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Se eu puder dançar – Urucum https://urucum.milharal.

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URUCUM 

2 de setembro de 2017

SE EU PUDER DANÇAR

SE EU PUDER DANÇAR
por: JULIA RUIZ DI GIOVANNI

fotos: Alicia Esteves

“Se eu não puder dançar não será minha revolução” ou “não me convide para uma
revolução em que eu não possa dançar”. Atribuída à ativista Emma Goldman, a
fórmula hoje famosa seria uma reelaboração da convicção expressa pela escritora
anarquista em sua auto-biogra�a: a liberdade que defendia era inseparável do direito
à autoexpressão, à beleza e à alegria que ela própria exercia dançando às vistas de
seus companheiros. Convertida em um ditado político, a frase �cou conhecida
menos pela autenticidade da autoria e mais por sua capacidade de resistir ao tempo
ganhar sentidos novos, sendo difundida e reinventada em contextos muito diferentes
dos bailes que Goldman dançou. Além do direito às coisas belas e radiantes, o
enunciado fala também da relevância tática e estratégica das forças do corpo

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dançante considerado em um sentido mais amplo. Reaparece, nesse sentido, sempre


que alguém em algum lugar sente a urgência de indicar que não se pode abrir mão
de algo que apenas os corpos em movimento articulam. Sempre que é preciso
declarar que há revoluções que só os fazeres e saberes corporais podem operar, lá
onde as criatividades amadurecidas nos trabalhos e amores cotidianos (ou contra
eles) encontram a possibilidade transformação social.

Essa potência política dos corpos é um tema fundamental para as con�uências entre
práticas de ativismo e práticas artísticas, sobre o qual muito se experimentou e
escreveu ao longo da segunda metade do século XX. É impossível conceber os
protestos e con�itos protagonizados pelo proletariado urbano desde o �nal do século
XIX sem considerar-se a produção de engajamentos corporais múltiplos e
complexos, tensionados pelo adensamento da organização cientí�ca do trabalho e de
políticas higienistas, tornados parte da educação dos corpos da classe trabalhadora
para a produção capitalista. A partir dos anos 1960, o lugar do corpo ganha outros
múltiplos sentidos, sendo associado a novas poéticas de dissenso e desobediência,
que incluem na equação dos confrontos político-culturais dimensões da vida antes
tidas como banais ou privadas – rituais domésticos, práticas sexuais, frivolidades
festivas, condutas disruptivas. Além disso práticas de pensar e fazer corpo dos
movimentos negros e do feminismo, foram e são fundamentais para que saibamos
hoje que tudo que se diz sobre e pelos corpos constitui uma zona de enfrentamentos
políticos da maior importância. O corpo que dança e luta é campo de batalha.
Con�ito e diferença ganham o peso próprio dos corpos: na sua materialidade,
plasticidade, forças e fragilidades, o que era oculto ou invisível torna-se exposto e
torna-se possível historicamente reconhecer a dimensão política de formas que
permaneciam relegadas à massa indistinta das experiências cotidianas associadas à
repetição mecânica, inconsciente, alienada, que supostamente não reivindicam
nenhum sentido.

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Então, é muito importante falar do corpo. Mas é mais importante ainda saber que
dizer “corpo” não é o bastante. Dizer corpo muitas vezes serve somente para
continuar mandando o que há de mais intenso e criativo na experiência política de
“volta” ao lugar do que é marginal e indizível, do que mesmo que nos pareça sedutor,
percebemos como algo aquém do pensamento. Pelo menos desde a década de 1970 o
corpo tem um lugar importante (seja pela contracultura, seja pelo marketing
capitalista) nos discursos de busca da felicidade, de prazer, de comunhão, de mais
“natureza” ou mais “realidade”. Corpo se torna sinônimo de uma aspiração por
mostrar o que se oculta, de eliminar o que separa, de atingir uma verdade livre de
representações: um desejo difuso de retornarmos à uma suposta imediaticidade
original, à afortunada condição do não-saber. O corpo, assim, condensa também
formas de exotismo, presentes seja na sua ostentação como objeto sensível e sensual,
seja na multiplicação de práticas e discursos terapêuticos fundados na exploração do
corpo através de experimentos e exercícios. Passando pelos vocabulários da
medicina, do erotismo e das drogas, o corpo, alegoria de desmisti�cação, se torna ele
mesmo mito de uma busca da verdade.

Talvez a questão seja menos dizer corpo e mais fazer corpo. Como propõe a
antropóloga Annemarie Mol[i], sabemos que “temos” corpo, que “somos” corpo, mas
o que acontece se começarmos a perceber e considerar politicamente importante o
fato de que um corpo é algo que fazemos e refazemos todos os dias?

E se em vez de supor o corpo como algo inteiro e acabado que é preciso “resgatar ou
“reencontrar”, pudéssemos entender o corpo como algo que precisa ser feito ? Que
sua inteireza não está dada, mas depende de pequenas e grandes ações íntimas e
coletivas? Quem sabe isso nos �zesse reconhecer o tamanho da luta que esse fazer
implica. Luta para manter-se inteira, que a juventude negra que acorda todos os dias
na linha de tiro da política de genocídio que governa as cidades brasileiras, ou que as
mulheres que mantém casas e comunidades funcionando noite e dia, que os sem
acesso à serviços de saúde, que aqueles para quem a crise e a precariedade nunca
foram condições passageiras, conhecem melhor que qualquer macroanálise. Isso
quem sabe nos �zesse reconhecer mais seriamente, que no coração disso que
chamamos política estão, por exemplo, todas a operações e tarefas ordinárias, anti-
heroicas e não remuneradas que as mulheres fazem e refazem todos os dias. Todos
as práticas de cultivo dos prazeres criativos e festivos, muito associados à categoria
política da “juventude”: outro termo exotizante. Todos os sistemas difusos de
cuidado, de vizinhanças, de escuta, de amparo, todos os usos, todos os exercícios e
rituais religiosos e profanos de fortalecimento e preparo para os combates do dia a
dia.

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Poder dançar, desse ponto de vista, não seria entendido como um desejo
individualizado de “extravasar”, nem dependeria das qualidades de certos corpos que
supomos serem naturalmente mais propícios à insubmissão, à “expressão” ou
mesmo à criatividade: em geral a corpos jovens ou mesmo femininos (no Brasil,
diferente de outros países da América Latina, dançar é uma atividade considerada
feminina ou feminizante, com toda carga de atribuições sociais, econômicas e de
violências que isso implica). O que acontece se entendermos a dança não como uma
atividade especializada, mas como um modo intensi�cado de estar presente, de lutar
para fazer-se inteira, algo que pode ser e já é praticado por uma maioria? Poder
dançar seria sim poder fazer corpo abertamente, conscientemente, políticamente:
exercitar modos disseminados e socialmente compartilhados de mover-se e fazer
mover, modos de conhecer o mundo, no ato mesmo de transformá-lo, saberes de
que ninguém detém o monopólio ou o segredo.

[i]

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por alana

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