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Campbell: O herói de mil faces

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil


faces. Tradução de Adail Ubirajara
Sobral. São Paulo: Pensamento/Cultrix,
1989.
O percurso padrão da aventura mitológica
do herói é uma magnificação da fórmula
representada nos rituais de
passagem: separação-iniciação-retorno que
podem ser considerados a unidade nuclear
do monomito. Um herói vindo do mundo
cotidiano se aventura numa região de
prodígios sobrenaturais; ali encontra
fabulosas forças e obtém uma vitória
decisiva; o herói retorna de sua misteriosa
aventura com o poder de trazer benefícios
aos seus semelhantes. Campbell, 1949.
A partida

Aos vinte e cinco anos o franzino Joseph


Campbell (1904—1987) era um recém-
graduado, bacharel e mestre com a
utilíssima titulação em artes liberais com
ênfase em literatura, na prestigiosa
Universidade Colúmbia. Parecia destinado
a uma vida pacata de um acadêmico
universitário, candidatando-se ao
doutorado. Porém, sentiu-se atraído em
combinar sânscrito, arte moderna e
literatura medieval para sua pesquisa
doutoral. Seu projeto de pesquisa acabou
rejeitado.
A iniciação

Desapontado pelas formalidades


universitária, Campbell refugiou-se em uma
cabana no meio das florestas dos montes
Apalaches, próximo a uma colônia de
artistas em Woodstock, NY. Por cinco anos
aderiu a um plano de leitura rigoroso,
tomando-lhe doze horas de seu dia. Aos
poucos, começou a notar um padrão nos
mitos em que lia.
Campbell fez um minucioso escrutínio de
mitos de todos os continentes. Fez uma
leitura comparativa sistemática dos mitos
como Frazer. Levou os mitos a sério como
Cassirer. Enxergou um padrão arquetípico
universal – inconsciente – conforme o
conceito de C. G. Jung. Adaptou a teoria
dos ritos de passagem de van Gennep.
Ainda na tradição da escola do mito e rito,
inspirou-se no grupo de classicistas
chamado de Cambridge Ritualists.
Emprestou o neologismo “monomito” de
James Joyce, o qual o usara em Finnegans
Wake.
O retorno

A confirmação de suas suspeitas veio


quando em 1931 fez uma pausa na sua vida
de ermitão e visitou o escritor John
Steinbeck na Califórnia. Lá conheceu o
biólogo marinho e filósofo Ed Ricketts
(1897-1948). Ricketts era uma figura tão
marcante que inspiraria um livro de
Steinbeck. Serviria também de modelo para
o arquétipo da jornada do herói de
Campbell. Desse modo, o autor chegou à
conclusão que os mitos heroicos partilham
uma estrutura básica a qual se referiu como
monomito.
Joseph Campbell passaria ainda alguns anos
na cabana até que, em paz com sua teoria
consolidada, aceitou um emprego no Sarah
Lawrence College, uma pequena faculdade
de artes liberais ao norte da Cidade de Nova
Iorque. Alguns anos mais tarde, publicaria o
livro O herói de mil faces que o tornaria um
famoso mitólogo e estudioso das religiões.
O resultado foi uma síntese de estudos
literários e mitológicos, antropologia,
filologia e psicologia. Seguem sua
narratologia a redação de romance best-
sellers, as histórias em quadrinhos de super-
heróis e os filmes hollywoodianos.
As fases da jornada do herói

Campbell delineou uma narrativa cíclica de


dezessete estágios pelos quais o herói –
como Osíris, Édipo, Prometeu, Teseu,
Ulisses, Buda, Moisés ou Jesus – deve
passar. O livro é um compilado dos mitos
mais famosos e presta como uma boa
introdução a eles. Campbell, como o
mitologista Frazer, escreve bem e teve uma
ampla repercussão. Sua obra seria traduzida
para várias línguas. Em suma, as fases
podem ser representadas no esboço a
seguir:
A partida
1. O chamado da aventura: alguma
coisa provoca o herói a sair de seu
mundo cotidiano.
2. A recusa do
chamado: inicialmente, há uma
hesitação ao chamado.
3. O auxílio sobrenatural: uma
intervenção sobrenatural compele o
herói a seguir seu destino.
4. A passagem pelo primeiro
limiar: o teste, portão ou início da
jornada separa o herói da sua vida
pretérita.
5. O ventre da baleia: a dificuldade
inicial quase aborta a jornada. É a saída
do mundo conhecido.
A iniciação
6. O caminho de provas: o herói
passa por muitas dificuldades que o
transforma.
7. O encontro com a deusa: uma
ajuda divina dá poderes e meios para
vencer a jornada.
8. A mulher como tentação: uma
tentação física ou psicológica (não
necessariamente uma mulher).
9. A sintonia com o pai: um ato
reconciliatório ou expiatório com o
arquétipo paterno.
10. A apoteose: iluminado e aceitando
seu destino, o herói prepara-se para o
clímax.
11. A bênção última: conquista o
objetivo de sua jornada.
O retorno
12. A recusa do retorno: uma vez
vitorioso, hesita.
13. A fuga mágica: Há risco de o herói
falhar, mas aparece um escape
extraordinário.
14. O resgate com auxílio
externo: recebe ajuda para voltar ao seu
mundo.
15. A passagem pelo limiar do
retorno: a saída do mundo
desconhecido.
16. Senhor dos dois mundos: o herói
domina agora o conhecido e o
desconhecido.
17. Liberdade para viver: com a
sabedoria e poderes adquiridos, goza a
vida ordinária com maior plenitude.
Crítica

Se George Lucas, Stanely Kubrick e a


Disney empregaram exaustivamente com
sucesso a fórmula narrativa do herói de
Campbell; os scripts de Hollywood também
exauriram o monomito. Consequentemente,
os filmes viraram enlatados. Há outros
temas e parâmetros heroicos no mundo
(inclusive com heroínas, dando um aspecto
diferente do mundo masculino do herói),
mas o clichê virou uma fórmula segura para
cair no gosto do público.
Outra análise comparativa é a do mitotipo
Rank-Raglan. Originalmente proposta pelo
psicanalista Otto Rank e refinada pelo
Barão Raglan, um aficionado pela
antropologia, essa tipificação descreve os
traços biográficos dos heróis. A diferença
com Rank, que restringe os feitos heroicos
ao início da vida, especialmente com o
nascimento extraordinário do herói,
Campbell foca na ruptura da vida ordinária
já na fase adulta do protagonista. Talvez
seja esse o motivo da popularidade do
esquema de Campbell: ele permite sonhar
em quebrar as convenções e se restabelecer
com algum ganho.

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