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CEBOLA: SABOR QUE NOS LEVA A EMOCIONADAS LÁGRIMAS

João Luís de Almeida Machado1

Resumo: Cebolas picadinhas, em rodelas, fritas, cozidas, assadas ou cruas


fazem parte da culinária mundial há muito tempo. Amadas por muitos,
indesejada por tantos outros, alimento que literalmente provoca lágrimas tanto
em quem a utiliza em suas preparações quanto em quem as consome, a
cebola está presente na história da alimentação humana desde tempos
imemoriais, estando os primeiros registros quanto ao seu uso regular
associados às civilizações da antiguidade, entre os quais os egípcios, os povos
da Mesopotâmia, gregos e romanos. Através desse artigo estamos trazendo a
tona à história desse alimento para enriquecer o debate e a compreensão da
importância da cebola para a alimentação e para a gastronomia.

Palavras-chave: Cebola, Gastronomia, História, Alimentação, Ciência.

Abstract: Onions chopped, sliced, fried, cooked, baked or raw are a part of
world culinary since a long time. Loved by many, hated by others, food that
literally makes people cry when using or eating it, onions are present in the
history of human alimentation since immemorial periods, being present on
registers that relate its regular use on documents made by Egyptians, the
communities that lived in Mesopotamia, Greeks and Romans. Through this
article we intend to arouse the history of this food to enrich the debate and
comprehension of the importance of onions for alimentation and gastronomy.

Keywords: Onions, Gastronomy, History, Alimentation, Science.

1
Professor e pesquisador do Centro Universitário Senac – Campus Campos do Jordão/SP; Doutorando
em Educação:Currículo pela PUC-SP; Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie (SP); Editor do portal Planeta Educação (www.planetaeducacao.com.br).
Sempre que a encontramos na cozinha parecemos nos emocionar. As lágrimas
rolam por nossos rostos como se estivéssemos amargurados por alguma perda
ou alegres em virtude de nossas vitórias e conquistas. É claro que isso tudo
não passa de especulação, pois a cebola, ao nos fazer chorar quando com ela
trabalhamos, não nos consegue afetar o emocional pelo simples contato físico.
Entretanto é notório que a utilização dessa planta consumida desde a
Antiguidade, pertencente à família das liliáceas, como ingrediente gastronômico
atinge as pessoas em cheio quando se trata de falar a respeito do paladar.

Utilizada como condimento regular em praticamente todas as escolas


gastronômicas contemporâneas, variando apenas a quantidade e regularidade
no seu uso (conforme os regionalismos), deve-se ainda contabilizar em prol da
cebola inúmeras virtudes terapêuticas. De acordo com os nutricionistas as
cebolas são ricas em vitaminas B e C e também em minerais (qualidades
diluídas levemente quando desidratamos ou transformamos em pó essa
carnuda raiz vegetal).

Outro aspecto singular refere-se à variedade de tipos de cebolas que podem


ser encontradas mundo afora. Essa variação é percebida no tamanho, na cor e
no aroma. As cebolas podem ser brancas, amarelas, roxas ou rosadas; são
encontradas em tamanho grande, médio e pequeno; estão disponíveis nos
mercados in natura (frescas), em pasta, em pó ou ainda em flocos.

É possível utilizar as “onions” (cebolas em inglês) em praticamente todos os


tipos de preparações culinárias, iniciando-se com as saladas e passando por
molhos, conservas, temperos, pratos assados ou ainda cozidos. Como seu
sabor é marcante, é necessário que os cozinheiros tenham alguns cuidados
para evitar que o sabor desse alimento prevaleça nos pratos que estão sendo
preparados, a não ser, é claro, que o objetivo da preparação seja justamente
esse...

As referências à utilização das cebolas na história remontam a Antiguidade


Oriental. Existem registros de seu consumo entre os hebreus, os egípcios, os
povos da Mesopotâmia e, um pouco mais tarde, também entre os povos da
Antiguidade Clássica, gregos e romanos. Isso nos deixa informados, a
princípio, que o cultivo da cebola era regular em todas essas regiões e que,
portanto, o uso das “zwiebel” (tradução de cebola para o alemão) estava
disseminado tanto na África quanto na Ásia e na Europa, os berços da
humanidade como a conhecemos.

No Antigo Egito, em várias tumbas, de eminentes pessoas das dinastias até os


próprios faraós, foram encontrados vestígios de alimentos ou ainda papiros
listando produtos que eram regularmente consumidos e, por esse motivo,
depositados em túmulos para que fossem consumidos numa outra vida. É o
caso da tumba do arquiteto Kha, que viveu por volta de 1400 a.C., na qual
foram encontrados utensílios de cozinha e alimentos como vinho, pães,
farinhas, carnes e aves salgadas, tâmaras, uvas, alho e, evidentemente,
cebolas.

Não eram somente os membros da elite egípcia que consumiam cebolas, pelo
contrário, praticamente todas as hortas daquela civilização produziam esse
vegetal e também a alface, o alho e o alho-poró. Isso nos leva a concluir que se
tratava de alimento popular também entre o povo egípcio.

Na Fenícia, um dos povos que mais consumiam vegetais na Antiguidade, há


relatos como o de Plínio, o Velho, do cultivo regular de pepino, alho, alho-poró
e... cebolas.

Mássimo Montanari nos diz, em trechos de sua obra sobre a História da


Alimentação, que os gregos possuíam alimentação diversificada, na qual
constavam leguminosas como o grão de bico, as favas e as lentilhas; e que em
suas hortas despontavam, como na Fenícia e no Egito, as cebolas ao lado do
alho e do alho-poró. Também Hipócrates nos fala sobre a cebola como base
alimentar grega e dá, sobretudo, ênfase na necessidade de consumo das
“cipollas” (em italiano) para o equilíbrio alimentar e para a saúde das pessoas
na Grécia Clássica.
Os romanos também estavam habituados ao consumo dos “fruges” (os frutos
da terra) e, por esse motivo, tinham hortas, pomares e vinhas. Suas hortas lhes
forneciam couves, nabos, hortaliças, ervas para cozinhar, alhos e cebolas. Os
legionários do Império Romano, habituados a longas caminhadas em suas
vitoriosas campanhas militares tinham que sempre ter ao seu dispor alimentos
fáceis de carregar e resistentes (que não estragassem rapidamente), pelo
menos por alguns dias. Entre esses alimentos encontravam-se as azeitonas, o
pão, figos, o vinho e as cebolas.

Entre os romanos, a cebola, bastante popular, é discriminada no livro de


culinária mais antigo de que se tem notícia, o De Re Coquinária, atribuído a
Apícius. O autor dessa obra menciona dez ingredientes básicos para a
preparação de um prato. Entre eles não se encontra a cebola e nem o alho.
Isso não significa que não fossem utilizados, acredita-se que o fato de serem
encontrados em qualquer quintal os tornava muito comuns e popularescos, o
que os desvalorizava entre os grandes cozinheiros da época. Sabe-se, no
entanto, que eram regularmente utilizados tanto entre os pobres quanto entre
os ricos...

Na transição da Antiguidade para a Idade Média, quando estava a se estruturar


o feudalismo, definiu-se como hábito regular entre os camponeses (como
complementação fundamental ao consumo de cereais e leguminosas), a
utilização de legumes verdes ou frescos em sua alimentação. Entre estes,
produzidos em hortas domésticas, encontravam-se as cebolas, os nabos, as
couves, o alho e algumas ervas ou raízes (como a cenoura, o rabanete,...).

Também os bizantinos, conforme relatos do século VI, comumente consumiam


cebolas. Havia inclusive a previsão do plantio desse alimento, assim como a
produção de salsa, alho-poró, cenoura, coentro, beterraba e feijão em fevereiro
de cada ano. Aliás, o consumo de alho e cebola junta-se ao de peixe frito e
carne assada na composição das principais tradições gastronômicas do
Império Bizantino.
Os árabes, por sua vez, usavam a cebola pra aumentar a consistência e
modificar o sabor de suas iguarias. Era comum que misturassem sal, cebolas,
pimenta, coentro fresco (ou seco), canela e/ou gengibre às carnes que estavam
habituados a consumir (como as de caprinos e ovinos) numa panela para
compor seus principais cozidos (aos quais acrescentavam legumes) já na
Idade Média.

Assim como os mulçumanos, os judeus também utilizavam a cebola em suas


produções alimentares. Os pratos da comunidade judaica, por sinal, mesmo
que influenciados pelas tradições e restrições daquela cultura, tinham como
marcante característica a utilização de muitos vegetais e de especiarias que,
juntamente com as “cebollas” (termo em espanhol para cebolas) davam a
esses pratos um sabor muito peculiar.

A partir dos séculos XII e XIII, com o Renascimento Comercial e Urbano, as


hortas dos camponeses passaram a ter uma dupla função, ou seja, a de
alimentar os próprios produtores e, além disso, disponibilizar os excedentes da
produção nos mercados locais. Entre as mercadorias mais comuns e
requisitadas nas vilas e cidades daquele período encontrava-se a cebola.

Ao final da Idade Média, como forma de comprovação da presença da cebola


na alimentação européia daquele período, os quadros pré-renascentistas que
trabalhavam com a natureza morta (especificamente com a imagem de
alimentos), apresentavam esse vegetal aparecendo sempre cru, posicionado
ao lado de pães e peixes.

O Renascimento Cultural preservou a importância da cebola já que os registros


daquela época nos dão conta de que, ao lado dos cereais (aveia, trigo e
cevada), de outros legumes (alho, alho-poró e couve) e de porções de carne e
queijo, a cebola constituía parte da dieta básica.

O faustoso ambiente das cortes européias dos séculos XV a XVIII não ignorou
as cebolas, que continuavam presentes nos cardápios refinados, ainda que de
forma discreta, nas combinações que faziam à fama dos grandes chefs de
então. A cebola não aparecia tanto por ser considerada alimento
caracteristicamente popular e barato. Preferia-se dar mais ênfase e atenção
aos condimentos e temperos importados.

Isso obviamente não ocorria entre os camponeses, que ainda viviam de forma
mais “pia e inocente”, alimentando-se daquilo que obtinham da terra, por esse
motivo, a cebola continuava sendo muito freqüente e importante em suas
dietas. O campesinato europeu da Idade Moderna utilizava a cebola
conjuntamente com a salsa, a menta, o alho ou o alho-poró, conforme as
especificidades e possibilidades regionais, para temperar sua comida. Para
eles a importação de especiarias orientais ou americanas era um luxo
incompatível com suas rendas.

As cebolas também têm relação com o surgimento dos restaurantes. A palavra


“restaurant”, por sinal, remonta aos caldos medievais servidos em estalagens,
hospedarias e tavernas localizadas nas rotas que ligavam as cidades do
medievo. Nesses caldos em que as carnes eram os principais ingredientes, as
raízes, ervas e cebolas compunham a mistura com o intuito de legar sabores e
definir para os consumidores as qualidades próprias de cada estabelecimento.

Quando o termo “restaurant” retorna a cena, já no século XVIII, durante a


Revolução Francesa, o intuito passa a ser designar os estabelecimentos que
servirão o crescente e promissor público consumidor das cidades européias
que fervilhavam com a industrialização nascente. Esses potenciais
consumidores eram pessoas que não conseguiam voltar para suas casas para
fazer suas refeições.

Por isso surgiram os estabelecimentos com serviços, mesas com toalhas,


talheres, cardápios e especialidades (carnes, aves, massas, caldos,...). Nesse
ínterim a cebola se mantém soberana, pois continua viva em todos os
estabelecimentos que surgem (exceto as doçarias).

Atualmente a cebola, in natura ou em subprodutos oriundos de sua


industrialização, permanece em nossos mercados como forte referência
alimentar. Tempera o arroz, dá sabor ao feijão, compõe a salada, mistura-se a
outros condimentos em caldos e sopas ou ainda dá sua graça nos sanduíches
que devoramos.

Se não faz brotar nossas emoções quando as cortamos, ainda no trabalho de


preparo dos alimentos para a confecção dos pratos, certamente as cebolas
tocam fundo em nossas almas já que são elas que concedem, a muitos de
nossos pratos, o sabor e a alegria que tanto apreciamos e desejamos...

João Luís Almeida Machado


Editor do Portal Planeta Educação; Doutorando pela PUC-SP no programa Educação:Currículo;
Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie-SP;
Professor universitário e Pesquisador atuando no Centro Universitário Senac em Campos do Jordão

Referências:

ALGRANTI, Márcia. Pequeno Dicionário da Gastronomia. Rio de Janeiro:


Record, 2000.

FLANDRIN, Jean Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. 2ª


ed. São Paulo: Estação Liberdade, 1999.

GOMENSORO, Maria Lúcia. Pequeno Dicionário de Gastronomia. Rio de


Janeiro: Objetiva, 1999.

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