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Ciência & Ensino, vol.

1, número especial, novembro de 2007

CONTEXTUALIZAÇÃO NO ENSINO DE CIÊNCIAS


POR MEIO DE TEMAS CTS EM UMA PERSPECTIVA
CRÍTICA
Wildson Luiz Pereira dos Santos

No presente artigo, partindo-se do (AULER; BAZZO, 2001; BAZZO, 1998;


movimento ciência-tecnologia-sociedade – CRUZ; ZYLBERSZTAJN, 2001;
CTS ou ciência-tecnologia-sociedade- PINHEIRO; SILVEIRA; BAZZO, 2001).
ambiente – CTSA, propõe-se uma Esse movimento levou a proposição, a
abordagem de contextualização no ensino partir da década de 1970, de novos
de ciências em uma perspectiva crítica, currículos no ensino de ciências que
apresentando como exemplo o modelo buscaram incorporar conteúdos de
curricular desenvolvido pelo Projeto de ciência-tecnologia-sociedade – CTS.
Ensino Química e Sociedade – Pequis na Considerando que essas propostas
Universidade de Brasília. Para isso, são incorporam uma perspectiva de reflexão
discutidas concepções de contextualização sobre conseqüências ambientais
de CTS e orientações curriculares (ANGOTTI; AUTH, 2001), posteriormente
estabelecidas pelos documentos dos elas passaram a ser denominadas também
Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN. ciência-tecnologia-sociedade-ambiente –
A partir dessas considerações, são CTSA quando se incluíam
delineadas questões sobre o que seria um obrigatoriamente na cadeia das inter-
ensino de CTS/CTSA na perspectiva relações CTS as implicações ambientais.
crítico-social, incorporando idéias de Em tese, pode-se dizer que, pela sua
Paulo Freire. Ao final, são apresentadas origem, todo movimento CTS incorpora a
sugestões de abordagem dessa perspectiva vertente ambiental à tríade CTS. Ocorre
e desafios a serem enfrentados pelos que discussões sobre CTS podem tomar
professores. um rumo que não, necessariamente,
questões ambientais sejam consideradas
ou priorizadas e, nesse sentido, o
1. O movimento CTS no ensino de
ciências movimento CTSA vem resgatar o papel da
educação ambiental (EA) do movimento
Com o agravamento dos problemas inicial de CTS. Considerando, todavia, que
ambientais e diante de discussões sobre a a denominação mais usual tem sido CTS,
natureza do conhecimento científico e seu no presente artigo ela será mais
papel na sociedade, cresceu no mundo empregada como de fato tem aparecido na
inteiro um movimento que passou a literatura, sendo que a denominação CTSA
refletir criticamente sobre as relações será referida quando na análise
entre ciência, tecnologia e sociedade desenvolvida se desejar enfatizar a
perspectiva de EA. interesses coletivos, como os de
Cursos de CTS para o ensino de solidariedade, de fraternidade, de
ciências têm sido propostos tanto para a consciência do compromisso social, de
educação básica quanto para cursos reciprocidade, de respeito ao próximo e de
superiores e até de pós-graduação. O generosidade. Tais valores, na perspectiva
objetivo central desse ensino na educação desses movimentos, se relacionam às
básica é promover a educação científica e necessidades humanas, em uma
tecnológica dos cidadãos, auxiliando o perspectiva de questionamento à ordem
aluno a construir conhecimentos, capitalista, na qual os valores econômicos
habilidades e valores necessários para se impõem aos demais.
tomar decisões responsáveis sobre Deve-se considerar, todavia, que
questões de ciência e tecnologia na muitos cursos têm sido denominados CTS,
sociedade e atuar na solução de tais quando na verdade, eles apenas
questões (CRUZ; ZYLBERSZTAJN, 2001; mencionam relações CTS de forma
SANTOS; MORTIMER, 2000; SANTOS; pontual no currículo sem desenvolverem
SCHNETZLER, 1997; TEIXEIRA, 2003). de forma sistemática os objetivos acima
Podemos considerar que um citados. Nesse sentido, no presente artigo
currículo tem ênfase em CTS quando ele são analisados princípios curriculares em
trata das inter-relações entre explicação que se busca assumir o compromisso tanto
científica, planejamento tecnológico e do desenvolvimento de tomada de decisão
solução de problemas e tomada de decisão como de educação ambiental em uma
sobre temas práticos de importância social perspectiva crítica e não apenas a mera
(SANTOS; MORTIMER, 2001). Assim, ilustração de relações CTS.
uma proposta curricular de CTS pode ser
vista como uma integração entre educação
2. CTS no currículo de ciências no
científica, tecnológica e social, em que Brasil
conteúdos científicos e tecnológicos são
estudados juntamente com a discussão de Segundo Krasilchik (1980, 1987),
seus aspectos históricos, éticos, políticos e desde a década de 1950 vêm sendo
socioeconômicos (LÓPEZ; CEREZO, desenvolvidas no Brasil inovações
1996). Em outras palavras, pode-se dizer educacionais no ensino de ciências.
que o objetivo principal dos currículos Fracalanza (2006) considera, contudo,
CTS é o desenvolvimento da capacidade de que enquanto em nível de propósito, no
tomada de decisão. Já o objetivo central sentido do que foi desenvolvido e
do movimento CTSA acrescenta aos recomendado por instituições de ensino e
propósitos de CTS a ênfase em questões pesquisa, ou por equipes técnicas de
ambientais, visando a promoção da quadros governamentais, o ensino de
educação ambiental. ciências no Brasil avançou de forma
Em ambos movimentos, os objetivos significativa; em nível de fato, no sentido
propostos incorporam o desenvolvimento do que foi desenvolvido nas salas de aula
de valores (SANTOS e SCHNETZLER, no sistema educacional, esse ensino se
1997). Esses valores estão vinculados aos manteve distante das proposições que
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vinham sendo feitas. Nesse sentido, no tendências progressistas, que no


Brasil, enquanto proposições de inclusão Brasil se organizaram em
correntes importantes que
de tópicos relativos à CTSA no currículo de
influenciaram o ensino de
ensino de ciências ocorrem desde a década Ciências Naturais, em paralelo à
de 1970, quando segundo Krasilchik CTS, enfatizando conteúdos
(1980, 1987) houve uma maior socialmente relevantes e
preocupação com problemas ambientais; processos de discussão coletiva
proposições de cursos de ciências com de temas e problemas de
significado e importância reais.
ênfase em CTS propriamente dito só
Questionou-se tanto a
começaram a surgir na década de 1990, abordagem quanto a
com o desenvolvimento de dissertações de organização dos conteúdos,
mestrado e doutorado e a publicação de identificando-se a necessidade de
artigos e livros sobre o assunto. um ensino que integrasse os
Pode-se considerar que aspectos diferentes conteúdos, com um
caráter também interdisciplinar,
curriculares relativos a cursos com ênfases
o que tem representado
em CTS sempre estiveram presentes importante desafio para a
implicitamente em recomendações didática da área. (BRASIL, 1998,
curriculares de ensino de ciências, na p.20-21).
medida em que o propósito desse ensino
sempre esteve voltado para a cidadania. Na primeira versão dos PCN para o
Todavia, percebe-se que recomendações ensino médio, destacou-se no item o
mais explícitas sobre as relações CTS só “sentido do aprendizado na área.” Ao se
foram incorporadas aos documentos legais denominar a área como sendo não só de
nas proposições das diversas versões dos Ciências e Matemática, mas também de
Parâmetros Curriculares Nacionais do suas Tecnologias, sinaliza-se claramente
ensino fundamental e médio elaboradas que, em cada uma de suas disciplinas,
nos últimos dez anos. pretende-se promover competências e
Nos Parâmetros Curriculares habilidades que sirvam para o exercício de
Nacionais (PCN) para o ensino intervenções e julgamentos práticos. Isso
fundamental encontra-se menção ao significa, por exemplo, o entendimento de
currículo CTS no item do histórico do equipamentos e de procedimentos
ensino de ciências e suas tendências: técnicos, a obtenção e análise de
informações, a avaliação de riscos e
No ensino de Ciências Naturais, benefícios em processos tecnológicos, de
a tendência conhecida desde os um significado amplo para a cidadania e
anos 80 como “Ciência, também para a vida profissional.
Tecnologia e Sociedade” (CTS),
que já se esboçara anteriormente
e que é importante até os dias de Com essa compreensão, o
hoje, é uma resposta àquela aprendizado deve contribuir não
problemática. No âmbito da só para o conhecimento técnico,
pedagogia geral, as discussões mas também para uma cultura
sobre as relações entre educação mais ampla, desenvolvendo
e sociedade se associaram a meios para a interpretação de
fatos naturais, a compreensão de alunos não conseguem identificar a
procedimentos e equipamentos relação entre o que estudam em ciência e o
do cotidiano social e profissional,
seu cotidiano e, por isso, entendem que o
assim como para a articulação
de uma visão do mundo natural e estudo de ciências se resume a
social. Deve propiciar a memorização de nomes complexos,
construção de uma compreensão classificações de fenômenos e resolução de
dinâmica da nossa vivência problemas por meio de algoritmos. Por
material, de convívio harmônico outro lado, há uma compreensão restrita
com o mundo da informação, de
do que vem a ser o ensino do cotidiano na
entendimento histórico da vida
social e produtiva, de percepção escola. Muitos professores consideram o
evolutiva da vida, do planeta e princípio da contextualização como
do cosmos, enfim, um sinônimo de abordagem de situações do
aprendizado com caráter prático cotidiano, no sentido de descrever,
e crítico e uma participação no nominalmente, o fenômeno com a
romance da cultura científica,
linguagem científica. Essa abordagem é
ingrediente essencial da
aventura humana. (BRASIL, desenvolvida, em geral, sem explorar as
2000, p.6-7). dimensões sociais nas quais os fenômenos
estão inseridos. Assim, se ensina nomes
Nessa primeira versão dos PCN para científicos de agentes infecciosos e
o ensino médio são apresentados, nas processos de desenvolvimento das
recomendações específicas para as doenças, mas não se reflete sobre as
disciplinas de Biologia, Física, Química e condições sociais que determinam a
Matemática, tópicos relativos ao princípio existência de muitos desses agentes em
da contextualização em que se explicita a determinadas comunidades. Da mesma
inclusão de temas que englobem as inter- forma, se ilustra exemplos do cotidiano de
relações entre ciência e tecnologia. Além processos de separação de materiais como
disso, são enumerados, para essas catação, mas não se discute os
disciplinas, objetivos, sob a denominação determinantes e as conseqüências do
de competências e habilidades, relativos à trabalho desumano de catadores em lixões
contextualização sociocultural. do Brasil.
Recomendações essas que continuam Para muitos, a simples menção do
presentes nos documentos mais recentes cotidiano já significa contextualização.
das Orientações Curriculares Nacionais Mas será que a simples menção de
para o Ensino Médio (BRASIL, 2006) que processos físicos, químicos e biológicos do
também preconizam a contextualização e a cotidiano torna o ensino dessas ciências
interdisciplinaridade como eixos centrais mais relevante para o aluno? Será que o
organizadores das dinâmicas interativas aluno aprenderá ciência mais facilmente
no ensino das diferentes disciplinas. com tal ensino? Muitas vezes, essa
No entanto, o ensino de ciências, na aparente contextualização é colocada
maioria de nossas escolas, vem sendo apenas como um pano de fundo para
trabalhado de forma descontextualizada encobrir a abstração excessiva de um
da sociedade e de forma dogmática. Os ensino puramente conceitual,
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enciclopédico, de cultura de almanaque. Com esses objetivos, a


Nessa visão, são adicionados cada vez contextualização pedagógica do conteúdo
mais conteúdos ao currículo, como se o científico pode ser vista com o papel da
conhecimento isolado por si só fosse a concretização dos conteúdos curriculares,
condição de preparar os estudantes para a tornando-os socialmente mais relevantes.
vida social. Para isso, é necessária a articulação na
Outra concepção em voga é aquela condição de proposta pedagógica na qual
na qual a contextualização significa um situações reais tenham um papel essencial
método de ensino que aumenta a na interação com os alunos (suas
motivação e facilita a aprendizagem. vivências, saberes, concepções), sendo o
Todavia, deve-se destacar que essa conhecimento, entre os sujeitos
abordagem não pode ser vista como uma envolvidos, meio ou ferramenta
“vara mágica”, no sentido de que ela, por metodológica capaz de dinamizar os
si só, vai resolver os problemas da processos de construção e negociação de
educação, ou seja, como se o fato de o significados.
professor contextualizar suas aulas já fosse Não se procura uma ligação artificial
suficiente para que os alunos aprendam os entre conhecimento científico e cotidiano,
conteúdos escolares. A simples inclusão de restringindo-se a exemplos apresentados
questões do cotidiano pode não implicar a como ilustração ao final de algum
discussão de aspectos relevantes para a conteúdo; ao contrário, o que se propõe é
formação do aluno enquanto cidadão ou partir de situações problemáticas reais e
não motivar suficientemente os alunos buscar o conhecimento necessário para
para se interessar por ciências. entendê-las e procurar solucioná-las.
Compreender as diferentes funções Nesse sentido, assumir o papel central do
da abordagem de aspectos sociocientíficos princípio da contextualização na formação
permite uma compreensão de que formar da cidadania implicará a necessidade da
cidadãos não se limita a nomear reflexão crítica e interativa sobre situações
cientificamente fenômenos e materiais do reais e existenciais para os estudantes.
cotidiano ou explicar princípios científicos Nesse processo, buscar-se-á o
e tecnológicos do funcionamento de desenvolvimento de atitudes e valores
artefatos do dia-a-dia. Assim, a aliados à capacidade de tomada de
contextualização pode ser vista com os decisões responsáveis diante de situações
seguintes objetivos: 1) desenvolver reais. Isso pode ser desenvolvido em uma
atitudes e valores em uma perspectiva abordagem temática que, à luz da
humanística diante das questões sociais perspectiva de Paulo Freire, vise a
relativas à ciência e à tecnologia; 2) mediatização dos saberes por uma
auxiliar na aprendizagem de conceitos educação problematizadora, de caráter
científicos e de aspectos relativos à reflexivo, de argüição da realidade, na qual
natureza da ciência; e 3) encorajar os o diálogo começa a partir da reflexão sobre
alunos a relacionar suas experiências contradições básicas de situações
escolares em ciências com problemas do existenciais, consubstanciando-se na
cotidiano. educação para a prática da liberdade.
Assim sendo, a contextualização no do cientificismo que ideologicamente
currículo poderá ser constituída por meio ajudou a consolidar a submissão da
da abordagem de temas sociais e situações ciência aos interesses de mercado, da
reais de forma dinamicamente articulada busca do lucro. Esse mito cientificista tem
que possibilite a discussão, influenciado drasticamente o nosso modo
transversalmente aos conteúdos e aos de vida, de forma que o nosso
conceitos científicos, de aspectos comportamento muitas vezes segue mais a
sociocientíficos (ASC) concernentes a lógica da razão científica, do que
questões ambientais, econômicas, sociais, propriamente razões de natureza humana
políticas, culturais e éticas. A discussão de como emocionais, afetivas, estéticas etc.
ASC, articulada aos conteúdos científicos e Isso gerou uma autonomização que
aos contextos é fundamental, pois propicia resultou em uma verdadeira fé no homem,
que os alunos compreendam o mundo na ciência, na razão, enfim, uma fé no
social em que estão inseridos e progresso. As sociedades modernas
desenvolvam a capacidade de tomada de passaram a confiar na ciência e na
decisão com maior responsabilidade, na tecnologia como se confia em uma
qualidade de cidadãos, sobre questões divindade. A lógica do comportamento
relativas à ciência e à tecnologia. Em uma humano passou a ser a lógica da eficácia
perspectiva CTSA, essa discussão tecnológica e suas razões passaram a ser
envolverá também atitudes e valores as da ciência. Como afirmou Alves (1968):
comprometidos com a cidadania
planetária em busca da preservação Ao invés de as necessidades
ambiental e da diminuição das humanas definirem as
desigualdades econômicas, sociais, necessidades de produção – o
culturais e étnicas. que seria a norma para uma
sociedade verdadeiramente
Ao se discutirem ASC, vão emergir em
humana – são as necessidades do
sala de aula diferentes pontos de vista, que funcionamento do sistema que
poderão ser problematizados mediante irão criar as “falsas
argumentos coletivamente construídos, com necessidades” de consumo (...). E
encaminhamentos de possíveis respostas a o sistema criou o homem à sua
problemas sociais relativos à ciência e à imagem e semelhança e lhe disse:
Não terás outros deuses diante
tecnologia. Esse diálogo cria condições para a
de mim! (p.20).
difusão de valores assumidos como
fundamentais ao interesse social, aos direitos e
aos deveres dos cidadãos, de respeito ao bem Como conseqüência do cientificismo
comum e à ordem democrática. que emergiu desse processo, a
supervalorização da ciência gerou o mito
da salvação da humanidade, ao considerar
3. Por um ensino de CTS crítico que todos os problemas humanos podem
ser resolvidos cientificamente. Outra
Uma visão crítica da ciência,
conseqüência é o mito da neutralidade
expressada tanto por filósofos quanto por
científica (JAPIASSU, 1999). Tais crenças
sociólogos, tem buscado desfazer o mito
tiveram repercussões no ensino de
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ciências, por exemplo, a orientação tecnológico em nossa sociedade. Assim,


curricular de formar um mini-cientista por uma pessoa letrada tecnologicamente teria
meio da vivência do “método científico”, o poder e a liberdade de usar os seus
que teve grande influência sobre o ensino conhecimentos para examinar e
de ciências a partir do final dos anos de questionar os temas de importância na
1950. sociotecnologia. Isso implica ser crítico no
Partindo dessas considerações, uso da tecnologia, ou seja, ter a habilidade
defende-se uma educação científica intelectual de examinar os prós e contras
tecnológica crítica, a qual foi denominada do desenvolvimento tecnológico, examinar
por Auler e Delizoicov (2001) como seus benefícios e seus custos e perceber o
perspectiva ampliada. Esses autores que está por trás das forças políticas e
consideram que a alfabetização científica e sociais que orientam esse
tecnológica – ACT pode ser vista em duas desenvolvimento. Isso vai além do
perspectivas: a reducionista e a ampliada. conhecimento técnico específico sobre o
Segundo afirmam: uso da tecnologia que também se torna
importante no mundo atual dominado por
A reducionista, em nossa análise, tantos aparatos tecnológicos. Como afirma
desconsidera a existência de Vargas (1994), uma nação adquire
construções subjacentes à autonomia tecnológica não
produção do conhecimento necessariamente quando domina um ramo
científico-tecnológico, tal como
de alta tecnologia, mas quando consegue
aquela que leva a uma concepção
de neutralidade da Ciência- uma ampla e harmoniosa interação entre
Tecnologia. Relacionamos a esta esses subsistemas tecnológicos sob o
compreensão de neutralidade os controle, orientação e decisão dos “filtros
denominados mitos: sociais” (p.186).
superioridade do modelo de Isso implica que, em uma visão
decisões tecnocráticas,
crítica de CTS, torna-se necessário romper
perspectiva salvacionista da
Ciência-Tecnologia e o com os mitos da visão reducionista sobre
determinismo tecnológico. A ciência e tecnologia. Segundo Auler e
perspectiva ampliada (...) busca a Delizoicov (2001), a visão reducionista é
compreensão das interações entre caracterizada pela crença em três mitos: o
Ciência-Tecnologia- Sociedade da superioridade científica, o da
(CTS), associando o ensino de
perspectiva salvacionista e o do
conceitos à problematização
desses mitos. (AULER e determinismo tecnológico. O mito da
DELIZOICOV, 2001, p.105). superioridade das decisões tecnocráticas
está assentado em uma visão cientificista
Nesse sentido, consideramos que da ciência que desconsidera a participação
pensar em educação científica e democrática na tomada de decisão, a qual
tecnológica crítica significa fazer uma é calcada exclusivamente nos valores
abordagem com a perspectiva CTS com a tecnocráticos. O mito da perspectiva
função social de questionar os modelos e salvacionista se traduz na concepção
valores de desenvolvimento científico e unidirecional de que o progresso científico
gera progresso tecnológico, que por sua de tal maneira que as alterações
vez, gera progresso econômico e este gera da atividade humana, vinculadas
ao fazer educativo, impliquem
progresso social, conforme discutem
mudanças individuais e coletivas,
García, Cerezo e López (1996). Já o mito estruturais e conjeturais,
do determinismo tecnológico tem como econômicas e culturais. (grifo do
base a mesma concepção do mito anterior autor, p. 89).
de que o desenvolvimento tecnológico
conduz ao desenvolvimento humano, mas Enfim, uma perspectiva de
acrescido da crença da autonomia da CTS/CTSA crítica tem como propósito a
tecnologia sem a influência da sociedade. problematização de temas sociais, de
Nessa perspectiva, há uma superideologia modo a assegurar um comprometimento
inculcada pela mídia em que a sociedade social dos educandos. Assim, propostas
consome passivamente os aparatos curriculares com essa visão precisam levar
tecnológicos em que o futuro do em consideração o contexto da sociedade
desenvolvimento tecnológico não tem tecnológica atual, caracterizado de forma
mais volta (AULER; DELIZOICOV, 2001). geral por um processo de dominação dos
Nesse sentido, a visão crítica de CTS sistemas tecnológicos que impõem valores
corresponde a uma educação culturais e oferecem riscos para a vida
problematizadora, de caráter reflexivo, de humana.
desvelamento da realidade como propôs
Paulo Freire (1970). Na visão de Freire
(1970), essa educação deveria ocorrer por 4. Uma proposta de ensino de
ciências por meio de temas CTS
uma reflexão dialógica entre educador –
educando, em uma perspectiva de prática Na Universidade de Brasília temos
para liberdade. Assim, para Freire (1970), desenvolvido o Projeto Ensino de Química
o conteúdo educacional teria um papel de e Sociedade – Pequis, no qual têm sido
transformação, em que seus termos produzidos materiais didáticos para o
geradores, repletos de sentido para os ensino médio de Química, dentre os quais
educandos, seriam instrumentos de podemos destacar o livro “Química e
repensar o mundo. Sociedade” (SANTOS; MÓL, 2005). Com
Já na perspectiva do movimento esses materiais, procuramos, por meio da
CTSA com uma visão crítica, a concepção contextualização temática, desenvolver
de educação ambiental a ser desenvolvida valores e atitudes comprometidos com a
seria na concepção do que se tem cidadania (SANTOS et al., 2004). Dessa
denominado de EA crítica, também forma, ao tratarmos dos conteúdos
denominada emancipatória ou químicos o associamos com temas sociais
transformadora. Para Loureiro (2004): e ao abordar esses temas discutimos
aspectos sociais, econômicos, ambientais e
A Educação Ambiental éticos.
transformadora é aquela que Assim, no livro “Química e
possui um conteúdo Sociedade” (SANTOS; MÓL, 2005) foram
emancipatório, em que a dialética
incluídas discussões sobre problemas
entre forma e conteúdo se realiza
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ambientais como o lixo urbano, a poluição interdisciplinar e o desenvolvimento de


atmosférica, o uso de agrotóxicos, poluição atitudes e valores de forma articulada com
das águas, medidas para evitar desperdício os avanços na compreensão tanto do tema
de água e de energia, o descarte de quanto dos conceitos introduzidos.
resíduos sólidos e o uso dos transgênicos. Em cada capítulo do livro, são
Em diversos textos, são introduzidas explorados de dois a três temas em foco.
discussões sobre as desigualdades sociais Conforme o caso, as explicações dos
no Brasil e no mundo, apresentando o processos químicos relacionados ao tema
problema do trabalho infantil em lixões, o são desenvolvidas ao longo dos textos após
problema do acesso à tecnologia, a má os temas em foco, na medida em que o
distribuição de alimentos, a fome que conteúdo químico vai sendo desenvolvido.
atinge boa parte da população mundial. O Em alguns casos, em que os processos
papel da tecnologia na sociedade é químicos do tema não estão relacionados
exaustivamente trabalhado no livro, diretamente ao conteúdo programático de
incluindo aí discussões sobre o papel das química, os mesmos são explanados nos
indústrias químicas. Além disso, em toda a próprios textos do tema em foco. O que se
obra há sempre textos discutindo pretende é que o aluno tenha uma
diferentes significados de compreensão mais aprofundada do tema
desenvolvimento sustentável e sugestões em relação aos processos químicos. Nesse
de atividades de ações de cidadania, sentido, em outras ocasiões, o tema é
visando engajar os estudantes em abordado diretamente nos tópicos do
movimentos sociais. conteúdo químico, em que os processos
O modelo de abordagem curricular relativos ao tema são desenvolvidos. Ou
desse material consiste no seja, no material didático não há
desenvolvimento concomitante de separação a priori entre tema e conteúdo,
conteúdos específicos de química e de o que se busca é sempre a melhor
temas que incluem aspectos articulação possível entre suas
sociocientíficos. Os temas são abordagens.
desenvolvidos por meio de textos da seção A abordagem temática é feita de
“tema em foco”, a qual está entremeada forma que o aluno compreenda processos
nos capítulos do conteúdo programático químicos envolvidos e possa discutir
de química. Os textos da seção buscam aplicações tecnológicas relacionadas ao
estabelecer vínculos com o conteúdo tema, compreendendo os efeitos das
programático anterior ou com os que tecnologias na sociedade, na melhoria da
serão introduzidos nos tópicos seguintes. qualidade de vida das pessoas e as suas
Esses textos levantam diversas questões decorrências ambientais.
sociocientíficas e, ao final dos mesmos, Além disso, os textos dos temas em
são apresentadas aos alunos questões para foco buscam discutir a necessidade de
debate que buscam fazer uma reflexão uma mudança de atitude das pessoas para
crítica sobre os ASC levantados. Essas o uso mais adequado das tecnologias,
questões possibilitam uma abordagem visando à construção de um modelo de
contextualizada, propiciando um estudo desenvolvimento comprometido com a
cidadania planetária. Nesse sentido, compreensão de conceitos científicos
discutem-se criticamente problemas relativos à temática em discussão.
relacionados à racionalidade técnica de Professores de ciência em geral têm
exploração ambiental, a qual está centrada resistência e dificuldades em promover
na mera aplicação de soluções práticas debates em torno de questões políticas,
para otimização de custos e benefícios com isso, muitas vezes a abordagem de
econômicos, desconsiderando a temas CTS acaba se restringindo a
complexidade dos aspectos sociais, ilustração de aplicações tecnológicas com
políticos e ambientais. Nessa perspectiva, exemplos de suas implicações.
procura-se no texto enfatizar valores e Compreender o papel da abordagem
atitudes das pessoas para preservação do curricular de CTS em uma perspectiva
ambiente, explorando conhecimentos crítica e reconhecer a importância de se
relativos ao uso adequado dos produtos incluir no currículo ASC é, sem dúvida, um
químicos. importante passo inicial para se vencer o
Ao final dos textos dos temas em desafio da mudança de postura em sala de
foco, são introduzidas questões que aula.
solicitam ao aluno debater diferentes A proposta de incluir temas
pontos de vista, explorando aspectos associados a conteúdos com o auxílio de
ambientais, políticos, econômicos, éticos, textos que incorporem discussões de ASC
sociais e culturais relativos à ciência e à pode ser uma alternativa para iniciar o
tecnologia. professor nesse processo de inovação
Deve-se destacar, todavia, que o curricular. Para isso é necessária sua
caráter de criticidade a ser atribuído à formação contínua, o que passa pela sua
abordagem proposta vai depender, postura de reflexão crítica sobre o
sobretudo, da forma como os ASC serão contexto da sociedade tecnológica em que
debatidos e mediados pelo professor em vivemos. Isso implica a idealização e o
sala de aula. compromisso na construção de um
modelo de sociedade democrática, justa e
igualitária.
5. Considerações finais
Não se trata de simplificar
Inserir a abordagem de temas CTS currículos, reduzindo conteúdos, mas sim
no ensino de ciências com uma de ressignificá-los socialmente, de forma
perspectiva crítica significa ampliar o que possam ser agentes de transformação
olhar sobre o papel da ciência e da social em um processo de educação
tecnologia na sociedade e discutir em sala problematizadora que resgate o papel da
de aula questões econômicas, políticas, formação da cidadania. Buscar a
sociais, culturais, éticas e ambientais. vinculação, portanto, dos conteúdos
Essas discussões envolvem valores e científicos com temas CTSA de relevância
atitudes, mas precisam estar associadas à social e abrir espaço em sala de aula para
compreensão conceitual dos temas debates de questões sociocientíficas são
relativos a esses aspectos sociocientíficos, ações fundamentais no sentido do
pois a tomada de decisão implica a desenvolvimento de uma educação crítica
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questionadora do modelo de 2006.


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Wildson Luiz Pereira dos Santos é professor
do Instituto de Química e atua nos
Programas de Pós-Graduação em Ensino de
Ciências e em Educação da Universidade de
Brasília – UnB. E-mail: wildson@unb.br

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