) define-se como

A
Educação e Saúde é, do ponto de vista do-
minante e tradicional, uma área de saber um ramo ou método da medicina preventiva.
técnico, ou seja, uma organização dos co- Em texto escrito no ano de 1990, afirma-
nhecimentos das ciências sociais e da saúde volta- mos (STOTZ, 1993, p. 14) que:
da para "instrumentalizar" o controle dos doentes
pelos serviços e a prevenção de doenças pelas pes- Embora nem todos possam concordar com essa afir-
soas. mação, parece caber razão ao autor quando observa
que a maioria dos educadores sanitários, em muitos
O aspecto principal dessa orientação reside
países, adota as bases filosóficas da medicina. Esse
na apropriação, pelos educadores profissionais e
domínio da medicina sobre a educação sanitária
técnicos em saúde do conhecimento técnico-cientí- expressa-se, segundo o mesmo autor, no conteúdo da
fico da biomedicina (ou medicina ocidental con- formação, posto que 'os problemas são definidos sob
temporânea) sobre os problemas de saúde que são, o ponto de vista médico e os diagnósticos proporcio-
a seguir, repassados como normas de conduta para nam o ponto de partida. As atividades de educação
as pessoas. sanitária são afins a esse padrão de problemas medi-
O modelo explicativo dos problemas de saú- camente definidos, que freqüentemente terminam
de vigente atualmente é o da multicausalidade do em programas e campanhas fragmentadas, focaliza-
processo de adoecer e morrer, mas as respostas das em um problema apenas.
encaminhadas assumem, em regra, o sentido da
causalidade linear. Assim, embora se saiba que as Vale dizer ainda que as bases filosóficas da
pessoas se tornam diabéticas em razão de proble- biomedicina compreendem, de acordo com o autor
mas que são tanto imunológicos, como emocionais citado, os seguintes princípios componentes:

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Inglaterra, por Hobbes, e na Holanda, por Spinoza,


 homem como manipulador da natureza, com direi- durante o século XVII.
to a manipulá-la em seu próprio proveito; Na obra Discurso sobre o Método, de
Descartes, a razão é transformada no critério decisi-
 o homem separado do seu meio ambiente e eleva- vo sobre a variação infinita da realidade e dos nos-
do a objeto exclusivo de investigação médica; sos juízos sobre ela. Ao dizer que somente não posso
duvidar de que penso, Descartes disse algo mais: que
 uma visão mecanicista do homem que exige enfo- sentimos o mundo com o corpo, mas a mente é que
que manipulador de engenharia para restaurar a produz o conhecimento sobre o mundo. A separa-
saúde e que enfatiza o papel das ciências naturais no ção entre mente e corpo proposta pelo filósofo já
estudo do homem e suas doenças; implicava a idéia de que somos um complexo meca-
nismo. O poder conferido à razão implicava na for-
 o conceito ontológico da doença que fundamenta mulação da idéia de verdade e erro, de ciência e
o estudo das doenças sem ter em conta os fatores rela- senso comum e estava associada à idéia de política
cionados com o hospedeiro. como expressão da ação racional dos seres humanos.
No artigo A Biomedicina, Kenneth Rochel de Esta concepção somente foi possível porque
Camargo Junior ressalta um princípio que Vuori pressupunha, por outro lado, uma compreensão do
não contempla explicitamente, a saber, o de que a próprio homem como um indivíduo livre de qual-
biomedicina implica, por sua vinculação ao imagi- quer dependência pessoal, uma compreensão radi-
nário científico correspondente à racionalidade da calmente nova que estava nascendo como resultado
mecânica clássica "... a produção de discursos com do comércio de longa distância entre as cidades em
validade universal, propondo modelos e leis de apli- várias regiões da Europa e o resto do mundo, desde
cação geral, não se ocupando de casos individuais fins do século XV e inícios do XVI.
..." (CAMARGO JR, 1997). Michel Foucault destacou no pequeno e ins-
Esse caráter generalizante das proposições da tigante ensaio O nascimento da Medicina Social, a
biomedicina leva, por outro lado, à exclusão das vinculação entre o indivíduo abstrato e racional dos
racionalidades médicas alternativas ou concorrentes, filósofos e a idéia de corpo e de organismo dos
como a homeopatia e outras medicinas holísticas. médicos, amparada na anatomia e fisiopatologia,
O modelo de ser humano da biomedicina é que somente pode desenvolver-se quando o proble-
o organismo humano, uma abstração analítico- ma da saúde surgiu no nível do controle da força de
mecanicista construída ao longo do tempo da trabalho industrial, na Inglaterra, em meados do
modernidade, isto é, da organização da sociedade século XIX (FOUCAULT, 1989).
fundada no modo de produção capitalista e no Deve-se lembrar também que a sociedade
desenvolvimento correspondente das práticas cientí- organizada sob o modo de produção capitalista
ficas, políticas e institucionais que lhe deram forma gerou movimentos antagônicos à medida que o
e legitimidade a partir do século XVII até os nossos crescimento da força de trabalho assalariada, ao
dias. expressar-se em termos de reivindicação por redis-
Do ponto de vista filosófico, a visão que tribuição da riqueza e participação política, susci-
acompanha essas transformações é a do racionalis- tou a oposição da classe capitalista. Os séculos
mo, proposta na França, por Descartes, na XIX e XX foram marcados por convulsões e revo-

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luções sociais que colocaram em questão o domí- lista. O que prevaleceu foi a biomedicina e a edu-
nio absoluto das leis do mercado capitalista. cação e saúde foi tributária dos pressupostos dessa
Uma corrente de esquerda surgiu no campo racionalidade médica.
da Saúde, emergindo com as primeiras manifesta-
ções revolucionárias da classe operária: Guérin, na Os sinais individuais e coletivos
França, Neumann e Virschow, na Alemanha, foram do sofrimento
os pensadores sociais da saúde, cujos nomes apare-
cem vinculados às jornadas revolucionárias que atin- Do ponto de vista das ciências da saúde
giram seu ponto culminante em 1848. Quase um anatomia, fisiopatologia, bacteriologia as definições
século depois, esse pensamento foi retomado por mais importantes são, sem dúvida, os de normal e
Henry Sigerist, durante as décadas de 30 e 40, nos de patológico. Para Canguilhem (1978), tais defini-
Estados Unidos, e por Juan César Garcia, durante as ções são de cunho operacional e não conceitual. A
décadas de 60 e de 70, na América Latina. Esta cor- distinção entre normal e patológico é o resultado da
rente de pensamento da esquerda socialista na área afirmação do saber científico sobre a experiência da
da Saúde tornou-se conhecida como medicina doença, da ciência sobre o senso comum, afirmação
social. Para esses pensadores, os fenômenos do adoe- possível graças a conceitos genéricos como os de
cimento e da mortalidade sempre foram biológicos meio interno, de homeostase e de metabolismo, vin-
e sociais e as intervenções para enfrentá-los deviam culados ao modo de funcionamento do organismo.
contemplar estes determinantes. O organismo, por sua vez, foi visto como um siste-
A medicina social foi, contudo, uma corrente ma de sistemas com funções próprias, como o siste-
de oposição minoritária dentro da sociedade capita- ma nervoso, o digestivo, etc., e disciplinas científicas

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foram se constituindo para analisar cada aspecto do tais representações é o de poder físico e mental, e de
funcionamento dos sistemas específicos, como a neu- dignidade ou, inversamente, de perda de poder e de
rologia, a gastroenterologia, etc. (CAMARGO JR, controle sobre si próprios.
1997).
A Educação e Saúde, na medida em que é, No texto, procura-se chamar atenção para o
como vimos, um saber técnico, incorpora em seu fato de que a doença, fenômeno intimamente ligado
arcabouço outros saberes disciplinares, contribuições à vida privada dos indivíduos, raramente é um caso
de outras ciências. Assim, veja-se a seguinte análise isolado, posto que processos semelhantes verificam-se
(TEIXEIRA, 1985) da contribuição da sociologia fun- em outras pessoas e são expressão de dificuldades
cionalista de Talcott Parsons para o controle dos sociais em suas vidas.
doentes e a prevenção das doenças: O problema é que as relações entre os proble-
mas percebidos no nível individual e os de sua rela-
Como elemento central no processo de definição da ção mais ampla e determinação ou condicionamento
doença e, por conseqüência, das formas de consumo de social não são facilmente percebidas e compreendidas
saúde, está a delimitação da normalidade, sendo espe- pelos indivíduos:
rado que os indivíduos desviantes adotem certas con-
dutas destinadas a restaurar o padrão normal. O doen- A própria percepção da doença é influenciada pela
te é um "desviante" que precisa assumir o seu papel de posição social e pela cultura do grupo social de referên-
paciente e que, ao seguir a prescrição médica, pode
retomar a sua condição normal.

É evidente que a redução dos problemas de


saúde à sua dimensão biopsicológica traz como con-
seqüência a possibilidade de culpabilizá-lo pelo seu
sofrimento, possibilidade tanto maior quanto maio-
res as "evidências" da medicina baseada em estudos
epidemiológicos de que os problemas de saúde atuais
têm sua causa nos chamados comportamentos indi-
viduais de risco (vida sedentária, consumo de gordu-
ras, açúcares, álcool, fumo, etc.). Mas em que medida
esse tipo de correlação é correto?
Vale abrir aqui um parêntese sobre a relação
entre o individual e o coletivo no processo saúde-
doença, aproveitando o texto anteriormente citado
(STOTZ, 1993, p. 20).

A saúde e a perda da saúde são fenômenos ou proces-


sos referidos a indivíduos normalmente representados
por um estado de 'bem-estar' e de felicidade que em
certo momento se transforma em sofrimento e infeli-
cidade. Para os indivíduos, o sentimento associado a

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cia dos indivíduos. Há sinais que são identificados até aquelas outras, orientadas para a prevenção de
como doenças, vistos como expressão desviante de uma comportamentos "de risco", a exemplo da gravidez
normalidade biológica; outros não. E mesmo quando precoce, o consumo de drogas legais (álcool, tabaco)
identificados enquanto doenças, os sinais nem sempre e ilegais (maconha, cocaína), a falta de higiene corpo-
são reconhecidos nos indivíduos doentes e tampouco
ral, o sedentarismo e a falta de exercício físico.
seu caráter coletivo é assumido.
As condições e as razões que levam as pessoas
Se, como afirma ainda Berlinguer, os sinais podem ser
tanto ocultados como distorcidos, fica mais difícil esta- a adotar estes comportamentos ou atitudes ficam à
belecer espontaneamente os possíveis nexos entre os margem das preocupações da maioria dos profissio-
distúrbios vivenciados e as condições sociais nas quais nais dos serviços e dos técnicos com responsabilidade
vivem os indivíduos (STOTZ, 1993). gerencial. São dimensões que estão "fora" do setor
Saúde. Aplica-se simplesmente a norma: você tem
Daí a importância de se entender as dificulda- isso, deve fazer aquilo. A solução consiste em seguir
des que as pessoas têm de andar sua própria vida, vin- a norma, no caso, consumir medicamentos, cumprir
culando, por meio da escuta e do diálogo, as expe- prescrições.
riências com as formas de enfrentar o adoecimento a O raciocínio vale igualmente para situações
hipertensão arterial, o diabetes, os transtornos men- epidêmicas, como podemos observar a partir da pri-
tais leves em regra decorrentes da desorganização da meira epidemia de dengue ocorrida na cidade do Rio
vida em razão de desemprego, insuficiência de renda, de Janeiro, em 1987: o problema é o vizinho descui-
violência social, perda de ou rupturas na relação com dado (geralmente uma pessoa pobre), porque não
pessoas queridas. Sim, porque há itinerários percorri- tampa os reservatórios de água para evitar a entrada e
dos pelas pessoas em busca de solução para os seus deposição dos ovos do mosquito Aedes aegypti. A
problemas e que ajudam a formular diagnósticos pré- falta de água corrente não entra neste raciocínio, bem
vios, a incorporar terapêuticas e a afirmar valores de como não se consideram os grandes criadouros do
vida saudável. mosquito, a saber, os terrenos baldios, as piscinas sem
tratamento, os cemitérios, os depósitos de automó-
O papel dos serviços de saúde veis e ferros-velhos abandonados.
Compensar, no nível individual, problemas de
A medicina institucionalizada nos serviços de caráter social eis o papel fundamental a que os servi-
saúde foi organizada em práticas especializadas, ços de saúde são chamados a desempenhar. Os servi-
orientadas para atuar normativamente sobre proble- ços de saúde são como Singer, Campos e Oliveira
mas de saúde. (1988) denominaram, serviços de controle social, cuja
A educação em saúde, assim denominada por- finalidade consiste em prevenir, suprimir ou manipu-
que, na preposição "em" afirma-se o vínculo com os lar as contradições geradas pelo desenvolvimento
serviços de saúde, foi destinada a desempenhar um capitalista no âmbito da vida social, contradições que
importante papel em termos de controle social dos aparecem sob a forma de "problemas" de saúde. O sis-
doentes e/ou das populações "de risco". O âmbito da tema de atenção médica funciona, na sociedade capi-
educação em saúde é relativamente amplo. Inclui talista, como uma forma de compensar, no nível indi-
desde técnicas destinadas a assegurar a adesão às tera- vidual, problemas ou condições sociais que apontam
pêuticas lidar com o abandono do tratamento, com para situações socialmente injustas do ponto de vista
a "negociação" da prescrição médica pelos pacientes da saúde. O que acarreta, objetivamente, a legitima-

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ção da ordem social, seus per-


social capitalista tencimentos de
(NAVARRO, 1983). gênero, etnia ou
raça, ou seja,
O valor suas diferenças,
social da com diversos
saúde graus de sofri-
mento, incapaci-
O papel dos dade ou mesmo
serviços varia con- de doença. A
forme os valores sociais da saúde e que concepção de saúde (a noção do que
orientam a perspectiva de atuação dos pro- deva ser saúde) passou a ser socialmen-
fissionais de saúde. Assim, é importante te demarcada, em termos positivos,
constatar que o ideal da saúde como um pelas aspirações individuais ou de gru-
estado de bem-estar físico, psíquico e social pos, construídas consensualmente ou
dos indivíduos proposto pela Organização impostas, em torno de ideais de vida
Mundial da Saúde, em 1946, era expressão saudável convertidos na imagem do
de um imaginário coletivo em busca de corpo jovem, sadio e esbelto difundida
uma sociedade de bem-estar social, uma vez pelos meios de comunicação de massa
que qualquer indivíduo, independente de e, no limite negativo, pela doença, inca-
cor, situação socioeconômica, religião, pacidade ou sofrimento admitidos de
credo político, devia ter saúde e, para tanto, a socie- acordo com os papéis e status dos indivíduos.
dade tinha a obrigação de mobilizar seus recursos Esta noção de saúde é a expressão ideológica
para promovê-la e preservá-la. do liberalismo. A saúde tem de ser um quid pro
Entretanto, desde meados dos anos 80, em quo, um valor de troca ou um bem mercantilizável,
conseqüência da precarização dos vínculos no mer- o que implica a substituição dos processos estatais
cado formal de trabalho e do enfraquecimento dos de proteção social de caráter universal pela compra
estados-nacionais, principalmente na periferia do e venda individual dos serviços e bens de consumo
sistema capitalista, ao lado da ênfase no papel dos "saudáveis". O limite desta substituição é, evidente-
indivíduos em prover uma vida mais saudável, a mente, definido pela renda familiar dos diferentes
concepção de saúde adquiriu crescentemente o sen- grupos sociais. O paradoxo da época em que vive-
tido de um projeto que remete aos usos sociais do mos é exatamente deixar para o âmbito da proteção
corpo e da mente. estatal sob a forma de políticas focalizadas a situa-
Do ponto de vista histórico, passamos a ção especial dos grupos que vivem nos limites da
viver numa época em que a representação sobre a marginalidade social, estruturalmente incapazes de
saúde e a vida saudável deslocou-se do âmbito do prover sua própria subsistência numa sociedade de
direito social para o de uma escolha individual. mercado. E isto, vale lembrar, tomou o nome de
Nesse projeto, admite-se a impossibilidade de uma eqüidade em saúde.
plenitude, deixando patente que os indivíduos Diferentemente do que acontece na maioria
devem conviver, de acordo com a sua posição dos países nas Américas, entre nós brasileiros, o

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valor da saúde é formal e institucionalmente defini- mas cujo conteúdo é extraído da clínica médica
do como um direito social. No Brasil, contudo, e/ou da epidemiologia.
vivemos a contradição do direito à saúde ser um A educação sanitária preventiva lida com
direito social, definido em termos do princípio da "fatores de risco" comportamentais, ou seja, com a
solidariedade social que, como diz o artigo 196 da etiologia das doenças modernas. A eficácia da edu-
Constituição, exige políticas sociais e econômicas cação expressa-se em comportamentos específicos
que visem a reduzir o risco de doenças e outros como: deixar de fumar, aceitar vacinação, desenvol-
agravos à saúde, mas historicamente estas políticas ver práticas higiênicas, usar os serviços para preven-
têm o sentido inverso, enquanto o sistema organi- ção do câncer, realizar exames de vista periódicos.
zado para garantir este direito responde (precaria- O repasse de informação, normalmente por meio
mente, com baixa resolutividade) à doença no da consulta ou em grupos, de palestra seguida ou
plano individual. não de perguntas e respostas, é o procedimento típi-
co do preventivismo.
Enfoques de educação e saúde O preventivismo fundamentado na clínica
serve para justificar métodos de controle que, além
Nessa seção, vamos examinar os enfoques de desconhecer os pacientes como sujeitos, inferio-
educativos, lançando mão da tipologia proposta rizam-nos com a generalização do método da admi-
por Tones, um autor usado no texto escrito em nistração supervisionada de dosagem (DOT), oriun-
1990, citado acima (STOTZ, 1993). do dos tratamentos psiquiátricos. Os programas de
O enfoque educativo predominante nos ser- controle da tuberculose passaram a adotar este pro-
viços de saúde durante décadas, praticamente exclu- cedimento estrito e, com apoio das instituições
sivo, é o preventivo. Os pressupostos básicos desse públicas internacionais, começa a se generalizar. É
enfoque são, de um lado, o de que o comportamen- o que acontece quando se percebe que o financia-
to dos indivíduos está implicado na etiologia das mento das ações de controle da hipertensão arterial
doenças modernas (crônico-degenerativas), compor- se baseia no número de grupos que ouvem pales-
tamento visto como fator de risco (dieta, falta de tras, têm consultas agendadas e recebem medica-
exercício, fumo etc.) e, de outro, o de que os gastos mentos.
com assistência médica têm alta relação em termos Com a instituição do Programa Saúde da
de custo-benefício. Ou seja, os gastos produzem Família (PSF), em 1994, o preventivismo deixou de
pequenos benefícios porque os problemas de saúde ser exclusivo. O PSF, além da proposta de ampliar
são de responsabilidade dos indivíduos. a cobertura de serviços, trouxe a perspectiva de
Nesse enfoque, não obstante a crítica de que mudar o modelo de atenção à saúde no Brasil.
a medicina curativa teria fracassado em lidar com Pode-se dizer que, ao lado do preventivismo ainda
os problemas de saúde comunitários, a educação dominante, um novo enfoque começou a ser desen-
orienta-se segundo o "modelo médico". De fato, volvido, o chamado enfoque da escolha informada
dada a associação estabelecida entre padrões com- que enfatiza o lugar do indivíduo, sua privacidade
portamentais e padrões de doença, cabe, nessa pers- e dignidade, propondo uma ação com base no prin-
pectiva, estimular ou persuadir as pessoas a modifi- cípio da eleição informada sobre os riscos à saúde.
car esses padrões, substituindo-os por estilos de Nos sistemas municipais onde houve a preocupa-
vida mais saudáveis. Elabora-se uma série de progra- ção em humanizar o atendimento, o profissional de

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saúde preocupou-se praticamente em compartilhar valorizar a substituição de um prazer imediato pela


e explorar as crenças e os valores dos usuários dos promessa de uma vida mais saudável no futuro.
serviços a respeito de certa informação sobre saúde, Essa possibilidade está inscrita nas suas condições
bem como discutir suas implicações. É importante de vida. O mesmo não se dá com os operários não
assinalar que a eficácia do enfoque da escolha infor- especializados, onde a prevalência do tabagismo
mada pressupõe simplesmente a demonstração de alcança 60%.
que o usuário tenha uma compreensão genuína da Os enfoques até aqui analisados baseiam-se
situação. na assunção da responsabilidade individual sobre a
Em alguns casos, tentativas de promover a ação e no aperfeiçoamento do homem por meio da
saúde de grupos populacionais como a dos idosos, educação. Vuori (1987) afirma que enfoques desse
levou alguns profissionais a assumir o enfoque de tipo têm características individualizantes, parciais e
desenvolvimento pessoal que adota, em linhas corretivas frente a problemas que requerem predo-
gerais, as mesmas proposições do enfoque da esco- minantemente soluções sociais e holísticas.
lha informada, aprofundando-as no sentido de Esse tipo de enfoque de educação e saúde
aumentar as potencialidades do indivíduo. Assume- acaba por contribuir, portanto, para que os gover-
se ser fundamental facilitar a eleição informada, nos transfiram aos indivíduos a responsabilidade
desenvolvendo destrezas para a vida, a exemplo da por problemas cuja determinação se encontra nas
comunicação, do conhecimento do corpo, da ges- relações sociais e, portanto, na própria estrutura da
tão do tempo para cumprir a prescrição médica, de sociedade.
ser positivo consigo mesmo e de saber trabalhar em Alternativamente a estes, o enfoque radical
grupos. Certamente, tais destrezas aumentam a parte exatamente da consideração de que as condi-
capacidade individual para controlar a vida e a ções e a estrutura social são causas básicas dos pro-
recusar a crença de que a vida e a saúde estão con- blemas de saúde. Os seus defensores são os herdei-
troladas desde o "exterior", isto é, pelo destino ou ros da medicina social do século XIX (Neumann,
por homens poderosos. Virchow e Guérin), que se colocam, geralmente, na
Os enfoques da escolha informada e do perspectiva educativa orientada para a transforma-
desenvolvimento pessoal reconhecem, ainda que ção das condições geradoras de doenças. A educa-
não de modo cabal e com todas as conseqüências, ção sanitária é vista como uma atividade cujo intui-
as dificuldades para uma eleição informada. De um to é o de facilitar a luta política pela saúde. O âmbi-
modo geral, porém, os dois enfoques pressupõem to da ação, sendo o da luta política, envolve o
indivíduos livres e em condições de realizar a "elei- Estado. E a intervenção deste, por meio de medidas
ção informada" de comportamentos ou ações. legislativas, normativas e outras, pode modificar as
Sabemos, entretanto, que a maioria absoluta da condições patogênicas. Somente dessa forma, acre-
população (no caso de países como o nosso) ou ditam os defensores do enfoque radical, é possível
uma parcela ponderável desta (nos países desenvol- apoiar escolhas que conduzam à saúde (Vuori) ou
vidos) não se encontra em condições de fazer tal superar posturas que culpabilizam a vítima
eleição. Tomemos o exemplo do tabagismo: para os (Navarro). Observe-se que, em função das próprias
indivíduos de classe média, com uma prevalência premissas, o enfoque radical assemelha-se ao pre-
de algo em torno de 25% de homens fumantes, é ventivo quanto à relevância da persuasão como
bastante plausível supor uma predisposição para princípio orientador da ação educativa.

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Como pertinentemente observa Tones (1987), depende, evidentemente, da posição de cada um a


promover mudanças políticas, econômicas e sociais respeito do que considera social e politicamente
pode ser uma "tarefa gigantesca", embora nem sem- relevante e cientificamente fundamentado. Mas na
pre implique, como supõe o autor, posturas pouco vida nem sempre uma opção exclui totalmente as
operacionais ou compromissos de nível subversivo. outras. A não-medicalização de certos problemas
Por outro lado, o enfoque radical desconhe- humanos é um dos exemplos de possível aproxima-
ce a dimensão singular dos problemas de saúde, na ção entre os enfoques de desenvolvimento pessoal e
medida em que não resolve adequadamente a dialé- radical. Alguns dos esforços centrados no ensino de
tica do individual e do social no campo da Saúde atitudes para proporcionar saúde são motivados
Pública. A dimensão do sofrimento individual e do pelo desejo de libertar as pessoas da dependência
direito da pessoa à saúde não pode ser secundariza- dos médicos e de capacitá-las a fazer coisas que pro-
da (ou mesmo esquecida) pela ênfase dada ao cará- vavelmente farão melhor do que (ou tão bem
ter social da doença e da necessidade das políticas como) por meio dos profissionais de saúde. A luta
públicas na área da Saúde. Gastão Wagner Campos, contra a medicalização aparece no enfoque radical
citando a colocação de Lilia Schraiber e outros relacionada ao desenvolvimento da consciência
autores de que para a epidemiologia a tuberculose é sobre as condições que estão como se diz no jargão
um "objeto singular" e não "plural", observa que a nos "limites do setor Saúde".
abordagem deveria partir de uma relação mais dinâ- A educação popular e saúde é outro dos enfo-
mica entre o individual e o coletivo e não, como ques que, a nosso ver, traz elementos da síntese
fazem os autores, de preconceitos que tentam anu- apontada no parágrafo anterior. Mas, como obser-
lar a relação entre essas duas dimensões; ademais, a va Eymard Vasconcelos, trata-se menos de uma teo-
constituição desse "objeto" (a tuberculose) depende
da relação entre indivíduos, grupos e classes sociais
com os serviços de saúde, o sistema produtivo e de
consumo, o saber médico-sanitário, etc. Por isso
mesmo a tuberculose nunca é apenas um "objeto
singular" mas "um fenômeno também plural, como
é o caso clínico em cada contexto específico"
(CAMPOS, 1991).
As necessidades de saúde são, portanto,
necessidades de milhões de indivíduos e, ao mesmo
tempo, necessidades coletivas. Ademais, essas neces-
sidades somente podem ser satisfeitas como necessi-
dades sociais. A questão está em saber, então, como
organizar as práticas de saúde de modo a contem-
plar a dialética do individual e do coletivo.

A educação popular e saúde


A opção por qualquer um desses enfoques

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ria do que de uma reflexão que se desenvolve a par-


tir de práticas diversas, ao longo dos últimos 30
anos (VASCONCELOS, 2001). Não por acaso o
autor denomina a educação popular e (em) saúde
como um movimento social de profissionais, técni-
cos e pesquisadores empenhados no diálogo entre o
conhecimento técnico-científico e o conhecimento
oriundo das experiências e lutas da população pela
saúde.
Este movimento, composto de diferentes cor-
rentes de pensamento (cristianismo, humanismo,
socialismo), cuja convergência é dada pelo compar-
tilhamento dos princípios da Educação Popular
formulados por Paulo Freire, apóia-se numa diver-
sidade muito grande de experiências, recolhidas e
sistematizadas a partir de problemas de saúde espe-
cíficos no âmbito dos serviços de saúde, dos locais
de moradia, dos ambientes de trabalho.
O adjetivo popular presente no enfoque da
educação popular e saúde não se refere ao público,
mas à perspectiva política com a qual se trabalha
junto a população, o que significa colocar-se a ser-
viço dos interesses dos oprimidos da sociedade em
que vivemos, pertencentes às classes populares, bem
como de seus parceiros, aliados e amigos. A educa-
ção popular considera que a opressão não é apenas
dos capitalistas sobre os assalariados e os trabalha-
dores em geral; mas também a opressão sobre a mu-
lher, os homossexuais, os indígenas, os negros.
(VASCONCELOS, 2003).
O traço fundamental da educação popular e
saúde está no método: o fato de tomar como ponto
de partida do processo pedagógico o saber anterior
das classes populares. Na saúde isso significa consi-
derar as experiências das pessoas (sobre o seu sofri-
mento) e dos movimentos sociais e organizações
populares (em sua luta pela saúde) nas comunida-
des de moradia, de trabalho, de gênero, de raça e
etnia. Ponto de partida significa reconhecimento,
palavra que tem o sentido de admitir um outro

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saber, tão válido, no âmbito do diálogo, quanto o Por último, vale chamar atenção para o fato de
saber técnico-cientifico. que a saúde no nível dos indivíduos, das populações e
Como ressalta ainda Vasconcelos (2003), ambiental tem características de complexidade em termos
apesar do conhecimento fragmentado e pouco ela- de estudo, de incerteza quanto às soluções propostas e de
borado que as pessoas comuns têm sobre a saúde, elevado impacto sobre a vida. Em decorrência dessas
a valorização do saber popular permite a "supera- características, a saúde não pode mais ser vista como uma
ção do grande fosso cultural existente entre os ser- área restrita ao domínio dos cientistas e técnicos. Esta
viços de saúde e o saber dito científico, de um comunidade precisa ampliar-se pela inclusão de novos
lado, e a dinâmica de adoecimento e cura do pares, de diversos setores da sociedade. Esta é a proposta
mundo popular, de outro". para uma "ciência pós-normal" que já não pode desconhe-
Do que se está a falar? Das incompreensões e cer "as questões mais amplas de natureza metodológica,
mal-entendidos, dos preconceitos, das opiniões social e ética suscitadas pela atividade [da ciência] e seus
divergentes que caracterizam as relações entre pro- produtos" (FUNTOWICZ; RAVETZ, 1997, p. 222). A
fissionais de saúde e usuários, entre técnicos e ampliação da comunidade de cientistas e técnicos na área
população. Na raiz deste processo está o "biologicis- da Saúde, em parte, inclui, mas precisa formalizar esta
mo, o autoritarismo do doutor, o desprezo pelas inclusão, pacientes e seus familiares, organizações dos
iniciativas do doente e seus familiares e da imposi- portadores de patologias, movimentos que militam na
ção de soluções técnicas restritas para problemas área da Saúde e representantes dos usuários nos conselhos
sociais globais que dominam na medicina atual". de saúde.
É importante entender também que o pró- Em conseqüência desses compromissos, os partici-
prio conhecimento técnico-científico é limitado, pantes do movimento da educação popular e saúde pre-
seja porque desconhece as causas de boa parte das cisam aprender a desenvolver formas compartilhadas de
doenças crônico-degenerativas, seja porque os trata- conhecimento entre técnicos, profissionais, pesquisadores
mentos propugnados não acarretam cura e ainda e população (CARVALHO; ACIOLI; STOTZ, 2001).
provocam, em muitos casos, efeitos adversos. Várias técnicas podem ser usadas a serviço desse processo.
Daí a relevância da problematização que, no enfo- Porém, mais importante do que o uso das técnicas é o
que da educação popular, implica a identificação de ques- processo em si, a possibilidade das pessoas manifestarem-
tões de modo inseparável dos meios ou recursos de que se como sujeitos e de sentirem-se capazes de ajudar a
tanto os serviços como grupos populares envolvidos dis- encontrar novas soluções ali onde muitas vezes as certe-
põem para tentar respondê-las. Na medida em que estão zas absolutas tornam-se obstáculos para o desenvolvimen-
em interação, grupos sociais distintos, inclusive pela to das possibilidades da própria vida.
forma de conhecer, uma abordagem comum dos proble- Certamente, o alcance de iniciativas de educação
mas de saúde implica na elaboração de uma base concei- popular será tanto maior quanto mais estiverem articula-
tual comum para pensar estes problemas. A noção de cui- das em redes sociais. A interação social e, portanto, a
dado em saúde é um dos conceitos com maior poder de comunicação dialógica, tornam-se uma necessidade
integração, mas certamente são os movimentos e organi- imprescindível para lidar com a complexidade, a incerte-
zações não-governamentais que propõem pensar tais cui- za e o elevado impacto das ações de saúde.
dados em termos das relações das pessoas, dos pertenci- O resultado deste processo no âmbito dos serviços
mentos e identificações no meio das comunidades nas e do sistema de saúde será a produtividade social, porque
quais se incluem. os recursos públicos, orientados de modo a garantir ações

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de saúde integral, resultarão de fato nas melhores formas pessoas mais sabidas, quem tenta impor uma cultura pre-
de encaminhar os problemas de saúde e de garantir qua- tensamente superior. Mas também é muito conservador
lidade de vida à população. quem, desejando preservar um modo popular idealizado
Uma advertência final sobre os riscos de assumir de viver, deseja parar o mundo, privando as pessoas e gru-
uma defesa abstrata de qualquer enfoque de educação e pos do contato com outras pessoas e grupos portadores
saúde, inclusive da educação popular, aparece na seguin- de marcas biológicas e culturais diferentes e, por isso
te passagem do texto de Eymard Vasconcelos citado aqui: mesmo, enriquecedoras. Ao educador popular caberá o
"Educação Popular não é veneração da cultura investimento na criação de espaços de elaboração das per-
popular. Modos de sentir, pensar e agir interagem perma- plexidades e angústias advindas do contato intercultural,
nentemente com outros modos diferentes de sentir, pen- denunciando situações em que a diferença de poder entre
sar e agir. Na formação de pessoas mais sabidas, devem os grupos e pessoas envolvidas transforme as trocas cultu-
ser criadas oportunidades de intercâmbio de culturas. E rais em imposição".
as pessoas mudarão quando desejarem mudar e quando Eduardo Navarro Stotz Sociólogo e historiador, Doutor em
tiverem condições objetivas e subjetivas de optar por um Ciências da Saúde e Pesquisador Titular em Saúde Pública da
outro jeito de viver. Certamente, não pretende formar ENSP/Fiocruz.

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Construindo a resposta à
proposta de educação e saúde
Victor Vincent Valla
Maria Beatriz Guimarães
Alda Lacerda
Ilustração: Lin

Construir respostas de baixo para cima, demarcando


importantes fases e produções que exemplificam o
movimento desenvolvido passo a passo pelos profis-
sionais de saúde.

A
partir da década de 80, um grupo de profis-
sionais de saúde do Núcleo de Educação,
Saúde e Cidadania da Escola Nacional de
Saúde Pública (ENSP), Fundação Oswaldo Cruz, vem
debatendo a questão da educação e saúde. Para desen-
volver a argumentação desse artigo, propõe-se um
mosaico de trechos escolhidos dos trabalhos mais uti-
lizados, inclusive os que foram produzidos e publica-
dos pelo grupo. O que segue é um esforço de sistema-
tizar esse debate.
A discussão desenvolvida tem como ponto
de partida a definição de educação e saúde a partir de
uma perspectiva histórica. Tradicionalmente, educa-
ção e saúde é entendida como um conjunto de infor-
mações que as pessoas devem incorporar com a fina-
lidade de garantir que sua vida seja mantida em con-
dições saudáveis. Pode-se dizer que educação e saúde
é a atividade mais antiga desenvolvida no campo da
Saúde, e que foi uma espécie de "invenção" dos gru-
pos hegemônicos a ser implementada como forma de
controlar "os pobres" ou subalternos, ou seja, os escra-
vos durante o Império e as classes populares na
República. Como nos ensinou Marx e Engels, uma
das funções- chave das chamadas classes dominantes

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é fazer com que seu pensamento seja socializado eixos: água, higiene, habitação e escola.
numa sociedade, de tal forma que seja incorporado Educação e Saúde:
pelos subalternos como a principal explicação de
historicamente um movimento
como essa sociedade opera.
Em se tratando de educação e saúde, os gru- de cima para baixo.
pos hegemônicos têm como interesse convencer os
trabalhadores a seguirem certas regras com intuito de Devido à necessidade de controlar as classes
preservar sua força de trabalho em condições mini- populares por meio de recomendações e regras, a
mamente saudáveis, e garantir que o trabalho execu- proposta de educação e saúde tem obedecido a um
tado produza o lucro necessário no processo de acu- movimento vertical. As orientações partem das auto-
mulação de capital. É importante ressaltar que a ridades governamentais, professores, profissionais
extração de lucro no regime da escravatura e também de saúde, em particular médicos, e outras categorias
no capitalismo, surgido nos séculos XIX e XX, vem de mediadores para as classes populares. O conheci-
sendo exercida com tanta intensidade e continuidade mento e o saber popular não são levados em consi-
que as próprias condições de vida dos grupos subal- deração.
ternos podem representar uma ameaça, não somente Certas fases históricas e obras escritas exem-
à saúde deles, mas também a dos membros dos gru- plificam este movimento. Podemos citar a questão
pos hegemônicos. Desse modo, para garantir o lucro da habitação popular no início do século XX, evi-
dos grupos hegemônicos é preciso que todos desfru- denciada a partir do ocorrido durante as grandes
tem de boas condições de saúde. Eis, portanto, a endemias e epidemias. Costa (1987) adverte que
invenção de educação e saúde: dominar, explorar, cabia ao Estado exercer pressão sobre as classes
mas se proteger. populares, no sentido de exigir consentimento e
Historicamente tem sido necessária a cons- colaboração, que acabava por transformar a liberda-
trução de um "cordão sanitário", uma linha geográfi- de desses sujeitos em imposição e coerção, com obje-
ca, que mantenha os pobres afastados com a finalida- tivo de corresponder aos interesses das classes domi-
de de não "contaminar" os ricos. Do mesmo modo nantes.
que foi preciso construir a idéia de que a raça negra Nesse contexto, as endemias e epidemias que
é inferior à branca para justificar o regime escravocra- atingiram a Cidade do Rio de Janeiro, principal-
ta, a proposta de educação e saúde também criou mente a da febre amarela, resultaram em um proje-
uma outra lógica que identifica as classes subalternas, to de disciplinarização higiênica dos programas de
ou como diz Cecília Coimbra as "classes perigosas", habitação social, uma vez que tinham como ponto
como ignorantes e sujas para a sociedade. É nesse sen- de partida os bairros pobres e em seguida alcança-
tido que nas escolas públicas e particulares transpare- vam os bairros habitados pelas classes dominantes.
ce a noção de que as pessoas que não tiveram acesso A polícia sanitária combatia a febre amarela e a
à escolaridade são ignorantes, e como conseqüência, tuberculose, e a prática higiênica cumpria a tarefa de
pobres e desempregadas, e que em função dessa pre- normatização da arquitetura do espaço urbano
cariedade e falta de conhecimento vivem em condi- visando a acabar "com a perigosa proximidade dos
ções anti-higiênicas. Daí a necessidade de educação e bairros pobres do centro nervoso das atividades
saúde. Nessa perspectiva, poderíamos dizer que, em comerciais, e em alguns casos das moradias burgue-
grande parte, a educação e saúde passa por quatro sas" (COSTA, 1987, p. 6).

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A epidemia da febre amarela foi responsável Em 1940, Victor Moura apresenta ao


por inúmeras mortes em todas as camadas da socie- Secretário-Geral de Saúde do Governo, Henrique
dade, inibindo a chegada de navios estrangeiros ao Dodsworth, um plano de estudo para solucionar o
porto do Rio. O que mais chamou atenção dessa problema das favelas. Em 1941, a Comissão sugeri-
epidemia foram os métodos policialescos de da por Moura entrega seu relatório contendo as
Oswaldo Cruz com a eliminação da doença pela seguintes recomendações: a) o controle de entrada
vacina. Porém, as inadequadas condições de vida das no Rio de Janeiro de indivíduos de baixa condição
classes populares, submetidas a horas excessivas de social; b) o recâmbio de indivíduos de tal condição
trabalho, alimentação e habitação precárias, locais para os seus estados de origem; c) a fiscalização seve-
de trabalho insalubres, levavam esses sujeitos a mor- ra quanto às leis que proíbem a construção e recons-
rer em maior número de tuberculose do que da trução de casebres; d) a fiscalização dos indivíduos
febre amarela, uma doença que não atingia tanto os acolhidos pelas instituições de amparo; e) promover
abastados (VALLA, 1986). forte campanha de reeducação social entre os mora-
Quanto à construção das habitações popula- dores das favelas de modo a corrigir hábitos pessoais
res, Leeds & Leeds (1978) constataram em seus estu- e incentivar a escolha de melhor moradia (VALLA,
dos que o Conselho de Saúde do Distrito Federal 1986, p. 36-37).
incluía em seus relatórios descrições que chamavam No ano seguinte, Moura anuncia a ocupação
atenção para o fato de que os cortiços do Rio de das casas populares construídas pelo governo, e
Janeiro eram higienicamente perigosos, e que os assim que os moradores ocupam essas primeiras
moradores deveriam ser removidos para os arredores casas, na presença do secretário de Viação e Obras, o
onde passavam trens e bondes. Esse Conselho prefeito ateia fogo no barracão que eles residiam
buscava controlar a construção das habita-
ções populares, consideradas prejudiciais à
saúde pública e aos preceitos sanitários, e,
nesse sentido, sugere destruir as casas anti-
higiênicas e reduzir as taxas de água e lim-
peza das casas higiênicas para que seus
moradores pudessem investir em melho-
rias de habitação (LEEDS, A.; LEEDS, E.,
1978; COSTA, 1987).
Barata Ribeiro ao iniciar uma guer-
ra de picaretas contra os corti-
ços e acabar com os casarões
infectos, onde se vivia em pre-
cárias condições de higiene,
inaugura a política de erradicação
dos cortiços, que culmina com a reforma
urbanística e sanitária realizada pela
administração Pereira Passos, no período
de 1902 a 1906 (VALLA, 1986).

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anteriormente. A destruição do barracão é símbolo Conforme já assinalado, ao falarmos em edu-


da postura das autoridades dessa época, ou seja, a cação e saúde de cima para baixo, estamos nos refe-
crença de que agindo desse modo estariam erradi- rindo a um discurso, cuja origem provém dos seto-
cando um grave problema de forma definitiva. res dominantes da sociedade, que deixa determina-
Ao lado do Parque Proletário, onde foram das idéias "no ar" levando a população a esperar um
construídas as casas populares, evidenciava-se a pre- comportamento submisso das classes populares.
sença da igreja, do posto policial e da escola de edu- Essa forma de abordar a educação e saúde ocorre em
cação física, fatores que foram complementados por várias esferas de conhecimento na sociedade, como
um programa mais sistemático. Segundo os registros se evidencia na discussão em torno da questão do
de Leeds & Leeds (1978, p. 39): "fracasso escolar".
Todos os moradores tinham carteiras de iden- Estudos (VALLA; HOLLANDA, 1994) indi-
tificação que apresentavam à noite nos portões guar- cam que entre as crianças provenientes das classes
dados que eram fechados às 22 horas. Toda noite, às populares que conseguem acesso à escola pública
nove, o administrador, dava um "chá" quando fala- poucas permanecem, tendo-se, portanto, uma eleva-
va a um microfone aos moradores sobre aconteci- da taxa de evasão e repetência na primeira série do
mentos do dia, e, aproveitava a oportunidade para primeiro grau, chegando a atingir cerca da metade
as lições morais que eram necessárias. dos alunos que se matriculam nos estabelecimentos
Como se pode apreender das idéias acima, públicos do País. Isso ocorre porque a taxa de "fra-
tem sido criado, na perspectiva da educação e saúde, casso escolar" é alta, como é o caso das crianças com
o preconceito em relação ao pobre. Essa discussão é baixo rendimento, aprovadas com médias mínimas
parte inerente de uma herança da cultura brasileira e passando de ano "de raspão".
que permanece imprimida na nossa sociedade até os Hoje em dia existe um grande questionamen-
dias de hoje. Fantin (1997) demonstra isso quando to da noção de "evasão", porque ela dá a entender
observa a contradição existente na relação entre que a criança sai por vontade própria da escola, seja
pobreza e sujeira, já que são os pobres os responsá- porque não se adapta a ela ou porque precisa conse-
veis pela limpeza das casas e cidades e a preparação guir trabalho. A noção mais abrangente nesse caso
dos alimentos. Segundo essa autora, pode-se pensar seria a de "exclusão". A escola se organiza e funcio-
que os pobres limpam objetos e casas dos outros, na de tal maneira que não consegue contribuir para
ficando para si "os restos da sujeira, do cansaço, da a aquisição de conhecimentos ou melhoria de vida
revolta, da resistência, da cultura, da marca que cada desses alunos. O que acontece na prática é que eles
um imprime na sua vida" (FANTIN, 1997, p. 50). são obrigados a deixá-la (VALLA; HOLLANDA,
Ainda nessa lógica, Velloso (2002) chama 1994).
atenção para a necessidade que temos de descartar As causas do fracasso escolar ainda são pouco
nosso lixo e evitar a aproximação com a sujeira, o conhecidas e um dos fatores que dificultam essa
mau cheiro, a contaminação e a doença, e, nesse sen- compreensão se deve ao fato dele ser visto como
tido, adverte para a marginalização social dos profis- uma questão individual, própria de cada aluno e
sionais que trabalham com o lixo, estigmatizados seus "problemas". As altas taxas de fracasso indicam,
como aqueles que vivem das sobras da humanidade, por si mesmas, que não podemos responsabilizar
e denominados de modo pejorativo de lixeiros e apenas os alunos, pais e professores pelos problemas
catadores. da escola pública. Essa discussão, por sua grandeza,

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deve ser encarada como uma questão social, coleti- saúde-doença da população. Ele ressalta que as socie-
va. dades providas de sistema médico de alto custo são
Um outro fator que contribui para a dificul- impotentes para aumentar a esperança de vida, exce-
dade em compreender o fracasso escolar é a tendên- to na fase perinatal; que o conjunto de atos médicos
cia em explicá-lo como uma questão de deficiência é insuficiente para reduzir a morbidade global; e que
de saúde. Assim sendo, ouve-se com freqüência jus- os programas de ação sanitária e os atos médicos
tificativas para o mau desempenho escolar, que podem resultar em fontes de novas doenças devido
incluem tanto o fato da criança ter algum problema à iatrogenia, ou seja, algumas intervenções dos pro-
de saúde física, tais como problemas de visão, audi- fissionais podem constituir uma "epidemia" mais
ção, desnutrição, distúrbios neurológicos, entre outros, importante do que qualquer outra, apesar de ser a
quanto ser portadora de problemas psicológicos ou menos reconhecida.
distúrbios de comportamento, como o excesso de Nesse contexto, diante da imposição dos
agressividade, apatia ou dificuldade de concentra- profissionais de saúde ao determinar condutas e
ção, que as impedem de aprender e limitam seu prescrições, e desqualificar o saber da população,
desenvolvimento escolar (VALLA; HOLLANDA, reduz-se necessariamente o nível global de saúde da
1994). sociedade inteira ao reduzir o que constitui justa-
No entanto, não nos parece casual a utiliza- mente a saúde de cada indivíduo: a sua autonomia
ção da saúde como forma de explicar o fracasso. pessoal (ILLICH, 1975).
Para grande parte da população brasileira, seja ela
composta de alunos, pais ou professores, explicar o Do vertical para o horizontal
fracasso pela deficiência de saúde seria uma forma
de lançar mão de um „escudo científico‰ que pou- A questão da educação em saúde representar
cos contestariam, já que os profissionais de saúde tradicional e historicamente um movimento verti-
ainda são vistos com certa mitificação por grandes cal, dos dominantes para os dominados, era o eixo
parcelas da população. Quase sempre o problema de central do debate travado nas décadas de 80 e 90
saúde é visto como "sem solução", porém, se nin- entre os membros do Núcleo de Educação, Saúde e
guém é responsável, quais são as implicações para as Cidadania da ENSP. A argumentação que contri-
crianças fracassadas? Se essas crianças são "doentes", buiu para a criação desse núcleo tinha como funda-
quais são suas possibilidades futuras para uma vida mento o fato da ENSP ser uma instituição federal e
útil, profissional e politicamente? pública, mantida pelos impostos que a sociedade
Como se pode apreender dos exemplos da paga. Seu objetivo principal consistia não somente
habitação popular e do fracasso escolar, a questão da em formar profissionais em saúde pública, mas tam-
educação e saúde permeia vários segmentos da socie- bém oferecer subsídios técnicos e assessoria a entida-
dade. Um outro segmento importante a ser conside- des populares da sociedade civil, como os sindicatos,
rado, que representa provavelmente um dos mais associações de servidores públicos e moradores.
perniciosos de todos, é a empresa médica. Tendo em vista a tendência da educação e saúde
Dentro dessa perspectiva, Illich (1975) chama expressar um movimento de cima para baixo, uma
atenção para o fato da empresa médica ter se torna- das principais preocupações desses profissionais era
do um grande perigo à saúde, contrariando o seu a de se precaver para não reproduzir o mesmo movi-
mito de contribuir para a solução dos problemas de mento nas suas relações com as entidades da socie-

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são, ou é mais do que isso? A questão é de facilitar,


simplificar a mensagem ou é a de possibilitar a cons-
trução de um outro conhecimento, que é o resulta-
do de uma relação desigual das duas partes? (VALLA,
1997).
Alguns exemplos, descritos a seguir, apontam
para esses questionamentos. O primeiro é de um téc-
nico que visita um povoado no interior do país,
onde a doença de Chagas é endêmica. Ao conversar
com as lideranças da comunidade e ensinar a iden-
tificar o barbeiro (Trypanosoma cruzi), borrifa todas
as casas e pede para os moradores o avisarem, na
próxima visita, se ainda perceberem esse inseto em
suas casas. Em sucessivas visitas, todos os moradores
relatam a presença dos barbeiros. O técnico fica con-
fuso e frustrado, até que em uma noite no bairro
uma liderança revela que quando ele avisa aos mora-
dores que visitará a comunidade, estes saem à procu-
ra de barbeiros para colocarem em suas casas, garan-
tindo dessa forma uma "dedetização" completa e
gratuita contra barbeiros, aranhas, mosquitos e mos-
cas.
O outro exemplo ocorre num centro munici-
pal de saúde. O técnico explica para as mães a neces-
sidade de ferver a mamadeira e o leite antes de ofe-
recer ao bebê. As mães assimilam a lição, repetem o
procedimento em casa, e na hora de viajar de ônibus
dade civil. para trabalhar com a criança, colocam a mamadeira
Assim, um dos eixos desse questionamento esterilizada numa sacola junto com os sapatos,
se referia ao modo como se daria o repasse de infor- dinheiro de passagem e outros utensílios (VALLA,
mações à população. Diante do acúmulo de conhe- 1997).
cimentos resultantes da pesquisa científica, de um Nos dois exemplos citados acima não se pode
lado, e dos conhecimentos provenientes das expe- negar que não houve aprendizagem, porém, as con-
riências de vida, escolarização e lutas políticas dos dições materiais de vida e a maneira de ver a socie-
setores organizados da sociedade civil, do outro, dade acabaram contribuindo para um resultado
ficava a dúvida se seria possível um repasse. Além diferente daquele esperado pelo transmissor. Os
disso, repasse de que? Onde seria a ponte entre o sujeitos que receberam as informações aprenderam
transmissor e o receptor? Há apenas transmissor e exatamente aquilo que os técnicos repassaram, o que
receptor em mão única? Bastaria conhecer a realida- nos leva a questionar se o profissional e/ou técnico
de dessas populações para poder facilitar a transmis- esqueceu de incluir algo ou se faltou a participação

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da população nessa discussão (VALLA, 1997).


O que antes se compreendia como a "cons- A utilização dos termos "resposta" e "propos-
trução desigual do conhecimento" passou a ser visto ta" no título desse artigo se refere a uma discussão
como a "construção compartilhada do conhecimen- metodológica desenvolvida no trabalho Educação e
to". Com este termo, "pretendia-se compreender o Favela (VALLA, 1986). Nesse estudo, procurou-se
modo como diversos atores sociais, envolvidos na analisar as propostas governamentais e as da Igreja
relação entre sociedade civil e o Estado, demanda- Católica para as populações das favelas em cada
vam a saúde como um serviço e um direito social, e conjuntura desde 1940. Embora haja um esforço em
que papéis esses atores desempenhavam, de fato, na ver as propostas dentro de uma perspectiva dialéti-
formulação das políticas públicas do setor" (CAR- ca, ou seja, proposta/resposta e dominação/resistên-
VALHO; ACIOLI; STOTZ, 2001, p. 105). A propos- cia, tende a ser mais fácil para o pesquisador, devi-
ta de construção compartilhada tinha, entre outros do à sua inserção social, captar as propostas das ins-
objetivos, compreender as representações de saúde tituições governamentais e religiosas do que as ela-
dos diferentes grupos da sociedade civil, bem como boradas pelos moradores das favelas (VALLA, 1986).
as representações que fazem da população os diver- A noção de proposta reflete bem as idéias a
sos grupos e instâncias do Estado que fornecem esse serem difundidas no que concerne à questão da
bem social; além de oferecer subsídios às organiza- habitação popular, do fracasso escolar e da empresa
ções civis no que concerne às suas reivindicações no médica, onde os interesses dos setores hegemônicos
campo de Saúde, e aos planejadores do setor, no que da sociedade tendem a ser justificados ao difundir
diz respeito à adequação dos serviços às necessidades noções de higiene (habitação), ignorância (fracasso
da população e à implementação de propostas escolar) e expropriação da saúde (empresa médica).
oriundas do movimento social. A percepção da resposta não é tão fácil, pois, às
Os profissionais da ENSP que desenvol- vezes , não é algo necessariamente organizado, mas
viam a discussão sobre o repasse de conhecimento sim criado a partir da própria proposta. Nesse sen-
perceberam que estavam lidando com um saber tido, as epidemias e a ameaça aos negócios e às pró-
construído por meio de uma relação de poder e prias moradias da burguesia podem ser entendidas
dominação, que acontece de forma clara em algu- como sendo uma resposta.
mas ações dos serviços públicos de saúde. Desse No que se refere à habitação popular e ao fra-
modo, chegaram à conclusão que embora a constru- casso escolar, as propostas formuladas tinham o efei-
ção do conhecimento fosse desigual, não necessaria- to de humilhar e controlar os moradores e alunos.
mente havia uma hierarquia dos saberes entre si, As respostas, por sua vez, poderiam ser entendidas
mas sim diferenças entre o saber técnico e popular, como o ambiente insalubre e a constatação de um
e que ambos deveriam ser levados em consideração sistema escolar incapaz de comprovar sua eficácia. Já
nas práticas de saúde (VALLA, 1998; CARVALHO; no caso da empresa médica onde se tem investimen-
ACIOLI; STOTZ, 2001). tos num sistema médico mais complexo e sofistica-
do, a resposta viria pelo aparecimento da iatrogêne-
se e da baixa resolutividade dos problemas de saúde
Considerações finais: enfrentados.
construindo a resposta à proposta Apesar das contribuições importantes de
de educação e saúde. diversos pesquisadores em relação ao fracasso esco-

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lar (COLLARES; MOYSES, 1985; PATTO, 1991) e à


empresa médica (ILLICH, 1975), a socialização das
suas idéias desmitificadoras não tem sido suficiente-
mente abrangente para impedir que as "vítimas" do
fracasso escolar e da empresa médica sejam reféns
dos efeitos negativos da sua implementação, tais
como a humilhação, baixa estima e redução de auto-
nomia pessoal.
A contribuição de pesquisadores como Costa
(1987) e Leeds & Leeds (1978) nos ajudam a perce-
ber as propostas dos governantes dentro de uma
perspectiva histórica. Mas a detecção das respostas
às propostas, mesmo num período mais remoto da
historia, é uma tarefa desenvolvida por alguns histo-
riadores, nos permitindo perceber que, durante
períodos mais longos, determinadas propostas ofi-
ciais são em última instância respostas às reivindica-
ções de grupos subalternos.
Existem, por exemplo, historiadores que com-
preendem as "iniciativas" de Getúlio Vargas de criar
o salário mínimo e o direito a férias para os traba-
lhadores como uma resposta daquele governo às rei-
vindicações que os movimentos populares e sindica-
tos vinham demandando há décadas.
Na mesma linha, a proposta do "favela bairro"
(projeto de urbanização de favelas dos dois últimos
governos municipais do Rio de Janeiro) é, na realidade,
uma resposta aos anos de reivindicações das federações
de associações de moradores de favelas (FAFEG e
FAFERJ). Valla relata um congresso de associações de era a quem pertencia a iniciativa. Nesse sentido, os
moradores de favelas que ocorreu há mais de 15 anos, às diversos programas propostos pelas autoridades não são,
vésperas das eleições municipais do Rio de Janeiro, onde na realidade, propostas, mas sim respostas às ações dos
o debate principal girava em torno das propostas de populares. Com isso, pretendemos ressaltar a idéia de
urbanização das favelas apresentadas por diferentes par- "atividade" das classes populares onde tradicionalmente
tidos políticos, incluindo o PT. Após a argumentação é vista a "passividade" e a "ociosidade" (VALLA, 1986).
dos partidos, várias lideranças criticaram a proposta, res- As discussões apresentadas acima a respeito da
saltando que os moradores já estavam fazendo há muito "construção desigual" e da "construção compartilhada" do
tempo a própria urbanização, seja puxando os fios de conhecimento pressupõem o diálogo permanente entre os
eletricidade, abrindo ruas, construindo escadas ou pro- mediadores do Estado e as classes populares, um movimen-
videnciando água. O que estava em questão, na verdade, to onde toda proposta antevê uma resposta e vice-versa,

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construindo assim um processo que produz um conheci- Assim, por um lado, a procura dessas terapias não
mento síntese, ou seja, a produção de um terceiro conheci- convencionais pelas classes médias no mundo todo pode
mento que é a combinação das duas contribuições. Desse ser compreendida como uma resposta à insatisfação com a
modo, o técnico que borrifa as casas populares é a propos- resolutividade das práticas biomédicas; por outro lado, o
ta; os moradores que "catam" os barbeiros são a resposta. A extraordinário crescimento da presença das classes popula-
síntese é a dedetização gratuita das casas. res em muitos países nas igrejas de todas as religiões, prin-
Por fim, como forma de concluir esse trabalho, cipalmente nas chamadas "evangélicas" e/ou "pentecostais"
procura-se compreender melhor a relação "proposta"/"res- pode estar significando uma contra-proposta, ou uma res-
posta" e "dominação"/"resistência". Na perspectiva de um posta das camadas populares à proposta da biomedicina.
período mais longo, pode-se encarar a empresa médica e a Tem-se o exemplo dos 500 centros espiritualistas e cinco
engrenagem de uma biomedicina mais complexa e sofisti- milhões de fiéis no México que evidencia o sucesso das
cada como uma proposta claramente vertical. Porém, curas espirituais com sofrimentos crônicos de uma forma
durante o século XX, principalmente a partir das décadas que a biomedicina não é capaz de igualar (VALLA, 2001).
de 50 e 60, é possível perceber o surgimento de uma res-
posta à hegemonia da biomedicina com o surgimento dos Victor Vincent Valla Pesquisador Titular do Departamento de
Endemias Samuel Pessoa, da Escola Nacional de Saúde Pública,
"beatniks" e dos "hippies" e com a vinda para o Ocidente Fundação Oswaldo Cruz, Professor da Faculdade de Educação da
das propostas filosóficas do Oriente. Universidade Federal Fluminense.
Com o tempo, as classes médias começaram a bus- E-mail: valla@ensp.fiocruz.br
Maria Beatriz Guimarães Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto
car alternativas no campo de Saúde por meio da homeo- de Medicina Social da UERJ, Pesquisadora Visitante do Convênio
patia, florais, acupuntura, shiatsu, meditação, tai-chi-chuan, FIOCRUZ/FAPERJ.
entre outras. No entanto, essa "contra proposta" é inacessí- E-mail: beatriz.guima@ensp.fiocruz.br
Alda Lacerda Médica Homeopata e Mestre em Saúde Pública pela
vel às classes populares devido ao custo financeiro, pois ENSP/FIOCRUZ e Professora do Curso de Autogestão em Saúde
muitas dessas práticas ainda não estão disponíveis nos ser- Educação à distância da ENSP/Fiocruz.
viços públicos de saúde. Email: alda@ensp.fiocruz.br

REFER¯NCIAS

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67-abertura:67-abertura.qxd 8/11/2007 11:14 Page 1

Diálogos com a experiência

Grupos de mulheres e a elaboração de Manual para equipes de saúde: o tra-


material educativo balho educativo nos grupos
Relato que mostra o contexto de pesquisa realizada O material educativo analisado neste artigo repre-
no período de maio de 2000 a dezembro de 2001 e o senta um aporte no processo de formação indivi-
processo de elaboração de cartilhas utilizadas como dual e coletivo de mulheres, com a utilização de
subsídios no trabalho educativo. Pág. 68 formas inovadoras de comunicação. Pág. 75

Uma lição aprendida Análise da produção de material


educativo
Percepções da leitura do Manual para Equipes de
Saúde numa tentativa de reproduzir as reflexões a importância da identificação e o intercâmbio de
ocorridas durante o processo dos grupos e da pesqui- práticas dialógicas com base na produção de
sa, na busca de sistematizar alguns passos essenciais material educativo é analisada pela professora
no desenvolvimento de atividades educativas. Pág. 87 Maria Alice Pessanha de Carvalho. Pág. 91
68-74-grupo de mulheres:68-74-grupo de mulheres.qxd 8/11/2007 11:26 Page 1

Grupos de Mulheres e a
elaboração de material educativo
Margarita Silva Diercks
Renata Pekelman
Daniela Montano Wilhelms
Ilustração: Rodrigo Rosa

Uma experiência de pesquisa participativa, com vistas a elaboração


de um material educativo adequado à realidade social, econômica e
cultural de um grupo de mulheres e de suas comunidades.
ste relato busca situar o contexto da pesqui- DST/AIDS UNESCO e contou com o apoio da

E sa „Prevenindo DST e aids em mulheres de


baixa renda: a elaboração de cartilhas no
processo educativo‰, realizada no período de maio
Gerência do Serviço de Saúde Comunitária do
Grupo Hospitalar Conceição (GHC). Gostaríamos
ainda de observar que este relato é resultado dos
de 2000 a dezembro de 2001. Esse estudo contou frutos da discussão com todos os participantes.
com a participação de profissionais de saúde e A pesquisa teve vários momentos: a forma-
população de quatro unidades de atenção primária ção do grupo coordenador, a capacitação de todos
em saúde do Serviço de Saúde Comunitária (SSC) para o desenvolvimento dos grupos e dos materiais
do Hospital Nossa Senhora Conceição, que atua educativos, seminários de avaliação do processo. O
em bairros da Zona Norte de Porto Alegre/RS: SSC conta com doze unidades de saúde, das quais
Divina Providência (UDP), Jardim Itu (UJI), quatro se propuseram a realizar o trabalho com
Jardim Leopoldina (UJL) e Nossa Senhora grupos. Como resultado da pesquisa elaboramos
Aparecida (UNSA), envolvendo 16 profissionais e quatro materiais educativos para o trabalho com
mais de 40 mulheres das respectivas comunidades mulheres e um manual para equipes de saúde, para
onde atuam as equipes de saúde. Essa pesquisa foi trabalhar com grupos, que será parcialmente apre-
financiada por: Ministério da Saúde CN sentado e comentado.
Os grupos educativos tiveram como objetivos:
Discutir e conversar com estas mulheres a respeito das doenças sexualmente transmissíveis (DST) e HIV/aids. Essa
1 discussão passa por problematizarmos a identidade corporal, os aspectos sociais e culturais da sexualidade, discutir
a negociação do uso do preservativo e, principalmente, romper o silêncio cultural que envolve todos estes assuntos.

2 Elaborar uma cartilha adequada à realidade social, econômica e cultural (incluindo a linguagem) dessas
mulheres, com o objetivo de reproduzir nas comunidades as discussões dos grupos. Esta cartilha é caracterizada por
seguir uma pedagogia problematizadora sobre o tema.

3 edu
Distribuir este material nos diversos espaços de convívio das pessoas que fazem parte dessas atividades
cativas, com o objetivo de formar redes de conhecimento crítico em relação a estes problemas.

68
68-74-grupo de mulheres:68-74-grupo de mulheres.qxd 8/11/2007 11:26 Page 2

Organização e planejamento A seguir, destacamos os aspectos mais


importantes do planejamento local dos grupos
dos grupos locais
educativos:
- a divulgação dos grupos para a popula-
A discussão realizada nas quatro equipes ção deu-se pelas diferentes estratégias de acordo
envolvidas no projeto definiu quais profissionais com cada realidade.
de diferentes categorias iriam participar, confor- - discutir a prevenção das DST e
me seu interesse. Em todas as unidades for- HIV/Aids com mulheres com parceiros fixos:
maram-se grupos de trabalho interdisciplinares, „Isso não é pra mim , isso é pra mulher que anda
com a participação de psicólogas, médicas, auxi- namorando por aí‰.
liares de enfermagem, assistentes sociais, terapeu- - a valorização das histórias de vida das
tas ocupacionais e auxiliares administrativos. participantes, aspecto fundamental no processo
O roteiro básico para as oficinas foi dis- educativo proposto.
cutido pelo grupo coordenador da pesquisa, - o estabelecimento de vínculos e a sensibi-
podendo cada equipe modificá-lo, conforme sua lização para a negociação com o(s) parceiro(s) e não
realidade. Inicialmente foram esboçados oito o direto e improvável „vamos usar a camisinha‰.
encontros que poderiam ser desdobrados, o que - o registro dos encontros foi feito por
aconteceu conforme esperado na maioria dos gru- meio de gravação em fita cassete e observação par-
pos, com uma média de 12 encontros. Cada ticipante. Em duas unidades houve também fil-
grupo coordenador se reunia sistematicamente magem das reuniões. Os materiais, em sua maio-
para planejar e avaliar os encontros. ria foram transcritos.

As mulheres dos grupos


UDP/ UNSA UJL/ UJI
Faixa etária 20 a 50 ou mais 20 a 50 ou mais

Escolaridade maioria com ensino fun- a maioria com ensino fundamental completo e
damental incompleto ensino médio incompleto.

Renda familiar 2,5 salários mínimos até 4 salários mínimos

O número de participantes nos encontros empregatício e trabalho temporário), aposentadas.


variou de 8 a 12. As mulheres caracterizavam-se Até a realização dos roteiros das cartilhas, acontece-
por, na maioria, terem filhos; a maioria não usava ram de 12 a 14 encontros; para a avaliação e distri-
preservativo; trabalhadoras informais (sem vínculo buição da mesma, 4 a 6 encontros.

69
68-74-grupo de mulheres:68-74-grupo de mulheres.qxd 8/11/2007 11:26 Page 3

O desenvolvimento das atividades tudo graças ao grupo. ¤s conversas aqui da


gente... estou entusiasmada. Estou mudando, aos
educativas
pouquinhos. Já consegui viajar sozinha, visitar o
Para as profissionais envolvidas nessa pro- meu pai. Nunca tinha conseguido isso. Meu
posta, estava claro que o principal não era ape- marido não deixava, e eu achava que não
nas informar e sim que as mulheres „fossem afe- podia...‰.
tadas‰ e pudessem ter um espaço reflexivo sobre Nos encontros iniciais, abordamos o
o problema em questão. O SSC já vinha fazendo corpo, sua construção cultural, o relacionamen-
oficinas com uma metodologia que não produ- to com o companheiro, o seu prazer, o cuidar de
zia um questionamento sobre vulnerabilidade, si. Muitas mulheres dos grupos acham o sexo
embora as participantes já conhecessem e soubes- feio, inclusive explicitando que muitas vezes fize-
sem manusear os preservativos, tendo também ram sexo por obrigação, demonstrando uma
relativo conhecimento em relação à aids. A dis- dificuldade no relacionamento afetivo-sexual
cussão deveria inserir a problemática das com os seus companheiros, uma submissão afe-
DST/aids no cotidiano das mulheres, levando tiva e um desconhecimento do seu corpo e das
em consideração toda a complexidade do proble- suas possibilidades de prazer .
ma, coerente com a metodologia educativa da A negociação com os parceiros foi o prin-
pesquisa. cipal assunto em todos os encontros realizados.
O que inicialmente motivou a participa- Podemos dizer que, no início desse processo esta
ção das mulheres foi a curiosidade sobre o assun- negociação parecia inviável, muito longe da rea-
to e o interesse pessoal de poder discutir o tema lidade dessas mulheres, mas lentamente elas pró-
com a sua família. Desde o primeiro encontro, prias perceberam que é possível negociar com
percebemos que as mulheres com parceiro fixo delicadeza, com „jeito‰, usando várias estratégias
desconheciam a sua crescente vulnerabilidade em que possibilitem ou facilitem „comer o mingau
relação a epidemia, ainda acreditando que a aids pelas beiradas‰. A experiência de algumas mulhe-
é um problema de grupos de risco: „é uma doen- res, que já faziam uso do preservativo nas suas
ça de mulher da vida, e também daqueles...de relações, trouxe as dificuldades de negociação
bicha, mulher casada não, não pega...‰.( R., do enfrentadas no cotidiano com os parceiros. O
lar, 35 anos, casada há 14 anos) acordo com os companheiros, de forma geral, é
Nas reuniões procuramos sempre propi- único e subjetivo de cada casal, portanto, tendo
ciar espaços para as mulheres colocarem as suas tempos e características subjetivas próprias. Na
situações de vida, o que desencadeava discussões questão da fidelidade, percebemos que a infideli-
sobre seu cotidiano: relação com companheiro, dade masculina é tida como natural, mas é nega-
cuidado dos filhos, cuidar da casa, cuidado com da na relação. Há um silêncio culturalmente
o corpo e de valorização da auto-estima, como reforçado sobre este tema.
expressa a fala a seguir: Os grupos nos mostravam que negociar o
„Esses dias me olhei no espelho e me preservativo era negociar „ser mulher‰, conversar
achei bonita. Até aqueles babados que eu tinha sobre o seu prazer negado, sobre o seu desconhe-
sumiram . Eu disse para mim: nossa, eu até que cimento do corpo e do parceiro, discutir formas
tenho um corpinho legal ainda. Eu me achava novas de prazer e de manifestação da sua sexua-
tão feia. Também me olhei por baixo. Nunca lidade, enfim, um resgate da sua subjetividade e
mais tinha feito aquilo... sabe que gostei? Mas foi identidade feminina.

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Os encontros ainda abordaram as DST/ têm para negociar, da necessidade de resgatar a auto-
HIV/aids apresentando aspectos objetivos de estima, da necessidade do diálogo entre os parceiros,
transmissão e características clínicas da maioria de romper o silêncio que é imposto culturalmente
das DST e a prática do uso da camisinha. para a maioria das mulheres. É fundamental con-
Todas as mulheres levaram camisinhas versar sobre a infidelidade, sobre o uso do preserva-
para tentarem utilizar com os seus parceiros. tivo nas relações, sobre o casal. Todo o grupo de
Algumas decidiram usar o preservativo já que trabalho se reuniu e montamos um roteiro que jun-
achavam que não haveria dificuldade na sua tou as falas das mulheres, tanto da cartilha como
negociação. Outras estavam temerosas da reação das reuniões, e também as falas dos técnicos, pois
dos seus parceiros. As que utilizaram tentavam um de nossos objetivos é compartilhar a construção
estimular as outras mulheres para seu uso. Cada do conhecimento.
mu-lher tentou negociar com o seu parceiro de Na Unidade Divina Providência, as mulhe-
acordo com a realidade afetiva do casal. res participaram ativamente na discussão do tipo
Temos certeza que as mulheres participantes de material educativo a ser elaborado, optando
foram „afetadas‰ nesse processo educativo, mas a por uma cartilha com desenhos mais realistas, ser
discussão sobre o uso do preservativo por parte das direto, palavras fáceis, que tenha intimidade.
mulheres com parceiro fixo deve ser continuamen- Definimos as principais idéias do roteiro: corpo e
te reforçada, esclarecida e discutida seja em grupos, sexualidade, gênero e negociação.
na consulta individual e especificamente, neste tra- As coordenadoras do grupo elaboraram
balho, quando acontece a distribuição por parte das um roteiro inicial e uma diagramação, para dar
mulheres do material educativo elaborado. concretude ao material educativo e assim discutir
novamente com o grupo .
O processo de elaboração Na Unidade Nossa Senhora Aparecida, a
discussão se deu de forma semelhante, a oficina foi
das cartilhas
intensa e houve uma boa participação na elabora-
As quatro unidades em questão desenvol- ção da cartilha. As pessoas do grupo como um
veram a elaboração dos roteiros de forma seme- todo definiram que tinha de ser uma cartilha, tam-
lhante nos aspectos técnicos do processo, embora bém com desenhos mais realistas. Decidimos fazer
as formas de participação tenham sido diferentes. uma cartilha com quatro histórias em quatro livri-
Na Unidade Jardim Leopoldina, as próprias nhos. No grupo discutimos quais os pontos que
mulheres participantes do grupo elaboraram uma havíamos abordado e que seria importante estarem
cartilha. Discutiram no grupo alguns aspectos gerais contemplados na cartilha, e os profissionais que
do roteiro e se reuniram fora do horário do grupo, ficariam encarregados de fazer os roteiros que
quando elaboraram um roteiro, desenhos e a diagra- seriam avaliados e modificados pelo grupo.
mação de uma cartilha e „surpreenderam‰ as coor- Na Unidade Jardim Itu, aprofundamos as
denadoras com uma cartilha pronta. A cartilha ela- questões de sexualidade, em especial sua descober-
borada por este grupo, começa com uma capa sim- ta quando ocorrem novos relacionamentos na
ples manuscrita com lápis de cor verde, com o terceira idade. A construção do material educati-
seguinte título: "APRENDENDO COM A VIDA". vo deu-se de forma conjunta e participativa, pois
Elas começam a discutir, por meio de histórias de cada uma das integrantes trouxe contribuições,
suas vidas, como vêem a problemática do HIV, do com textos e situações já desenhadas, inspiradas
uso da camisinha, das dificuldades que as mulheres em uma das mulheres do grupo que nesse perío-

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do redescobriu sua sexualidade, „ela com 70 sua metodologia e das mudanças que ocorreram
anos, há 20 anos viúva, encontra seu homão de com as mulheres que vivenciaram esse processo,
50 e se descobre como mulher‰. Apresenta-se a desde as trabalhadoras de saúde que foram tocadas
discussão do uso do preservativo com os homens por essa vivência levando-as a reverem suas vidas
de terceira idade e suas dificuldades. privadas, que como as usuárias encontraram um
Apresentamos a alternativa da camisinha femini- lugar para trocar experiências, falar sobre sua
na. Fazemos um cartaz colocando a situação: sexualidade, reverem aspectos de suas vidas.
pessoas de terceira idade, suas dúvidas e sugestão No Nossa Senhora Aparecida, criamos
do uso do preservativo feminino. camisetas com a capa da cartilha, que foi con-
feccionada pela cooperativa do bairro, fizemos
Lançamentos locais das uma sessão de autógrafos, numa sexta-feira à
tardinha, quando as pessoas voltam do traba-
cartilhas e cartaz
lho. Pensando na dinâmica do local, convida-
Após alguns meses de espera, o material mos no dia pelo de carro de som, cartazes e
educativo ficou pronto! Foi com grande ansiedade também colocamos um aviso em uma rádio
e alegria que recebemos o material em outubro de AM da cidade que tem alto índice de audiência
2001. Rapidamente os diferentes grupos se organi- no bairro. Fechamos a rua ao lado do super-
zaram para discutir o lançamento local, o lança- mercado a qual foi toda enfeitada com balões,
mento geral ou ato oficial e sua distribuição. vários varais de camisinhas e um painel colorido
Na Unidade Divina Providência, organi- com bexiguinhas criando um efeito estético bastan-
zamos o lançamento no final de tarde, em fren- te interessante. Houve então shows de talentos
te à casa de uma das participantes. Seriam
montadas barraquinhas no local com as carti-
lhas e também com bolos, salgados e refrige-
rantes que cada uma de nós traria. Também se
suge riu de pas sar nova men te o Vídeo
„Mulher‰, do Ministério da Saúde. As profis-
sionais da unidade colocaram uma faixa na rua
e conseguiram alguns CDs que tinham músicas
alusivas à prevenção de DST/HIV/aids. Todas
nós ficamos de convidar o máximo de mulhe-
res para este encontro. No dia, várias pessoas tra-
ziam as cadeiras de casa para poderem sentar e
conversar um pouco com as vizinhas. Muitas
delas levaram o material para ser distribuído
com suas conhecidas, vizinhas e parentes.
O grupo do Jardim Itu fez a montagem de
uma dramatização (com roteiro e direção coleti-
vas) baseada no cartaz elaborado, e foi apresentada
em duas ocasiões: para o grupo da terceira idade e
a associação de moradores. O teatro inicia com
uma narração que fala do processo da pesquisa,
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locais (música e dança), que eram interrompidos lhosas. Parceiros e amigas das mulheres comparece-
por „dicas de saúde‰, brincadeiras para as crianças ram ao local. Iniciamos a distribuição das cartilhas.
e uma barraquinha com camisinhas e cartilhas a As pessoas interagiram com bastante interesse,
serem autografadas. Grande número de pessoas par- fazendo perguntas sobre o grupo e discutindo o
ticipou do evento, que tinha um caráter bastante conteúdo da cartilha. Observamos que os homens
lúdico, que resultou em momentos divertidos, pra- demonstraram grande interesse sobre o assunto dis-
zeirosos e educativos onde brincar, aprender e cons- cutido, solicitando uma iniciativa como esta junto
truir novas formas e questionamentos em relação a eles, pois revelavam ter outras opiniões acerca do
ao problema das DST/HIV/aids. assunto. Chamou nossa atenção que após a „expla-
Na Unidade Jardim Leopoldina, marcamos nação‰, feita individualmente, todas as pessoas liam
a data (24/11/2001), um sábado à tarde, na praça ao a cartilha atentamente e queriam comentar o que
lado do Posto de Saúde, quando um maior núme- haviam lido, demonstrando identificação com as
ro de moradores utiliza a praça para lazer. situações ali retratadas e parabenizando as mulheres
Estávamos em clima de „estréia‰, todas muito orgu- pelo resultado do trabalho.

Principais resultados
Reconhecimento da vulnerabilidade ao Criação de várias estra tégias de
1 HIV. 7 negociação para o sexo seguro; o
reconhecimento de que a infi delidade
A existência de construções culturais precisa ser discutida e os acordos
2 muito arraigadas sobre o corpo, a possíveis estabelecidos.
sexualidade e o prazer, torna o proble-
ma difícil e complexo de ser discutido. A melhora da auto-estima e da auto -
8 nomia resultantes da reflexão, do
sentimento de autoria e da possibili-
A relativa facilidade no “manejo” do dade subjetiva de mudan ça.
3 preservativo masculino contrasta com a
dificuldade do diálogo com o seu A construção de três cartilhas e um
companheiro. 9 cartaz que seguem uma peda gogia
construtivista e problematizadora,
4 A dificuldade variável das mulheres em
se apropriar da sua palavra e de se sen-
permitindo a ressignificação do pro-
blema.
tir sujeita de si.

A necessidade de participação e 10 Elaboração de um Manual para


Equipes de Saúde, no qual se dis cute
5 autonomia, sentida e desejada, em a proposta teórico-metodológica e
conflito com os valores estabelecidos. um roteiro de oficina utilizado na
pesquisa.
O diálogo construído no cotidiano, por-
6 tanto com tempos e características
subjetivas próprias, faz com que a 11 Acardistaztripara
buição de três cartilhas e um
a população geral pelas
maioria das mulheres participantes mulheres que participaram na sua
coloque o uso do preservativo na con- vizinhança e locais de con vívio
versa com o seu companheiro. tornando-as agen tes multiplicadores.

73
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Conclusões tégias femininas de conversar sobre o tema com o


companheiro, mas todas se utilizam de recursos
O problema DST/HIV/aids poderá ser dis- subjetivos como o humor, a sedução, a sensualida-
cutido em toda sua complexidade numa aborda- de, „comendo o mingau pelas beiradas‰ e nunca
gem conjunta de sexualidade, reconhecimento com um discurso objetivo e direto como „vamos
social e cultural do corpo, relações de poder no usar a camisinha, por causa da aids‰ .
casamento, sexo/amor e suas interrelações, acesso Os materiais educativos, em geral, não refle-
a preservativos, entre outros temas que devem ser tem a complexidade da prevenção de DST/aids e se
citados. Uma abordagem que leve em considera- utilizam de uma linguagem técnica e centrada na
ção, prioritariamente, aspectos biológicos do pro- doença, dificultando a compreensão por parte das
blema e não problematize a complexidade do mulheres da informação que está contida no mate-
mesmo, é ineficaz, já que não permite uma apro- rial. A participação da população na elaboração de
priação e uma identificação por parte das mulhe- material educativo, além de melhorar a auto-estima
res de baixa renda da sua vulnerabilidade. Nos do grupo que o realiza, traz o problema numa lin-
deparamos com um distanciamento entre o dis- guagem adequada à realidade cultural desta popu-
curso oficial tecnicista dos profissionais de saúde e lação, aborda o problema de forma complexa e
a compreensão deste discurso por parte da popu- principalmente favorece uma identificação por
lação feminina de baixa renda. Discutir negocia- parte dos sujeitos com o material, facilitando a sua
ção para o sexo seguro entre casais requer alguns compreensão e apreensão do conteúdo abordado.
pressupostos: sempre abordar a possibilidade de
negociação; perceber que cada casal irá discutir Daniela M. Wilhelms Médica de Família e Comunidade e
sexo seguro dentro das suas possibilidades subjeti- participante do Núcleo de Educação em Saúde/GHC/Porto
vas e do seu cotidiano e, por isso, cada casal tem o Alegre/RS.
seu tempo de negociação. Existem inúmeras estra- E-mail: danielamontanow@yahoo.com.br

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74
75-86-processo:75-86-processo.qxd 8/11/2007 15:05 Page 1

Manual para equipes de saúde: o


trabalho educativo nos grupos
Margarita S. Diercks
Renata Pekelman

Ilustração: Rodrigo Rosa

Uma análise do processo participativo de comunicação gerador de


um material educativo, planejado passo a passo para cumprir seu
objetivo de subsidiar uma campanha de prevenção de DST/HIV/aids.
ste texto é um fragmento do Manual para

E
estranhamento, aliados ao respeito crítico pelos
equipes de saúde elaborado pelas autoras aspectos culturais, sociais e econômicos dos par-
no contexto da pesquisa descrita no capí- ticipantes, fazem com que seja possível elaborar
tulo anterior „Grupo de mulheres e a elaboração um material educativo que exponha justamente
de material educativo‰. Este Manual buscou sis- os aspectos inicialmente não visíveis dos sujeitos
tematizar a experiência do grupo que coordenou e sua realidade. Esta invisibilidade, se não for tra-
a pesquisa nos diversos grupos de mulheres, zida à tona para ser ouvida de forma sensível e
sendo um quinto material educativo resultante problematizadora, muitas vezes inviabiliza todo
dessa pesquisa. O capítulo escolhido para ser um esforço educativo, frustando tanto profissio-
apresentado foi aquele onde tratamos do trabalho nais como população.
em grupos, propondo os fundamentos teórico- Outro aspecto que gostaríamos de desta-
metodológicos da educação popular como car é que este trabalho é essencialmente interdis-
referência para o trabalho. ciplinar. Precisamos de profissionais oriundos de
O manual tem como objetivo disponibilizar vários campos do conhecimento para assim
para as equipes de saúde o desenrolar de um traba- podermos entender a realidade em toda a sua
lho educativo, que pode ser coletivo ou individual. complexidade, mas principalmente para tentar
Segue uma metodologia dialógica1 e participativa fazer, por meio do material educativo, uma sínte-
que, além de propiciar um exercício de escuta e se desse conhecimento.
reflexão, se propõe a elaborar material educativo em Este manual é resultado da nossa expe-
conjunto técnicos e população. Por isso, achamos riência de pesquisa denominada „Prevenindo
que os profissionais de saúde que se propõem a tra- DST/ HIV/aids em mulheres de baixa renda: a
balhar as questões educativas do processo saúde- elaboração de cartilhas no processo educativo‰
doença devem ter claro as bases teórico-metodológi- que foi realizada em quatro unidades de saúde do
cas deste fazer. Esta publicação se propõe a discutir Serviço de Saúde Comunitária do Grupo
o „como fazer‰ das atividades educativas. Hospitalar Conceição/Porto Alegre-RS, durante
De forma geral, podemos dizer que a pro- o período de maio de 2000 a outubro de 2001,
blematização, a evidenciação de contradições, o sendo financiado pelo Ministério da
1 Dialógico: termo utilizado pelo educador Paulo Freire e por vários autores, que se refere a prática do diálogo. Praticar o diálogo significa
ouvir o outro, tentar perceber as diferenças, trabalhar estas diferenças. Ver também: Freire, Paulo: Pedagogia da Autonomia, Editora Paz e Terra.
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Saúde/UNESCO, por meio da Coordenação crítico, acompanhando esta distribuição e, ao


Nacional de DST/AIDS. mesmo tempo, discutindo este material nos espa-
Os grupos, que contaram com a participa- ços individuais e coletivos da unidade de saúde.
ção de mais de 40 mulheres e 16 profissionais,
foram realizados em encontros semanais com duas O trabalho educativo nos grupos
horas de duração, numa média de 12 encontros
para a realização deste trabalho. Cabe destacar que 1 O planejamento do trabalho
a maioria dos grupos com os quais foi realizada
esta atividade educativa continuou se encontrando Quando realizamos uma atividade educati-
para discutir outros aspectos do cotidiano e tam- va, inicialmente temos de pensá-la dentro do con-
bém buscar alternativas para o aumento da renda texto da realidade na qual estamos trabalhando,
familiar. ou seja, a realidade da população e da unidade de
Finalmente, gostaríamos de salientar que saúde correspondente. As atividades educativas
esta cartilha, construída em conjunto com a popu- têm que estar intimamente ligadas às prioridades
lação, tem como objetivo primordial criar redes de discutidas entre profissionais e população. Assim,
conhecimento crítico. Os problemas que foram tem de haver uma unidade das atividades educati-
discutidos em profundidade com um pequeno vas com o restante das atividades da equipe e não
grupo devem ser, por meio do material educativo, transformar a educação em saúde (entendida mui-
levados para o maior número possível de pessoas. tas vezes como somente trabalho em grupo) em
Essa divulgação de um novo agir e fazer descritos mais uma coisa para fazer, passando a entendê-la
no material educativo tem que ter necessariamente como um aspecto indissociável das atividades do
o envolvimento da população, pois esta é que irá profissional de saúde. Por exemplo, quando pen-
distribuí-lo nos seus mais diversos espaços de con- samos em HIV/aids, não temos que nos preocupar
vívio e das mais diferentes formas. Aos profissio- somente com o acompanhamento clínico do
nais de saúde cabe continuar o processo educativo paciente ou o número de portadores, mas tam-
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bém, e muito, com os múltiplos e complexos mos produzindo conhecimento e isso tem de ser cui-
aspectos da realidade que influenciam a compreen- dadosamente guardado para que nós e outras pessoas
são desse problema. aprendamos com a nossa experiência.
A educação em saúde tem um papel fun- Temos de ter domínio técnico sobre o assun-
damental nesse entendimento, visto que sua pre- to a ser discutido, mas ao mesmo tempo estar aber-
missa mais importante deve ser „ouvir o outro‰. to a questionamentos sobre o nosso saber por parte
As atividades educativas têm de ser planejadas e da população. Dominar o MÉTODO educativo.
isso significa que temos de cuidar de vários Temos de planejar sempre e novamente.
aspectos, resumidamente, aqui listados:
Precisamos de tempo: em geral, os profis- 2 O método educativo
sionais de saúde estão cheios de coisas para fazer.
Por esse motivo, é importante ter claro que a reali- „a camisinha, eu não vou usar, meu marido não gosta‰.
zação de um trabalho educativo demanda algumas „é difícil pedir pro marido usar a camisinha, ele
horas de trabalho. Precisamos planejar como vai ser vai achar que estou aprontando...‰
a reunião, como será o registro, qual será o papel „a camisinha... (risos) Não é seguro. Eu nem me
do coordenador e realizar a avaliação da atividade. mexo. Fico quietinha... Nem me mexo. Aí se eu
De forma geral, podemos dizer que para cada hora tomo o comprimido me mexo prá tudo quanto
de conversa com a comunidade precisamos do é lado. Agora a camisinha...‰
dobro de tempo para prepará-la e avaliá-la. Por isso, „eu confio nele, por isso nós não usamos a cami-
a atividade educativa tem de ser agendada. Sem um sinha...‰
tempo disponível adequado, ela provavelmente será „o problema é que ele brocha com camisinha.‰
feita com falhas metodológicas que reverterão em
um trabalho frustrante com a população. Essas conversas, oriundas de grupos de
Precisamos de um(a) parceiro(a) com a mulheres que têm como objetivo discutir a pre-
mesma disponibilidade de horário nossa, pois venção das DST/aids, levam-nos a refletir sobre
sempre é melhor trabalhar em dupla. É mais nossa prática educativa e, principalmente, sobre
fácil fazer o registro, é possível trocar idéias e como são difíceis e às vezes „insolúveis‰ as con-
avaliar melhor. Além disso, em dupla sempre é versas que temos com mulheres de classes popu-
possível „exercitar‰ o diálogo. lares. Para que essas conversas não sejam infrutí-
O registro tem de ser pensado antes da reu- feras e durante as quais técnicos e população
nião começar. Em geral, um dos profissionais parti- dêem sua opinião fazendo de conta que se enten-
cipantes da atividade educativa ficará encarregado do dem, achamos fundamental que os profissionais
registro. O registro é a base para a nossa avaliação e de saúde tenham domínio do método ou do
para a reflexão sobre o que estamos fazendo. Para „como fazer‰ das atividades educativas.
fazer o registro, precisamos de uma caneta, papel
(uma prancheta é uma boa idéia) e gravador. Se pos-
Mas, então, como fazer?
sível, uma filmadora e/ou máquina fotográfica.
Precisamos de uma pasta para guardar as nos-
Esta pergunta não tem uma resposta fácil,
sas anotações. Lembramos que podemos sair do
já que não se trata de fornecer uma „receita‰.
posto, que os grupos „acabam‰, que as idéias não
Nossa prática educativa varia conforme cada reali-
dão certo, enfim, que estamos fazendo história, esta-

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dade, seja individual ou de grupo, e de acordo de vida‰, ou seja, propiciar aos participantes dos
com cada situação-problema por nós vivenciada, grupos, inclusive aos profissionais, que relatem
mas alguns „ingredientes‰ são necessários. Então... suas vidas, seu dia-a-dia, como lidam com deter-
minado problema e qual sua visão sobre ele.
Quais são os ingredientes da Ao propiciar que o grupo se manifeste a
partir do seu cotidiano, da sua vida prática ou do
prática educativa?
seu mundo da vida, começaremos lentamente a
desvelar o entendimento e os significados que as
O primeiro deles é que temos de partir
pessoas têm sobre seu problema. Muitas vezes isso
sempre da realidade do grupo, das pessoas, do
pode parecer confuso e sem nexo e podemos per-
paciente.
der o fio da meada, devido à complexidade das
histórias que são apresentadas. Por isso, o coorde-
Mas o que significa isto? nador tem de ter um domínio metodológico para
não ficar só no desabafo ou no subjetivismo do
Significa tentar compreender o que as pes- grupo. Temos de ir além para conhecer a realida-
soas estão pensando e/ou fazendo; captar qual a de que está nos interrogando. O que fazer com as
visão que as pessoas têm sobre determinado pro- inúmeras questões que emergem a partir desses
blema; entender como elas vivenciam o problema depoimentos? O que fazer com as questões com
que está sendo discutido; perceber se elas enten- as quais não concordamos ou que nos surpreen-
dem o seu problema como individual ou como dem nestas falas? O que fazer com as críticas que
de uma coletividade; apreender qual é a „baga- são colocadas? Como ir adiante no entendimen-
gem‰ cultural das pessoas, seu significado subjeti- to entre o técnico e a população? Aí vem o segun-
vo e, principalmente, como elas interpretam os do ingrediente...
seus problemas. Então, partir da realidade não é
tão simples assim, principalmente porque, na
grande maioria das vezes, a nossa realidade como
A argumentação
profissional de saúde é completamente diferente o estranhamento a reflexão
da dos moradores da comunidade onde trabalha-
mos. Na verdade, num grupo vivenciamos no Essas palavras têm sido usadas como sinô-
mínimo dois horizontes culturais ou percepções nimos no campo da Educação em Saúde. O estra-
da realidade dos profissionais e da população e nhamento possibilita um „distanciamento„ da
estes entendimentos da realidade têm de ir se mis- realidade e do problema que estamos vivencian-
turando, se diluindo e adquirindo novas percepções do, além de permitir-nos ver a realidade com
que te-nham validade intersubjetiva, isto é, para maior profundidade e reconhecer os aspectos cul-
todo o grupo participante. turais, sociais, pessoais, econômicos e históricos
que caracterizam o grupo com o qual estamos tra-
balhando. O sentimento de dúvida e de surpresa
Mas como conhecer a realidade dos
diante de um cotidiano tão distante do nosso é o
participantes de um grupo? primeiro passo para alcançar o entendimento e a
compreensão daquilo que estamos vivenciando.
Para responder a esta pergunta, temos que Esse estranhamento é conseguido basicamente
lançar mão daquilo que é denominado „história por duas perguntas:

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Por quê? Como assim? filhos não era só botar o DIU ou tomar compri-
mido; tinha muitas outras coisas em jogo, como
Como coordenadores de um grupo cujas a relação com o marido, como a mulher foi cria-
falas nos remetem a dúvidas e conflitos, temos de da, enfim, muitas coisas que tinham que ser dis-
problematizar para conseguir dialogar, pois enten- cutidas...‰
der não é suficiente. Temos de questionar ao outro Estas falas, extremamente comuns no tra-
e a nós mesmos. Aceitar as diferenças sem tentar balho comunitário, mostram uma argumentação
a problematização é negar a possibilidade de cons- inicial do problema que permite ver de forma
truir um conhecimento em comum, conhecimen- mais aprofundada os aspectos que compõem o
to este sobre o qual o profissional de saúde tem a fenômeno de engravidar ou não. Se não tivésse-
sua contribuição a dar, mas que a população sem mos problematizado, provavelmente, essa discus-
dúvida tem muito a acrescentar. Vejamos um são iria acabar na responsabilidade puramente
exemplo: individual e preconceituosa, desconsiderando
„Há poucos minutos atrás, D. Eduvirges aspectos culturais, sociais e econômicos da ques-
tinha dito que era mãe de dez filhos e que ela era tão. Quando problematizamos, vemos o fenôme-
uma mulher muito feliz, por isso que ela gostava no de uma forma mais complexa e com outros
de todos eles e que o marido também, que eles se olhares. Mas a argumentação também possibilita
davam bem e que se ela pudesse teria mais filhos. a busca de um entendimento exitoso entre todos
Quando entrou a discussão de como fazer os participantes. Em outras palavras, quando
para que as mulheres tentassem planejar a sua questionamos estamos usando argumentos racio-
família, D. Eduvirges disse que quem tinha dez fi- nais para ter um entendimento intersubjetivo
lhos era maluca. Não sabia o que estava fazendo. entre os participantes. Procuramos que os argu-
Era um horror. Todo o grupo concordou, inclusi- mentos levantados por cada um dos participantes
ve eu, que estava coordenando o mesmo. Mas me permitam-nos chegar a um consenso, ou melhor,
lembrei dos comentários de alguns minutos atrás que o resultado dessa argumentação tenha valida-
e falei para D. Eduvirges: de subjetiva, cultural e social para todos os parti-
- Mas a senhora não disse que tinha gosta- cipantes.
do de ter dez filhos, que se achava feliz por isso? Aí já estamos entrando no terceiro ingre-
Ela respondeu: diente do método da educação em saúde, que é...
- Sim, sim, mas eu sou diferente...
- Por quê a senhora é diferente? Aprendendo com a vida:
- Porque eu gosto dos meus filhos... eu amo voltar ao problema inicial com
meu marido. outros olhos e ressignificados
- Mas e as outras mulheres? Como é com as
outras mulheres? O problema, que parecia simples, já não é
Ela pensou, o grupo pensou junto, e fala- tão simples assim. Transformou-se numa realida-
ram que sim, que realmente planejar o número de de complexa e cheia de contradições e significa-

Diálogos com Caderno de


a experiência Educação
Popular e
Saúde I
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dos. É importante destacar que esta etapa do méto- Quanto mais complexo o assunto, mais
do tem de ser resultado de um entendimento entre difícil é a problematização e a volta à realidade
todos os participantes e, muitas vezes, é precedido de para agir, cabendo ainda destacar que as pessoas,
conflitos profundos e dolorosos, já que para que esta de forma geral, dominam alguns assuntos mais
„nova realidade‰ tenha validade prática ou coletiva do que outros. Por exemplo, uma gestante pode
tem de ter também validade subjetiva. Assim, o pro- discutir de forma problematizadora sua gravidez,
cesso de idas e vindas entre a realidade, a problema- mas ter uma relação de submissão com o seu par-
tização e a volta à realidade varia de pessoa para pes- ceiro.
soa, de assunto para assunto, de grupo para grupo. Podemos concluir, então, que para desen-
Este processo, na maioria das vezes, é lento, poden- volver uma atividade educativa na qual os saberes
do levar a vários encontros, meses ou anos para ser dos técnicos e da população contribuam para a
concluído ou não, já que estamos „mexendo‰ em construção de conhecimento em saúde, é funda-
aspectos culturais profundamente arraigados dentro mental partir da realidade dos sujeitos envolvidos
de cada um de nós. e problematizá-la.

Resumindo, o método educativo-problematizador...


Permite que todo o processo possa ser flexibilizado.

Possibilita aprender a trabalhar com o imprevisível.

Determina o processo a partir do cotidiano vivenciado por cada uma das pessoas ali participantes.

Exige habilidade por parte da coordenação para não induzir respostas ou comportamentos.

Facilita a construção de conhecimento pelo próprio grupo.

Exige que a coordenação do trabalho tenha clareza sobre seus objetivos e domínio de grupo. Para
isso, deve:
- Ser dialógica e disciplinada.
- Propiciar as conversas e fazer síntese claras.
- Lidar com o afeto e com a objetividade.

Finalmente, é importante lembrar que a gente só aprende este método fazendo... Refletindo... e re-
fazendo...

3 O papel do coordenador ou cialmente dialógicos e, principalmente, ter


coordenadora humildade frente às críticas e dúvidas que pos-
sam surgir nos diferentes momentos de uma ati-
Os profissionais que desenvolverão um traba- vidade educativa. É importante que os coordena-
lho educativo durante o qual serão elaboradas dores estejam abertos para os desafios que os
cartilhas de educação em saúde têm de ser essen- diferentes „cotidianos‰ impõem à sua prática,

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porque o que estamos propondo é tornar visível turam e constituem uma construção que tem
e compreensível aquilo que nos surpreende, que validade e é verdadeira para aquele grupo social
está escondido, que está obscuro. Por exemplo, específico. Por isso, a importância de perceber-
numa oficina na qual mulheres adultas e com mos a profundidade das falas dos participantes.
filhos estão reproduzindo a sua genitália com
massa de modelar: Como já apontamos anteriormente, para a rea-
lização das atividades educativas é essencial que
„ - Eu fiz, aqui, a minha perseguida... fiz ela haja uma parceria. Essa dupla ou trio será o grupo
bem direitinho, e fiz mais um buraquinho por coordenador da atividade. Também já citado
onde sai o xixi e a menstruação. Sim, porque a acima, a interdisciplinaridade favorece o trabalho
gente tem dois buracos um por onde sai o nenê educativo, amplia a percepção da complexidade
e outro por onde sai a menstruação e o xixi...!‰ dos problemas que serão enfrentados. O grupo
Diante destas falas, a reação da maioria dos coordenador deve estar afinado com os objetivos
técnicos é de surpresa, espanto e de contestação, da atividade, ter claro o processo metodológico. É
de forma impulsiva e imediata, ao constatar que necessário que o grupo possa ter horários em
isso não está certo, que nossa anatomia não é comum, não só para a execução da atividade edu-
bem essa. Se agirmos de maneira impulsiva, cativa propriamente dita, mas também para ava-
negando de forma categórica a informação liar continuamente os encontros, praticar perma-
desta muher, perderemos a chance de poder nentemente a auto-crítica e ouvir a crítica do cole-
entender como ela construiu este conhecimen- ga, discutir a condução do grupo, os erros do dia
to, quem ou quais as fontes que a fizeram cons- e os avanços que o grupo tenha alcançado, além
truir esse „modelo‰ de corpo, porque para ela e de pensar sobre estratégias para resgatar falas que
provavelmente para várias mulheres do seu ficaram pendentes, essenciais para problematizar
grupo de convívio essa é a verdade. Não é por- no grupo educativo. O grupo coordenador tem de
que alguma coisa é verdadeira que as pessoas estudar em conjunto suas dificuldades, sejam
acreditam nela, mas sim porque as pessoas acre- metodológicas ou temáticas, falar a mesma lingua-
ditam num fato, numa fala, num acontecimen- gem e intervir de forma semelhante. A troca de
to, numa descrição ou numa experiência que papéis nas reuniões entre coordenador e relator
faz com que aquilo se torne verdadeiro para elas enriquece o grupo, em especial quando com pro-
e esta verdade tem origem no mundo prático, fissionais de diferentes áreas. A reunião fica mais
no mundo da vida no qual os fatos, as informa- ativa, o interesse se renova, pois cada um conduz
ções, as leis e as experiências subjetivas se mis- do seu próprio jeito.
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Coordenar é... - fazer per gun tas que levem à supe ra ção de
limi tes.
- aplicar o método dos „porquês‰.
a) saber integrar e animar o grupo:
- quebrar o „gelo‰.
d) Saber opinar e calar:
- criar confiança.
Controlar a „impaciência‰
- manter o grupo animado, ativo impedindo o
- respeitar os silêncios.
cansaço, o tédio e a tensão.
- perceber o momento oportuno de intervir, res-
peitando o processo do grupo.
b) conduzir o grupo na busca dos objetivos - evitar o excessivo „respeito‰ que pode levar à
propostos: desorganização.
- conhecer o objetivo de cada encontro, dominar
o assunto a ser discutido e posicionar-se clara- e) Prestar atenção à linguagem
mente. utilizada:
- ordenar os conteúdos. - a linguagem deve ser uma forma de aproxima-
- fazer sínteses contínuas. ção.
-fazer perguntas oportunas e questionar o grupo. - enfrentar o desafio de esmiuçar os conheci-
mentos complexos, usando sinônimos, metáfo-
c) Saber como perguntar, o quê ras e exemplos que facilitem a compreensão.
perguntar e quando perguntar: - conhecer com profundidade o tema tratado e
- ter clareza do processo. falar deste conhecimento com simplicidade.
- fazer perguntas oportunas. - compreender a linguagem dos participantes
- perguntar sistematicamente para alcançar novos para mergulhar no mundo subjetivo, cultural,
conhecimentos e desafios. social e econômico dos mesmos.

Resumindo...
Não haverá boa coordenação sem clareza teórica, compromisso, domínio da metodologia e conheci-
mento.

O coordenador deve...

Conduzir o processo sem manipulá-lo.

Assumir o diálogo como sua principal ferramenta.

Ousar se expôr e se expressar.

Reconhecer que o processo do saber não é individual.

Entender que confessar nossa ignorância permite-nos conhecer mais.

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4 As técnicas afetivo-participativas 5 O registro


na educação em saúde
Este item talvez seja um dos mais traba-
As técnicas ou dinâmicas são as ferra- lhosos e „chatos‰ de uma atividade educativa,
mentas do processo educativo, fazendo portanto mas ao mesmo tempo é para os técnicos a única
parte do método educativo, e têm de guardar maneira de aprender de forma duradoura com o
coerência com a proposta pedagógica. Elas não trabalho educativo. Por mais paradoxal que
devem ser usadas somente para descontrair e ale- possa parecer, é o mais „esquecido‰ dos itens que
grar o processo educativo nem se resumir a isso, fazem parte de uma atividade educativa. Parece
características muito comuns das oficinas que que se convencionou que o registro é o menos
temos presenciado e participado. Essas oficinas importante, é aquilo que se deixa para depois.
na verdade reproduzem, sob um véu de descon- Na nossa experiência, a maioria das atividades
tração, o saber dominante; com isso impossibili- educativas não é registrada, o que não deixa de
tam a reflexão, a ressignificação do cotidiano e a ser lamentável, já que sem o registro depende-
tentativa de construir novas práticas e conheci- mos da nossa memória e, como todos sabem,
mentos. depois de certo tempo e de inúmeras atividades
Assim sendo, as técnicas ou dinâmicas realizadas, só lembramos o que a nossa subjetivi-
devem estar inseridas no contexto pedagógico dade considera importante, impedindo a refle-
proposto e, principalmente, serem coerentes xão e a reconstrução das atividades educativas
com os objetivos das reuniões. As técnicas propi- das quais participamos.
ciam a participação, a discussão, a resignificação No que se refere ao conteúdo a ser regis-
e a reflexão. Por isso, devem ser utilizadas opor- trado e aos recursos técnicos utilizados para
tunamente dentro do processo que está se desen- fazê-lo, há vários tipos de registro.
rolando. Quem vai coordenar a técnica deve De forma geral, sugerimos que uma pes-
saber fazê-la e ter bem claro os objetivos que pre- soa específica fique encarregada dessa atividade e
tende com a realização desta ou daquela dinâmi- que, de preferência, não seja o coordenador da
ca, nunca esquecendo o processo pedagógico atividade educativa neste dia. Coordenar e regis-
como um todo. É importante destacar que, em
se tratando de trabalho em grupo, essas dinâmi-
cas permitem que o conhecimento individual
seja coletivizado, isto é, que as pessoas partici-
pantes exponham suas vivências pessoais e ao
mesmo tempo que estas vivências se entrecruzem
nos mais variados aspectos, permitindo uma
experiência reflexiva comum. O planejamento
prévio de técnicas não deve, entretanto, engessar
o trabalho nos grupos. O coordenador ou coor-
denadora deve perceber a conveniência ou não
de aplicar uma técnica que estava prevista em
determinado momento do grupo, pois muitas
vezes o roteiro prévio perde o sentido se inter-
romper o processo em andamento.
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trar simultaneamente é uma tarefa quase impos- falas, descrever os comportamentos, realizar
sível, pois uma das duas será fatalmente prejudi- autocrítica quanto à forma de coordenação e
cada, o registro. Se for imperativo que isto acon- condução do grupo e observar a evolução indi-
teça, é preferível fazer algumas anotações ao vidual e coletiva do processo educativo.
longo da reunião e imediatamente após, descre- Sabemos que o fato de filmar é inviabilizado
ver a reunião da forma mais rica possível. lamentavelmente por motivos econômicos, por
É importante também registrar a avalia- isso é necessário lançar mão de outros recursos
ção que os coordenadores devem fazer do grupo (para reuniões de uma hora e meia, necessita-
logo após a atividade, ao término da reunião, mos de uma fita com uma hora de duração,
pois este momento proporciona, ainda sob o observar a luz e o som, conhecer a capacidade e
efeito da reunião, críticas ao funcionamento do os recursos da filmadora).
grupo, o que auxilia muito no planejamento da Registro com gravador: este é o registro
atividade. mais comum e mais acessível economicamente
para as equipes de saúde. É importante que,
Tipos de registro além do gravador que irá captar todas as falas
do grupo, um dos profissionais faça a observa-
Registro com filmadora: é o registro ção das coisas não ditas: os gestos, os silêncios,
que todo educador gostaria de fazer, já que per- as surpresas, os incômodos, os constrangimen-
mite fazer a observação do grupo como um tos, os jeitos das pessoas, as dificuldades do
todo e inclusive a gravação das falas. Esse regis- coordenador, etc. Esse registro observacional é
tro também permite que assistamos retroativa- difícil de fazer e exige treino e avaliação do pro-
mente à reunião e façamos os comentários sobre cesso de observação, mas achamos que este regis-
o processo. É possível fazer a transcrição literal tro, aliado ao gravador, é o mais viável e o que
do que aconteceu no grupo naquele dia, ou seja, dá grandes possibilidades de reflexão da ativida-
anotar fala por fala para depois analisar o texto de educativa. O registro com gravador apresenta
escrito resultante desta reunião. Com a filma- uma dificuldade que é a transcrição das fitas
gem, é possível também, além de transcrever as com as falas (sugerimos que para uma reunião
de uma hora e meia tenhamos disponível três
fitas com uma hora de duração, um jogo de pilhas
sobressalentes e/ou uma extensão elétrica com
três metros). A transcrição é o processo pelo
qual escutamos e escrevemos literalmente tudo
que está gravado na fita. Com isso, teremos na
nossa frente todas as falas literais que acontece-
ram na reunião. É um trabalho repetitivo, que
demanda muito tempo (em geral, uma fita com
meia hora de gravação leva de duas a três horas
para ser transcrita), mas extremamente revela-
dor, além de permitir uma avaliação acurada de
todo o processo.
Registro à mão: é o mais comum e tam-
bém muitas vezes o mais incompleto, já que é
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difícil fazer um acompanhamento das falas à mão Na utilização de qualquer das tecnologias
livre. O que acontece geralmente é uma síntese das propostas para o registro, é fundamental ter o
falas e a observação das coisas não ditas fica bas- domínio da tecnologia que se está empregando.
tante empobrecida, já que quem está registrando É preciso avaliar se a atividade está sendo regis-
só fixa sua atenção nas falas. Isso de forma geral trada de forma adequada, se as pessoas que estão
empobrece o registro e a avaliação da atividade falando estão de fato sendo gravadas e se o
educativa (preferencialmente, este deve ser feito ambiente em que se realiza a atividade permite o
em um caderno ou em computador; se usarmos uso de gravador. Também o posicionamento
folhas de papel, necessitamos de prancheta). tanto do gravador como da filmadora é impor-
Registro com máquina fotográfica: é tante para um registro de boa qualidade. É neces-
um coadjuvante muito importante, já que tem sário ter claro qual a utilização que se fará deste
valor histórico e subjetivo que muitas vezes registro; por exemplo, saber se uma filmagem
não aparece nos outros tipos de registro. É a servirá como registro da atividade ou poderá ser
possibilidade de gravar a imagem, o momento utilizada para outro fim, como material para uso
do grupo e como as pessoas, por meio de sua em sala de espera. Para ter qualidade e poder ser
expressão, estão integrando a atividade, seu bem aproveitado, o material fotográfico deve ter
inte res se, sua satis fa ção, sua dis cor dân cia qualidade em termos de iluminação, da capaci-
(observar a luminosidade, a capacidade do dade do filme, além da espontaneidade do
filme e os recursos da máquina fotográfica). momento.

Resumindo...
Sempre fazer o registro das atividades educativas, pois sem registro não há avaliação nem reflexão
sobre o processo educativo como um todo.

O registro é história. Por isso, tem de ser guardado numa pasta que seja acessível a todos os inte-
ressados.

Lendo os registros, podemos superar dificuldades, erros, frustrações e avaliar o sucesso de grandes
idéias.

Caneta, papel, gravador e máquina fotográfica são elementos fundamentais para o registro.

Sem tempo não há registro.

6 A avaliação auto-avaliação permanente.


Alguns elementos são essenciais para proce-
A avaliação do processo educativo é funda- dermos a avaliação do trabalho em andamento
mental para o seu desenvolvimento. Deve ser e/ou finalizado.
constante, pois um processo educativo que tem É necessário ter objetivos claros, pois irão nor-
como método a problematização implica em tear todo nosso agir e vão traduzir o que quere-

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mos atingir com determinada ação. No processo com o próprio grupo sobre o seu andamento,
aqui descrito, além do objetivo principal a elabo- apreciando o cumprimento das expectativas dos
ração de material educativo com uma metodolo- participantes, o rumo do grupo, revendo perma-
gia participativa os objetivos específicos também nentemente seus objetivos e mantendo-os ou
devem ser definidos para cada encontro. alterando-os, conforme as avaliações realizadas.
O registro nos trará os elementos da avaliação, A avaliação das atividades educativas em saúde
pois ali está a ação realizada no concreto. Pelos são avaliações mais dirigidas ao processo e reque-
nossos registros, poderemos analisar nossa práti- rem três perguntas básicas: o que está sendo feito;
ca e avaliá-la quanto ao aspecto metodológico, de para quem está sendo feito; e como está sendo
conteúdo, de processo, da participação das pes- feito? Essas questões se colocam tanto para a ava-
soas (número de participantes, qualidade da par- liação do processo como um todo quanto de suas
ticipação, contribuições, dispersões, surgimento partes. Devemos realizar, como foi dito acima, uma
de debates relevantes, capacidade reflexiva do avaliação constante, dia-a-dia, mas não podemos
grupo, qualidade da coordenação, erros de per- perder a perspectiva do resultado do todo, como
cepção do coordenador, sínteses adequadas, aná- no exemplo de nossa pesquisa, ter um produto
lise da condução e do caminho tomado pelo final o material educativo que espelhe as discus-
grupo, oportunidades perdidas, enfim, diversos sões e/ou conclusões desenvolvidas nos grupos.
aspectos do fazer educativo no cotidiano dos gru-
pos). Essa avaliação continua entre os coordena- Margarita Silva Diercks Médica de Família e Comunidade,
dores ao final de cada grupo e no planejamento Doutora em Educação e participante do Núcleo de Educação
do próximo encontro, reforçando a necessidade em Saúde/SSC/GHC/Porto Alegre/RS.
de tempo além dos encontros para execução de Email: gesssc@ghc.com.br
Renata Pekelman Médica de Família e Comunidade,
atividades educativas. A avaliação contínua tam- Mestre em Educação e participante do Núcleo de Educação
bém é necessária durante o desenvolvimento dos em Saúde/SSC/GHC/Porto Alegre/RS.
grupos; é importante ter sempre uma discussão Email: renatapek@ig.com.br

Resumindo...
A avaliação é um processo constante.

É preciso ter objetivos claros.

O registro é a fonte principal da avaliação.

A avaliação das atividades educativas é, principalmente, uma avaliação de processo.

Os participantes das atividades educativas são os principais agentes da avaliação.

Avaliar constantemente as partes e o todo.

A avaliação é o exercício permanente da crítica e da autocrítica.

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Como passar da teoria à


experiência ou da experiência à
teoria: uma lição aprendida
Júlia S.N.F. Bucher-Maluschke

Ilustração: Rodrigo Rosa

Comentários oriundos da leitura de um trabalho de educação popular em


saúde, ou seja, um processo que envolveu a população numa perspectiva
dialógica pautada na troca e construção de conhecimentos.

sta é a lição aprendida da leitura do texto

E
dologia dialógica e participativa de elaboração de
que descreve uma experiência de construção uma cartilha para uso de multiplicadores. A meto-
de um material educativo no qual vemos a dologia indicada está pautada na referência funda-
integração de uma pesquisa-ação e de uma „elabora- mental de Paulo Freire, em sua obra Pedagogia da
ação‰. Trata-se aqui de compartilhar com os leitores Autonomia, na qual explicita o „dialógico‰ como
a percepção que tive a partir da leitura do Manual uma prática do diálogo, ou seja, como a capacida-
para Equipes de Saúde trabalhando grupos e elabo- de de ouvir o outro buscando perceber as diferen-
rando material educativo em conjunto com a popu- ças, as singularidades, e as trabalhando (p.9).
lação: as DST/AIDS no cotidiano das mulheres, Para as autoras, há a necessidade de uma
organizado por Margarita Silva Diercks e Renata maior clareza acerca das bases teórico-metodológi-
Pekelman. cas dessa ação, o que faz com que o trabalho apre-
Na introdução do Manual é apresentado o sentado vise a discutir o „como fazer‰ das ativida-
objetivo principal do trabalho que consiste em des- des educativas (p. 9) e eu acrescento que tal discus-
crever o processo educativo concebido numa meto- são deveria ocorrer sobretudo na construção de

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materiais que dão suporte aos processos educativos. conteúdo teórico do tema a ser repassado e com
O Manual descreve o trabalho educativo a metodologia, desconhece questões importantes
nos grupos desde o planejamento até o processo trazidas pela linguagem dos participantes do
de avaliação. Em seguida, apresenta a elaboração processo. A aplicação desse princípio da „troca
dos roteiros da cartilha e a forma de condução de saberes‰ fica bem evidenciada quando as auto-
dentro dos princípios da educação popular em ras assinalam na p.13 que em „uma atividade
saúde e nos itens 4, 5 e 6 estão indicadas as for- educativa, inicialmente temos de pensá-la dentro
mas de utilização das cartilhas, a elaboração de do contexto da realidade na qual estamos traba-
materiais educativos com a participação da lhando, ou seja, a realidade da população e da
população e sua respectiva avaliação. No final, unidade de saúde correspondente. As atividades
estão apontadas as referências bibliográficas uti- educativas têm de estar intimamente
lizadas na concepção do projeto e ao longo de ligadas às prioridades discutidas
sua implementação. entre profissionais e popula-
Da rica experiência descrita no Manual ção‰. Tal aplicação também
vale ressaltar o processo de integração de princí- pode ser verificada, quando
pios e os conceitos de educação popular em as autoras posteriormente
saúde e, principalmente, como eles são operacio- descrevem como a ope-
nalizados na prática, no fazer, na ação. Nele, é racionalização deste
possível observar que as organizadoras do traba- princípio se torna
lho partem de importantes princípios e concei- ação ao longo do pro-
tos pilares da educação em saúde dentre os quais cesso de „elabora-
destaca-se o de troca de saberes. Troca esta que ação‰ do referido
expressa um processo dialógico, no qual tanto o Manual.
saber que o técnico carrega consigo, fruto de seus O que está
estudos e da sua reflexão, quanto o saber da implícito no princípio
população envolvida no processo que vai se ini- da troca de saberes é o
ciar orientam a produção de um material educa- conceito de participação
tivo que se transformará em instrumento de tra- que também integra o
balho para multiplicadores. Esse saber popular processo de educação popu-
passa pelo conhecimento da linguagem, que está lar em saúde. É por meio do
além do conhecimento da língua. É importante diálogo „ouvir o outro‰ que se
enfatizar que, no Brasil, falamos a mesma lín- intensifica a participação aqui com-
gua, o português-brasileiro, mas diferentes lin- preendida como ter parte em, tomar parte
guagens. Linguagens entendidas como forma e em, compartilhar, partilhar, associar-se pelos sen-
expressão de sentimentos, de emoções, de modos timentos, pensamentos da dor, da alegria, da
de comportamento, de representações, de símbo- ação imbricada pelo sentimento de criar e de
los e metáforas que dão múltiplos significados à desenvolver algo juntos.
vida e que podem ser percebidos por diversos A participação, por sua vez, desenvolve o
órgãos dos sentidos, uma vez que se estruturam sentimento de pertença. Isso fica muito bem evi-
e se tornam produtos da experiência vivida no denciado no Manual quando nele estão registra-
cotidiano das pessoas. Contudo, por diversas dos os nomes de todas as pessoas que tiveram
vezes, o técnico, preocupado com a dimensão do uma presença „participativa‰ integradora do pro-

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cesso de „elabora-ação‰ do material, gerando e Mudança, na qual ele nos apresenta as caracterís-
sentimento de pertença por meio dessa forma ticas da consciência ingênua versus as característi-
ética de reconhecimento das contribuições de cas da consciência crítica. Essa consciência se tor-
diferentes sujeitos, para a realização do produto nou crítica ao reconhecer que a realidade é mutá-
obtido (p.4), bem como para a superação da ver- vel, que ao se deparar com um fato faz o possível
ticalidade das ações na saúde. para livrar-se de preconceitos. Não somente na cap-
Na descrição do planejamento do trabalho tação, mas também na análise e na resposta, é inda-
em grupo apresentado, destaca-se o processo a par- gadora, investiga, força, choca, arma o diálogo,
tir do qual as narrativas individuais se transfor- nutre-se dele, face ao novo, não repele o velho por
mam em discurso de um sujeito coletivo, utilizan- ser velho, nem aceita o novo por ser novo, mas
do a expressão de Lefévre no seu livro sobre aceita-os na medida em que são válidos.
Metodologia do Discurso do Sujeito Essa consciência crítica surge com a reflexão
Coletivo. Como as subjetividades e o texto do manual segue apresentando como as
se transformam a partir da pro- autoras chegaram a esse desenvolvimento e ao prin-
blematização das questões cípio da ação-reflexão-ação, como geradora dessa
levantadas produzindo consciência crítica, conforme pode ser verificado na
reflexão de intersubjetivi- pág. 18, onde é apresentada a síntese do método
dades, levando à ressig- educativo-problematizador e na qual há ênfase para
nificação ou a uma relei- o fato de que é „importante lembrar que a gente só
tura da realidade, por aprende este método fazendo... refletindo... e refa-
outra premissa básica zendo...‰ e, em seguida, no qual há um desenho
de educação popular com a imagem de um grupo, cada qual com seu
em saúde, que é da ação imaginário, e o título „Aprendendo com a Vida‰.
à reflexão. Ação e refle- O desenvolvimento da metodologia aponta,
xão que vão gerar uma embora sem tornar explícito, para a necessidade do
nova ação, ainda que de treinamento do coordenador do processo não se
outro nível, uma vez que limitar à dimensão técnica, mas principalmente
essa nova ação vai se diferen- incluir a abordagem de sua sensibilidade para cap-
ciar da anterior. A imagem de tar os aspectos mais profundos desse processo. A
uma espiral ilustra esta dinâmica preocupação das autoras em apresentar os passos,
de ação-reflexão-ação, na qual o os instrumentos a serem utilizados para a elabora-
conhecimento gerado atinge um nível ção de materiais e para o registro das experiências,
mais elevado de consciência da realidade por indica a importância da construção da história de
parte de todos os envolvidos e, nesse contexto, um processo, a história de um projeto.
quem realmente passa por um processo dessa natu- Este é outro ponto muito relevante, pois
reza não permanece no seu estado anterior ao pro- aponta para outro princípio do sentimento de
cesso vivido. Este processo de ressignificação da pertença e de identidade que é o da construção de
realidade é gerador de consciência. Embora saiba- uma memória. Sabemos que a conservação da
mos que ter consciência não se traduz necessaria- memória pessoal, familiar, da comunidade, de
mente em possibilidade de mudança, considera- uma nação é de grande importância para a cons-
mos importante atentar para a dimensão crítica tituição das identidades pessoal, familiar e nacio-
apontada por Paulo Freire em sua obra Educação nal. Esse aspecto é considerado e explicitado na

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parte do manual que apresenta o tópico sobre os Em síntese, é possível afirmar que foram rea-
registros, num país de tanta tradição oral, onde mui- lizadas avaliações internas de progresso, de processo,
tas experiências boas infelizmente se perderam. do cumprimento de expectativas dos integrantes do
A descrição do processo de construção do grupo, o que permitiu ‰rever permanentemente seus
material, seguindo passo a passo suas etapas, permi- objetivos e mantendo-os ou alterando-os conforme
te ao leitor acompanhar o como, o porque e para as avaliações realizadas‰ (pág. 24). Na síntese que as
que é necessário considerar questões conceituais autoras fazem da avaliação, apontam para a impor-
como norteadoras do processo e a necessidade de se tância de „avaliar constantemente as partes e o
estar atento para uma práxis na confecção de um todo‰ (pág. 25), indicando uma visão sistêmica a
produto que integre sempre a teoria na ação, no qual partir da qual as interações têm grande importância.
a ação seja reorientadora da própria teoria. Outra ênfase dada na avaliação „...é o exercício per-
As autoras não deixaram escapar outra manente da crítica e da autocrítica.‰ (pág.25) A ava-
dimensão de grande importância no trabalho: a liação, assim posta, visa estar sempre atenta ao que
avaliação. Avaliação não só do produto final, mas é importante, o que não funciona, o que deve
do processo educativo que envolve toda a sua cons- melhorar, o que impede a melhora e o que é possí-
trução. Partindo da crítica da avaliação dirigida vel fazer para atingirmos eficácia.
exclusivamente às mudanças de comportamento Para finalizar os comentários oriundos da lei-
ou ainda das avaliações de impacto (pág. 41), as tura deste rico e cuidadoso trabalho de educação
autoras introduzem a avaliação do processo onde, popular em saúde, aqui entendida como todo proces-
sem negar o valor da avaliação quantitativa, é con- so de educação envolvendo a população numa pers-
siderada a importância da dimensão qualitativa na pectiva dialógica pautada na troca de conhecimentos,
perspectiva hermenêutica, enquanto método de recomendo que esta experiência seja ampliada para
interpretação do universo social, histórico e psico- outros campos de saberes, tanto no âmbito da saúde
lógico. A hermenêutica cuja etmologia vem da pública, por meio das práticas em saúde, quanto no
palavra Hermes, deus grego do conhecimento, âmbito das universidades no contexto da produção
indicando também tradução e interpretação é o de conhecimentos teóricos e metodológicos calcados
pressuposto teórico metodológico da abordagem na realidade vivenciada pelas pessoas.
qualitativa que pautou a trajetória desse trabalho. Júlia S. N. F. Bucher-Maluschke Psicóloga, doutorado na
Convém observar que há uma preocupação didáti- Universidade Católica de Louvain/Bélgica, Pós- doutorado
em Saúde Pública, Professora Titular na Universidade de
ca em realizar uma descrição detalhada dos proce- Fortaleza e Pesquisadora Associada na Universidade de
dimentos e indicadores das avaliações previstas ao Brasília.
longo da trajetória. E-mail: agathon@fortalnet.com.br
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Construção compartilhada do
conhecimento: análise da produção
de material educativo
Maria Alice Pessanha de Carvalho

Ilustração: Rodrigo Rosa

A educação e saúde é um campo de prática e


conhecimento que vem introduzindo mudanças
significativas em nossa cultura política, a partir de
ações inovadoras.
educação e saúde é um campo de prática

A
brecidas da
e conhecimento do setor Saúde que resul- população.
ta da relação entre as disciplinas das ciên- Aquelas
cias sociais, das ciências da saúde e da educação. que, supos-
Ao longo de sua história foi conhecida, como tamente,
educação sanitária em que as ações visavam à poderiam vir
aplicação de normas e atitudes para mudança de a contaminar
comportamento dos cidadãos; como educação as elites. A com-
para a saúde ações que objetivavam a saúde preensão era de
como um estado a ser alcançado depois de ser que a educação pode-
educado; como educação em saúde aplicações ria reverter o ciclo da
do referencial da educação para se obter saúde; pobreza e da doença. Aos pro-
saúde escolar como um conjunto de medidas fissionais de saúde cabia orientar e
destinadas a assegurar salubridade aos escolares e educar a população para que esta, uma vez edu-
como educação e saúde fenômenos articulados cada, obtivesse saúde. Essas ações foram chama-
junto aos movimentos sociais na demanda por das por Eymard Vasconcelos de educação „toca
serviços de consumo coletivo. Em quase todas boiada‰, em que os técnicos conduziam a popu-
essas denominações podemos perceber discursos lação, usando o berrante (palavra) ou o ferrão
e práticas autoritárias e normatizadoras na rela- (ameaça), a realizarem o que foi definido como
ção do Estado e a sociedade civil. Quase sempre conduta saudável (VASCONCELOS, 2001).
estas práticas foram marcadas por intensa impo- Vasconcelos define educação e saúde
sição de condutas, valores e normas oriundas das „como campo de prática e conhecimento do
classes dirigentes sobre as camadas mais empo- setor Saúde que tem se preocupado com a cria-

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ção de vínculos entre a ação médica e o pensar e Passaram a orientar suas ações na busca de
fazer cotidiano da população‰ (VASCONCE- alternativas que pudessem superar a lógica
LOS, 2001). autoritária e normativa. É nesse contexto que
No entanto, é importante identificar que se desenvolve a educação popular e saúde
estas práticas dialógicas ainda não se constituem como metodologia pedagógica no campo da
hegemônicas nas ações de educação e saúde. Educação e Saúde. Educação popular em
Configuram estratégias desenvolvidas no campo saúde compreendida no reconhecimento do
da Educação Popular em Saúde. saber/poder popular como elemento de trans-
Nesse texto, buscaremos refletir sobre os formação social.
princípios orientadores da produção de mate- A educação popular e saúde se apresen-
riais educativos em uma perspectiva de educação ta com uma metodologia de aprendizagem que
popular em saúde, entendendo o material educa- possibilita ao sujeito que aprende refletir sobre
tivo como uma ferramenta pedagógica que pos- sua realidade, buscar soluções e neste processo
sibilita a mediação no processo comunicacional construir um conhecimento significativo.
e educativo de diferentes sujeitos. Nesse sentido, A origem da educação popular acontece
identifica a própria produção do material educa- nas experiências de Paulo Freire no processo
tivo como espaço de construção compartilhada de alfabetização de adultos, em Angicos, na
entre sujeitos de conhecimento. Para tanto, a década de 60. O princípio orientador e meto-
análise buscou identificar na produção do mate- dológico utilizado é a problematização. Na
rial como as dimensões políticas, epistemológi- problematização, a análise crítica dos contex-
cas e educativas da construção compartilhada tos envolve processos de ação-reflexão e ação.
do conhecimento foram desenvolvidas. Ou seja, é uma pedagogia preocupada com a
reflexão dos contextos reais, seu universo de
Educação Popular e Saúde símbolos, linguagens, signos e instrumentos
voltados para uma ação que visa a solucionar
Ao longo dos últimos 30 anos, profis- problemas efetivos.
sionais insatisfeitos com as formas disciplina-
doras e mercantilistas do fazer médico hege- A prática do método tinha como base inicial o
mônico possibilitaram a criação das condições levantamento do universo vocabular dos gru-
de enfrentamento a esta lógica dominante. pos com os quais a equipe pretendia trabalhar.

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Em seguida, eram escolhidas as palavras no universo acontecem no interior dos serviços de saúde
vocabular pesquisado, devendo ser selecionadas pela que tem como princípio a relação dialógica.
sua riqueza fonêmica, pelas dificuldades fonéticas da São desenvolvidas por profissionais que fazem
língua e pelo engajamento da palavra numa dada rea- crítica ao modelo hegemônico da educação e
lidade social, cultural ou política. Tais palavras eram
saúde, autoritária, comportamentalista, pres-
relacionadas a situações existenciais típicas do grupo,
que serviam como ponto de partida da discussão, à
critiva, normatizadora e culpabilizadora da
qual se seguia a decomposição das famílias fonêmi- sociedade usuária. Essas novas formas têm
cas correspondentes aos vocábulos geradores... como processos facilitadores as mudanças
(PAIVA, 1984, p. 253). acontecidas no contexto social brasileiro. Um
cres cen te pro ces so de demo cra ti za ção do
Nessa perspectiva, a aprendizagem acon- Estado Nacional exercido pelo aumento da
tece no relacionamento de aspectos que vão permeabilidade social na formulação das polí-
além do cognitivo. Articulam o que é signifi- ticas públicas e pela perspectiva do controle
cativo, envolvem os conhecimentos prévios, os social como controle do público para com o
diferentes interesses, a afetividade, as crenças, Estado, possibilitaram novas formas político-
as emoções, a espiritualidade, o modo como pedagógicas de atuação. Especificamente, no
lidam com a vida e a morte, os sujeitos de campo da Saúde, este movimento democrático
conhe ci men to. Portanto, a apren di za gem se materializou por diferentes instâncias do
acontece nas relações entre os diferentes sujei- movi men to social pela saúde. São os
tos que inte ra gem coo pe ra ti va men te no Conselhos de Saúde, os conselhos populares,
enfrentamento de problemas concretos. os ciclos, as associações, as ONGs. Nessas ins-
Nessa metodologia os alunos são consi- tâncias, crescem uma polifonia pela saúde. São
derados como sujeitos de conhecimento e com as cobranças veiculadas nas interações de dife-
possibilidade de exercer a alteridade. Mudar rentes sujeitos e vozes, marcadas pela interdis-
sua dada realidade. Nesse sentido, a dimensão ciplinaridade e pela transdisciplinaridade.
política se apresenta como fator de valorização É nesse contexto de profundas mudanças,
pessoal que possibilita a construção da auto- na relação entre Estado e sociedade, que se insere a
estima dos sujeitos da aprendizagem. discussão sobre as propostas democráticas de
Essas novas formas de ver e fazer da edu- inclusão da perspectiva da sociedade civil ao novo
cação popular e saúde e da ação educativa campo da Saúde e especialmente da saúde coletiva.

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Podemos identificar que esses movimen- demandas, como reivindica o cuidado ou aten-
tos se expressam, também, na busca de um ção médica e como presta o autocuidado.
novo olhar da saúde pública que visa a superar No entanto, existem poucos estudos que
estratégias marcadas por campanhas verticais e refletem como as classes populares estão enten-
autoritárias e que considera a complexidade da dendo, elaborando e se aproximando das
relação saúde-doença-cuidado. informações veiculadas durante o atendimen-
A saúde coletiva passa a ser vista como to em saúde. Muito menos, são estudados
um sistema complexo que envolve os proces- como são construídas as estratégias para lidar
sos de vida, adoecimento e morte; o esgota- com a saúde e os modos de adoecer da popu-
mento das dinâmicas puramente assistenciais e lação usuária dos serviços.
curativas; a pouca efetividade da medicaliza- Eymard Vasconcelos (1999) aponta que
ção dos problemas sociais e a possibilidade de a medicina ocidental expressão da ciência não
um repensar das relações entre os diversos tem se preocupado com a compreensão dos
níveis desenvolvidos sobre a saúde, doença e o saberes, das práticas, das estratégias, dos signi-
cuidado. Níveis que articulam o individual, o ficados imaginários do conhecimento popular
grupal e o societal. senso comum diante da saúde. Quando tenta
É a partir da compreensão da saúde compreender, em regra é para facilitar meca-
como um sistema complexo que hoje estamos nismos de cooptação ou acabar como diálogo
vivenciando uma nova conjuntura da saúde entre surdos.
coletiva e da política pública em saúde. É o Victor Vincent Valla1 lembra que foi
paradigma da saúde coletiva. José de Souza Martins o criador da expressão
A saúde coletiva passa a ser definida „a crise da interpretação é nossa‰. Com essa
como um campo científico de mediação entre expressão, estamos falando das dificuldades
teoria e prática, onde se produzem saberes e que os profissionais tem em compreender as
conhecimentos a cerca do objeto saúde. É um falas dos membros das classes populares. No
campo onde se articulam diferentes conheci- fundo, as dificuldades residem na não aceita-
mentos oriundos das diferentes categorias pro- ção de que estas pessoas humildes produzem
fissionais, denotando a sua interdisciplinarida- conhecimento.
de. Um campo de prática onde se realizam A conjuntura política, gestada em um
ações em diferentes organizações e institui- governo democrático, aponta para uma con-
ções, públicas ou privadas. Portanto, podemos vergência entre os interesses dos educadores
inferir que nessas relações são produzidos dife- populares e da população e o discurso do
rentes saberes por diferentes agentes e atores Estado. Estamos vivendo uma nova conjuntu-
do setor Saúde. ra política onde Estado e sociedade podem e
A saúde coletiva tem como objetivo devem encontrar soluções de forma comparti-
atender às necessidades sociais da saúde da lhada.
população e como instrumento os distintos Acreditamos que ambos (Estado e socie-
saberes, disciplinas, tecnologias materiais e dade) possam ter interesses coletivos e que
não matérias. estes sejam orientados no fortalecimento dos
Os conhecimentos construídos em tor- princípios do SUS (Sistema Ðnico de Saúde):
no das necessidades de saúde estão expressos universalidade, eqüidade, integralidade, des-
nos modos como a população representa suas centralização e controle social. Com destaque

1 VALLA, V. V. Pesquisador do Departamento de Endemias Samuel Pessoa da ENSP/Fiocruz em aula no Curso de Especialização em
Educação e Saúde, agosto de 2002.
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para as instâncias de participação popular, sões: a dimensão política, a dimensão episte-


para além dos espaços formalizados de contro- mológica e a dimensão educativa.
le (Conselhos de Saúde).
Portanto, acreditamos ser vital discutir- 1 Dimensão política:
mos que a produção do conhecimento e da
ação em saúde deva ser construída não só a Na dimensão política, o eixo estrutura-
partir da visão dos técnicos, mas a partir de dor é o conceito de hegemonia formulado por
diferentes olhares. E que estes olhares incluam Gramsci (1989). Este autor situa o termo essen-
o científico (construídos pelos profissionais cialmente na luta de classes no interior do
dos serviços em suas práticas) e o senso Estado ampliado. O grupo que controla é o
comum (construídos a partir da vivência da grupo hegemônico. É por meio da ação educa-
população usuária). tiva que vão se construindo consensos e se
estruturando propostas contra-hegemônicas.
Estas são incorporadas no interior do Estado.
Construção compartilhada
A conquista contra-hegemônica do Estado
do conhecimento ampliado é possibilitada na construção de
consensos no exercício político da sociedade
É nesse contexto histórico da prática da civil sobre a sociedade política. A contra-hege-
educação e saúde que o conceito de construção monia será a primazia da sociedade civil sobre
compartilhada do conhecimento ganha expres- a sociedade política no Estado ampliado.
são e materialidade. O conceito de hegemonia tem como
„A construção do conhecimento impli- aspecto central o monopólio intelectual. A
ca em uma interação comunicacional, onde direção cultural e ideológica exercida por um
sujeitos de saberes diferentes, porém não hie- grupo social sobre o outro, criando assim um
rarquizados, se relacionam a partir de interes- sistema de aliança de classe (GRAMSCI, 1989).
ses comuns. Esses sujeitos convivem em situa- Esta dimensão política aponta para um
ções de interação e cooperação que envolve o exercício constante de luta pelo fortalecimen-
relacionamento entre pessoas ou grupos com to das políticas de saúde e, em especial, da
expe riên cias diver sas, inte res ses, dese jos e construção do SUS, pela cidadania e pela
motivações coletivas‰ (CARVALHO; ACIOLI; melhoria da qualidade de vida. Nesse exercício
STOTZ, 2001). a experiência de vivenciar o acesso, as práticas
A metodologia de construção comparti- dos serviços de saúde, as ações de referência e
lhada do conhecimento considera a experiên- contra referência, na dinâmica da atenção à
cia cotidiana dos sujeitos envolvidos nas práti- saúde-doença, no processo de adoecimento e
cas sociais de cuidado a saúde. Tem por finali- nas práticas de autocuidado configura um
dade a conquista pelos indivíduos e grupos aprendizado sem igual. O ponto de vista de
populares de maior poder e intervenção nas quem sofre. Esse exercício possibilita a formu-
relações sociais que influenciam a qualidade lação de novas inclusões sociais e a conquistas
de suas vidas (CARVALHO, 2000). de direitos em uma arena de disputa entre gru-
Como construção do conhecimento, pos e forças sociais na relação com o Estado.
essa metodologia parte das relações no interior
da saúde coletiva e esta pautada em três dimen-

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2 Dimensão epistemológica:
essa dimensão, o destaque se dá no valor

N do conhecimento produzido entre senso


comum e ciência. A epistemologia como
disciplina da filosofia visa ao estudo crítico dos
princípios, das hipóteses e dos resultados das
diversas ciências. Está intimamente vinculada ao
processo científico, ao juízo de valor e ao alcance
de seus objetivos. No entanto, para Japiassú a
epistemologia apropria-se da ciência para filoso-
far sobre „o lugar do conhecimento científico
dentro do domínio do saber‰ (JAPIASSÐ, 1986).
Diferentemente da filosofia clássica do conheci-
mento, a epistemologia vê o conhecimento como
processo a ser construído, provisório e dinâmico.
Bachelard (1985) afirma que o progresso cien- co registram o mesmo fato, este não possui o
tífico manifesta sempre uma ruptura entre o mesmo valor epistemológico nos dois conheci-
conhecimento comum e o conhecimento científi- mentos produzidos. No entanto, todo o conheci-
co. Essa ciência traz a marca da modernidade por mento é uma aproximação. É constituído em
se constituir a partir de perpétuas rupturas com o uma relação entre o que é dado e o que está sendo
conhecimento produzido pelos seus pares, os construído. É processo de construção determina-
cientistas. „A ciência contemporânea é feita da do por condições históricas, dinâmicas, provisó-
pesquisa dos fatos e da síntese das leis verídicas‰ rias, complexas e superáveis.
(BACHELAR, 1985, p. 43). As leis verídicas são Portanto, o conhecimento de uma dada reali-
construções que fecundam as chamadas verdades dade é bastante amplo. Abarcam o conhecimento
científicas. do senso comum (não sistematizado), o científi-
Para a ciência, senso comum é opinião, conhe- co (especializado) e o ideológico (posicionamen-
cimento vulgar, ou seja, formas não verdadeiras to político).
com que precisamos romper para tornar o conhe- Nessa perspectiva, incorporamos a visão de
cimento científico. Boaventura Souza Santos (1994), que propõe uma
Podemos, portanto, inferir que entre o conhe- caracterização do senso comum que não tem
cimento comum e o conhecimento científico como referência a contraposição ao conhecimen-
existem diferenças filosóficas. O conhecimento to científico. Ao contrário, sua proposta visualiza
científico está ligado ao racionalismo, à ciência uma relação dinâmica entre os conhecimentos. O
que reclama fins científicos. Pressupõe o método, que ele chama de dupla ruptura epistemológica.
análise e a sistematização, segundo um processo A primeira ruptura é aquela descrita por
de normatização e rigor científico. O senso Bachelard (1985), realizada pela ciência sobre o
comum tem o empirismo como raiz e está centra- senso comum, onde a ciência precisa romper com
do na experiência e no seu desenvolvimento. o senso comum para se afastar e produzir o
Quando o conhecimento comum e o científi- conhecimento, dito, científico. Na dupla ruptura,

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a proposição é uma interação entre estes o pressuposto principal é o sujeito como


dois conhecimentos. Boaventura fala de um construtor do conhecimento. Os sujeitos
senso comum esclarecido e de uma ciência são observadores e analisadores das expe-
prudente. Ou seja, uma ciência que incor- riências dessa realidade, construindo e per-
pora também as dimensões políticas presen- cebendo de forma pessoal e particular e bus-
tes no conhecimento produzido pelo senso cando inferir no mundo.
comum. A aprendizagem, em uma perspectiva
Do ponto de vista metodológico, essa construtivista, pode ser definida como um
proposta não defende o relativismo, porém processo pelo qual o indivíduo, inserido no
concorda com a necessidade de uma teoria contexto social, elabora uma representação
orientadora. Uma teoria que possa ajudar e pessoal do objeto a ser conhecido.
não reduzir a realidade ao tamanho da teo- Essa relação dinâmica ocorre no con-
ria. O método deve ser dependente do obje- fronto do sujeito (seus saberes) e seus conhe-
to. Deve servir de caminho e não de fim em cimentos anteriores com a realidade histo-
si mesmo. ricamente determinada. A aprendizagem
A dupla ruptura epistemológica se pauta pressupõe a combinação da interatividade2 e
não pela hierarquização dos conhecimen- da cooperação3 na construção da autono-
tos, mas pelo princípio da equivalência dos mia4 dos sujeitos envolvidos nas relações de
saberes nas práticas sociais em que são ori- construção do saber. Portanto, toda intera-
ginados. Nessa compreensão, todos são ção envolve uma relação de aprendizagem e
sujeitos de saberes diferentes. toda relação de aprendizagem na prática da
educação e saúde deve ser pautada pela
3 Dimensão educativa: busca de processos de autonomização.
Do ponto de vista metodológico, a cons-
A dimensão educativa da construção trução compartilhada do conhecimento se
compartilhada do conhecimento tem no referencia na pedagogia problematizadora.
construtivismo a referência teórica para o A pedagogia problematizadora tem como
conceito de aprendizagem, do ponto de crítica central às práticas educativas centra-
vista metodológico seus princípios estão das na transmissão de conhecimento, nas
fundamentados na pedagogia de Paulo normas, nas condutas que reproduzem uma
Freire. relação autoritária e professoral, normal-
O construtivismo surgiu influenciado mente veiculadas por profissionais com ori-
pela tradição kantiana, que afirma que „a gem social diversa ou de outras realidades.
razão só entende aquilo que produz segun- Paulo Freire requalifica o papel do sujei-
do seus próprios planos‰. Nessa concepção, to que aprende e sua autonomia como sujei-

2 Interatividade é uma inter-relação mediatizada pela comunicação que acontece durante o relacionamento entre indiví-
duos e grupos em uma comunidade de aprendizagem. O participante avança em suas atividades e habilidades, realizando
asso-ciações e interligando informações por meio da participação com os outros nas atividades planejadas (Carvalho, 2000).

3 Cooperação é uma relação compartilhada estabelecida entre os participantes do programa no desenvolvimento da apren-
dizagem e na realização de projetos de interesse comum. Essa relação se caracteriza pela desigualdade do conhecimento
entre os participantes, pelo sistema de combinações e compromissos estabelecidos na solução de problemas significativos
(Carvalho, 2000).

4 Autonomia no desenvolvimento da aprendizagem é a capacidade do aluno em autodeterminar-se, escolher, apropriar-se


e reconstruir o conhecimento produzido culturalmente em função de suas necessidades e interesses. Caracteriza-se pela
responsabilização, auto-determinação, decisão, auto-avaliação e compromissos a partir da reflexão de suas próprias exper-
iências e vivências (Carvalho, 2000).
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to de conhecimento dizendo que „ninguém instrumento que faz a mediação entre os


educa ninguém, todos nos educamos perma- conhecimentos produzidos nas diferentes áreas
nentemente‰. do conhecimento e da prática e aqueles que
Nessa relação, educandos e educadores estão em situação de aprendizagem. Pode ser
aprendem no enfrentamento do contexto real construído de diferentes formatos e pressupos-
e têm como objetivos comuns a mudança tos, dependendo da teoria orientadora. Caso o
político-social. processo comunicacional seja o tradicional de
Portanto, a construção compartilhada do transmissão, do emissor para o receptor, „um
conhecimento e a educação popular e saúde para todos‰, quem é responsável pelo conteú-
tem como matriz pedagógica a problematiza- do e forma é apenas aquele que escreve, o autor
ção. e o editor. Caso o modelo comunicacional
Com base em tudo o que foi escrito até pressuponha uma relação dialógica e multidi-
agora, podemos identificar alguns princípios recional, „todos para todos‰, estamos falando
da construção compartilhada do conhecimen- de uma relação que privilegia o diálogo aberto
to a serem desenvolvidos nas ações educativas. e a interatividade entre os sujeitos do processo
São eles: trabalhar os temas e as questões a par- comunicacional. Nesse sentido, a obra privile-
tir dos interesses e visão de mundo dos grupos gia a possibilidade de interpretações e intera-
envolvidos; promover uma relação de diálogo ções diversas não só no seu uso, mas, principal-
e de escuta; problematizar a realidade local; mente, na própria elaboração do material edu-
estimular a prática metodológica dialética; pro- cativo. Todos são autores, à medida que a pro-
mover processos de desconstrução de concei- dução promova o diálogo. Ou seja, quanto
tos, valores e posturas, como mais necessários maior a interatividade na construção do mate-
que o de construção; usar múltiplas linguagens rial educativo, menor será a posssibilidade de
metodológicas; estimular a interação entre os definição de autoria. Ela acontecerá de forma
sujeitos; promover relação de cooperação; esti- compartilhada.
mular processos construtores de autonomia; Todo material educativo pode ser definido
manter uma postura investigativa da realidade, como ferramenta pedagógica que possibilita a
articulando o processo de ação-reflexão-ação; mediação no processo comunicacional e edu-
promover avaliação processual e possibilitar cativo entre os diferentes sujeitos da aprendiza-
ação educativa de extrema liberdade. gem. A mediação está presente em toda a ativi-
É com base nesses pressupostos que as prá- dade humana. São instrumentos, ferramentas,
ticas de educação e saúde se estruturam e se efe- sistemas de signos, constituídos historicamen-
tivam na relação com a população usuária da te, e compartilhados por meio da cultura. Esses
saúde. Para tanto, o uso de estratégias pedagó- funcionam como mediadores do homem com
gicas como as oficinas, as dinâmicas de grupo, o mundo. A linguagem se configura como a
o uso e a construção coletiva de material edu- principal ferramenta de unidade do pensamen-
cativo são mediações do processo educativo. to e do intercâmbio cultural por meio da fala.
A fala é um signo mediador por excelência.
Material educativo Vygotsky (1998) considera os instrumentos e
os signos como os dois elementos mediado-
O material educativo é uma ferramenta que res da construção da realidade. Os instru-
possibilita o diálogo comunicacional. É um mentos têm a função de regular as ações

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sobre o objeto. Os signos regulam as ações tiva. Ao falar da sua vida e a vida sexual está
sobre o psiquismo das pessoas. São represen- incluída, essas mulheres apresentam seus sen-
tações que substituem e expressam a realidade. timentos, suas formas de relação com o
Portanto, são marcas externas que servem mundo, a produção de sua auto-estima, como
como auxílio da memória: sinais de trânsito, lidam com seus preconceitos e afetos. Enfim,
letras, desenhos, etc. (REGO, 1995). Essas pre- de que forma se relacionam com o mundo em
missas fazem parte do pensamento sociointera- que vivem. Nesse sentido, é fundamental que
cionista de Vygotsky (1978), que considera a tanto o educador e o educando estabeleçam
aprendizagem como fruto de uma ação social uma relação de confiança mútua e compa-
mediada pela cultura. nheirismo.
A dimensão epistemológica é evidenciada
Produção de material educativo em todo processo metodológico proposto. É a
e a construção compartilhada relação e o diálogo entre os saberes e práticas
que pontua a proposta. No entanto, a relação
do conhecimento de diálogo e de escuta envolve a necessidade
Trabalhando com grupos e elaborando de um processo de negociação. É uma nego-
material educativo em conjunto com a ciação de sentidos, interesses, necessidades,
população, as DST/aids no cotidiano das afetividades. Enfim, todos os sentimentos da
mulhe res pri vi le giou per ce ber como as subjetividade relacionados com os da raciona-
dimensões e os princípios da construção lidade. Envolve, também, saber: Quem decide
compartilhada do conhecimento foram tra- o tema a ser trabalhado? Quais são os deter-
balhados e efetivados na construção da fer- minantes que envolvem esse tema? Quais inte-
ramenta pedagógica. resses estão envolvidos? É uma pesquisa finan-
Esse material representou um esforço de ciada ou uma demanda social explicitada ou
registrar e apresentar um trabalho coletivo de a ser explicitada?
produção de um manual voltado para os pro- Esses pontos foram trabalhados no manu-
fissionais que compõem as equipes de saúde. al quando seus autores discutem a necessida-
Sua construção apresenta a problematização e de do estranhamento e da argumentação na
o diálogo como ferramentas metodológicas. problematização. Estranhamento no sentido
Trabalhar os temas e questões a partir dos do exercício de se distanciar para ver melhor.
interesses e visão de mundo dos grupos envol- Identificar que o fato acontece com outras
vidos nem sempre é tarefa fácil. Nesse princí- pessoas. Em outros lugares, mulheres discu-
pio, o material produzido apresenta um tema tem sua vida sexual, afetiva e seu entorno.
específico, os problemas relativos a prevenção Portanto, não pode ser individualizado e sim
das DST/aids. Embora seja um problema de contextualizadado, relacionando fatores eco-
saúde pública pode não ser um problema nômicos, sociais e culturais. A argumentação
para as mulheres. Nem sempre esses interesses possibilita o exercício político da alteridade.
convergem. No entanto, mesmo que tenha- Nesse processo, é necessário que os partici-
mos uma pauta já agendada, a perspectiva pantes tenham a oportunidade de explorar os
daquele que vivencia a relação deve ser o temas e controvérsias em questão, na busca de
ponto de partida e de chegada da ação educa- um campo comum de conhecimentos, signi-

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ficados e crenças no domínio do problema. Nesse pação autônoma o grupo decide sem a participa-
processo, existe a necessidade de estruturação das ção do técnico fazer a cartilha. Essas estratégias
falas, onde as questões são processadas, ressignifi- representam formas de relação diferenciadas. Na
cadas, elaboradas, possibilitando a reconstituição primeira, embora aconteça a escuta atenta e a
do laço social na busca por soluções coletivas. negociação entre os parceiros, será sempre uma
Ao identificarmos a população como parceira, aproximação e tradução dos técnicos, restringin-
negociando sentidos, necessidades e interesses, a do a autonomia do grupo. Inversamente propor-
relação que se estabelece é de construção de sujei- cional é a participação autônoma que, embora
tos que opinam, têm formulações, constróem um reflita um grau de organização do grupo, desqua-
saber fruto da vivência científica e popular e não lifica o diálogo entre os profissionais, restringin-
de um convite/sedução para participar de uma do a interação entre os saberes. A prática do diá-
estratégia pré-definida pelos profissionais de logo implica ouvir, também, o que a ciência tem
saúde. a dizer.
Os autores sugerem uma série de recomenda- A dimensão educativa foi a mais evidenciada
ções, bastante importantes, para quem realiza tra- na elaboração do manual. Os principais elemen-
balhos participativos de educação. Entre eles, des- tos norteadores apresentados podem ser resumi-
tacamos a recomendação que os profissionais dos em quatro princípios metodológicos: prática
sejam „ousados‰ ao se expressarem e exporem dialógica e de escuta atenta; problematização da
seus sentimentos durante as práticas. No entanto, realidade; problema ressignificado. A proposta de
cabe um alerta aos profissionais de saúde. Estes elaboração do material tem como princípio a
correm o risco de se protegerem no discurso cien- identificação de que na aprendizagem o sujeito é
tífico, para não se colocarem e não se exporem e construtor do conhecimento a partir da relação
deixar de refletir que possuem os mesmos senti- com o contexto. A aprendizagem é desenvolvida
mentos, medos, desejos e dúvidas da população e ancorada aos conhecimentos prévios e significa-
usuária. O princípio da equivalência de saberes tivos que sempre existem. Para tanto, a escuta e o
aqui se aplica, também, para a equivalência de diálogo possibilitam o desenvolvimento da auto-
sentimentos frente a uma dada realidade. estima e da identificação de que os problemas, as
Podemos identificar que a dimensão política formas de ver a realidade a partir da ótica de
foi pouco explorada no material educativo. quem a vivencia são importantes para a definição
Principalmente, no sentido da formulação de política do enfrentamento dos problemas da
novas propostas de atenção e cuidado. No entan- saúde. A pedagogia problematizadora se configu-
to, podemos perceber que o exercício da partici- ra como ação metodológica mais adequada para
pação está presente em todo o desenvolvimento estes processos construtores de autonomia.
do material. Esse exercício tem como resultado as Para a criação de materiais educativos que pos-
diferentes formas de participação da população sibilitem a autonomização de sujeitos, podemos
identificadas e descritas: uma participação mais tomar como referência os pressupostos de Freire
restrita onde os roteiros são construídos pelos (1996). No livro Pedagogia da Autonomia são
profissionais a partir do diálogo com os partici- colocadas de forma didática as recomendações
pantes; participação mais conjunta que reflete a necessárias ao desenvolvimento de um trabalho
construção coletiva dos sujeitos, onde o conheci- educativo que se proponha estimulador de proces-
mento técnico tem que ser „impregnado pelo sos autônomos e também pontua as demandas
conhecimento produzido no cotidiano‰; partici- direcionadas ao educador. Freire toma como

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ponto de partida a postura de que a valorização da ca, que curiosidades orientam e na disposição para
competência tecno-científica e o rigor não devem desenvolver o diálogo e a cooperação no campo da
ser menosprezados e nem super valorizados em Educação Popular.
relação ao amor e a afeição, indispensáveis à ação Podemos inferir que a produção de um mate-
educativa. Essa relação tem a motivação e o afeto rial educativo, além de ser um processo dialógi-
como prática pedagógica a ser exercitada na relação co, é também um processo inconcluso. Será sem-
de aprendizagem, ajudando a construir ambientes pre um vir a ser e um redesenho dinâmico, histó-
favoráveis à construção do conhecimento. rico e fértil. A realidade trará novos olhares,
novas formas de ver, interagir, cooperar e enfren-
Considerações finais tar. Com certeza, novos materiais educativos
como este surgirão possibilitando a constituição
Pensar e realizar propostas de construção com- de processos que diminuam a autoria individua-
partilhada de conhecimento é fruto do desenvolvi- lizada, em busca de processos de autoria coletiva.
mento e do exercício permanente, a ser conquista-
do nas relações de respeito aos diferentes saberes Maria Alice Pessanha de Carvalho Mestra em Tecnologia
(educando e educador e a comunidade de aprendi- Educacional nas Ciências da Saúde, UFRJ. Coordenadora-
zagem), no rigor metodológico e na reflexão críti- Adjunta da Escola de Governo em Saúde: Coordenação de
ca sobre a prática. Principalmente, um rigor e refle- Ensino e Formação Profissional / ENSP/FIOCRUZ.
xão sobre como se aprende, quais as dificuldades E-mail: alicep@ensp.fiocruz.br
que enfrentam, que problemas vivenciam na práti-

REFER¯NCIAS

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ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. mulheres. Porto Alegre: Coordenação o político na pós-modernidade. 4. ed. Porto:
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Reflexões e Vivências

Estórias da Educação emancipatória... Você tem sede de quê?


educação popular
Os sujeitos sociais são verdadeiras Adaptação do texto Pelos cami-
A cria ti vi da de se faz pre sen - construções que nos revelam uma nhos do coração, do livro A saúde
te neste peque no texto que gama de possibilidades. Pág. 114 nas palavras e nos gestos refle-
nos reme te a várias estó rias. xões da Rede de Educação Popular
Pág. 103 Pensando alto... e Saúde. Pág. 122
Um fragmento dos versos de João
Cabral de Melo Neto, em Morte e
Vida Severina como fonte de inspi-
Em Nazaré, ração para novas reflexões. Pág. Peripécias
cercada por água... 117 educativas na rua
Os desafios e descobertas de Trocando do "Era uma A simplicidade e a emoção tradu-
quem realiza um trabalho educa- vez... para o Eu conto" zidas na atitude educativa que
tivo com as populações ribeiri-
Histórias de vida na Educação tem a rua como espa ço pedagó-
nhas. Pág. 106
Popular em Saúde Mental. Pág. 120 gico. Pág. 131
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Estórias da educação popular...1


Ausonia Favorido Donato
Ilustração: Samuca

Engraçadas e até mesmo meio aven-


tureiras, as estórias da educação
popular revelam o universo criativo
em que acontecem as ações.
interesse que tenho pela inter-relação

O educação-comunicação deriva de uma


experiência vivida na minha adolescên-
cia. Há muitos anos, portanto.
Ainda no curso clássico, fui convidada
para participar de pesquisa que visava, entre outros rável a seguinte resposta: „Sei, surpresa é quando
objetivos, a obter informações para professores eu fico no portão esperando o pai chegar e o pai
universitários, sobre o universo vocabular e con- vem lá debaixo, trazendo um saco de pão!‰ A
ceitual de crianças recém-ingressas em escolas única semelhança entre as duas crianças era o
com o propósito de preparar uma nova cartilha mesmo brilho radioso nos olhos.
para alfabetização. Na ocasião, apesar de ainda não saber que
Minha tarefa consistia em entrevistar viria a trabalhar em Educação, me passava a
crianças de várias escolas, de diversos segmentos seguinte dúvida: será que os professores dessas
e classes sociais, perguntando-lhes o significado crianças lhes ensinam do mesmo jeito?
de algumas palavras. Entre elas, a palavra surpre- Tendo terminado o curso de graduação em
sa. Pedagogia e considerando os conhecimentos
Em determinado dia, ao indagar a uma adquiridos muito fragmentados, senti a necessi-
criança com 7 anos, pertencente à classe média- dade de aprofundá-los e sistematizá-los num
alta, então iniciando a 1.… série, se ela sabia o sig- curso de pós-graduação.
nificado da palavra surpresa, obtive como respos- Na época, visualizei como opções possí-
ta: „Sei, claro! Surpresa é quando de 6.… feira, no veis: Supervisão Escolar, Currículos e Programas,
final da aula, o Jorge (chofer) vem com meu pai, Orientação Educacional e Administração Escolar,
minha mãe e meu irmão me buscar pra gente ir todas na Faculdade de Educação. Porém, consta-
para a fazenda‰. tei que os currículos de todos estes cursos trata-
No mesmo dia ouvi, com grande emoção vam dos mesmos temas já vistos na graduação e,
e indignação, diante da mesma pergunta, e de pior, com o mesmo enfoque.
uma criança também com 7 anos e iniciando a Entretanto, em 1968, soube da existência
1.… série só que moradora de uma periferia mise- de um curso recém-criado na Faculdade de Saúde
1
Texto integrante da tese Trançando redes de comunicação. DONATO, A. F. Tese (Doutorado)-Departamento Materno-Infantil da Faculdade de
Saúde Pública, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2000; cap. 1.
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Pública, em que os processos de aprendizagem, conhecimentos, a importância sobre a vacinação


que sempre me fascinaram, relacionavam-se com e as informações sobre o „revolvinho‰ - ped-o-jet
uma outra dimensão, com a qual não possuía - eram lúdicas e respeitosamente veiculadas.
qualquer contato formalizado: a Saúde Pública. Aprendi muito com o Geringonça! Daí pra fren-
O desafio que representava a articulação te, senti-me mais fortalecida para prosseguir.
dessas áreas de conhecimento foi muito grande Certa feita, em situação similar ausência
e resolvi enfrentá-lo. quase total das lideranças formais, em um pro-
A partir de 1969, como educadora em grama „Bairro contra bairro‰, dirigido pelo
Saúde Pública da Secretaria de Saúde do Estado radialista líder de audiência na região, „Nhô
de São Paulo, iniciei meus contatos diretos com a Cido‰, no qual moradores de bairros distintos se
população para concretizar um dos objetivos que desafiavam e lá mostravam suas performances
me levaram a escolher esta atividade profissional: artísticas, participei com minhas „mensagens
esclarecer e orientar a população no sentido de preventivas‰. Convidada a subir no palco a car-
minimamente, na época, impedir a ocorrência de roceria de um imenso caminhão, o público gri-
doenças que poderiam ser evitadas com vacina- tava entusiasticamente: Canta! Canta! ... e não
ção. restou a mim outra coisa, senão cantar! Cantei
Com esta perspectiva, devidamente treina- „modas de viola‰ que tinha aprendido com o Sr.
da pelo então Serviço de Propaganda e Educação Expedito, motorista com quem trabalhava.
Sanitária (SPES) e portadora de um „pla-
nejamento dos aspectos educativos da
Campanha de Erradicação da Varíola (CEV)‰,
percorri inúmeros municípios do Estado de São
Paulo.
Muitas vezes detectei a inviabilidade e a
inaplicabilidade das ações planejadas. Como
entrevistar algumas das autoridades relacionadas
no planejamento, se elas não se encontravam na
ocasião? Com a ausência do prefeito, da direto-
ra da Escola, da diretora da Associação Assis-
tencial, o que fazer? Restavam-me, pelo menos,
duas alternativas: entrevistar outras autoridades,
quando existiam, ou procurar outras formas de
comunicar-me com aquela população. Aten-
dendo à minha convicção, optei pela segunda.
Afastei-me dos cânones da educação sanitária da
época e arrisquei. Assim é que, em um mês de
férias, „descobrindo‰ o palhaço Geringonça,
pude com ele partilhar da minha principal
necessidade naquele momento: preparar a popu-
lação para receber as equipes de vacinação, já a
caminho. Vi-me, então, após pequeno ensaio,
participando de uma matinê circense, onde os

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Claro, teria muitas tência, sensibilidade e disponibilidade de cola-


outras histórias... boração, reuniu ele „seus‰ atores que, mesmo
travestidos de personagens, dispuseram-se a rece-
Entretanto, considero digna de registro ber a vacina em cena, formulando aos nossos
pelo menos mais uma. Minha participação, vacinadores as questões que realmente lhes inte-
desta vez, já acompanhada por colegas educado- ressavam. Eram questões que o público nos for-
ras, graças ao respaldo da direção do serviço de mulava...
educação em saúde pública (SESP), em uma tele- Pode-se dizer que este evento - veiculação
novela da extinta TV Tupi. Na época, deparáva- de mensagens sobre a importância da vacinação
mos, ao agendar reuniões noturnas com líderes num programa de entretenimento - se constituiu
comunitários, ou mesmo com a inauguração da no primeiro merchandising social da televisão
campanha nos municípios, com uma forte con- brasileira! E com a marca da cidadania!
corrente: a novela „Nino, o italianinho‰. Ou
seja, a cidade, às 19 horas, parava diante de seus Ausonia Favorido Donato Doutora em Saúde Pública
televisores. Entramos em contato com o diretor pela USP.
da novela, Geraldo Vietri. Com inegável compe- E-mail: ausonia@colegioequipe.g12.br

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Em Nazaré, cercada por água...


um mergulho e muito aprendizado!
Wilma Suely Batista Pereira

Ilustração: Samuca

Uma reflexão sobre a aproximação


entre a enfermagem e a educação
popular junto a uma população
ribeirinha do norte do País.
ertenço a um grupo de professores e profes-

P soras que desenvolvem pesquisas e traba-


lhos educativos numa localidade chamada
Nazaré, situada à beira do Rio Madeira, em culturais, a abordagem de enfermagem requer
Rondônia. Para chegar até lá, leva-se entre seis e que se confronte instrumentais teóricos e meto-
12 horas, de barco, dependendo das condições do dológicos com a experiência de convivência com
rio. O barco fretado costuma ser grande, com estas populações, de modo a se construir novas
dois andares e modelo típico das embarcações possibilidades de trabalho educativo. A educação
amazônicas. Lá fazemos discussões, colocamos popular é a orientação que seguimos nos traba-
em dia as leituras, planejamos atividades, nos lhos realizados nessa linha de pesquisa.
divertimos alegremente enquanto fazemos a tra- Quando nos referimos à área ribeirinha
vessia. É o „Projeto Beradão‰ da Universidade temos sempre em mente sua vastidão característi-
Federal de Rondônia, que por meio de uma equi- ca, de difícil acesso, e, portanto, nem sempre
pe interdisciplinar composta por geógrafos, alcançada pelas ações do sistema oficial de saúde.
administradores, enfermeiras, pedagogas, assis- A área ribeirinha de Rondônia oferece paisagens
tentes so- ciais, também congrega colaboradores ambientais de exuberância e mistério, ocupadas
eventuais, docentes e alunos e alunas de outras por populações que vivenciam situações precárias
instituições. e apesar de todo o esquecimento
No Projeto Beradão, os cuidados de que são vítimas por parte das
referentes à promoção da saúde ações públicas, não abrem mão
se fazem presentes em atividades da sua riqueza cultural.
de extensão articuladas à Linha A partir da compreensão dos
de Pesquisa, Educação Popular e indicadores de saúde como reflexos
Saúde. Por estarmos na Amazônia, do patamar de desenvolvimento
com todas as peculiaridades climáti- social e econômico de uma região, a
cas, sociais, históricas, econômicas e construção do cuidado de enferma-

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gem dirigido à população ribeirinha visa à promo- raríssima beleza, principalmente ao entardecer, quan-
ção da saúde e requer participação e troca de saberes. do a passarada busca a vegetação ao redor para se
Em busca de obter elementos para a elaboração de proteger à noite, e os nossos olhos são preenchidos
estratégias de aproximação com a população ribeiri- pelos matizes formados pela luz do sol poente inci-
nha passíveis de sistematização para serem reprodu- dindo na água, em contraste com a mata verde
zidas na formação dos estudantes de enfermagem, (FIGUEIREDO, 2002, p. 111).
sobretudo no que concerne à saúde coletiva, foram
realizados trabalhos de pesquisa e extensão com base Em Nazaré, só há escola até a 4.… série.
na educação popular junto à população de Nazaré. Muitas pessoas não sabem ler. Pais e mães que têm
Tal empreendimento constituiu um desafio constan- família em Porto Velho enviam filhos e filhas para
te, enfrentado e refletido a cada viagem à comunida- estudar na capital, muitas vezes trabalhando como
de. A experiência que vamos narrar aconteceu em empregados e empregadas nas casas de familiares
2001. É uma reflexão sobre a aproximação entre a ou conhecidos de mais posses. Não há telefones,
enfermagem e a educação popular necessária para apenas um rádio amador que não é muito utiliza-
qualquer intervenção duradoura que se pretenda rea- do pela comunidade. Os barqueiros que trafegam
lizar junto à população ribeirinha. pelo Rio Madeira servem de portadores de recados,
notícias, entrega de mercadorias de Porto Velho ou
das outras localidades ribeirinhas para os morado-
Vamos conhecer Nazaré?
res de Nazaré.
A vila de Nazaré era um antigo seringal Há uma equipe do Programa Saúde da
chamado „Boca do Furo‰, habitado por 25 famí- Família que visita a comunidade quinzenalmente.
lias e que surgiu nos anos 40, com o fim do Há dificuldades de conseguir profissionais dispos-
segundo ciclo da borracha. Localiza-se à margem tos a enfrentar viagens de voadeira1, durante cinco
esquerda do Rio Madeira, a 150 km de Porto horas debaixo do sol amazônico, expostos aos peri-
Velho e abrange atualmente 14 localidades. Os gos naturais do Rio Madeira (piranhas, candirus,
moradores plantam melancia, mandioca, feijão e jacarés, além de bancos de areia e troncos de madei-
são extrativistas, ou seja, retiram da floresta ali- ra que comumente são encontrados no leito do
mentos, caçam e pescam (LIMA; SOUZA, 2002). rio). Barcos de linha fazem o trajeto mais lenta-
As casas de Nazaré são de madeira retira-
da da mata pelos próprios moradores, que
seguem basicamente dois modelos de constru-
ção: palafitas na área que alaga com a estação
das águas (inverno amazônico) e plantadas ao
chão nas áreas de terra firme. Há apenas dois
prédios de alvenaria em toda a vila: o posto de
saúde, reformado em 2001 e a Igreja São
Sebastião, construída recentemente.
A beleza local é descrita com precisão por
Figueiredo:

A Vila de Nazaré é banhada por um Igarapé, que dá


acesso aos lagos que emolduram uma paisagem de

1 Voadeira é uma embarcação pequena, desconfortável, que abriga 107


no máximo dez pessoas, movida a motor, que de tão rápida, parece
flutuar sobre a lámina d'água, por isso é chamada "voadeira".
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mente e oferecem poucas opções de horários. Ao me aproximar daquela realidade, ficava


Muitos profissionais desistem após a primeira via- me questionando sobre como implementar ativi-
gem. Com isso, a população tanto da vila como de dades educativas junto à comunidade, partindo
outros sítios pertencentes ao distrito de Nazaré, do respeito ao saber próprio dela, de seus costu-
ficam, na maior parte do tempo, sem assistência mes e tradições. Passava os dias observando.
contínua pela mesma equipe. Estabelecem entre si Andava pelas veredas, escutava fragmentos de con-
explicações e estratégias de enfrentamento dos pro- versas, quando convidada, entrava em algumas
blemas de saúde mais graves, enquanto a equipe de casas. Sabia que seria uma construção lenta. Aos
saúde chega. Caminhando de casa em casa, é poucos, as pessoas iam se acostumando à presen-
comum ouvirmos receitas caseiras para os mais ça de toda a equipe. Tínhamos por hábito não
diferentes problemas de saúde, incluindo os de nos juntar em bandos, mas, andar sozinhas ou em
natureza mental ou emocional. Chás, benzimentos, duplas, para não chamar a atenção mais do que já
garrafadas, banhos, simpatias... chamávamos.
Os moradores reconhecem a lacuna deixada
pelo serviço oficial de saúde e reclamam atendi-
mento contínuo. Muitos se mudam quando chega
O encontro com as ribeirinhas:
a época de cheia, porque a comunidade fica prati- de conversa em conversa, muito
camente isolada das outras localidades e os barcos a aprender!
que vêm de Porto Velho passam ao longe ou não
chegam. É possível perceber a aflição de muitas Uma descoberta foi a acolhida maior
famílias, sobretudo aquelas que têm alguém doen- por parte das mulheres. Talvez por passarem
te, crianças pequenas, idosos ou gestantes, ante a maior parte do tempo em casa fazen do as tare-
impossibilidade de obter socorro imediato. fas domésticas. Criamos coragem e decidimos
A vida em Nazaré é regida pela água. As chamar algumas para conversar. Convidamos,
famílias passam a maior parte do tempo no rio e lançamos a idéia de umas conversas animadas
nos igarapés e lagos, lavando roupa, tomando sobre assuntos da vida. Divulgamos na difuso-
banho, pescando, retirando água para uso domés- ra da Igreja Evangélica, para que as moradoras
tico. As crianças, criadas ao ar livre, em contato dos sítios vizinhos viessem. Algumas aceita-
com a natureza, costumavam evacuar no mato, ram. Marcamos dia e hora, conseguimos per-
nas imediações dos lagos. É comum encontrar- mis são para fazer o encon tro na esco la.
mos cães e gatos brigando por restos de comida Escalamos uma das alunas participantes do
jogados à beira do igarapé ou do rio, ao lado de trabalho para distrair as crianças, contando
crianças e adolescentes brincando na água. histórias e fazendo brincadeiras enquanto as
Só em 2001 a população recebeu a cons- mães estavam conosco.
trução de banheiros nas casas, pela primeira vez Preparamos lanche, selecionamos alguns
em quase 60 anos. Acompanhamos a alegria das materiais sobre saúde da mulher para darmos o
famílias, mas também seu estranhamento frente „pontapé inicial‰ e depois levantaríamos os assun-
ao novo cômodo. Foi um grande ganho para tos que elas desejassem abordar nos próximos
Nazaré, muitos repetiam isso, mas, aos poucos encontros, se eles viessem a acontecer. Queríamos
viam que seria preciso mudar muitos hábitos dar ao encontro um ar de confraternização e
adquiridos há gerações, principalmente a eva- informalidade que nos deixasse a todas próximas
cuação e o banho no rio. e sem receios.

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No primeiro encontro, 23 mulheres com- netas. Era bonito ver as voadeiras chegando, atra-
pareceram. No início, ficaram um tanto caladas, cando lá embaixo no rio, cheias de mulheres
mas foram se expressando, umas mais, outras empunhando as pastas cor de rosa, agitando-as no
menos. Fizemos um círculo com as cadeiras, nos ar, a nos cumprimentar de longe.
apresentamos, conversamos amenidades. A dis- Fizemos um sorteio de pequenos brindes
cussão inicial foi sobre nosso corpo de mulher. femininos: batom, presilha de cabelo, pulseira de
Perguntávamos: o que é ser mulher? Entregamos miçangas, anel, meia calça. Homenageamos as aniver-
lápis de cor, papel, borracha. Pedimos que dese- sariantes, conversamos sobre problemas que afligiam
nhassem o seu corpo. Algumas aceitaram de pron- algumas participantes, verificamos pressão arterial,
to, outras mais envergonhadas, ficavam observan- trocamos segredos do cuidado de feridas, aprendemos
do. Após desenhar, convidamos aquelas que qui- receitas de chás e lambedores. Ouvíamos histórias do
sessem mostrar seus desenhos, descrevendo-os. boto, encantamento da jibóia e outras lendas de arre-
Foi uma riqueza. Aos poucos, elas mostravam piar, contadas com gosto, na clara intenção de nos
seus desenhos, explicavam com detalhe o que haviam atrapalhar o sono no barco, à noite.
desenhado. Enquanto se referiam ao desenho, falavam Aos poucos, a amizade se instalava entre
de si mesmas: como se viam, o que achavam mais nós. Fomos cumprindo a cada encontro a pauta
bonito em si, sonhos para o futuro, relação com os sugerida pelas participantes, que elegiam os assun-
companheiros e filhos, a vida em Nazaré... tos mais urgentes para os encontros seguintes. ¤s
Após o lanche, fizemos uma brincadeira: a vezes ficava conversando enquanto algumas lava-
eleição da mais sem-vergonha do grupo, aquela vam roupa no rio. Aprendi que para evitar o ata-
que não tinha receio de falar em público. Foi ani- que das arraias, era preciso fazer a „bateção‰, ou
mado! As crianças que brincavam lá fora, sob os seja, bater com um pau na água bastante e andar
cuidados da nossa aluna, vieram ver o que estava arrastando o pé, pois elas atacam quem as pisa,
causando tanta algazarra. com um ferrão que provoca dores terríveis.
Ao final, avaliamos o encontro. Quase
todas expressaram suas opiniões. Disseram que Um mergulho nas águas de Nazaré
queriam mais encontros como aqueles. Fizemos
uma lista de assuntos a serem abordados nos pró- Em um desses encontros, discutimos a
ximos encontros: como evitar filhos, doenças do importância da água para nossas vidas. Des-
útero, prazer sexual, educação dos filhos, como taquei alguns trechos para mostrar, tomando o
evitar doenças causadas por vermes, etc. cuidado de atribuir outros nomes:
Fizemos um pacto: prometemos não per-
mitir a presença de homens nos nossos encontros,
para que se sentissem mais à vontade. A recreação
com as crianças foi mantida; decidimos que todas
limparíamos a escola após cada encontro.
Distribuímos pastas cor de rosa contendo
papel sulfite, lápis, caneta, borracha, régua. Os
encontros seguintes, realizados uma vez por mês,
foram cada vez mais animados, com a presença de
mais participantes, vindas de outras comunida-
des, acompanhadas de filhas adolescentes, noras,

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„Eu uso a água pra lavar a louça, a roupa, Dimensão água e rotina doméstica
tomar banho, fazer a comida... a água é tudo. Já
pensou, a gente que já nasce dentro dÊágua, parece As ribeirinhas se referem à água como alia-
até peixe, de repente não ter mais água em da do trabalho doméstico, na lavagem da roupa,
Nazaré?‰ (Maria) na limpeza da casa, no preparo das refeições.
„A água é a coisa mais sagrada... quando Algumas vão em grupo para a beira do igarapé.
estou de cabeça quente, vou lá pro colhereiro Lá conversam, brincam, enquanto lavam as rou-
tomar um banho, esfriar a cabeça, é bom de- pas da família.
mais...‰ (Joana)
„¤s vezes, no domingo, a gente vai todo
Dimensão água e lazer
mundo lá pro lago pescar, lá mesmo a gente assa e
come os peixes com cerveja, quando tem...‰ (Célia)
Na água há opções de lazer para homens,
„É engraçado, outro dia eu estava pensando,
mulheres, jovens, crianças. Pescarias, banhos,
o barco anda em cima da água. Quer dizer que
mais velhos dando aulas de remo, competições
quando a gente quiser, a gente pode andar em
de canoas... risos, gritos, música alta, vida cele-
cima da água, é só pegar o barco! Os barcos che-
brada na beira dÊágua.
gam, saem, levam gente para São Carlos, Calama,
Porto Velho... trazem mercadorias pra gente...‰
(Expedita) Dimensão água contato com
Pude identificar algumas dimensões do uso o mundo lá fora
da água e seu significado para o dia-a-dia das ribei-
rinhas. Chamei de dimensões porque indicam a Através do rio, Nazaré se comunica com
maneira como as mulheres vêem e se relacionam as outras localidades, os barcos trazem notícias,
com a água que, na verdade, é algo mais profundo cartas, visitas, mercadorias aguardadas ansiosa-
do que o simples uso do cotidiano . São elas: mente. Quando atracam sempre são recebidos
pelas crianças, que tratam de sair nas casas avi-
Dimensão água sagrada sando a todos a chegada do „Deus é Amor‰,
„Comandante Ribeiro II‰, e outras embarcações,
Maria enumera os usos domésticos da água todas com nomes e tripulação, bem conhecidas
e depois apresenta uma definição dos ribeirinhos, de todos.
como aqueles que já nascem dentro dÊágua, não Um detalhe que me chamou a atenção foi
podendo viver sem a água, que é tudo. Nazaré sem a referência à pesca como parte do lazer na água,
água parece um sonho ruim para Maria. não como trabalho para sustento. Conhecendo
Joana atribui à água um poder sagrado de a vida das ribeirinhas entendi que a pesca que
curá-la quando aborrecida. O colhereiro a que se praticam é aquela para consumo imediato.
refere é um igarapé lindo, de águas geladas. Mais Alguns homens é que praticam a pesca em
adiante, tem o igarapé „cura-ressaca‰ que, como o maior quantidade, saem de madrugada para
próprio nome já diz, pela baixa temperatura da lagos mais distantes e voltam com caixas de iso-
água, sempre encoberta pelas árvores das matas por cheias de peixes. Congelam e vendem aos
ciliares, é freqüentado após finais de semana mais barqueiros, vizinhos e reservam uma parte para
festejados, pelos moradores, para aliviarem o mal a família.
estar da ressaca.

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As ribeirinhas trazem para todos nós, igarapé e podem entrar no nosso corpo pela
educadores, uma riqueza de informações, um boca, pela pele e causar doenças, como a tão
mergulho num mundo imaginário nunca temida barriga dÊágua (esquistossomose). A pes-
sonhado. A água que as cerca, nos lagos, nos iga- soa doente faz cocô na beira do rio ou do igara-
rapés, no rio, tem um significado muito maior pé, os micróbios do cocô vão para a água e
do que aquele que a nossa cabeça de enfermeira começa tudo de novo.
consegue alcançar. Por isso, não bastava apenas Em relação ao „nó nas tripas‰ mostramos
ensiná-las a tratar a água e as doenças causadas figuras de áscaris e conversamos sobre como as
por água não tratada. Era preciso despir-nos e lombrigas crescem no intestino, como se pega e
mergulhar com elas naquelas águas. como se trata.
Depois destes mergulhos com as mulhe- Falamos também da dengue e da febre
res, passamos a discutir algumas questões do cui- amarela, mas as ribeirinhas, que em sua maioria
dado com a água. Trouxemos desenhos de para- têm televisão em casa, já conheciam medidas de
sitas que se multiplicam em água não tratada. precaução e outras informações sobre estas
Houve relatos de crianças e adultos que morre- doenças. Muitas famílias têm o hábito de usar
ram com „nó nas tripas‰ e „barriga dÊágua‰. mosquiteiros nas redes e nas camas, também
Então, falamos sobre estas doenças, ressaltando para se protegerem da malária.
que na água vivem micróbios invisíveis a olho Em seguida, fizemos uma lista do que se
nu. Estes micróbios moram um tempo no corpo pode fazer para cuidar da água, a partir das con-
do caramujo, que fica pregado na margem do tribuições das ribeirinhas:

utilizar o hipoclorito distribuído no posto de saúde em toda a água que


entrar em casa;

ferver a água, quando não tiver hipoclorito. Para melhorar o gosto, coar
usando um paninho limpo e passado a ferro;

levar todos da família ao posto para fazer exames de fezes, urina e sangue
para saber quem está com vermes;

ensinar as crianças a não urinar nem fazer cocô na água, nem na margem
do rio ou do igarapé;

ensinar os vizinhos a não jogar restos de comida nem lixo na água;

não tratar peixe e deixar os restos apodrecerem a céu aberto, na


beira da água;

limpar as margens do igarapé e do rio;

não deixar restos de sabão de lavar roupa na água;

pendurar sacos de lixo em alguns lugares da vila para que as pessoas usem.

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Pelo que podemos perceber, são providências dade da água de que se servem no dia-a-dia.
ligadas a um trabalho educativo. Indicam que as Em relação à água-contato com o mundo lá fora,
mulheres reconhecem a responsabilidade da comu- as ribeirinhas colocaram a importância de um cuida-
nidade no que diz respeito à preservação da quali- do maior por parte da Prefeitura de Porto Velho:

construir um porto onde os barcos possam atracar de maneira mais organizada e limpa;

fiscalização dos barcos que vêm com turistas de outras localidades para pescar;

construção de uma rede de esgoto em Nazaré, para escoar a água das chu vas, das privadas
recém-construídas, garan tir água encanada para todas as casas, faci litando o tratamento da
água pelas famílias;

mandar homens com borrifadores de inseticidas periodicamente;

instalação de um tele fone comunitário;

mandar professores para garantir o ensino fundamental e médio;

mandar a equipe do PSF mais freqüentemente à comunidade.

As mulheres sabem o que Nazaré precisa, Querem ser iguais, querem ser incluídas na
e a quem cabe reivindicar. Diante destas listas, o sociedade. Um dia ouvimos um relato de uma
trabalho educativo segue orientado por duas de nossas colegas, sobre o desejo de alguns ribei-
diretrizes: o despertar de mais moradores para a rinhos de preferir galinha de gelo (frango de
necessidade de modificar alguns hábitos, con- granja) à galinha caipira. É que já conhecem o
tando com a participação das crianças por meio gosto e desejam o novo. Galinha de gelo, carne
do teatrinho de fantoches (mas esta é outra his- de boi, frutas do Sul. Assim, entendemos por-
tória que outras colegas do Beradão podem con- que muitas vezes vimos frutas se estragando no
tar). chão ou no pé. Não dá para julgar se estão cer-
As reivindicações foram apresentadas à tas ou não.
Associação de Moradores e Amigos de Nazaré, a Muitas vezes, bem intencionados, propo-
fim de serem encaminhadas à prefeitura munici- mos saídas para alguns problemas e ficamos
pal. A saúde em Nazaré faz parte de uma intrin- chocados quando não há adesão a nossas „mara-
cada rede de elementos objetivos e subjetivos, vilhosas idéias‰, como fazer compotas e conge-
por isso é preciso ter paciência e procurar cons- lar polpas de frutas, fazer outros pratos com a
truir coletivamente as estratégias e soluções. As galinha caipira. Talvez seja necessário entender-
mulheres de Nazaré reclamam por coisas essen- mos que, mesmo parecendo óbvio que o uso dos
ciais: escola para as crianças, assistência à saúde recursos naturais à mão é uma saída importante
permanente, saneamento básico, direito a se para inclusão dos ribeirinhos, às vezes, essas
comunicar com o mundo lá fora. idéias precisam ser trabalhadas lenta e continua-
Convivendo com elas, entendi que não mente, para que eles não vejam estas saídas
querem soluções alternativas, querem os bens e como um reforço da inferiorização que viven-
serviços que as pessoas das cidades têm. ciam, contra a qual se revoltam.

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Muitas vezes, em reuniões com visitantes eles já perderam o status de especiais, a se auto
de fora, políticos ou candidatos, em vez de der- diagnosticar, tratar com plantas e remédios
rubar as barreiras de acesso a bens e serviços medicinais, enquanto vêem na televisão propa-
essenciais, os discursos invariavelmente elogiam gandas de supermercados, shoppings, consultó-
o rio, o igarapé, exaltam a vida ribeirinha pelo rios e clínicas de alto padrão e carrões. Querem
contato direto com a natureza, as maravilhas galinha de gelo, bife de boi e remédio de farmá-
deste viver em paz, longe da violência das gran- cia. Ah, e querem telefone também.
des cidades. Que poderiam utilizar melhor o É claro que existe também a alternativa de
que têm, ao invés de desperdiçar (Lembra aque- irem a Porto Velho, usufruir de algumas dessas
la história de que o Brasil é abençoado, não benesses, mas é uma saída que os obriga a gastar
temos terremotos, vulcões...) e assim, fica pare- dinheiro, se hospedando em casas alheias, o que
cendo que a população deveria agradecer por não pode ser por muito tempo.
tudo o que tem e se resignar com a falta de esgo- Nosso trabalho em Nazaré não terminou.
to, telefone, fumacê, médico e enfermeiro aten- Há muito por fazer, sobretudo continuar mer-
dendo todos os dias no posto... gulhando na complexidade das questões referen-
São discursos ditos e não ditos (e maldi- tes à saúde dessa comunidade, de maneira lenta
tos!) de quem ignora que é muito complicado e gradativa, sempre tendo à mão livros e escritos
conseguir vender a produção, porque os barquei- de estudiosos da saúde coletiva, educação popu-
ros (que ou são os compradores ou se tornam os lar, ecologia humana e enfermagem. Nosso
atravessadores) pagam o preço que querem, res- principal aliado, contudo, tem sido o respeito.
tando ao produtor aceitar ou perder a produção. Só ele nos fornece um par de óculos que nos
Os ribeirinhos utilizam remédios caseiros, mas permite sair da miopia técnica-acadêmica e
não vêem motivos para se orgulhar disso, são enxergar as profundas dimensões da vida ribeiri-
estratégias de sobrevivência repassadas de gera- nha.
ção em geração. Qualquer iniciativa nossa, de
ensinar mais remédios e terapias alternativas Wilma Suely Batista Pereira Enfermeira, Docente da
parece confirmar que são cidadãos de segunda Faculdade São Lucas e da Universidade Federal de Rondônia
categoria, cabendo-lhes contentar-se com o peixe E-mail: wilsue@uol.com.br
com farinha, melancia e outras frutas que para

REFER¯NCIAS

FIGUEIREDO, E. F. G. Aspectos do rinhas da Amazônia. Porto Velho: EDU- comunidade de „Nazaré da Farinha‰. In:
cotidiano nas comunidades ribeirinhas. FRO, 2002. SILVA, J. C. et al. Nos banzeiros do rio: ação
In: SILVA, J. C. et al. Nos banzeiros do interdisciplinar em busca da sustentabilida-
rio: ação interdisciplinar em busca da LIMA, N. M. M. ; SOUZA, M. P. A con- de em comunidades ribeirinhas da Amazô-
sustentabilidade em comunidades ribei- cepção do trabalho ribeirinho: visão da nia. Porto Velho: EDUFRO, 2002.
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Educação emancipatória,
o processo de constituição de sujeitos
1
operativos: alguns conceitos
Eliane Santos Souza
Ilustração: Lin

Uma reflexão sobre as representações internas dos


nossos afetos e como elas se atualizam, na nossa
trajetória, tanto mais quanto mais nos expomos a
novas interações e vivências.

A
o começarmos nossa con- sujeito? Vale lembrar que o senso
versa, será proveitoso ressal- comum nos traz algumas acep-
tar que a educação a que ções pejorativas: esse sujeito, que
estamos nos referindo aqui é sempre sujeitinho, a sujeita. Vamos ressig-
um trabalho. Trabalho entendido nificá-las.
como a ação especificamente huma- Tomemos alguns minutos
na, essa capacidade de criar ideal- para pensarmos no nosso pró-
mente, isto é, de planejar, sonhar..., prio nome. Isso mesmo, pensar-
antes de realizar a transformação da mos no nome próprio de cada
natureza em objeto cultural concreto um, de cada uma. O que sabemos
ou mesmo de transformar a própria desse nome, como chegamos a
cultura, resignificando-a. Trabalho, receber esse nome, conhecemos a
portanto criativo, que nos produz história da escolha do nosso
como humanos, seres da cultura, ao nome?
ser por nós produzido.2 Num breve passeio por
Falamos do trabalho não tais lembranças, nos percebemos
alienado, ópera – chamemos imersos no mar da história sócio-
assim –, realizada por sujeitos cultural. Estamos pensando vín-
que, nesse ato, se percebem tutela- culos. Todas as determinações da
dos e iniciam seu caminho cons- cultura na sua dimensão cotidia-
ciente à emancipação intelectual. na, religiosa, os desejos, os encan-
Falemos um pouco de su- tamentos, os medos, os sonhos,
jeitos. Mas o que é mesmo um as dores, as esperanças, de nossos
1 Tema abordado no I Encontro de Educação Popular em Saúde, promovido pela Escola Estadual de Saúde Pública da Bahia. Salvador, julho de 2003.
2 Gramsci, ao afirmar que todos somos intelectuais, tem nesta concepção de trabalho humano (práxis) sua premissa.
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pais, tios, avós, vizinhos, amigos, todos aqueles que neces sá rias para sig ni fi car mos o mundo.
nos acolheram na cultura, marcas de um tempo, tra- Contudo, as representações internas desses afetos
dições regionais, contemporâneas ou mesmo mile- se atualizam, na nossa trajetória, tanto mais quan-
nares... múltiplas determinações. Daria até para to mais nos expusermos a novas interações. Para
reconstituirmos um bom pedaço de uma época, não nossa sorte, os vínculos primários, ainda que
é? Músicas, lugares, personagens, crenças, devoções, determinantes, podem ser resignificados com o
artes plásticas, sétima arte... Sentidos sempre elabo- trabalho do sujeito, o trabalho educativo.
rados com engenhosidade. Essa vida privada que
carregamos conosco, ainda que o espaço tradicional Mediação, amorosidade,
do trabalho moderno tenha insistido em querer des-
construção coletiva
conhecê-la.
Isso nos remete aos vínculos sociais – relações
Esse campo de interações a partir do grupo
humanas produtoras de sentido – base dos processos
da nossa primeira infância nos será útil, aqui, para
de comunicação e de aprendizagem, já que nos
apreendermos a concepção de educação tal como
constituímos em sujeitos na interação com o outro.
expressa na síntese de Paulo Freire: „Ninguém educa
ninguém, ninguém se educa sozinho, os homens se
Autonomia educam entre si, mediatizados pelo mundo‰.
É o mundo (possibilidade e ameaça à nossa
Pois é, nós já chegamos nomeados, esse ser de existência) o mediador de todo nosso aprendizado.
necessidades é que nos interessa agora. Bem, para Mundo que nos desafia e nos faz produzir nossa
nossa finalidade, pensemos esse ser que, da sujeição existência, compartilhando os próprios processos de
à necessidade, se lança à ação na busca da gratifica- re-criação (educação). Vimos que os sujeitos só se
ção que vem do outro; no movimento (dialético) constituem em interação, isto é, em grupos. Então,
necessidade/satisfação constrói seu caminho e nele trabalhemos, também, nossa concepção de grupo.
se percebe descolado, diferenciado do outro. Esse é A última vez que tivemos de nos reunir a pes-
o caminho da construção do agente, ator, protago- soas, de fora ou do nosso grupo familiar, para
nista, autor, enfim, do sujeito relativamente autô- desenvolver um trabalho específico, como foi?
nomo, pois se sabe interdependente do outro. O que era mesmo que tínhamos de fazer? O
Em síntese, chegamos ao mundo famintos e grupo todo entendeu logo o que se esperava dele?
somos assujeitados pela cultura que nos recebe e,
Você se sentia de fato em um grupo? Como as pes-
na busca da satisfação das nossas necessidades,
vamos reconhecendo no outro a nossa distinção e soas foram superando as dificuldades que encontra-
nos apropriando desses elementos ideológicos que vam para desenvolver a tarefa comum? Que outras
nos acolhem, mas também nos repelem, enquanto tarefas foram surgindo no horizonte do grupo?
que, ao deles nos apropriarmos, os vamos transfor- Pensar essas questões nos remete à concepção
mando, recriando a cultura e produzindo, em de grupo operativo, proposta por Pichon-Rivière:
constante tensão, nossa autonomia, que será, por-
tanto, sempre relativa. „Um conjunto de pessoas ligadas no tempo e no
São nossos vínculos primários que irão espaço, articuladas por mútua representação inter-
configurar o nosso primeiro auditório interno, na, que se propõe, explícita e implicitamente, a
matriz facilitadora, ou não, das interlocuções uma tarefa que constitui a sua finalidade.‰

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Cooperação Assim o é, porque a língua humana não é ape-


nas mais um código de transmissão de mensagens e
Entre as modalidades de interação grupal, res- sim o fenômeno cultural da interação verbal, consti-
saltaremos aqui a cooperação, tomada no sentido pia- tuidor de sujeitos, que, como vimos, são seres relati-
getiano de deslocamentos ao lugar do outro (empatia, vamente autônomos, que buscam no outro a sua
amorosidade), possibilidade exigente, que implica satisfação e encontram nesses vínculos (e, portanto,
maturidade, já que demanda o desempenho de múl- sentidos) a comunhão (liberdade).
tiplos papéis e funções. Tal flexibilização de papéis
expressa nossa saúde mental e contribui para que Elaboração do conhecimento
enfrentemos a nossa necessária competitividade em
direção à cooperatividade, quando, então, as lideran- Como produzimos não só para a nossa sobrevi-
ças serão emergentes e situacionais, como os demais vência (necessidade), mas sobretudo pelas leis da beleza,
papéis desempenhados pelos membros do grupo. da criatividade, a produção social do conhecimento
requer elaboração. Isso se dá através da progressiva pro-
Processo de produção blematização3, processo crítico, que mediante análises e
compartilhada do conhecimento sínteses, nos permite, partindo de uma realidade social
comum, concretizar no nosso pensamento as mediações
Esse processo é, por nós, entendido como a que efetivam o nosso fazer e as relações produtivas dessa
verdadeira comunicação, a produção e o comparti- realidade social. Realidade, resignificada, para a qual
lhamento de sentidos. É por em comunhão idéias, retornamos, também, renovados. Nesse processo nos é
intenções, sentimentos, desejos, fantasias, sem medo fundamental o diálogo com outros caminhantes que
da discordância, mas avisados que a competição, nos têm a dizer sobre o seu caminhar. Assim, finalizo
uma vez instalada, dificulta a comunicação (bom nossa conversa, apresentando a vocês alguns interlocu-
momento para entrar em cena um hábil mediador!). tores válidos, que poderão contribuir para a continuida-
O processo de produção compartilhada do conheci- de das nossas reflexões sobre esse tema. Bom trabalho!
mento ou leitura compartilhada do mundo é, por- Eliane Santos Souza Professora da Faculdade de Odontologia
tanto, necessariamente dialógico, conscientemente da UFBA.
dialógico. E-mail:ess@ufba.br

REFER¯NCIAS
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da lingua- KONDER, Leandro. Os sofrimentos do VAZQUEZ, Adolfo Sanchez. Filosofia da pra-
gem: problemas fundamentais do método homem burguês. São Paulo: SENAC, 2000. xis. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
sociológico na ciência da linguagem. 9. ed. São
Paulo: HUCITEC, 1999. PICHON RIVI˚RE, E. O processo grupal. 6.
ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 31. ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2001. QUIROGA, A. El processo educativo según
Paulo Freire y Enrique Pichon Rivière. Buenos
GERALDI, J. W. A linguagem nos processos Aires: Cinco, 1985.
sociais de constituição da subjetividade: ques- SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-críti-
tões para pensar a cidadania: a língua e o ima- ca: primeiras aproximações. 6. ed. Campinas,
ginário. Campinas, SP: UNICAMP, 2000. SP: Autores Associados,1997.
3 Cf. Método da Economia Política, proposto por Karl Marx, tomado por inúmeros educadores como modelo do processo educativo Cf. Freire, Saviani, Maguerez.
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Pensando
alto...
Ana América Magalhães Avila Paz
Ilustração: Mascaro

O retirante explica quem é e a que veio,


para entrar na roda e pensar junto saúde
na educação ou em educação em saúde.

„...Somos muitos Severinos


iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida)‰.
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Quando escre- priar-se dos saberes de


vo Âpensar educação outros mundos e assim
na saúdeÊ, me dá transitar entre eles, trans-
vontade de pensar formando a si mesmo e
alto, sem muita aos que com ele se rela-
preocupação com a cionam.
forma acadêmica, Penso que essa é a
pensar como quem essência do ofício do
está numa roda de educador, quer seja na
conversa, ouvindo e educação formal ou in-
sendo ouvido (lendo formal, quer seja na for-
e sendo lido). O que mação dos formadores
me impulsionou a de saúde. É nesse pensar
pensar ÂjuntoÊ é a de olhar para dentro de
crença arraigada de si que a gente precisa
que se pode aprender sempre e cada vez mais. fazer de vez em quando e sempre precisamos ver
Essa crença na pessoa que aprende cresceu e se nosso fazer ajuda a desabrochar, nas pessoas a
criou raízes em mim, quando li Guimarães quem ousamos ensinar, sua autonomia, sua con-
Rosa in Grande Sertão Veredas: „Mire, veja: o dição de sujeito, se ajuda na percepção de que
mais importante e bonito do mundo é isto: somos o fio, a teia, e quem a tece, já que o tecer
que as pessoas não estão sempre iguais, ainda do social é construção de todos e de cada um.
não foram terminadas, mas que elas vão sem- Se nosso pensar, traduzido em agir de
pre mudando, afinam ou desafinam. Verdade educador, é aberto, inclusivo, quer seja na
maior é o que a vida me ensinou‰. Somos seres escola ou nos outros espaços de formação, no
apreendentes, em permanente construção, des- cotidiano dos serviços de saúde da atenção
construção, reconstrução. básica, se respeitam os sonhos das pessoas,
Somos criativos, múltiplos, imprevisí- suas lutas coletivas, sua maneira de entender
veis e complexos. Por isso é que aprendemos e decodificar o mundo, seus aprendizados
de diferentes formas, por distintas linguagens. vários, seu imaginário cultural, suas crenças,
Paulo Freire, em Pedagogia da Autonomia, mitos e costumes.
confirmava esse acreditar na capacidade de Na formação dos profissionais de saúde,
aprender do outro: „Onde há vida, há inaca- ainda não temos a fala nem a escuta do respei-
bamento, só entre homens e mulheres é que to às diversidades culturais de gênero, de clas-
este inacabamento se tornou consciente‰. se, de cor, de raça, de nacionalidade, de orien-
Nesse sentido, a crença em quem aprende, tação ao desejo sexual. Na interlocução com os
e aprende de diferentes jeitos, com linguagens movimentos e práticas populares de saúde,
várias e assim traduz para si e para os outros dife- ainda escutamos algumas práticas (benzedei-
rentes visões de mundo, na minha compreensão ras, rezadeiras, raizeiros),com espanto e alguma
é o que constitui a consciência de quem, tendo desconfiança por desconhecimento da espiri-
nascido e vivido num mundo (cultural, religioso tualidade e das crenças que acompanham os
ou não, com outras crenças e mitos) pode apro- ritos e os remédios de outras culturas.

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Pensamos a saúde para o índio, sem os A canção do Milton Nascimento e do


índios pensando junto. Além de generalizar- Fernando Brant „Notícias do Brasil‰, faz um
mos, não atentando muito para a diversidade lembrete: „Aqui vive um povo que merece mais
de etnias, pensamos a saúde dos silvícolas, respeito, sabe? E belo é o povo, como é belo todo
amor. Aqui vive um povo que é mar e que é rio.
esquecendo os „urbanícolas‰ (na fala de um
E seu destino é um dia se juntar.‰
representante indígena terena). Pensamos a saúde Será que sabemos dialogar e, nesse dizer e
para as mulheres e, só de algumas décadas para ouvir, aprendemos na fala do povo sobre como
cá, nós , mulheres, nos organizamos e fomos entende e lida com o processo saúde-doença? E
lutando para sermos ouvidas, para cuidarmos de se já aprendemos a ouvir, é com respeito, com
nossa própria saúde e, ajudando umas às outras, reconhecimento pelos seus aprendizados, pelas
fomos nos associando e formando redes de cui- suas crenças? Compartilhamos na qualificação
dados, de denúncias, de alertas nas grandes epi- dos nossos agentes comunitários de saúde, na
formação dos profissionais de nível técnico ou
demias. Pensamos saúde para os assentados,
superior de saúde, essa inquietação que incorpo-
ribeirinhos, grupos em luta por demarcação de ra a crença do respeito à diversidade?
terras, pessoas que moram nos lixões, desconhe- E na formação dos médicos, Hipócrates
cendo de perto suas realidades. Pensamos a saúde teria razões para sorrir? Ou chora ainda, lá do
para os quilombolas, desconhecendo as tradições além, ao ver que alguns médicos falam a doença
de luta dessas comunidades. É que tem uma dife- sem ouvir os sintomas, prescrevem o remédio
rença enorme entre pensar saúde ÂparaÊ o povo e sem olhar os olhos da alma que sofre? Ah, e têm
pensar saúde ÂcomÊ o povo. uma enorme dificuldade de entender uma pessoa
inteira, porque se especializaram em partes de
Será que é porque pensar ÂjuntoÊ dá medo,
pessoas! Coisas do tempo de agora? Dos avanços
é arriscado? Em tempos de individualismo, se tecnológicos e científicos? Desaprendemos a
abrir para o outro é perigoso, nem que seja para inteireza, a idéia milenar de que todas as coisas
pensar ÂjuntoÊ. Quando se pensa ÂjuntoÊ, nos estão interligadas? E se desaprendemos, podemos
arriscamos a ouvir o que não queremos, a des- reaprender, somos aprendentes, ainda bem!
construir conceitos academicamente aprendidos, Será que, como educadores da saúde, já
a revolver paradigmas de sentimentos. aprendemos a ouvir a fala do povo? Ou ainda
Quando pensamos juntos, estamos vulnerá- precisamos aprender essa lição, que é lição que se
aprende na interação com as pessoas, cada dia
veis, nos arriscamos a ser um igual, a ver no outro
um pouco mais... Quando pensamos juntos,
o espelho de nós mesmos, das nossas angústias, também somos fortes. Cada um assume o que
olhar de frente que os saberes de saúde que domi- foi construído no processo coletivo, se responsa-
namos podem ser contestados, porque são diferen- biliza pelo fazer acordado, pactuado, negociado
tes dos outros saberes, mas não mais importantes ou solidarizado. Como um feixe de gravetos
ou menos importantes do que os saberes de saúde diferentes, mas unidos, que não quebra fácil.
gerados pelo povo em suas andanças pela vida.
Sim, porque a vida ensina a toda hora, Ana América Magalhães Avila Paz Mestranda em
em casa, no serviço, nas ruas. Mas a escola, de Ciências da Saúde-UNB, especialista em
tempo determinado, não ensina para a vida, não Administração da Educação e Educação Ambiental.
No campo da Educação popular, trabalha com artete-
ensina ainda o diálogo, que dá sentido ao huma-
rapia.
no, nem ensina ainda a interlocução entre os
E-mail: anapaz@brturbo.com
diferentes coletivos.

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Trocando do “era uma vez...”


para o “eu conto”
Ana Guilhermina Reis Rosa
Ilustração: Mascaro

A autora oferece-nos uma provocativa reflexão sobre


o uso dos contos literários e populares, possibilitando refle-
xões das histórias de vidas na Educação Popular em Saúde.
ra uma vez... estava eu conversando com

E alguns amigos da Rede Popular em Saúde


e a mensagem que surgia na tela me fez
lembrar uma ferramenta de trabalho: os contos.
Assim, eu "conto" porque... gosto muito
de realizar reflexões do cotidiano, mediante con-
tos e mitos.
Existem fundamentos teóricos sobre
isso.
Os contos me remetem a dados históricos
reais e cada vez me colocam mais na posição de
aprendiz, acho isso fantástico. Em todo lugar
que vou, sempre tem alguém para "contar" algo
ilustrando o que ouviu falar ou que vivenciou.
Tanto os contos literários quanto os con- Minha mensagem tem raízes nos con-
tos populares (confesso que minha preferência é tos... retrato aqui um conto que virou popular.
por esse, justamente porque vêm do "popular"), Eis que deixou de ser um conto, passando para
possibilitam reflexões das histórias de vida. dois contos, três contos e, certamente, depois
Assim, contos e histórias de vida são bases desta publicação, infinitos CONTOS. É um
e ferramentas de trabalho na Educação Popular conto popular!
em Saúde Mental. Por meio desta metodologia, Tal conto foi lido e discutido com os
é possível conhecer as concepções da população alunos do Movimento de Alfabetização do
com quem trabalho. Em dinâmicas de grupo, o hospital psiquiátrico onde eu desenvolvia ati-
conto faz provocações com resultados enriquece- vidades de Terapia Ocupacional, em Porto
dores individuais e coletivos. Sou assim, pedi Alegre-RS. Dizem que havia um cego sentado
licença aos amigos da Rede e fui tomada pelo na calçada, com um boné a seus pés e um
desejo de contar algo. pedaço de madeira que, escrito com giz, dizia:

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"Por favor, ajude-me, sou Cr: "Na próxima estação do


cego". ano, o cego vai ter que con-
Um publicitário, tar com a ajuda de outra
criativo, que passava em pessoa. Se a pessoa não for
frente a ele, parou e viu criativa, já era."
umas poucas moedas F: "Não. Talvez o cego
no boné. O publicitá- peça para alguém ler para
rio pediu licença, ele o que o homem rees-
pegou o cartaz, virou-o, creveu e vai se dar conta."
pegou o giz e escreveu Me: "As vezes, mesmo que
outro anúncio. Voltou a alguém nos diga exatamente
colocar o pedaço de madeira o que temos que fazer, não
aos pés do cego e foi embora. sabemos fazer a coisa certa e
Pela tarde, o publicitário voltou a continuamos errando."
passar em frente ao cego que pedia Al: "O cara ainda é cego..., mas tem muita
esmola. Agora, o seu boné estava cheio de notas gente que consegue ver e não enxerga. Tem boca,
e moedas. O cego reconheceu as pisadas e lhe mas não sabe falar. Tem ouvidos e não escuta.
perguntou se havia sido ele quem reescreveu seu Tem pessoas, que não adianta nada. Tem outras
cartaz, sobretudo querendo saber o que havia que sabem aproveitar."
escrito ali. O publicitário respondeu: J: "O criativo foi criativo para escrever, mas o
"Nada que não esteja de acordo com o que custava ele dizer para o cego o que ele re-
seu anúncio, mas com outras palavras". escreveu. Recuar, às vezes, pode ser estratégico.
Despediu-se, sorriu e continuou seu caminho. O Virar as costas para quem precisa, será que é
cego não soube, pelas palavras do publicitário, estratégico? Sei lá!"
mas seu novo cartaz dizia: "Hoje é primavera É isso aí, este foi um "recorte" do que
em Paris, e eu não posso vê-la". Mudar a estraté- vivenciei. Certamente, ao ler o que aqui con-
gia... pode trazer novas perspectivas. tei, você também lembrou de "contos e con-
"Aí, eu sou obrigada a ÂcontarÊ que fico fas- tos" que fazem parte de sua história de vida,
cinada com a contribuição da metodologia quali- não é mesmo? Conte algo para alguém.
tativa da Educação Popular em Saúde Mental...‰ Sempre tem alguém que quer ouvir, ou que
Com tranquilidade, transcrevo as reflexões, após deseja contar... Ah! Era uma vez... outra hora
lermos o conto juntos. A referência das falas em eu "conto."
abreviaturas visa a preservar o sigilo das identida-
des, mas confesso que se pudesse eu revelaria esses
Ana Guilhermina Reis Rosa Terapeuta Ocupacional,
autores, com os quais aprendi muito: participante do Grupo da Rede de Educação Popular e
Me: "As vezes precisamos de ajuda e não Saúde e Mestre em Saúde Coletiva na Universidade
sabemos como pedir. Aí, não recebemos a ajuda Luterana do Brasil, Canoas/RS.
que precisávamos." E-mail: anaguilher@yahoo.com.br

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Você tem sede de quê?


Cenas do viver, adoecer morrer,
transcender numa favela brasileira
Iracema de Almeida Benevides
Ilustração: Lin

Adaptação do texto "Pelos caminhos do coração", sétimo capítulo do livro


"A saúde nas palavras e nos gestos - reflexões da Rede de Educação Popular
e Saúde".
PREFÁCIO

"Bebida é água
Comida é pasto
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
A gente não quer só comida
A gente quer comida, diversão e arte
A gente não quer só saída
A gente quer saída para qualquer parte."
(música do grupo Titãs)

„Ainda que eu falasse a língua dos homens,


que falasse a língua dos anjos,
sem amor, eu nada seria.‰
(adaptação de Renato Russo sobre
a carta do apóstolo Paulo aos Coríntios, Bíblia
Sagrada)

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POESIA / FRAGMENTOS POÉTICOS


Parte I - O viver
Poética do viver
Procurar o quê?
Abre o campo, fecha a roda Não sei responder!
deixa as meninas brincar Procurar a vida
Elas são filhas da terra A vida daqueles
Conhecidas do lugar Tirada por fatalidade
Ou daqueles que
Teriam que partir
***
Eu procuro a esperança
Botei minha cama na varanda Dos que perderam
Esqueci do cobertor Procuro o amor de quem não tem
Veio o vento lá de fora Procuro a fé, a esperança e a paz
E encheu a cama de flor Que ficam tão longe,
Que não consigo alcançar

*** Procuro no vento que voa


Para longe, no silêncio da noite
Uma resposta
"Onde está o que procuro? Para tanto sofrimento
A vida é tão curta E tantas violências
Por que estou assim? Se Deus plantou o amor,
Não sei o que procuro Por que não o cultivamos?"
Meus anseios são tão grandes
Que não sei o que procuro (Maria das Dores Moura)

"Minha idade quase ninguém vai alcançar, que os tempo tão muito difícil. Enterrei minha dona dia sete de
março. Chorei demais. Quase setenta anos juntos: nove filho, vinte neto e cinco bisneto. Era bom demais
viver com ela. Era uma amiguinha que eu tinha, carinhosa. Tudo prá ela tava bom. Fiquei muito triste. Isso
aí lá ia me derrubando. A tal de solidão." (Albertino)

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Festa de aniversário
O feijão cozinhava lento sobre um fogão de em seu velho corpo. Sentia um conjunto interminá-
barro que enfumaçava as paredes da cozinha. Alguns vel de dores, em diferentes lugares, de intensidades
poucos mantimentos estavam guardados na estante, variadas. Havia dor de todo jeito, cada uma surgida
juntamente com panelas e utensílios de cozinha, em em uma situação, que queria detalhar.
um canto: arroz, café, fubá, feijão, macarrão, açúcar, Sinval, aproxima-se novamente. Chega perto e
alguns limões e algumas cebolas e batatas. Havia uma pergunta se era possível aposentar-se. Indago-lhe
ordem em tudo, embora fosse difícil compreendê-la, quantos anos tem, qual a sua idade correta. Pensou,
embora não fosse a ordem que queríamos ver. Sinval, pensou e consultou a carteira de identidade, guarda-
muito magrinho, grisalho e simplório, sorria tímido da no bolso da camisa. Inseguro, passou-a a mim,
para nós: a casa, agora, estava mesmo boa! Tanta para que eu mesma lesse os dados.
gente! ¯ta coisa boa, sô! Ofereceu o braço, todo satis- - Sinval, você tem 67 anos. Você nasceu em 5
feito, para que fosse medida a pressão arterial, arrega- de junho de 1932, correto? Mas... Sinval, hoje, é cinco
çando a manga da camisa larga, amarrotada e puída. de junho! Hoje é seu aniversário... Parabéns!
Depois ofereceu café e água, mas ninguém da equipe Ele olhou sorridente para mim. Não disse
aceitou. Aquilo pareceu constrangedor, mas a atenção nada. Então eu entendi. Estavam todos ali para feste-
foi desviada pela conversa longa e queixosa de jar com Sinval seus anos bem sobrevividos, ainda que
Serafina, a irmã de Sinval, que queixava-se de tudo nós considerássemos os copos mal lavados.

Luciano, um artista
Luciano, o filho de Amparo, tem 18 anos e "não deu para a escola", expressão que popu-
larmente é dita referindo-se a crianças com alguma deficiência intelectual. É alegre, comunica-
tivo e comparece mensalmente com sua mãe ao "grupo da pressão", como acompanhante. "Não
deu para escola", mas sabe fazer de tudo o resto. Está cadastrado no nosso serviço na pasta que
recebe o nobre título, o rótulo de DME (Deficiências Mentais). Sigla que discrimina normais
de anormais. Mas Luciano cozinha, desenha e canta. Ele canta alegre como um passarinho e
adora louvar o Senhor. Depois do Senhor Deus, é ao Cruzeiro (time de futebol mineiro) que
ele ama mais. E depois, ama sua mãe, seu pai, seu irmão e a Valéria, sua agente de saúde.
Luciano entrou, recentemente, junto com sua mãe, para uma igreja pentecostal. A pastora lhes
garantiu que não havia proibição por eles serem católicos apostólicos, batizados e devotos de
Nossa Senhora da Conceição. O importante é louvar o Senhor. Levar uma vida direita. Fazer o
bem. A igreja tem um grupo de jovens que se reúne os fins de semana para jogar futebol.
Luciano é capitão do time. Capitão e também regente do coral da sua nova igreja. Sua mãe nos
conta que aos domingos ele se ajoelha no chão com fervor e ora com toda a sua fé, com toda
a força de suas palavras. Em sua oração ele pede por nós, seus amigos do posto. Especialmente Valéria.
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MINI - CONTOS
Parte II - O adoecer

Esmeralda e Miúda
Esmeralda vai morrer em breve. O câncer lescente, Miúda.
avança implacável. Da mama para o abdome, daí Não se entende
para o reto numa feia fístula. Emagrecida, caque- porque. O banhei-
xiada, consumida. Mas os olhos vivos e brilhantes ro é uma caixa de
estão atentos ao mundo. Pode-se ver ali uma clara madeira com um
consciência de tudo, embora o corpo esteja se cano no alto, o
decompondo em vida. chuveiro. Panos,
Veio do interior para o tratamento, mas já papelões e plásti-
chegou tarde. A filha, Bila, mora num barraco cos forram as pare-
muito pequeno e precário, no meio de uma íngre- des. Comem min-
me encosta, num beco escorregadio por esgoto e gaus suspeitos. No
fezes (humanas, caninas, felinas e outras piores). É quarto único, para
muito difícil descer, não temos onde apoiar as cinco adultos e três crianças, há uma cama de casal
mãos carregadas de objetos. Os pés deslizam nos e um beliche. Esmeralda está deitada na cama de
tijolos si-nuosos. Lugar perigoso. Marginais. Só casal, moribunda. Numa pequena estante, os obje-
com o "sinal livre" deles é que podemos descer. O tos pessoais e roupas de todos. Retratos dos fami-
pequeno portão de madeira remendada está fecha- liares, recortes de revista com faces de artistas cola-
do. Um cachorro pestilento late atrevido. As crian- dos nas paredes, pequenos bibelôs, bichos de pelú-
ças estão sentadas no chão com roupas mínimas cia fazem a decoração. Limpos e sujos. Tudo no
amarrotadas, sujas e cheirando a urina. Ao redor, chão, esparramado, o que não coube na estante.
suas fezes se misturam às fezes dos cães. Duas Em meio à sujeira, brilham os olhos de Esmeralda
mulheres jovens estão a cozinhar e tossem com e a juventude de sua enfermeira dedicada, a Miúda.
tanta fumaça, num fogão de lenha improvisado no Miúda é cândida e suave. Passou a namorar o neto
chão. A amiga veio morar na casa, com a filha ado- de Esmeralda e tomou-a como avó.

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A rádio capeta
Bituca ouve vozes. Chama-me no canto e diz coxa esquerda, já me contara o caso mais de trinta
que a rádio Capeta fica enviando mensagens do mal vezes), senhora sabe, já te contei. Quebrei ela há
a toda hora para sua cabeça. Fala-lhe no ouvido. muuuuuito tempo, oh, faz mais de quinze anos.
- É verdade, dotora! Uma caixa preta, escon- Foi ... (e inicia um outro caso). Eles botaram para-
dida na casa do vizinho, é a antena que recebe as fuso, mas ficou mais curta e agora dói. A senhora
mensagens da rádio Capeta. O mal, dotora. O tem que passar os cumprimidos de insulina pra eu
MAL! Acredita, dotora? Mas Jesus tem meu cora- tomar no fim de semana, que a mulher não conse-
ção. Quanto mais alto a rádio fala, mais alto eu gue aplicar ne mim, não. Viu, dotora, os cumpri-
rezo. Eles querem me pegar, mas Jesus não deixa. midos de insulina resolve, adianta sim. Eu já usei
- Eu acredito, Bituca. Já lhe disse que acredi- deles, Dr. Juvenal passava. Não sei o que é agora
to. Eu quero saber o que é que eu vou fazer com que ela tá subindo tanto. Eu num como nada.
essa sua glicemia: 500!!! Nada mesmo. Pergunta pra mulher. É um tiqui-
- A insulina, dotora. É difícil no fim de nho só de comida. Eu num tô entendendo. É coisa
sema-na. O posto tá fechado. Tem que ir lá embai- do capeta. Eles fica falando no meu ouvido e a gli-
xo, no centro. Eu manco desta perna (aponta a cose sobe. Pois eu num era assim!

Zil (trecho de Maria rir de rachar os bicos)


Maria Pequena chega em casa paraparética, seguidas por fugas. A polícia está sempre por lá cap-
membros inferiores encolhidos junto ao tronco, turando-o, e ele sempre fugindo e cometendo novos
rígidos, com escaras sacrais e trocantéricas, de uma delitos. Vencemos o medo de encontrá-lo como por-
magreza assustadora e com enorme labilidade emo- teiro e entramos. É uma casa de dois cômodos com
cional. Gritava e chorava por qualquer coisa. apenas três camas para todos. A sujeira e a desorga-
Chorou muito e se agitou ao nos ver chegar, deita- nização da casa são assustadoras. Entre roupas sujas
da em seu pequeno catre. A situação, olhada como e limpas emboladas por todos os lados, estão medi-
um todo, ou nos detalhes, era (e é, ainda) extrema- camentos, copos, alimentos preparados ou ainda
mente dramática. Justo com emprego temporário, em suas embalagens, sapatos, cobertores, talheres.
salário miserável, arriscado à demissão por falhas Uma velha televisão está entre as duas camas no
freqüentes e alcoolismo. A equipe visita a casa quarto do casal. Sobre ela, material de curativo
temerosa. Na entrada está Zil, o filho de 17 anos usado ou novo, entre tubos de pomada e prendedo-
"chapado". É nítido que está fumando um cigarro res de cabelo, comprimidos, restos do café da
de maconha. Seu vício preferencial é por craque, manhã. Contrastando com todo o resto, na parede
me informa Etilene. São apenas dez horas da ao lado da cama estão coladas declarações de amor
manhã. Ele acumula pilhas de processos por pelo dia das mães. Nós te amamos, mamãe. Sare
roubo, tráfico e outras coisas mais, segundo nos logo! Maria pequena não pode lê-las, mas saber que
informa o pai. Diversas internações na Febem estão ali a aquecem e estimulam.

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O terrível ácaro
Clarinda recebeu uma receita enorme, extre- lias de risco que acompa-nho. Marido e esposa são
mamente bem escrita, contendo toda a medicação alcoólatras e estão desempregados há meses. O
a ser usada e as medidas ambientais a serem segui- esposo foi atendido recentemente com suspeita de
das. Uma lista meticulosa de tudo o que ela deve- hanseníase, em propedêutica para neurite do braço
ria tirar de casa. A sua criança, habitualmente direito. Eles têm três crianças menores de cinco
atendida no PSF, havia precisado de atendimento anos, em acompanhamento devido à desnutrição de
no final de semana e o pediatra da urgência o fez. terceiro grau persistente. Descobrimos que trocavam
Por acaso, era um profissional especializado em o leite distribuído pelo programa governamental de
asma, que entrava sempre em conflito com os combate à desnutrição e a farinha enriquecida por
médicos do PSF, por considerar nossa abordagem cachaça e cigarros. Moram numa habitação precá-
muito superficial. Desenhou um ácaro no alto da ria de dois cômodos e puxam a luz de uma vizinha,
página e circulou-o para Clarinda entender um vulgo "gato", numa área das mais perigosas da
melhor o bicho; e disse que aquele era o causador favela, onde a agente comunitária recebe o sinal se
da chieira, terrível inimigo. No dia seguinte, pode entrar ou não para visitas... Clarinda, que já
Clarinda me espera contrariada na porta da unida- estava em uso de Triptanol e Diazepam, agora tem
de. Está extremamente preocupada com sua filhi- dificuldades para dormir. Não consegue parar de
nha e desapontada comigo, porque nunca expli- pensar no terrível ácaro que lhe infecta a casa e
quei a ela que aquele bicho era o culpado. Além ameaça a saúde dos seus pequenos. Para esquecer, é
do mais, não podia tirar de casa tudo o que a melhor tomar uma dose.
outra doutora mandara afinal não tem aquelas coi-
sas de tapete, cortina, bicho de pelúcia, etc. O
sabão em pó também não tem jeito de trocar. Os
gatos e cães são dos vi-zinhos, entram e saem do
barraco quando querem, não há cerca ou portão
sem buracos na favela. A família está entre as famí-

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Parte III - O morrer


Gil entre crisântemos amarelos e brancos
Gilson está deitado sereno entre crisântemos zinho, o Titã, que dorme dentro do forno de um
amarelos e brancos. Há uma súbita perfeição na fogão velho, que serve de casinha. Gil se foi. O pas-
combinação das cores das flores que decoram o tor faz sua última preleção, as últimas palavras
corpo no caixão e as cores do barraco: paredes antes da terra macia. A seguir, o grupo carismático
impecavelmente brancas, portas e janelas amarelas. reza e canta. Ecumênico. Nós estamos lá e nos
Luzia está arrumada e maquiada, e, apesar da sin- emocionamos. Impossível não se sentir torcida por
geleza, posta-se elegante e responsável ao lado do dentro. Doída. Gil era mesmo bom. Mas o álcool
esposo morto. Está um pouco aérea, sorrindo. foi mais forte. Depois veio a hipertensão maligna
Feliz que tanta gente veio ao velório. Tudo aconte- e, por final, os rins falharam. Como fora em vida,
ceu rápido demais. Lá fora nos becos, gente em pé tranqüilo e silencioso, se vai. Um velho sujo, meio
encostada nos muros, ou agachados, conversando aleijado e malcuidado, entra na modesta sala e
os assuntos de sempre dos velórios. No pequeno e passa a mão pelo rosto do homem no caixão. Sua
único quarto da casa, as crianças pulam sobre a face se contorce. Sua expressão é de dor, de pena,
cama. O mais velho está lá fora ao lado do seu cão- de tristeza. Aquela face simboliza todos nós ali.

Força para morrer


- Sabe, dotora... É mais uma coisa bem simples, queria mesmo só fazer uma pergunta. O povo anti-
go diz que, quando alguém tá sem força até para morrer, que a gente dá leite de peito e a pessoa agüen-
ta ir. Eu queria saber sua opinião: se eu der o leite de peito pro Geraldo e ele morrer, a senhora acha que
eu tô matando ele?

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Parte III - O transcender


Luciano, novamente
E Luciano canta alegre e extremamente Sem ter hora de acabar.
afinado para nós, o hino evangélico : É fogo santo, é fogo do altar
"Quando fecho os olhos, É fogo puro que está neste lugar.
Sinto lágrima rolar, Quando eu fecho os olhos,
Quando o Espírito Santo Sinto lágrima rolar...
vem me iluminar. É fogo para todo lado,
Quando começo a orar, Sem ter hora de acabar!
O fogo vem me queimar
É fogo para todo lado, ALELUIA, ALELUIA, ALELUIA!!!

Geralda, uma benzedeira


Geralda mora em meu coração desde o pri-
meiro momento em que a vi e eu nunca saberia
dizer por quê. Mais adiante, nossa amizade cresceu.
Bem devagarinho, é verdade. Mais por conta da dis-
crição dela, que da minha vontade.
Levou muito tempo, mais de ano, para eu
entrar em sua casa. Um barracão escuro, sujo, enfu-
maçado pelo fogão a lenha, pobremente mobiliado.
Ela benzeu-me algumas vezes e disse-me que os
ramos murchavam. Eu estava "muito carregada",
como dizem as benzedeiras. Pedi-lhe que me ensi-
nasse algumas benzeções. Ficou muito alegre com o
meu interesse e esforçou-se para ensinar-me, minu- um serviço remunerado, já que era um dom de
ciosamente, como os versos que têm que ser ditos, Deus. Podia ser aprendido, mas dom é dom. Pode-
como os gestos que têm que ser feitos, a atitude inte- se aprender, mas só quem tem o dom consegue fazê-
rior de quem reza sobre alguém. Aprendi como lo. Aceitou tomar um anti-hipertensivo que sugeri,
curar espinhela caída, mau olhado, quebradeira e mas disse que não tinha tempo para ir ao posto.
mal atravessado. Nenhum dos membros da sua Gostava muito de mim e das agentes, mas tinha
numerosa família havia se interessado pelo ofício muito serviço da casa, muita obrigação, muito neto
do qual se orgulhava Geralda. Modesta, disse-me para cuidar. Iria tomar meu remédio, no entanto.
que era muito procurada pela gente do lugar para Éramos colegas de ofício. Eu na minha medicina
dizer as rezas. Suas mãos eram boas. Aquele não era concreta, ela na sua medicina espiritual.

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- Eu vou ensinar primeiro a benzeção de quebranto e mau olhado, viu? Depois vem a
de espinhela caída, a de cobreiro e a de carne quebrada, tá?

E Geralda pega minha mão entre as delas e começa a ensinar...


O que faz Pedro
Sentar na pedra fria
Curando dor de cabeça,
quebranto e mau olhado
com três raminho verde
e água fria.
Ave Maria
Cheia de Graça
Bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. Em nome do Pai...

„Barquinha de Maria Virgem, Uma parte de mim


Embarca essa espinhela É permanente
Para ela chegar no lugar Outra parte
Tá caída e não tá, Se sabe de repente
Com Deus Pai, (...)
e Deus Filho Traduzir uma parte
e Deus Espírito Santo na outra parte
Três vezes - que é uma questão
de vida ou morte -
Pescoço, carne quebrada, ou será arte?‰
osso rangido,
nervo encoído, (trechos do poema Traduzir-se, de Ferreira Gullar)
veia arrebentada,
Pelo poder do Espírito Santo
e de Nossa Senhora Aparecida três vezes,
que sara

Segundo Geralda, o cobreiro é mais complicado, pois ele tem rabo e cabeça, assim a gente tem que pegar
uma faca ou outra ferramenta que corta e colocar em cima do cobreiro e dizer, à medida que corta o cobrei-
ro fora: Meio, rabo, cabeça ...

Iracema de Almeida Benevides Médica com formação em Saúde da Família, Homeopatia e Medicina Antroposófica. Atualmente é assessora
técnica da Coordenação de Acompanhamento e Avaliação da Atenção Básica, do Ministério da Saúde.
E-mail: iavida@uol.com.br
130
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Peripécias educativas na rua


Lia Haikal Frota
Ilustração: Samuca

A rua pode se transformar em um espaço educativo. Mas para que isso


aconteça é preciso estar atenta às oportunidades que surgem em cada
praça, em cada esquina... É preciso atitude educativa.
á pouco vivi algo muito gostoso (se é que Então, no final, nos demos um abraçãozão e

H posso dizer isso de algo relacionado a crian-


ças pedindo esmola, mas... posso sim).
Estava eu passando pelo Largo do Machado e vi que
mil beijos e abraços recebi delas, com aquela energia
boa de criança, pois, teimando com o cotidiano, con-
tinuam crianças. E saí de lá com o coração sorriden-
uma menina estava do meu lado, me seguindo. te, e muito provavelmente elas fizeram muito mais
Depois olhei e vi outra, e outro, e outro. Aí por mim do que eu por elas. Mas, além disso, o que
comecei a rir e disse: „Então tá, vamos brincar de me faz ver esse encontro com alegria é que, naquele
siga o mestre!‰. Como eu já ando despudorada e momento, estávamos juntos, éramos iguais (tenho
ainda por cima estava voltando de uma oficina medo de usar essa palavra, porque ela não é muito
teatral, comecei a fazer coisas esquisitas e as crian- boa, mas enfim, depois desenvolvo isso melhor).
ças me imitando. Corria, parava, pulava, fazia
barulhos estranhos, gestos mil, essas bizarrices. E Lia Haikal Frota Acadêmica do décimo semestre do Curso de
as crianças riam, e imitavam, e imitavam. Depois Medicina da UERJ e participante do projeto Alunos na Praça,
formado por estudantes de medicina, enfermagem e psi-
cada uma foi o mestre, e foi maravi- cologia da UERJ.
lhoso imitá-las (apesar dos olha- E-mail: haikal2003@yahoo.com.br
res do pipoqueiro, dos velhi-
nhos, de todos).

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Outras Palavras

Fragmentos poéticos, melodias, escritos...


Fontes nas quais todos e todas nós bebemos e continuaremos bebendo a cada momento novo
do nosso aprendizado, das nossas descobertas. Fragmentos poéticos, melodias, escritos traça-
dos com leveza e criatividade. Outras palavras, outras maneiras de dizer o que a teoria cien-
tífica procura fundamentar, talvez um tanto distraídas e mais encantadoras. Apenas, outras
palavras... Pág. 133
outraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavra
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A Educação
pela Pedra
Uma educação pela pedra: por lições;
Para aprender da pedra, freqüentá-la;
Captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
Ao que flui e a fluir, a ser maleada;
A de poética, sua carnadura concreta;
A de economia, seu adensar-se compacta:
Lições da pedra (de fora para dentro,
Cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
E se lecionasse, não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
Uma pedra de nascença, entranha a alma.

 O título da coletânea A Educação pela Pedra


(1966) indica a depuração atingida pela poética
de João Cabral de Melo Neto. A abordagem da
realidade exige um contínuo processo de educa-
ção: os poemas devem ser trabalhados de forma
rigorosa e sistemática para obterem a consistência
e a resistência de uma pedra. A coletânea reúne 48
poemas marcados pelo didatismo do poema "A
Educação pela Pedra", seu núcleo temático.

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outraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavra-
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O sorriso é a distância mais


curta entre duas pessoas (V. Borge)
P ro j e t o

Sorriso
A alegria é a prova dos
nove (Torquato Neto)

19.º Salão Internacional de Humor do Piauí - 2001

Nós queremos
que o mundo
seja menos sério
(S. Rajneesh)

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E G aleano duardo

O menino não conhecia o mar. O pai levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o
Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai
enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na fren-
te de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou
mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
- Me ajuda a olhar!
Eduardo GaIeano, O Livro dos Abraços. SP, L&PM, 1991

Ilustração: Lin

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outraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavrasoutraspalavr
„ Paulo
Freire
“Não é no silêncio que os homens se fazem,
mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão.”

“O diálogo funda a co-laboração.”

“O diálogo não impõe, não maneja, não domestica.”

“Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo.”

“A fé nos homens é um dado a priori do diálogo.”

“O amor fundamenta o diálogo e instaura a confiança.”

Frases do livro Pedagogia do Oprimido. 31. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001
Ilustração: Mascaro

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Entre Sementes e Raízes

Receitas para a saúde


Este espaço estará reservado para a sabedoria popular, que se revela nas diferentes regiões do
Brasil, assim como a todos os segmentos que com ela interagem, buscando fortalecer as práti-
cas que se direcionam no sentido de proteger nossa biodiversidade, garantir o uso de medica-
mentos eficazes e acessíveis à população, denunciar a biopirataria e criar espaços alternativos
e de intercâmbio da educação em saúde. Pág. 138
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Entre sementes e raízes


Ilustração: Paulo Brasil

"Usando nossas plantas medicinais estamos protegendo


nossa biodiversidade, para garantir medicamentos efica-
zes, seguros e baratos para nosso povo, e com isso evitar-
mos a biopirataria."

Couve
Nome científico: Brassica oleracea, L.
Parte a ser usada: folhas e talos.
Composição química: sais minerais, vitaminas
(A, B1 e B2), proteínas, cálcio, ferro, niacina, enxofre, Gastrite e/ou úlcera gastro-duodenal liquidificar
fósforo, sódio, cloro, magnésio e zinco. uma folha grande de couve com meio copo d'água
Propriedades terapêuticas: anti-escorbútico, vermí- mineral e 1 colher de sopa de mel de abelha; tomar
fugo, anti-úlceras, antitussígeno, anti-reumático, anti- entre as refeições.
inflamatório, antidiarréico. Nota: não usar folhas de procedência desconhecida,
Toxidade: desconhecida. para evitar intoxicação por agrotóxico.
Modo de usar/como preparar/dose: o cozimento Fonte: Introdução ao Uso de Fitoterápicos nas
das folhas é bom para surdez, e por ter alto conteú- Patologias de APS, Dr. Celerino Carriconde, publica-
do de fibras, combate a prisão de ventre. ção do Centro Nordestino de Medicina Popular.

Suco de hortaliças
2 folhas de alface, 1 folha de couve, ½ pepino
1 tomate médio, ½ pimentão vermelho
½ copo de água, suco de 1 limão
Lave bem as hortaliças, pique-as e bata tudo no liqui-
dificador, junto com a água e o suco de limão. Sirva
antes das refeições.

Fonte: Cartilha Segurança Alimentar do que precisa-


mos para ter uma boa alimentação, Diana Mores,
publicação do Centro Nordestino de Medicina
Popular.
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Quebra-pedra
Nome científico: Phyllantus amarus Schum. et Toma-se, em todos os casos, o cozimento na dose de
Thorn. duas a três xícaras ao dia, intercalando-se uma sema-
Parte a ser usada: a planta toda. na de repouso, após cada três semanas de tratamento.
Composição química: flavonóides, tanino, alcalói- Nota: só tome se tiver feito a ultra-sonografia que
des, cumarinas, lignanas. comprove que as pedras são pequenas, pois esta plan-
Propriedades terapêuticas: antiespasmódica, rela- ta não quebra as pedras, só previne e dilata o ureter
xante muscular (parece ser específico para os urete- para as pedrinhas pequenas descerem.
res), diurético leve, aumenta a eliminação de ácido No caso de hepatite B, o pó ou extrato da planta deve
úrico pela urina, antilitiásico renal (por facilitar a eli- ser usado dentro de cápsulas especialmente prepara-
minação dos cálculos renais pequenos que são expeli- das para absorção entérica, pois princípios antivirais
dos sem dor), comprovada atividade contra o vírus da perdem o efeito no estômago.
hepatite B. Fonte: Introdução ao Uso de Fitoterápicos nas
Toxicidade: usada na Polinésia como veneno para os Patologias de APS, Dr. Celerino Carriconde, publica-
peixes; no Brasil, usado pelas mulheres como aborti- ção do Centro Nordestino de Medicina Popular.
vo. Não encontramos estudos sobre DL 50.
Modo de usar/como preparar/dose: usa-se a plan-
ta toda, triturada, na forma de cozimento, preparado
com 30 a 40g da planta fresca ou 10 a 20g da planta
seca em um litro de água, fervendo-se por dez minu-
tos. A planta seca, triturada e peneirada pode ser
guardada em frascos bem fechados por um período
de três meses, para preparação diária do cozimento,
na proporção de uma colher das de sopa em 200cc de
água, para ser tomado duas vezes no mesmo dia.

Bolo de casca de abacaxi


2 ovos Acrescente o fermento e uma xícara de caldo de casca
1 colher (sopa) de fermento em pó de abacaxi. Asse em forma untada e em forno modera-
2 xícaras (chá) de farinha de trigo do. Depois de assado, ainda quente, fure o bolo com
2 xícaras (chá) de caldo de casca de abacaxi um garfo e despeje o restante do caldo da casca de aba-
2 xícaras (chá) de açúcar. caxi com 1 colher de sopa de açúcar.
Para obter o caldo de casca de abacaxi, retire as cascas
de um abacaxi e afervente com 4 xícaras (chá) de água Fonte: Cartilha Segurança Alimentar do que precisa-
por cerca de 20 minutos e reserve. Bata as claras em mos para ter uma boa alimentação, Diana Mores,
neve, misture as gemas e continue batendo. Misture aos publicação do Centro Nordestino de Medicina
poucos o açúcar, a farinha de trigo, sem parar de mexer. Popular.

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Sabão medicinal antipiolho


(sabão cracrá para matar cricri)
Modo de usar: ensaboar o couro cabeludo e
Indicações: piolho, caspa, sarna, coceira no outras partes afetadas, deixando no máximo por 5
corpo, fortalecimento do couro cabeludo. minutos. Fazer a aplicação por três dias seguidos e
Ingredientes: ½ kg de folhas de cada uma das repetir depois de 7 dias.
seguintes plantas arruda, babosa, carqueja, falso
boldo, fumo, losna e 9 kg de sabão de coco.
Fonte: Grupo da Terceira Idade "Alegria de Viver" US
Preparo: ferver cada planta, em separado, com 4 e
Jardim Itu/Grupo Hospitalar Conceição/Porto
½ xícaras de água por 15 minutos. A carqueja deve
Alegre/RS.
ser desfolhada, nas demais plantas, usa-se toda a
parte verde. Na ausência das folhas de fumo, usa- Surita, R. e cols. Como montar uma farmácia
se 10cm de fumo de corda. Durante a fervura, caseira. Curso de Extensão da Universidade
deve-se amassar as folhas com uma colher de pau. Federal de Pelotas (UFPEL) e Universidade
Coar os chás e medir a quantidade de líquido. A Católica de Pelotas (UCPEL). São Leopoldo:
quantidade de sabão de coco utilizada deve ser 3 Sinodal, 1997.
vezes maior que a quantidade de líquido obtido.
Ralar o sabão e levar ao fogo lento para derreter.
Junta-se o chá mexendo sempre. Mexer até ficar
com consistência de polenta mole. Despejar numa
forma de alumínio e cortar no dia seguinte. Os
pedaços de sabão devem ser embrulhados em
papel encerado para conservar o produto. Para
perfumar o sabão, adicione: alecrim ou erva-doce,
ou erva-cidreira, ou cidró, ou camomila.

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Roda de conversa

Entrevista com Rodica Weitzman


Um bate-papo com Rodica Weitzman, assessora em Segurança Alimentar da REDE, que atua
junto a comunidades da periferia de Belo Horizonte, por meio do Programa de
Desenvolvimento Sócio-Ambiental de Comunidades Urbanas, revela-nos uma riqueza de ini-
ciativas no campo da produção de alimentos em comunidades de baixa renda, associadas a
todo um processo de organização dessas comunidades. Pág. 142
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Uma rede em prol de comunidades


rurais e urbanas auto-sustentáveis
Gerson Flávio da Silva

Fotos: Arquivo/REDE

Conversamos com Rodica Weitzman, assessora em Segurança


Alimentar da REDE, onde atua no Programa de
Desenvolvimento Sócio-Ambiental de Comunidades Urbanas.

A
Rede de Intercâmbio de Tecnologias Alternativas (REDE), é uma organização não-governamen-
tal, sem fins lucrativos, criada em 1986. Tem como objetivo apoiar iniciativas locais inovadoras
que contribuam para um desenvolvimento sustentável de comunidades rurais e urbanas. A
REDE foi criada por lideranças comunitárias, técnicos, professores e agentes sociais, que lutam pela me-
lhoria da qualidade de vida das populações excluídas no campo e na cidade. Priorizar intervenções
junto a comunidades de agricultores familiares de Minas Gerais e comunidades urbanas da periferia de
Belo Horizonte, articulando os problemas e soluções locais com questões globais, é uma das principais
estratégias institucionais.
Conversamos com Rodica Weitzman, assessora em Segurança Alimentar da REDE, onde atua no
Programa de Desenvolvimento Sócio-Ambiental de Comunidades Urbanas. Os principais temas traba-
lhados pela REDE são os seguintes: agricultura familiar e urbana, agroecologia, meio ambiente, relações
de gênero, segurança alimentar e nutricional, plantas medicinais, reaproveitamento e reciclagem de lixo.
"O grande eixo do nosso trabalho é a assessoria aos grupos populares, aos grupos comunitários; a for-
mação de redes nas comunidades urbanas e rurais, ou seja, o fortalecimento da organização comunitá-
ria é a prio-ridade da REDE hoje. É a partir dessa organização, que a gente acredita ser possível trans-
formar a reali-dade local e intervir nas políticas públicas", afirma a assessora.
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Roda de conversa Caderno de Educação Popular e Saúde I


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CES - Você sabe como começou esse trabalho? alimentar, é uma questão fundamental para os
Qual é a origem dele? movimentos estarem se consolidando e lutando
para que seja uma realidade diferente.
Rodica - No Estado de Minas Gerais, existia a neces-
sidade de se fortalecer um movimento contra, esse CES - Mas começou em que época?
contraponto à Revolução Verde, ao uso de agrotóxi-
cos que era muito pesado nacionalmente. Come- Rodica - Desculpe, em 1986, por volta dessa época
çamos com essa preocupação por parte dos profes- começou esse movimento. E, a partir de 1990, a
sores, estudantes, pesquisadores, sindicatos. Aí REDE, que tinha se empenhado mais nas questões
começou um movimento em torno da questão da de articulação das experiências dentro do estado,
ecologia, a construção de um movimento de planta- começou a se preocupar com sua própria interven-
ções que não usassem adubos químicos, que pudes- ção e em fazer intervenções locais, tanto na área
sem não depender desses adubos e fazer uma produ- rural como urbana. Na área urbana, começou uma
ção saudável de alimentos. experiência que se chama CEVAE, que são os
A REDE, que é a entidade onde eu trabalho, Centros de Vivência Agroecológica. Foram criados
teve um papel muito importante na articulação des- cinco centros CEVAE em várias partes da cidade, em
sas experiências, na formação de Centros de convênio com a prefeitura, aliás, com a Secretaria de
Agricultura Alternativa no estado. Foram fundados Abastecimento e com a Secretaria de Meio
vários centros de agricultura alternativa e foi forma- Ambiente de Belo Horizonte. Foram experiências
da a Rede PTA, uma rede entre várias entidades que pilotos para tentar construir uma política pública
trabalham com ecologia e, hoje, eles transformaram- diferente que pudesse pensar na conservação
se nessa referência, até nacionalmente, e num movi- ambiental, na produção saudável dos alimentos.
mento muito forte em relação à ecologia. Esse convênio com a Prefeitura durou pouco
Hoje, a REDE também tem investido muito tempo, não teve como continuar por vários moti-
na questão da segurança alimentar e nutricional, vos, mas foi uma experiência muito inovadora de
que é um tema fundamental. Como a gente pode política pública que existia desde 1990. Tem dois
consolidar essas ações? Por exemplo, uma feira de anos que a gente rompeu esse convênio. Hoje, a
segurança alimentar, o Conselho Estadual de REDE ainda continua com seu trabalho na área
Segurança Alimentar, especialmente porque, na con- urbana, sem tanto apoio da prefeitura, mas a partir
juntura política, a questão da fome, da insegurança de parcerias locais.

CES - Como se dá a aproximação com a


ANEPS?

Rodica - É um pouco recente. Foi a partir do


Encontro Estadual sobre Práticas Naturais em saúde
que a gente começou. A REDE estava envolvida na
coordenação do encontro. Como já coloquei, a Rede
de Intercâmbio tem um trabalho muito grande de
aglutinar as iniciativas em relação à saúde popular.
Muitas vezes, não é dado esse nome „saúde popu-
lar‰, e sim „saúde coletiva‰, mas a gente acredita

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forem sistematizadas? Essa é uma outra luta, pois a


gente faz os movimentos sociais e não tem uma cul-
tura de registro e sistematização. O primeiro passo é
esse, até poder influenciar a política pública, pois a
gente não influencia, se não tiver produto. Temos
que investir nisso como um primeiro passo e a par-
tir daí pensar nos caminhos para chegar até a polí-
tica pública.
A REDE também já trabalhou em vários cam-
pos da ecologia, da questão ambiental. Nós achamos
importante envolver outros ministérios nessa luta,
outros movimentos, outros fóruns e conselhos, que
não sejam apenas do campo da Saúde, ou seja, não
limitar isso, porque para influenciar a política
pública ,é importante atingir todos os ministérios.
muito na formação de redes para fortalecer essa ini- Eles são fragmentados, mas a gente trabalha com a
ciativa. transversalidade dos temas, então, temos que envol-
A REDE já tinha uma caminhada. Temos, ver as múltiplas instâncias de poder, para influenciá-
por exemplo, uma Rede de Plantas Medicinais do las.
Cerrado, que são muitos grupos em todo o país, que
trabalham com plantas medicinais do cerrado, for- CES - Tem uma informação de
mando uma rede, ou seja, a REDE já trabalha nessa que vocês trabalham com uma
linha com o mesmo objetivo da ANEPS. Quando a Nós acredita-
economia solidária, como é esse
ANEPS se aproximou da Rede por estar se envolven- enfoque? mos também que
do nessa iniciativa, achamos que tinha tudo a ver
com a nossa busca de fortalecer a organização. Foi Rodica - Na realidade, a REDE está
a melhor forma de
muito interessante, porque a saúde, que é um eixo começando a investir mais forte na influenciar a políti-
transversal, ou seja, todos os temas que a REDE tra- Economia Popular Solidária. Em
balha tem a ver com a saúde, é um conceito muito Minas Gerais, tem uma articulação ca pública é crian-
amplo. Achamos que é muito estratégico a REDE muito forte em torno da EPS, que é do essas redes, que
investir numa articulação em torno da questão da o Fórum Mundial de EPS, que,
saúde, ajuda a aglutinar iniciativas diversas que inclusive, esse ano realizou uma não sejam só no
acontecem em várias partes e do país. grande feira de produtos dos grupos nível estadual, mas
Nós acreditamos também que a melhor que trabalham com isso e já está se
forma de influenciar a política pública é criando consolidando. Mas, na REDE, en- no nível nacional.
essas redes, que não sejam só a nível estadual, mas a quanto organização não-governa-
nível nacional. O importante é ver a objetividade, mental, embora sempre tenha sido uma preocupa-
trabalhar o que queremos enquanto rede, ou seja, ção, nunca de fato essa questão da EPS foi trabalha-
não ficar apenas na questão da troca, que é funda- da, estamos começando agora.
mental, a sistematização dessas experiências, mas ir Por que começou essa preocupação? Os gru-
além disso. O que é que a gente vai fazer com essas pos com os quais a gente trabalha precisam pensar
experiências a partir do momento em que elas na sua sustentabilidade, não podem depender da

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ONG para que se sustentem. Claro que podemos regiões da cidade e escolhemos locais que a gente
elaborar projetos e captar recursos, mas isso não é considerava mais precários em nível de saúde ou
algo permanente. Temos que pensar como esses gru- onde já existiam iniciativas de organização. Esses
pos vão se sustentar, essa é uma discussão recente. locais são chamados de Núcleos de Desenvolvi-
Uma idéia que tem surgido é como que esses grupos mento Local. Neles a gente escolheu dez famílias
podem trocar seus produtos e serviços entre si. para serem trabalhadas e para fazerem um trabalho
Como criar uma rede local de troca de produtos e educativo. O alvo dessas ações é as famílias, mas
serviços? Esse ano a gente começou a pensar em fei- para puxar as ações a gente pensou na consolidação
ras locais de troca, em estar efetivando isso mais de uma equipe de educadores e assessores comunitá-
entre os grupos e moradores das comunidades locais rios. Aí está o grande foco do trabalho, em vez de os
para que eles comecem a pensar isso em nível local. técnicos das entidades desempenharem essas ações,
Outra questão que temos como acontecia antes, na própria REDE tinha um
As lideranças locais trabalhado muito são os atendi- técnico local que fazia isso, passamos a considerar
mentos públicos comunitários, ou que a referência deve ser as lideranças locais. Eles são
até já têm um certo seja, os serviços que esses grupos capacitados não só nos conteúdos (já possuem esses
desempenham na comunidade. conteúdos por terem prática); trata-se de um traba-
conhecimento, mas
Por exemplo, um grupo que lho de resgate do conhecimento que já acumularam
precisam aprimorá-lo desempenha a limpeza do bairro, ao longo dos anos, em relação à medicina caseira, às
que é um serviço público, infeliz- plantas medicinais, ao lixo, à agricultura. Mais que
e aprofundá-lo. mente não é visto assim. Muitos um mero resgate, é uma complementação do conhe-
Como aplicar aquele desses agentes de desenvolvimento cimento científico. Portanto, essa capacitação é uma
local, que a REDE capacita, são troca, mas também investimos na capacitação nas
conhecimento, como quase iguais aos Agentes metodologias „alternativas‰, participativas, porque
repassá-lo, é a gran- Comunitários de Saúde, estão os grupos comunitários não têm ainda um acúmu-
fazendo um trabalho público de lo nesse conteúdo. A grande dificuldade dos grupos
de dificuldade. intervenção nas facções locais de comunitários é o como trabalhar, inclusive, a gente
fortalecimento da organização fez um diagnóstico numa comunidade local e viu
comunitária. Portanto, eles deviam ser reconhecidos que se pode ter grandes deficiências nesse aspecto.
por isso, mas infelizmente o Estado não reconhece As lideranças locais até já têm um certo co-
essa iniciativa. Estamos tentando trazer essa discus- nhecimento, mas precisam aprimorá-lo e aprofundá-
são para as políticas públicas, ver como é que esses lo. Como aplicar aquele conhecimento, como re-
agentes de desenvolvimento local podem ser reco- passá-lo, é a grande dificuldade. E aí, a Rede tem
nhecidos como interventores públicos comunitá- investido muito em trabalhar conceitos básicos de
rios. educação popular com essas lideranças, para que
consigam, sem a necessidade da presença do técnico
CES - Qual o enfoque metodológico do traba- local, elas mesmas estarem puxando as ações locais.
lho de vocês, no sentido de se caracterizar A gente trabalha principalmente com PMAS,
enquanto trabalho educativo? ou seja, com Planejamento, Monitoramento,
Avaliação e Sistematização. No planejamento, traba-
Rodica – Hoje, a REDE trabalha com sessenta lhamos com várias metodologias participativas. No
famílias em um projeto de formação em segurança monitoramento, do mesmo jeito, a gente faz um
alimentar e agricultura urbana. São trabalhadas duas plano de monitoramento participativo. Os indica-

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dores de mudanças são colocados pela própria elas não são quem
comunidade, pelas próprias lideranças e as famílias coordenam as ações
envolvidas. Quais são os indicadores de mudanças locais, são ainda os
ao longo de um tempo nesse projeto? O que é que técnicos profissionais
eles acham que vai mostrar as mudanças? Isso é que dão direção, e o
muito importante, e outra coisa é diagnosticar a rea- nosso trabalho real-
lidade local. Então, a partir desse planejamento se mente mudou esse
tem um diagnóstico participativo, através de meto- paradigma. A gente
dologias participativas. A gente usa muitas coisas faz planejamento com
lúdicas, desenhos, caminhadas, identificação de todo mundo junto e
plantas medicinais. Usamos uma dinâmica para nós somos assessores,
desenhar os quintais das pessoas, o que tem dentro isso é muito claro, os
do quintal, como poderia utilizar esse espaço de profissionais que têm
plantação, ou seja, inúmeros tipos de dinâmicas e uma formação acadê-
brincadeiras que ajudam a levantar informações e mica são assessores das
que envolvem a população local naquela metodolo- lideranças. Isso ajudou
gia. Fica um processo realmente participativo que muito a mudar o para-
envolve todo mundo. Esses são alguns exemplos de digma que é dominan-
como a gente trabalha, mas o mais importante que te na sociedade.
eu quero destacar é que as próprias lideranças, a par- Outro destaque é o próprio resultado do tra-
tir dessa capacitação que é feita, elas mesmas é que balho com as famílias. São sessenta famílias que são
fazem as ações locais, que coordenam as oficinas, trabalhadas nesse projeto de formação e vemos que
coordenam os diagnósticos, nós apenas damos uma essas famílias estão colhendo alimentos dos pró-
assessoria a essas lideranças. prios quintais. Diminuiu a dependência do super-
mercado, a dependência dos alimentos industrializa-
CES - Em relação aos resultados, que sinais no dos. Elas têm conseguido ver o valor do próprio
cotidiano das comunidades podem ser apon- quintal, da própria produção, que é possível fazer na
tados como resultados do trabalho educativo? sua própria casa e consumir a partir do seu próprio
Você poderia citar alguns? quintal. Isso foi um grande resultado, e a produção
dos remédios caseiros também. A gente tem em cada
Rodica - Em primeiro lugar, o protagonismo dessas núcleo uma farmácia caseira consolidada. Nessas
lideranças. Tem uma que ainda nem sabe ler e escre- farmácias, há mais elementos dos remédios caseiros
ver, mas consegue ser uma grande referência, isso que são produzidos para essas famílias, elas se orga-
para ela foi a grande conquista do trabalho, sentir nizaram enquanto grupos. Outra grande conquista
que mesmo com esse impedimento que existia, não foi a diminuição do lixo, o reaproveitamento desse
significava que ela não tinha inteligência, que não lixo na plantação para cercar os quintais. O uso de
tinha intuição suficiente para tocar um trabalho garrafas pet para os canteiros, por exemplo, é uma
educativo. Esse sentimento de ser capaz é o grande coisa muito interessante que aconteceu.
resultado do trabalho. Isso também tem muito a ver
com o fato de que a gente deu muito espaço para CES - Partindo para uma visão de futuro, o que
essas lideranças. É muito comum nesses projetos você veria como limites e potencialidades desse
sociais a gente achar importante capacitá-las, mas programa?

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Rodica - Essa questão de como influenciar a políti- trá-los‰. A partir daí, a REDE investiu na capacita-
ca pública é o nosso grande desafio hoje. A gente ção das lideranças e nos registros de sistematização
tem uma experiência local com sessenta famílias em participativa. Eles que registram, que sistematizam
duas regiões da periferia de Belo Horizonte, englo- os resultados da forma deles, de uma forma criativa.
bando uma equipe de assessores comunitários que A gente acha que é um vínculo muito efetivo para
são nove pessoas, ou seja, o projeto é muito micro, alcançar a política pública, porque, quando você
apenas consegue uma escala muito pequena. Para a gera algum produto, é outra história, mas precisa-
política pública, a mentalidade é uma quantidade mos aprimorar isso.
muito macro, portanto, como a gente pode transpor
uma lógica de um projeto que é desenvolvido num CES - Vocês já estão trabalhando a visibilidade
nível micro para uma lógica macro? Quando o do projeto no processamento e editoração desse
poder público entra em diálogo com as ONGs, com material?
os grupos comunitários, a lógica é essa. Como vai
ser? Qual é a receita? Como a gente vai fazer isso Rodica - Exato, mas muitas vezes só pensamos na
com uma população de sessenta mil pessoas? Essa é visibilidade, esquecendo as etapas anteriores, que são
uma dificuldade para as ONGs, porque sabemos da o registro e a sistematização. Por isso falei que o
qualidade das nossas experiências, ou seja, não nos grande eixo do nosso trabalho é o sistema de PMAS.
preocupamos com a quantidade, mas com a qualida- A ONG precisa ter isso claro, interligar uma coisa
de da intervenção educativa. É muito difícil a gente com outra, ou seja, não adianta só levantar as poten-
pensar em transpor isso para uma escala maior, esse cialidades e problemas, fazer um diagnóstico bem
é um dos enormes desafios. feito, tem que monitorar os resultados, os indicado-
Outra coisa é como registrar e sistematizar res, tem que sistematizar esses resultados e divulgá-
essas experiências que a gente desenvolve, se não los, é um sistema de funcionamento. Hoje, a REDE
temos essa cultura. Hoje, a REDE investe muito enxerga assim, que são etapas interligadas e estamos
nisso com os próprios educadores e assessores comu- tentando aprimorar esse sistema para que a divulga-
nitários. Antes era uma coisa que os técnicos faziam ção seja bem feita.
e os próprios grupos começaram a falar que que- Se não tem um processo eficiente de sistema-
riam saber os resultados dos trabalhos: „nós quere- tização dos trabalhos, não se consegue divulgar nada
mos saber se existiram esses resultados e poder mos- com qualidade. Nosso grande desafio é divulgar,
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mas mostrar a sutileza desse trabalho, a qualidade e vemos que muitos compromissos não foram cum-
com que é feito. A gente sabe que é sutil, tem muito pridos. Eu acho que é muito difícil governar, são
detalhe, tem muita coisa que tem que ser divulgada. muitos interesses em jogo, mas, vou dar um exem-
¤s vezes, quando você faz uma divulgação fica plo concreto, a questão da política de segurança ali-
muito vazio, passa por cima dos detalhes. Esse é o mentar que está muito ligada a ANEPS, tem que
grande desafio, como fazer justiça à subjetividade lembrar das articulações já existentes. A luta por
que é levantada nesse trabalho? segurança alimentar é uma luta muito forte nesse
Finalmente, queria colocar a questão da susten- país e que está ligadíssima à questão
tabilidade. A sustentabilidade é um grande desafio e, da saúde, não podemos deixar de
A luta por segu-
em relação a todos os trabalhos que realizamos, porque fazer essa articulação. Em Minas
se a gente acredita na educação popular tem que acredi- Gerais, pelo menos, essa luta é muito rança alimentar é
tar no protagonismo dos atores locais, que eles têm que forte, existe o Fórum Mundial de
fazer o trabalho educativo. Os técnicos profissionais Segurança Alimentar que é fortíssi-
uma luta muito
têm seu lugar importante, mas é de assessoria, quem mo, composto pelos movimentos forte neste país e
tem que ser referência são as lideranças locais, porque que trabalham com segurança ali-
queremos criar educadores populares que sejam produ- mentar em todo o estado. Mas aí que está ligadíssi-
zidos nas próprias comunidades. Por isso, eles também chega o programa Fome Zero e não ma à questão da
têm que ser remunerados por esse trabalho, o que é contempla, não considera as instân-
outro grande desafio. A gente tem hoje, por exemplo, cias políticas que já estavam sendo saúde, não
uma política de bolsas de aprendizado para os educa- construídas nos estados, simplesmen- podemos deixar
dores e assessores, mas sofremos muito para elaborar te cria uma outra estrutura que é
projetos que justifiquem pagar essas bolsas e não pode- realmente uma sobreposição de de fazer essa
mos depender das agências de cooperação para isso. ações. Não tinha que ter sido assim, articulação.
Quando um projeto está para acabar, fica aquela angús- poderia ter somado com o que já
tia, porque não é uma coisa constante. Por isso, insisto existia para se fortalecer.
na questão do Estado, se a gente não entra junto com Hoje, esse movimento popular em torno da
o Estado para pensar políticas de sustentabilidade des- segurança alimentar e nutricional está tentando dia-
ses projetos de desenvolvimento local, a gente não sai logar com o Programa Alimentar, para que possa-
do lugar. O Estado tem programas belíssimos no papel, mos conseguir fazer um trabalho conjunto, mais
por exemplo, o Programa Saúde da Família. Por que os integrado, porém é muito difícil. Essa foi uma gran-
educadores populares que as ONGs estão formando de decepção para os movimentos populares, pois
não podem ser considerados como protagonistas nesses quando Lula colocou uma grande bandeira escrito
programas? E as metodologias que a gente usa, porque „combate à fome, segurança alimentar‰, a gente
não são contempladas nos desenhos desses programas tinha a expectativa de qualificar mais ainda essas
governamentais? instâncias que já existiam, mas, pelo contrário, ele
desvalorizou esses espaços e criou outros.
CES - Na sua avaliação, você acha que essa Estou dando um exemplo, mas existem
mudança de governo favorece a isso? outros onde aconteceu a mesma coisa. Já havia
uma construção popular e em vez de somar com o
Rodica - Eu acho que favorece, mas claro que tem que já existia, se cria outras instâncias, outros pro-
sido um pouco desanimador para todos nós, porque gramas, sem considerá-las.
houve muita expectativa em torno do governo Lula

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CES – Fale um pouco sobre você, sua forma- com isso, buscar a valorização do sujeito e o que
ção, sua idade, você é casada, tem filhos? vem de dentro. Por isso, acho que o trabalho com
educação popular e saúde tem esse contingente.
Rodica - Eu sou socióloga. Minha formação é em Tem que se quebrar esse paradigma de que o outro
Sociologia, mas me especializei na questão das rela- é que sabe, essa questão do médico, do professor.
ções sociais de gênero. Eu tenho 31 anos de idade, No sistema educacional nutricional, a referência é
sou educadora popular. Na minha formação acadê- sempre essas figuras e, nesse trabalho de educação
mica, todos os meus trabalhos foram no campo da popular a gente quebra essas referências, tenta
educação e muito próximos dos grupos de mulhe- construir educadores populares que sejam um
res. Como eu falei, minha história é muito com o coletivo, um grupo que pode educar através da
movimento feminista, com movimentos de mulhe- troca de conhecimentos e práticas. Então, já que-
res, só hoje que eu estou trabalhando numa ONG bra um pouco o paradigma dominante. A mesma
mais ambientalista, como a Rede de Intercâmbio, e coisa é com a saúde, acreditamos que as referências
tentando trazer essa reflexão de gênero para dentro são quem praticam isso nas comunidades, que não
desse espaço misto, que antes não assumia muito sejam só os médicos que têm esse conhecimento.
essa discussão, que hoje estamos conseguindo fazer. Eu diria que essa é uma grande crença na
E não sou casada e também não tenho filhos. valorização pessoal, na busca pessoal, na transfor-
mação pessoal e, a partir disso, dessa descoberta de
CES - Você é americana? Está que se é capaz de curar, que se é capaz de ser lide-
É, mas uma coisa no Brasil desde quando? rança, de puxar e coordenar alguma ação local,
que se vai ampliando isso para o coletivo, para a
que os movimentos Rodica - Sim. Estou no Brasil há sociedade. Esse que é o nosso trabalho, partir do
sociais ainda não seis anos. Eu trabalhava em outros indivíduo para outros grupos.
países da América Latina antes de vir
conseguiram para cá, morei um tempo no CES - Esse diálogo entre a educação popular
aprofundar é essa México, em Honduras, na e a saúde permite a gente mergulhar num
Colômbia. Eu trabalhava com um poço tão bonito que é a própria religiosidade
questão religiosa. movimento internacional de mulhe- popular, onde existe um campo muito bonito,
É tão forte na res que se chama Movimento do muito rico de coisas e possibilidades de
Graal, que significa „cale-se‰. É um encon trar pes soas mara vi lho sas em cada
população. movimento muito forte que existe lugarzinho, às vezes, que você...
em diversos países e a gente fazia essa
troca de experiências, indo para um outro país para Rodica - É, mas uma coisa que os movimentos
aprender com aquela experiência e poder contribuir tam- sociais ainda não conseguiram aprofundar é essa
bém. Quando eu vim para o Brasil, vim através desse questão religiosa. É tão forte na população. Com
movimento. O Graal trabalha muito os valores huma- o que é que a gente está competindo, enquanto
nos, a questão da espiritualidade, é muito bonito. movimento social? Estamos, por exemplo, mobili-
zando a população para uma reunião ou algum
CES - A sua motivação para esse trabalho encontro e a grande concorrência nossa é a missa,
seria uma motivação religiosa? é o culto que está acontecendo, ou seja, em vez de
competir , a gente tem que aprender com as reli-
Rodica - Teria a base espiritual. Acho que essa giões para ter estratégias mais criativas de mobili-
questão de trabalhar com saúde tem muito a ver zação social. Se eles estão deixando de ir em algu-

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ma reunião, algum encontro que a gente está orga-


nizando, é porque o culto e ou a missa é mais atra-
tiva do que o que está sendo organizado. Tem
alguma coisa muito atraente nas religiões, acho
que é essa questão do carisma e do saber mobili-
zar o povo. Apesar de criticar muita coisa nas reli-
giões evangélicas, elas têm uma coisa que traba-
lham muito bem, que é o corpo, essa questão da
corporalidade, as pessoas realmente envolvem o
corpo, mente e espírito naquele momento.
Na educação popular, a gente ainda busca isso,
que tem a ver com a nossa metodologia, com o que
a gente envolve não só através da mente, não só pensa
„junto‰, mas cria a partir das mãos, usa o corpo o
tempo todo. Eu acho que nas metodologias tem que
se integrar realmente, nesse sentido de usar todas as
faculdades do ser humano. Portanto, trata-se de uma
outra coisa que nós temos que aprofundar.

CES – A REDE trabalha também as relações


sociais de gênero?

Rodica - As relações sociais de gênero represen-


tam um outro eixo temático no trabalho da Rede
de Intercâmbio. Como o foco é as famílias, acre-
ditamos que a transformação tem que acontecer
no plano familiar e promover uma mudança nas tem capacidade para se envolver no espaço públi-
relações familiares, especialmente em relação às co e ser uma referência. Porém, é importante
práticas de saúde. Como quem se envolve mais envolver também os homens nessas iniciativas em
são as mulheres, existe uma discriminação quanto relação à saúde popular, porque eles podem muito
à participação das mulheres em tais atividades, bem se preocupar com isso. Se a questão é melho-
onde muitas vezes o próprio marido não permite, rar a saúde da família e da comunidade, por que
impede delas poderem sair, de se tornarem refe- não ser uma preocupação tanto dos homens quan-
rência na comunidade. É uma coisa muito preo- to das mulheres? Como dividir as tarefas domésti-
cupante. ¤s vezes, a mulher está começando a se cas, para que ambos possam participar e assumir
desenvolver e a própria família não deixa ela assu- uma prática na comunidade? Buscamos fazer com
mir esse lugar no espaço público. Ela pode fazer que os homens e as mulheres assumam essas
os remédios dentro de casa, mas se começa a se várias responsabilidades para melhorar a saúde
envolver na organização comunitária, já está pas- comunitária e de suas famílias.
sando dos limites. Nosso trabalho busca mudar
essa mentalidade de que a mulher não é capaz, de Gerson Flávio da Silva - Jornalista e Arte-Educador, trabalha atual-
que a mulher não pode, demonstrando como ela mente na Escola de Formação Quilombo dos Palmares, em Recife-
PE. Email: gersonflavio@uol.com.br

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Roteiro de Leitura

Intercâmbio Literário
Pretendemos a cada edição apresentar algumas dicas de leitura e, para isso, queremos
provocar você, leitor(a), a contribuir com este espaço reservado para nos ajudar a com-
preender melhor a educação e a saúde. Vamos criar aqui uma espé cie de feira do livro,
um troca-troca de informações capaz de instigar nossa criatividade e colocá-la, cada vez
mais, a serviço da leitura e da reflexão aprofundada dos temas que se rela cionam com o
nosso fazer educativo. Pág. 152
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Roteiro de leitura
Eymard Mourão Vasconcelos

Neste roteiro, algumas dicas de leitura que possam


nos apoiar e nos ajudar a fundamentar de maneira
mais sólida as ações de educação e saúde.
Histórias que curam:
conversas sábias ao pé do fogão
Rachel Naomi Remem. São Paulo: Editora Ágora, 1998.

uito se fala da busca de uma prática de

M
por meio de sua própria
saúde integral. Como encontrar a tota- história de doente (por-
lidade neste momento em que os vários tadora de doença de
fragmentos da medicina, suas subespecialidades, Crohn, já fez mais de 16
se rechearam de conhecimentos importantes e até grandes cirurgias). Para
mirabolantes? Como integrar esta gama de ela, a doença é um
conhecimentos tão ampla que pode estar correla- momento de crise do
cionada a um problema particular? Muitos textos viver que possibilita um
difíceis têm sido escritos sobre esta questão, a par- contato com as dimensões mais primordiais e
tir do conceito de interdisciplinariedade. fundamentais da existência. Cabe ao profissional
Para Rachel, professora da Universidade da de saúde ajudar esse contato, evitando que o
Califórnia, a totalidade está mais próxima da pro- doente, desesperado, desorganize ainda mais seu
fundidade do que da abrangência. Mostra-nos viver, ficando preso em redes de mágoas, baixa-
isto, não por uma discussão teórica cheia de con- estima e confusão de sentimentos. Para isso, pre-
ceitos complexos, mas por meio de pequenas his- cisa saber conduzir a relação para o nebuloso
tórias de sua relação com os pacientes (trabalha núcleo da subjetividade humana, onde as múlti-
no acompanhamento de pacientes graves), com plas facetas da vida se apóiam e são integradas.
seus alunos (profissionais de saúde) e também São os caminhos da espiritualidade na saúde.

152
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Educação popular e a atenção à saúde da família


2.… edição
Eymard Mourão Vasconcelos. São Paulo: Hucitec, 2001. 332 páginas

á um grande fosso separando o atendimen-

H
cação Popular na atual
to dos serviços de saúde e a vida da popu- conjuntura dos serviços de
lação. Os profissionais de saúde pouco saúde.
conhecem a dinâmica familiar e comunitária de Verificou-se que as
convivência e enfrentamento dos problemas de intensas e freqüentes
saúde. Para eles, as atitudes e falas dos usuários dos manifestações de doenças
serviços parecem desconexas e estranhas. banais no meio popular
Este livro é o resultado de uma pesquisa rea- são, muitas vezes, conseqüências de problemas mais
lizada em um centro de saúde da periferia de Belo profundos na vida familiar, tendendo a se concen-
Horizonte, em que se procurou identificar e enten- trar em famílias que vivem situações especiais de
der os bloqueios e as potencialidades existentes no crise e que são marginalizadas da rotina de atendi-
relacionamento entre os profissionais e a população, mento orientada pela demanda espontânea. Os pro-
evidenciando a forma como as questões culturais, blemas dessas famílias em situação de risco eram
cognitivas e subjetivas dificultam ou dinamizam o muito profundos e complexos para serem curados,
funcionamento dos serviços de saúde. mas não para serem cuidados.
Orientado pelo instrumental da Educação Neste momento em que se expande no Brasil
Popular, procurou mostrar como o fortalecimento o Programa Saúde da Família, os caminhos aponta-
do diálogo e da negociação entre os diversos atores dos podem ser importantes para a reorientação do
profissionais e populares que convivem em um ser- modelo de assistência, de forma a passar a priorizar
viço de saúde é capaz de reorientar a globalidade de ações voltadas para a renovação dos padrões socio-
suas práticas, tornando-as mais integradas à vida culturais e sociopsíquicos que governam a vida coti-
local e mais eficazes. Trata-se, portanto, de uma refle- diana dos cidadãos e dos profissionais de saúde.
xão sobre os caminhos e as possibilidades da Edu-

Tuberculose: dimensões da interrupção


do tratamento
Wilma Suely Batista Pereira. Porto Velho: Editora da Universidade
Federal de Rondônia, 2001. Pedidos para editora@unir.br

partir do olhar da Educação Popular, a população amazônica, dando um especial

A Wilma estuda um problema bem parti-


cular, mas importante, do trabalho em
saúde: a interrupção do tratamento pelos doen-
encanto aos depoimentos que retratam a pecu-
liaridade de como os problemas ali se estrutu-
ram, e ao mesmo tempo, mostrando a universa-
tes com tuberculose. Incorpora a contribuição lidade da realidade humana, pois os problemas
de vários outros autores, mostrando como a ali detectados, apesar dessas peculiaridades, têm
Educação Popular pode se articular com outras ressonância com o que ocorre em qualquer
contribuições teóricas. Seu estudo foi feito com outra região.
153
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A saúde nas palavras e nos gestos


Reflexões da Rede de Educação Popular e Saúde
Eymard Mourão Vasconcelos (organizador). São Paulo: Hucitec, 2001.

á existem hoje no Brasil muitos educadores atividades de educação


J populares em saúde com um bom nível de
elaboração teórica, capazes de expressar de
em saúde, a obsessão
pela saúde da classe
forma elegante os novos caminhos e desafios da média e o processo de
ação cultural no campo da saúde. Autores mais construção comparti-
recentes e outros mais antigos foram reunidos lhada do conhecimen-
nesta coletânea de artigos sobre os novos e sur- to. Expressa a variedade
preendentes campos em que a Educação Popu- de abordagens que este
lar em Saúde vem se refletindo, desde a prática campo do conhecimen-
dos agentes de saúde indígena, de uma médica to vem reunindo.
do PSF, de um centro comunitário para pacien-
tes psiquiátricos, além do trabalho das agentes
comunitárias de saúde e o significado para a
saúde das igrejas pentecostais, até questões mais
teóricas, como o planejamento e a avaliação das

O poder que brota da dor e da opressão:


empowerment, sua história, teorias e estratégias
Eduardo Mourão Vasconcelos. São Paulo: Editora Paulus, 2003.

ste livro trata das das, estão a elaboração pessoal, as narrativas pes-

E estratégias concre-
tas com que pes-
soas, a partir da vivência
soais, os grupos e as associações de ajuda e o supor-
te mútuos, a defesa de direitos, a luta contra o
estigma e a militância social e política. Esse é na
da dor, discriminação e verdade o sentido desta palavra em inglês, o
opressão, podem recons- ÂempowermentÊ, de difícil tradução em português.
truir gradativamente suas O livro se destina então a um amplo leque
vidas, valorizar e trocar suas experiências pessoais de leitores. Possui partes accessíveis ao grande
e coletivas, e mostrar para a sociedade como elas público, com base na experiência cotidiana de
gostariam de ser vistas e tratadas por todos, reafir- vida, mas também contempla as exigências dos
mando um ponto de vista e um poder que só pode profissionais e do leitor universitário ao revisar a
ser defendido e assumido mais efetivamente por experiência histórica e a literatura nacional e, prin-
quem as sofreu na pele. Entre as estratégias indica- cipalmente, internacional sobre o assunto.
154
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Educação Popular hoje


Marisa Vorraber Costa (organizadora). São Paulo: Loyola, 1994.

maior articulação brasileira de pesquisado- sadores das ciências humanas, superando a época

A res em Educação Popular, o Grupo de


Trabalho de Educação Popular da
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa
em que as suas reflexões eram apenas a sistematiza-
ção de experiências vivenciadas. São discutidos
conceitos como apoio social, complexidade, globa-
em Educação (Anped), organizou esta coletânea de lização, pós-modernidade, sóciopoética e refunda-
artigos de muitos dos seus membros mais ativos. É mentação da Educação Popular.
um livro que abre o leitor para a complexidade Trata-se de um livro para aqueles que dese-
teórica hoje existente nos estudos em Educação jam avançar dos pressupostos teóricos dos estudos
Popular, os quais vêm procurando trazer para o em Educação Popular.
campo as contribuições teóricas dos grandes pen-

Movimentos sociais e educação. 4.… edição


Maria da Glória Gohn. São Paulo: Cortez, 1992.

o trabalho comunitário

N
e fácil de ler, escrito por uma das
em saúde, os profissionais maiores autoridades brasileiras sobre
lidam cotidianamente com movimentos sociais. Aborda temas
os movimentos sociais, mas pouco como as principais formas de organi-
têm estudado sobre eles, tendo difi- zação popular no Brasil, o caráter
culdade de uma compreensão mais educativo dos movimentos, sua evo-
ampla de seu significado para a lução histórica e a propalada crise
construção de uma sociedade mais atual dos movimentos sociais.
saudável. É um livro bem pequeno

155
156-abertura:156-abertura.qxd 8/11/2007 19:57 Page 1

Pequena Enciclopédia

Dizer a palavra...
No processo educativo, é importante dizer a palavra e a pessoa diz melhor a palavra quando ela dia-
loga, ou seja, fala, escuta e é escutada. Outra condição para que ela diga melhor a palavra é o ato
de compreendê-la, saber o que está dizendo, dizer e trocar esse saber que lhe pertence. Neste espa-
ço trabalharemos alguns verbetes comuns ao universo e ao movimento da educação e saúde, visando
especialmente a criar esse sentimento de pertença. Pág. 157
157-160-pequena-enciclop:157-160-pequena-enciclop.qxd 8/11/2007 20:01 Page 1

Pequena enciclopédia
Maria Alice Pessanha de Carvalho

Ilustração: Mascaro

A nova cultura política engendrada pela educação


e saúde é composta de uma linguagem própria, da
qual extraímos e apresentamos alguns verbetes.

Aprendizagem - Chamamos também a denominou de educação


de aprendizagem e o processo bancária ou de transmissão de
pelo qual o indivíduo, inseri- conteúdos, em que os educa-
do no contexto social, ela- dores „depositavam‰ um
bora uma representação determinado conteúdo e o
pessoal do objeto a ser aprendiz recebia passiva-
conhecido. Essa relação mente (POZO, 1998;
dinâmica ocorre no con- JONASSEN, 1997).
fronto do sujeito (seus O comportamen-
conhecimentos prévios) talismo apresenta como
com a realidade histórica característica principal o
e culturalmente determi- fato de considerar que a
nada. Nessa perspectiva, o aprendizagem está baseada
conhecimento não é só trans- no condicionamento huma-
mitido de uma geração a outra, no (estímulo-resposta). Para os
mas evolui com as novas represen- comportamentalistas, o princípio
tações mentais do mundo em função das motor da aprendizagem acontece
novas experiências e interpretações da realidade mediado pelo ambiente externo, isto é, a aprendi-
realizadas por cada sujeito. Portanto, o conheci- zagem é controlada fora do indivíduo. Assim, o
mento está em constante transformação, supera- aprendiz é entendido como uma tábula rasa, que
ção e atualização (POZO, 1998). Esta concepção recebe estímulos externos, estabelece uma associa-
do ato de aprender não é unânime. Durante mui- ção e é condicionado a fixar o estímulo recebido
tos séculos, o conceito de aprendizagem foi asso- de forma passiva e incontestável (POZO, 1998;
ciado à idéia de aquisição de fatos, dados, valores JONASSEN, 1998). Parte-se do princípio de que
e condutas acumuladas no interior do educador e o aluno não tem conhecimento sobre a questão a
transmitida ao aprendiz, acontecendo por meio ser aprendida e este recolhe sensações e idéias
dos ensinamentos veiculados durante a educação como cópias da realidade. A descontextualização
formal ou informal. Essa concepção, ainda hege- e simplificação das tarefas são características cen-
mônica, se tornou conhecida como educação trais do comportamentalismo. As necessidades de
behaviorista ou comportamentalista. Paulo Freire aprendizagem, seus desejos e interesses não são
157-160-pequena-enciclop:157-160-pequena-enciclop.qxd 8/11/2007 20:01 Page 2

vistos enquanto demandas mentos, os conhecimentos novos são ancorados.


do aluno. As necessidades, Portanto, ao se aprender um conceito novo, cons-
para os comportamentalis- truímos interpretações novas guiadas por uma
tas, têm origem no ambiente teoria orientadora. O conceito, nesse sentido, não
externo, no currículo, no sistema pode ser definido apenas por seus atributos ou
escolar e partem principalmente dos professores, características e, sim, a partir de um conhecimen-
dos informantes. Portanto, os valores dos alunos to anterior que os relaciona com o conhecimen-
não são considerados no processo de aprendiza- to novo e estabelece uma interconexão com
gem e nem as diferenças individuais entre os outros conceitos. Piaget parte portanto, da pre-
aprendizes, sendo necessário uma padronização missa de que o conhecimento é sempre uma rees-
do conteúdo e das atividades baseadas no aluno truturação de um conhecimento pré-
médio, que traduz a média do grupo. vio (POZO, 1998).
Após um longo período de predomi- Além da fundamenta-
nância da teoria comportamentalista da ção nos estudos da psicolo-
aprendizagem, que compreendeu as déca- gia cognitiva de Piaget, que
das de 30 e 50, presencia-se a consolida- considera o conhecimento
ção de um novo enfoque da psicologia como um processo cons-
científica, a psicologia cognitiva (POZO, ciente, numa ação do sujei-
1998). to sobre o mundo e sobre si
Os cognitivistas compreendem que o mesmo, mais estrutural, o
conhecimento é produzido internamente como construtivismo tem raízes, tam-
uma construção mental e individual do sujeito, bém, na psicologia de Vygotsky, que
em uma relação que envolve o conhecimento ressalta o papel das interações sociais na aprendi-
existente com o conhecimento novo. Os cogniti- zagem (DEMO, 1998).
vistas se diferenciam entre aqueles que compreen- O construtivismo surgiu influenciado
dem a mente processando informações e os cons- pela tradição kantiana, que afirma que „a razão
trutivistas (POZO,1998). só entende aquilo que produz segundo seus pró-
O construtivismo é uma outra tendência prios planos‰ (KANT, 1989). Trata-se de um
da psicologia cognitiva, influenciada principal- enfoque teórico que aborda o conhecimento
mente pelos trabalhos de Piaget. Nessa concep- como uma construção humana de significados
ção, o pressuposto principal é o sujeito como na interpretação do mundo. Portanto, é uma
construtor do conhecimento. A aprendi- teoria que busca enfocar as múltiplas faces do
zagem é reconhecida como um mundo vivido, onde os indivíduos são
processo de reestruturação observadores e analisadores das expe-
de conceitos prévios, que riências dessa realidade, construindo
sempre existem em e percebendo de forma pessoal e
cada indivíduo. Com particular, buscando interferir
base nesses conheci- neste mundo.
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Autonomia - é um Segundo Catta-


termo introduzido por ni (1996), a autono-
Kant que desig na a mia pode ser classifi-
independência da von- cada em três níveis:
tade relacionada a qual- psi co ló gi ca, que é
quer desejo ao determi- indi vi dual, labo ral,
nar-se segundo a razão que implica a possibi-
(ABBAGNANO, 2000). lidade de escolha das
Segundo Lalande, auto- atividades, das tarefas,
nomia pode ser defini- dos meios e do senti-
da eti mo lo gi ca men te do do tra ba lho, e
como a „condição de política, que corres-
uma pessoa ou de uma ponde viver livre de
coletividade autônoma impo si ções, de nor -
de dizer, que determina mas e de trabalhos
ela mesma a lei à qual ser vis, sendo esses
se sub me te‰ últi mos dois níveis
(LALANDE, 1999). Segundo Silva (1986, p. referentes à vida em sociedade. Em todos eles,
203), autonomia „é a faculdade de se governar a autonomia requer compromisso, participa-
a si mesmo, liberdade ou independência moral ção, aumento de responsabilidade e engaja-
ou inte lec tual, pro prie da de pela qual o mento permanente.
homem pretende escolher as leis que regem a Diferentemente da idéia de liberdade
sua conduta‰. Pensando na educação, Gadotti introduzida na classificação de Cattani, a
assinala que autonomia tem origem grega e noção de autonomia para Edgar Morin está
que significa a „capacidade de autodeterminar- intimamente ligada à noção de dependência, e
se, auto-realizar-se, condicionada pelas circuns- a de dependência à de auto-organização. O
tâncias, sempre relativa e determinada histori- autor cita Heinz von Foerster, „auto-organiza-
camente‰ (GADOTTI, 1992, p.10). ção significa obviamente autonomia, mas um
Autonomia, como fruto da aprendiza- sistema auto-organizador é um sistema que
gem, se desenvolve com a prática e está intima- deve trabalhar para construir e reconstruir sua
mente relacionada aos vários motivos e impul- autonomia e que, portanto, dilapida energia‰
sos, até os filosóficos, que persistem contri- (FOESTER apud MORIN, 1996, p. 46), por-
buindo para a integridade física, emocional e tanto, para esses autores é necessário que se
social dos indivíduos (SILVA, 1986). Nesse sen- extraia energia do exterior para ser autônomo
tido, também pode ser entendida como o pro- „É necessário uma profunda dependência
cesso no qual os indivíduos ou grupos se ener gé ti ca, infor má ti ca e orga ni za ti va do
modificam, apropriando-se e tornando-se pre- mundo exterior‰ para o desenvolvimento da
parados a realizarem suas atividades de forma autonomia (MORIN, 1996, p. 47). Nesse sen-
independente, determinando suas estratégias e tido, o que eles estão abordando se refere à
ritmo de apren di za do, toman do deci sões relatividade da autonomia. Quando se trata da
segundo suas próprias leis, de forma racional autonomia na construção do conhecimento,
e consciente. pode-se perceber que esta possui forte depen-
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dência com o conhecimento produzido coleti- mia, toma-se por base os pressupostos que Freire
vamente, com os conteúdos culturalmente (1996) sumarizou em seu livro Pedagogia da
constituídos, com os signos e significados. No Autonomia. Nesta obra, são colocadas de forma
entanto, também é um processo de construção didática as recomendações necessárias ao desen-
e reconstrução, de dependência e independên- volvimento de um ambiente educativo que se
cia em busca do atendimento das necessidades proponha estimulador de processos autônomos
individuais, embora a sua construção possa se , além das demandas direcionadas ao educador.
dar de forma compartilhada. Este autor toma como ponto de partida a postu-
„Ninguém é autônomo primeiro para ra de que a valorização da competência técnico-
depois decidir. A autonomia vai se constituindo científica e o rigor não devem ser menospreza-
na experiência de várias, inúmeras decisões que dos e nem supervalorizados em relação ao amor
vão sendo tomadas‰ (FREIRE, 1996, p. 20). e à afeição, indispensáveis à ação educativa. Esta
relação tem a motivação e o afeto como prática
A autonomia, enquanto amadurecimento do ser pedagógica a ser exercitada na relação de apren-
para si, é processo, vir a ser. Não ocorre em data dizagem, ajudando a construir ambientes favo-
marcada. É nesse sentido que uma pedagogia da ráveis à construção do conhecimento. A autono-
autonomia tem de ser centrada em experiências
mia, portanto, é fruto do desenvolvimento e do
estimuladoras da decisão e da responsabilidade,
vale dizer, em experiências respeitosas da liber-
exercício permanente, a ser conquistado nas
dade (FREIRE, 1996, p. 121). relações de respeito aos diferentes saberes (edu-
cando e educador e a comunidade de aprendiza-
Podemos inferir, portanto, que autono- gem), no rigor metodológico e na reflexão críti-
mia é a capacidade que o sujeito possui em ca sobre a prática, principalmente reflexão sobre
autodeterminar-se, escolher, apropriar-se e como se aprende, quais as dificuldades que
reconstruir o conhecimento produzido cultural- enfrenta, na prática, orientada pela curiosidade
mente em função de suas necessidades e interes- e, na disposição para desenvolver o diálogo e a
ses. Caracteriza-se pela responsabilização, auto- cooperação nos ambientes de educação.
determinação, decisão, auto-avaliação e compro- Maria Alice Pessanha de Carvalho - Mestra em Tecnologia
missos a partir da reflexão de suas próprias expe- Educacional nas Ciências da Saúde, UFRJ. Coordenadora
riências e vivências. Adjunta da Escola de Governo em Saúde: Coordenação de
Para a criação de ambientes educativos Ensino e Formação Profissional / ENSP/FIOCRUZ.
que possibilitem o desenvolvimento da autono- E-mail: alicep@ensp.fiocruz.br

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REFER¯NCIA

ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. JONASSEN, D. Avaliação da aprendizagem LALANDE, A. Vocabulário técnico e crítico
São Paulo: Martins Fontes, 2000. construtivista. In: SOUZA, E. ; MACHA- da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
DO, C. D. (Org.) . Técnicas e instrumentos p. 115.
CATTANI, A. D. Trabalho e autonomia. de avaliação: leituras complementares. MORIN, E. A Noção de sujeito. In: SCHNIT-
Petrópolis: Vozes, 1996. Brasília : Cátedra Unesco de EAD, 1997. v. 1. MAN, D. Fried (Org.) . Novos paradigmas,
cultura e subjetividade. Artes Médicas: Porto
DEMO, P. Questões para a teleducação. JONASSEN, David. Designig constructivist Alegre, 1996.
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M. (Ed.) . Instructional theories and models. POZO, J. I. Teorias cognitivas da aprendiza-
FREIRE, P; Pedagogia da autonomia: saberes 2. ed. Mahwah, NJ: Lawrence Eribaum, gem. 3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas,
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KANT, I. Crítica da Razão Pura. 2. ed. SILVA, B. (Coord.) . Dicionário de Ciências
GADOTTI, M. Escola cidadã. São Paulo: Lisboa : Fund. Calouste Goulbenkian, Sociais. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Cortez, 1992. p.10. 1989. p. 18, par. B XIII. Vargas, 1986.

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