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RELIGIOSIDADE PENTECOSTAL E POBREZA NO CENÁRIO


URBANO: REPRESENTAÇOES, DISCURSOS E PRÁTICAS.

Daniel Pinto1

RESUMO: Este trabalho pretende analisar os diferentes tipos de representações de grupos


religiosos pentecostais pertencentes aos extratos de baixa renda e os seus discursos e práticas
sobre a situação de pobreza vivenciada por eles próprios, determinados por diferentes visões
de mundo, orientada por valores religiosos. Esta analise busca estabelecer uma dicotomia
entre duas vertentes do pentecostalismo brasileiro, os pentecostais clássicos, praticantes de
usos e costumes ascéticos e sectários, e os neopentecostais, mais liberais e adaptados a cultura
secularizada, produtores de uma teologia que buscam a salvação pela acumulação de bens
terrenos. O recorte analítico pressupõe uma divisão geográfica, em meio ao cenário urbano,
dos grupos religiosos clássicos e neopentecostais, em que o primeiro será situado nas
periferias e o segundo, nas áreas centrais. Por meio de um associativismo religioso e do
compartilhamento de bens religiosos, os pentecostais tradicionais criam formas de
empoderamento econômico e simbólicos, que servem de instrumentos de enfrentamento às
situações de pobreza vividas cotidianamente. Os grupos neopentecostais, por sua vez,
frequentadores dos grandes templos dos centros, consomem seus produtos simbólicos, em
comunidades de sentido efêmeras, enfatizando o poder mágico da fé e do combate às
influencias demoníacas, como formas simbólicas de enfrentamento de seus problemas
socioeconômicos.
PALAVRAS-CHAVE: Pentecostalismo. Pobreza. Representações.

ABSTRACT: This study aims to analyze the different types of representations of Pentecostal
religious groups belonging to low income extracts and their discourses and practices on the
situation of poverty experienced by them, determined by different worldviews, oriented by
religious values. This analysis seeks to establish a dichotomy between two aspects of
Brazilian Pentecostalism, the classical Pentecostals, practitioners of ascetic and sectarian
practices and customs, and neo-Pentecostals, more liberal and adapted to secularized culture,
producers of a theology who seek salvation through the accumulation of goods Land. The
analytical clipping presupposes a geographical division, in the middle of the urban setting, of
the classical and neo-Pentecostal religious groups, in which the first will be located in the
peripheries and the second, in the central areas. Through a religious association and the
sharing of religious goods, traditional Pentecostals create forms of economic and symbolic
empowerment, which serve as tools to cope with everyday situations of poverty. The Neo-
Pentecostal groups, who are frequenters of the great temples of the centers, consume their
symbolic products in ephemeral communities, emphasizing the magical power of faith and the
fight against demonic influences, as symbolic forms of coping with their socioeconomic
problems.
KEY WORDS: Pentecostalism. Poverty. Representations.

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Daniel Silva Pinto – bacharel e licenciado em ciências sociais – UFPA. Discente do Programa de
Pós-graduação em Ciências da Religião – UEPA.
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Introdução
O binômio pentecostalismo e pobreza já foi abordado por muitos autores nacionais
(MARIZ et al., 1991) por meio de diversas perspectivas teóricas. O presente trabalho busca
comparar representações sobre a pobreza distintas produzidas por diferentes concepções
religiosas dentro de uma mesma matriz doutrinária de tipo pentecostal. A classificação destas
representações, por meio do estabelecimento de tipos ideais, no sentido weberiano, será feita,
a grosso modo, por duas vertentes do pentecostalismo brasileiro: um mais clássico,
representado por igrejas como as da Igreja Evangélica Assembleia de Deus e outra, de
vertente mais recente, generalizadamente nomeadas de neopentecostais, como a Igreja
Universal do Reino de Deus e a Igreja Internacional da Graça de Deus (MARIANO et al.,
2014).
A produção das práticas e discursos dos fieis de baixa renda, oriundas de
representações religiosas sobre as situações de carência material vividas por estes, produzem
diferentes formas de enfrentamento aos problemas sociais, econômicos e psicológicos
resultantes da pobreza socioeconômica. Estas diferentes formas de enfrentamento serão
estudadas em dois contextos socioespaciais distintos quanto à localização geográfica, mas
idênticos quanto ao perfil socioeconômico dos grupos religiosos frequentadores desses
espaços. Apesar de distanciados geograficamente, estes contextos apresentam-se concentrados
dentro de um mesmo espaço sociocultural e espacial, o ambiente urbano das grandes cidades,
das megalópoles que abrigam inúmeras formações religiosas.
É a identificação de expressões religiosas pentecostais distintas elaboradas no mesmo
espaço urbano, dividido por sua vez em periferia e centro, onde se encontram respectivamente
os objetos de estudo deste trabalho: uma comunidade religiosa de tradição pentecostal clássica
e outra de vertente neopentecostal, ambas produtoras de visões de mundo religiosas distintas
sobre as causas e as formas de enfrentamento dos problemas oriundos da pobreza vivenciada
de seus adeptos, pertencentes aos estratos sociais mais carentes.
As posições de classe subalternas da grande maioria do contingente pentecostal, seja
de primeira formação seja de formação mais recente, configura-se enquanto aquela população
denominada por autores de subproletariado, daqueles que vivem quase que exclusivamente à
margem do mercado formal de trabalho, da informalidade originada da ausência de
qualificação e que por meio de suas posições subordinadas na base da estrutura
socioeconômica, tendem a produzir representações culturais de suas realidades excludentes
por meio de ideologias religiosas ofertadas por grupos religiosos pentecostais, justamente
aqueles que mais crescem entre as massas empobrecidas urbanas. Passos observa esta relação
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entre situação de classe e representação religiosa dessa posição (1996 apud PARKER, 2000 p.
113-114),
Por outro lado o setor 'invisível' amplia-se com uma imensa massa de subproletários
que encontram ocupações muito diversas no setor informal da economia
subdesenvolvida [...] subempregados e desempregados crônicos [...] o mal
denominado 'setor inativo', donas de casa, estudantes [...]. Esta heterogeneidade de
situações de classe tende a gerar um campo de representações culturais e religiosas
também heterogêneo, em maior ou menor correspondência, pela mediação do campo
de práticas do agente coletivo com suas posições de classe"

Esta massa de indivíduos empobrecidos vai se adaptando às reconfigurações e


transformações dinâmicas do espaço urbano, onde o pentecostalismo, em todas as suas
variações, vai fincando raízes de acordo com a mobilidade e estilo de vida diversos dessas
populações. Modos de vida impostos quase sempre por processos de segregação socioespacial
urbana, produzindo periferias destituídas dos mais elementares equipamentos urbanos – de
áreas de lazer à hospitais – e condições infraestruturais essenciais – de rede de esgoto à
segurança pública.
As comunidades pentecostais mais tradicionais, do ponto de vista doutrinário,
pautadas pelo rigor ascético dos costumes e sectárias por necessidades religiosas, para se
manterem afastadas da influência das “coisas do mundo”, tem presença numérica significativa
nas zonas periféricas das grandes cidades (MARIANO, 2014) e os seus fieis, todos moradores
dessas áreas, vão se adaptando às condições desfavoráveis impostas pela segregação ajudados
pela religião que lhes fornece representações e artifícios simbólicos e mesmo recursos
materiais provenientes de redes de ajuda mútua instituídas pelas congregações, orientado para
a elaboração de estratégias de enfrentamento das situações de adversidade econômica e social
vividas cotidianamente. João Décio passos descreve estas estratégias de adaptação ao
ambiente urbano (2000, p.5),
A conversão vai adaptando as massas dentro do espaço e do tempo da grande cidade
e atiçando a velha lógica de leitura do mundo e da vida, bem como as estratégias
capazes de estabelecer equilíbrio dentro do caos. O velho persiste no fundo, o novo
impera na forma, compondo uma periferia dinâmica no conjunto de significados
religiosos.
A tomada dos espaços periféricos das cidades pelas denominações pentecostais se faz
pela necessidade de delimitar o local do sagrado, como o espaço definidor das identidades e
solidariedades, fundamentais para a sobrevivência do grupo e especialmente no caso das
tradições pentecostais clássicas, a afirmação de sua contracultura religiosa ascética e sectária
separada da cultura do mundo profano circundante,
O domínio do espaço é uma meta permanente do metropolitano, que vai recriando as
formas de delimitar territórios próprios no interior da terra sem contornos, territórios
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que garantam a identidade, a relação e até a sobrevivência. Os grupos religiosos são


pontos sagrados puncta mundi dentro da grande área profana (exatamente, porque
sem dono e sem controle). Estes vão como que coagulando os desejos e as
necessidades de seus adeptos e canalizando-os para uma meta comum a ser
alcançada (PASSOS, 2000, p.6).

A delimitação do sagrado não está relacionada aos simples limites espaciais da igreja,
mas está relacionado a toda uma rede religiosa de reconhecimento espiritual daqueles que a
compõem, que supera em abrangência as tradicionais redes de vizinhança e parentela,
estabelecendo relações de solidariedade de maior alcance e efetividade no enfrentamento às
anomias das cidades modernas condicionadas pela fragmentação socioespacial
potencialmente destruidora dos laços de solidariedade determinados pela consanguinidade ou
pela proximidade geográfica.
O isolamento relativo das comunidades pentecostais clássicas se estabelece como uma
defesa aos efeitos deletérios dos isolamentos impostos pela metrópole moderna,
restabelecendo e fortalecendo relações que resistem às imposições de um individualismo
anômico, predominante no grande espaço reprodutor da cultura hegemônica e produtora de
anonimatos garantidos pela superficialidade das relações estabelecidas nesses espaços,
O sentimento de localidade e de relações próximas, descritos por Antônio
Cândido (Cândido, 1971:62), parecem reger a construção dos pedaços da metrópole,
como enfrentamento de seu anonimato. Os grupos pentecostais ajudam a construir
esses laços, compondo uma nova vizinhança, baseada não na relação de parentesco
consangüíneo, mas de parentesco espiritual. Dessa maneira, a anomia urbana, bem
como o isolamento - elementos emergentes inevitáveis -, são tratados pelos
moradores da grande cidade a partir de sua velha lógica, agora ressignificada: a
vizinhança espiritual é capaz de enfrentar os limites espaciais da convivência, bem
como a perda dos laços de parentesco, sinônimo de proximidade. O crente é sempre
o "irmão" que resgata a proximidade perdida, vencendo, pela ligação espiritual, os
insuperáveis isolamentos da metrópole (PASSOS, 2000, p.8).

Este isolamento, no entanto, nem sempre é total. Nas pesquisas realizadas por
meio de entrevistas e que contribuem para a problematização temática deste trabalho, foi-se
constatado, nos relatos da vida cotidiana de dois fieis pertencentes à congregações religiosas
situadas na periferia, uma forma de transito religioso intradenomicional, em que fieis da
mesma igreja pentecostal – Igreja Evangélica Assembleia de Deus – se deslocam de suas
igrejas onde congregam costumeiramente e foram batizadas, para a igreja sede de uma
determinada área metropolitana – no caso estudado – o templo sede da igreja citada na cidade
de Belém do Pará.
Dona Ruth, 42 anos, nome fictício de uma das informantes e moradora de comunidade
situada às proximidades da igreja situada na periferia do município de Ananindeua, região
metropolitana de Belém, fazendo parte do imenso conjunto de igrejas nomeadas de
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Assembleia de Deus, a Igreja Assembleia de Deus Ministério da Benção divina, é um dos


exemplos de fieis que não dedicam totalmente a sua religiosidade à sua comunidade espiritual
de origem.
Proprietária de uma pequena barraca de hortifrutigranjeiros na feira local, dividi o seu
tempo entre o trabalho na feira e o cuidado com dois filhos pequenos que, quando não estão
sob sua atenção em casa, ficam sob os cuidados da filha mais velha. As atividades na igreja,
antes da experiência da conversão total, se resumiam à idas aos cultos estimuladas por fieis já
convertidos a nova fé. Hoje, em especial nos dias de sábado vai ao templo central, nos
“cultos da prosperidade”. Cultos estes que em nada se assemelham às práticas tradicionais da
igreja onde foi batizada, com predomínio de elementos doutrinários de igrejas pentecostais de
segunda e terceira onda (MARIANO, 2014), especialmente neopentecostais. Em
determinados momentos do culto acontecem os rituais chamados de “sacrifícios da fé” em que
a pessoa coloca em um envelope quantias superiores às tradicionalmente dadas nos dízimos,
em troca de bênçãos proporcionais ao tamanho da sua fé, aqui medida em valores monetários.
Os pedidos, invariavelmente, são para resolver problemas de ordem financeira, isto é,
questões imediatas que precisam ser sanadas com urgência e que não podem esperar.
Em suas falas pode-se entender que os problemas espirituais podem ser resolvidos ou
administrados em sua igreja local, mas todas as questões de ordem material só podem ser
resolvidos no templo central onde suas demandas religiosas podem ser plenamente satisfeitas,
por apresentarem meios e artifícios de fé mais rápidos e poderosos – além, talvez, da força
numérica das massas que frequentam o templo sede e de sua importância e imponência - do
que a simples resignação pregada pelo pastor de sua comunidade frente aos entraves e
limitações que a impedem de sair de situações onde as suas necessidades materiais quase
nunca são satisfeitas. Segundo Passos, esta é uma das características de religiões populares
como as pentecostais (2002, p.9),
As religiões em geral - mas, sobretudo, as de cunho popular - reproduzem um ciclo
permanente e contínuo de saída-experiência-volta; o santo local cuida da rotina da
vida; o santo distante é responsável pelas grandes questões, resolve os maiores
problemas, revigora a rotina e orienta a vida em seu conjunto.

As denominações pentecostais de grande porte como a Assembleia de Deus tendem a


absorver elementos doutrinários das vertentes neopentecostais, mais adaptadas à cultura
metropolitana massificada para responder à demanda crescente daqueles que buscam as
grandes sedes e templos situados nas áreas centrais da cidade e em trechos de grande
mobilidade urbana. Dessa forma vão se neopentecostalizando e assumindo as formas e a
dinâmica do pentecostalismo que mais cresce por justamente estar plenamente integrado à
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cultura dominante e massificada de consumo das grandes metrópoles, reproduzindo suas


dinâmicas e processos no campo religioso para vender com eficácia seus bens de salvação,
que em sua disseminada Teologia da Prosperidade estão aqui mesmo na terra. Passos, assim,
se reporta a este novo pentecostalismo (2002 p.9),
Trata-se do pentecostalismo metropolitano, fora do local, que oferece seus bens na
seqüência dos demais bens do consumo de massa. São, de fato, sujeitos religiosos
dentro das ofertas massivas. A segunda e a terceira ondas pentecostais têm sido
capazes de incorporar, de modo mais visível, em suas regras, a cultura metropolitana
emergente, permitindo estabelecer-se uma analogia entre elas (analogia urbis).

Longe das regras e proibições coletivas das comunidades formadas pelos irmãos de
espírito, nas grandes sedes e templos longe da periferia, o fiel pode exercer a sua infidelidade
doutrinária à favor de seus anseios e demandas individuais por outros bens simbólicos que se
adaptem mais à sua subjetividade, constituída muita das vezes à margem da doutrinação
contracultural e sectária do pentecostalismo praticado em suas localidades.
Estes processos de adesão incompleta ou restritiva são apontadas por Paula Monteiro
ao criticar a ideia de conversão religiosa como um ato que garante a exclusividade ou a
fidelidade irrestrita do religioso à doutrina religiosa assumida. Nesta ideia de conversão total,
não se percebe os diversos “empréstimos” e hibridismos religiosos acionados pelos “fiéis”
quando circulam pelos diversos cultos, das igrejas encravadas nas periferias aos grandes e
bem localizados templos centrais (MONTEIRO, 2003).
Nesse ponto é importante observar as estratégias acionadas por fieis no enfrentamento
às diversas situações de escassez material, tema deste trabalho, ativadas em diferentes espaços
religiosos. Sem abandonar a igreja de origem, o fiel que circula entre cultos de acordo com as
suas necessidades, como Dona Ruth, ainda podem acessar o circuito de trocas simbólicas e de
ajuda mútua estabelecida entre os irmãos e, por outro lado, nos grandes espaços dos templos,
pode acionar outro repertório religioso mais orientado para satisfazer aos anseios de uma
subjetividade religiosa mais orientada pelo imediatismo mágico de um sistema de práticas e
representações próprias do neopentecostalismo.
Mais bem adaptadas à cultura dominante, as denominações neopentecostais, por meio
de suas representações religiosas do mundo como o paraíso prometido nas escrituras
livremente interpretada, vivido e usufruído na própria vida terrena, pela felicidade
proporcionada pelo consumo de bens terrenos, são as instituições, no campo religioso, que
reproduzem a subjetividade moderna das sociedades capitalistas. João Décio Passos fala de
uma subjetividade metropolitana, reproduzida nos cultos pentecostais realizados nos grandes
templos de igrejas como a Universal do Reino de Deus (2000, p.9),
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A subjetividade metropolitana está também incorporada no discurso e na prática


pentecostais, respondendo e confirmando, em chave simbólica, esse modo de viver
moderno, instituído pela sociedade capitalista. O indivíduo é, nessas práticas, o
centro de consumo religioso, o receptor dos discursos, dos rituais e da prosperidade.
As prédicas dos pastores dirigem-se, exclusivamente, ao indivíduo, como pudemos
observar nos cultos ou nos textos escritos.

A centralidade no indivíduo em suas buscas individuais de solução de seus


problemas é o foco das representações de mundo e das praticas religiosas correspondentes nos
cultos neopentecostais. O enfrentamento de seus problemas mais imediatos exigem um
instrumental simbólico que apresentem, por meio de sua ritualística mágica, soluções mágicas
e imediatas, mesmo que não instantâneas mas já encaminhadas pelos simples gestos de dar
dinheiro ou levantar as mãos em orações de súplicas fervorosas.
Os bens simbólicos que prometem a salvação terrena são ofertados nos templos
pentecostais como produtos simbólicos do mercado de bens religiosos similares aos grandes
mercados de serviços e produtos da cultura capitalista. É um mercado de bens simbólicos
situados nas mesmas áreas dos mercados de bens materiais, ofertando seus produtos a uma
massa de anônimos interessados em seu consumo. Diferentes das comunidades pentecostais
tradicionais, as que são formadas nos cultos de prosperidade neopentecostal são efêmeras e
não exigem vínculos duradouros, sociais e de afeto, o que permite a circularidade dos fieis
entre os diversos espaços religiosos, em sua busca individual de significados religiosos mais
próximos à suas subjetividades. Passos afirma que nestes cultos (2000, p.11) “O fiel pode
buscar o que lhe interessa, sem estabelecer maiores vínculos e exercer um permanente trânsito
religioso por comunidades emocionais temporárias e de afeto imediato”.
O enfrentamento da pobreza, por meio das praticas e representações neopentecostais é
provável que se dê em bases diferentes daquelas instituídas por denominações clássicas. São
formas orientadas por um subjetivismo individualista no consumo dos bens de salvação – por
si só já uma ideia calcada no individualismo – e buscadas por uma relação imediatista com a
divindade, no sistema do “toma lá, dá cá”, numa perspectiva ilusória de que os seus
problemas, bem materiais e concretos possam ser resolvidos em um passe de mágica, ou por
rituais mágicos que expulsam todas as causas dos obstáculos - materiais e, principalmente
espirituais, confundidas invariavelmente com influências demoníacas - que impedem a pessoa
de superar sua pobreza crônica.
Além disso, diferente das comunidades pentecostais periféricas praticantes de um
associativismo religioso só possível pela regularidade dos laços de solidariedade espiritual
que ligam os seus membros, as “comunidades de afeto imediato”, identificadas por Passos,
nos grandes templos centrais de igrejas neopentecostais, ou mesmo daquelas em franco
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processo de acomodação aos valores mundanos, por serem temporárias e não necessitarem de
vínculos emocionais duradouros para existirem, não desenvolvem nenhuma forma de
associativismo ou redes religiosas de ajuda mútua, pois os laços de solidariedade desses
grupos só duram enquanto há o compartilhamento das mesmas experiências religiosas
produzidas durante os rituais de cura, exorcismos ou “sacrifícios de fé” durante as doações
coletivas de dinheiro no interior dos grandes templos.
A dicotomia centro-periferia pode produzir diferentes subjetividades religiosas, como
observa Passos (2000, p.11), “Presentes nas manchas e nos trajetos, os neopentecostais criam
comunidades de afeto imediato, que não necessitam de vínculos duradouros, como no
pentecostalismo clássico, e reproduzem a lógica metropolitana do não-lugar que mantém o
anonimato e a massa”.
As representações neopentecostais sobre a pobreza e os meios de se acabar com ela e
também sobre a riqueza e os meios de alcançá-la, são expressões de uma teologia mais
preocupada com a eficácia das promessas que buscam arregimentar cada vez mais fieis,
tentando convencê-los dos resultados milagrosos que estes podem obter, ao expulsar o diabo e
todos os “espíritos de pobreza” de suas vidas.
Vendidos em embalagens discursivas sedutoras, de promessas de enriquecimento
imediato, os bens de salvação de teologias neopentecostais, como as ideias veiculadas por sua
expressão mais disseminada – a teologia da prosperidade – vendem seus produtos em um
grande mercado simbólico em que a forma, expressa por suas promessas miraculosas de
enriquecimento, prevalece sobre a reflexão dos conteúdos espirituais contidos na “palavra”. A
emoção contida nos discursos e nos arroubos de fé coletivos das massas que frequentam os
grandes templos substituem, em larga escala, a reflexão dos sermões baseados nas escrituras
bíblicas,
Há, de fato, no pentecostalismo em geral, mas, de modo particular, na sua terceira
onda, uma inflação da forma sobre os conteúdos, nas representações e práticas.
Trata-se, no fundo, da prevalência do pathos sobre o logos; em linguagem de
mercado, da embalagem sobre o conteúdo, oferecidos e comprados mediante
os slogans de promessa de eficácia (PASSOS, 2000, p.10)

Segundo a teologia da prosperidade o sucesso financeiro identifica o verdadeiro


cristão. A pobreza por sua vez tem duas causas: uma fé fragilizada e influências demoníacas.
“[...] duas razões se destacam para o insucesso: primeiro a falta de fé; segundo, satanás está
impedindo que tal desejo se concretize” (BITUN, 2007. p.143),
Uma destas causas, de origem sobrenatural pressupõe seu enfrentamento em um plano
espiritual, invisível. A sobrenaturalização das causas terrenas da pobreza reforça o
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pensamento mágico, não reflexivo e imediatista, que é instrumentalizado por personalidades


construídas em meio a escassez ou a ausência quase absoluta de recursos físicos e simbólicos.
A sacralização da ordem social por explicações religiosas das assimetrias sociais e
suas causas estão presentes tanto nos discursos pentecostais quanto neopentecostais.
No entanto, na teologia neopentecostal, a ênfase acentuada do papel do diabo - e toda
a imensidão de espíritos sob seu comando – como responsável pelos inúmeros males
provocados pela pobreza, além da crença em um mundo espiritual como mais importante e
determinante do que o próprio mundo material, das mazelas sociais e econômicas, reforça a
magia como o principal, ou mesmo único recurso que uma grande maioria de fieis
empobrecidos possam acessar como uma forma de empoderamento simbólico – com
resultados talvez menos positivos dos que os que alcançados pelos pentecostais tradicionais e
suas simbologias de poder – voltados ao enfrentamento das adversidades econômicas e socais
vividas diariamente.
Outro ponto a observar é que segundo esta teologia é somente por meio de um recurso
simbólico, isto é, a fé, que se pode sair da pobreza e conquistar a riqueza material. Estamos
aqui distantes de uma ética do trabalho - um recurso socioeconômico - que identifica os
escolhidos de Deus pela riqueza alcançada por meio do esforço laboral. Bitum observa o quão
distanciados desta ética estão os crentes neopentecostais (2007, p.145),
[...] a Teologia da Prosperidade ajudou alguns setores do neopentecostalismo a
ingressar num mundo, o qual, seu ascetismo protestante histórico, tão bem relatado
por Weber (1985) em seu livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, os
impedia Pois este ascetismo, segundo Weber, definia que a riqueza protestante é
adquirida no trabalho cotidiano, metódico e racional, sendo este, um dos sintomas de
comprovação do estado de graça do indivíduo; enquanto que na Teologia da
Prosperidade, o meio de se obter a riqueza é via fé e não mais via trabalho cotidiano,
metódico e racional. Nem mesmo procura a riqueza para comprovar seu estado de
graça.

Bitum, ao citar Pierre Bourdieu, (2007, p. 147), observa que os dominantes, isto é, os
monopolizadores dos capitais – econômico, cultural e simbólico – elaboram estratégias
visando sempre o acúmulo ou a conservação de seus capitais.
Trazendo a mesma analise para a lógica dos dominados, diferente da ética protestante
que tinha no acúmulo de capital econômico a chave para o acesso ao capital simbólico
religioso máximo: a salvação, na Teologia da Prosperidade, as estratégias dos dominados, isto
é, dos fieis pobres, destituídos de quase todas as formas de capital, resumem-se ao acumulo,
ou melhor dizendo, a intensificação do único capital que lhes restam explorar: o simbólico,
expresso pela fé, que quanto mais forte for, segundo os teólogos da prosperidade, maior será a
recompensa.
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A “ética neopentecostal” coloca a fé no lugar do trabalho e substitui os bens de


salvação espirituais, usufruídos no outro mundo, pelos bens de salvação terrenos, consumidos
aqui mesmo, na Terra.
Os dominantes do campo religioso – lideranças carismáticas e eclesiais – intensificam
as estratégias de exploração do capital simbólico - doutrinas e crenças - para a obtenção
ampliada de outras formas de capitais, especialmente econômico. O capital simbólico
“vendido” nos grandes templos e sedes às massas se converte inevitavelmente naquilo que
prometem nos púlpitos, ou seja, em bens materiais.
Já este mesmo capital simbólico religioso é “comprado” e consumido, na forma de
dádivas oferecidas ao divino – os dízimos e ofertas – pelos dominados e destituídos do campo
religioso. No entanto, aqui o capital simbólico não necessariamente se transformará em
capital econômico, mas a esperança de obtê-lo sempre será alimentada pelas crenças mágicas
contidas nos rituais de prosperidade.
Aqui nós temos um circuito de bens materiais ofertados para a aquisição ampliada
destes mesmos bens, só que mediados por bens de outra natureza, simbólica. A crença mágica
da possibilidade da conversão ou transmutação imediata desses recursos simbólicos
instrumentalizados – a fé – em recursos materiais impossibilita a realização desse circuito que
não se completa, mas que sempre é alimentado e reativado pela crença de seus consumidores.
Afinal, seus problemas econômicos crônicos, derivados de sua de sua posição inferior
na ordem social estruturada, em suas percepções, são de origem espiritual, portanto, somente
com artifícios da mesma natureza, podem enfrentá-los e resolvê-los.
Bitum (2007, p.147), em sua analise das crenças praticadas na Igreja Mundial do
Poder de Deus observa que esta visão espiritual do mundo responsabiliza agentes espirituais
como os únicos vetores de enfermidades que afligem os homens, “a Igreja Mundial do Poder
de Deus professa que as enfermidades provém de agentes espirituais e não de ordem física ou
ambiental, uma vez que elas são provocadas por seres espirituais, devem ser combatidas com
as armas espirituais e não físicas”.
Na teoria bourdesiana da divisão do trabalho religioso, citada por Bitum (2007) entre
produtores e consumidores dos bens de salvação, o consumo destes bens pelos fieis
neopentecostais, produzem explicações que justificam a sua existência social, e
consequentemente o sofrimento resultante dessa existência, que no caso específico dos
agentes estudados aqui, está relacionado diretamente às posições inferiores que ocupam nas
estruturas sociais de bens econômicos e culturais desigualmente distribuídos.
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Nas teologias neopentecostais, especialmente a da prosperidade, os estados de pobreza


e riqueza, para os fieis que consomem os produtos simbólico-religiosos desta teologia, são os
polos opostos, negativo e positivo, que identificam uma vida amaldiçoada e abençoada. Os
problemas de ordem material são transfigurados, pela religião, em problemas espirituais e
suas causas e soluções também devem, necessariamente, ser transcendentais. Bitum, ao citar
Oro, (2007, p.148) outro estudioso do assunto coloca bem essa transcendentalização do
sofrimento humano,
Segundo Oro (1993) os problemas, as angústias e o mal porque passa os indivíduos
são muito bem detectados pelos líderes neopentecostais, os quais propõe
sistematicamente uma explicação transcendental para sua origem e solução.
Segundo um pastor entrevistado da Igreja Universal, ‘se os problemas partem do
plano espiritual para o material, as soluções também partem do plano espiritual para
o material [...] Segundo a análise de Oro, na medida em que ao identificarem estes
problemas, propõe soluções transcendentais [...] deslocando assim o ‘centro gerador
dos problemas do campo social para o espiritual’.

A espiritualização da vida social, das estruturas sociais cristalizadas historicamente e


de todas as desigualdades e assimetrias sociais, levam a legitimação de uma ordem social pela
crença em uma ordem espiritual, mais importante que a primeira, pois é ela que irá determinar
todos os problemas econômicos e sociais, sendo a vida terrena apenas o palco da manifestação
destes problemas que se iniciam em outro mundo. A desigualdade social e a pobreza existem
não porque são constituídas na história dos homens. Elas são reificadas por categorias
atemporais fornecidas pelo pensamento religioso que deslegitima ou no mínimo escamoteia
explicações sociológicas ou antropológicas para os fenômenos sociais.
Em entrevista com o pastor Valdiney Rocha, pastor em uma das inúmeras unidades da
Igreja Universal do Reino de Deus, esta, situada no bairro das Águas Lindas, no conjunto
Júlia Seffer, este afirma que os seres humanos vivem em quatro mundos: o biológico, o
psicológico, o sociológico e o espiritual. No entanto, os três primeiros mundos, em todos os
seus processos fenomenológicos, são determinados pelo espiritual. Problemas de saúde,
transtornos mentais, depressões, angústias, tristezas, desordem financeira, envolvimento com
o crime, todos estes males, individuais e sociais tem uma origem: as forças espirituais
maléficas que atuam no mundo material, personificado na figura onipresente de satanás e suas
legiões que assaltam os “invigilantes” e incautos, os homens sem fé, descrentes e afastados de
Deus.
O fiel José Valdomiro, uma das ovelhas do pastor Valdiney relatou,
Tem que vir pra igreja. Fora dela ninguém se cura. Todo dia eu bebia, daí batia na
mulher. Só andava com má companhia. Hoje sou homem de Deus. Antes não sabia
das coisas espirituais. Agora sei que o inimigo tá só esperando um vacilo teu, pra te
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amarrar. Só que as pessoas do mundo não acreditam, não sabe que o inimigo ta
controlando as vidas delas.

Bitum (2007) cita Clifford Geertz, que explica que diante das dores morais e físicas,
dos significados dos sofrimentos que permeiam a existência humana, o homem é atraído para
a crença em seres supranormais “deuses, demônios, espíritos”. Não é difícil chegar a
conclusão que a realidade dos fieis pentecostais e neopentecostais empobrecidos pode levar a
uma ampla e totalizante espiritualização de suas visões de mundo e à explicações de natureza
transcendental para a quase totalidade de seus problemas morais e sociais.

Considerações finais
As religiões pentecostais, levando-se em consideração diferenças doutrinárias e
comportamentais entre as diferentes denominações e vertentes, apresentam em geral uma
religiosidade de caráter totalizante, isto é, que procura abarcar todo o cotidiano dos que a
professam, de sãs relações sociais em todos os campos de atividade humana. Os efeitos
totalizantes dessa religiosidade na vida dos adeptos se manifestam na forma de representações
do mundo social que passa a ser entendido e explicado por uma cosmovisão religiosa. É um
mundo que só pode ser compreendido pela existência de outro, mais importante e mais
determinante segundo as visões de mundo religiosamente orientadas.
Especialmente na visão neopentecostal, as posições dos indivíduos na estrutura
socioeconômica hierarquizada e desigual não podem ser entendidas com base nas dinâmicas
sociais próprias deste mundo, oriundas de processos estruturados de exclusão e concentração
de bens econômicos e culturais historicamente estabelecidos. Pobrezas e riquezas, combatidas
e conquistadas devem levar em consideração um outro universo, onde atuam forças invisíveis
determinantes para o sucesso ou fracasso de todos aqueles que buscam a sua salvação, já neste
mundo, não necessariamente por meios materiais, como pelo trabalho, de acordo com a ética
calvinista, mas por meios exclusivamente espirituais – a fé, e a guerra declarada contra o
demônio.
As representações espiritualizadas da realidade levam a diferentes praticas ou formas
de enfrentamento da pobreza. As trocas comunitárias – de recursos simbólicos e sociais - dos
grupos pentecostais situados nas periferias são importantes meios acessados por comunidades
de fieis estáveis, pela proximidade geográfica e por relações contínuas. Os grupos que se
formam nos grandes templos neopentecostais, nos centros metropolitanos, são efêmeros e a
solidariedade encontrada entre seus participantes é temporária, contando apenas com o
recurso da fé compartilhada, instrumentalizada simbolicamente e intensificada pelas grandes
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multidões concentradas, para combater os males produtores da pobreza, por meio de artifícios
simbólicos.

Referências bibliográficas
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Revista São Paulo em Perspectiva, São Paulo, 14 (4), p. 120 – 128, 2000.
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religioso neopentecostal. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC),
Capítulo IV A “remasterização” do Movimento Pentecostal, p.133-168. 2007.
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São Paulo: Edições Loyola, 2014.
MARIZ, Cecília. A religião e o enfrentamento da Pobreza no Brasil. Revista crítica de
Ciências Sociais, Pernambuco, n. 33, p. 11-24, out/1991.

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