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DO DESERTO
HOMENS EMBRIAGADOS DE DEUS
Eàltóes Loyola
Título original:
Edições Loyola
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Postal 42.335 04218-970 São
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ISBN: 85-15-01278-2
2a edição: agosto de 2002
PREFÁCIO ......................................................................................................... 13
INTRODUÇÃO ................................................................................................. LZ
UM MUNDO
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querubim. Macário e o cadáver. O ensinamento e os discípulos de Macário o
Antigo: Moisés e os ladrões, Bessarião, Poimém e a estátua. João o Pequeno e
a vara milagrosa. Arsênio, o preceptor.
MUNDO
O paraíso copta.
^exa c i o
FONTES F. TEXTOS ..........................................................................................251
T erão os desertos do Oriente Médio deixado de ser hoje em dia o lugar das
experiências soberanas? E, porque se busca neles antes de tudo o ouro
negro que encerram, tem-se deixado de buscar ali a Deus, o sentido do mundo
ou simplesmente uma imagem mais verdadeira de si mesmo? Durante
séculos, sua nudez pareceu rechaçar a história para os confins de suas areias:
ali aparentemente nada se mexia, nada parecia "progredir". Eles eram o lugar
do imutável, de uma virgindade perpétua onde o homem acaba por se
assemelhar aos anjos. Ei-los hoje tornados fontes de vida e morte porque dali
se extrai a energia combustível. Mas talvez assim só façam continuar essa
vocação de fogo que os lançou por todo o tempo na direção das margens
grávidas da história.
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presença absurda. E ele só pode viver ali tornando-se também peso morto do tempo,
hibernando-o num perpétuo inverno. Eis por que durante tantos séculos esse lugar
extremo só abrigou fantasmas hirsutos, sombras andrajosas, engodos de seres
humanos que as testemunhas de então designaram os atletas do exílio e que eu
chamei os homens ébrios de Deus.
Este livro foi escrito e publicado há treze anos. Mas ele nasceu bem mais
cedo em meu espírito, gerado por uma visão noturna. Eu estava então no
monte Atos, no mosteiro da Grande Laura, onde jantava, após o ofício da
noite, no grande refeitório cheio de monges e eremitas para a festa anual de
santo Atanásio o Atônita. As paredes eram cobertas de afrescos antigos, cuja
faixa inferior representava, alinhados lado a lado, os grandes santos do
deserto: Antão, Paulo de Tebas, Pacômio, Macário, Onofre, Poimém. Silhuetas
nuas, longos corpos esquálidos vestidos de barbas e de cabelos caindo até os
pés, com grandes olhos negros cavados na ossatura do rosto. À luz das velas,
suas auréolas realçavam a paüdez de seus traços e todos aqueles santos
retomavam vida, repentinamente, distantes e familiares ao mesmo tempo,
como se, dos continentes seculares de seu afresco, eles surgissem da borda
luminosa daquela refeição noturna. Aquela noite, compreendi que eles não
estavam pintados somente para figurar uma experiência insubstituível, para
se ancorar num tempo passado, mas para surgir também a cada instante no
presente dos homens. E naquela noite senti vir a mim todo um povo da
sombra, cuja existência e história eu havia ignorado até então. Quis
conhecê-los, encontrar um a um os habitantes desse mundo desconhecido do
deserto. Li as Vidas dos santos, os relatos e os testemunhos dos que os
conheceram, inventariei dezenas de textos gregos e coptas que, mais tarde, me
levaram ao Egito. E foi lá, no coração do Wadi-an-Natrun, que decidi escrever
um livro para o qual só tinha, por enquanto, o título: Les hommes ivres de Dieu.
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tilhar sua opção e sua fé. Empreendimento sempre incerto, já que ele recusa a
identificação sem que o recuo implicado seja por isso revelador. Isto explica
por que, ao lado de um grande número de reações entusiastas e muito
elogiosas, este livro tenha sido criticado, vilipendiado em alguns meios
católicos. De minha parte, não me preocupava muito com isso, pois na história
não existe domínio reservado. Se os crentes fossem os únicos habilitados a
falar de sua fé, se só os monges tivessem de escrever sobre o monaquismo, a
história do pensamento não passaria de uma eterna tautologia. Como não
tenho, aliás, nenhuma pretensão de historiador, encontrei-me mais uma vez
rejeitado diante de mim mesmo. Porque este livro não é um tratado de
história, uma hinologia ou uma critica pretensamente objetiva do fenômeno
que ele estuda. Os homens ébnos de Deus é o diário de um encontro inteira-
mente pessoal com uma época e com homens que até hoje não sei se foram
loucos ou se foram santos. E não sei igualmente se eles foram — e ainda são —
para mim os indígenas de um outro mundo ou os irmãos desconhecidos de
um continente que é o meu. Este estudo é também um livro-testemunha,
quero dizer, o relato de um testemunho pessoal, termos contraditórios para um
ocidental, mas que sempre se confundiram estreitamente em todo o domínio
oriental. Testemunha, em grego, se diz martyr, que também significa mártir.
Como, enfim, meu objetivo em todos os meus livros nunca foi redigir
teses de pretensão universitária nem marcar data para a posteridade, mas
simplesmente, organicamente eu diria, comunicar-me com meus
contemporâneos, relatar o que vivi e pensei, para que outros o vivam e o
pensem por si mesmos, reivindico particularmente as insuficiências — até
mesmo as ignorâncias — deste livro: como as tentativas e os erros das amebas
e dos paramécios, elas são a marca dos titubeios sem os quais nenhuma
verdade faz sentido. É assim que surge finalmente este livro, após tantos anos:
um ensaio para interrogar, pressentir ou delinear os limites do homem. Pois
foi isso, sem dúvida alguma, que me atraiu outrora para a experiência desses
santos do deserto: esse desafio lançado ao nosso destino de hominídeo, essa
recusa visceral da nossa casca antiga e essa busca última de um homem
diferente.
Romper com a sociedade de seu tempo é, pois, uma atitude natural, que
não é de forma alguma privilégio da nossa geração, a tal ponto que a história
de cada civilização poderia comportar também a
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história das "anti-sociedades" que ela engendra. Se escolhi ilustrar esse fenômeno
limitando-me a uma época e a um lugar preciso, o Egito cristão do século IV, é
porque ele atingiu ali uma nitidez e uma amplitude excepcionais, raramente
igualadas na história, e porque teve até nossa época conseqüências duradouras, ao
suscitar os primeiros mosteiros conhecidos da história cristã.
Uma palavra basta para definir esse fenômeno: anacorese. O termo grego
anachôresis significa uma retirada, uma fuga para longe do mundo cotidiano.
Trata-sc antes de mais nada de uma opção anti-social que só bem mais tarde ganhará
um significado religioso. Das centenas de camponeses, de escravos, de ladrões que,
no Egito greco-romano, fugiam para o deserto para escapar do fisco, de seus amos ou
da justiça, dizia-se que praticavam a anacorese. Em suma, ganhavam o deserto, como
se diz em francês moderno que um parüsan ganha o maquis*. E o termo anacorese
nunca perderá totalmente — mesmo quando, bem mais tarde, se aplicar unicamente
Atitude negativa na aparência, já que é antes de tudo uma fuga, uma recusa,
uma ruptura radical com toda a sociedade organizada. Mas sabemos que não basta
fugir para a solidão do deserto (ou, hoje em dia, para a do mato) para romper com os
valores de seu tempo. O anacoreta cristão foge, no deserto, da comunidade temporal
a que pertence, mas para juntar-se ali à comunidade espiritual, invisível, que reúne
todos os cristãos, mortos ou vivos, os santos, os mártires. Ele só se isola de seus
contemporâneos, das delícias ou dos horrores de seu tempo para encontrar a
comunidade ideal e atemporal de seus irmãos dos outros séculos, dos outros lugares.
É assim que este comportamento anti-social culminará paradoxalmente na
constituição, pouco a pouco, nas solidões do Alto e do Baixo Egito, de uma nova
sociedade ♦
INTRODUÇÃO
E por isso que me parece útil, antes de acompanhar no Baixo e Alto Egito a vida
e a aventura excepcionais desses homens, investigar as raízes desse estranho
fenômeno. Não foi sem razões imperiosas, sem profundas motivações, que milhares
de cristãos romperam com sua época, seus bens, sua vida familiar, com o que todos
os textos chamam "o século" ou "o mundo". Parece que assistimos ali a um
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esforço — consciente ou inconsciente? — para realizar, à margem do mundo
profano, uma sociedade ideal e santa, as comunidades monás-ticas, e um tipo ideal
de ser humano, o homem novo ou o santo do deserto.
"O mosteiro é um céu terrestre e, assim, nós todos devemos ser como
anjos", escreve João Clímaco, autor ascético do século VII. Foi então para se
tornarem anjos, seres no limite do humano, que Antão, Pacômio e todos os
que os imitaram um dia desertaram as cidades e a história para enfrentar a
provação do deserto?
W\IAV\C\O
17
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1.
o m d os temp
O
Tal como foi pregada por Jesus e propagada pelos Apóstolos, a religião
nova, de fato, não tinha de forma alguma o objetivo de conquistar o mundo
temporal, mas de pregar o advento próximo do Reino dos Céus e a morte da
História. Como todas as grandes religiões, foi primeiro modificando
profundamente as relações do homem e do tempo que o cristianismo se impôs
a seus primeiros fiéis. Para os gentios — em outras palavras, os pagãos —,
vivendo num Tempo cíclico em que as cerimônias religiosas, as festas, os
sacrifícios recomeçavam infatigavelmente os mesmos eventos primordiais, no
seio de um universo que se repete, logo, de um universo eterno, o cristianismo
trazia a brusca, angustiante revelação de um Tempo que progride,
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[.../ nós os vivos, que houvermos ficado até a vinda do Senhor, não
precederemos de modo nenhum os que morreram. Porque o Senhor em
pessoa, ao sinal dado. a voz do arcanjo e ao toque da trombeta de Deus,
descerá do céu: então os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; em
seguida nós, os vivos que tivermos ficado, seremos arrebatados com eles
sobre as nuvens, ao encontro do Senhor, nos ares... (ITs 4,15-17)".
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O UM DOS TEMPOS
São Cipriano de Cartago, numa Carta a Dimitriano (mais um texto
notável que valeria a pena comparar com os textos ecológicos
contemporâneos), escreve:
Quem não vê que o mundo caminha para seu declínio, que já não tem as
mesmas forças nem o mesmo vigor de antigamente? Não é preciso prová-lo
com a autoridade da Santa Escritura. O próprio mundo o diz e testemunha
que se aproxima de seu fim pela decadência de todas as coisas. Cai menos
chuva no inverno para alimentar as sementes. O sol não é mais tão quente no
verão para alimentar os frutos. A primavera não é mais tão agradável nem o
outono tão fecundo. As pedreiras, como se estivessem cansadas, fornecem
menos pedras, e as minas de ouro e de prata já estão esgotadas. As terras
ficam incultas, os mares sem pilotos, os exércitos sem soldados. Há menos
inocência no tribunal, menos justiça entre os juizes, menos união entre os
amigos, menos indústria nas artes, menos disciplina nos costumes... Vemos
crianças que já são totalmente brancas. Seus cabelos caem antes de nascerem
e começam pela velhice em vez de terminar por ela. Assim, todas as coisas,
desde agora, se precipitam rumo à morte, sofrem do esgotamento geral deste
mundo1.
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O UM DOS TEMPOS
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2.
^ande t^arasiçâo
Asclépio
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os monges do Egito, de Cassiano, foram escritos em latim. Mas escrever em grego
significa também pensar em grego. Todos os textos em questão, redigidos com vistas
a um público cultivado que fala grego e latim, naturalmente transpuseram em sua
própria língua os ensinamentos, as palavras, a mentalidade particular dos homens
dos desertos do Egito. Ora, estes homens não eram nem gregos nem romanos, mas
egípcios: Antão, Pacômio, Macário o Antigo, Poimém, Pior, Serapião, Hor, Pafnúcio,
Onofre, Canúcio, Pisêntios, todos esses grandes nomes do cristianismo copta* eram
de raça egípcia, nascidos no Egito de pais egípcios (e mesmo pagãos, muitas vezes).
Não falavam nem grego nem latim, mas copta, forma demótica da língua egípcia
tradicional. Além disso, eram em sua maioria de origem camponesa, pertenciam
àquela classe dos felás que nunca teve qualquer contato (a não ser pelas revoltas
constantes) com os ocupantes gregos e romanos e que perpetuou por longo tempo as
tradições, os cultos, a mentalidade do Egito faraônico. É essencial estabelecer desde
já esta distinção, pois do contrário sujeitamo-nos a não captar em toda a sua
originalidade o fenômeno singular que foi o nascimento do mona-quismo no Egito.
Na sua gênese e no seu alcance, é um fenômeno puramente egípcio o ressurgimento
com outras formas de um passado e de uma cultura que se acreditavam mortos mas
que, de fato, nunca deixaram de existir nem de crescer, apesar dos séculos de
ocupação estrangeira.
& $r ifc
* Como o autor falará com insistência dos captas, parece-nos interessante traçar aqui
um rápido perfil deste povo. Os coptas são os cristãos do Egito e da Etiópia. São
atualmente os descendentes mais autênticos da população do Egito antigo, e sua
continuidade racial se deve à sua religião, que não admite casamentos mistos. Falam uma
língua da família camito-semltica que é a continuação do egípcio falado na época dos
faraós (os egípcios muçulmanos falam árabe). Esta língua se escreve num alfabeto próprio,
baseado no grego. O hierarca supremo da Igreja copta é o Patriarca, que vive no Cairo.
Celebram a liturgia de são Basílio. Do ponto de vista doutrinai, a Igreja copta está
desligada da igreja católica romana e das Igrejas ortodoxas por ter permanecido na
heresia do monofisismo. O termo copta provém de gyptus, alteração do nome grego do
Egito, Aegypíus. (N. do T.)
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PADRES DO DESERTO
tamanho descomunal de certos animais, os gregos reagiram com zombaria, escárnio
e esse espírito mordaz que os egípcios não apreciavam muito. Eles lhes retribuíram,
aliás, a gentileza e captamos, nesses jogos da linguagem, todas os abismos que
separam dois povos que estão lado a lado durante séculos sem se compreenderem.
Para os egípcios, os gregos eram gente turbulenta, superficial e pouco séria, um
povo irresponsável e infantil. Recordemos esta frase atribuída por Platão a um
sacerdote egípcio — frase cuja justeza permanece mais que nunca válida a trinta
séculos de distância e que poderia aplicar-se aos gregos de hoje: "Vós outros, gregos,
permanecereis sempre crianças. Quando é que os gregos se tornarão um povo
adulto?"
A presença romana no Egito foi menos sensível ainda que a dos gregos.
Roma tratou o Egito como uma terra à parte, um país cujos costumes, modos
de vida, deuses e o lugar excêntrico que ocupava nos confins do mundo o
diferenciavam das outras províncias do Império. Se os gregos se justapuseram
aos egípcios sem realmente misturar-se a eles, os romanos só fizeram ocupar o
Egito. Senão, vejamos um mapa do Egito romano. Que vemos aí? Cidades
gregas: Alexandria, Náucratis no' Delta, Arsínoe no Faium; depois, à medida
que subimos o Nilo, Afroditópolis, Oxirrinco, Hermópolis, Licópolis,
Ptolomaida, Coptas, Tebas, Siena. Algumas dessas cidades eram evi-
dentemente de origem egípcia, mas elas usaram durante muito tempo e com
mais freqüência seu nome grego. Uma única cidade tem um nome e uma
origem devidos a Roma: Antinoé, fundada por Adriano após a morte de seu
favorito, Antínoo. É que, de fato, a penetração romana não foi muito além do
Médio Egito. Nada de limes, faixa-fronteira como em tantos outros países do
Império, nada de fortifica-ções, de vias, de implantações duradouras. Antes
uma presença esporádica, nos limites do deserto hostil, que obrigou os
romanos a se servirem de dromedários; presença limitada a algumas
guarniçôes de militares, algumas dezenas de funcionários e cidadãos
confinados unicamente no Delta e nos burgos importantes. Roma ocupa
militarmente o Egito, mas não constrói nada ali, não funda nada, não
compreende nada. Contenta-se em reprimir as revoltas que estouram a todo
momento e, como diz com acerto um historiador do Egito romano, "em fazer o
país suar trigo e prata para alimentar os romanos".
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PADRES DO DESERTO
Dirão que estamos fazendo o jogo do mistério e do exotismo, mas isso seria
ignorar o papel singular que o Egito desempenhou para a cultura romana. Pois este
país — tão desconhecido e tão pouco apreciado pelos que o ocuparam — suscitou
uma verdadeira febre entre os romanos da Itália. Visto de Roma ou de Pompéia, o
Egito não é mais uma terra de trigo povoada de indígenas embrutecidos, mas o país
da sabedoria e do conhecimento, o reino das tradições ocultas e dos poderes
mágicos. Ele cristaliza, em torno de seus enigmas, seus símbolos indecifráveis, seus
monumentos misteriosos, toda uma carência de exotismo e de maravilhoso de que
as culturas antigas se ressentiam tanto quanto as nossas. Pode-se ver uma prova
disso na moda que fizeram os cultos egípcios (os de ísis, principalmente) a partir do
século I antes de nossa era. Toda uma aristocracia culta se entusiasma com ísis, seus
mistérios, seus sacerdotes, com esses cultos estranhos e até então desconhecidos, a
ponto de obrigar o imperador Tibério a suprimi-los, a mandar crucificar alguns
sacerdotes como exemplo e a deportar alguns milhares de fiéis de ísis para a
Sardenha. Tudo isso, junto com os relatos mais ou menos fantásticos trazidos pelos
viajantes (pois a moda então é a dos relatos de viagem fabulosos, onde tudo é
pitoresco e fácil, exotismo de bazar, prodígios e milagres, relatos que Luciano de
Samosata parodiará na sua História verdadeira1), acaba formando no espírito do
profano uma imagem convencional do Egito que se encontra nessas pinturas de
paisagens nilóticas que "causam furor" na mesma época nas casas de Roma e de
Pompéia. Templos e cabanas de juncos à beira do Nilo, barcos e barqueiros, íbis e
crocodilos se reproduzem ali ao infinito, tal como naqueles papéis pintados de nossa
infância onde, numa paisagem oriental estereotipada — deserto, camelos, mesquita
—, mulheres com véus apanhavam água à sombra das palmeiras. Os romanos, nos
primeiros séculos de nossa era, terão o seu Egito, tal como o século XVI teve as suas
índias ocidentais e o século XIX a sua Polinésia: terras paradisíacas onde se
cristalizam essa amargura inconsciente e essa nostalgia da inocência que afetam as
civilizações nas épocas de êxito material e de conquista.
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Uma questão que toca tão de perto a alma humana não pode ser resolvida com
base nos vestígios externos que os deuses e seus cultos sempre deixaram na terra,
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book. variantes — por Sozômeno, História
1. Este episódio foi descrito — com algumas
eclesiástica (VII, 15), e Sócrates, História eclesiástica (XI.29).
A GRANDE TRANSIÇÃO
sobretudo no Egito. De tal sorte que o único critério que permite dizer que um deus
acaba de morrer é ainda aquele fornecido por seus próprios fiéis, quando tomam
consciência de que ele morreu neles, de que deixaram de crer nele. Ora, tal fenômeno
se produziu no Egito, em Alexandria, na última década do século IV, no dia em que o
patriarca Teófilo foi autorizado a instalar uma igreja num templo de Dioniso.
Descobre ali estatuetas obscenas (ou melhor, que ele acha obscenas), as destrói e lança
seus pedaços à multidão dos cristãos. Os pagãos, furiosos, se revoltam, atacam os
cristãos e, tomados de pânico, correm a se trancar no Serapeu — o grande templo de
Serápis. Este templo era de uma magnificência excepcional, que já impressionara,
dois séculos antes, um cristão como Clemente de Alexandria. Mas nem a hora nem o
século se prestavam mais à admiração dos templos pagãos. Os cristãos, excitados por
Teófilo, sobem os cem degraus que levam à entrada do santuário, penetram no seu
interior e se detêm de chofre, tomados de assombro, de pavor, medo, diante da
imensa estátua do deus. A tal ponto que ninguém ousa atacá-la. Finalmente, a uma
ordem de Teófilo, um soldado se apodera de um machado, trepa a uma escada e
começa a golpear a cabeça do deus. O ídolo balança, desaba, a multidão lança um
grito de medo enquanto... uma enxurrada de ratos sai do buraco aberto na estátua!
Então, passado todo o medo, os cristãos arremetem contra o ídolo. Os próprios
pagãos estão consternados: não havia um oráculo muito antigo anunciando que o
mundo desmoronaria no dia em que Serápis fosse profanado? Serápis qucbrou-se e o
mundo não desmoronou. Os cristãos então arrastam os escombros à vontade por toda
a cidade e os queimam1. E cada um deve ter lido, então, na visão daquele colosso
arruinado de onde escapavam ratos, daquele deus esquartejado que era arrastado
pelas ruas, a imagem mesma do paganismo dilacerado, moribundo. O cristianismo
tinha conseguido no Egito — pela violência — aquilo que nem os persas, nem os
gregos, nem os romanos tinham podido fazer: suprimir as divindades seculares do
país e dar a ele um novo deus.
0 * tír
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A GRANDE TRANSIÇÃO
ramente dizem respeito ao meio que nos interessa aqui, o do camponês copta.
O que é certo é que tornar-se cristão, no século III, para um camponês do Egito
não significava apenas adotar uma religião nova; implicava também renunciar
mais ou menos à religião antiga, a imagens, a símbolos, a ritos ancestrais.
Entre este mais e este menos se situa todo o verdadeiro alcance do cristianismo
naquela época, e a necessidade que ele teve de se acomodar com este passado
prodigioso, de não romper com algumas de suas exigências, em suma, de dar
ao copta a impressão de que ele podia tornar-se cristão permanecendo egípcio1.
Vale dizer que os termos cristianismo e oistão tinham para um camponês
copta um sentido bem diferente do que tem para nós. De um extremo a outro
do orbis romanus, cada um dos países convertidos teve, aliás, com bastante
rapidez a sua própria visão de Cristo, a ponto de a história dos seis primeiros
séculos da Igreja ter sido uma luta constante contra as heresias, um esforço
perpétuo para impor a todos uma visão idêntica de Cristo. O peso do passado
se exerceu profundamente sobre a sensibilidade religiosa do Egito cristão, e e
evidente que haverá sempre, na maneira como um camponês copta era
cristão, algo de estranho à nossa própria experiência. A prova disso é que no
dia em que ele puder, com toda liberdade, escolher o seu cristianismo,
escolherá um cristianismo todo equivocado, herético: o monofisismo, que se
tornará, a partir do final do século V, a religião nacional do Egito2.
2. O monofisismo foi uma heresia que afirmava que o Pai e o Filho tinham
somente uma natureza — inteiramente divina — e, portanto, que a natureza humana de
Cristo não passava de uma aparência. Essa doutrina já havia sustentado certo número de
seitas dos séculos anteriores, bem como algumas seitas gnôsticas e também os marcionitas
e os docetistas. Na doutrina monofisita, Cristo só tem uma carne aparente e pode mudar à
vontade de forma e de aspecto. Para explicar a Crucifixão (já que seria impossível
crucificar um fantasma), os monofisitas admitiram que Cristo não foi realmente
crucificado, sendo substituído in extremis por Simão, o Cireneu. Essa heresia — devida a
um monge de Constantinopla chamado Êutico — se difundiu em todo o Oriente Médio e
ganhou o Egito, a Síria e a Armênia, onde subsistirá, apesar da condenação do concilio de
Calcedônia, em 4 5 1 .
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A GRANDE TRANSIÇÃO
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Segunda Parte
Material
Dito isto, uma vez bem admitida esta ganga fabuladora, esta intenção
edificante das Vidas dos santos, não se pode concluir, porém, que elas não
contenham nenhuma parte de história ou de verdade. Ninguém sonha em
negar a existência de Pitágoras ou dos sofistas gregos, ainda que sua vida,
escrita por Jâmblico e Eunápio, contenha mais de maravilhoso e de fantástico
que de real. Tudo leva a crer que Antão de falo existiu. É dito em sua Vida que
ele fez duas viagens a Alexandria, que tomou posição contra a heresia ariana, e
estes fatos puderam ser confirmados por outras fontes. Existiu seguramente,
no século IV, no deserto do Egito, um personagem chamado Antão, copta
iletrado mas dotado de grande sabedoria, que se consagrou a uma ascese
espetacular o bastante para impressionar seus contemporâneos e incitar um
bispo a escrever sua vida. Mas é certo que o personagem histórico tem pouca
relação com o da Vida de Antão. A parte de história que esta Vida contém,
temos de buscá-la contra o próprio texto, contra o autor às vezes, em tudo o
que lhe pôde escapar sobre os fatos, os lugares, as coisas que ele descreve. É
ali, nessa parte obscura, inconsciente da obra, que a história real de Antão (a
quem os sinaxános
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PADRES DO DESERTO
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PADRES DO DESERTO
que fugiam dos lugares habitados para escapar das corvéias, dos impostos, de
seus amos ou da justiça. Mas sua temporada no deserto era apenas passageira.
No caso de Antão, esta partida tomava um sentido bem diferente, pois o que o
atrai não é a realidade concreta, e sim a realidade simbólica do deserto.
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PADRES DO DESERTO
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PADRES DO DESERTO
serpentes "com rostos de centelha, fogo na face e fogo no olho", o senhor do
cetro, o que está no país, o falcão macho e o falcão fêmea. De cada lado da margem,
assistindo à passagem do cortejo divino, aparece uma multidão de criaturas:
numa das margens, estão todos aqueles que "criam o Oceano e fazem a
marcha do Nilo"; são, na ordem, três deuses, quatro mulheres, quatro múmias
chifrudas e aladas, quatro nobres, um objeto de aparência estranha
(provavelmente uma haste de papiro), mas que é na realidade um ser vivo, já
que se chama aquele que é cheio de magia, um homem ajoelhado chamado
aquele que traz o despertar, Anúbis, um carneiro chamado o matador de seus
inimigos, um carregador e uma carrcgadora de olhos, o deus-orictéropo* Set e
um cinocéfalo** (na mitologia egípcia, os cinocéfalos abrem e fecham as portas
do Reino dos Mortos). Na outra margem se erguem aqueles que cortam as
almas e apnsionam as sombras. Dtstinguem-se o deus Órion, um deus chamado
o Ocidental, uma deusa que está sobre a chama, cinco criaturas com cabeça de
pássaro carregando facas, mais oito Osíris e o deus-carneíro Khnum. E isso se
repete em cada uma das doze horas do Am-Duat! Além disso, só
mencionamos aqui os deuses e as criaturas mais aparentes, as que estão nas
margens do rio. Ao longe, nas trevas desse mundo estranho, o brilho do
deus-Sol ilumina de passagem, como um projetor varrendo a noite, criaturas
de pesadelo: mortos sepultados na areia, dos quais só a cabeça emerge,
serpentes montadas em patas tão altas quanto pernas-de-pau, o dragão Apófis
enroscado num penhasco que ele envolve com suas espirais, homens
estendidos na terra, decapitados ou manietados (os "inimigos" do Sol), outras,
enfim, que mal adivinhamos, sepultadas sob montículos de areia.
Essa imaginação funerária não era somente visual, mas sonora. Nesta ou
naquela hora do Am-Duat, os textos descrevem os ruídos múltiplos que
acompanham a passagem da barca divina: gritos de alegria dos mortos
enquanto o Sol atravessa sua "hora", gemidos e
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57
PADRES DO DESERTO
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59
PADRES DO DESERTO
ele apareceu fora daquele castelo àqueles que vinham até ele, e ficaram cheios de
assombro ao vê-lo num vigor maior do que jamais tivera. Não tinha nem
engordado pela ausência de exercício nem emagrecido por tantos jejuns e combates
sustentados contra os demônios. Tinha o mesmo rosto de antes, a mesma
tranqüilidade de espírito e o humor agradável. Não estava nem abatido de tristeza
nem numa excessiva alegria. Seu rosto não era nem demasiado jovial nem
demasiado severo. Não dava mostra nem de desagrado de se ver rodeado de
tamanha multidão nem de satisfação de ser saudado e reverenciado por tanta
gente. Era de uma perfeita igualdade de alma, num estado conforme à natureza.
Ele forma então seus primeiros discípulos, que decidem renunciar ao mundo
e se agrupar em torno dele. Desta época — que podemos situar aproximadamente
em 305 — data a fundação da primeira comunidade cristã no Egito. Ainda não é um
mosteiro, mas, no máximo, uma laura, um agrupamento de anacoretas, submetidos
a uma ascese e a um modo de vida relativamente livres. Esta primeira comunidade,
Antão a estabelecerá às margens do Nilo, não longe da fortaleza de Pispir, perto da
atual aldeia de Deir-el-Maimum.
A reputação de Antão, nesta data, já é enorme no Egito. Ela atinge todas
as camadas da população e não mais apenas um punhado de devotos e
admiradores. Uma multidão de pessoas aflui ao "mosteiro" de Pispir, deita-se
ao longo da entrada, na esperança de ver o asceta aparecer para lhes falar,
curá-las ou exorcizá-las. Já corre o boato de que basta se aproximar do
"mosteiro" de Antão para voltar de tá imediatamente curado. Mas Antão não
suporta nem a multidão, nem os milagres, nem a glória e decide partir de
novo para mais longe no deserto, "num lugar onde não fosse conhecido de
ninguém".
^ 0m
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PADRES DO DESERTO
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63
PADRES DO DESERTO
assava seu pão duas vezes por ano e fazia-o secar ao sol. Ninguém podia
entrar onde ele morava, mas ficava-se do lado de fora e ouvia -se sua palavra".
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PADRES DO DESERTO
"Viveu até a boa velhice sem que sua força diminuísse. Nenhum de seus
dentes caiu".
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PADRES DO DESERTO
Sinai, ainda que estivéssemos a mais de vinte léguas. O mar fica a oriente deste
mosteiro. Ás pontas do Sinai ficam a leste do mar. Avistamos algumas montanhas
do lado do ocidente com um pouco de mata, mas muito distante de lá, e todo o
conjunto do que podíamos vislumbrar era inteiramente árido e causticado.
É ali que Paulo de Tebas viverá durante cem anos. Cem anos de uma existência
quase milagrosa, ainda que são jerônimo, no que lhe diz respeito, ache tudo muito
natural:
A palmeira de que falei lhe fornecia tudo o que era necessário à sua alimentação e à
sua vestimenta, o que não deve ser visto como impossível, já que Jesus Cristo e seus
anjos são testemunhas de que, nesta parte do deserto que pertence às terras dos
sarracenos e se junta à Síria, tenho visto solitários dos quais um, recluso há trinta
anos numa caverna, só vivia de pão de cevada e de água lodosa, e um outro,
trancado numa velha cisterna, vivia de cinco figos por dia.
Paulo de Tebas viverá decerto com menos que isso. Levará nesta gruta
uma existência angélica que o universo teria ignorado se, pouco antes de sua
morte, Deus não tivesse avisado Antão da existência de Paulo. Antão tinha já
noventa anos, mas decidiu imediatamente pôr-se a caminho, à procura dele.
A partir deste episódio, a Vida de Paulo de Tebas torna-se uma espécie de
sonho acordado em pleno deserto.
Para começar, onde vive Paulo de Tebas? Antão não sabe e parte às
cegas. Mas às cegas, quando alguém se chama Antão e vive no deserto, quer
dizer o olho de Deus. A Providência guarda o caminho do asceta e nele coloca
estranhas balizas:
Ao despontar o dia, santo Antão começou a caminhar sem saber aonde ia e o sol,
chegado o meio-dia, já tinha escaldado o ar de tal sorte que parecia todo inflamado
quando ele viu uma criatura que tinha em parte o corpo de um cavalo e era como
aquelas que os poetas chamam Hípocentauros. Tão logo o vislumbrou, Antão ar-
mou sua fronte com o sinal salutar da cruz e lhe gritou: "Olá! Em que lugar da
terra mora aqui o servo de Deus?" O monstro, então, murmurando não sei o que de
bárbaro e entrecortando suas palavras mais do que proferindo-as distintamente,
esforçou-se por fazer sair uma voz doce de seus lábios eriçados de pêlos e,
estendendo a mão direita, lhe mostrou o caminho tão desejado. Depois, dissipou-se
diante dos olhos daquele a quem tinha enchido de espanto. Quanto
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PADRES DO DESERTO
A Vida de Pacômio chegou até nós num grande número de versões
escritas nos diferentes dialetos coptas: boháirico e menfitico (Delta e Baixo
Egito), akhmínico e sub-akhmínico (no Médio Egito) e sahídico (no Alto
Egito). Estas Vidas apresentam entre si certo número de variantes, mas todas
concordam no essencial: os principais episódios da infância de Pacômio e sua
regra são, em todas elas, os mesmos. Por eles, podemos reconstituir com bases
históricas bastante seguras a espantosa existência do primeiro dos monges.
Pacômio nasceu em 286 na aldeia de Esneh (atualmente Isna), no Alto
Egito, a uns cinqüenta quilômetros de Tebas. Ao contrário de Antão, teve uma
infância paga. Mas, como não se poderia admitir que um futuro santo
pudesse, mesmo inconscientemente, adorar os ídolos, sua Vida toma o
cuidado de assinalar que ele só os adorava na aparência. Vomitava a cada vez
o vinho dos sacrifícios, seu estômago se recusava a ingurgitar alimentos
oferecidos aos ídolos. Antão, aos vinte anos, teve a revelação de uma vida
consagrada a Deus. Em Pacômio, o fenômeno é invertido: ele é consagrado a
Deus sem ao menos saber disso. Inversão que se opera até nos detalhes mais
concretos: Antão ouvia o chamado de Jesus; Pacômio, ao penetrar num
templo pagão, aos oito anos de idade, não ouve voz alguma; ao contrário, são
os ídolos que param de falar ou de profetizar. A vocação de Pacômio é essa
voz paga que se cala em sua presença.
Em nada surpreso com tantos prodígios, Pacômio continua a crescer:
aos vinte anos, é alistado à força no exército romano e parte um belo dia para
a guarnição, em Antinoé. Lá, pela primeira vez, fica sabendo que existem no
mundo seres chamados cristãos, que se devotam voluntariamente aos outros
e se deixam martirizar, em vez de renegar sua fé. Tocado por sua
generosidade e sua gentileza, Pacômio os freqüenta assiduamente e decide,
nesta época, consagrar-se ao Deus dos cristãos.
Assim que foi dispensado, dois ou três anos mais tarde, ele regressou ao
sul e chegou um belo dia a Sheneset (em grego Khenobóskion),
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PADRES DO DESERTO
oração ali... Como se prolongasse na oração, uma voz lhe veio do céu e lhe disse:
"Pacômio, instala-te aqui e constrói tua morada. Uma multidão de homens virá a ti,
e isso lhes beneficiará a alma".
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PADRES DO DESERTO
de salvação, como uma sorte de ascese aníiartísüca na qual a recusa da beleza
teria o mesmo papel que a recusa do corpo na ascese física?
*m
Aliás, como regra geral, Pacômio não gostava dos jejuns demasiado freqüentes
ou exagerados. Num domínio em que é tão delicado traçar a fronteira entre o
orgulho e a humildade, o próprio fato de recusar um bocado de pão ganhava um
sentido equivocado: era por orgulho ou por ascese? E Pacômio chegou logo a exigir
que cada monge comesse em cada refeição "quatro ou cinco bocados de pão para evitar
a vaidade".
No trabalho, a ascese também era regulamentada. A cada monge cabia
trabalhar e fazer, além dos trabalhos de sua casa, uma esteira de juncos
trançados por dia, que ele depositava diante da porta de sua cela. Um dia, por
vaidade, um monge depositou duas. Diante disso, Pacômio trancou-o cinco
meses em sua cela, obrigando-o a fazer duas esteiras por dia.
Obviamente, essas reprimendas sobre a alimentação, o sono, o trabalho
eram só um meio destinado a facilitar a ascese mental do monge, permitir-lhe
dominar sobretudo o homem interior, "matar o homem mundano", segundo a
expressão de um anacoreta. A essas repreensões físicas correspondiam,
portanto, repreensões de outro gênero destinadas a matar a sensibilidade, as
reações afetivas, a individualidade do monge. Por exemplo, o riso era
formalmente proscrito e o silêncio era de regra durante a refeição, no trabalho
e ao longo de todo o dia. "Aprende a calar" era uma das regras essenciais das
comunidades pacomianas. Mas ninguém estava "ao abrigo da língua", de uma
palavra deslocada, de uma frase infeliz e que traía preocupações profanas. Um
dia, Teodoro, o principal discípulo de Pacômio, avistou um monge que
retornava de viagem. "De onde vens?", perguntou-lhe. Pacômio estava
presente. Disse a Teodoro: "Teodoro, apressa-te em controlar teu coração.
Habitua-te a nunca perguntar a alguém de onde vens? ou aonde vais?, a não ser
para saber aonde vai sua alma".
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Os ATLETAS DO EXÍLIO
95
1 . Anne Hadjinicolaou, Recherches sur la vie des esdaves dans le monde byzanún
(Institui Français d'Athènes), 1950.
99
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OS ATLETAS DO EXÍLIO
Vimos também no Egito muitos outros solitários. Que poderíamos dizer desses
homens admiráveis e dessa multidão infinita que estão nos arredores de Siena, na
Alta Tebaida, cuja virtude pode passar por incrível tanto ela se elevou acima da
condição dos homens? Pois ainda hoje eles ressuscitam os mortos e caminham sobre
as águas como são Pedro...
Havia um anacoreta cujo nome era Pafnúcio. Falava com os padres que amavam a
Deus e eis o que lhes disse: "Sou Pafnúcio e, um dia, concebi no coração o desejo de
ir às profundezas do deserto para ver se havia ali algum monge. Caminhei durante
quatro dias e quatro noites sem comer nem beber. No quarto dia, cheguei a uma
caverna e, antes de penetrar nela, bati à porta, segundo o costume dos irmãos, para
que o irmão saísse e eu o pudesse abraçar. Esperei. Bati à porta até o meio da noite:
ninguém respondeu".
Eu disse em meu coração: "Talvez não haja nenhum irmão neste lugar". Entrei na
caverna gritando: "Abençoa-me, meu pai!" Quando entrei, olhei ao meu redor: vi
um irmão sentado, guardando silêncio. Estendi a mão imediatamente, peguei seu
braço. Ele se esfarelou em minha mão. Apalpei todo o seu corpo e vi que ele
permanecera assim desde que morrera. Olhei ao meu redor, vi um manto. Quando o
apanhei, ele também se desfez em pó. Eu então
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OS ATLETAS DO EXÍLIO
Que eram, pois, esses desertos do Médio e do Alto Egito nos quais tantos
anacoretas se instalarão a panir do século IV? Extensões de pedra, onde só
brotavam algumas palmeiras e um pouco de grama, onde os pontos de água
eram raros; extensões entrecortadas de outeiros ou de colinas a cujos pés os
ascetas eclificarão cabanas com galhos, cavarão simples buracos para se
abrigarem do sol lá onde não existiam túmulos subterrâneos abandonados. Os
que se estabelecerão perto do Nilo viverão como trogloditas nos grandes
rochedos e escarpas que pendem sobre o rio, em grutas que o viajante pode
ver ainda hoje. Escreve Maillet, um viajante do século XVIII:
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Os ATLETAS DO EXÍLIO
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OS ATLETAS DO EXÍLIO
nove ou dez burgos cheios de pagãos onde os demônios eram adorados com
superstições ímpias e uma paixão estranha [trata-se decerto de um culto de
Díoniso-Osíris], pois tinham um templo de maravilhosas dimensões, no meio do
qual havia um ídolo que os sacerdotes — acompanhados de todo o povo —
apanhavam e levavam em torno destes burgos à maneira das bacantes e celebravam
cerimônias sacrílegas para obter a chuva do céu.
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113
PADRES DO DESERTO
ditou ver, conforme sua imaginação, restos de gigantes mumificados ou
grandes veleiros petrificados no fundo dos mares.
"Encontram-se ali", escreve Coppin, "pedaços de ossos humanos que
mudaram sua natureza para a das rochas. Eles nada têm de reconhecível além
da forma, mas a quantidade em que se encontram não deixa dúvidas de que
tenham sido ossos verdadeiros."
PADRES DO DESERTO
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117
PADRES DO DESERTO
os pecados dos outros. Eu os ponho à frente para só olhar para eles." E os anacoretas
mudaram de assunto.
m * #
Em meio àquelas celas, algumas não tinham qualquer abertura, salvo um buraco
para se escorregar dentro, pois se situavam no deserto interior, onde não se
admitiam visitantes. Era nessas que Macário morava durante a Quarentena. Eram
cavernas escuras situadas sob a terra, como tocas de hienas, e eram tão estreitas que
nem mesmo era possível estender os pés.
pequeno, muito fraco e muito delicado. Só tinha barba nos lábios e muito pouco no de
cima, pois suas extremas austeridades impediam que ela lhe crescesse no queixo.
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PADRES DO DESERTO
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PADRES DO DESERTO
inipondo-se privações excessivas, e tornar-se igualmente presa dos demônios.
Algumas regras ascéticas tornaram-se, portanto, necessárias. As regras — e
esse é seu papel — concretizam e tranqüilizam. Elas dizem ao asceta o que é
bom e o que é mau e, se ele as respeita, fica mais seguro, no seio desse
universo ambíguo por onde avança um pouco como um cego, de estar no
caminho certo, que leva aos anjos e ao céu.
da preocupação que dizia respeito a seu alimento e lho fornecia por sua
Providência. Quando, impelido pela fome, ele entrava em sua caverna,
encontrava sempre sobre a mesa um pão de um gosto
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PADRES DO DESERTO
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PADRES DO DESERTO
Um dia em que Macário estava em sua cela, olhou para a direita e viu. Eis que um
querubim de seis asas e olhos inumeráveis estava perto dele. E, quando apa
Macário começou a olhá-lo assim e a dizer: "Que é isso? Que é isso?", então, pelo
esplendor e pela claridade de sua glória, ele caiu sobre o rosto, o santo apa
Macário, e ficou como morto.
Na noite seguinte, eis que todo o lugar se tornou luminoso como à hora do
meio-dia nos dias de verão, e apa Macário soube que era o querubim que voltava
para ele. A princípio, aquela Virtude ficou algum tempo sem lhe falar, para que ele
não se amedrontasse...
Macário parte para Skete, descobre os lugares como os havia visto com o
querubim, avista uma colina onde cava uma gruta, apanha juncos para fazer
um leito, cava um poço para sua água e se instala. Mas alguma coisa o
atormenta nesse deserto. Os demônios, primeiramente, que, cada vez que ele
se põe a orar, vêm "para cima de sua caverna como uma multidão de
cavaleiros que fingem travar combates uns contra os outros", enquanto outros
"ficam perto da porta e fazem bolas de fogo que lançam dentro da caverna,
onde explodem" (não é uma admirável descrição demoníaca da tempestade no
deserto?). E, depois, seus discípulos o atormentam, seus discípulos que já
afluem até ele, aos quais
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PADRES DO DESERTO
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129
PADRES DO DESERTO
* **
Quem quer que tivesse, àquela época, seguido Paládio e Rufino em sua viagem
ao deserto de Skete teria encontrado ali, junto com eles, homens singulares. Uma
espécie de teatro inaudito é encenado naqueles ermos, um teatro em que cada um dá
a impressão de interpretar com minúcia, pontualidade, fervor, um papel eterno.
Mas aqui está, para variar, um anacoreta que é todo doçura. Doce
demais mesmo: passa seus dias e suas noites atravessando o deserto a chorar.
Por que chora? Por si mesmo, pelo mundo? Não, diz Paládio, ele "chora pelo
pecado original e pelas [altas dos primeiros homens". É Bessarião, o eremita
errante, aquele que "nunca entra em qualquer morada habitada". Dorme cm
pleno deserto, onde realiza milagres que fazem sonhar: detém o curso do sol,
ressuscita os mortos (por engano, aliás, pensando que são simples doentes,
pois, senão, ele não ousaria nunca ressuscitar um morto, por modéstia),
atravessa o Nilo caminhando sobre a água e "sente a água até o tornozelo, mas
logo abaixo ela é sólida". A única vez de sua vida em que entrou numa aldeia,
Bessarião viu tantos pobres que deu seu manto ao primeiro, a metade de sua
túnica ao segundo, a outra metade a um terceiro, e se viu no meio da praça da
aldeia,
onde ficou totalmente nu e teve que correr a sentar-se sob um pórtico, cruzando os
joelhos e cobrindo-se com as mãos, sem que lhe restasse outra coisa além do
Evangelho debaixo do braço!
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PADRES DO DESERTO
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O FIM DOS ÍDOLOS
Aqueles que alimentam e guardam os macacos têm constatado com espanto que
esses animais não se deixam enganar por imagens de cera e de barro, ainda que
revestidas de roupas de donzela. Sereis vós então piores que os macacos ao
testemunhardes respeito por estátuas de pedra ou de madeira?
E acrescenta:
Como foi possível divinizar assim estátuas, objetos insensíveis? Não consigo
compreendê-lo e lastimo a loucura desses infelizes que por aí se extraviaram. Certos
animais não têm todos os seus sentidos, como os vermes e as lagartas, outros são
cegos ou enfermos, como as toupeiras e os musaranhos. E, no entanto, esses animais
diminuídos valem mais que estátuas estúpidas. A ostra não tem nem visão, nem
audição, nem voz, mas ela vive, cresce, sofre as influências da lua. As estátuas,
essas, são impotentes, inertes, insensíveis.
Alguns desceram tão baixo em seus pensamentos e obscureceram de tal modo seu
espírito que inventaram seres que absolutamente não existem e que não vemos na
criação para fazer deles deuses. Misturam os seres racionais com os seres sem razão.
Põem junto naturezas dessemelhantes e as honram como divindades, como aqui
esses deuses com cabeça de cão, com cabeça de serpente ou de asno...
1 Pela razão muito simples de que Deus criou o homem a partir do barro, não pode haver
nenhuma ligação possível entre o domínio humano e o domínio animal aos olhos de um cristão
("eles juntam naturezas dessemelhantes"). Para os pagãos, ao contrário, nada separava
fundamentalmente o humano do animal. Concepção natural do homem — como ápice da evolução
animal — que se viu verificada no século XIX. Não se pode mais ficar chocado hoje em dia por ver
assim expressa a unidade orgânica das espécies vivas.
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O FIM DOS ÍDOLOS
pagãos não conseguem ver — nos valores do adversário — nada além de seus
aspectos mais externos, mais deformados, mais arbitrários.
"Quereis ver aqueles que rendem um culto aos ídolos?", escrevia Clemente de
Alexandria no seu Pedagogo.
m m&
2Em francês, o nome aparece grafado Chénouti, decerto adaptação da forma original copta, que
desconhecemos. Optamos pela forma latinizada Canúcio, única abonada em língua portuguesa,
que pudemos encontrar na Grande Enciclopédia Delta-Larousse, vol. 4, verbete "copta". (N. do T.)
147
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O FIM DOS ÍDOLOS
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141
PADRES DO DESERTO
se revelou — como ele mesmo confessa — um "manipulador" de visões e de milagres
tão hábil quanto um manipulador de porrete. Aliás, não podia fazer diferente:
nenhum monge, mesmo copta e mesmo discípulo de Canúcio, teria aceitado levar
porretadas durante anos sem ter ao menos a esperança de entrar um dia no Reino
dos Céus. O uso da violência e do porrete implicava a confiança no futuro e no além,
e Canúcio se encarregou de fazer com que os monges tivessem confiança. Um dia,
por exemplo, ele manda vir um camponês de uma aldeia distante, veste-o
suntuosamente, manda-o ler os Salmos em plena igreja e quando os monges,
extasiados, lhe perguntam: "Quem era esse desconhecido?", Canúcio responde: "Era
David em pessoa que veio ler seus Salmos!"
De outra feita, eis os monges acordados em plena noite pelo "chamado". Todos
acorrem à igreja: lá encontram três personagens de rosto encoberto que dão a volta
na igreja em silêncio antes de se perderem na noite. E Canúcio lhes explica: "Eram
são João Batista, Elias e Eliseu vindos do céu para ver como vós vivíeis!"
Em outra ocasião ainda, como um monge lhe perguntasse por que ele mandava
ler o Apocalipse todos os sábados à tarde, Canúcio respondeu: "Porque um anjo me
disse recentemente: 4No céu, nós lemos o Apocalipse todos os sábados à tarde!1"
Assim, toda a autoridade espiritual de Canúcio repousava no duplo uso
das visões e do porrete. O que não quer dizer que agisse como puro charlatão.
Evidentemente, ele recorre um pouco amiúde demais ao testemunho do Céu,
de Jesus Cristo e de seus anjos toda vez que se trata de punir ou espancar um
monge, mas é de se perguntar se, às vezes, ele próprio não acredita naquilo.
Quantas vezes, nos textos que relatam sua vida, não encontramos frases ou
parênteses como:
"Um dia em que Canúcio estava sentado numa pedra conversando com Jesus...",
ou então:
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143
PADRES DO DESERTO
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8.
ica^ mais perto
do céu
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159
cie santo Aleixo, o "homem de Deus", que parte de casa para viver no deserto, depois
regressa para a própria família e vive até a morte em sua casa, como um doméstico,
sem que nem a mãe nem a mulher o reconheçam.
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afligia seu corpo com austeridades extraordinárias. Pois não comia nem pão nem
outra coisa que se come com pão e vivia somente de farinhas, que punha para molhar
em água e deixava assim misturadas durante um mês, para que elas cheirassem mal
e tivessem gosto de podre.
ele soube que tinha obtido seu perdão não por alguma palavra que o santo lhe disse,
mas porque o ouviu remexer as mãos na sombra de sua cabana.
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FICAR MAIS PERTO DO CÉU
fica exposta aos olhos de todo o mundo, homens e mulheres, sem no entanto
olhar no rosto de ninguém nem deixar que ninguém veja o seu, pois seu
vestido a cobre totalmente. Sua voz é muito fraca e pouco distinta, nunca fala
sem derramar lágrimas, o que sei por experiência própria, pois, muitas vezes,
tendo pegado minha mão e levado a seus olhos, ela a molhava de tal sorte que
a mão ficava toda gotejante'.
e!e proibiu que seus olhos jamais contemplassem aquele campo nem
gozassem do prazer de considerar a beleza do céu e dos astros, c não lhe
permitiu estender o olhar para além de uma pequena trilha de um palmo de
largura que usava para dirigir-se a seu oratório. Viveu assim durante mais
de quarenta anos.
e/e cingiu seus rins com um cinturão de ferro, pôs um grosso colar no
pescoço e o prendeu àquela corrente com um outro pedaço de ferro, para se
obrigar a olhar sempre para a terra e se punir por ter outrora contemplado
aqueles lavradores!
1. Esse detalhe mostra, apesar de tudo, o caráter ambíguo da stasis exercida no meio
da multidão: ascese implacável ou exibicionismo?
181
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PADRES DO DESERTO
última coluna — sobre a qual morreu, em 459, aos setenta anos de idade —,
em Qala'at Semaan, tinha cerca de 25 metros de altura, "pois o desejo que
tinha de voar para o céu fazia com que se afastasse cada vez mais da terra".
que dela saía uma quantidade de vermes que caíam de seu corpo sobre seus pés, de
seus pés sobre a coluna, e da coluna no chão, onde um jovem chamado Antônio, que
o servia e que viu e escreveu tudo isso, recolhia por ordem dele os vermes caídos na
terra e lhos devolvia no alto, onde Simeão os recolocava na chaga dizendo: "Comei o
que Deus vos deu".
ficava exposto à vista de todo mundo, como um espetáculo tão novo e tão
maravilhoso que enchia todos os espíritos de espanto. Ora ele se abaixava para
adorar a Deus, ora permanecia de pé o mais longo tempo possível O número de suas
adorações era tamanho que muitos se divertiam em contá-las. Um desses que me
acompanhavam contou um dia até 1.244, depois do que se cansou de contar.
Simeão consegue tocar com sua testa os dedos dos pés, pois, visto que sô come uma
vez por semana, seu ventre é tão chato que não tem nenhuma dificuldade em se
curvar!
163
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9.
O ros\o de Satã
195
aconíeceu que nosso pai Pacômio foi arrebatado por ordem do Senhor para fazê-lo
contemplar os castigos e os tormentos pelos quais são torturados os filhos dos
homens. Foi arrebatado no corpo? Fora do corpo? Em todo caso. Deus sabe que ele foi
arrebatado.
199
m ^^
É muito difícil, nos dias de hoje, imaginar a força e a sinceridade com que os
anacoretas do Egito acreditavam no Diabo e nos demô-
205
3Parte "tenebrosa" que explica que o demônio apareça tào freqüentemente com os traços de um
"homenzinho negro", de um "pequeno etíope horroroso" saindo da cabeça ou do corpo do asceta.
Os etíopes — porque negros — foram freqüentemente considerados os receptãculos do demônio.
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A CARNE DOS ANJOS
eles vêm diante do defunto, na proporção de seus méritos. Para alguns defuntos, os
santos vão à frente deles até a Porta da vida e os abraçam. Para outros, eles vão à sua
frente numa distância proporcional a seus méritos. Para outros ainda, eles se
deixam aproximar antes de se levantar e de abraçá-los. Outros, enfim, não merecem
de modo algum ver os santos se levantarem por eles e abraçá-los.
m m#
Mas o paraíso pode às vezes descer à terra. A vida que levam os anacoretas no
deserto já é uma antecipação da vida celeste, e é natural que essa antecipação se
manifeste por alguns sinais. Nesse mundo, onde as ilusões são constantes, onde o
próprio demônio assume o aspecto de um anjo para melhor enganar os solitários,
compreende-se a importância de sinais precisos e seguros que indicam ao asceta que
ele está no caminho certo. Pois existe uma espécie de "tentação pelos anjos" tal como
existe uma tentação pelos demônios. Inúmeros são os textos que mencionam os
dissabores desse ou daquele anacoreta culpado de ter acreditado cedo demais que
havia atingido a hesychia, de ter se considerado, prematuramente, como um anjo:
U m dia o apa João disse a seu irmão mais velho que gostaria de ser como os anjos,
que não trabalham e têm apenas que louvar a Deus; assim, largou seu hábito e foi-se
para o deserto. Apôs ter passado ali uma semana, veio encontrar o irmão e bateu à
sua porta. "Quem ê?", perguntou o irmão. "É joâo", respondeu. "João tornou-se
um anjo", replicou o irmão, "não está mais entre os homens." Com isso, e como o
outro continuasse a bater, gritando que era João, ele o deixou passar toda a noite do
lado de fora sem lhe abrir. Enfim, quando chegou o dia, abriu a porta e lhe disse: "Se
és um anjo, por que precisas que alguém te abra a porta para entrar? E, se és um
homem, por que não trabalhas como os outros?"
217
tendo perdido o asno, retornou à laura muito triste e de cabeça baixa junto ao abade
Gerásimo. Esse pensou que o leão tinha comido o asno e lhe disse: "Onde está o
asno?" O outro, como um homem, permanecia silencioso e inclinava a cabeça. O
monge lhe disse: "Tu o comeste? Por Deus abençoado, o que o asno fazia, tu o farás
daqui em diante". E desde então, quando Gerásimo ordenava, o leão carregava a
albarda com seus quatro jarros de água.
Cada dia, durante cinco anos, o leão foi ao rio buscar água e, por essa razão,
decidiram chamá-lo Jordão. E depois, ao cabo de cinco anos, o abade Gerásimo
morreu e
partiu para o Senhor. O leão, naquele dia, por uma disposição de Deus, não estava
na laura. Retornou algum tempo depois e buscou o monge. Ao vê-lo. o discípulo do
monge lhe disse: "Jordão, nosso monge nos deixou órfãos. Partiu para o Senhor.
Mas vem aqui e come". Mas o leão não queria comer. Não parava de girar os olhos
para todos os lados para ver Gerásimo. soltando grandes gemidos. Vendo-o, os
outros Padres lhe acariciavam o dorso e lhe diziam: "Gerásimo partiu para o Senhor
c nos deixou". Mas Jordão redobrava seus gritos e seus queixumes e mostrava, com
sua voz, seu aspecto, seus olhos, a mágoa que sentia de não mais ver o monge.
Finalmente, o discípulo de Gerásimo levou-o ao lugar onde haviam enterrado o
monge. Fica a meia milha da igreja. O discípulo se ajoelhou sobre o túmulo e disse ao
leão: "Eis onde está nosso monge". Então, Jordão bateu violentamente a cabeça
contra a terra e. num grande rugido, morreu imediatamente sobre o túmulo do
monge.
225
229
U m discípulo veio um dia encontrar-se com Macário o Antigo. "Macário, que devo
fazer para salvar minha alma?" "Vai ao cemitério", diz Macário, "e insulta os
mortos." O discípulo vai ao cemitério, insulta os mortos e volta a encontrar-se com
Macário. "Que disseram os mortos?", pergunta Macário. "Nada", responde o
discípulo. "Volta ao cemitério e elogia os mortos." O discípulo volta ao cemitério,
elogia os mortos, volta a ver Macário. "Que disseram os mortos?", pergunta Macário.
"Nada", responde o discípulo. "Sé como os mortos", disse Macário, "não julgues
ninguém e aprende a calar-te."
239
Se aparecer a algum atleta do deserto uma luz ou uma figura ígnea, que ele evite
acolher semelhante visão. Não passa de uma ilusão manifesta enviada pelo
Inimigo..., pois, enquanto habitarmos esse corpo perecível, estaremos exilados longe
de Deus e não poderemos vê-Lo visivelmente nem a qualquer de Suas maravilhas
celestes,
escreve Diãdoco de Foticéia, autor místico do século V, num de seus Cem capítulos
gnósticos. A visão de Cristo e dos anjos tem que ser proscrita de toda experiência
ascética, pois "ela sô pode conduzir ã loucura e ao suicídio".
Em meio a todos os que renunciaram assim à visão de Cristo, há um,
citado por Teodoreto, que soube mostrar a que ponto a hesychia é justamente
"uma despreocupação com toda coisa, razoável ou não" e o quanto o hesicasta
"não se importa mais com seu próprio corpo".
Trata-se de são Salamão, um recluso instalado nas proximidades de um
burgo da Síria e que tinha adquirido tamanha reputação de santidade que,
ainda vivo, os moradores das aldeias mais próximas já disputavam seu corpo!
De fato, um dia,
os moradores do burgo onde ele nascera, tendo cruzado o rio à noite, perfuraram o
casebre onde ele vivia e o arrebataram sem que ele se dignasse nem a opor-se nem a
consentir naquilo. Levaram-no para seu burgo, construíram-lhe um alojamento
idêntico e o trancaram ali, enquanto o santo homem permanecia sempre no silêncio,
sem falar a quem quer que fosse.
Alguns dias depois, os moradores do burgo onde ele estava antes cruzaram por sua
vez o rio, quebraram o casebre e o trouxeram de volta à sua aldeia. E o santo não lhes
opôs a menor resistência, nem fez qualquer esforço para permanecer onde estava,
nenhum esforço para partir dali, de tal modo estava verdadeiramente morto para o
mundo!
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PADRES DO DESERTO
Mas essa atividade e esse esplendor literário se interromperão a partir do
século XIII, e os mosteiros do Wadi-an-Natrun conhecerão um verdadeiro
desmoronamento. Eram cinqüenta no século Y cem no século X, mas, quando
o historiador árabe Maqrisi os visitou, no século XV não contou mais de sete,
dos quais quatro permanecem hoje habitados por cerca de cento e cinqüenta
monges.
disse-me ele,
5Iconóstase: nas igrejas ortodoxas, a iconóstase é uma parede ornamentada de ícones que separa o
santuário, onde só os sacerdotes podem entrar, da nave, onde se reúnem os fiéis. No meio dessa
parede íicam as portas reais, que se abrem e fecham em momentos precisos da liturgia, e em cada
extremidade dela íicam portas menores, que permitem a entrada a saída do clero. (N. do T.)
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Luciano de Samósata (páginas 37, 60, 185 e 226): Luciano de Samósata é um autor
grego pagão do século II cuja obra, essencialmente constituída de Diálogos
satíricos e filosóficos, foi uma das mais importantes de seu tempo. Viajou por
todo o Império romano, até a Gália, antes de instalar-se e terminar seus dias no
Egito como alto funcionário. Seu espírito escarnecedor e racionalista não pou-
pou, com um humor notável e um estilo literário de primeira ordem, as
esquisitices, os excessos, as insuficiências e as imposturas das escolas filosóficas
e religiosas. O Philopseudes (mencionado e citado nas páginas 60 e 226) pode-se
traduzir por O amigo da mentira ou, mais livremente, por O mitômano. Nascido
na Síria romana, Luciano consagrou alguns de seus escritos a esse país, entre os
quais A deusa sitia (citado na página 185).
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PADRES DO DESERTO
cTAndilly). Rufino íoi antes de tudo um tradutor de grego em latim, sobretudo
de Origenes. (Ver também páginas 212, 227-228 e 233.)
Cassiano (páginas 101, 2 1 3 e 214), autor das Entrevistas com os Padres do Egito
(citadas também na tradução de Arnauld d'Andilly), é um autor de origem
gaulesa para quem a temporada no Egito não foi senão uma peregrinação às
fontes da anacorese e do monaquismo. Foi em Marselha que, ao regressar do
Oriente, ele fundou dois mosteiros. Nesta cidade, ainda hoje é venerado como
santo. Cito aqui, a título indicativo, um trecho de uma outra obra de Cassiano,
intitulada Instituição dos monges, escrita também com base em sua experiência
egípcia, e onde figura este curioso simbolismo da vestimenta no deserto: o cinto
representa o combate espiritual; a veste c só necessidade e, se for perdida,
ninguém deve recuperá-la; o capuz representa a inocência das crianças; a pele
de cabra, a modificação das paixões; o cajado é uma arma espiritual; andar
descalço significa avançar na via espiritual.
Sulpício Severo (páginas 109, 162 e 163) é um autor cristão do século V, nascido
na Aquitânia. Consagrou-se à solidão após a morte de sua mulher e
tornou-sc amigo de são Martinho de Tours, cuja Vida escreveu. Anexou a
esta Vida dois textos intitulados Diálogos e Virtudes dos solitários do
Oriente, donde são extraídos os trechos citados.
V I - O s atletas do exílio ( I I )
Vida copta de Macário o Antigo (páginas 130 e s. e 201). As citações são extraídas
desta Vida, escrita em copta por Serapião, discípulo de Macário, e traduzida
por Robert Amelineau. A maioria das traduções do copta de Robert Amelineau
foram publicadas e m duas coletâneas essenciais para o conhecimento do Egito
cristão: Monumentos para servir à história do Egito cristão e Memórias publicadas
pelos membros da missão arqueológica no Egito.
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FONTES E TEXTOS