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A grande amizade entre Jorge Amado e Dorival Caymmi.

Não é novidade que Jorge e Dorival eram amigos. Mas para além dessa amizade, os dois cultivavam
crenças, ideias e ideais em comum. Além disso, se viam constantemente e se consideravam irmãos,
padrinho, afilhado.
Quando Jorge Amado passou um período longo de tempo na Inglaterra, os dois trocaram algumas
cartas. Como tanto Jorge quanto Dorival eram eximios escritores, gênios na arte das palavras, essas
cartas quando vieram a público, se tornaram uma correspondência deliciosa de se ler.
Aqui está a mais bonita delas:
“Jorge meu irmão, são onze e trinta da manhã e terminei de compor uma linda canção para
Yemanjá, pois o reflexo do sol desenha seu manto em nosso mar, aqui na Pedra da Sereia. Quantas
canções compus para Janaína, nem eu mesmo sei, é minha mãe, dela nasci.
Talvez Stela saiba, ela sabe tudo, que mulher, duas iguais não existem, que foi que eu fiz de bom
para merecê-la? Ela te manda um beijo, outro para Zélia e eu morro de saudade de vocês.
Quando vierem, me tragam um pano africano para eu fazer uma túnica e ficar irresistível.
Ontem saí com Carybé, fomos buscar Camafeu na Rampa do Mercado, andamos por aí trocando
pernas, sentindo os cheiros, tantos, um perfume de vida ao sol, vendo as cores, só de azuis contamos
mais de quinze e havia um ocre na parede de uma casa, nem te digo. Então ao voltar, pintei um
quadro, tão bonito, irmão, de causar inveja a Graciano. De inveja, Carybé quase morreu e Jenner,
imagine!, se fartou de elogiar, te juro. Um quadro simples: uma baiana, o tabuleiro com abarás e
acarajés e gente em volta.
Se eu tivesse tempo, ia ser pintor, ganhava uma fortuna. O que me falta é tempo para pintar, compor
vou compondo devagar e sempre, tu sabes como é, música com pressa é aquela droga que tem às
pampas sobrando por aí. O tempo que tenho mal chega para viver: visitar Dona Menininha, saudar
Xangô, conversar com Mirabeau, me aconselhar com Celestino sobre como
investir o dinheiro que não tenho e nunca terei, graças a Deus, ouvir Carybé mentir, andar nas ruas,
olhar o mar, não fazer nada e tantas outras obrigações que me ocupam o dia inteiro. Cadê tempo pra
pintar?
Quero te dizer uma coisa que já te disse uma vez, há mais de vinte anos quando te deu de viver na
Europa e nunca mais voltavas: a Bahia está viva, ainda lá, cada dia mais bonita, o firmamento azul,
esse mar tão verde e o povaréu. Por falar nisso, Stela de Oxóssi é a nova iyalorixá do Axé e, na festa
da consagração, ikedes e iaôs, todos na roça perguntavam onde anda Obá Arolu que não veio ver
sua irmã subir ao trono de rainha?
Pois ontem, às quatro da tarde, um pouco mais ou menos, saí com Carybé e Camafeu a te procurar e
não te encontrando, indagamos: que faz ele que não está aqui se aqui é seu lugar? A lua de Londres,
já dizia um poeta lusitano que li numa antologia de meu tempo de menino, é merencória. A daqui é
aquela lua. Por que foi ele para a Inglaterra? Não é inglês, nem nada, que faz em Londres? Um bom
filho-da-puta é o que ele é, nosso irmãozinho.
Sabes que vendi a casa da Pedra da Sereia? Pois vendi. Fizeram um edifício medonho bem em cima
dela e anunciaram nos jornais: venha ser vizinho de Dorival Caymmi. Então fiquei retado e vendi a
casa, comprei um apartamento na Pituba, vou ser vizinho de James e de João Ubaldo, daquelas duas
línguas viperinas, veja que irresponsabilidade a minha.
Mas hoje, antes de me mudar, fiz essa canção para Yemanjá que fala em peixe e em vento, em
saveiro e no mestre do saveiro, no mar da Bahia. Nunca soube falar de outras coisas. Dessas e de
mulher. Dora, Marina, Adalgisa, Anália, Rosa morena, como vais morena Rosa, quantas outras e
todas, como sabes, são a minha Stela com quem um dia me casei te tendo de padrinho.
A bênção, meu padrinho, Oxóssi te proteja nessas inglaterras, um beijo para Zélia, não esqueçam de
trazer meu pano africano, volte logo, tua casa é aqui e eu sou teu irmão Caymmi”.

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