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Desencontros da modernidade

na América Latina
Literatura e política no século 19

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
R eitor Ronaldo Tadêu Pena
V ice -R eitora Heloisa Maria Murgel Starling

EDITORA UFMG
D iretor Wander Melo Miranda
V ice -D iretora Silvana Cóser

CONSELHO EDITORIAL
Wander Melo Miranda ( presidente )
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Juarez Rocha Guimarães
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Maria das Graças Santa Bárbara
Maria Helena Damasceno e Silva Megale
Paulo Sérgio Lacerda Beirão
Silvana Cóser

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J ulio R amos

Desencontros da modernidade
na América Latina
Literatura e política no século 19

Tradução
Rômulo Monte Alto

Belo Horizonte
Editora UFMG
2008

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© 2008, Julio Ramos
© 2008, da tradução brasileira, Editora UFMG
Título original: Desencuentros de la modernidad em América Latina. Literatura y
política em El siglo XIX

Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autori-
zação escrita do Editor.

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a g u a r d a n d o f i c h a c a t a l o g r á f i c a

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Elaborada pela Central de Controle de Qualidade da Catalogação da


Biblioteca Universitária da UFMG

Diretora da Coleção Heloisa Maria Murgel Starling


Editoração de textos Maria do Carmo Leite Ribeiro
Revisão de provas
Projeto gráfico Glória Campos - Mangá
Formatação e montagem de capa Cássio Ribeiro

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Av. Antônio Carlos, 6.627 - Ala direita da Biblioteca Central - Térreo
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Tel.: 55 (31) 3409-4650 Fax: 55 (31) 3409-4768
www.editora.ufmg.br editora@ufmg.br

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Sumário

Prefácio à edição brasileira 7

Prólogo 11

P rimeira P arte
1. Saber do outro: escrita e oralidade no Facundo
de Domingos Faustino Sarmiento 27
2. Saber dizer: língua e política em Andrés Bello 46
3. A fragmentação da República das Letras 62
4. Limites da autonomia: jornalismo e literatura 96
5. Decorar a cidade: crônica e experiência urbana 130

S egunda P arte
Introdução: Martí e a viagem aos Estados Unidos 168

6. Maquinações : literatura e tecnologia 177


7. Esta vida de papel e jornal: literatura e massa 202
8. Massa, cultura, latino-americanismo 231
9. “Nossa América”: arte do bom governo 261
10. O repouso dos heróis: poesia e guerra 276
11. Migratórias 288

Notas 299

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Prefácio à edição brasileira

A primeira edição de Desencuentros de la modernidad en


América Latina: literatura y política en el siglo XIX foi publicada
em 1989. Apareceu na coleção “Tierra Firme”, da editora Fondo
de Cultura Económica do México, uma das coleções básicas dos
estudos literários latino-americanos. O livro foi escrito em meados
da década de 1980 em Princeton, Nova Jersey, e revisado em
Atlanta, Geórgia. Em sua primeira versão tratava-se de uma tese,
dirigida por Silvia Molloy na Universidade de Princeton, em 1986.
O trabalho começou com uma leitura do fantástico conjunto de
crônicas da modernidade escritas por José Martí em Nova Iorque,
entre 1891 e 1893, reunidas postumamente sob o título de Escenas
norteamericanas. Esse trabalho inicial, orientado por Arcadio Díaz
Quiñones, foi posteriormente publicado por Angel Rama na revista
Escritura de Caracas, em 1981. A pesquisa mais ampla sobre os
discursos da modernidade no século 19, durante aqueles anos, foi
estimulada especialmente por minhas conversas com leitores do
calibre de Antonio Prieto, Josefina Ludmer, Angel Rama, Arcadio
Díaz Quiñones, María Elena Rodríguez Castro, Humberto Huergo,
Edgardo Moctezuma, Antonio Vera León, Oscar Montero ou
Ricardo Piglia, James Irby ou os próprios Molloy e Díaz Quiñonez,
que naquela época, e a partir de ângulos diferentes, elaboravam
uma genealogia crítica da instituição literária, ou seja, novos
modos de ler e de interrogar a significação e a legitimidade dos
fundamentos culturalistas e essencializantes do discurso latino-
americanista. De fato, tratava-se de um “questionamento radical”

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das próprias condições da leitura, por meio das muitas tentativas
iniciais de questionar os dispositivos retóricos e institucionais de
nossa disciplina: o campo dos estudos literários e seus relatos
históricos. Não é por acaso que o deslinde um tanto irônico
do arquivo e do entramado latino-americanista produzido em
Desencontros da modernidade parta da análise de uma forma
tão múltipla, e fugaz, como a crônica modernista. Parecia que a
natureza híbrida da crônica permitia registrar, em planos muitas
vezes estritamente formais, as contradições da autonomia literária
na América Latina. Também vale a pena relembrar que um dos
clássicos indiscutíveis do latino-americanismo, “Nuestra América”,
de José Martí, foi escrito e publicado em Nova Iorque em 1981,
onde a experiência cotidiana da modernidade lhe permitiu
antecipar algumas das grandes questões posteriores da discussão
sobre a “modernidade desigual” e a pós-modernidade; debates
e reposicionamentos críticos ocorridos justamente no final da
década de 1970, ao longo daqueles anos em que escrevemos
este livro.
Nossa inspiração (a minha e a de tantos outros) veio do
trabalho iconoclasta de escritores como Carlos Monsiváis, no
México, renovador da prática e do estudo da crônica naquele
país, bem como das reflexões de Edward W. Said sobre a for-
mação das disciplinas culturais e humanísticas, além dos intentos
de Gayatri Spivak de conjugar os rumos da desconstrução com
a urgência ético-política do pensamento pós-colonial; muitas
fontes de estímulo, quase tão decisivas como os múltiplos
“entre-lugares” do próprio latino-americanismo no qual fomos
educados.
Em sua generosa introdução à segunda edição do livro,
publicada no Chile alguns anos atrás, Nelly Richard sugere que ao
parecer um dos “entre-lugares” dos Desencontros continua sendo
essencial: o reconhecimento de que a crítica é um trabalho da
língua e que seu compromisso final talvez não seja tanto com o
horizonte do possível, constatado pela sociologia e pelos estudos
culturais, mas com os gestos de interpretação, da imaginação e
da criatividade política. Ou seja, o compromisso inconteste com o
que ainda não é categoria apropriável pelos sistemas disciplinares,
e menos ainda pela circunspeção ilusória e impressionista do
possível. Paradoxalmente, a pesquisa histórica tem muito a ver

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com isso, tão recortada como está a história pelo fracasso dos
sonhos nacionais, especialmente dos pesadelos estatais, como
comprovam as grandes histórias contemporâneas do nosso
arquivo (ou a obra generosa de Tulio Halperin Donghi).
Este livro está sendo publicado graças à recomendação de
Florencia Garramuño e de Silviano Santiago. Agradeço a inicia-
tiva de Wander Melo Miranda, diretor da Editora UFMG, cuja
gestão latino-americanista em Belo Horizonte registra uma nova
etapa na história de nosso campo, renovado agora precisamente
por algumas das novas poéticas elaboradas na extensa coleção
que dirige em Minas Gerais. É para mim uma alegria imensa,
e também uma honra, que Desencontros seja publicado entre
outros títulos de autores como Antonio Cornejo Polar, Nelly
Richard, Josefina Ludmer, Silviano Santiago, George Yudice,
Willie Thayer, Idelber Avelar e outros cujo trabalho admiro.
Agradeço a cuidadosa tradução de Rômulo Monte Alto, que
foi capaz de melhorar o original, comprovando parcialmente a
validade de uma das hipóteses de Benjamin sobre a tradução
como suplemento de criatividade. No caso particular do trabalho
da tradução de Desencontros para o português, como o seu
traslado não pretende universalizar nada (no sentido estipulado
por Benjamin em “A tarefa-renúncia do tradutor”), pelo menos
servirá para reconstruir e situar o texto na bela língua de alguns
de meus amigos mais queridos.

Julio Ramos
Berkeley, 30 de junho de 2008

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PRÓLOGO

Já que se trata de um prólogo, queremos começar recordando


um menos conhecido clássico de José Martí, o Prólogo ao Poema
del Niágara, do poeta venezuelano Juan Antonio Pérez Bonalde.
Escrito sobre uma obra alheia, esse Prólogo, relativamente
desconhecido, parecia ser um texto menor. No entanto, configura
uma das primeiras reflexões latino-americanas sobre a relação
problemática entre a literatura e o poder na modernidade. De
que outro modo poderia ser – senão menor e fragmentada – uma
reflexão sobre o fluxo, sobre a temporalidade que para o próprio
Martí distingue a vida moderna?
Publicado com o pouco relembrado poema de Pérez Bonalde,
que se encontrava, como Martí, exilado em Nova Iorque, esse
texto de 1882 é bastante diferente das reflexões críticas sobre
a literatura produzidas anteriormente pelos intelectuais latino-
americanos. Em contraste com as explicações retóricas ou gra-
maticais de Bello, por exemplo, o Prólogo martiano não procura
submeter a particularidade do texto às normas preestabelecidas
de um código inquestionável, seja este retórico, gramatical ou
ideológico. Pelo contrário, a leitura de Martí é uma reflexão
profunda sobre a impossibilidade e o descrédito daquele tipo
de conceito literário. Mais que um comentário sobre o poema
de Pérez Bonalde, o Prólogo é uma reflexão sobre os problemas
da produção e interpretação de textos literários numa sociedade
instável, propensa à flutuação dos valores que até então tinham
garantido, ente outras coisas, o sentido e a autoridade social da

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escrita. O texto martiano é, além disso, uma meditação sobre
o lugar impreciso da literatura num mundo orientado para a
produtividade, dominado pelos discursos da modernização e do
progresso:

Não existe obra permanente, já que as obras dos tempos


de reordenamento e remodelagem são essências mutáveis e
inquietas; não existem caminhos constantes, vislumbram-se
apenas os novos altares, grandes e abertos como bosques. Por
todos os lados, a mente é confrontada com idéias diversas, e as
idéias são como pólipos, como a luz das estrelas, como as ondas
do mar. Deseja-se constantemente saber algo que confirme, ou
se teme saber algo que mude as crenças atuais. A elaboração
do novo estado social torna insegura a batalha pela existência
pessoal e mais difíceis de cumprir os deveres diários que, não
achando as vias abertas, mudam a cada instante de forma e
caminho, assaltados pelo susto que produz a probabilidade ou
vizinhança da miséria. Dessa maneira, dividido o espírito em
amores contraditórios e intranqüilos; alarmado, a cada instante, o
conceito literário por um novo evangelho; desprestigiadas e nuas
as imagens que antes eram reverenciadas; ainda desconhecidas
as imagens futuras, não parece possível, neste desconcerto da
mente, nesta agitada vida sem caminho fixo, caráter definido ou
termo seguro, neste medo acerbo das pobrezas da casa, e no
trabalho variado e medroso que temos para evitá-las, produzir
aquelas longas e pacientes obras, aquelas extensas histórias em
verso, aquelas imitações dos povos latinos (...)

Seria possível continuar a escrever (e ler) nesse novo mundo?


Que instituições assegurariam o valor e o sentido do discurso
literário na nova sociedade? O escritor se entregaria ao fluxo, à
mobilidade que parecia ser, para Martí, a única lei estável no
mundo moderno?
A proliferação dos prólogos que, além de Martí, foram pro-
duzidos de maneira ansiosa e obsessiva por muitos de seus
contemporâneos, especialmente os poetas, registra a dissolução
dos códigos que, até então, tinham garantido o lugar para-
digmático da escrita no tecido da comunicação social. Bem
distante do que seria hoje a literatura para nós – uma atividade
relativamente especializada, diferenciada de outras práticas
discursivas e da língua comum –, a nostalgia que aparece no
Prólogo de Martí responde à crise de um sistema cultural em que

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a literatura das letras, mais exatamente, tinha ocupado um lugar
central na organização das novas sociedades latino-americanas.
A literatura – modelo, inclusive, do ideal de uma língua nacio-
nal, racionalmente homogeneizada – tinha sido o lugar (fictício,
talvez) onde se projetavam os modelos de comportamento, as
formas necessárias para a invenção da cidadania, os limites e as
fronteiras simbólicas, o mapa imaginário, enfim, dos Estados em
vias de consolidação.
Os abundantes prólogos finisseculares, por outro lado, quase
sempre marcados pela nostalgia correspondente ao que Darío
chamava de a “perda do reino”, revelam a crise do sistema cul-
tural anterior. Porém, ao mesmo tempo, por essa mesma ótica,
também confirmam a proliferação de um novo discurso sobre
a literatura que projeta, no mínimo, o desejo dos escritores de
precisar os limites de uma autoridade, um lugar de enunciação
especificamente literário, que diferencie o lugar e papel da litera-
tura que emergia das ficções estatais anteriores. Nesses prólogos,
aparece especialmente problematizada a relação entre a literatura
e o Estado, não apenas como um resultado da modernidade,
mas como a condição que torna possível a autonomização e a
modernização literárias.
No Prólogo, Martí reflete sobre vários aspectos fundamentais
da crise moderna. Com reiterada ênfase, assinala que a nova
organização social dificultava a sobrevivência dos poetas, num
mundo “onde não existe mais arte que o abarrotar a dispensa da
casa (...)”, onde as instituições que, até então, tinham assegurado
o peso social da escrita (a Igreja e o Estado) retiravam suas enco-
mendas dos escritores. Martí insiste também na desautorização
geral dos códigos retóricos e religiosos, no “desprestígio” das
linguagens da tradição, que produzia um “não saber”, um “não
ter caminhos constantes”, desembocando num “esgotamento
das fontes e no turvamento dos deuses”. A crise, concomitante
com o que M. Weber chamava de o “desencanto do mundo”,
no processo de racionalização e secularização, tinha para Martí
efeitos relacionados diretamente com a ineficácia das formas e o
desgaste dos modos tradicionais de representação literária.
O Prólogo, cuja forma revela uma notável intensificação ver-
bal, uma poetização da prosa, muito distante das normas retó-
ricas da época, está organizado em torno de uma metáfora que

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representa o escritor como um guerreiro solitário, sem exército
e nem respaldo. A metáfora se relaciona no texto com a disso-
lução das dimensões épicas, coletivas, da literatura. Desarticuladas
as estruturas de um espaço público relativamente orgânico (que
as letras tinham contribuído para organizar), a prática literária se
privatiza, produzindo para o poeta – e para a literatura – o que
Martí chama de “nostalgia da façanha”. Martí, certamente, nunca
assumiu a privatização da arte como bandeira; pelo contrário,
identificava a privatização com um exílio da polis que sempre
tentaria superar, inventando, insistentemente, novos agencia-
mentos e reterritorializações (assim será lida, por exemplo, a
afiliação latino-americanista de seu discurso). Não obstante, Martí
reconhece na privatização uma das pressões que redefiniam as
próprias formas da literatura, e principalmente, do lugar dos
escritores e sua autoridade perante as outras instituições e prá-
ticas discursivas.
Essas transformações redefiniam as posições possíveis do
escritor perante a lei, outra palavra-chave no Prólogo. No sistema
anterior a Martí, segundo veremos ao ler Sarmiento e Bello, a
formalização da lei tinha sido uma das tarefas centrais dos
intelectuais patrícios, dominados, como recorda Cláudio Véliz
e especialmente Ángel Rama, pelo modelo renascentista do
“letrado”. Por outro lado, o Prólogo projeta a literatura como um
discurso crítico dos códigos e da própria lei. A lei – o discurso
do poder – se relaciona ali com os “legados e ordenanças [dos]
que tinham vindo antes”, ou seja, com o peso de uma tradição
repressiva que dificulta tanto a “liberdade política”, quanto a
“liberdade espiritual”. Para Martí, o poeta é o desterrado da lei
e sua literatura, o “clamor desesperado do filho de um grande
pai desconhecido, perguntando a sua mãe muda [a natureza] o
segredo de seu nascimento”. Filho natural, como o Ismael que
dá nome ao seu primeiro livro de poesia (também em 1882),
o escritor é um deslocado da instituição paterna, um exilado
da polis.
A reflexão martiana no Prólogo não pode ser lida como um
documento passivo, como um testemunho transparente da crise.
Mais do que um reflexo da crise, encontramos ali – num estilo
sem precedentes na história da escritura latino-americana – a
elaboração de novas estratégias de legitimação. Pelo reverso da

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aparente condenação ao silêncio a que parecia estar destinada a
literatura, no Prólogo adquire espessura a voz (nada silenciosa)
daquele que enuncia a crise; voz que registra a especificidade de
um olhar, de uma autoridade literária – cristalizada principalmente
no “estilo” – que não existia antes, digamos, da “crise”. A literatura
moderna se constitui e prolifera, paradoxalmente, anunciando sua
morte e denunciando a crise da modernidade. Nesse sentido, os
prólogos da época, somente em aparência menores, cumpriram
uma função central no emergente campo literário: não apenas
diferenciavam os novos escritores dos letrados precedentes, mas
também configuraram uma espécie de metadiscurso, um mapa no
qual a emergente literatura ia refazendo e traçando os limites de
seu território. Se em cada prólogo se transformava e se reescrevia
o novo conceito literário é porque na modernidade tampouco
esses metadiscursos assumem a função de códigos normativos
ou prescritivos. Os prólogos dos escritores finisseculares são
pequenas ficções, atentas à conjuntura e às exigências do
momento, mapas parciais nos quais os escritores, dissolvido o
Código, tentam delimitar, provisoriamente, sua autoridade e seu
lugar na sociedade.
Por outro lado, isto não significa que Martí e seus contemporâ-
neos tenham assumido o “desgaste” dos códigos e o caráter pro-
visional dos valores como um traço de seu próprio discurso. Pelo
contrário, frente ao fluxo e a instabilidade, em Martí a literatura
se autoriza como um intento de superar esteticamente a incerteza
e o “não saber”, produzidos pela fragmentação moderna. Martí
não se entrega aos fluxos; propõe a literatura como um modo de
contê-los e superá-los. Postula, ante os saberes formais privile-
giados pela racionalização moderna, a superioridade do “saber”
alternativo da arte, ainda capaz de projetar a harmonia futura. Para
Martí, a autoridade da literatura moderna radica precisamente na
“resistência” que oferece aos fluxos da modernização.
Em que consiste o “saber alternativo” da literatura? Que eco-
nomia do sentido, que sistema de valores recorta os limites de
sua autoridade? Quais são os outros tipos de discursos que cons-
tituem as fronteiras, os exteriores do emergente campo literário?
Digamos, brevemente, de momento, que para Martí a literatura
coloca seu olhar precisamente “ali, no que não se sabe”. Sua
economia será, por momentos, um modo de outorgar valores a

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materiais – palavras, posições, experiências – “desvalorizados”
pelas economias utilitárias da racionalização. Se para os letrados
iluministas a escrita era uma espécie de máquina que pretendia
transformar o “caos” da natureza “bárbara” em “valor”, no “sen-
tido” subordinado aos dispositivos da lei, para Martí a literatura
se define como crítica dessa região dominante do projeto moder-
nizador. A literatura desliza sua mirada para a turbulência, para
a irregularidade, contra as “redenções (...) teóricas e formais”
privilegiadas pelo sonho modernizador: “uma tempestade é mais
bela que uma locomotiva”. Ali onde se detém o curso da má-
quina iluminista cobra corpo a nova autoridade literária. Contra
o “bisturi do dissecador” – do positivismo oficial da época –
Martí propõe a prioridade de um saber baseado na “ciência que
colocou em mim o olhar ingênuo das crianças”. Trata-se, enfim,
de um olhar “originário”, o único capaz, argumentaria Martí em
“Nuestra América” (1891), de representar e conhecer o mundo
“primigênio” americano, ameaçado pelos efeitos das contradições
da modernização.
No entanto, também não seria necessário idealizar tal de-
manda de marginalidade da literatura, frente aos discursos estatais
da modernidade e do progresso, pois apesar de crítico desses
discursos, em sua conjuntura, o novo conceito literário também
implica estratégias de legitimação, que contribuiriam posterior-
mente para consolidar a relativa institucionalidade da literatura,
particularmente à raiz do impacto pedagógico de Ariel (1900) e
dos discursos culturalistas nas primeiras décadas do século 20.
Conforme veremos, nessa época a “marginalidade” da literatura,
sua crítica às vezes abstrata e essencialista da modernidade e do
capitalismo (estrangeiro) garantiria uma reconhecida autoridade
social, atraente, inclusive, para certas regiões das classes diri-
gentes latino-americanas, ameaçadas por uma modernização que
implicava sua dependência política e econômica.

  

A crise, o “desmembramento” sobre o qual reflete Martí no Pró-


logo está relacionada com o que vários críticos latino-americanos
chamaram de “divisão do trabalho intelectual”, considerando-a

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como um dos processos distintivos das sociedades finisseculares.
É conveniente delimitar o campo de alguns conceitos críticos
que, até certo ponto, conformaram nossa genealogia do discurso
literário no século 19. Das leituras lúcidas de Pedro Henríquez
Ureña, até os trabalhos mais recentes de Ángel Rama, Rafael
Gutiérrez Girardot, José Emilio Pacheco, Noé Jitrik e outros,
o conceito da “divisão do trabalho” procura explicar a emer-
gência da literatura moderna latino-americana como efeito da
modernização social da época, da urbanização, da incorporação
dos mercados latino-americanos à economia mundial, e princi-
palmente, como conseqüência da implementação de um novo
regime de especialidades, que retirava dos letrados a tradicional
tarefa de administrar os Estados e obrigava os escritores a se
profissionalizar. Nesse sentido, tinha razão Gutiérrez Girardot,
em seu valioso ensaio “Modernismo”, ao explorar as sugestões
de Federico de Onís e de Rama, e procurar fazer “a inserção do
Modernismo no contexto histórico-social e cultural europeu”, ou
seja, no contexto da “Modernidade”. Não obstante, sua leitura
pressupõe um novo risco. Na Europa, a modernização literária, o
processo de “autonomização” da arte e a profissionalização dos
escritores podiam ser processos sociais primários, definidores
daquelas sociedades no umbral do capitalismo avançado. Na
América Latina, em câmbio, a modernização, em todos os seus
aspectos, foi – e continua sendo – um fenômeno muito desigual.
Nestas sociedades, a literatura moderna (para não falar do próprio
Estado) não contou com as bases institucionais que poderiam ter
garantido sua autonomia. Como falar, nesse sentido, de literatura
“moderna”, de autonomia e especialização na América Latina?
Quais são os efeitos da modernização dependente e desigual
no campo literário? Ou seria o caso de que, apesar do subde-
senvolvimento e da dependência, como sugeriu Paz, a literatura
se torna um espaço de exceção, onde a cultura seria capaz de
projetar uma modernidade compensatória das desigualdades do
desenvolvimento das outras instituições sociais?
Em resposta a essa problemática, nossa leitura propõe articular
um duplo movimento: por um lado, a exploração da literatura
como um discurso que busca sua autonomia, ou seja, delimitar
seu campo de autoridade social; e por outro, analisar as con-
dições de “impossibilidade” de sua institucionalização. Dito de

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outro modo, buscaremos explorar a “modernização desigual” da
literatura latino-americana no período de seu aparecimento.
Não se trata, certamente, de uma análise estritamente socioló-
gica. Ainda que o conceito de literatura como instituição – como
campo encarregado da produção de certas normas discursivas
com relativa especificidade social – seja uma das matrizes teóricas
de nossa análise, interessa investigar a “autoridade” problemática
do discurso literário e os efeitos de sua modernização desigual
na própria superfície de suas formas, mais do que estudar as
“questões” ou os “conteúdos” ideológicos. A análise das aporias
irredutíveis com as quais a autonomização literária se enfrenta até
hoje talvez pudesse contribuir para explicar a “heterogeneidade”
formal da literatura latino-americana, ou seja, essa proliferação,
em seu campo, de formas híbridas que desbordam as categorias
genéricas e funcionais canonizadas pela instituição em outros
contextos.
Daí que, entre outras coisas, ao nos aproximarmos dos pri-
meiros impulsos de autonomização, no fim do século e no
modernismo, evitaremos a entrada principal ao “interior” literário;
buscaremos proceder lateralmente, lendo formas, como a crônica,
onde a literatura representa, no interior dos jornais, às vezes
com certa ansiedade, seu encontro e sua luta com os discursos
tecnologizados e massificados da modernidade. Buscaremos
ler a heterogeneidade formal da crônica como a representação
das contradições que conformam a autoridade literária em sua
proposta – sempre frustrada – de “purificar” e homogeneizar o
próprio território, frente às pressões e interpelações de outros
discursos que limitavam sua virtual autonomia. Não leremos a crô-
nica modernista (Darío, Gómez Carrillo, Casal, Gutiérrez Nájera, e
particularmente, Martí) como uma forma meramente suplementar
da poesia, nem como um simples modus vivendi dos escritores,
pois nos parece que a heterogeneidade da crônica, a mistura
e choque de discursos no tecido de sua forma, projeta um dos
traços distintivos da instituição literária latino-americana.
O conceito de modernização desigual nos permitirá situar frente
a algumas discussões atuais sobre a relação literatura/política no
século 19. A autonomização da arte e da literatura na Europa,
segundo assinala Peter Bürger, é corolário da racionalização das
funções políticas, no território relativamente autônomo do Estado.

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Ou seja, a institucionalização da arte e da literatura pressupõe
sua separação da esfera pública, já que a Europa do século 19
havia desenvolvido seus próprios intelectuais orgânicos, seus
próprios aparatos administrativos e discursivos. Na América Latina,
os obstáculos enfrentados pela institucionalização produzem,
paradoxalmente, um campo literário cuja autoridade política não
cessa, ainda hoje, de se manifestar. Daí a literatura, desigualmente
moderna, operar freqüentemente como um discurso encarregado
de propor soluções a enigmas que extravasam os limites
convencionais do campo literário institucional.
Isto significa que a literatura continuaria exercendo tarefas
estatais no final do século, assim como os impulsos da autono-
mização literária seriam apenas “máscaras” de um sistema tradi-
cional? Se Martí não era um “letrado”, se seu discurso não estava
reconhecido pela lei, pelo político-estatal, em que se diferencia
a intervenção política de sua escrita da autoridade das gerações
anteriores? Perguntas como estas nos levam a explorar, nos pri-
meiros capítulos deste livro, os papéis da escrita no processo de
organização dos Estados nacionais, antes do último quarto de
século. Conforme veremos na leitura do Facundo, nas políticas
da língua em Bello e na análise seletiva do lugar das “letras”
na educação e no jornalismo, a escrita provia um modelo, um
depósito de formas, para a organização das novas nações; sua
relativa formalidade era um dos paradigmas privilegiados do
sonho modernizador, que projetava a submissão da “barbárie” à
ordem dos discursos, da cidadania, do mercado, do Estado mo-
derno. Essas leituras iniciais nos permitiriam especificar, a seguir,
as transformações que possibilitam a emergência da literatura
finissecular que, inclusive no caso da intervenção pública – no
jornalismo, por exemplo –, articula uns dispositivos de trabalho e
autorização, uma relação com a língua e outras práticas discursivas,
que nos parecem irredutíveis às normas da comunicabilidade
letrada tradicional.
Assim como a exploração da hibridez da crônica possa parecer
uma aproximação um tanto lacônica ao desejo de autonomia
literária, é paradoxal que à primeira vista Martí se constitua
no propulsor de nossa reflexão sobre o desprendimento da
literatura da esfera púbica ou estatal. Sem dúvida alguma, ele foi
um escritor político. Para muitos, sua “vida e obra” cristalizam

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a integridade, a síntese de imperativos ético-políticos com
exigências propriamente literárias. Na história de suas leituras e
canonização, Martí normalmente figura como um sujeito orgânico,
como uma “estátua de granito” – nas palavras de Enrique José
Varona – que consegue condensar a fragmentação moderna. Sua
politização parece tornar possível um discurso inseparável da
vida, uma literatura orientada pela ação, uma estética controlada
por requisitos éticos e, principalmente, uma autoridade definida
pelas exigências da vida pública.
Nesse sentido, Martí se torna “figura” de uma heroicidade
plenamente moderna, uma vez que parece superar, mediante
a vontade heróica, uma série de contradições que os letrados
das gerações precedentes não tiveram que enfrentar. Martí é um
“herói” moderno exatamente porque seu intento de sintetizar
papéis e funções discursivas pressupõe as antíteses produzidas
pela divisão do trabalho e pela fragmentação da esfera vital,
relativamente integrada, em que havia operado a escrita dos
letrados. Nele, a tensão entre o discurso literário e outras
regiões do tecido da comunicação social é o referente negado,
ou “superado”, pela vontade heróica. A própria insistência com
que se buscou distanciar da tendência à autonomização literária
que, até certo ponto, determina os projetos modernistas, é por
certo um bom índice de que em Martí, em contraste com os
letrados, a “escrita” já começava a ocupar um lugar diferenciado
da vida pública, um lugar de enunciação “fora” do Estado, além
de crítica dos discursos dominantes do político-estatal. Sua
intensa politização, sua tentativa de se converter em um “poeta
de atos”, de levar a palavra ao centro da vida coletiva, foi um
intento de responder, às vezes exacerbadamente, ao que ele
considerava a alienação do poeta na modernidade, seu exílio da
polis e seu distanciamento, inclusive, da língua materna. Porém,
a mesma intensidade desse vitalismo aponta, com o acréscimo
de sua insistência, para a fragmentação, a dissolução do sistema
tradicional das “letras”, modelo da comunicabilidade social.
Resulta, então, que Martí figura como um dos primeiros escritores
modernos latino-americanos, ainda que a heterogeneidade de
seu discurso e a multiplicidade de seus papéis nos recordem o
estatuto tão problemático dessa categoria – a do escritor moderno,
especializado – na América Latina.

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Certamente que também não nos propomos a estetizar Martí.
Afirmar que Martí fala da política e da vida a partir de um olhar, de
um lugar de enunciação (desigualmente) literário, não implica um
juízo de valor. Simplesmente, tentaremos precisar os dispositivos de
autorização desse olhar que propõe, frente aos enigmas da política
(em “Nuestra América”, por exemplo), soluções relacionadas com
o emergente campo literário, cuja autonomia e institucionalidade
eram, por sua vez, sumamente problemáticos.
Com efeito, a seleção de Martí – modelo, ainda hoje para
muitos, do escritor político latino-americano – como um dos
objetos privilegiados da leitura, corresponde novamente ao du-
plo movimento de nossas hipóteses sobre a autonomização. Se
não reduzimos a leitura a materiais homogeneamente literários
é porque pensamos, precisamente, que a categoria da literatura
é problemática na América Latina. Ao explorar a vontade mo-
derna de autonomização, também lemos a heterogeneidade dos
pressupostos da autoridade literária em Martí no fim do século
não como um fato isolado e excepcional, mas como uma mostra
da relatividade da separação dos papéis e funções discursivas
que distingue a produção intelectual latino-americana, inclusive
em suas instâncias mais autônomas ou “puras”. Porém, não
lemos essa multiplicidade de papéis como índice de uma certa
autoridade tradicional ou harmônica, nem como instância de
um campo intelectual pré-moderno; mesmo nos escritores mais
politizados, é impressionante a “tensão” entre as exigências da
vida pública e as pulsões da literatura. Essa tensão é uma das
matrizes da literatura moderna latino-americana; é um núcleo
gerador de formas que, insistentemente, oferece resoluções para
a contradição matriz. Não pretendemos dissolver a tensão e nem
aceitamos de antemão as demandas de síntese que propõem
vários escritores; veremos, isso sim, como essa contradição
“intensifica” a escrita e produz textos.
Finalmente, uma palavra sobre a segunda parte deste livro,
que começa com uma série de leituras das Escenas norteameri-
canas de Martí e desliza, previsivelmente, para uma análise de
“Nuestra América” (texto escrito em Nova Iorque) e do ensaísmo
latino-americano de finais e começo de século. Pouco estudadas,
as Escenas norteamericanas são uma série de crônicas sobre a

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vida norte-americana, que Martí escreveu entre 1881 e 1882,
para numerosos jornais latino-americanos, particularmente o
La Nación de Buenos Aires, El Partido Liberal do México e La
Opinión Nacional, de Caracas. Esse volumoso conjunto de crô-
nicas configura uma impressionante reflexão, não apenas sobre
os múltiplos aspectos do cotidiano numa sociedade capitalista
avançada, mas também sobre o lugar daquele que escreve – o
intelectual latino-americano – perante a modernidade. No
reverso da representação da cidade, de suas máquinas e mul-
tidões, o discurso martiano produz e se nutre de um campo de
“identidade”, construído mediante sua oposição aos signos de
uma modernidade ameaçadora, ainda que desejada. Articulado
a partir de um olhar e de uma voz enfaticamente literária (que
opera, no entanto, a partir do lugar heterônomo do jornal), esse
campo assume, progressivamente, nas Escenas norteamericanas,
a defesa dos valores “estéticos” e “culturais” da América Latina,
opondo-os à modernidade, à “crise da experiência”, ao “materia-
lismo” e ao poder econômico do “eles” norte-americanos.
Nas Escenas norteamericanas, Martí antecipa uma série de
dispositivos de legitimação e alguns tropos-chave daquilo que
Rodó chamará, alguns anos depois, de “nossa moderna literatura
de idéias”, ligada ao ensaísmo latino-americanista de começo
do século. De certa forma, essa retórica latino-americanista que
pressupõe uma autoridade, um modo estético de “proteger” e
selecionar os materiais de “nossa” identidade, possibilitou em
Martí, assim como em muitos de seus contemporâneos, uma
aparente solução para a solidão do escritor, que Martí já pressentia
no Prólogo. No ensaísmo – “Nuestra América” e algumas crônicas
anteriores de Martí são os primeiros exemplos –, a literatura
começa a se autorizar como um modo alternativo e privilegiado
para falar sobre a política. Oposta aos saberes “técnicos” e aos
termos “importados” da política oficial, a literatura se postula como
a única hermenêutica capaz de resolver os enigmas da identidade
latino-americana. Martí costumava dizer que não haveria literatura
se não houvesse América Latina. Se a identidade não é um dado
externo ao discurso que a nomeia – pois a forma, a autoridade
e o peso institucional do sujeito que a designa determinam em
boa medida o recorte e seleção dos materiais que a compõem –,

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talvez hoje pudéssemos dizer, recordando Martí, que não haveria
América Latina se não houvesse antes um discurso autorizado
para nomeá-la. A literatura carregaria com o enorme e, às vezes
imponente, peso dessa “representatividade”.

  

Uma pessoa assina – é a lei do gênero –, porém sempre são


coletivas as condições de possibilidade. Agradeço, principalmente,
o apoio e a companhia de Margherita Anna Tortora, e em alguns
momentos, sua saudável distância deste projeto. Agradeço
a solidariedade e as sugestões de vários companheiros da
Universidade de Princeton, que me “suportaram”, em mais de
um sentido, durante o processo de pesquisa e escrita do trabalho.
Menciono apenas alguns deles que leram e comentaram parte
do manuscrito: Antonio Prieto, María Elena Rodríguez Castro,
Edgardo Moctezuma, Antonio Vera-León, Stephanie Sieburth e
Humberto Huergo. Obrigado. A Sylvia Molloy e a Josefina Ludmer
agradeço o rigor e a generosidade de suas leituras, assim como
as muitas conversas a partir das quais fui elaborando estas idéias.
Sem o estímulo de Ángel Rama este trabalho não teria superado os
primeiros esboços. Agradeço, finalmente, a amizade e o diálogo
de meus colegas da Emory University, especialmente Emilia
Navarro, Ricardo Gutiérrez e os professores visitantes, Fernando
Balseca, Oscar Montero e Rubén Ríos.
Também gostaria de registrar o apoio de uma bolsa do Programa
de Estudos Latino-Americanos de Princeton, que me permitiu viajar
para a Argentina, em julho de 1983, para consultar o La Nación,
em Buenos Aires. Uma bolsa de verão do National Endowment
for the Humanities e um semestre de licença, auspiciado pelo
Emory Research Commite, facilitaram a revisão deste livro.

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Primeira Parte

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1.
Saber do outro
Escrita e oralidade no Facundo
de Domingos Faustino Sarmiento

Durante as guerras de independência, as virtuais classes


dirigentes latino-americanas tinham conseguido articular um
consenso, com base em um “nós”, que adquiria densidade no
inimigo comum encontrado, Espanha; porém, após a instalação
dos novos governos, as contradições fundamentais reaparecem
na superfície da vida social. Os Estados deviam se consolidar,
delimitar os territórios e produzir a autoridade de uma lei central,
capaz de submeter as particularidades em luta a um projeto de
uma nova homogeneidade, inclusive lingüística, nacional. “A
República Argentina é uma e indivisível”,1 afirma Sarmiento. No
entanto, a realidade era outra: a fragmentação interna desfazia
o projeto de consolidação do sujeito nacional, quase sempre
imaginado sobre o calco de modelos estrangeiros.
Após a vitória sobre o antigo regime, o caos se intensificava
na medida em que as rígidas instituições coloniais, assim como
o consenso antiespanhol, perdiam vigência. Escrever, a partir de
1820, respondia à necessidade de superar a catástrofe – o vazio
de discurso, o cancelamento das estruturas – que as guerras
tinham provocado. Escrever, nesse mundo, era dar forma ao
sonho modernizador; era civilizar, ordenar o sem sentido da
barbárie americana.2

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Num texto fundamental, Recuerdos de provincia, Sarmiento
lembrava: “No dia seguinte à revolução, voltávamos nossos olhos
para todas as direções, buscando algo com que preencher o vazio
que deixariam a inquisição destruída, o poder absoluto vencido,
a exclusão religiosa ampliada.”3
Diante da carência de modelos, o discurso desliza, quase
automaticamente, em direção ao norte: “A América do Norte se
separava da Inglaterra, sem repudiar a história de suas liberdades.”4
O intelectual em Sarmiento se legitima voltando “os olhos para
todas as direções, buscando algo com que preencher o vazio”.
Preencher vazios: povoar desertos, construir cidades, navegar
os rios. A imagem do transporte, ao longo de Facundo, é privi-
legiada: condensa o projeto de submeter a heterogeneidade
americana à ordem do discurso, à racionalidade (não apenas
verbal) do mercado, do trabalho, do sentido.5
Não obstante, o discurso estava em outra parte; também era
necessário transportá-lo. Em Sarmiento, o intelectual opera em
função da viagem importadora do discurso. Viagem à Europa ou
à América do Norte, “buscando algo com que preencher o vazio”.
Sarmiento: “Há regiões muito altas, cuja atmosfera é irrespirável
para os que nascem nas terras baixas.”6 O viajante vai de baixo
para o alto, mediando entre a desigualdade. Vai com

a idéia de que na América tomamos o caminho errado, e de


que há causas profundas, tradicionais, que é necessário romper,
se não queremos nos deixar levar à decomposição, ao nada, e
me atrevo dizer à barbárie, ao lodo inevitável debaixo do qual
desaparecem os restos de povos e raças que não podem viver,
como aquelas tão primitivas quanto informes criaturas que se
sucederam sobre a terra, quando a atmosfera mudou.7

Significativamente, a baixeza aqui não é apenas efeito do


vazio: é também o “lodo” das causas tradicionais, “primitivas”,
“informes”, incapazes de se ajustar às exigências do progresso.
Com o fim de retirar seus pares da barbárie, o intelectual viaja para
as “terras altas”. Ele, sim, podia respirar naquelas altas regiões:
levava leituras. Depois regressaria com a palavra traduzida, cheia
de valor, do modelo. Se a condição de viajante em Sarmiento é o
desnível, a distância que separa o baixo do alto, o projeto de sua
escrita, no entanto, é a dissolução desse desajuste: cobrir o vazio.

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Esse nivelamento pressupunha, por sua vez, a necessidade de
povoar o deserto americano com as estruturas da modernidade:
“Vocês não gostariam, finalmente, que invocássemos a ciência e
a indústria em nossa ajuda, que as convocássemos com todas as
nossas forças, para que viessem tomar assento em nosso meio?”8
Por outro lado, o transporte do sentido implica novos desajustes
e deslocamentos. Nas lúcidas “Notas sobre Facundo”, em que
reflete sobre o trabalho da citação em Sarmiento, Ricardo Piglia
assinala como a frase em francês, On ne tue pont les idées, que
segundo Sarmiento tinha desencadeado a escrita de Facundo –
fundador de uma literatura nacional – é praticamente apócrifa:

A citação mais famosa do livro, que Sarmiento atribui a Fortoul,


é, segundo Groussac, de Volney. Porém, outro francês, Paul
Verdevoye, afirmou que também Groussac estava errado: depois
de afirmar que a citação não aparece na obra de Fortoul e nem
em Volney, diz tê-la encontrado em Diderot.9

A derivação dessa cadeia borgeana de falsas atribuições


poderia ir, talvez, além de Verdevoye ou de Piglia. Em todo
caso, Piglia demonstra como o mecanismo da citação, com seus
permanentes deslocamentos, é um núcleo produtor de Facundo,
cuja proposta – resumida em suas sistemáticas analogias – é, pre-
cisamente, sujeitar a particularidade americana referida debaixo
do modelo citado. A citação seguinte é um bom exemplo:

Na História de Paris, escrita por G. Fouchard La Fosse, encontro


esses detalhes singulares (...) Coloquem no lugar da cruz de
Santo André a fita colorada, no lugar das rosas coloridas, o jaleco
colorado; no lugar dos cabochiens, os mazorqueiros; no lugar de
1418, data daquela sociedade, 1835, data dessa outra; em lugar
de Paris, Buenos Aires; no lugar do Duque de Borgonha, Rosas;
e terão o plágio feito em nossos dias.10

A vida plagiando a literatura. Piglia comenta:

Se Sarmiento é excessivo em sua paixão, um pouco selvagem,


pela cultura, é porque para ele conhecer é comparar. O todo
adquire sentido quando é possível reconstruir as analogias
entre o que se quer explicar e outra coisa que já está julgada e
escrita. Para Sarmiento, saber é explicar o segredo das analogias:
a semelhança é a forma misteriosa, invisível, que torna visível

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o sentido. A cultura funciona, principalmente, como um
repertório de exemplos que podem ser usados como termos da
comparação.11

Numa primeira análise, a autoridade em Sarmiento pareceria


radicar num afora, no espaço europeu ou norte-americano, para
onde se dirige o intelectual viajante. Por isso é que em alguns
momentos Sarmiento parece falar sobre a barbárie como se a
observasse a distância, a partir de um lugar de enunciação loca-
lizado na Europa.12 Esse distanciamento do mundo sobre o qual
escreve é impressionante, especialmente no manejo sistemático
das retóricas e discursos europeus na representação do bárbaro
americano em Facundo: “E a vida pastoril nos traz, inconscien-
temente, à imaginação a lembrança da Ásia, cujas planícies ima-
ginávamos sempre cobertas aqui e ali de tendas do camuco, do
cosaco e do árabe.”13
Sobre a particularidade americana se impõe a figura (européia)
do “oriental”. No entanto, é importante observar que o conhe-
cimento que tenta produzir a analogia é imaginado. O discurso
desliza do mundo referido ao arquivo orientalista, que, como
assinala E. W. Said, mais do que uma rede de conhecimentos
da realidade oriental, comprova ser um discurso historicamente
ligado ao expansionismo do século 19 e à própria constituição
de um território de identidade europeu, mediante a exclusão
dos “outros” e a conseqüente delimitação do campo civilizado.
De acordo com Said, podemos ler o discurso sobre o outro, não
tanto em função de sua referencialidade, mas como dispositivo da
própria constituição do sujeito (europeu) que produz o discurso.
O outro, nesse sentido, é um aspecto definidor do imaginário
europeu.14
A citação do orientalismo em Sarmiento é, assim, um gesto
bastante significativo: projeta, por parte de quem não é europeu,
um desejo de se inscrever no interior da cultura ocidental. Im-
plica um lugar de enunciação – fictício – fora da barbárie (o não
europeu), enfaticamente civilizado. A citação desse discurso
identificador do europeu, do ocidental, tende a obliterar o
lugar da escrita, na América, do outro lado do ocidental, onde
se produz o Facundo.

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Porém, o trabalho da citação, segundo afirma Piglia, confirma
como Sarmiento desloca e até certo ponto corrói a autoridade
dos modelos citados, apesar dele mesmo. O processo mimético
– estimulado pelo desejo de ser outro, o outro das terras altas
– não pressupoe a repetição da autoridade imitada; submete a
palavra do outro europeu a uma inevitável descontextualização,
que resulta, em muitos casos, em paródias involuntárias. Piglia:

No momento em que a cultura sustenta os emblemas da civi-


lização frente à ignorância, a barbárie corrói o gesto erudito.
Marcas de um uso ao qual chamaríamos de selvagem da cultura;
em Sarmiento, de fato, estes barbarismos proliferam. Atribuições
errôneas, citações falsas (...).15

Para Piglia, a distância entre Sarmiento e o saber europeu não


radica tanto na afirmação de uma diferença, mas na corrosão
desses altos discursos na boca, digamos, de um mal letrado.
Sarmiento escreve mal este saber que, simultaneamente, exalta.
Considerando que uma região desse conjunto de autoridades
que chamamos Sarmiento se legitima em função da viagem impor-
tadora, cuja unidade mínima de sentido seria a citação do mo-
delo estrangeiro, a leitura de Piglia corre o risco de representar
a relação entre Sarmiento e Europa, entre a escrita americana e
o capital simbólico estrangeiro, em termos estritamente negativos.
Ou seja, a distância entre Sarmiento e a biblioteca européia,
sugere Piglia, é apenas produto de uma “citação mal feita”, de
um uso “selvagem” dos modelos, cuja autoridade permaneceria
inquestionada. A leitura de Piglia opera em função do que pode-
ríamos chamar de lógica – binária – da paródia. O americano
(ou o argentino, em Sarmiento) viria registrar um ponto cego
no campo ocidental: pressupõe certa noção da diferença como
carência ou deformação da plenitude do modelo estrangeiro. A
lógica da paródia tende assim a representar e classificar qualquer
produtividade distinta do modelo europeu em termos de falta,
ou mesmo, da própria inversão da estrutura imitada (ou mal
imitada). Tende, dessa maneira, a restabelecer o mimetismo que
inicialmente procurava evitar. Porque a inversão de uma estrutura
naturaliza seu campo de operações, pressupondo as hierarquias
da estrutura como o horizonte e limite da crítica (do mesmo modo
que a paródia configura um mimetismo ao contrário).

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Sarmiento não apenas ocupa, mas também manipula, uma
posição subalterna frente à biblioteca européia. Depois da leitura
crítica que Valentín Alsina fez do Facundo, em que lamentava a
falta de rigor historiográfico, Sarmiento insistiu no caráter espon-
tâneo de seu trabalho. Continuamente ele se refere ao livro (que
foi inicialmente publicado em capítulos num jornal, segundo a
norma da época) como “material de vida”, como um conjunto
de notas ou apontamentos ou apontamentos que esperavam,
num futuro, um reordenamento. Assim explica a informalidade
de sua obra:

Algumas inexatidões necessariamente passam despercebidas num


trabalho feito tão depressa, longe do teatro dos acontecimentos,
e sobre um assunto sobre o qual não se havia escrito nada até
então. (...) Talvez haja um momento em que, desembaraçado
das preocupações que me levaram a redigir tão precipitadamente
esta obrinha, volte a refundi-la num novo plano, desnudando-a
de toda digressão ocidental e apoiando-a em numerosos
documentos oficiais, dos quais somente agora tenho uma ligeira
referência.16

Novamente na resposta a Alsina (no “Prólogo” à edição de


1851), reaparece essa auto-reflexão, agora apelando para a
flexibilidade do ensaio:

Ensaio e revelação para mim mesmo de minhas idéias, o Facundo


adoeceu dos defeitos de todo fruto da inspiração do momento,
sem o auxílio de documentos à mão, e executado no mesmo
momento em que era concebido, longe do teatro dos aconteci-
mentos, e com o propósito de ação imediata e militante.17

Porém, mesmo aceitando as críticas de Alsina sobre a indisciplina


do Facundo, responde que não pretende retocar a “obrinha”,
que não queria eliminar os defeitos de sua civilização, “temeroso
de que ao retocar obra tão informe desaparecesse sua fisionomia
primitiva, assim como o vigor e a voluntariosa audácia da mal
disciplinada concepção”.18 Não seria difícil encontrar estes qualifi-
cativos na obrinha, descrevendo a barbárie ao longo do Facundo.
Com efeito, a barbárie é primitiva, voluntariosa, informe e mal
disciplinada. O significativo aqui é que os mesmos termos des-
crevem a própria obrinha de Sarmiento.

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Dessa maneira, Sarmiento configura um lugar de enunciação
subalterno, marginal, frente à biblioteca européia: “Este estudo,
que nós ainda não estamos em condições de fazer, por absoluta
falta de instrução filosófica e histórica, feito por observadores
competentes, teria revelado aos olhos atônitos da Europa um
mundo novo em política.”19
No entanto, esse lugar subalterno, marginal, que Sarmiento
assume, se converte no mecanismo de autorização de um traba-
lho intelectual alternativo, que enfatiza sua diferença do saber
europeu:

Oh! França, tão justamente erguida sobre sua suficiência nas


ciências históricas, políticas e sociais; Inglaterra, tão zelosa de seus
interesses comerciais; aqueles políticos de todos os países, aqueles
escritores que crêem entendidos; se um pobre narrador americano
se apresentasse perante eles com um livro, para mostrar como
Deus revela as coisas que achamos evidentes (...).20

Sua humildade, certamente, não deve nos enganar. A ironia


é sutil, porém evidente. A partir da margem, o “pobre narrador”
demanda um saber diferente e, às vezes, oposto à disciplina
européia. Ao contrário dos sábios europeus, Sarmiento propõe
a tarefa do escritor americano: “Há uma justiça exemplar que
fazer e uma glória que adquirir como escritor argentino: fustigar
o mundo e humilhar a soberba dos grandes da terra, sejam sábios
ou governos.”21
O trabalho do pobre narrador americano talvez tenha resul-
tado indisciplinado ou informe (atributos da barbárie). Porém,
essa espontaneidade, essa proximidade com a vida, esse discurso
imediato, era necessário para representar o “mundo novo”, que o
saber europeu, apesar de seus próprios interesses, desconhecia.
Conforme veremos mais adiante, para Sarmiento era necessário
conhecer toda essa região da vida americana – a barbárie – que
resultava irrepresentável para a ciência e os documentos oficiais.
Era necessário ouvir o outro, ouvir sua voz, pois este outro carecia
de escrita. Isso é o que o saber disciplinado, bem como seus
importadores, não tinha conseguido fazer; o outro saber – saber
do outro – se tornaria, assim, decisivo na restauração da ordem
e do projeto modernizador.

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Digamos, de momento, que a leitura (generalizada) de
Sarmiento como um intelectual estritamente importador do capital
simbólico europeu, não faz justiça à sua complexidade, às suas
contradições, principalmente, no Facundo.22 A crítica argentina
ao saber europeu é marcante, ainda que coexista, às vezes, com
uma radical ideologia mimética. Também não parece possível
reduzir essa distância ao deslocamento que sofre o livro europeu
no trabalho de segunda mão que utiliza a citação. A distância
entre Sarmiento e sua biblioteca não é apenas um ponto cego,
uma aporia em seu discurso europeizante. Sarmiento é capaz
de assumir essa distância para legitimar um saber diferenciado,
meio bárbaro, como ele próprio sugere, porém, e talvez por
isso mesmo, melhor preparado para representar o particular
americano, ou seja, a fragilidade da civilização, num mundo
dominado pela barbárie.
Com efeito, em Facundo ele não explica o caos da sociedade
emancipada apenas em termos da carência do discurso europeu.
Ao contrário, no relato histórico que Sarmiento elabora, os
bárbaros chegam ao poder pelo erro da civilização, da cidade,
que tinha pretendido importar os modelos europeus sem levar
em consideração a realidade americana – a barbárie – do mundo
onde esses discursos deveriam operar. O vazio entre o discurso
importado e a particularidade que permanecia excluída naquela
representação é o núcleo gerador das contradições, do caos
atual:

Na República Argentina, é possível ver, a um só tempo, duas


civilizações distintas no mesmo solo: uma nascente, que sem
conhecimento do que tem sobre sua cabeça, está remedando
os esforços ingênuos e populares da Idade Média; a outra, que
usufrui dos últimos resultados da civilização européia. O século
19 e o século 12 convivem juntos, um dentro das cidades, o
outro no campo.23

A antítese, na lógica binária desse discurso, prolifera: pés/


cabeça, campo/cidade, tradição/modernidade. Porém, o lugar
da autoridade, pelo menos nesse fragmento fundamental, não
está em nenhuma das duas partes. Se tivéssemos que espacializar
essa autoridade, diríamos que o sujeito fala a partir da cidade de
uma província, entre os mundos contrapostos. Sarmiento enfatiza

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a ignorância do saber urbano (Buenos Aires) frente à realidade
local, “bárbara”. Insiste em que é por causa dessa ignorância, por
essa falta de representação entre os dois mundos, que a barbárie,
excluída pela cultura, invadia as cidades, anulando o grau de
modernidade que as mesmas tinham alcançado.
Facundo representa a história como um progresso, como uma
modernização interrompida pela catástrofe do caudilhismo, que
desarticulava o sentido, a unidade nacional. Constitui-se, assim,
numa tentativa de controle da contingência, do acidente, do
irracional da barbárie, com a finalidade de reorganizar a homo-
geneidade (e o Estado) nacional. Porém, o projeto de ordenar o
caos não podia se basear estritamente na importação de modelos,
na citação do livro europeu. Para restaurar era necessário escutar
a voz do outro, a tradição que o projeto modernizador, inicial-
mente mimético, sob Rivadavia, havia ignorado. Era necessário
representar aquilo que o saber europeu e seus importadores
desconheciam.
Escrever para Sarmiento é ordenar, modernizar; porém, ao
mesmo tempo, é um exercício prévio e determinante dessa
virtual modernização. Escrever é transcrever a palavra (oral)
do outro, cuja exclusão do saber (escrito) tinha produzido a
descontinuidade e a contingência do presente. Escrever era mediar
entre a civilização e a barbárie. Porque se algo era claro para o
escritor sanjuanino é que a restauração da cidade, da vida pública
racionalizada, não seria possível sem a mútua representação
daqueles dois mundos, cuja fricção tinha desencadeado o caos,
a interrupção da modernização. Era necessário “revelar os
costumes nacionais, sem o qual é impossível compreender nossos
personagens políticos, nem o caráter primordial e americano da
sangrenta luta que despedaça a República Argentina”.24
Para reordenar a vida pública – já que na barbárie “não há res
publica” – era necessário incorporar, e não alienar, o outro. O
primeiro passo para essa incorporação consistia na representação
da barbárie. Era indispensável ouvir os contos do outro, até então
desconhecidos pelo saber letrado:

Os fatos estão aí consignados, classificados, provados, documen-


tados: falta, no entanto, o fio que haverá de ligá-los num acon-
tecimento único, o sopro da vida (...) me falta, para tentar esta

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tarefa, interrogar o solo (...) ouvir as revelações dos cúmplices, as
deposições das vítimas, as lembranças dos anciãos, as doloridas
histórias das mães que vêem com o coração; me falta escutar
o eco confuso do povo, que viu e não compreendeu, que foi
verdugo e vítima, testemunha e ator; me falta a maturidade do
acontecimento terminado, a passagem de uma época a outra, a
mudança dos destinos da nação, para voltar os olhos tranqüilos
para trás, e fazer da história exemplo e não vingança.25

Em Sarmiento, operam dois modos contraditórios de repre-


sentar o passado: por um lado, a visão do mundo oral da tradição
como aquilo a ser eliminado, se o que se queria era modernizar
(ou civilizar, expandir a cidade). E, por outro, a visão desse de-
sejo de ruptura como produtor de novos conflitos e ansiedades,26
especialmente depois que a tradição reage com violência. A
contradição entre ambas versões do passado nunca se resolve
completamente,27 o que leva à ambigüidade presente na repre-
sentação do bárbaro.28 Apesar dessa ambigüidade irredutível,
parece que Facundo, como vimos no fragmento mencionado,
busca conciliar o projeto modernizador com o passado, procura
“voltar os olhos para trás”; olhar para trás – e não apenas para
o futuro, como as teologias iluministas – para ouvir a voz do
povo (da mãe) e poder dar o “sopro de vida” ao discurso sobre
este novo saber, que não teria conseguido incorporar o livro
europeu (a classificação, os dados, os documentos). Ouvir o
outro, sua voz confusa, para tecer a continuidade, a “passagem
de uma época para outra”, que faltava na catástrofe atual, no
presente da escrita.
Ouvir, então, é a técnica de um exercício historiográfico. A
literatura era, como afirma L. Gossman a respeito da historiografia
romântica européia, um discurso exemplar para esse projeto de
escutar a voz da tradição.29 Dessa maneira, Sarmiento postula o
possível papel da literatura nas novas nações:

Se uma chama de literatura nacional pode brilhar, momenta-


neamente, nas novas sociedades americanas, é a que resultará
da descrição das grandiosas cenas naturais, especialmente da
luta entre a civilização européia e a barbárie indígena, entre
a inteligência e a matéria; luta imponente na América, que dá
lugar a cenas tão peculiares, tão características e tão fora do

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círculo de idéias no qual se educou o espírito europeu, porque os
lances dramáticos se tornam desconhecidos fora do país (...).30

A literatura era o lugar adequado para a mediação necessária


entre a civilização e a barbárie, a modernidade e a tradição, a
escrita e a oralidade. A falta de disciplina e documentação –
ligada à espontaneidade, à proximidade da vida, que Sarmiento
relaciona com a vida – é, na verdade, um dispositivo de outro
tipo de autoridade intelectual, mais capacitado para representar e
resolver a desordem do que o sábio de procedência européia.
Desse modo, não deixa de ser significativo o fato de que,
desde a época de sua publicação, tenha sido problematizada a
função literária no Facundo em oposição à autoridade – e ao
imperativo – de um discurso “verdadeiro” ou “histórico”. Em sua
leitura do livro, Valentín Alsina, por exemplo, relaciona os defeitos
de Facundo com seus inúmeros deslizes literários:

Direi que seu livro, que tantas e tão admiráveis coisas têm, parece
sofrer de um defeito geral – o da exageração: acredito que tem
muita poesia, se não nas idéias, pelo menos nos modos de
locução. Você não se propôs a escrever um romance, nem uma
epopéia, mas uma verdadeira história social (...).31

A separação entre “poesia” (e ficção) e “verdadeira história


social” é, historicamente, muito significativa. A dicotomia revela,
já em meados do século, certa tendência à autonomização das
funções discursivas. De igual maneira, registra uma impressio-
nante hierarquização no interior de uma economia utilitária do
sentido, na qual a literatura figura como um modo desvalorizado
de representação, subordinado à autoridade política das formas
mais modernas e eficientes da verdade.
A resposta de Sarmiento a Alsina é extremamente ambígua.
Em todo caso, afirma que não retocaria a obra, assumindo o
defeito da espontaneidade, da poesia, como um complemento
de sua escrita da história. Um modo de escrever que, por não
se basear apenas na racionalidade européia – na escrita da
cidade –, estaria preparado para escutar a voz alienada do outro
e incluí-la na ordem de um (novo) discurso. A informalidade, o
imediatismo, a indisciplina de Facundo eram, assim, as condições

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de possibilidade de sua aproximação da tradição (oral) bárbara,
que necessitava incorporar, representando-a:

Agora, pergunto: que impressões deixarão no habitante da Repú-


blica Argentina o simples gesto de cravar os olhos no horizonte e
ver.... não ver nada? Porque quando mais fixa seu olhar naquele
horizonte incerto, vaporoso, indefinido, e se distancia, mais se
deixa fascinar, confundir e submergir na contemplação e na dú-
vida. Onde termina aquele mundo que, em vão, busca penetrar?
Não sabe! Que existe mais além do que vê? A solidão, o perigo,
o selvagem, a morte. Eis aqui presente a poesia.32

A ameaça, o perigo que confronta o sujeito (e o Estado na-


cional) se relaciona, no Facundo, com a ausência de limites e
estruturas. Com efeito, o deserto é, em boa medida, o enigma cuja
solução a escrita explora. Porém, frente a esse vazio distintivo da
paisagem americana, o olhar civilizado e o saber racionalizador
necessariamente fraquejam. O olhar – e a autoridade – da poesia
começa onde termina o mundo representável pela disciplina. Daí
a literatura ser, para Sarmiento, uma fronteira da fronteira, uma
reflexão sobre os limites e os exteriores da lei.
Por outro lado, não convém reduzir o modo de representação
da poesia que tanto Sarmiento como Alsina relacionam com o
lirismo que, seguramente de modo esporádico, opera em vários
momentos nas descrições sarmientinas. Em termos de saber do
outro e da representação da barbárie são ainda mais importantes
os relatos, as narrações que proliferam ao longo de Facundo.
Fazemos referência, por exemplo, à impressionante história de
Navarro (Segunda Parte, Capítulo VII), o homem civilizado que,
perseguido por Quiroga, foge na direção das tolderias indígenas
e se converte em outro; o relato da juventude de Quiroga e sua
luta com um tigre (animal outro por excelência); ou o assassinato
de Quiroga por Santos Pérez em Barranca-Yaco.
Esses relatos exploram, com freqüência, a experiência do
limite, a ambigüidade dos sujeitos presos entre dois territórios
de identidade: a civilização e a barbárie. Contam, freqüente-
mente, histórias de barbarização, como o relato do estancieiro
de “procedência européia pura”,33 em San Luis, que havia sido
dominado pelas “superstições grosseiras” nativas e pelo “vício”
do jogo, outro atributo central da barbárie. Mais importante é

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o fato de que estes relatos são, quase sempre, materiais que
Sarmiento escuta. São relatos da tradição oral,34 histórias antigas,
que Sarmiento escuta e coleciona.
Dessa maneira, Facundo aparece como um grande depósito de
vozes, relatos orais, anedotas, histórias de outros que Sarmiento
transcreve e acomoda em sua representação da barbárie. Como
se essas palavras outras indicassem a presença, a representação
do outro – antes excluído e agora poderoso – na ordem do dis-
curso, na vida racionalizada da cidade. Como se, efetivamente, a
mediação entre os dois mundos funcionasse, e a escrita (da voz),
realizada na mesma superfície da sua forma, incorporando a
palavra e a história oral, resolvesse a contradição que produzia o
caos. Estamos falando, então, de um espaço discursivo democrá-
tico, dialógico, onde a voz tradicional coexiste com as autoridades
modernas? Esse espaço configura a representação da voz?
Teríamos, então, que perguntar como é representada a voz do
outro e que transformações sofre a fonte popular, ao ser incorpo-
rada à escrita. É necessário ver, na superfície da forma (inclusive
tipográfica), a distância ou proximidade entre a voz representada,
às vezes também citada, e o sujeito da escrita. Porque a repre-
sentação, mesmo quando procura conter o outro, ao assumi-lo
como objeto do discurso, nunca é um processo passivo. Essa
tomada de posição a favor da voz na escrita é ideologicamente
fundamental em Facundo.
Para Sarmiento, a barbárie nem sempre representa um exterior
absolutamente vazio de sentido. Ainda que sua visão da barbárie
esteja repleta de contradições, em vários fragmentos matriciais
do Facundo – os quadros costumbristas, principalmente –, é
enfatizado o saber do gaúcho e da cultura camponesa. Efetiva-
mente, saber e conhecer são palavras-chave nesses antológicos
quadros. O bárbaro tem voz, tem valor em termos da produção
do sentido. O gaúcho “rastreador” tem sua “ciência caseira e po-
pular”.35 O gaúcho “fora da lei” tem sua “ciência do deserto”.36 O
“baqueano” “conhece os pântanos”,37 “apenas ele sabe”,38 e esse
saber é indispensável para o Exército. É o “cantor”, no entanto,
quem maneja um saber tradicional superior, ligado à sua poesia
“original” e “primitiva”:

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[O cantor] está fazendo, com candor, o mesmo trabalho de crô-
nica, costumes, história, biografia, que o bardo da Idade Média,
e seus versos [orais] seriam recolhidos mais tarde como os docu-
mentos e dados em que se apoiaria o historiador, se a seu lado
não estivesse outra sociedade culta (...).39

No entanto, a poesia do cantor, ainda que próxima da ori-


gem, é “pesada, monótona, irregular, quando se abandona à
organização do momento”.40 Mesmo que o “historiador futuro”
(o próprio Sarmiento) tenha que ouvir a voz para não aliená-la,
não o fará sem submetê-la à forma superior do discurso regular,
independentemente da inspiração do momento. No Facundo,
entre “escutar o eco confuso do povo”41 e escrever medeia o
copista, que raramente cita o outro e cujo lugar nunca é neutro
no espaço hierarquizado do discurso.
A menor unidade na representação do discurso do outro é
a incorporação, na escrita, da palavra camponesa. Inclusive no
caso dessas transcrições menores, a palavra camponesa apa-
rece com marcas que enfatizam sua distância, sua estranheza.
Ao assumir essa voz, Sarmiento usa o itálico sistematicamente:
“’Onde te mias-dir!’”,42 “é um pangaré igual”,43 ou “se provê
dos vícios”.44 Há um impressionante regozijo na enunciação, na
apreensão da palavra estranha, essa mesma palavra da qual, no
entanto, o sujeito mantém sua distância. A ênfase desnaturaliza
a voz, ao mesmo tempo que registra seu funcionamento fora do
contexto habitual. Trata-se da tradução da palavra tradicional
para um destinatário que, mesmo sem o saber, devia conhecer
o outro. Trata-se, novamente, da importância de mediação entre
dois mundos em luta. Porém, a atividade do mediador – nunca
transparente – de nenhum modo projeta a presença da palavra
estranha; por outro lado, indica seu translado e transformação,
sua entrada numa ordem.
Em um nível superior, a distância entre os dois léxicos, um
próprio (escrito) e outro estranho (oral), é medida como dois
saberes hierarquizados. O saber do outro é irregular, confuso,
estava sujeito à “organização do momento”, à particularidade, que
impedia de se converter em reflexão generalizante. O sujeito no
Facundo assume o relato oral como fonte da escrita, porém, des-
loca e subordina a particularidade dessas vozes ao poder de um
saber generalizante, do qual, precisamente, carecia o bárbaro.

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Efetivamente, Sarmiento faz a defesa explícita da necessidade
de ouvir a voz confusa do outro – no lugar da poesia – perante
o requisito de verdade e de saber moderno, racionalizado, que
impunha seu mundo. No entanto, também é certo que a economia
utilitária entre “romance” e “verdadeira história social” tende a
regular e hierarquizar a produção do sentido no Facundo.
Se por um lado os relatos orais se tornaram indispensáveis,
como documentos alternativos, por outro, constituíam um suple-
mento perigoso. Os relatos contaminavam o discurso da verdade,
desviando-a da racionalidade e disciplina que eram exigidas
pela economia moderna do sentido. Mas, principalmente, esses
relatos consignavam, no próprio espaço da escrita, ressaibos de
um saber narrativo, ou seja, restos daquilo que a escrita racio-
nalizadora pretendia dominar. Neste caso, o projeto sarmientino
de constituir um arquivo (ordenador) da tradição oral supunha,
para a escrita, o risco de sua própria barbarização. Daí a sua
irreprimível tendência a narrar – a contar as histórias dos outros
– produzir em Sarmiento uma imensa ansiedade que, por vezes, o
leva a considerar Facundo como “um caos discordante”, que era
necessário ordenar e purificar antes de sair, no futuro, “depurada
de todo ressaibo, a história de nossa pátria”.45
Por sua vez, frente a essas tensões sociais que influem na
própria composição do livro, a escrita procura sistematizar seu
gesto ordenador. A escrita responde ao perigo da dispersão
e do ressaibo oral demarcando as histórias e comentando-as;
dessa maneira, subordina a particularidade e ambigüidade do
saber narrativo à função generalizadora e universalizante de um
discurso supostamente moderno.
No capítulo “Infância e juventude de Juan Facundo Quiroga”,
encontramos um exemplo claro de como a anedota, suporte
do discurso, é subordinada à generalização. O capítulo começa
com o relato da luta entre um tigre e o jovem Quiroga, que apa-
rece citado: “’Então, soube o que era ter medo’, dizia o general
don Facundo Quiroga, contando a um grupo de oficiais este
acontecimento.” Como sempre ocorre, a procedência do relato
não fica clara até a sua conclusão, assim como o limite entre o
lugar do transcritor e a voz do outro é impreciso. Ao terminar
a história, no entanto, a distância é enfatizada: “Também foi

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chamado de Tigre das Planícies e, estejam seguros, não lhe caía
mal esta denominação. A frenologia ou a anatomia comparada
demonstraram, com efeito, as relações entre as formas exteriores
e as disposições morais (...).”46
A passagem da anedota para a frenologia e a anatomia com-
parada, ou seja, do discurso particularizado ao saber abstrato
e geral, comprova a distância entre duas autoridades distintas,
hierarquizadas. O deslocamento se evidencia, novamente, nos
parágrafos seguintes ao relato do tigre, quando Sarmiento lê o
rosto de Quiroga, os detalhes de sua fisionomia, como matrizes
de uma paisagem selvagem. Nas “sombras espessas” do rosto,
no “bosque de pelo”, nas “povoadas sobrancelhas”,47 Sarmiento
lê a paisagem da barbárie. Do particular ao tableau vivant: o
procedimento é sistemático e atravessa o próprio conceito de
biografia que opera em Sarmiento; o individual, o particular,
só tem significado em função do quadro geral, que, por sua
vez, possibilita a interpretação do particular. A escrita procura,
continuamente, produzir modelos que permitam interpretar toda
particularidade, toda variedade, remetendo-a à generalidade
preestabelecida. Por exemplo, a heterogeneidade que define a
barbárie, ao longo do Facundo, será sempre subordinada aos
quatro quadros paradigmáticos que Sarmiento tinha estabelecido
desde o começo; “se o leitor se lembra do que falei do capataz de
carretas, adivinhará o caráter, valor e força do boiadeiro (...)”;48
“é um Tirteo que anima o soldado com canções guerreiras, o
cantor de quem falei na primeira parte (...)”.49 E, sobre Facundo,
“onde vocês encontrarão na República Argentina um tipo mais
acabado do ideal do gaúcho fora da lei?”.50 Os exemplos se
multiplicam, comprovando a vontade de subordinar o particular
ao modelo descrito nos quadros vivos, que funcionam, por sua
vez, como suportes que controlam a tendência à dispersão deste
discurso, onde proliferam as anedotas e o saber particularizado
dos relatos, das histórias de outros.
O quadro vivo é, assim, mais do que o lugar ideal para ouvir
a voz confusa e irregular do outro. O quadro é resultado de uma
prática ordenadora que responde, formalmente, ao projeto de
submeter a heterogeneidade da barbárie à ordem do discurso.51 “A
inteligência vence a matéria, a arte o número.”52 Essa é a função

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dos quadros sobre o rastreador, o baqueano, o gaúcho fora da
lei e o cantor: se por um lado confirmam certa busca pela ori-
gem, a postura do sujeito que olha para trás, por outro, reafirma
o desejo racionalizador que impulsiona esta escrita.
Era necessário representar o outro. Porém, a confusão, a
irregularidade da sua voz, era exatamente a força que resistia
à representação. Porque, na verdade, a barbárie é o outro da
representação, é o exterior temido do discurso. Por isso não
bastava “escutar” os registros daquela realidade dispersa e amorfa.
Era preciso submetê-la, exercer a violência da forma sobre a
irregularidade da voz. Representar o bárbaro, em Sarmiento,
pressupõe o desejo de incluí-lo e subordiná-lo à generalidade da
lei da civilização; lei, por outro lado, resultado de um trabalho
racionalizado e produtivo, sujeito às necessidades do mercado
emergente.
O procedimento formal de incluir a palavra falada do outro,
para subordiná-la a uma autoridade superior, configura um in-
tento de resolução – no nível da própria disposição da matéria
discursiva – de uma contradição sobre a qual Facundo reflete
continuamente: a falta da lei, numa sociedade baseada na irre-
gularidade e arbitrariedade do caudilho:

A sociedade desapareceu por completo, resta apenas a família


feudal, isolada, reconcentrada; não havendo sociedade reunida,
qualquer classe de governo se torna impossível; a municipalidade
não existe, a polícia não pode fazer seu trabalho e a justiça civil
não tem meios para alcançar os delinqüentes (...).53

Com efeito, a barbárie é o exterior dos espaços disciplinados


da lei. O caudilho, para impor seu poder sobre a cidade, destrói
“toda regularidade na administração. O nome de Facundo ocu-
pava o vazio das leis; a liberdade e o espírito da cidade haviam
deixado de existir.”54 O “bárbaro [viola] todas as formas recebidas,
pactos, tratados, capitulações (...)”.55 Dito de outro modo, violenta
os lugares da lei escrita:

O que a República Argentina necessita, antes de mais nada, e que


Rosas nunca lhe dará porque não tem como dar, é que a vida,
a propriedade dos homens não esteja pendente de uma palavra
indiscretamente pronunciada (...). Não existe qualquer outro

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povo na América que tenha menos fé do que o povo argentino
num pacto escrito, numa Constituição.56 (grifo nosso)

Facundo, ao ouvir e submeter a palavra pronunciada do outro,


antecipa essa ordem racionalizada que, como assinalou Weber
e Poulantzas,57 reconhece no domínio da lei uma condição de
possibilidade. Nesse sentido, Facundo também reforça a “função
estatal” da literatura, que J. Ludmer tem encontrado em suas
explorações na poesia gauchesca, gênero que continuamente
reflete e polemiza sobre a autoridade da lei escrita:

O gênero tem, como uma de suas funções, a de reformular as


relações jurídicas, de unificar jurídica e politicamente a nação:
essa função estatal, a literatura argentina cumpre desde a Inde-
pendência até a constituição definitiva dos Estados, em 1880; ao
gênero gauchesco cabe, principalmente, a integração das massas
rurais. A autonomia da literatura – sua separação da esfera política
e estatal – é, assim, um efeito do estabelecimento do político e
do Estado como esferas separadas.58

Mais além da Argentina, a hipótese sobre a função estatal da


literatura nos parece essencial para explicar os lugares híbridos
da escrita latino-americana anterior aos anos 80. Era necessário,
como dizia Sarmiento, ilustrar o Estado: “A inteligência, o talento e
o saber serão chamados de novo a dirigir os destinos públicos.”59
E, ainda que na Argentina, dominada pela barbárie, os letrados
que “tinham se preparado para a vida pública, se encontrassem
sem foro, sem imprensa, sem tribuna, sem essa vida pública”,60 em
outros países eram precisamente os letrados que já administravam,
como afirmava Bello, o processo de “[arrancar] do costume a força
de lei”.61 Porque, acrescenta Bello, “muitos dos povos modernos
mais civilizados sentiram a necessidade de codificar suas leis”,
e “se faz necessário refundir esta massa confusa de elementos
diversos, incoerentes e contraditórios, dando-lhes consistência e
harmonia e colocando-os em relação com as formas viventes da
ordem social”.
O significativo, em Sarmiento, é que essa função racionali-
zadora da escrita não é simplesmente demonstrável em termos
temáticos, mas na própria disposição da palavra do outro, da
tradição, do saber particular, sob a autoridade generalizadora

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que a lei modela. Por isso dizíamos que escrever, em Sarmiento,
é modernizar. Não se trata de uma metáfora, de uma analogia
entre o campo do discurso e uma ordem social refletida: essa
ordem social – a vida pública racionalizada – somente assume
espessura na escrita. Se no momento em que Facundo é escrito
a modernização tinha sido interrompida, se a vida pública era
uma carência e reinava o caos, a escrita, com suas operações
de generalização e homogeneização, se tornava um modelo
fundamental do projeto racionalizador, assim como registrava,
na própria heterogeneidade de sua forma, as aporias que essa
racionalização enfrentou na América Latina.

45

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2.
SABER DIZER
LÍNGUA E POLÍTICA EM ANDRÉS BELLO

Aprendemos desde cedo na escola a conceber a relação entre


André Bello e Domingos Faustino Sarmiento em termos de uma
contradição quase absoluta. A história literária internacional – e
seus dispositivos, as antologias – insistiram em representar a
relação mediante esquemas simplificadores que contrapõem um
Sarmiento romântico, colado à vida, à figura ascética de Bello,
guardião da forma. Nestes termos foi representada a passagem
do neoclassicismo ao romantismo na América Latina.
A representação antitética, polarizadora, como uma cópia das
categorias de uma história (linear) européia, entre Bello e Sarmiento
– ainda que trinta anos separassem os dois – ficou relativizada,
no entanto, pela publicação no Chile, em 1845, de Facundo e das
Silvas americanas. A coincidência nos lembra que Bello, figura
dominante no campo intelectual chileno ao longo dos anos de
desterro de Sarmiento, não foi simplesmente o representante de
um passado que o argentino viria superar, confirmando um tipo
qualquer de sucessão entre gerações; como seu contemporâneo,
foi em vários sentidos um emblema do intelectual disciplinado
que Sarmiento assume como ponto de referência polêmico.
Por outro lado, Sarmiento fomentou a distância e o antago-
nismo, nos anos de 1840; polemizou contra a gramática e a favor
do romantismo que Bello, até certo ponto, recusava. Além disso,

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nesse período Sarmiento produziu várias imagens de si mesmo
como um outro possível do então reitor da Universidade do
Chile. Em suas múltiplas e mistificadoras auto-representações,
insistiu precisamente na formação extra-universitária de seu
discurso, espontâneo e até certo ponto indisciplinado, o que lhe
conferia maior capacidade para entender a barbárie americana.
Evidentemente que não nos rendemos à demanda de esponta-
neidade; já vimos como, em Facundo, Sarmiento maneja essa
auto-representação para abrir espaços no discurso do poder. Dito
de outro modo, a vontade disciplinar, apesar de – ou sobre – a
espontaneidade, é também um núcleo produtor de sua escrita,
apesar daquela insistência em escutar a fala, “espontânea e
natural”, do outro.
Também não buscaremos minimizar as diferenças. É preciso
reconhecer que Bello opera nos lugares de enunciação relati-
vamente institucionalizados, o que o distancia do discurso mais
híbrido de Sarmiento, de sua heterogeneidade, que não é ape-
nas efeito da distribuição jornalística de seus trabalhos, mas do
cruzamento de múltiplos sujeitos e autoridades no espaço tão
desigual de seu discurso. Por outro lado, apesar de seu notório
enciclopedismo, as autoridades em Bello começam a se delimitar,
a precisar seus territórios, em forma de textos homogêneos. A
partir de 1842, ele fala a partir da Universidade que ele próprio
ajudou a fundar no Chile. Seu lugar de enunciação, ao autorizar
seu lugar na função de administrador da vida pública, comprova,
por outro lado, seu grau de diferenciação com respeito a outras
regiões da polis, que mesmo em Sarmiento era uma carência,
um vazio que a ordem do discurso procurava preencher. Nesse
sentido, Bello fala de uma modernidade projetada, idealizada às
vezes, pela escrita tão desigual de Sarmiento.
A partir dessas diferenças, é possível questionar a representa-
tividade de Bello frente à situação do intelectual latino-americano
no século 19. Efetivamente, talvez o lugar pré-institucional e
múltiplo de Sarmiento fosse mais representativo do campo inte-
lectual. No entanto, ainda que a disciplina intelectual de Bello não
seja a norma, seu projeto de institucionalizar o saber americano
condensa muitos dos objetivos dos intelectuais anteriores a Martí.
O próprio Sarmiento afirma em Facundo:

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Há uma circunstância que recomenda [Córdoba] poderosa-
mente para o porvir. A ciência é o maior dos títulos para um
cordobês; dois séculos de universidade deixaram nas cons-
ciências esta preocupação civilizada, que não existe tão pro-
fundamente arraigada nas províncias do interior, de maneira
que nem bem mudassem a direção e a matéria dos estudos,
Córdoba pôde contar com um grande número de defensores
da civilização, que tem como causa e efeito o domínio e o
cultivo da inteligência.1

De igual maneira, comprovamos que em Cuba, a partir de


1822, existe uma preocupação por disciplinar a produção inte-
lectual. J. A. Saco, de impressionante imaginação arquitetônica,
propunha a criação de espaços para a “cultura”, que defendia
como antídoto contra a falta de ocupação. A “cultura”, institucio-
nalizada em museus, gabinetes de leitura e escolas, proveria a
administração dos momentos de lazer, condição de possibilidade
da racionalização do trabalho. Já em 1832, Saco afirmava:

Para diminuir o número de freqüentadores dos bilhares, devem


ser proporcionados também alguns lugares onde o povo possa
se reunir com mais proveito. Eu não consigo contemplar, sem
o mais profundo pesar que, contando a ilha de Cuba com mais
de trezentos anos de existência política, ainda não conte com
um daqueles estabelecimentos que são tão comuns em países
mais novos e de menos recursos. É de se admirar que Havana,
cidade populosa, ilustrada e com relações com o mundo inteiro,
careça de um Ateneu (...) uma instituição desta espécie é, pois,
urgente e necessária (...).2

Também para José de la Luz y Caballero, outra figura central no


campo intelectual cubano prévio a Martí, o projeto de disciplinar
e institucionalizar o trabalho intelectual era decisivo:

[um] Grande passo se daria para a melhora da educação entre nós


se, reanimados estes sentimentos em nossos corações e fazendo
uma parte do muito que podemos, fundássemos um instituto de
educação que, assentado sobre sólidas bases materiais, oferecesse
todas as condições apetecíveis de estabilidade e duração.3

A seguir, lamenta a falta de profissionalização dos profes-


sores, mediante uma retórica de procedência protestante em que

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a vontade disciplinar funciona como uma linguagem religiosa:
“Com efeito, o professorado não é, em Cuba, uma profissão, e
se não é uma profissão, como poderia ser um sacerdócio?”4 Por
outro lado, há que tomar cuidado para não confundir essa retó-
rica com uma ideologia conservadora, pré-iluminista. Como dizia
M. Weber, o conceito da profissão como apostolado contribuiu
para a secularização, desencantando o mundo. A relação entre
o trabalho racionalizado e a religião volta a operar no seguinte
fragmento de Luz y Caballero:

[Há] uma necessidade imperiosa de moderar, de fortalecer as


almas de seus filhos para que cumpram dignamente seus deveres
em suas carreiras industriais, científicas ou artísticas, para que
vivam, direi numa única palavra, a vida eminentemente religiosa
do trabalho; religiosa sim, porque todo trabalho é o resultado
de uma aspiração à melhoria e toda aspiração à melhoria é uma
aspiração que se dirige a Deus.5

Em Luz y Caballero, além disso, a retórica religiosa é certamente


um dispositivo de legitimação de idéias que, de outro modo, na
colônia espanhola, poderiam se tornar transgressivas.
Em todo caso, é impressionante a vontade racionalizadora,
mesmo nesses discursos que postulavam a carência da racionali-
zação. Desse modo, é possível ler o lugar especialmente particular
de Bello, não tanto como um desvio da realidade, mas como
paradigma de uma modernização possível e desejada.
Por que esse grau de racionalização aparece em Bello e não
em Sarmiento? Quais são as condições sociais que possibilitam o
aparecimento dessa precoce institucionalização do trabalho inte-
lectual em Bello? Certamente teria a ver com a situação política do
Chile, onde o intelectual tinha se estabelecido, após seu regresso
de Londres, em 1829. O contraste entre a relativa estabilidade do
governo no Chile e as lutas internas na Argentina e no México, até
bem entrado o último o último quarto de século, é marcante.6 No
Chile, os regimes conservadores promoveram, a partir de 1830,
a consolidação do Estado nacional. Isso não significa que fosse
uma sociedade harmônica, mas sim um território nacional, onde
a legitimidade sobre a violência estava centralizada no Estado.7
Por outro lado, o caudilhismo no México e na Argentina, até
Porfírio Díaz e J. A. Roca, promoveu a descentralização do poder;

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o Estado não conseguia se consolidar como aparato autônomo,
servindo de instrumento, como notava Sarmiento, de caudilhos
ou regiões semi-independentes. Nessa conjuntura, escrever era
uma atividade política, estatal; cristalizava a tentativa de produzir
um modelo – na mesma disposição generalizadora do discurso –
para a criação de uma lei capaz de sujeitar a arbitrariedade dos
interesses particulares ao projeto da res pública.
Dada a relativa centralização e consolidação do Estado
no Chile, o saber (não falamos por enquanto de literatura)
adquiria certa autonomia perante a administração geral ou
sobre a projeção da vida pública. Essa autonomia não conduz,
no entanto, a nenhuma independência ou exterioridade, mas é
inegável que já em Bello o “saber” começa a especificar seu lugar
na sociedade, perante a esfera da vida pública e econômica.8 O
saber começa a precisar e delimitar seu território na Universidade
do Chile, cujo impacto na centralização nacional da educação
comprova, desde os anos de 1840, um alto grau de racionalização
e especificação.
Numa primeira análise, a noção de autonomia relativa do
saber na universidade poderia ser questionada assim: a produção
do saber, mesmo começando a se fragmentar em campos espe-
cializados (por sua vez contidos na centralização universitária),
devia se subordinar à prática industrial, segundo afirmavam
Sarmiento, Saco e, em alguns momentos, Luz y Caballero. Em
seu “Discurso de estabelecimento da Universidade do Chile”
(1842), Bello afirmava:

Busca-se satisfazer, em primeiro lugar, uma das necessidades


mais demandadas desde que, com nossa emancipação política,
pudemos abrir as portas aos conhecimentos úteis, lançando as
bases de um plano geral que receba estes conhecimentos, uma
vez que se amoldem às nossas circunstâncias, para propagá-los
por todo o país de modo frutífero, e conservar e acelerar seu
ensino de um modo fixo e sistemático, permitindo, por outro
lado, a adoção progressiva dos novos métodos e das sucessivas
descobertas que façam as ciências.9

Não se deve buscar em Bello a idéia da universidade como


recinto de uma “cultura desinteressada”, ou do “saber pelo saber”,
que defenderiam J. E. Rodó, P. Henríquez Ureña, A. Reyes y R.

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Rojas, nas primeiras décadas do século seguinte, em oposição
ao positivismo. Não obstante, já opera nele uma crítica ao
pragmatismo, que se torna importante em função do desejo de
autonomia do campo intelectual:

A universidade não confundirá, sem dúvida, as aplicações práticas


com as manipulações de um empirismo cego. E o segundo,
porque como disse antes, o cultivo da inteligência contemplativa
que se abre aos arcanos do universo físico e moral, é, em si,
um resultado positivo e da maior importância.10

No momento em que se postula essa distância entre a “inte-


ligência contemplativa” e a vida prática, o campo em vias de
diferenciação se encontra com a necessidade de legitimar seu
“interior” no espaço do social. Com efeito, um dos índices funda-
mentais do processo de autonomização é o aparecimento de uma
prática metadiscursiva, que elabora estratégias de legitimação
para o discurso emergente. A constante reflexão de Bello sobre
as tarefas da universidade, sobre o lugar do saber na sociedade,
registra a autonomia relativa desse saber. Numa sociedade em
que o saber se encontra indiferenciado institucionalmente, a
legitimidade é pressuposta pela identidade entre os discursos
intelectuais e os laços que articulam a vida pública. Sobre isso
afirma Lyotard:

O saber [científico, moderno] se separa dos jogos de linguagem


que se combinam para formar o tecido social. Em contraste
com o saber narrativo [i.e. tradicional], o saber científico já não
é mais um componente direto do tecido social. Porém, indire-
tamente continua sendo, porque se profissionaliza, servindo de
base para as instituições; nas sociedades modernas, os jogos de
linguagem se reagrupam para formar instituições administradas
por sócios qualificados: a classe profissional. A relação entre
saber e a sociedade (...) se converte em uma relação de mútua
exclusividade.11

Essa relação de exterioridade gera a necessidade de “narra-


tivas de legitimação” que, como em Bello, procuram consolidar
a autoridade dos “interiores” na sociedade; são essas “narrativas”
que explicam a funcionalidade dos campos de imanência, do
saber racionalizado.

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Por outro lado, em Bello a “inteligência contemplativa” se
auto-representa como um aspecto da consolidação do Estado.
A autonomia ainda é muito relativa. O saber, em suas diferentes
disciplinas, devia ser um órgão supervisor da vida pública: “O go-
verno, a legislatura, assim como todas as administrações públicas,
necessitam chamá-las em seu auxílio; nada útil ou importante se
pode compreender sem que primeiro seja submetido à ciência
e modificado por ela.”12
O trabalho intelectual não é independente da vida pública,
mas também não é idêntico a ela. Exerce uma função superior
na administração da vida pública, cristalizando-se nessa espécie
de metainstituição, a nova universidade, cuja tarefa era refletir
sobre os papéis e operações das outras instituições. A univer-
sidade demanda legitimidade em termos da consolidação e
manutenção do Estado nacional: “Todos os caminhos por onde
passam as pesquisas de seus membros, os estudos de seus alunos,
convergem para um centro: a pátria.”13 Porém, essa demanda de
funcionalidade não contradiz o grau de especificação do trabalho
intelectual. Daí não devermos confundir a função ideológica
que sempre exercem as estratégias de legitimação (inclusive dos
saberes mais racionalizados na Europa ou nos Estados Unidos)
com a indiferenciação do discurso perante a esfera pública. Sem
dúvida alguma, a autonomia era muito relativa, mas também é
relevante o grau de especificação, e inclusive espacialização, do
trabalho intelectual na universidade sobre o Estado.
Nessa conjuntura de relativa institucionalização, qual era o
lugar das letras? Que conceito de literatura opera em Bello? Se em
Sarmiento prevalece um conceito da escrita como motor da ação,
transformadora da natureza caótica da barbárie e promotora de
vida pública, em Bello constatamos o outro modelo dominante da
literatura, prévio a Martí e ao fim do século: o conceito das “Belas
Letras”, que postulava a escrita literária como paradigma do saber
dizer, um meio de preparar a língua (em estado “natural”) para
a transmissão de qualquer conhecimento: “(...) a propagação do
saber é uma de suas condições mais importantes, porque sem ela
as letras não teriam nada mais a oferecer do que alguns pontos
luminosos em meio às densas trevas.”14
A literatura, sobredeterminada pela retórica, é um depósito de
formas, de meios para a produção de efeitos não literários, não

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estéticos, ligados à racionalização projetada da vida e, segundo
veremos, da língua nacional.
Este conceito de literatura como meio de operações não lite-
rárias se inscreve no campo intelectual da República das Letras.
Nesta república, apesar de se projetar a especialização (sinônimo
de racionalização) das tarefas e discursos, os intelectuais – mé-
dicos, letrados, militares, políticos – compartilhavam uma mesma
e única noção de linguagem: a autoridade comum da eloqüência.
Apesar de existir dentro desse tipo de campo intelectual certo
grau de divisão do trabalho, a fragmentação do saber que desde
finais do século passado diferenciava, por exemplo, a prática e
a autoridade de um poeta da de um letrado, ou historiador, era
desconhecida, inclusive na América Latina. Bello concebia o in-
terior do campo intelectual, em vias de diferenciação da esfera
pública, como algo relativamente homogêneo:

As ciências e a literatura levam em si a recompensa dos trabalhos


e vigílias que exigem. Não falo da glória que ilustra as grandes
conquistas científicas; não falo da auréola de imortalidade que
coroa as obras do gênio. Não se deve esperar muito delas. Falo
dos prazeres mais ou menos elevados, mais ou menos intensos,
que são comuns a todos os níveis da república das letras.15

Não é preciso idealizar a relativa homogeneidade desse


mundo, cujo sentido e organicidade eram efeito de seu rígido
aparato exclusivo. Poucos entravam nesse recinto de elevadas
atividades, opostas – sem dúvida alguma – ao trabalho manual,
inferior, segundo se infere desta citação de J. A. Saco: “O trabalho
intelectual não deve ser medido com a mesma escala com que se
mede o trabalho mecânico, pois sendo este quase sempre bruto
e penoso, não produz os prazeres daquele.”16
Não obstante, a constituição de um campo não se produz
apenas como um processo negativo, mediante sua oposição e
exclusão, neste caso, do trabalho manual. O campo também se
consolida mediante mecanismos inclusivos de identificação, com-
partilhados por seus componentes. Na República das Letras, um
desses mecanismos de identificação era a eloqüência, a ilustração,
como condição prévia de possibilidade de qualquer prática inte-
lectual. Neste sistema, as Belas Letras não se constituíam como
campo de autoridade imanente. Ao contrário, cumpriam a função

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de servir como modelo formal de eloqüência, o que, por outro
lado, liga a literatura à gramática, fundamental em Bello.
Para Bello, a eloqüência era um dos fundamentos da educação
geral. O saber dizer é um pressuposto do projeto de disciplinar
e racionalizar a sociedade emergente. Em suas explicações sobre
as tarefas das diferentes faculdades da nova universidade, definia
assim o lugar da Filosofia e das Letras:

Aquele departamento literário que possui, de um modo pecu-


liar e eminente, a qualidade de polir os costumes, que afina
a linguagem, tornando-a veículo fiel, belo, diáfano das idéias
(...); que, pela contemplação da beleza ideal e de seus reflexos
nas obras do gênio, purifica o gosto, conciliando com os raptos
audazes da fantasia os direitos imprescindíveis da razão; que,
iniciando, ao mesmo tempo, a alma nos estudos severos, auxi-
liares necessários da bela literatura, bem como nos preparativos
indispensáveis para todas as ciências, para todas as carreiras
da vida, forma a primeira disciplina do ser intelectual e moral,
expõe as leis eternas da inteligência a fim de dirigir e afirmar
seus passos, e conhece os recantos profundos do coração, para
preservá-los de extravios funestos, para estabelecer os direitos e
os deveres do homem sobre sólidas bases.17

Nesse sentido, as letras não constituem uma atividade privati-


zada. As letras “pulem” a linguagem e submetem o extravio da
fantasia – de tudo que é espontâneo – à regularidade da razão.
Portanto, as letras provêem as condições necessárias para o
exercício da lei. A insistência na ilustração como dispositivo de
trabalho e ordenação é impressionante. Não se trata de uma
ordem alternativa à ciência, como se dará a partir de Martí, mas
das letras como um trabalho sobre a língua, “indispensável para
todas as ciências”. Esse trabalho sobre a língua “forma a primeira
disciplina”: forma sujeitos submetidos ao poder da lei.18 Efetiva-
mente, as letras provêem a estrutura necessária para a sociabili-
dade racionalizada, para a formação do cidadão:

Se não fosse considerado indispensável a todos os que não


vivem do trabalho mecânico esta instrução geral, sem o objetivo
posterior de uma profissão literária, não veríamos com tanta
freqüência pessoas de outras classes que, não tendo recebido mais
cultivo intelectual do que o das primeiras letras, ou não havendo
dedicado à instrução colegial talvez uma parte considerável de

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sua idade mais preciosa, não consigam mostrar decoro no trato
social, de certa maneira até o embaçam, e também não podem
exercer, como é esperado, os direitos de cidadão, assim como
os cargos a que são convocados no serviço das comunidades ou
na administração inferior da justiça.19

Nesse texto, bastante enfático, subjaz uma polêmica contra a


noção técnica, ou profissionalizante, da educação que já existia
nos círculos intelectuais. Trata-se de uma defesa das letras – ainda
como eloqüência – numa época de emergente pragmatismo,
cujo ideólogo mais conhecido foi o próprio Sarmiento.20 Bello
não aceita a crítica que começavam a fazer, principalmente
à poesia, que, para Sarmiento, Saco e, mais tarde, E. M. de
Hostos, começava a ser um “luxo”, naquele mundo ávido de
racionalidade.21 Mesmo não aceitando esta justificativa – o que
por sua vez revela certo desprendimento, ao menos no nível
poético, da vida prática –, Bello defende o lugar das letras em
termos do projeto (racionalista) da modernização social. Para
o pensador venezuelano, as letras, paradigma da eloqüência,
eram um meio de ajustar a língua às necessidades do projeto
modernizador. As letras proviam o saber preliminar requerido
para formar discursos efetivos e úteis. Além disso, eram um
instrumento de formação de sujeitos disciplinados; sujeitos da lei,
subordinados à ordem geral e capazes, inclusive, de administrá-la.
Enfim, as letras como eloqüência, mais do que um mero índice
de prestígio ou distinção, eram um paradigma – por seu caráter
formalizado – da racionalidade que orientava os projetos da nova
sociedade, em sua luta para ordenar o “caos” americano.
Mas seria possível pensar que superestimamos o papel
do saber dizer. Num mundo que começava a ser regido pela
produtividade, era de se esperar que a eloqüência cumprisse um
papel secundário, limitado a registrar a distinção ou o prestígio
do falante. Na realidade, essa era uma das funções que, até
então, tinha cumprido. Bello assinala a importância “daquele
cultivo indispensável de que, numa sociedade avançada, não
devia carecer nenhum indivíduo que não pertença às classes
inferiores”.22 No entanto, o lugar social da eloqüência não se limita
à ostentação do “capital simbólico” do sujeito individual.23
Até a violenta reação anti-retórica de González de Prada,
Martí, Darío e o campo literário finissecular, a eloqüência tinha

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sido uma medida de autoridade social das letras como modelo de
aprendizagem da racionalidade, num mundo em que o saber dizer
era a condição de possibilidade do saber,24 e onde esse mesmo
saber projetava a consolidação da sociedade moderna. Diferente-
mente da Europa, onde a modernização, já no século 19, operava
com discursos racionalizados, independente da ordem geral do
saber dizer, na América Latina as letras continuaram funcionando
como o veículo do projeto modernizador, até as últimas décadas
do século. Essa desigualdade da modernização, que continuava
operando com discursos tradicionais, não orgânicos ao capitalis-
mo, caracteriza o campo intelectual anterior aos anos 80, que, por
sua vez, buscava sua autonomia frente à Europa e sua hegemonia
sobre a ciência. Nesse mundo carente de discursos racionalizados,
onde os intelectuais já suspeitavam dos riscos da dependência e
da importação, as letras continuavam servindo como modelo de
modernidade desejada. A efetividade e importância das letras não
podem ser vistas como índice de atraso com relação à Europa,
onde o saber dizer tinha perdido seu caráter paradigmático, desde
o começo do século. Trata-se, precisamente, de um desenvolvi-
mento desigual, em que uma forma de autoridade tradicional (a
eloqüência) se refuncionaliza, operando inclusive como agente
da racionalização que, eventualmente, a deslocaria.25
Mesmo entre os intelectuais mais pragmáticos e racionaliza-
dores, como J. A. Saco, por exemplo, que burlava da eloqüência
“amaneirada” dos letrados, encontramos a relação entre as letras
e o desejo modernizador. Em Saco, a “ilustração” provida pelas
letras se irmana com o projeto de disciplinar o outro e raciona-
lizar o trabalho:

Encontrarão na leitura um consolo contra o fastio e um refúgio


contra os vícios (...) Se tivéssemos academias e salas de leitura,
muitas pessoas se dirigiriam a eles, em vez de perder seu tempo,
e também seu dinheiro, desfrutando ali do prazer mais legítimo,
ilustrando seu entendimento e retificando seu coração. Estes
exemplos produziriam um efeito saudável sobre as massas
populares, já que a defesa do gosto pela leitura e estudo faria
com que muitos passassem da ignorância à ilustração, do ócio
ao trabalho, do vício à virtude.26

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A “ilustração” é concomitante ao trabalho; é um dispositivo
contra a vadiagem, um modo de incorporar o outro ao território
da racionalidade. Treze anos antes de Sarmiento, Saco escrevia:
“É preciso retirar da barbárie a massa popular.”27 Porque, “existe
alguma dúvida de que a ignorância engendra os vícios e delitos,
assim como a ilustração os reprime e diminui?”28
Conforme sugerimos anteriormente, a vontade disciplinar em
Bello, que sobredetermina seu conceito de literatura, também
está ligada à gramática: “A gramática de uma língua é a arte de
falá-la corretamente, isto é, do modo em que as pessoas instruídas
a falam.”29 Encontramos em Bello, novamente, a oposição entre
a oralidade e a escrita.30 A gramática não é simplesmente um
registro do uso da língua, mas um aparato normativo que provê,
partindo do exemplo das “pessoas instruídas” (aqueles com
acesso às letras), as leis do saber dizer. Daí a gramática, como
dispositivo pedagógico, ocupar um lugar intermediário entre a fala
(irreflexiva) e a racionalidade da escrita. A gramática abstrai das
letras as leis que podiam disciplinar, racionalizar, o uso popular
da língua. No Prólogo à Analisis ideológico de los tiempos de la
conjugación castellana (1841), Bello escreve:

Existem poucas coisas que proporcionam ao entendimento um


exercício mais indicado para desenvolver suas faculdades, dar-
lhes soltura e agilidade, que o estudo filosófico da linguagem.
Acreditou-se, sem fundamento, que a aprendizagem de uma
língua era obra exclusivamente da memória. Não se pode
construir uma oração, nem traduzir bem de um idioma a outro,
sem esquadrinhar as mais íntimas relações entre as idéias, por
dizê-lo dessa maneira, de seus acidentes e modificações. Não é
tão desprovido de atrativos este tipo de estudos como pensam os
que não se familiarizaram com ele. Nas sutis e fugitivas analogias
de que depende a eleição das formas verbais (e outro tanto se
pode afirmar sobre outras partes da linguagem), se encontra um
encadeamento surpreendente de relações metafísicas, ligadas
por uma ordem e uma precisão que surpreendem, quando se
considera que se devem inteiramente ao uso popular, verdadeiro
e único artífice das línguas. O significado das inflexões do verbo
apresenta, inicialmente, um caos, em que tudo parece arbitrário,
irregular e caprichoso; porém, à luz da análise, esta desordem
aparente se desfaz e se vê em seu lugar um sistema de leis gerais,

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que ainda se mostram suscetíveis de se expressar em fórmulas
rigorosas, que se combinam e se descombinam como as do
idioma algébrico.31

A luz da análise abstrai a ordem superior – universal – do


caos aparente no uso particular da língua. Daí a identificação
da gramática com a racionalidade, cuja forma ótima seria esse
“idioma algébrico”, ou seja, purificado pela reflexão e distante da
“arbitrariedade” que distingue a oralidade iletrada. O uso (falado)
é irreflexivo, logo tende à desordem. Por isso, o objeto da gramá-
tica, o uso, não pode ser propriamente um modelo. O modelo
é o “costume uniforme e autêntico das pessoas educadas”;32 as
pessoas educadas pelas letras.
A oposição entre a oralidade e a escrita, entre a contingência
do uso espontâneo e a racionalidade do discurso, é clara em
Bello: “Nas notas ao pé das páginas chamo a atenção para certas
práticas viciadas da fala popular dos americanos (...)33 a fala
popular era espontânea, ou seja, externa à estrutura do discurso,
e devia ser submetida, como toda instância do natural, à ordem
do artifício. No fundo, a autoridade do sujeito da gramática se
fundamenta numa noção do “popular” como natureza “bárbara”
e da língua “natural” como matéria contingente, que devia ser
dominada pelos meios da racionalidade. Diante do “caos”, perante
a língua em estado “natural”, a gramática projeta a transformação
de sua matéria prima em valor. A gramática submete a língua
falada ao controle da escrita, assim como em outras regiões da
ideologia iluminista, a tecnologia condensava o projeto matriz
de submeter a matéria-prima natural ao regime da produtividade
e do mercado.
O pensamento gramatical de Bello produziu no Chile, ao
longo dos anos de 1840, uma ardente polêmica, na qual interveio
Sarmiento. Para este, a gramática era uma atividade “retrógrada”,
contraditória ao ideal de modernização. Em um de seus momentos
populistas, cuja ambigüidade já discutimos antes, assinala
Sarmiento:

A soberania do povo tem todo o seu valor e predomínio no


idioma; os gramáticos são como o senado conservador, criado
para resistir aos embates populares, para conservar a rotina e

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as tradições. São, a nosso ver, com o perdão da má palavra, o
partido retrógrado, estacionário, da sociedade falante.34

Posteriormente, acrescenta:

Muito mais de acordo teríamos andado em nossa polêmica se


antes tivéssemos definido claramente nosso princípios filosó-
ficos. Nós cremos no progresso, ou seja, cremos que o homem,
a sociedade os idiomas, a própria natureza, caminham com
perfeição, e que, portanto, é absurdo voltar os olhos para trás
e buscar num século passado modelos de linguagem, como se
fosse possível imaginar que o idioma tivesse chegado à perfeição
numa época, a olhos vistos inculta, como é esta de que falam
nossos antagonistas; como se os idiomas, expressão das idéias,
não caminhassem com elas; como se numa época de regeneração
social, o idioma legado pelo passado conseguisse escapar da
inovação e da revolução.35

A defesa sarmientina da autoridade popular é muito relativa.


Já vimos na leitura de Facundo como, apesar dessa aproximação
à fonte oral, a voz “confusa” do outro é submetida à ordem da
escrita. Em todo caso, os ataques de Sarmiento explicam o tom
freqüentemente defensivo de Bello, assim como sua insistência
na importância da gramática (e do saber dizer), em termos desse
mesmo progresso que defendia o pensador argentino. Para Bello,
o questionamento da oralidade não era apenas um problema
acadêmico. No mundo hispano-americano, era necessário con-
trolar a oralidade para deter a tendência à dispersão lingüística.
Bello se aterrorizava com a possibilidade de que o espanhol se
fragmentasse em múltiplos dialetos e línguas americanas, como
ocorreu com o latim após a expansão e dissolução do Império
Romano:

O maior de todos, e o que, se não o emendamos, irá nos privar


das ilimitadas vantagens de uma língua comum, é a avenida de
neologismos de construção, que inunda e turva muito do que
se escreve na América, alterando a estrutura do idioma, tende a
convertê-lo numa multidão de dialetos irregulares, licenciosos,
bárbaros; embriões de idiomas futuros que, durante uma longa
elaboração, reproduziria na América o que foi a Europa no
tenebroso período da corrupção do latim.36

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Esse terror iluminista ao exterior da estrutura totalizante não
é necessariamente uma força conservadora, como afirmava
Sarmiento. Bello defende a unidade da língua em função do
projeto de incorporar os territórios dispersos da América à ordem
do mercado, que buscava sistematizar seu domínio:

Nossa América reproduzirá, dentro de pouco, a confusão de


idiomas, dialetos e jargões, o caos babilônico da idade média;
e dez povos perderão um de seus mais poderosos vínculos de
fraternidade, um de seus mais preciosos instrumentos de corres-
pondências e comércio.37

Acrescenta: “À medida que se fixam e se uniformizam as


línguas, diminui uma das travas mais incômodas a que está
sujeito o comércio entre os diferentes povos (...).” 38 Desse
modo, o saber dizer que a gramática explicita e ensina não era
um discurso propriamente tradicional; sua função é interna ao
impulso modernizador, ao desejo de incorporar a dispersão
americana à ordem, neste caso, mercantil. E mais, essa função
modernizadora da gramática concilia com o projeto de con-
solidar a vida pública, que, como vimos antes, era um núcleo
produtor da escrita em Sarmiento. Para Bello, se continuasse a
dispersão do espanhol na América,

Chile, Peru, Buenos Aires, México, falariam cada um a sua língua,


ou melhor dizendo, várias línguas, como sucede na Espanha,
Itália e França, onde dominam certos idiomas provinciais,
convivendo lado a lado com uma série de outros, o que é um
verdadeiro estorvo para a difusão das luzes, a execução das leis,
a administração do Estado, a unidade nacional. Uma língua é um
corpo vivo: sua vitalidade não consiste na constante identidade
de seus elementos, mas na regular uniformidade das funções
que estes exercem, dos quais procedem a forma e a índole que
distingue a tudo.39

Além da metáfora do corpo-língua, outra se sugere mais


significativa para nós: a língua tem “funções” uniformes – ao
menos essa seria sua condição ideal – como o Estado. Efetiva-
mente, para Bello a unidade da língua, assim como possibilita a
integração mercantil, também é uma condição de possibilidade
da consolidação do Estado nacional.

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Em Bello, a língua nacional – regulada pelas letras –, mais do
que um instrumento suplementar para a transmissão passiva dos
conteúdos da lei, traça o mapa onde se inscrevem os limites e as
hierarquias do território estatal, onde a voz da “barbárie” seria
idealmente dominada pelo rigor da lei. Nessa língua purificada,
racionalizada e administrada pela gramática, os sujeitos se deslo-
cariam no espaço da lei, submetidos à estrutura da sociabilidade
instituída pela ordem da letra e pelo poder dos letrados.40

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3.
A fragmentação
da República das Letras

Nos capítulos anteriores, vimos como no campo intelectual


anterior a Martí a racionalização do trabalho, incluindo a sub-
divisão do saber geral em discursos com sujeitos e modos de
representação diferenciados, era fundamentalmente um projeto. A
modernização era uma utopia projetada pelo grau de formalidade
que a escrita oferecia, num mundo carente (mas já desejante) de
saber científico, propriamente moderno, e onde já se desconfiava
do perigo da dependência dos países detentores do monopólio
desse saber. Nessa República das Letras, a escrita encontrava sua
autorização ao estender seu domínio sobre a contingência e a
anarquia do mundo representado, dentro de um sistema em que
representar era ordenar o “caos”, a “oralidade”, a “natureza”, a
“barbárie” americana. Dessa maneira, entre as letras e o projeto
modernizador, que encontrava na escrita um modelo de raciona-
lidade e um depósito de formas, havia uma relação de identidade
e não apenas de “reflexo” ou semelhança.
A cidade – emblema dessa modernidade desejada – era um
lugar virtual, do porvir: Futuram civitatem inquirimus, afirma
Luz y Caballero.1 E acrescenta: “Sim, senhores, no futuro, pois
ainda que pelos anos que tenho seja um homem do passado,
por meus esforços e aspirações vivo no futuro e para o futuro.”2
Ser do passado, inscrever-se numa tradição que começa a se

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tornar objetiva, e por outro lado, propor a mudança, radical,
com uma esperança cega no “futuro”; a auto-representação
de Luz y Caballero pode ser lida como uma bandeira da visão
teleológica que orienta seus contemporâneos modernizadores
latino-americanos. Nessa modernidade futura e desejada, assi-
nala Luz y Caballero:

A divisão do trabalho [seria] o principal objetivo dos avanços


industriais e científicos deste século, essencialmente progressista.
Não há dúvida de que a subdivisão do trabalho realizou prodígios
na soberba Albión, e seguramente que de todas as vantagens
verificadas, nenhuma foi mais proveitosa para a ciência do que a
de ter atacado de frente e corrigido o enciclopedismo que invadiu
a educação moderna.3

Para Luz y Caballero, o “futuro” tinha sua geografia particular.


Falar a partir de Cuba era estar situado num “passado” cujo
“futuro” já havia sido atualizado na Inglaterra ou nos Estados
Unidos. O olhar do intelectual, colocado nesse “futuro”, garantia
a correção de uma tradição deficiente. Luz y Caballero não previa
que quando ocorresse essa divisão de trabalho, quando o enci-
clopedismo implodisse e se fragmentasse em múltiplos campos
de imanência, especializados, seu próprio tipo de autoridade
perderia o lugar privilegiado que ocupava na vida pública.
Essa relação com a tradição e com a modernidade mudará
radicalmente em Martí e no final do século, no interior de um
sistema cultural em que a literatura problematiza sua relação
com o desejo de racionalização, legitimando-se em função da
defesa de uma “tradição” que ela mesma inventa e como crítica
do projeto modernizador, que, por sua vez, desenvolveu seus
próprios aparatos discursivos, emancipando-se das letras e dos
letrados tradicionais.
Neste capítulo, queremos analisar como começa a ser desauto-
rizado o saber dizer, assim como se fragmenta, no último quarto
de século, o campo da República das Letras. Este capítulo está
dividido em três partes: primeiro, queremos ver como se trans-
forma o lugar das letras na educação, na medida em que esta
se autonomiza da autoridade externa, determinada pela retórica;
depois, exploramos a mudança na relação entre a política, o dis-
curso literário e o escritor, inclusive (e principalmente) em Martí,

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que juntamente com Gonzalo Prada, parecia ser um dos últimos
escritores “públicos”, mais próximo da hibridez de Sarmiento
do que da “pureza” literária de Darío. Tentaremos encontrar
alguns índices da separação das letras das instituições que, até
então, haviam garantido sua autoridade social; separação (ou
“crise”) pressuposta pela irrupção da literatura como discurso
moderno.

Literatura e educação

A mudança pela qual passa o lugar ocupado pelas letras


na educação, nas últimas décadas do século 19, é sintomática.
Recordemos que, para Bello, mais do que um discurso autônomo,
as letras eram um dispositivo de formalização e distribuição de
conhecimentos heterogêneos: “A propagação do saber é uma
das condições mais importantes, porque sem elas as letras não
teriam mais a oferecer do que alguns pontos luminosos em meio
à densas trevas.”4
Nesse sentido, as letras foram um elemento estruturante da
educação. A Faculdade de Humanidades da Universidade do
Chile estava encarregada da formação dos professores.5 Apesar
de o estudo das letras já se encontrar, no Chile, em 1842, signi-
ficativamente autonomizado da Faculdade de Direito, ainda se
organizava a “propagação do saber” sob o crédito geral do saber
dizer, sem uma metodologia pedagógica precisa. Em resposta
a esse papel paradigmático das letras na educação, intelectuais
como Alberdi, Sarmiento ou Luz y Caballero lançam sua crítica
ao “enciclopedismo”, propondo um regime de especialização
rigoroso e prático, bem antes do final do século. No entanto,
mesmo essas críticas, produzidas a partir de um extraordinário
pragmatismo, não se articulam a partir de um discurso propria-
mente pedagógico.
Em meados da década de 80, a mudança do lugar das letras
na educação começa a ser efetiva. Com relação a isso, a situação
de Eugenio María de Hostos, fundador da Escola Normal da
República Dominicana (1880), é exemplar. No momento em que o
positivismo começava a ser a ideologia determinante da educação
em várias regiões do continente, Hostos insistia na racionalização

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da pedagogia, atacando tantos os vestígios de educação religiosa,
como o saber dizer enciclopedista.
Antes de assinalar alguns traços do discurso pedagógico em
Hostos, convém fazer uma referência à trajetória de seu desen-
volvimento intelectual. Em vários sentidos, Hostos constitui um
contraponto ao aparecimento do literato finissecular. Como em
Martí, Gonzalo Prada, Gutiérrez Nájera ou Eugenio Cambaceres, o
trabalho intelectual de Hostos começa pelas letras. Diferentemente
deles, no entanto, Hostos evitará a literatura voluntariamente. Em
seu próprio trabalho sobre a língua, sua escrita busca obliterar
rigorosamente qualquer marca literaturizante, qualquer registro
de estilo, medida do novo valor literário a partir de Martí.
O primeiro trabalho de Hostos foi um romance, La peregri-
nación de Bayoán (1863), escrito em forma de diário íntimo,
gênero do qual Hostos, mesmo durante seu fervor positivista,
nunca se distanciou.6 Por trás de um indigenismo superficial, o
romance traça, na verdade, o itinerário do desejo de um jovem
escritor antilhano. Itinerário do desejo de se inscrever, mediante
a narrativa, no espaço da “publicidade”, da polis, na metrópole
espanhola, com o fim último, repete constantemente Bayoán, de
contribuir para a independência de sua ilha, Porto Rico. Escrever,
em La peregrinación, é um modo de assumir autoridade, um
modo de chegar ao poder que consigna a palavra na República
das Letras:

Eu via que a conquista de um nome literário é a conquista de


um poder. O poder que me fazia falta para servir imediatamente
meu país, esquecido, vexado, encarnecido.

O juízo público (...) era o que eu necessitava (...), precisava


dele para autorizar minha entrada na vida ativa, na propaganda
penosa, na luta difícil na qual ansiava me comprometer (...).7

Estas palavras do prólogo de Hostos à segunda edição do


romance no Chile, em 1873, registram a estreita relação entre as
letras e a política que domina até a década de 70. Não obstante,
o prólogo representa tal conceito de literatura como algo do
passado. Nesse mesmo prólogo, Hostos afirma que La peregri-
nación “é o único dos meus trabalhos literários que contemplo
com orgulho e consigo ler sem a tristeza piedosa que tenho

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frente às obras de imaginação”.8 Esse prólogo é uma espécie de
manifesto em que Hostos se declara, decididamente, contra sua
própria história, a favor dos “homens lógicos”:

Existem no mundo muitos artistas, muitos adoradores da forma,


muitos espíritos vazios que obedecem apenas às leis das pro-
porções, e eu não gostaria de ser mais um desses tagarelas que,
apesar de encher o ambiente em que se encontram com sonoras
palavras, são radicalmente incapazes de produzir o que mais falta
faz no mundo: homens lógicos.9

“Artistas da palavra”, “adoradores da forma” e da “proporção”:


não serão estes alguns dos traços que os literatos do final do sé-
culo, particularmente os modernistas, assumem como próprios,
em suas insistentes auto-reflexões, em seu discurso especificador?
A diatribe de Hostos consolida, paradoxalmente e de maneira
negativa, um sujeito literário. Em oposição a esse sujeito se erige
o “homem lógico”, como agente dos novos discursos, propria-
mente modernos, da racionalidade. O “homem lógico” é, assim,
contemporâneo do outro que torna possível sua consolidação:
outro que o “homem lógico” irá reificando, limitando, ao território
do “tradicional” e “inútil”, como algo externo à disciplina exigida
pela racionalização.
É significativa a inscrição do “eu” na citação anterior: “e eu não
gostaria de ser mais um desses tagarelas”. A conjunção assinala
uma disjunção na qual o sujeito se consolida e se afirma mediante
seu enfático desprendimento “deles”, os “artistas da palavra”. O
procedimento torna operar na seguinte citação: “As letras são o
ofício dos ociosos ou dos que já terminaram o trabalho de sua
vida, e eu [ainda] tinha muito a fazer.”10 Esse “eu” que atravessa
Hostos é produto de um corte que opõe radicalmente as letras à
razão. “Eles” são os “vagabundos da fantasia,”11 “corruptores da
sensibilidade,”12 “perigosas influências sociais”13 e “corruptores
da razão”.14
Essa não seria certamente a primeira vez que na América o
escritor, especialmente o poeta, era considerado um “vagabundo
da fantasia”. O próprio Bello antecipava a suspeita de que certos
modos de escrita – especialmente a poesia, que se relaciona
com o erotismo – corriam o risco de desbordar os limites da
racionalidade e da sociabilidade.15 Mas, conforme comprovamos

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em sua leitura revisora da poesia do cubano José María Heredia,
para Bello ainda era possível conceber a eloqüência, “as leis de
um severo gosto”, como um modo de controlar e disciplinar os
perigos da “espontaneidade” imaginativa.16 Para Hostos, por outro
lado, a racionalidade do “homem lógico” não depende do saber
dizer, mas sim de saber fazer da ciência um paradigma, tanto por
seu rigor metodológico, como por sua aplicabilidade.
No costado do “homem lógico” também se projeta a emer-
gência de um espaço literário, numa dialética que distancia a
literatura do sistema anterior das letras, ainda dominado pelo
desejo de racionalização. Daí ser válido pensar o Ismaelillo (1882)
de Martí como um dos núcleos produtores da modernização
literária. Isto ocorre não apenas por seu trabalho sobre a língua,
que certamente opera como reescrita de formas conhecidamente
tradicionais, mas porque sua enunciação poética se produz a
partir de um campo discursivo já diferenciado dos discursos
disciplinados da racionalização. Ismaelillo pressupõe um outro
saber – o do “menino”, o da visão, às vezes onírica – como lugar
do especificamente imaginário, ligado ao ócio, que nele é con-
siderado como “refúgio” de uma racionalização que “assombra”.
A partir dessa região excluída, mas ao mesmo tempo criada
pela racionalização, fala o novo sujeito literário, enunciando
freqüentemente o ideal da informalidade, da indisciplina, e, às
vezes, também da transgressão e da loucura. Não aceitamos, de
maneira abstrata, a radicalidade desse saber outro. Neste mo-
mento, apenas nos interessa assinalar sua oposição declarada à
racionalização daquilo que, paradoxalmente, é produto. Martí:
“Uma tempestade é mais bela do que uma locomotiva:”17 o su-
jeito literário fala quando o transporte se detém, pressupondo a
catástrofe da racionalidade, cujo aparato exclusivo, no entanto,
produziu essas novas margens.
Historicamente, o âmbito alternativo da literatura moderna –
não por casualidade identificada, nos anos 80, com a poesia, o
primeiro modo de escrita que se descolou da vida “prática” –18
não foi inventado pelos poetas ou literatos especializados. O
próprio âmbito da racionalização, ao cancelar a autoridade das
letras, produziu, por exclusão, esse espaço desvalorizado por
Hostos, de onde, no entanto, iria emergir um sujeito literário;

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sujeito que levanta sua voz, já crítica, no costado da racionaliza-
ção, como uma voz carregada de valor “espiritual”, num mundo
já definitivamente desencantado e mercantilizado. Daí a “crise”
da literatura, anunciada por Martí e seus contemporâneos, ser
sumamente relativa, a ponto de se constituir num dispositivo
de legitimação e proliferação; o cancelamento do saber dizer e
da autoridade do sistema anterior das letras, mais do que uma
crise da literatura, representou a condição de possibilidade de
seu aparecimento e autonomização, como um discurso parado-
xalmente moderno, produzido pela racionalização e autorizado
como crítica da mesma. É importante ver, em seguida, como essa
“margem” da literatura, pelo menos na América Latina, nunca
tenha perdido vigência na prática; sua crítica à modernização
permitiria ampliar, a partir de 1898, sua influência sobre a vida
pública, quando a literatura, exatamente por sua demanda de
autonomia do poder econômico, se converteria no dispositivo
básico de uma ideologia antiimperialista, definindo o “ser” latino-
americano em oposição à modernidade “deles”, Estados Unidos
ou Inglaterra.
Na década de 80, no entanto, esse poder da margem ainda
não desfrutava de sólidas bases institucionais. Apesar de os dois
campos aparecerem correlacionados – no jogo de definições e
exclusões que instaura a racionalização –, institucionalmente eles
se encontram, sem dúvida alguma, hierarquizados. O “homem
lógico” prevalecerá na educação, que também se moderniza e
ascende ao conjunto das tarefas públicas, em oposição tanto à
Igreja, que não se esquecia de seu antigo poder sobre o “saber”,
como ao enciclopedismo dos letrados iluministas. Essa é a
dupla frente de luta que confronta Hostos em “El propósito de
la Normal” (1884), discurso pronunciado em Santo Domingo, no
Instituto Pedagógico, que havia fundado em 1880:

Haveríamos de restabelecer a cultura artificial que o escolasticismo


ainda insiste em ressuscitar? Continuaríamos, de alguma maneira,
devedores dessa monstruosa educação da raça humana (...)? (...)
Iríamos buscar, na fonte em que o Renascimento encontrou a
cultura moral e intelectual, o modelo que deveríamos que seguir?
Não estamos mais para isso. Estamos para ser homens próprios
(...) homens úteis em todas as atividades humanas, e não homens

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sempre dependentes do que a literatura e as ciências sociais
gregas e romanas elegeram como modelos para as necessidades
(...) Estamos para pensar e não para expressar.19

É evidente a crítica ao conceito das letras e da educação de


Bello (com o qual Hostos, por estar vivendo no Chile, estava
familiarizado). Em Bello não existe disjunção entre pensar e
expressar: o saber dizer, o domínio sobre a expressão, é a
condição da atividade pensante, sobredeterminando, inclusive,
a distinção entre uma “boa” ou “má” idéia, assim como entre um
“bom” ou “mau” cidadão.
Hostos, por outro lado, propõe “um ensino verdadeiro: o que
desinteressado dos propósitos históricos, dos métodos parciais,
dos procedimentos artificiais e, atendendo exclusivamente ao
sujeito do conhecimento, que é a razão humana, e ao objeto de
conhecimento, que é a natureza, promove a cópula de ambos”.20
Hostos propõe uma educação científica, conforme inferimos de
“La educación científica de la mujer”, em que insiste na neces-
sidade de controlar e dominar a imaginação, que seu discurso
reifica na mulher ou nos poetas.21 A imaginação – atributo femi-
nino – é, para Hostos, perigosa, propensa à barbárie.
É necessário assinalar que Hostos continua operando no inte-
rior da retórica iluminista e modernizadora, cuja figura matriz é a
antítese civilização/barbárie. Continua operando no interior de um
discurso sobre (e a partir da) América Latina como lugar do caos;
representação, em último termo, baseada na idéia de uma ordem
que se pressupõe realizada fora: América Latina como carência
da modernidade, que é o que define positivamente Europa ou
Estados Unidos. Para ele, assim como para seus contemporâneos
iluministas, a educação podia estender o domínio da “civilização”
e incorporar a “barbárie”:

A anarquia, que não é um fato político, mas um estado social,


estava em tudo, como estava nas relações jurídicas da nação; e
esteve no ensino e nos instrumentos pessoais e impessoais do
ensino (...) Era indispensável formar um exército de professores
quem em toda a República lutasse contra a ignorância, contra a
superstição, contra o cretinismo, contra a barbárie.22

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Como Sarmiento ou Bello, Hostos postula a sujeição do “exte-
rior” bárbaro à ordem do discurso. No entanto, o próprio “interior”
do discurso, ou seu espaço estruturado, já se fragmentou, disse-
minando a vontade racionalizadora – e a escrita – em diferentes
regiões, formadas em muitos casos por autoridades em conflito.
E, principalmente, Hostos não aceita o caráter indiferenciado
e múltiplo do letrado tradicional: “Os patriotas por excelência
que trabalharam para restaurar os direitos da nação (...): ou seus
beneméritos esforços se anulavam na confusão das paixões anár-
quicas, ou a falta de uma ordem e um sistema, impedia que seu
venerado trabalho frutificasse por completo.”23
Por outro lado, Hostos propõe uma educação com “ordem
racional nos estudos, [e] um método baseado no ensino”.24 Dife-
rentemente do campo intelectual anterior, em Hostos o acesso à
ordem da escrita não garante a autoridade do enunciado didático.
A educação se modernizava ao mesmo tempo em que expandia,
como aparato ideológico dos estados já consolidados, seu do-
mínio nas novas nações. Com esse movimento, se descolava da
autoridade exterior do saber dizer, autonomizando seu campo e
produzindo um método especificamente pedagógico, com nor-
mas imanentes de validação. Em Hostos, as figuras da retórica
modernizadora continuavam operando, ainda que já não sejam
enunciados a partir dos mesmos campos institucionais, a partir
da relativa indiferenciação da República das Letras.

  

Trata-se, em parte, da profissionalização dos professores, que


para muitos modernistas seriam outra figura-limite do sujeito
literário. Porém, mais importante que essa profissionalização,
projetada por Luz y Caballero vinte anos antes, o fundamental é a
constituição de um campo discursivo especificamente pedagógico,
que possibilita um lugar de enunciação aos novos “profissionais”.
Esse discurso pedagógico, dominado por uma ideologia positivista
(quase sempre mais pragmática que sua instância em Hostos),
negaria ao emergente sujeito literário um lugar no aparato escolar,
obstaculizando o desenvolvimento da literatura como disciplina
acadêmica, até a primeira década de 1900. Isto ocorria em razão

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da então vigente identificação da literatura – no exterior do
campo literário – com o sistema tradicional das Belas Letras e a
retórica, cuja autoridade geral e “aplicabilidade” imprecisa já se
encontravam radicalmente desacreditadas.
Com relação à falta de autoridade do sujeito literário na edu-
cação finissecular, convém recordar o processo de constituição,
sumamente tardio, dos departamentos literários na América Latina.
No México, por exemplo, os primeiros cursos propriamente
literários só foram instituídos depois de 1912, na Faculdade de
Humanidades da Escola de Altos Estudos,25 depois da desauto-
rização do positivismo (ideologia do profiriato) nos primeiros
anos da Revolução Mexicana. Na Argentina, após várias tenta-
tivas frustradas, os primeiros cursos de literatura, separados do
currículo de direito, não tiveram continuidade até bem depois
de 1896.
Vamos nos deter, brevemente, na história da Faculdade de
Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires.26 Depois do
período rosista, a universidade é reconstruída na década de 60,
sob o comando do reitor Juan María Gutiérrez (1861-1873). O
estudo das letras volta a ser importante, no interior da Faculdade
de Direito e Ciências Sociais, apesar de ter que aguardar até 1874
quando, sob a reitoria de Vicente Fidel López, tenta-se criar uma
Faculdade de Humanidades e Filosofia. A Faculdade planejava
oferecer cursos superiores em Letras, categoria que ainda se
encontrava subordinada aos estudos clássicos, e teria muito pouco
a ver com o conceito de literatura-estética que circulava nessa
década, fora da universidade.27 Enraizado no já desacreditado
conceito beletrista (resumido pelo próprio V. F. López), o projeto
da Faculdade fracassa naquele mesmo ano.
Em 1881, é feita nova tentativa de organização da Faculdade,
contando já com alguns filósofos especializados. A tentativa,
frustrada em 1883, propunha instituir cursos de história e litera-
tura hispano-americanas, incluindo matérias da cultura nacional,
que dessa maneira começava a se reificar, tornando-se objeto de
reflexão e estudo.
Em 1888, assumindo novamente o projeto de organização,
Norberto Piñeiro e Eduardo L. Bidau, secretários da Universi-
dade, assinalam:

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Afirmam que a Faculdade de Filosofia e Letras é algo superficial,
não responde a um fim prático e se opõe às tendências do país
– porque tiraria braços da indústria e demandaria gastos maiores
para inutilizar um grande número de homens, que se encon-
trariam desorientados, fora do movimento geral da sociedade
– porque o porvir e a grandeza da nação está nos trens de ferro,
na colonização das terras, no cultivo em grande escala (...)

Eis aí, sinteticamente, os argumentos exibidos de diferentes


modos contra o estudo da filosofia e das letras numa Faculdade
especial.

É exatamente porque a riqueza, os bens adquiridos, o desejo


de possuir e os negócios se desenvolverão (...) é que se torna
necessário difundir os altos conhecimentos filosóficos, as artes e
as letras, para que os seres não se rebaixem e não tenham, apenas
como seu supremo objetivo, a acumulação de bens materiais.28

Poderíamos ler esta história, não simplesmente como um


documento transparente, estritamente referencial da situação
da literatura na Universidade, mas como um texto que, em sua
própria disposição documental ou descritiva, pressupõe a auto-
ridade diferenciada da literatura e sua emergência na educação.
Encontramos aí, novamente, a oposição entre literatura e mo-
dernização, agora com sinal inverso de como encontrávamos
em Hostos, o que revela, já em 1888, que a literatura desfrutava
de certo espaço no aparato escolar. A distância entre o sujeito e
os emblemas da modernização (“indústria”, “utilidade”, “trem de
ferro”, “colonização de terras”) é impressionante. É uma distância
relevante, se recordamos que se trata de uma história produzida
pela própria burocracia universitária.
Em oposição aos “interesses materiais”, este texto se propõe
a fazer um estudo compensatório da literatura em função de sua
capacidade moralizadora. Anuncia, mediante uma retórica já
cristalizada, a defesa do estético na educação, o que constituirá
o centro do arielismo:

Por muitas razões já não se acredita (ou se acredita muito pouco)


nos efeitos moralizadores da instrução comum, da instrução média
e da instrução profissional, porque atualmente a instrução é um
instrumento que, ora pode se empregar para o bem, ora para
o mal; porém, a instrução superior, quando não possui outro

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objetivo que ela mesma, quando se trata da ciência pela ciência
e da arte pela arte, quando é procurada por aqueles que amam
a verdade e a beleza, evidentemente que [ela] moraliza. É que,
nesse caso, um sentimento aparece, ela deixou de ser utensílio
para se converter em “objeto de arte”.

São poucos, escassos, constituem apenas uma reduzidíssima


classe eleita, os amantes desinteressados do belo e do verdadeiro
(...) No entanto, que importa! A vantagem de vê-los crescer ou
formarmos nós esta classe não é menos real.29 (grifo nosso)

O “desinteresse” da “arte pela arte”, que fique claro, não se


deve confundir com uma postura anti-social. O “desinteresse”, ou
a autonomia da arte da “razão prática”, digamos, é o que garante
sua autoridade como novo recinto da moral, que por sua vez
foi deslocada da educação, até então orientada para a realização
de “fins práticos”. Assim, a beleza, exatamente por não ser um
“utensílio”, compensa o fluxo desestabilizador (amoral) do di-
nheiro e da vida “vazia” do “materialismo” reinante. A beleza,
experimentada por uma minoria seleta, compensa a “massifi-
cação” capitalista.
Esta retórica antecipa o aparecimento do arielismo, momento
em que o sujeito literário – ligado à defesa do “espírito” latino-
americano contra o poder material “deles” – conseguia deslocar
o positivismo de sua posição central na educação, instituciona-
lizando a “margem” da literatura como crítica da modernização.
No entanto, em 1888, esse discurso literário, cuja retórica já se
cristalizou, é subalterno ao domínio do pragmatismo positivista
no aparato universitário e estatal. Encontramos, assim, um dos
traços definidores do desenvolvimento da literatura latino-ame-
ricana do final do século; ainda que já seja operativo o conceito
autônomo de literatura, que tenha especificado sua linguagem
(o estilo) e tenha proposto narrativas de legitimação (a crítica à
modernidade), esse discurso carece das bases institucionais que
possibilitam a consolidação social de seu território. Daí aparece,
como veremos a seguir, a radical dependência que a literatura
tem da imprensa no final do século.
Mesmo assim, conforme demonstram as declarações destes
burocratas ilustres da Universidade, a tendência à autono-
mização é impressionante e ultrapassa, como linguagem e

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ideologia, o estreito campo dos poetas modernistas. Notemos,
de passagem, que o texto de Piñero e Bidau é de 1888, ano em
que se publica Azul no Chile, o que comprova que o impulso
de uma literatura em busca de sua autonomia não é patrimônio
exclusivo de uma vanguarda literária; vanguarda literária alheia
e radicalmente oposta – de acordo com Jitrik –30 às regiões
mais centrais da literatura oficial. A cultura oficial não é um
bloco homogêneo. É possível suspeitar, se aceitamos o texto de
Piñeiro e Bidau como índice, que a inscrição de Darío no campo
argentino dos anos 90 não significou uma ruptura radical e nem
mesmo uma ameaça aos valores dominantes. Houve debates,
como demonstram as críticas de Groussac ou do próprio Rodó
ao “decadentismo” de Darío; críticas que Darío soube responder
muito bem, a partir de Cantos de vida y esperanza. Porém, é
um pouco inverossímil pensar que, na Buenos Aires dos anos
90, as polêmicas dos críticos mais conservadores (como Calixto
Oyuela ou Rafael Obligado) contra os novos poetas fossem
representativas do gosto geral dos grupos dirigentes.
Em todo caso, o processo de fundação da Faculdade em 1880
também fracassa e será necessário esperar até 1896, quando
finalmente se torna realidade. Sua fundação foi, sem dúvida, o
resultado do esforço de intelectuais que defendiam a especi-
ficidade da literatura no interior do campo que Ricardo Rojas
chamaria, em La restauración nacionalista, de as “novas huma-
nidades”.31 Ao invés de se devotar ao estudo da retórica e das
culturas antigas, as “novas humanidades” deveriam ser o eixo
da “reconstrução nacional”, contribuindo para a “purificação”
da língua nacional e a defesa do “próprio”, naquele período de
intenso fluxo imigratório.
Por outro lado, como condição de possibilidade da Facul-
dade, em 1896, teve relevância a especialização dos estudos de
Direito, dos quais as “letras”, que ainda carregavam o peso da
oratória, não conseguiam se emancipar.32 Em 1895, um ano antes
da fundação da Faculdade de Filosofia e Letras, a Faculdade de
Direito e Ciências Sociais é reorganizada, expulsando as “letras”
de seus domínios. Ou seja, o estudo do Direito se autonomizava
da eloqüência e do saber dizer, desautorizando os instru-
mentos tradicionais do letrado. Em sua Memoria, de 1895, o
reitor afirmava:

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A Faculdade de Direito e Ciências Sociais reformou seu plano de
estudos, dividindo em dois anos o ensino da filosofia do direito,
que até agora se fazia em um; esta reforma apenas pode se consi-
derar transitória, enquanto ocorre outra mais fundamental (...)

O curso preparatório dessa Faculdade não pôde ser comple-


tado nesse ano porque o H. Congresso suprimiu a cátedra de
literatura (...)

Seria desejável que se criasse a Faculdade de Filosofia e Letras,


para que a de Direito limite seu ensino às [matérias] do seu
ramo.33

Na medida em que se consolidava o Estado, o discurso da


lei era racionalizado. A educação dos letrados também se dis-
ciplinava, reduzindo sua esfera ao especificamente legal. Dessa
maneira se cancelava o papel paradigmático do saber dizer, como
meio de formalização e medida de valor do discurso letrado: a
“verdade” da lei, pelo menos em princípio, era independente
da forma de sua expressão. Paradoxalmente, essa fratura entre
as letras e a lei possibilita o aparecimento da Faculdade em
1896,34 ao mesmo tempo que se registrava uma reorganização
da vida pública e do político como esfera separada da literatura.
A partir dessa separação, a literatura emerge como disciplina
acadêmica.35

Literatura e vida pública:


sobre a categoria do letrado

Até o último quarto do século 19, na América Latina, a relação


entre a literatura – ou as letras – e a vida pública não era em
geral problemática. Nas sociedades recém-emancipadas, escrever
era uma prática racionalizadora, autorizada pelo processo de
consolidação estatal.
Como mostra um pouco tardia dessa legitimação política,
estatal, da “literatura”, convém recordar que mesmo em 1871, na
Guatemala, era possível para Martí ler um documento legal, “civi-
lizador”, como instância de um discurso literário: “Em seu espírito,

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o Código é moderno; na definição, claro; nas reformas, sóbrio;
no estilo, enérgico e airoso. Exemplo de legistas pensadores e
prazer de homens de letras, será sempre o erudito, entusiasta e
literário relatório (...).”36
Esta citação registra em Martí a vigência de um conceito de
literatura que começava, mesmo nele, a se mostrar sem efeito.
De vários ângulos esse texto é uma exceção, pois já a finais da
década de 70 Martí se encontrava distante da tessitura letrada de
seus primeiros escritos, profundamente marcados pela retórica do
argumento.37 Não é casualidade o fato de que esses textos tenham
sido escritos quando ele era um estudante de direito; profissão que
praticamente não chegou a exercer, preferindo, naquela época, as
peripécias do mercado da escrita a uma colocação estatal. Mesmo
assim, a leitura que realiza dos “códigos novos” gautemaltecos
nos permite recordar a estreita relação que havia entre a lei, a
administração do poder e a autoridade das letras. Nesse período
anterior à consolidação e autonomização dos Estados nacionais,
as letras “eram” a política. As letras provinham o “código” que
permitia distinguir a “civilização” da “barbárie”, a “modernidade”
da “tradição”, marcando assim os limites da res pública frente
à “anarquia” e o “caos” americano. Não se trata exclusivamente
do fato circunstancial, ainda que em si mesmo revelador, de que
nesse período fossem os letrados os encarregados de redigir os
códigos legais. As letras não eram simplesmente um veículo de
um “objeto” legal, externo e representável; eram, por seu caráter
codificado, o modelo de formalização e constituição desse
“objeto”. Em seu próprio trabalho sobre a língua, em seu ideal
de uma língua racionalmente administrada, as letras eram um
dispositivo disciplinar, requerido para a constituição dos sujeitos
perante a lei, segundo vimos em Bello.
A relação entre a vida pública e a literatura se problematiza
nas últimas décadas do século. Na medida em que os Estados
se consolidam, uma esfera discursiva especificamente política
foi aparecendo, ligada à administração e à legitimação estatal,
autônoma frente ao “saber” relativamente indiferenciado da
República das Letras. Este processo não passou despercebido a
Pedro Henríquez Ureña, que lucidamente se refere à importância

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da divisão do trabalho na reorganização do campo intelectual
do final do século:

Nascida da paz e da aplicação dos princípios do liberalismo eco-


nômico, a prosperidade teve um efeito bastante perceptível na
vida intelectual. Começou uma divisão do trabalho. Os homens
de profissão intelectual trataram de se dedicar à tarefa que tinham
escolhido e abandonaram a política; os advogados, como de
costume, um pouco menos e depois que os demais. O timão do
Estado passou às mãos dos verdadeiramente políticos (...).38

Em função do conceito da divisão do trabalho, Pedro


Henríquez Ureña explica o aparecimento da “literatura pura” na
América Latina, como resultado do surgimento das profissões
intelectuais que se separavam da administração estatal. Sua leitura
se tornou fundamental para a história da crítica do modernismo,
tal como revela a importância que o conceito da profissionalização
se mantém nas leituras recentes de Jean Franco, Ángel Rama,
Gutiérrez Girardot, Noé Jitrik ou José Emílio Pacheco.39
Apesar disso, embora o conceito de divisão do trabalho ser
fundamental para entender o aparecimento do “campo literário”,
em Pedro Henríquez Ureña já encontramos o risco (bastante atual)
de limitar a mudança na relação entre a literatura e a sociedade
(e o Estado) a uma simples questão de empregos. Ou seja, que
em contraste com o escritor “civil” se imagina que o escritor
“moderno” não trabalha para o Estado, ou vem a ocupar um
lugar subalterno em sua administração, como sugeria Viñas.40
Frente a esse deslocamento, o escritor se incorpora ao mercado
e se profissionaliza.
A análise do que Rama chamava de a “circunstância socio-
econômica” do modernismo é importante,41 porém não explica
de todo o processo de aparecimento de uma autoridade e um
lugar de enunciação literário em todas as sociedades da época. É
necessário assinalar que a incorporação dos escritores ao mercado,
inicialmente através do jornalismo, não foi um traço exclusivo dos
modernistas. Por exemplo, Fernández de Lizardi, nas primeiras
décadas do século, tinha vivido da escrita.42 Esse também foi o
caso de muitos poetas gauchescos, como Hilario Ascabusi, que
sendo um “quadro” político, se especializou em fazer poesia por

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encomenda do partido.43 Sarmiento, durante os anos de exílio
e depois da Presidência, ganhava a vida escrevendo. Em 1869,
pouco depois de deixar a Presidência, Bartolomé Mitre escreve
a um amigo:

Vou me tornar impressor para resolver o difícil problema da vida


(...) Durante cinco meses do ano tenho salário como senador, e
no resto do ano, outro soldo de 78 pesos (...) Apelo ao trabalho
da pluma e dos tipos (...) Enfim, tenho energias para trabalhar,
não sendo nenhuma amargura voltar a minha profissão, voltando
a ser no meu país o que era no exterior.44

Por mais certo que seja afirmar que a incorporação ao mercado


de bens culturais se sistematiza no final do século, é importante
saber que desde começos do século 19, com o desenvolvimento
do jornalismo, já existiam regiões de trabalho intelectual atraves-
sadas pelas leis do intercâmbio econômico. É bom lembrar que o
capitalismo latino-americano não nasce no final do século, assim
como o mundo das “letras” não pode ser representado mediante
a metáfora do mecenato cortesão, ou mediante a analogia entre
o nosso 19 e o feudalismo europeu.45
Mais do que uma questão de empregos ou profissionalização
e mercantilização da escrita, a emergência da literatura “pura”
(noção que questionaremos mais a frente), em contraste com a
função estatal das letras, resulta de uma reestruturação do tecido
da comunicação social, que abalou os sistemas de autorização
pressupostos pela produção literária anterior ao final do século.
O que mudou, fundamentalmente, não é apenas, apesar de tam-
bém, o lugar dos escritores perante o Estado, que já começava
a preparar seus administradores “orgânicos”46, mudou a relação
entre os enunciados, as formas literárias, e os campos semióticos
pressupostos pela autoridade literária, diferenciada da autoridade
política. O sentido e a função social do enunciado literário já não
estão mais garantidos pelas instituições do político, mas começam
a se produzir a partir de um lugar de enunciação que diferenciou
suas normas e autoridade. Fala-se a partir da literatura como uma
instituição social que, no entanto, não consolidou suas bases,
como vimos com relação à educação. Resulta disso, em parte,
certa impureza da literatura latino-americana nesse período, dada
sua modernização desigual.

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Apesar de caber a Pedro Henrique Ureña a importante tarefa
de explicar o modernismo em função da relação problemática
entre a literatura e a política, sua noção de “pureza” se presta
a mal-entendidos, em parte porque há uma tendência gene-
ralizada a filiar essa noção com a ideologia da arte pela arte,
que na América Latina, certamente, nunca chegou a dominar o
campo literário.
É possível que esta noção de “pureza”, significando a estrita
separação da literatura de outros discursos e práticas sociais,
seja válida na Europa. Conforme registra Peter Bürger, a partir
de meados do século 19 na França, com o estetismo, a arte
(incluída a literatura) encontrou seu momento de maior auto-
nomia.47 Bürger lê a história da esfera estética em função de sua
luta por consolidar e purificar um território, eliminando de seu
interior qualquer marca de interpelação externa. Apesar do fato
de que para ele a autonomia do estético já se encontrava defi-
nida conceitualmente ao final do século 18 – em Kant e Schiller,
por exemplo –, a política ainda garantia sua legitimidade social.
Para Bürger, a separação do estético dos “conteúdos” políticos,
na arte-purista francesa (que veio a fazer da forma, ou estilo,
o seu conteúdo, segundo a fórmula de Flaubert), registra o
momento de maior solidez institucional do estético, que assim
consegue elidir qualquer vestígio de heteronomia, purificando,
nesse sentido, seu espaço imanente.48 O momento da “pureza”
do sujeito estético se converte, segundo Bürger, no objeto da
crítica à instituição da arte, por parte das vanguardas: mediante
a introdução de materiais dessublimados no espaço “interior” da
arte, as vanguardas acreditaram dissolver a oposição à “vida”,
fundamento da autonomia artística, já então como impulso
institucionalizado.
Houve, nesse sentido, algum grau de “pureza” na literatura
latino-americana? Digamos, de início, que o desejo de autonomia
é indiscutível. Mais do que uma ideologia literária, essa vontade
está ligada à tendência à especialização do campo literário em
geral. Em torno dessa vontade de autonomia estavam de acordo
tanto Julián del Casal (e depois Darío), como Martí, que à primeira
vista pareciam refletir posições irreconciliáveis. Em sua leitura
da poesia do cubano José Fornaris, por exemplo, del Casal se

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pergunta por que era impossível, inclusive numa colônia espa-
nhola, escrever textos patrióticos baseados no modelo do poeta
civil. “O poeta moderno, escreve del Casal, não é um patriota,
como Quintana ou Mickievicz, que só lamenta as desgraças da
pátria.”49 E acrescenta:

Acredito que é possível ser como foram os primeiros escritores


que acabo de mencionar, como foi o mais popular de nossos
poetas, porém com a condição de que a roupagem das idéias
tenha bastante valor artístico, uma vez que a forma é a única que
salva certas extravagâncias e a que chegou a seu grau máximo
de perfeição em nossos dias.50 (grifo do autor).

Poderia se pensar que se trata de uma simples posição ideo-


lógica de del Casal. Mas se assim fosse, resultaria inexplicável a
leitura que Martí faz de Heredia, quando assinala que “à poesia,
que é arte, não vale desculpá-la dizendo que é patriótica ou filo-
sófica, mas que resistirá como o bronze e vibrará como a porce-
lana.”51 Também em sua leitura de Francisco Sellén constatamos
a mesma idéia: “Não é poeta o que faz uma formiga andar (...)
nem aquele que coloca o verso na política e na sociologia (...)
Poesia é poesia, e não um vaso podre, nem um ensaio de flautas,
nem um rosário de contas azuis.”52 A tendência à autonomia é,
com efeito, um dos impulsos que organizam o campo finissecular,
inclusive no caso de Martí, o escritor mais público de todos.
No entanto, ainda assim a noção de “pureza” continua sem
efeito. O próprio Darío, por exemplo, que em Azul e Prosas
profanas parecia ser emblemático da pureza (em oposição à
função “política” da literatura), muda profundamente em Cantos
de vida e esperança, sem dúvida em resposta às críticas de Rodó
à “artificialidade” de seus primeiros livros:53

Toda ânsia, todo ardor, sensação pura


e vigor natural; e sem falsidade,
e sem comédia e sem literatura...
se há uma alma sincera, essa é a minha.
A torre de marfim me tentou:
queria me fechar dentro de mim mesmo
nas sombras de meu próprio abismo.54

Nesta etapa de seu itinerário poético, Darío critica o “abismo”


do interior. Ou seja, a autonomia, em sua forma mais radical, se

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separava do “humano”, como notava Adorno,55 fazendo da arte um
objeto eticamente vazio, que inclusive se distanciava da função
comunicativa da linguagem, segundo sugeria o próprio Rodó em
sua crítica a Darío. Para esse crítico uruguaio, o artífice de Azul
e Prosas profanas nunca chegariam a ser um poeta maior, pois
este devia dar voz ao sujeito latino-americano; na poesia de Darío
não havia lugar para o sujeito. Pouco depois, no poema citado
(dedicado a Rodó), Darío responde criticando a “literatura” como
oposição à “sinceridade” (atributo subjetivo por excelência).56
Assim, é possível ver que nem mesmo em Darío o estetismo
“purista” encontrou um desenvolvimento consistente. Por isso,
Rama afirma em La ciudad letrada que

convém revisar este lugar-comum, particularmente no que se


refere aos literatos, pois têm sido como estivessem fora de toda
e qualquer atividade política, encerrados em torres de marfim,
consagrados a sua vocação artística. Inicialmente acompanharam
a divisão do trabalho em curso e fizeram de sua produção artís-
tica uma profissão que exigia fundados conhecimentos e mesmo
raros tecnicismos (...)

Porém, essa concentração na órbita privada de seu trabalho – a


língua, a literatura – não os retirou da vida pública (...).57

Esta citação condensa um dos argumentos matrizes do valioso


livro de Rama. No que concerne ao fim do século, para Rama
o distintivo do campo literário latino-americano, diferentemente
do europeu, é sua estreita relação com a política, mesmo depois
da relativa especialização dos literatos. Se por um lado Rama
maneja, desde suas primeiras leituras de Darío, o conceito de
divisão de trabalho, por outro, recusa a noção de “pureza” da
literatura na América Latina: “Esta dupla perspectiva – em que
houve especialização, que permitiu chegar à absorvente paixão
de Darío, e simultaneamente, à participação generalizada no foro
público, onde, além disso, estava em jogo o destino pessoal – é
a que ainda não foi suficientemente avaliada.”58
A participação política, pública, dos escritores (como pessoas)
e a “função ideologizante” da literatura, que continuava reivin-
dicando autoridade como um discurso orientador da sociedade,
levaram Rama concluir o seguinte: “Nos 900, estava viva a vocação
política dos escritores, que mesmo desmesurada por um modelo

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parecendo francês, alimentava a longa tradição redentorista do
letrado americano.”59
O debate pressuposto pela leitura de Rama é de dupla natu-
reza: por um lado, cancela a noção de “pureza” que postularam,
a partir de Henríquez Ureña, muitos herdeiros do modernismo; e,
por outro, critica as diatribes de certas sociologias, que, curiosa-
mente, ao lerem o modernismo (incluído Darío) como instância
do estético e pureza, negaram-lhe importância em razão de sua
falta de “compromisso” político. Rama refuta o núcleo produtor
de ambas leituras, aparentemente antagônicas, recusando as
valorações e a própria eficácia do conceito de “pureza” ou este-
ticismo na América Latina.
No entanto, ainda que por alguns momentos Rama insista
lucidamente na dialética entre a tendência à autonomização e
os imperativos éticos-políticos que continuam operando sobre a
literatura, ele mesmo tende a reduzir a heterogeneidade discursiva
que se desprende desse duplo impulso, ao insistir na prevalência
do segundo termo, a política, sobre a autonomização. Na “narra-
tiva” historiográfica de A cidade letrada, o domínio da política,
mesmo no final do século, representa a vigência da “larga tradição
redentorista do letrado americano”; categoria esta, a do letrado,
que era a base conceitual do livro. Para Rama, o próprio escritor
finissecular continuava sendo um letrado e, nesse sentido, um
intelectual orgânico do poder.
O problema, em parte, radica na imprecisão do conceito
de “política”, que em alguns momentos é tanto uma vontade
“ideologizante” por parte dos escritores, quanto uma atividade
ligada ao “foro público”, à administração estatal. O conceito do
“letrado”, historicamente, não reduz seu território semântico à
atividade própria do advogado ou agente (escritor) da lei. Porém,
em A cidade letrada, essa parece ser a acepção dominante do
conceito que descreve a relação entre os intelectuais e a buro-
cracia, a partir da consolidação do império espanhol na América
até o século 20. Ou seja, o “letrado” é um intelectual orgânico
da vida pública dominada, desde a colônia, por um culto cego
à autoridade da letra.
É possível que o conceito de “letrado” seja útil para descrever
a função estatal das letras, nos anos posteriores à emancipação.

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No entanto, a afirmação de uma relação entre literatura, política
e poder, como resultado da continuidade da “larga tradição
redentorista do letrado americano”, que Rama encontra formada
na remota época colonial, revela um historicismo impressionante
que ignora, entre outras coisas, as radicais mudanças que, sem
dúvida alguma, ocorreram no final do século. A narrativa de Rama
representa o campo de poder, o campo literário e sua mútua
relação, em termos da permanência de relações e estruturas num
bloco histórico de mais de dois séculos.
Por exemplo, ao incluir na categoria de “letrado” tanto Rodó
quanto Sarmiento, pelo fato (biográfico) de que ambos ocuparam
cargos públicos, Rama subordina a transformação do lugar do
intelectual-literário frente ao poder, já em si modificado, como
algo determinante e distintivo do campo literário finissecular.
Pensar que tanto Rodó como Sarmiento são “letrados” porque em
ambos opera a “função ideologizante”, ou porque ambos foram
servidores públicos, não leva em conta os diferentes campos
discursivos pressupostos por suas respectivas linguagens; não leva
em conta que ambos escritores estão atravessados por sujeitos, por
modos de autorização, diferentes – mesmo que, como pessoas,
tenham ocupado cargos públicos. Em Rodó opera uma autoridade
especificamente estética, enquanto que Sarmiento fala a partir de
um campo relativamente indiferenciado, autorizado pela vontade
racionalizadora e de consolidação estatal. Isso não significa
que esse sujeito estético em Rodó não cumprisse uma “função
ideologizante”. O sujeito estético em Rodó postula a definição
de um “nós”, em oposição à racionalidade econômica “deles”:
nessa postulação está cristalizada uma “função ideologizante”.
Porém, seu enunciado, por mais ideológico que efetivamente
pudesse ser, pressupunha uma esfera especificamente estética
como campo discursivo. (Ou melhor, é possível pensar que essa
autonomia do estético, em Rodó, seja a condição de possibilidade
de seu antiimperialismo e do próprio conceito de América Latina,
como esfera da cultura, autônoma frente à economia “deles”.)
Sarmiento, por outro lado, não pressupõe essa diferenciação dos
campos discursivos. Fala a partir de uma vontade racionalizadora
que marca, precisamente, o limite do sujeito estético em Rodó.
Isso nos leva a afirmar que entre Sarmiento (e os letrados) e o
escritor finissecular – incluindo Martí, González Prada e mais

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claramente Rodó – há uma distância que define a diferença entre
o campo literário e o campo letrado, que consistia num câmbio
radical na relação entre o intelectual, o poder e a política.
Com efeito, como notava Hauser, a categoria de “intelec-
tualidade”, conceito geralmente ligado à literatura, surge em
meados do século na Europa, como resultado da despolitização
de uma fração da burguesia, até esse momento ligada às insti-
tuições da “publicidade” liberal, em cujo interior havia operado
as letras.60 A polis liberal também já havia sido transformada no
final de século latino-americano. Por isso podemos pensar nos
escritores da época como nossos primeiros intelectuais mo-
dernos, não porque fossem os primeiros a trabalhar com idéias,
mas porque certas práticas intelectuais, principalmente aquelas
ligadas à literatura, começavam a se constituir fora da política
e freqüentemente contra o Estado, que já havia racionalizado
e autonomizado seu território sociodiscursivo. Ou seja, mesmo
Martí e González Prada, como intelectuais, mantêm uma relação
com o Estado bem diferente da de Sarmiento, ou do próprio
Bello, para os quais escrever era uma atividade vinculada à lei,
orgânica à “publicidade” liberal em vias de formação.
Convém precisar, neste ponto, o conceito problemático de
política, uma vez que essa palavra significa pelo menos dois tipos
de práticas sociais diferentes. Como afirma N. Poulantzas, um dos
traços do Estado propriamente moderno é a relativa autonomia da
esfera burocrática e legal – o político – do Estado como centra-
lização que institui o poder, separado das lutas sociais em torno
do poder, que formam a política.61 González Prada já enfatizava
anteriormente esta divisão:

[A] máquina governamental não funciona em benefício das


nações, mas em proveito dos partidos dominantes (...)

Reconhecida a insuficiência da política para realizar o bem maior


do indivíduo, as controvérsias e lutas sobre formas de governo
e governantes, ficam relegadas ao segundo plano, ou melhor,
desaparecem. Subsiste a questão social, a suprema questão que os
proletários resolverão pelo único meio eficaz – a revolução.62

A questão social para González Prada é a luta na qual o inte-


lectual – já se auto-representando como aliado de outras regiões

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exteriores da cultura dominante – intervém contra o político,
concebido como prática estatal.63

Martí e a política

Também em Martí é possível notar, desde o começo da


década de 80, um desejo de se distanciar do político-estatal:
“Deixem [disse aos intelectuais] de viver como vermes imundos,
dependentes dos ofícios do Estado.”64 Em Amistad funesta
(1885), romance que continuamente reflete sobre a necessidade
e os limites da autonomia entre a arte na sociedade, assinala
o narrador:

Os que possuem inteligência, estéril entre nós por seu uso equi-
vocado, e necessitados de fazê-la fecundar para garantir seu sus-
tento, acabam se dedicando exclusivamente aos embates políticos
(...) produzindo, assim, um desequilíbrio entre o país escasso e
sua excessiva política, ou empurrados pelas urgências da vida,
servem ao governante forte que lhes paga e corrompe (...).65

Mesmo não querendo reduzir a transformação da relação


entre literatura e política a uma mera questão de empregos (ou
“profissionalização”, no sentido de Viñas), convém recordar que
é precisamente por causa dessa vontade de autonomia do polí-
tico que Martí via como positivo o aparecimento de um mercado
literário, separado das instituições do Estado. Em uma de suas
memoráveis cartas a seu amigo mexicano, Manuel A. Mercado,
em 1886, escreve o seguinte:

Porém, mesmo não pensando nisso, a idéia [de colocar em Nova


Iorque uma editora de livros hispano-americanos] me parece
muito interessante. Para isto fui feito, já que a ação em outros
campos mais vastos não me é oferecida. Para isto estou preparado.
Para isto tenho força, originalidade e prática. Esse é meu caminho.
Tenho fé e prazer nele. – Tudo me prende a Nova Iorque, pelo
menos durante alguns anos de minha vida: tudo me ata a este
cálice de veneno; talvez você não saiba, porque não batalhou
aqui como eu batalhei; por outro lado, a verdade é que todos os
dias, ao chegar a tarde, me sinto meio comido por uma angústia
interior que me leva a caminhar, com a alma desassossegada e

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me convidando a sair de mim mesmo. O meu eu explode (...) o
dia em que consiga escrever este poema! Bem, como dizia, tudo
me prende a Nova Iorque: as conseqüências dos erros políticos
de nosso país; a proximidade com esta terra, que não sabe de
mim e pela qual morro; a repugnância de sair e procurar novas
aventuras, com as obrigações familiares que não admitem esperas;
a repugnância, ainda maior, de viver num lugar para onde não
levaria comigo nenhuma arte prática ou mecânica da vida, mas
apenas uma pequena inteligência a mais, que nesses países sobra,
e somente dá de comer quando você se entrega ou se vende
para o governo, trabalho que está vedado para os estrangeiros;
tudo isso, mais as conseqüências naturais de cinco anos de vida
morando num lugar central, me prende, de momento, a Nova
Iorque. Para outras terras você já sabe que não me interessa ir.
Não existe nelas um mercado literário, nem teria porque existir.
Ao mercado político não entrarei. No mercado judicial, sobram
bons advogados. Sei, de experiência própria, que para um bom e
humilde serviçal um pedaço de pão sempre está à espera. Porém,
meus instrumentos de trabalho, que são minha língua e minha
pluma, ou haveriam de permanecer relegados ao recolhimento
que já conhecem aqui, ou haveriam de ser usados contra ou a
favor de assuntos locais, temas em que não tenho direito e nem
interesse de entrar, e sobre os quais, no entanto, como já me
aconteceu em Guatemala e Venezuela, nem o silêncio me foi
permitido (...).66 (grifo nosso)

Esta carta nos parece fundamental. A longa estadia de Martí


em Nova Iorque, de 1880 a 1895, geralmente se explica em
função de seu ativismo político e de seu trabalho nas comuni-
dades de emigrantes, que formariam, efetivamente, a base do
Partido Revolucionário Cubano, fundado em 1892. Sem querer
negar esta explicação – válida, sobretudo para os últimos anos
da década de 80, quando Martí retorna à política ativa, depois
de seus desencontros iniciais com organizações separatistas em
Nova Iorque –, esta carta, de 1886, permite ampliar a interpre-
tação da existência nova-iorquina de Martí. A relação entre o
sujeito – o eu a que se refere, que espera escrever seu “poema”
– e a cidade mudou. “O meu eu explode” e, depois, “recolho do
chão meus próprios pedaços, junto-os e ando com eles como se
estivesse vivo”. Essa experiência da fragmentação, de nenhum
modo subordinada ao exílio concreto de Martí, registra uma
mudança radical na relação entre o sujeito e a modernidade. Se

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em Sarmiento, a cidade tinha sido emblema de uma modernidade
desejada, de uma vida pública racionalizada, em Martí é um lugar
de violência que fragmenta o eu; lugar em que o poeta, mesmo
em sua própria cidade, é um exilado por excelência. Nessa
conjuntura, a poesia viria a ser uma resposta à fragmentação,
como escreve no prólogo a Flores del destierro:

Estas que ofereço não são composições acabadas; são, ai de


mim!, anotações de imagens riscadas ao acaso, e como para que
não se perdessem, entre a multidão antiática das ruas, entre o
rodar estrondoso e arrebatado dos trens de ferro, ou no meios
dos afazeres opressores e inflexíveis de uma mesa de comércio
– refúgio carinhoso do proscrito.67

No entanto, como vemos na carta, a mesma cidade – lugar do


“mercado literário” – é preferida por Martí em lugar da depen-
dência do mundo tradicional. A cidade, no mesmo movimento
em que gera “crise”, “alienação” ou “exílio”, é, por outro lado, a
condição de possibilidade da autonomia do intelectual frente às
instituições tradicionais, autonomia que era indispensável para
o intelectual moderno, em contraste com o letrado ou escritor
“civil”.
Mais à frente retomaremos o itinerário do sujeito martiano em
Nova Iorque, quando fizermos a leitura de Escenas norteameri-
canas, na segunda parte deste livro. Neste momento, digamos
que é marcadamente profunda a mudança na relação entre a
cidade – espaço do poder – e o escritor, que se auto-representa
(e até certo ponto era) como uma figura marginal e subalterna.
Por isso é que, como sujeito dominado, ele procura se juntar a
outros setores marginais da “cidade”:

Que, quando tudo padece, quando tudo sangra, quando... estarei


eu como um rei, com os pés na estufa, lendo rimas e letras,
para ver se consigo aparecer como alguma adivinhação cheia
de remendos, e a roupa de remendos, e eu todo remendado,
para que os meus me admirem, os meus, que choram e sangram,
porque sei muito de...? De suas penas é que quero saber para
remediá-las. Essa é, meu amigo, minha literatura selvagem.68

O escritor se repolitiza nesse saber do sofrimento. Como traba-


lhador assalariado, marginal – pelo menos com respeito ao lugar

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central que ocupava o letrado no interior do poder –, o intelectual
se repolitiza na crítica ao político. Estabelece, em razão de seu
lugar descentrado, alianças e filiações nas margens da cultura
dominante. Em Martí, o poeta começa a ser agente de uma prática
selvagem. Prática ligada à desvalorização implicada no “sofri-
mento”, na “feiúra” da vida, e que, sem dúvida alguma, arrasta
seu discurso, já no começo de 1880, para regiões imprevistas,
muitas vezes excluídas com virulência pela vontade autonômica.
Nesse sentido, no mínimo, uma parte do contraditório discurso
de Martí se situa do outro lado do desejo de institucionalização
da literatura, que efetivamente tendeu a fazer do estético, como
esfera distanciada da vida, um lugar compensatório, comple-
mentar, um “refúgio” em última instância, afirmativo da própria
lógica capitalista da qual buscava se distanciar.69 Ou seja, quando
afirma, em 1880, “acercar-se à vida – eis aqui o objeto da litera-
tura” –, não devemos pensar que nele ainda perdura um sujeito
“letrado” tradicional, indiferenciado, anterior à autonomização que
distingue a modernidade. Por um lado, já em 1881, na Venezuela,
Martí defende a especificidade do “estilo”, gesto definitório da
vontade autonômica (como resposta e crítica à autoridade ainda
dominante das “letras”).70 Porém, ao mesmo tempo operam nele
agenciamentos, cruzamentos de autoridades, vozes antiestéticas,
que comprovam uma crítica à tendência de institucionalização
do “belo”.

Bem, eu respeito
de meu jeito brutal, um modo manso
para os infelizes e implacáveis
com os quais a fome e o destino desdenham,
e o sublime trabalho; eu respeito
a ruga, o calo, a corcova, a branda
e fraca palidez dos que sofrem.
Respeito a infeliz mulher da Itália,
pura como seu céu, que na esquina,
da casa sem sol onde devoro
minhas ânsias de beleza, vende humilde
doces abacaxis e pálidas maçãs.71

Poesia civil? Desarticulação, mais certo, já na década de 80, do


ouro modernista que tende a configurar essa espécie de capital
simbólico que a literatura irá acumulando, principalmente em seu

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trabalho léxico. Aparece aqui, além disso, uma outra Europa: não
a do luxo, mas a do trabalhador imigrante. Significativamente, no
poema o sujeito se constitui mediante a oposição entre um interior
– espaço daquele que escreve – e a rua. O sujeito, nessa mesma
disposição espacial, acaba atravessado pela vontade autonômica,
as “ânsias de beleza”. Porém, a partir desse interior, que delimita
o lugar do sujeito, é possível ver precisamente o outro da beleza:
“A ruga, o calo, a corcova, a branda e fraca palidez” do “trabalho
sublime”.72 Esse “trabalho”, seja dito de passagem, não permanece
inscrito na retórica iluminista da “produtividade” racionalizadora,
pois é seu reverso negativo; no entanto, também se contrapõe ao
ócio do interior. Ao mesmo tempo em que operam a partir do
“interior”, o que pressupõe uma lógica literária, os mecanismos
de produção dessa lógica se representam e se desarmam. Essa
crítica, exibindo impressionante destreza no manejo de palavras
desvalorizadas (em contraste com o ouro da literatura), que se
comprova na sabotagem realizada pelo uso do tom menor dentro
da máquina estilística e também na sistemática relativização do
poder da imagem (“fraca palidez”, “pura como seu céu”), quase
apagada, não pode ser lida em função de uma prática literária
tradicional, civil. Essa crítica – se torna redundante afirmar –
pressupõe o capital simbólico da literatura para, em seguida,
negá-lo; pressupõe o “interior” a partir de onde a escrita, no
mesmo instante em que postula sua distância da “vida”, procura
deixar, em seu próprio espaço, marcas do outro, relativizando,
assim, a distância do “interior”, da “ânsia de beleza” que opera
simultaneamente como campo de significação.73
Não é casual e nem arbitrário, nesse sentido, que Vitier,
com bastante lucidez, tenha comparado a intensidade do tra-
balho sobre a língua em Versos livres e Flores do desterro com
Vallejo.74 Evidentemente que, em Vallejo, a crítica à literatura
como instituição será um impulso dominante. Em Martí, trata-
se de pequenas fissuras – às vezes excepcionais – em que, por
um lado, comprovamos o campo de autoridade (relativizada)
do sujeito literário, o “interior”, e por outra, uma crítica a essa
autoridade pressuposta, mediante o desarme de seus aparatos
exclusivos.
Essas pequenas fissuras permitem precisar algumas contradições
que determinam o complexo discurso martiano. Martí, longe de

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ser um sujeito orgânico, ou seja, um lugar onde comprovaríamos
a hegemonia de um tipo de autoridade, é o cruzamento, nunca
a síntese, de pelo menos três tipos de posições em luta:

1) Uma posição que postula a autonomização (na noção e no


trabalho do “estilo”), tanto contra o gosto tradicional e das “letras”,
quanto contra o “homem lógico” da racionalização.

2) Uma posição que reconhece, bem cedo e certamente em


função do lugar privilegiado de Martí em Nova Iorque, que a
autonomização do estético, em sua forma mais radical, trazia o
risco da reificação da literatura e sua conseqüente incorporação
ao coração da cultura dominante, como objeto de luxo, decora-
tivo do interior burguês.

3) O conflito entre estas duas pulsões anteriores se complica


quando comprovamos que, em sua crítica à autonomização, Martí
freqüentemente maneja uma retórica civil, tradicional (num culto
abstrato à “utilidade” e à “ação”), para criticar a autonomia que
a distância estabelecia; esta tendência é, em alguns momentos,
concomitante à sua crítica ao “desenvolvimentismo” e à “moder-
nização” social, mediante o apelo às culturas tradicionais, em
linguagens por vezes arcaizantes. Em sua crítica à modernização
– tanto literária, quanto socioeconômica – Martí opera com frag-
mentos de códigos tradicionais, que, no entanto, não implicam
em sua organicidade frente a essas tradições.

Convém insistir na relação conflituosa entre a literatura, o


político e a política em Martí. Talvez seja esse conflito, concomi-
tante ao distanciamento moderno entre vida e literatura, a força
que move a politização martiana e inclusive seu voluntarioso
vitalismo, que em geral insiste no lugar suplementar e dispen-
sável da “palavra” na “vida”. Ser um “poeta em ação”: esse será
o itinerário do desejo que leva Martí ao discurso da guerra, bem
como seu reverso, que é a ausência do discurso e da ação na
morte heróica. Nisso ele insistia, ainda que há muito a explorar
sobre as condições que tornaram possível seu vitalismo e seu
culto à ação.
Estaria pressuposto nisso uma despolitização em Martí? Pelo
contrário, o que se busca é definir as condições de sua poli-
tização. O problema está no fato de que quando se coloca a

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relação entre Martí e a política, quase sempre em contraste com
o modernismo, freqüentemente ele é identificado com o campo
intelectual tradicional. Persiste uma visão dominante de um Martí
civil, tal como o representava P. Henríquez Ureña:

A transformação social e a divisão do trabalho dissolveram o


laço tradicional entre nossa vida pública e nossa literatura; Martí,
certamente, a grande exceção; nisso, esteve mais próximo da
geração que o precedeu que de sua própria.75

Rama, a quem se deve o trabalho da reavaliação da “moder-


nidade” em Martí, acrescenta:

E se Martí esteve mais próximo da geração anterior (e também


dos posteriores, desse século) isso se deveu a seu lugar pecu-
liar: seu campo operacional, a colônia cubana, ainda órbita do
escalavrado e anacrônico império espanhol, corresponde à sua
concepção da função do poeta, em quem vê um apóstolo de
uma causa civil.76

O parêntese de Rama é significativo: de algum modo a “civi-


lidade” de Martí o aproxima das gerações posteriores, ou seja,
das estéticas do “compromisso”. Porém, o crítico uruguaio não
explora essa possibilidade e, por outro lado, identifica a polí-
tica em Martí com o civil, com o que logo depois chamará de a
vocação “redentorista do letrado”: “É com Sarmiento com quem
se pode compará-lo neste aspecto.”77 Assim, perde-se de vista a
fragmentação daquela comunicação social na qual antes operava
o “civil” e o conseqüente aparecimento do intelectual autônomo,
como condição de possibilidade da politização martiana.
Dessa maneira, se aceitamos, em termos gerais, a fragmentação
das “letras” como um traço distintivo do modernismo, Martí con-
tinua figurando como uma espécie de anacronismo. Esta leitura
orgânica, proposta desde o final do século, tem representado Martí
como um sujeito plenamente integrado, cuja heroicidade consistiu
na capacidade superar a fragmentação. Enrique J. Varona, em seu
discurso de 1896, intitulado “Martí e sua obra política”, afirmava
que Martí “falava para realizar”, que “o sonhador escondia um
verdadeiro homem de ação”:

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Aqui está a nota profunda de sua alma e isto constitui a unidade
perfeita de sua vida. Martí poeta, escritor, orador, catedrático,
agente consular, jornalista, agitador, conspirador, estadista e
soldado foi, no fundo e sempre, apenas Martí patriota.78

Esta leitura, tão martiana, integradora de fragmentos, mani-


festa o processo de constituição do herói; processo para o qual
o próprio Martí, sem dúvida alguma, contribuiu. Afirma Varona:
“Ontem era visto como um sujeito de estranhas e contraditórias
qualidades. Hoje, a nossos olhos, sua vida nos aparece como um
bloco indestrutível de granito.”79(grifo nosso)
Assim, o herói na modernidade – caracterizada por aquilo
que Martí em vários momentos chama de “a nostalgia da ação”,80
ou seja, a perda de um sujeito coletivo épico – é o lugar de
uma condensação em que a atomização do social encontra sua
compensação. É um desejo de organicidade que opera em Martí,
quando privilegia o imediatismo da ação sobre o caráter derivado
do discurso, assim como seus leitores quando insistem em ver
nele um equilíbrio, mesmo nos momentos mais exasperados de
seu vitalismo.81 Insistimos: o “discurso” permanece como refe-
rente apagado pelo culto à “ação”, levando-nos novamente ao
campo fragmentado em que opera Martí e aos conflitos que a
significação produz nele.
O lugar de Martí no campo literário, do qual às vezes se dis-
tancia, é a condição pressuposta por sua politização. Isso implica,
por seu lado, que nele o sujeito literário (em oposição ao sujeito
civil) é fundamental, seja como modo de autorização (inclusive
de certo latino-americanismo martiano), seja como campo de
interior “alienante” pressuposto e apagado por seu discurso da
guerra. Discurso da guerra: resposta à inatividade do “interior”,
que culmina em seus notáveis Diarios de campaña. Discurso
da guerra que culmina nesse maravilhoso retorno (a partir da
cidade) do poeta ao país natal, à origem, onde a letra se encontra
com a bala, dissolvendo no silêncio desierarquizador da morte,
a distância entre o discurso e a vida.
Não seria demais recordar que quando Martí chega aos centros
produtores de tabaco, já bastante radicalizados, de Cayo Hueso,
com a intenção de consolidar o movimento revolucionário, os
artesãos, muitos deles anarquistas e, sem dúvida, suspeitando

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da intelectualidade, lhe perguntaram: “Como poderia você, um
literato, dirigir nossa revolução?”82 A politização em Martí é um
desejo de superar essa divisão do trabalho. Vontade de produzir
um discurso, um espaço crítico, onde os interiores, os campos
de imanência desatados pela racionalização, pudessem oferecer
uma saída, um lugar de encontro. Vontade, no caso de Martí,
totalizadora, que operava com categorias unificadoras, freqüen-
temente nostálgicas, mas que constituem, de todo modo, uma
resposta à fragmentação moderna, e não um tipo de autoridade
intelectual anterior à mesma.

  

Frente à fragmentação do saber e da comunicação na socie-


dade capitalista, J. F. Lyotard, com grande ceticismo, afirma que
o traço distintivo da pós-modernidade é a dissolução da nostalgia
do todo,83 definidora do moderno (e tão característica em Martí).
Lyotard sustenta, contra o ideal de integração e comunicabilidade
proposto por Habermas (como resposta à colonização do coti-
diano),84 que toda postulação orgânica, unitária, do discurso, é
sempre dominada verticalmente pelo terrorismo do poder.
Este é um debate interessante sobre a pós-modernidade, que,
no entanto, ainda não encontrou mais campo na América Latina.
Talvez seja pelo fato de que este debate em torno da fragmen-
tação e da especialização dos sujeitos discursivos – que implica
um questionamento da noção moderna e racionalizadora da
autonomia – ainda não tenha plena vigência neste continente.
Isto deriva, em parte, do caráter desigual da modernização, da
autonomização e da própria profissionalização, no que concerne
ao aparecimento do sujeito literário latino-americano.
No desenrolar deste capítulo, viemos afirmando que, apesar
de na América Latina a modernização ter levado à fragmentação
do sistema comunicativo que identificamos com o saber dizer
e a República das Letras, proporcionando o aparecimento de
um sujeito literário, no caso da literatura, essa “interiorização”
de seu saber específico não conseguiu produzir sua institucio-
nalização.

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É possível que esse conceito de modernização desigual do
sujeito literário contribua para esclarecer, bem depois do final
do século, a heterogeneidade formal e funcional da literatura na
América Latina, em contraste com seu disciplinamento em outras
regiões onde a modernização foi mais sistemática e consistente.
No caso particular de Martí, essa heterogeneidade não é pré-
moderna, uma vez que assume a literatura, em vários momentos,
como objeto de sua crítica. Porém, sem dúvida alguma, a hetero-
geneidade de autoridades que operam em seu discurso tem a ver
com as aporias com as quais esse sujeito “moderno” se enfrenta
no processo de sua institucionalização. A falta de domínio do
sujeito literário – cuja hegemonia sobre o discurso viria a registrar
(em princípio) seu ponto de maior institucionalidade – possibilita
o cruzamento de autoridades em Martí. Essa heterogeneidade
dissolve nele qualquer tipo de síntese, de equilíbrio, entre as
exigências do emergente sujeito estético e os imperativos ético-
políticos, que relativizam sua autonomia. A heterogeneidade do
discurso martiano é conflitante; caracteriza-se por lutas entre
autoridades emergentes, ou às vezes residuais, porém sempre
irredutíveis à homogeneidade discursiva e funcional, que define os
campos de autoridade recortados pela racionalização moderna.
Significativamente, essa heterogeneidade é, ainda que em
outra conjuntura, o projeto das poéticas pós-modernas que,
tanto na Europa como nos Estados Unidos, a partir de diversas
posições antidisciplinares, criticam a hegemonia dos sujeitos
individualizados, característicos da modernidade no capitalismo
avançado. Ou seja, se a modernidade se definia, como afirmou
Weber, por uma tendência à separação e burocratização dos
diferentes saberes autonomizados, a pós-modernidade viria a
consignar uma crítica daquela racionalização; crítica esboçada,
sobretudo, mediante poéticas (não apenas literárias) da conta-
minação dos campos de imanência. A contaminação projeta a
dissolução do poder exclusivo, da “forte vontade”, mediante a
qual se consolidam os sujeitos autônomos, disciplinados, da
modernidade.85 Um caso interessante seria, por exemplo, o tra-
balho atual com os meios da “cultura de massas”, que se cons-
tituiu num dos “exteriores” por excelência da arte moderna.

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Em vários sentidos, a crítica de Martí ao “interior”, seus exas-
perados intentos de superar os limites impostos pela divisão do
trabalho, antecipa alguns aspectos da atual discussão sobre a
pós-modernidade. Isso ocorre, em parte, porque a fragilidade
do sujeito literário latino-americano, que não conseguia institu-
cionalizar sua autonomia, produziu essas fissuras – essa “frágil
ontologia”, segundo a fórmula de Vattimo – que desde as origens
de sua modernização desigual relativizaram a “pureza”, inclusive
formal, da própria literatura latino-americana. Trata-se de um
fato fundamental na história dos discursos latino-americanos: a
desigualdade da modernização e os deslocamentos que as lin-
guagens, neste caso modernas, do “Primeiro Mundo”, sofrem na
América Latina, resultam em apropriações irrepresentáveis pelas
categorias da história européia ou norte-americana. Esses des-
locamentos, por sua vez, antecipam as críticas e discursos que,
posteriormente, se dariam em seu contexto primário. Esse foi o
caso da literatura como instituição na América Latina, cuja falta
de bases materiais, cujos itinerários de viagens dos centros da
cultura ocidental às regiões periféricas, possibilitaram seu apare-
cimento como um discurso intensamente heterogêneo, sempre
aberto à contaminação.
É necessário, agora, conhecer mais profundamente essa
heterogeneidade discursiva no jornalismo literário finissecular:
a crônica modernista.

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4.
LIMITES DA AUTONOMIA
JORNALISMO E LITERATURA

Ao postular a heterogeneidade do sujeito latino-americano


em função de sua modernização desigual, estamos nos expondo
a várias críticas. O primeiro problema, suspeitamos, tem a ver
com o risco de incidir em certa lógica binária que tende a definir
a diferença latino-americana em termos de seu deslocamento,
às vezes paródico, dos modelos europeus – em lugar de Ariel,
Calibán – numa lógica em que o latino-americano viria a ocupar
uma margem ideologizada. O problema com esse tipo de leitura,
bastante comum em nossos dias, radica na suposição de que o
“europeu” ou “ocidental” configura a inscrição de uma origem,
com um alto grau de pureza e homogeneidade. O latino-ame-
ricano (ou “terceiro-mundista”), a partir da carência do poder,
viria a deslocar e desmantelar a pureza originária, no mesmo
gesto (às vezes involuntário) de representar, recitar ou simular o
funcionamento dos códigos do “Primeiro Mundo”.
Não seria possível pensar a origem (européia), o referente
deslocado pela representação paródica (latino-americana), como
um lugar desde sempre atravessado por contradições, nas quais
a literatura, por exemplo, a partir de sua emergência, não esti-
vesse regida por uma homogeneidade institucional, mas por um
impulso crítico da “verdade” e da disciplina?

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Nesse sentido, a leitura que fazia Peter Bürger no capítulo
anterior soava bastante fácil, mesmo para nós.1 A leitura “institu-
cionalista” de Bürger permitia contrastar o aparecimento do su-
jeito literário latino-americano, em sua dupla vertente de vontade
autonômica e impossibilidade institucional, com a estabilidade
ou “pureza” do sujeito literário que, especialmente na França (se-
gundo esse crítico), conseguia dominar as interpelações externas,
instituindo e purificando seu “interior”. No entanto, perguntamos:
ocorreu realmente, mesmo na França, essa “pureza” de que fala
Bürger, essa estabilidade institucional que a arte pós-aurática van-
guardista viria a desmantelar? Ou seria que Bürger, para enfatizar
o momento crítico da vanguarda, elude as contradições do sistema
institucional anterior? Não seria válida a leitura de Flores do mal
(que Bürger certamente quase não menciona) como uma fissura
fundamental, de nenhum modo desprezível, na própria superfície
do sujeito “puro” institucionalizado? Não projeta Baudelaire, e
depois Rimbaud, em seus passeios-esquizos, uma violenta saída
do território estético, uma fuga das segmentações (e privatizações)
distintivas do mapa dos discursos e instituições modernas? Não
pressupõem essas fraturas, desde o começo, uma crítica feroz
à mútua exclusividade dos termos “arte” e “vida”, essa antítese
matriz, segundo Bürger, da autonomização e institucionalização
estética?
Dito de outro modo, a “origem” parecia conter marcas protube-
rantes da “derivação” “paródica” ou “antiestética”. O que nos leva
a questionar esse tipo de narrativa (linear) inclusive na Europa.
Essa diferença é central para nós, porque nos obriga a reconsiderar
a postulação da diferença latino-americana como efeito da paró-
dia de uma plenitude (nunca comprovável) primeiro-mundista.
Se mesmo na Europa, de acordo com o programa de Deleuze e
Gattari, é possível escrever como um terceiro-mundista,2 se cada
norte sempre guarda em seu interior marcas de seu próprio sul
(seu South Bronx, digamos), então, como continuar postulando
a diferença?3
Ainda que aceitássemos a heterogeneidade como um traço do
sujeito literário europeu, ou mesmo aceitando e ideologizando
um conceito de literatura, na Europa, como crítica da verdade
(seguindo outros críticos europeus),4 ainda assim seria necessário
insistir na estranheza irredutível da literatura latino-americana.

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Evitaremos, então, o binarismo da paródia e sua tendência a
ideologizar a “margem”, porém, ao mesmo tempo, tentaremos
precisar as condições históricas de algumas diferenças.
Neste capítulo, queremos fazer uma análise da relação entre
o jornalismo e a literatura, nas últimas décadas do século 19.5
Buscaremos explorar, particularmente, a transformação do lugar
da literatura num dos principais jornais da época, o La Nación,
de Buenos Aires, cujos correspondentes no estrangeiro – Martí
e Darío, entre outros – foram protagonistas-chave no desenvol-
vimento da crônica modernista. Queremos ver, primeiramente,
quais são as condições que levam a literatura a depender do jornal
e como esse limita sua autonomia; a crônica, nesse sentido, será
um lugar privilegiado para precisar o problema da heterogenei-
dade do sujeito literário. Logo a seguir, perguntamos sobre a
função do discurso literário no jornalismo de final do século, e,
especialmente, a importância de certa noção do “estético” como
modo de representar, decorar e domesticar as cambiantes cidades
dessa época, num processo em que a “marginalidade” e a crítica
à modernização de algumas formas literárias foram incorporadas
e promovidas pela emergente indústria cultural, baseada no novo
jornalismo que florescia.

O problema do público

Por mais contraditório e “marginal” que efetivamente fosse,


é evidente que o discurso literário na Europa teve, entre outras
coisas, vários suportes institucionais, especialmente na educação e
no mercado editorial. Na América Latina, esse desenvolvimento foi
bastante desigual, limitando a vontade autonômica e promovendo
a dependência da literatura de outras instituições. Por exemplo,
o desenvolvimento do romance na Inglaterra e França, desde
o final do século 18, foi concomitante ao aparecimento de um
público leitor, numa época de relativa democratização da escrita;
público, no sentido moderno (ligado ao mercado), que por sua
vez foi inicialmente estimulado pela imprensa e, posteriormente,
por uma indústria editorial, cuja crescente autonomia do jornal
se cristaliza no mercado do livro, na segunda metade do século
19. Na América Latina, esse mercado editorial só será conhecido

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depois do século 20. Daí percebermos que algumas das funções
do romance na Europa – como a representação (e domesticação)
do novo espaço urbano – foram realizadas, no continente latino-
americano, por formas que desfrutavam de menor prestígio no
velho continente, como a crônica, ligadas geralmente ao meio
jornalístico.
A falta de público será uma preocupação constante no campo
literário do final do século. Em Amistad funesta, folhetim escrito
por Martí para El Latino Americano, de Nova Iorque, em 1885,
o narrador afirma:

Ainda se ensina a usar língua falada e escrita, como único modo


de vida, em lugares em que as artes delicadas, que nascem do
cultivo do idioma, não encontram ainda número suficiente de
consumidores e nem de apreciadores, que recompensem com
o preço justo esses saborosos trabalhos, o labor intelectual de
nossos espíritos privilegiados.6

Com efeito, como poderia existir um sujeito literário se a


própria sociedade não reconhecia a especificidade de sua autori-
dade? Não é casual, nesse sentido, que o próprio Martí, em Nova
Iorque, manifestasse um interesse constante no desenvolvimento
do mercado editorial (inclusive para a poesia), assim como nos
diferentes meios de subsistência dos intelectuais norte-americanos,
muitos deles já profissionalizados:

E que variedade imensa de matérias é tratada pelos que escre-


vem – e que modos de vida honestos proporcionam às pessoas
as letras – e que proveito tão abundante e agradável encontram
aqueles que procuram as leituras! Seria bom se o pudessem fazer
em Caracas, os vetustos poetas, estudiosos letrados e críticos
severos; assim, as pessoas iriam ouvi-los, porque teriam ciência
útil a um baixo custo (...).7

Para entender a problemática do público, bem como a resposta


mercantilista e profissionalizante que freqüentemente propõem
os novos literatos, é necessário situá-las no interior do campo
intelectual em que operam, para não impor sobre elas nossa
visão atual de mercado e da profissão. Provenientes, em sua
maioria, das novas classes médias, sem um “capital simbólico”
(ou efetivo) garantido pela filiação oligárquica, os escritores

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finisseculares (Martí, Gutiérrez Nájera, Casal nos anos 80) que
defendiam a alternativa do mercado e da profissionalização, eram
contrários aos escritores da região mais reacionária do campo
literário, que ainda faziam uso de um conceito civil de literatura.
Um bom exemplo dessa região mais conservadora, no contexto
argentino, encontra-se em Calixto Oyuela, cuja crítica à profis-
sionalização alude a uma ideologia ainda bastante generalizada
no final do século:

O escritor, o artista, o homem de ciência, se realmente o são de


veras (...) devem inscrever, antes de mais nada, em seu coração, o
musarum sacerdos de Horácio, tão oposto às vulgares tendências
da multidão literária (...).

Sem negar, muito pelo contrário, o que há de legítimo na vigilân-


cia dos direitos e interesses dos autores, creio que sua associação
com esse exclusivo objetivo se traduz, por uma vocação natural
das coisas, numa degeneração e adulteração do ideal e das obras
intelectuais, assim como em funesta propagação de uma detes-
tável praga moderna: a literatura industrial (...).

[O] verdadeiro artista deve sempre distinguir profundamente entre


sua musa e seu negócio (...).8

Evidentemente que também Martí, Gutiérrez Nájera, ou depois


Darío, se distanciariam da outra posição central no campo finis-
secular, a literatura propriamente “industrial”, que muitos literatos
relacionariam com o aparecimento de um novo tipo de jornalista,
escritor de notícias e folhetins. Por isso Julián del Casal, apesar
de pressupor o mercado como meio inevitável do novo literato,
busca distanciar-se do outro tipo de intelectual, dominado pela
orientação da “indústria”:

Os artistas modernos estão divididos em dois grandes grupos. O


primeiro é formado pelos que cultivam suas faculdades, como
os que lavram seus campos, para especular com seus produtos,
vendendo-os sempre pelos preços mais altos. Estes são os falsos
artistas, cortesãos das multidões, espécie de mercadores hipócritas
a quem a posteridade – novo Jesus – expulsará um dia do templo
da Arte a chicotadas. O segundo se compõe dos que entregam
seus produtos ao público, não para obter os aplausos, mas seu

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dinheiro, a fim de se resguardar das misérias da existência e
conservar algo da independência selvagem de que necessitam
para viver e criar. Longe de se adaptar ao gosto da maioria, tratam,
isso sim, de que esta se adapte ao gosto deles.9

De modo que a posição “profissionalizante” responde por


uma dupla frente de luta: por um lado, se distancia do escritor
puramente mercantil do jornal, porém, ao mesmo tempo, reco-
nhece no mercado não apenas um meio de subsistência, mas
a possibilidade de fundar um novo lugar de enunciação e de
adquirir certa legitimidade intelectual, não subordinado aos apa-
ratos exclusivos, tradicionais, da República das Letras.
No entanto, esse outro lugar de enunciação, concomitante ao
aparecimento de um novo tipo de autoridade intelectual, era ainda
bastante vulnerável no começo da década de 80. No México, por
exemplo, Gutiérrez Nájera afirma em 1881:

A literatura é na Europa uma carreira em plena forma, tão dis-


ciplinada como a carreira militar, uma vez que nela se ascende
por uma rigorosa escala, desde o soldado raso, com exceção da-
queles que na milícia, do mesmo modo que nas letras, começam
a mostrar o seu valor. Os escritos, como todas as mercadorias,
sofrem a lei da procura e da oferta.10

Para Gutiérrez Nájera, dada a falta de um público capaz de


sustentar a “demanda” da nova “mercadoria”, “é indispensável
que o governo atenda com medidas justas e discretas ao desen-
volvimento das ciências e das letras”.11 Convém acrescentar que a
demanda de proteção era dirigida ao governo de Porfirio Díaz.
Os testemunhos, tanto do desejo como das limitações do
mercado editorial, se multiplicam no final do século.12 Outra
vez: ainda que evitemos reduzir a problemática do aparecimento
do sujeito literário (como campo discursivo) a uma questão de
empregos, seria igualmente redutor esquecer o impacto que o
mercado – ou sua ausência – exerceu sobre a própria disposição
do discurso literário, conforme sugeriu S. Molloy, sobre a imagem
do público que opera na poesia de Darío, condicionando seu
trabalho sobre a língua.13

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Martí em Nova Iorque:
o mercado da escrita

Com relação à questão do público, é significativa a situação


de Martí em Nova Iorque, particularmente nos primeiros anos
da década de 80. Recordemos a carta de Manuel A. Mercado,
na qual Martí, ao explicar suas razões para permanecer naquela
cidade, afirma:

Tudo me prende a Nova Iorque (...) Para outras terras, já sabe


que não me interessa ir. Não existe nelas um mercado literário,
nem teria porque existir (...) meus instrumentos de trabalho, que
são minha língua e minha pena, ou haveriam de permanecer
relegados ao recolhimento que já conhecem aqui, ou haveriam
de ser usados contra ou a favor de assuntos locais, temas em que
não tenho direito e nem interesse de entrar (...).14

É necessário insistir nesse aspecto mundano da vida de Martí.


A representação de Martí como herói – aura para a qual ele mes-
mo contribuiu – freqüentemente impede o conhecimento de sua
própria vida. E mais importante para nós, a aura heróica limita
as explicações das condições de possibilidade de seu discurso e
de sua própria politização. Politização, já vimos, que pressupõe
seu contato com o regime de mercado, com o trabalho, com a
fragmentação urbana, que por momentos o leva a se filiar às
regiões marginais da cultura capitalista e transformar seu conceito
do “interior” estético.
Foram muitas, às vezes inverossímeis, as ocupações de Martí
em Nova Iorque. Especialmente nos primeiros anos após sua
chegada, em 1881, até aproximadamente 1887, quando seu tra-
balho jornalístico já se encontrava suficientemente reconhecido
para lhe garantir um salário, a labuta diária do escritor foi árdua.
Seu deslocamento em Nova Iorque, sua relativa proletarização,
inclusive, são explicados em parte, e somente em parte, pelas con-
dições do exílio. Porque, assim como ele, outros escritores como
Gutiérrez Nájera ou Julián del Casal, em seus respectivos países,
também enfrentaram um processo similar e se auto-representam,
freqüentemente, como exilados.
O que é certo, por outro lado, é que o exílio nova-iorquino
radicalizava a situação de Martí, que por vários anos (ao contrário

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de Gutiérrez Nájera ou del Casal) não pôde viver da escrita. Em
1882, ele escreve a Mercado, seu correspondente no México, que
mais tarde lhe conseguiria um espaço no jornal de Porfirio Díaz,
El Partido Liberal: “Está expressamente dito em minha mesa de
funcionário do comércio – que é profissão nova na qual entro
– para não passar por vil desterrado sem ocupação, e contribuir
para a amargura de cultivador das letras espanholas.”15
Em outra carta, acrescenta:

Não sei se te falei que agora vivo de pequenos trabalhos no


comércio, e que, como me falta dinheiro, ainda que não me
faltam modos, para fazer o que gosto – sirvo ao alheio, o que
equivale em Nova Iorque a mudar de corcel da planície para
animal de presépio; no entanto, com que alegria regresso a casa
todos os dias – guardando em sigilo para que ninguém perceba
os terrores da alma (...).16

Casa e trabalho alienados: a oposição registra um corte na


história da noção da privacidade, importante para a literatura. A
literatura retrocede nesse interior, oposto ao mundo reificado do
trabalho. Recordemos que, nos discursos dos contemporâneos
iluministas, escrever era convocar ao trabalho. Para Martí, por
outro lado, mais precisamente no período das cartas mencio-
nadas, a poesia delimita seu espaço em oposição a esse exterior
do trabalho:

Ganhado já tenho o pão: faça-se o verso,


e em seu doce comércio se exercite
a mão, que qual prófugo perdido
entre escuras ervas daninhas, ou como quem
leva nas costas enorme peso, andava há pouco
alinhavando quantias e revolvendo cifras.17

A poesia é o lugar do outro comércio. É emblemático que


nesses anos a poesia de Martí represente a cena da escrita, insis-
tentemente, à noite, num interior, sempre depois do trabalho. Esse
desprendimento implica a autonomia, ou vontade autonômica
do sujeito literário, ou seja, seu distanciamento do imperativo
racionalizador, utilitário, distintivo da ordem social moderna.
Assim, para entender a densidade e especificidade deman-
dada pelo interior é necessário delimitar o afora que, em alguns

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momentos, a escrita procura obliterar; a crônica, o encontro do
poeta com os “exteriores” da cidade, nos permitirá considerar o
que o “interior” apaga, segundo veremos a seguir.
Por ora, digamos que, em oposição ao trabalho “alienado”
feito na mesa de comércio, nestes primeiros anos da década
de 80, Martí explorou a alternativa do mercado da escrita. Foi
se promovendo como intermediário entre os Estados Unidos
e vários grupos latino-americanos, especialmente no México,
Venezuela e Argentina. A função de mediador se comprova em
suas traduções para a Casa Appleton que, frente ao vazio edi-
torial latino-americano, produzia livros para o crescente público
hispano-americano, não apenas de Nova Iorque, mas também
do México e Havana.18
O trabalho de Martí para o jornal La América, entre 1883 e
1884, também pode ser lido em função de seu trabalho como
intermediário-tradutor. Esse jornal, segundo confirma a variedade
de contribuições do escritor cubano, apesar de ter sua publicação
dirigida para a comunidade hispânica, também consistia num
projeto comercial mais amplo. Circulava em vários países latino-
americanos, onde servia de vitrine dos avanços mais recentes
da tecnologia norte-americana, além de liason [ligação] geral
numa rede de exportação e importação.19 Isto é possível de ser
comprovado, por exemplo, nos anúncios dos mais variados e às
vezes estranhos artefatos que Martí redigiu para o jornal.20 Era
previsível que Martí não permanecesse muito nessas funções;
em 1884, teve conflitos com editores e voltou a procurar novas
alternativas.
Em 1886 escreve a Manuel Mercado:

Tenho pensado em me tornar editor de livros baratos e úteis, de


educação e matérias afins, livros que pudessem ser feitos aqui
[em Nova Iorque] em harmonia com a natureza e necessidade
de nosso povos, e com economia de quem trabalha em causa
própria, para serem vendidos, no México, principalmente, com
uma pequena margem de proveitos.21

O projeto, para Martí, representava a possibilidade de


desenvolver uma indústria editorial autônoma, “longe das mãos
dos editores exploradores”, mas especificamente a Appleton,

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segundo se suspeita. Apesar de o projeto não ter tido vida longa,
o primeiro livro que lançou o novo empresário se intitulava
Ramona, tradução do romance de Helen Hunt Jackson: “Muito
interessante me parece Ramona e talvez se torne a base de minha
independência.”22 Antes de sua publicação, em 1888, Martí já
tinha conseguido vender dois mil exemplares em Buenos Aires.23
Nesse mesmo ano publicou uma segunda edição, que se esgotou
rapidamente.
Por outro lado, o meio mais eficaz de subsistência mediante
a escrita era o jornalismo. Desde começos dos anos 80, através
de suas correspondências ao jornal La Opinión Nacional, de
Caracas, entre 1881 e 1882, e ao La Nación, de Buenos Aires,
entre 1882 e 1891, Martí já tinha reconhecido o interesse que a
nova imprensa latino-americana sentia pelos Estados Unidos,
nessa época de abertura das economias latino-americanas. Dessa
maneira descreve a Mercado sua “mercadoria útil e superior em
importância”, a crônica:

Pensei em sentar à minha mesa para escrever, durante todo o


mês, como se fosse publicar aqui uma revista; sai o correio de
Nova Iorque para um dos nossos países; escrevo tudo o que há
de notável: casos políticos, estudos sociais, notícias das letras e
teatros, originalidades e aspectos peculiares desta terra (...) Enfim,
uma Revista, feita a partir de Nova Iorque, sobre todas as coisas
que possam interessar a nossos leitores cultos, impacientes e
imaginativos, porém feita de modo que possa ser publicada em
jornais diariamente (...) Por pouco me proponho a dar muito;
que não me servirão especialmente, mas porque serão notícias
de coisas interessantes, novas e vivas.24

A crônica surge como uma crônica da vida moderna, produ-


zida para um leitor “culto”, desejoso da modernidade estrangeira.
Certamente que esse gesto publicitário do “moderno”, ligado à
ideologia e à forma da viagem importadora (gênero muito popular
entre seus contemporâneos), não define de todo a Martí, que
levará a crônica a regiões inesperadas, convertendo-a numa crítica
da viagem importadora, modernizadora. No entanto, a mediação
entre a modernidade estrangeira e um público que deseja essa
modernidade será a condição que possibilita o aparecimento da
crônica, inclusive em Martí.

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Pois bem, na referência anterior encontramos certos índices
de um conflito fundamental: a escrita, no jornal, “não por [mim]
há de valer”. A poesia se projetará, ao contrário do jornal, como
o “refúgio do proscrito”.25 Ou seja, já em Martí, em contraste com
os letrados iluministas, o trabalho jornalístico é conflitante, oposto
ao valor mais “alto” e “subjetivo” do discurso poético. Porém, ao
mesmo tempo, o jornal oferecia um modo de vida mais próximo
que o comércio (ou o governo) aos “instrumentos de trabalho,
que são (...) [a] língua e [a] pluma”. Para esta época, 1887, já são
vinte os jornais para os quais escreve Martí, ainda que, ao parecer,
nem todos respeitavam os direitos autorais exigidos por ele.26
O objetivo de ressaltar esse aspecto trivial da vida de Martí
obedece a um duplo propósito: registrar o fato de que na moder-
nidade também os heróis estão sujeitos às leis de mercado; além
disso, freqüentemente, como no caso de Martí, é exatamente essa
sujeição o que possibilita um discurso crítico que pode assumir
tanto a aura da pureza, como o heroísmo. Porém, mais importante
ainda, procuramos afirmar a fragilidade das bases institucionais
do campo literário finissecular. Fragilidade que obriga a literatura
(não apenas o literato) a depender de instituições externas para
consolidar e legitimar um espaço na sociedade. O que nos leva,
novamente, à heterogeneidade da literatura latino-americana,
particularmente no final do século.

Jornalismo e nacionalidade

Essa heterogeneidade – mesmo no jornalismo literário


finissecular – não deve ser confundida com uma heteronomia
discursiva. O significativo da crônica modernista é que, se por
um lado manifesta dependência literária do jornal, ela constitui,
por outro, mais do que uma “hibridez” desierarquizada, um
campo de luta entre diferentes sujeitos ou autoridades, entre os
quais é enfática – às vezes mais enfática que a própria poesia
– a tendência estetizante da vontade autonômica. Aqui também
não devemos confundir a autonomização desigual da literatura
com um discurso (heterônomo) tradicional, já que é indubitável
que a autoridade estética é uma das forças geradoras da crônica
finissecular, por mais que outras autoridades e funções limitem

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sua autonomia. Mais ainda, é necessário pensar o limite que o
jornalismo representa para a literatura – no espaço conflitante da
crônica – em termos de uma dupla função, em vários sentidos,
paradoxal: se por um lado o jornalismo relativiza e subordina
a autoridade do sujeito literário, por outro, o limite é uma con-
dição de possibilidade do “interior”, marcando a distância entre
o campo “próprio” do sujeito literário e as funções discursivas
outras, ligadas ao jornalismo e à emergente indústria cultural
urbana. Ou seja, em oposição ao jornalismo, no próprio jornal
o sujeito literário se autoconsolida, precisamente ao confrontar
as regiões “antiestéticas” do jornalismo e da “cultura de massas”.
Nesse sentido, a crônica foi, paradoxalmente, uma condição
de possibilidade da modernização poética: se a poesia, para os
modernistas (inclusive em alguns momentos para Martí), é o “in-
terior” literário por excelência, a crônica representa, tematiza, os
“exteriores”, ligados à cidade e ao próprio jornal, que o “interior”
apaga.27 Daí o conflito de autoridades que constitui a crônica
poder ser lido como o processo de produção desse “interior” já
reificado, purificado, na poesia.
Pois bem, o lugar dependente da literatura no jornal poderia
sugerir algum tipo de continuidade com respeito ao campo ante-
rior aos anos 80 – a República das Letras –, no qual efetivamente
o jornalismo havia sido um meio fundamental. Pressentimos a
seguinte pergunta: a intensa participação dos escritores finisse-
culares no jornalismo (que em Martí ultrapassa em importância
a qualquer outro tipo de enunciação) não comprova o caráter
“civil” de sua escrita, sua integridade e organicidade a respeito
da vida pública, e finalmente, sua proximidade com o modelo
tradicional do escritor letrado ou “propagandista”? Além disso,
conforme afirmamos anteriormente, a diferença entre o campo
letrado e o campo literário posterior aos 1880 não pode ser
estabelecida, estritamente, em função do quesito mercado, pois
muito antes do final do século, dizíamos, a escrita (no jornal) já
se encontrava sujeita às leis do intercâmbio econômico.28 Como
se diferencia, então, o jornalismo martiano e a crônica modernista
do sistema da “propaganda” anterior?
O que havia sido o jornalismo anteriormente? Brevemente,
digamos que o jornalismo, entre o período de emancipação e a
consolidação dos Estados nacionais, já no último quarto de século,

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tinha sido o meio básico de distribuição da escrita. Conforme
vimos na escrita de Sarmiento e Bello, a escrita era o modelo, em
sua própria disposição ordenada do sentido, de uma vida pública
racionalizada. Daí o jornalismo não representar um conflito para a
“literatura”, dada precisamente a inoperância de uma autoridade
especificamente estética, com algum grau de autonomia. O
jornalismo, no sistema da República das Letras, era o lugar onde
se debatia a “racionalidade”, a “ilustração”, a “cultura”, tudo o que
diferenciava a “civilização” da “barbárie”. Desse modo, é possível
pensar o jornalismo de então como o lugar onde se formalizava
a polis, a vida pública em vias de racionalização.
O jornalismo foi muito importante para a produção da ima-
gem da nacionalidade, daquilo que Benedict Anderson chama
de uma comunidade imaginada.29 Em sua história da formação
dos sujeitos nacionais, Anderson enfatiza a importância da escrita
para a regulação e delimitação do espaço nacional. O jornalismo
produz um público no qual se baseiam, inicialmente, as imagens
da nação emergente. O jornalismo não é apenas um agente de
consolidação do mercado – fundamental para o conceito mo-
derno de nação –, mas também contribui para produzir um campo
de identidade, um sujeito nacional, inicialmente inseparável do
público leitor do jornal. Na América Latina, para Anderson, a falta
de uma rede de comunicação entre diferentes regiões do conti-
nente – o fato de que os jornais localizassem, de forma reduzida,
sua imagem do público – explica, em parte, a impossibilidade
do projeto de unificação do continente a partir de um Estado
comum, em contraste com os Estados Unidos.
Também em outro sentido, entre 1820 e 1880, aproximada-
mente, o jornal foi uma matriz dos novos sujeitos nacionais. O
jornal não apenas cristalizava a “racionalidade”, a ordem que se
identificava com a estabilidade e a delimitação nacional, mas
também permitia estender essa ordem às regiões insubordinadas
da “barbárie”. Converter o “bárbaro” em leitor, submeter sua ora-
lidade à lei da escrita – já o vimos em Bello e Sarmiento – era um
dos projetos ligados à vontade de ordenar e produzir o espaço na-
cional. O jornalismo era um dispositivo pedagógico fundamental
para a formação da cidadania. Apesar de escritas na conjuntura
colonial cubana, as páginas de J. A. Saco sobre o jornalismo, em
La Vagancia en Cuba, são iluminadoras. Recordemos que, para

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Saco, a escrita era um dispositivo da racionalização do trabalho,
outra condição de possibilidade da modernização. Saco afirma:

Quando se reunirem os fundos necessários e a educação se


difundir por toda a Ilha, quão diferente será a sorte de seus
habitantes! Então, e apenas então, poderão se popularizar
muitos conhecimentos, não menos úteis para a agricultura e as
artes, que para a ordem doméstica e moral de nossa população
rústica. Não pedirei para isso que se coloquem cátedras e nem
professores nos campos. Um jornal, que a título de ensaio talvez
pudesse se estabelecer em alguma paragem, um jornal, repito,
em que se publicassem máximas moralizantes e bons conselhos
sobre economia doméstica, os importantes descobrimentos, as
máquinas e melhorias para a agricultura, os métodos de aclimatar
novas raças de animais e de aperfeiçoar as que já temos; em uma
palavra, tudo o que se considere necessário para o progresso dos
ramos que constituem nossa riqueza, contribuirá enormemente
para a prosperidade da Ilha (...).

Sendo um jornal desta natureza o veículo mais seguro para


difundir os conhecimentos e melhorar os costumes da população
rústica, não cabe dúvida de que devesse estar auspiciado pelas
prefeituras e sociedades patrióticas. Sua redação podia ser
encomendada a dois ou mais indivíduos de seu seio, ou de fora
dele, custeando de seus fundos a impressão, para que possa ser
repartido gratuitamente entre as pessoas do campo o número
correto de exemplares (...).

É certo que a distribuição deste papel seria difícil; porém, a


dificuldade poderá ser vencida se buscassem a mediação dos
padres rurais, ou dos chefes dos partidos, que facilmente poderão
reparti-los nos domingos, nas paróquias onde se congregam os
fiéis. Seria útil que, depois da missa, fosse lido em voz alta fora
da igreja, por uma pessoa respeitável, porque assim seria mais
interessante; seria o assunto das rodas de conversas; os mais
instruídos esclareceriam as dúvidas dos menos inteligentes; e
absorvida a atenção em tão recomendável objeto, muitos de
nossos camponeses deixariam de passar o domingo ao redor de
uma mesa de jogo, ou entregues a outras diversões perigosas.30

O jornal era um meio de incorporar o outro, um meio de


racionalizar o trabalho. Novamente impressiona o imaginário
arquitetônico de Saco. A Igreja e seus intelectuais tradicionais,
claro, são aí refuncionalizados, contribuindo para a ampliação

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da modernidade. Também é significativo o que afirma sobre a
distribuição do jornal. Se o analfabetismo era um traço do “bár-
baro”, como incorporá-lo ao “público”, à escrita? Aqui aparece a
função do mediador, um tipo de educador que lê o jornal para a
comunidade analfabeta. Ou seja, graças a esses intermediários, a
escrita seria capaz de estender seus domínios para além do redu-
zido mundo do público urbano. Essa foi, sem dúvida, uma das
funções centrais do poeta gauchesco na Argentina, onde a poesia
produzida por letrados se converteu em jornal de iletrados; jor-
nais de “bárbaros” interpelados – nas condições que determinam
o desenvolvimento do gênero, de Hidalgo a Hernández – por
diferentes sujeitos que procuravam dominar o emergente campo
da identidade nacional.
Em torno do último quarto de século, o lugar do jornal na
sociedade muda, no bojo de uma transformação mais ampla no
âmbito da comunicação social. Na medida em que se consoli-
davam as nações, com a esfera do político se tornando autônoma
nos novos Estados que definiam seus domínios, o conceito do
público sofre profundas transformações. Trata-se, em parte, dos
efeitos de uma nova distribuição do trabalho, concomitante à
transformação dos laços que articulavam o tecido discursivo
do social. Tal reestruturação, como assinala Habermas, afetou
particularmente a relação entre o público e o privado.31 O apa-
recimento de um novo campo de privacidade, que começa a se
opor à comunicação “reificada” do “social”, foi essencial para o
aparecimento da literatura moderna.
No interior dessa transformação do público e do privado,
o jornalismo cumpriu um papel importante. Também em seu
interior ocorria um processo de racionalização, diferenciando
suas funções do político-estatal. Ou seja, se anteriormente o
jornal havia cristalizado a vontade racionalizadora, cumprindo
uma função estatal, é impressionante sua nova tendência a se
distanciar da vida pública, já propriamente estatal, apesar de não
deixar de ser ideológico e nem de assumir posições políticas (às
vezes, abertamente partidárias).32 Com relação ao itinerário (por
outro lado desigual) do distanciamento do jornalismo do Estado,
convém se deter no caso do La Nación de Buenos Aires, sem
dúvida o jornal mais moderno e modernizador da época, em que
tanto Martí como Darío, entre outros, publicaram grande parte

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de suas crônicas. Isto nos permitirá, posteriormente, definir o
lugar da literatura no jornalismo finissecular da época e retomar
a problemática de sua heterogeneidade na crônica.

La Nación, de Buenos Aires

Em nossas sociedades contemporâneas, articuladas por tec-


nologias da comunicação tão complexas e refinadas, talvez seja
difícil compreender a importância que um simples jornal podia
ter na organização do mundo das sociedades finisseculares.
Por exemplo, hoje poderia parecer inverossímil o itinerário de
viagem de qualquer notícia entre Londres, Paris e Buenos Aires,
antes de 1887. Nesse ano, em Buenos Aires, o La Nación inau-
gurava um serviço telegráfico, filiado à Agência Havas de Paris,
anunciando, com grandes letras, que a distância entre Europa e
Argentina se reduzia para sempre. Anteriormente, a informação,
inclusive a comercial, chegava em forma de cartas, por barco, 15
dias depois de sua partida de Portugal, fazendo escala no Rio de
Janeiro e Montevidéu, antes de chegar a Buenos Aires.33 Poucos
anos depois da instalação do serviço telegráfico, os editores do
jornal afirmam:

Seis anos atrás, antes que o La Nación inaugurasse o primeiro


serviço de telégrafo que existiu no Rio da Prata, os acontecimentos
dos países europeus, de cuja vida participamos tão intimamente,
pela comunidade sangüínea (...), de pensamento, não menos que
pelos interesses recíprocos do comércio e da indústria, chegavam
a nós quando já havia passado mais tempo que o necessário para
que fossem esquecidos (...).

Hoje já não acontece isso: as informações que afetam, de um


modo ou de outro, os interesses intercontinentais, chegam no
momento em que são requisitadas (...).34

Em geral, os historiadores do período – época de incorpo-


ração da América Latina ao mercado internacional, nas palavras
de T. Halperin Donghi –35 não prestam atenção na importância
que os meios de comunicação tiveram em termos da moderni-
zação social na época. Acredita-se que a imprensa contribuiu
para articular os mercados locais, e inclusive internacionais, e

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permanece, de algum modo, como um arquivo da vida cotidiana
daquelas sociedades. No entanto, é notória a ausência de um
trabalho histórico rigoroso sobre o jornalismo, cujo desenvolvi-
mento tem sido objeto, geralmente, das narrativas e anedotários
dos próprios jornalistas. Mesmo assim é possível afirmar que o
desenvolvimento da imprensa no século 19 – como já previam
os patrícios modernizadores – foi uma condição de possibilidade
da modernização e reorganização social que caracteriza o final
do século. Para os nossos objetivos, é conveniente que nos
limitemos a um aspecto de tal reorganização, particularmente
no que concerne à mudança que sofre a relação entre o jornal
e a vida pública. Assim poderemos ver, posteriormente, porque
o jornal, na medida em que racionalizava seus meios, fomentou
– paradoxalmente – o desenvolvimento de certa literatura ligada
à crônica modernista.
O La Nación foi fundado em 1870, por Bartolomé Mitre, dois
anos depois que deixou a presidência. Até certo ponto, o jornal
dava seqüência ao projeto de seu antecessor, o La Nación Argen-
tina, editado por José María Gutiérrez. Durante a presidência de
Mitre, este último jornal havia sido um órgão praticamente oficial
do Partido Liberal, dominado até o ano de 1968 pelo mitrismo.
É necessário enfatizar a função estatal do La Nación Argentina,
porque em 1870 – com Sarmiento na presidência – Mitre funda o
novo jornal precisamente com o objetivo de iniciar uma imprensa
independente ou autônoma do Estado. Assim explica Mitre a
necessidade de reformular o papel da imprensa:

Hoje o combate terminou. Terminou, sim, e estamos triunfantes


com relação a todas as questões da organização nacional, que
foram resolvidas ou que estão em vias de solução já definitiva.
A nacionalidade é um fato e um direito indestrutível, aceito e
aplaudido por seus próprios adversários de outros tempos (...)
A grande contenda já se findou (...) O La Nación Argentina foi
uma luta. O La Nación será uma propaganda (...).

Fundada a nacionalidade, é necessário propagar e defender os


princípios nos quais se inspirou, as instituições que são suas
bases, as garantias que criou para todos, os fins práticos que
procura, os meios morais e materiais que haverão de colocar a
serviço desses fins.36

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O território nacional, com efeito, já se encontrava relativa-
mente consolidado sob o poder de uma lei central, estatal, cuja
autoridade, ao menos em princípio, era aceita pelos distintos
grupos dominantes. A imprensa, que até o momento tinha sido
um dispositivo da centralização e limitação nacional, ligada assim
ao político-estatal, devia agora reformular suas funções. É evidente
que o La Nación, particularmente até o ano de 1874, continuaria
sendo um bom exemplo de jornalismo político ou de opinião
(tipo de jornalismo característico da vida pública tradicional). Ele
inicialmente se constituiu, apesar do que afirmava Mitre naquele
primeiro editorial, como um órgão partidário, um veículo da
dissidência anti-sarmientina no interior do Partido Liberal, que
levaria Mitre a tentar um golpe de Estado contra N. Avellaneda,
pouco depois das eleições de 1874. O jornal se converteu no
órgão do emergente Partido Nacionalista, após a eventual fra-
tura do Partido Liberal (entre mitristas e alsinistas-autonomistas
de Buenos Aires). O jornal seguia sendo interpelado pelas ins-
tituições do campo político, o que relativizava sua autonomia e
especificidade institucional.
Ao longo das duas próximas décadas, a função política e
partidária do jornal continuaria sendo fundamental. No entanto,
é notável, nesse período, sua modernização progressiva, tanto
em termos da tecnologia utilizada, como da racionalização e
especificação de suas novas funções sociais, especialmente aquelas
ligadas à informação e à publicidade comercial. Apesar de essas
novas funções, concomitantes à emergência de novos discursos
(e textos) jornalísticos, não deslocarem totalmente de seus marcos
a função tradicional, partidária, da imprensa, a modernização do
jornal requeria certa autonomização do político.
Em 1875, em razão do encarceramento de Mitre e do conse-
qüente fechamento do La Nación, após um frustrado golpe de
Estado contra Avellaneda, o jornal passa por uma impressionante
transformação. Um redator daquela época, 1883, recordava os
momentos de mudança:

Desde [o fechamento em 1875] então, o La Nación se adiantou


a todos os demais jornais de Buenos Aires. A administração deu
à empresa, exclusivamente política até aquela data, um caráter
comercial, e o jornal, sem deixar de manter sua bandeira, entrou

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num terreno mais sólido, entregando-se ao trabalho de noticiar,
do qual andava apartado, e que é a principal fonte de vida do
jornalismo.37

Enrique de Vedia, sobrinho de Mitre, passou a ser o novo ge-


rente do jornal. Vedia reconhecia que o jornal – para sobreviver
como empresa – devia se autonomizar da política mais imediata.
Se o jornal, como projetava o próprio Mitre, devia ser um agente
modernizador, tinha então que ultrapassar a esfera permitida
do partido. O jornal devia chegar a um público cada vez mais
heterogêneo, tinha que se converter também em agentes publi-
citários de setores que politicamente podiam ser contraditórios.
O jornal começava, então, a proclamar sua “objetividade”, numa
estratégia de legitimação distintiva de seu desejo de autonomia
e modernização.
A partir da administração de Vedia, o jornal se submete a
uma nova divisão de trabalho. Inicialmente, o proprietário-editor,
Mitre, era gerente e redator, ao mesmo tempo que supervisionava
pessoalmente a própria impressão do jornal, numa organização
tipicamente artesanal. Certamente, resulta emblemático o fato de
que a produção do jornal se realizasse na própria casa de Mitre
(até 1885), o que sugere que os espaços de privacidade e de
trabalho ainda não se encontravam diferenciados, em contraste
com o período da profissionalização posterior, marcado por uma
clara divisão entre a vida privada e a vida pública do sujeito.
Durante a administração de Vedia – membro da família, por
outro lado –, as tarefas começam a se especializar e especificar
seus meios. Isto se nota na distribuição, bem como nas próprias
linguagens, do trabalho jornalístico. Progressivamente a infor-
mação adquire importância no jornal, assim como se expande e se
moderniza tecnicamente o espaço dos anúncios publicitários.
Em 1887, Mitre ainda podia publicar, por capítulos, sua Historia
de Belgrano, ocupando uma terceira parte da primeira página,
na seção Folhetim do jornal. Porém, esse tipo de indiferenciação
discursiva do jornalismo já começava a se transformar. Também
diminui o predomínio dos editoriais (partidários) nos anos 80,
particularmente depois do aparecimento do novo discurso infor-
mativo, no qual começava a se especializar o jornal.

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Trata-se, até certo ponto, do processo de autonomização da im-
prensa frente ao político-estatal, no interior de uma transformação
mais ampla do tecido da comunicação social. Essa transformação
do tecido social se cristaliza, precisamente, na emergência da im-
prensa como meio de uma nova cultura de massas, em oposição
a sua anterior funcionalidade política. Habermas descreve assim
o processo de autonomização e relegitimação da imprensa:

Somente com a consolidação do Estado burguês de direito e


com a legalização de uma publicidade politicamente ativa, é
que a imprensa se vê livre do fardo da opinião; está agora em
condições de rever sua posição polêmica e atender às expectativas
de benefício de uma empresa comercial corrente. Essa evolução,
que leva a imprensa de opção a se converter em uma imprensa
de negócio, ocorre quase simultaneamente na Inglaterra, França
e Estados Unidos, durante a década de trinta do século passado.
A inserção de anúncios dá um novo fundamento ao cálculo
empresarial (...).38

Para Habermas, a passagem de uma imprensa de opinião, que


materializava o “raciocínio”, a “discussão”, a “privacidade inse-
rida no público” da era liberal, para uma imprensa propriamente
comercial, orgânica à emergente sociedade de consumo, marca
um câmbio fundamental na história do capitalismo. A mudança
na imprensa cristaliza e promove uma transformação radical
entre o privado e o público, numa sociedade cada vez mais
dominada pela emergente “indústria cultural” e por um conceito
de “público” que exclui a discussão e a participação, que para
Habermas caracterizava a comunicação no período liberal das
burguesias européias. A comunicação social, o âmbito do público,
se constitui assim como a soma de “pseudoprivacidades”, num
mundo fragmentado e reificado.39
A história de Habermas do conceito de “público”, em sua
flutuante relação com o âmbito “privado”, é muito valiosa, espe-
cialmente por sua disposição teórica, que nos parece excepcional,
principalmente frente ao empirismo que domina a historiografia
do jornalismo. No entanto, em sua voluntariosa crítica à “indústria
cultural”, tão típica da década de 60 (e da tradição da escola de
Frankfurt, da qual Habermas faz parte), é conhecida sua nostálgica
idealização da comunicação social na era liberal do capitalismo.
A pergunta seria a seguinte: que agente social determinava o

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“consenso”, o “raciocínio”, naqueles “espaços de discussão” (a
imprensa, os clubes) da era liberal? Em função de quais grupos
do poder – para quem – operava o consenso? Quais grupos
sociais – e inclusive, quais outros “jogos comunicativos” – eram
excluídos, ou exterminados, pelo “raciocínio”?
Por outro lado, a transformação da comunicação social foi
bastante desigual na América Latina; seria equivocado tomar o
modelo europeu de passagem da “era liberal” para o “capitalismo
avançado”, para explicar as transformações finisseculares. Por
exemplo, ao longo das últimas décadas do final do século, o La
Nación ainda continuava sendo um jornal marcadamente híbrido,
mantendo vestígios do jornalismo tradicional, ao mesmo tempo
que modernizava radicalmente sua organização discursiva. Mais
próximo do jornalismo francês que do emergente “sensaciona-
lismo” norte-americano, o La Nación nunca limitou suas funções
à informação noticiosa. Evidentemente que não se pode falar de
sua organização discursiva em termos de uma “indústria cultural”,
uma marca característica do capitalismo avançado. No entanto,
não é possível subestimar a modernização que o jornal propunha,
não apenas com seu projeto empresarial, mas como um modelo
de transformação geral para a Argentina, bem na linha de uma
ideologia desenvolvimentista do próprio Mitre.
Em termos da racionalização das linguagens jornalísticas, a
inauguração do serviço telegráfico em 1977 é fundamental. O
telégrafo permitia à comunidade de leitores se auto-representar
como uma nação participante de um “universo” articulado, me-
diante uma rede de comunicação que contribuiu em muito para a
sistematização do mercado internacional da época. No La Nación,
o serviço telegráfico começou a incluir comunicados comerciais,
complementados, a partir de 1878, por boletins quinzenais, que
anunciavam os produtos próprios para exportação à Europa. De
igual maneira, seus avisos inovadores, que cobriam quase a meta-
de do jornal, em 1880, serviam de vitrine para as mais modernas
máquinas agrícolas e objetos de luxo de origem inglesa, francesa
e norte-americana. O jornal se convertia, assim, num intermediário
fundamental entre o capital estrangeiro e os grupos comerciais
de Buenos Aires, cada vez mais poderosos.
A capacidade informativa do telégrafo também teve um efeito
impressionante sobre a racionalização das linguagens jornalísticas.

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O telégrafo estimulou a especialização de um novo tipo de
escritor, o repórter, encarregado de um novo “objeto” lingüístico
e comercial: a notícia. “Sansón Carrasco”, ao recordar as mudanças
do jornal na administração de Vedia, afirma, referindo-se a Emilio
Mitre (filho de patrício):

O viajante se dedicou a estudar o jornalismo inglês (...) e pouco


a pouco foi introduzindo no grande jornal argentino as reformas
que acreditou necessárias (...) Espírito prático, como Vedia, Emilio
Mitre deixou de lado a verborragia e a substituiu pela substância,
dando à notícia a importância que merece.40

Essa especialização, por sua vez, tendeu a problematizar a


legitimidade das letras no novo jornalismo. Conforme assinala
outro redator do jornal:

O jornalismo e as letras parecem caminhar juntos, como o diabo


e a cruz. As qualidades essenciais da literatura, com efeito, são a
concisão vigorosa, inseparável de um longo trabalho, a elegância
das formas (...) O bom jornalista, pelo contrário, não pode permitir
que sua pena se perca pelos campos da fantasia.41

À primeira vista, a antítese entre jornalismo e literatura poderia


parecer, hoje, um lugar-comum. Na década de 80, no entanto,
essa diferenciação entre a literatura e o uso da linguagem espe-
cificamente jornalística era relativamente nova. A antítese registra
a fragmentação das funções discursivas, pressuposta pelo apa-
recimento do sujeito literário moderno: o “campo da fantasia”, a
“elegância das formas”. Ou seja, no sistema anterior, o intelectual
era um “propagandista” e o jornal, o lugar das letras, operando
em função da extensão da ordem da escrita. Porém, já na década
de 80, aquela indiferenciação começa ser questionada, na medida
em que as letras e a escrita exibem, em vários momentos, práticas
antagônicas, competindo por autoridade no interior de uma nova
divisão de trabalho sobre a língua. Também se dissolvia, relati-
vamente, a exclusividade de classe da escrita, num sistema em
que proliferavam – graças ao mercado, em parte – os escritores
das novas classes médias.42 Trata-se de um processo de relativa
democratização da escrita, descrita assim por Martí em 1882:

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Com o descenso das iminências, sobem de nível os de baixo, o
que tornará mais fácil o trânsito pela terra. Os gênios individuais
se notarão menos, porque falta-lhes o detalhe dos contornos que
antes realçavam tanto sua escrita. E como todos vão aprendendo a
colher os frutos da natureza e a admirar suas flores, sobram para
os antigos mestres menos flor e fruto que colher, ao contrário do
que ocorre com a maioria das pessoas que antes apenas admi-
ravam estes velhos sábios. Assistimos a uma descentralização da
inteligência. O belo começou a ser domínio de todos.43

Diferentemente de muitos de seus contemporâneos (talvez em


companhia, outra vez, de Gonzalo Prada), Martí freqüentemente
via com otimismo essa reorganização e abertura dos espaços
intelectuais. Mas, em geral, sua visão otimista do jornalismo não
foi a norma no campo literário da época. Apesar do fato de a
literatura latino-americana de final do século ter dependido da
imprensa para sua distribuição, os novos literatos, inclusive no
jornal, freqüentemente auto-representavam seu discurso e sua
autoridade em oposição aos usos da escrita que o jornalismo ins-
tituía. E mais, com freqüência representavam o jornalismo como
uma das causas fundamentais da “crise” da literatura. Justo Sierra
afirmava: “O jornal [é o] assassino do livro (o assassino de Notre
Dame), que vai fazendo da literatura uma reportagem, convertendo
a poesia na análise química da urina de um poeta (...).”44
Gutiérrez Nájera:

Dessa vez, como em muitas, o telégrafo mentiu. Esse grande


falador, esse alado e sutil repórter, não espera que a notícia se
confirme para transmiti-la (...) e não repara nos males que podem
produzir suas hesitações, seus equívocos, sua péssima ortografia.
É industrial, comerciante. (...) O telegrama não tem literatura,
nem gramática, nem ortografia. É brutal.45

Darío:

A tarefa de um literato num jornal é extremamente penosa. Pri-


meiro, os receios dos jornalistas. O repórter se sente usurpado e
com razão. O literato pode fazer uma reportagem; já o repórter
não consegue ter isso que se chama simplesmente de estilo (...)
Em resumo: deve se pagar (...) ao literato pela qualidade e ao
jornalista pela quantidade; seja aquela de arte, de idéia; seja esta
de informação.46

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Julián del Casal:

Sim! O jornalismo, tal como ainda se entende entre nós, é a ins-


tituição mais nefasta para os que, não sabendo colocar sua pena
a serviço de causas pequenas ou não estimando os aplausos efê-
meros da multidão, se sentem possuídos pelo amor à arte, porém
da arte pela arte, não da arte que priva em nossa sociedade.47

O próprio Gonzalo Prada, antecipando alguns dos tópicos da


crítica da cultura de massas, que ainda hoje estimula boa parte
da “alta” produção intelectual, afirma:

Para a multidão que não pode ou não quer se alimentar do livro,


o jornal encerra a única nutrição cerebral possível: milhares e
milhares de homens aguardam seu jornal diário, como um velho
amigo, portador da notícia e do conselho. Onde não consegue
penetrar o volume, desliza suavemente a folha (...).

No entanto, o jornalismo não deixa de produzir enormes danos.


Difunde uma literatura de clichês ou fórmulas estereotipadas,
favorece a preguiça intelectual das multidões e mata, ou adormece,
as iniciativas individuais. Sobram cérebros que não funcionam se
o jornal não os sacode e desperta: como lâmpadas elétricas, só
acendem quando a corrente parte da redação central.48

Até certo ponto, o novo antagonismo é efeito da competição


instaurada pelo surgimento das novas autoridades escriturais,
bem como da luta entre intelectuais “tradicionais” (no sentido
gramsciano) contra os escritores “orgânicos” do novo mercado da
informação. Em termos de Habermas, é a luta entre “o jornalismo
dos escritores privados” contra os “serviços públicos dos meios
de comunicação de massa”:

A atividade da redação já tinha deixado de ser (em meados


do século 19) – sob pressão do progresso técnico na maneira
de obter as notícias – uma mera atividade, para se especializar
no sentido jornalístico. A seleção do material chega a ser mais
importante que o próprio artigo editorial; a elaboração e ajui-
zamento das notícias, sua correção e disposição, muito mais
importante que a execução literariamente eficaz de uma “linha”.
Principalmente a partir dos anos 70, configura-se uma tendência
a deslocar os grandes jornalistas das estruturas hierárquicas, para
substituí-los por técnicos administrativos de talento. A editora

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contrata os redatores para que, de acordo com as indicações
oportunas e presos a elas, trabalhem para os interesses privados
de uma empresa lucrativa.49

É possível pensar, inicialmente, que esse progressivo desloca-


mento dos “altos” escritores, de seu lugar central no jornal, seja
a causa da tensão entre o novo jornalismo da década de 80, em
vias de especialização, e os literatos, especialmente os cronistas,
que continuaram dependendo do jornal.
Nesse sentido, na América Latina, à primeira vista, parece que
o jornalismo literário nas últimas décadas do século era instância
de um discurso e uma autoridade tradicional, que perdia prestí-
gio no período de modernização do jornal; a crônica parecia ser
uma forma residual, ainda ligada ao sistema anterior das letras,
em parte deslocado pelo emergente mercado da informação no
interior do jornal. O que nos leva novamente a colocar a relação
entre literatura e mercado (no jornal) em termos de uma “crise”,
segundo a própria auto-representação dos literatos finisseculares.
Gutiérrez Nájera:

A crônica é, senhoras e senhoritas, nos dias que correm, um


anacronismo (...). A crônica – venerável Nau da China – morreu
nas mãos do repórter. A pobre crônica, de tração animal, não
pode competir com esses trens velozes. E que nos resta, mí-
seros cronistas, contemporâneos da diligência, assim chamada
gratuitamente?50

Com efeito, são sistemáticas as queixas dos literatos nos novos


jornais finisseculares. Tais lamentos são formulados, geralmente,
em termos da crise da literatura na sociedade regida pela produ-
tividade, pela eficiência, que encontra seu emblema no poder do
novo “monstro”: a tecnologia.51 A “crise” correspondia, até certo
ponto, a uma reorganização efetiva do campo intelectual, bem
como uma redistribuição de poderes dos diferentes discursos
sobre o tecido da comunicação social. Porém, conforme demons-
tramos antes, a “crise” foi também uma retórica legitimadora da
emergência de novos escritores, no interior das transformações
do campo intelectual.
Com relação ao jornalismo, seria necessário investigar se houve
realmente um deslocamento da autoridade literária no jornal e no

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novo mercado, ou se, por outro lado, essa autoridade literária,
mesmo limitada por outras funções discursivas do jornal, proli-
ferou na imprensa finissecular, freqüentemente como crítica do
mercado e da emergente cultura de massas.
Em termos do lugar das “letras” no La Nación, é digno de
nota a substituição de certas formas tradicionais, à medida
que o jornalismo moderniza seus meios e suas linguagens, já
relativamente orientados para a publicidade comercial e para
a informação. Por exemplo, ao longo da década de 70, as
crônicas ou “conversas” de “Aben Xoar” haviam ocupado um
lugar privilegiado na primeira página do jornal. Essas crônicas,
enraizadas no costumbrismo, tornaram-se um espaço que incluía,
além de textos locais, algumas traduções, menos freqüentes, dos
clássicos europeus, segundo a norma do gosto dominante na
(ainda) “grande aldeia” de Buenos Aires. É inegável que esse tipo
de escrita – também ligada ao mundo oprimido do clube, como
instituição fundamental do sistema tradicional das “letras” – entra
em “crise” na etapa de modernização do jornal. No começo da
década de 80, o espaço de “Aben Xoar” (ou de formas similares
a seu costumbrismo localista) diminui, na mesma proporção em
que passam a ter importância, tanto a informação jornalística,
como novas formas de literatura, além de novas traduções de
autores europeus, o que comprova uma mudança na orientação
do jornal e de seus leitores. Em 1884, um dos redatores do La
Nación comenta:

A pseudopoesia caseira nas colunas de um jornal não deve ser


confundida com as inspirações do gênio. Sua vida limitada ao
estreito círculo do Clube, cujo lema é “uma mão lava a outra”,
dura o tempo que os cronistas (ao estilo de Aben Xoar, frisamos)
a relembram...

Esta literatura ataca o organismo humano, paralisando a circu-


lação do sangue.

Sua leitura nos leva a ter pena de Byron, Schiller e Hugo, que
os inspirou, que não imaginam como puderam ter semelhantes
netos (...).52

Esse tipo de debate, lançado a partir da redação do jornal,


contra a instituição e o gosto tradicional do Clube, é fundamental

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para entender a mudança do lugar das “letras” na época. Com
efeito, já a partir de 1883, quando “Aben Xoar” desaparece do La
Nación, será difícil encontrar no jornal aquele tipo de “literatura
caseira”.
No entanto, a literatura não desaparece do jornal. Novamente
o La Nación se converte numa nova “vitrine” da produção inte-
lectual mais recente da Europa. Suas páginas incluirão, ao longo
dos anos 80 e 90, contribuições dos escritores latino-americanos
(não apenas argentinos) mais “novos” da época, de Martí a
Darío. Evidentemente que é impossível precisar a ideologia
literária do período, sempre híbrido. Nos anos 80, por exemplo,
Hugo, Lamartine, Gautier, Heine, E. de Amicis, A. Dumas, e, pos-
teriormente, E. Zola, seriam autores freqüentados. Porém, já em
1879, a primeira página do jornal inclui uma tradução de E. A.
Poe (“Berenice”), que até então era praticamente desconhecido
no continente. Alguns anos depois, em 1882, ocupando mais de
três partes de uma imensa “página” do La Nación, Martí publicava
seu “Oscar Wilde”, descrevendo com precisão o aparecimento de
uma “nova” literatura na Inglaterra e na Europa.53 Efetivamente,
o La Nación se convertia, ainda que desigualmente, no lugar da
vanguarda literária da época, no mesmo movimento que incor-
porava a modernização tecnológica de sua produção material
e discursiva, cristalizando, em vários sentidos, o processo de
modernização da Buenos Aires finissecular.
Pois bem, é possível pensar que, apesar da evidente promoção
da “nova” literatura no jornal, a relação tenha sido de uma estrita
exterioridade, e que o jornal fosse apenas um meio de distribuição
da literatura carente de bases institucionais. Em parte foi assim,
conforme mostramos antes. Porém, ao mesmo tempo, a relação
é muito mais complexa e se constitui num objeto privilegiado
para a análise da relação entre a literatura – em vias de autono-
mização – o mercado e as novas linguagens da cidade moderna,
entre as quais se distingue o jornalismo.
Por exemplo, no caso de Darío, para quem o jornalismo se
constituía claramente num problema, o La Nación não foi apenas
um meio de acesso a um novo público, além de um salário que
lhe possibilitava certa autonomia econômica frente ao público-
estatal. O jornal, segundo recordaria Darío em sua Autobiografía,
era um local de experimentação formal:

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Antes de embarcar para Nicarágua [1889], tive a honra de conhecer
o grande chileno José Victoriano Lastarria [em Valparaíso]. E
foi da seguinte maneira: eu cultivava, há muito tempo como
uma viva aspiração, o desejo de me tornar correspondente do
La Nación, de Buenos Aires. Confesso que foi nesse jornal que
compreendi, de modo bem pessoal, o que se chama de exercício
do estilo, sendo que meus mestres de prosa foram dois homens
muito diferentes: Paul Groussac e Santiago Estrada, além de José
Martí.54 (grifo nosso)

É quase impossível pensar em Darío como uma resultante


de Groussac, Estrada e Martí. Em todo caso, dessa lembrança
nos interessa o que ele afirma sobre o jornal como um lugar
de aprendizagem de “exercício do estilo”. Recordemos que o
“estilo” é exatamente o dispositivo especificador do literário na
época, freqüentemente em oposição às linguagens desestilizadas,
mecânicas, da modernização; de acordo com o próprio Darío, “o
repórter não consegue ter isso que se chama simplesmente de
estilo”. De modo que a relação entre o jornal e a nova literatura
não foi estritamente negativa, segundo postulava o discurso da
crise dos cronistas. O jornal foi uma condição de possibilidade da
modernização literária, ainda que, por outro lado, materializasse
os limites de sua autonomia.
Por essas razões, o jornal finissecular (especialmente o La
Nación) é um lugar privilegiado para estudar as condições da
modernização literária. Não apenas por sua relação positiva com
os “novos” escritores, que ali encontraram um lugar alternativo
frente às instituições tradicionais, assim como um meio de divul-
gação e formação de um novo público; é um objeto privilegiado
porque condensa as aporias irredutíveis da vontade autonômica
na América Latina.
Qual era o lugar dos novos escritores no jornal? Por que o
jornal promove, em plena época de racionalização de seus meios
e discursos, a proliferação da literatura moderna nesse período
finissecular?

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Os correspondentes

Convém recordar, brevemente, que Martí entra para o La


Nación, de Buenos Aires, em 1882. Como aconteceu anterior-
mente no La Opinión Nacional, de Caracas, ele se incorpora à
redação do jornal argentino como correspondente de imprensa
em Nova Iorque. Como Martí, muitos dos literatos finisseculares,
especialmente os cronistas, encontraram seu espaço na nova
imprensa da época redigindo “cartas”, a partir de cidades estran-
geiras, que, posteriormente, foram editadas em forma de livros
de “crônicas”. Esta foi a situação de Darío, também no La Nación,
desde o final da década de 80, e também de Amado Nervo no
México. Muitos cronistas, por certo, não foram correspondentes.
No entanto, inclusive em suas próprias cidades a retórica da
viagem – a mediação entre o público local e o “capital” cultural
estrangeiro – autoriza e modela, em vários sentidos, muitas de
suas crônicas, conforme pode ser comprovado em outros dois
cronistas fundamentais da época, Gutiérrez Nájera e Casal. Nesse
sentido, a explicação das condições em que aparecem e operam
os correspondentes contribui para elucidar as condições de
possibilidade da crônica modernista em geral.
Martí não foi o primeiro correspondente de imprensa do La
Nación. Segundo os redatores do jornal, o primeiro correspon-
dente propriamente moderno foi Emilio Castelar, na Espanha,
justo na época em que o jornal ampliava sua rede internacional
de comunicação, com o novo serviço telegráfico:

O telégrafo elétrico, que por meio do cabo transatlântico nos


antecipa dia e noite o índice da crônica universal, foi pela pri-
meira vez utilizado pelo La Nación na imprensa diária no Rio da
Prata. E hoje, a palavra autorizada e eloqüente de Castelar (...)
relata, amplia e comenta, em estilo abundante e rico de idéias,
os acontecimentos que o telégrafo nos transmite em linguagem
rápida e direta.55

O valor dessa nota da redação não é simplesmente documental.


Ela permite constatar, novamente, um alto grau de diferenciação
e especialização no conceito do trabalho sobre a língua e a
escrita, na própria administração do jornal. Em contraste com a

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linguagem maquinal do telégrafo (recordemos as mencionadas
queixas de Gutiérrez Nájera et al.), o próprio jornal fomenta a
proliferação de outras linguagens, que viriam a suplementar a
informação telegráfica.
Desse modo, é impossível assumir a referida insistência com
que os literatos culpavam a informação pela “morte” da literatura,
versão que se coloca como instância de uma matriz diferenciadora
entre “arte” e “cultura de massas”, extremamente ideologizada, e
talvez ainda hoje definidora do sujeito estético moderno. Por trás
dessa postulação da “crise” da literatura no jornal, os cronistas am-
pliam seu lugar na imprensa, precisamente na era telegráfica.
É possível pensar que Castelar nunca fosse um literato no sen-
tido moderno e que, pelo contrário, tenha se convertido, já em
1879, no paradigma de escritor civil que os novos literatos (Martí,
Gutiérrez ou Casal) viriam a recusar, principalmente em termos do
seu projeto de renovação da prosa. Mas já com Martí, sob a admi-
nistração de Mitre e Vedia, o La Nación abre um claro precedente
em 1882, convertendo as correspondências no lugar, não apenas
de um discurso informativo sobre o estrangeiro, mas também no
campo de uma experimentação formal, literária. O próprio D. F.
Sarmiento, em 1887, reconhecia nas correspondências martianas
um novo trabalho sobre a língua, quando pediu a P. Groussac
que traduzisse ao francês as “Festas da Estátua da Liberdade”: “Em
espanhol não existe nada que se pareça aos bramidos de Martí, e
depois de Victor Hugo, a França não apresenta nada dessa resso-
nância metálica.”56
Também são significativas, em termos do papel do corres-
pondente, as outras leituras que Sarmiento realizou das crônicas
martianas no La Nación (aqui a “ansiedade da influência” é digna
de nota, ainda que a partir da perspectiva do “pai”, ou modelo,
perante um sujeito emergente):

Uma coisa falta a dom José Martí para ser um jornalista, já que
vem mostrando o estilo mais desembaraçado de mordaças e
formas, exatamente porque faz uso de todo o arsenal de modis-
mos e vocábulos da língua, arcaicos e modernos, castelhanos e
americanizados, segundo exigem os movimentos mais bruscos
das idéias, no campo mais vasto, mais aberto, mais sujeito ao
embate e às novas correntes atmosféricas.

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Porém, falta a ele se regenerar-se, educar-se, se é possível afirmar,
recebendo do povo em que vive [os EUA] a inspiração (...).57

Em seguida, Sarmiento define as tarefas do correspondente


de imprensa:

Como deverá escrever para a América do Sul um correspondente


dos Estados Unidos? Tenham em conta que um correspondente
de jornal é algo mais elevado que um repórter, outro alto funcio-
nário da inteligência (...) O correspondente não é nosso cônsul,
para defender os interesses de sua pátria, que por ali andam se
chocando com outros interesses estranhos. Deveria ser um olho
nosso que contemplasse o movimento humano onde é mais ace-
lerado, mais intelectual, mais livre, mais bem direcionado rumo
aos altos fins da sociedade, para nos contar como é, para corrigir
os nossos desvios, para nos mostrar o bom caminho.58

Sarmiento define a tarefa do correspondente em função da


viagem importadora que, em vários sentidos, tinha sido a me-
dida de autorização de seu próprio discurso. É claro que em
Sarmiento, o intelectual tinha sido um viajante predestinado – a
partir da carência de modernidade de sua sociedade – à plenitude
estrangeira; o intelectual-viajante define o “caminho certo” rumo
à modernidade. Também o correspondente, segundo o pensador
argentino, devia cumprir o papel de intermediário, legitimando
seu discurso em termos do projeto modernizador. Porém, em
Martí, conforme veremos na leitura de suas Escenas norteameri-
canas, a modernização é problemática. Apesar de suas crônicas
reconhecerem na “viagem importadora” uma condição de sua
autoridade e valor no La Nación, elas se tornam, por outro lado,
uma constante crítica ao próprio projeto modernizador. Crítica
não apenas dos Estados Unidos, como emblema da modernidade
sonhada por Sarmiento (e pelo desenvolvimentismo de Mitre no
La Nación), mas da própria legitimidade do intelectual patrício
que o próprio Sarmiento sintetizava.59
Por ora, interessa concentrar-nos nessa aporia fundamental
na própria constituição e materialidade do discurso na crônica:
apesar de encontrar mediante a crônica um novo lugar no interior
do jornal, que inclusive estimularia as novas formas (como outro
índice de sua modernidade), por outro lado, o escritor ficará
sujeito a interpelações externas (como as de Sarmiento) que,

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entre outras coisas, intensificam sua vontade de autonomia. Na
crônica, o literato devia informar, no interior de um campo de
competências discursivas em que informar se constituía como um
exercício diferenciado e antagônico da literatura. Ou seja, apesar
do fato de que nem o telégrafo e nem o repórter silenciaram a
literatura emergente, é inegável que a informação representava,
para os cronistas, uma atividade outra frente à prática literária.
Por exemplo, o editor-proprietário do La Opinión Nacional,
de Caracas, F. T. de Aldrey, exige de Martí, em 1882:

Entretanto, devo informar-lhe que o público se queixa pela


extensão de suas últimas revistas sobre Darwin, Emerson etc.,
pois os leitores deste país querem notícias e anedotas políticas,
e quanto menos literatura possível (...).60 (grifo nosso)

Em outra carta do mesmo ano, acrescenta:

A respeito das cartas, devo lhe dizer que os leitores – em geral –


esperam que sejam más noticiosas e menos literárias (...).

Das notícias telegráficas que chegam, procure tirar partido para


dissertar sobre os mais variados assuntos, dividindo-as em duas
ou mais revistas (...).

Não me convém o número literário de que você me fala. Conheço


este país e faz mais de vinte anos que sou jornalista. Contei
durante muito tempo com os literatos para promovê-los e tê-los
como um elemento útil para as empresas editoriais, em todos os
ramos da imprensa, e com esse propósito gastei milhares de pesos
(...) Não quero nada mais com eles. É um bando de literatos (...)
enfadonhos.61 (grifo nosso)

Informar ou fazer literatura: a oposição é clara e seu significado


histórico, mais além do final do século, não reduz o seu campo
ao lugar da imprensa. É um índice, isso sim, da luta pelo poder
sobre a comunicação social, que caracterizou o campo intelectual
moderno desde o aparecimento da “indústria cultural”, da qual
o jornal (antes do cinema, do rádio e da televisão) era o meio
básico naquele período.
Martí raramente criticou o aparecimento da “informação” como
uma nova mercadoria da emergente indústria cultural. Inclusive
escreveu, durante vários anos, para Charles Dana, diretor do New

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York Sun,62 um dos principais precursores da imprensa “sensa-
cionalista” de Hearst e Pulitzer. Mesmo assim, essa luta entre
autoridades e sujeitos discursivos, entre o desejo de autonomia
e as interpelações externas, é definidora do espaço heterogêneo
de suas crônicas. Vamos nos deter, brevemente, num fragmento
de uma crônica escrita para o La Opinión Nacional, que pode
ser lida com uma auto-reflexão sobre as condições e as lutas que
definem o gênero:

Que deve fazer o cabo, ou o próprio correspondente, senão


reproduzir fielmente, por mais que sofra a tenacidade da pena
ou do afeto, os ecos do país do qual surge a palavra alada, que
serpenteia pelo fundo do mar, olha para os bosques azuis e as
planícies nacaradas do seio do oceano, e vem parar nas estações
de Nova Iorque, onde bocas famintas devoram no primeiro andar
os telegramas que chegam cada manhã, oferecendo aos leitores
as novas que horas antes aconteciam na Europa?63

Este é um bom exemplo de um discurso que subverte seu pró-


prio postulado: o correspondente deve informar, ou “reproduzir
fielmente”, mas a própria disposição de sua escrita nega a exi-
gência de “transparência” do exercício referencial ou informativo.
O objeto do enunciado já é, em si, revelador: Martí “apresenta” o
processo da comunicação telegráfica, da Europa a Nova Iorque.
A questão é a própria comunicação tecnologizada. No entanto,
a forma da descrição – que manda seu objeto para o final do
enunciado – é enfática na estilização, aquilo (a literatura) que
Aldrey queria exatamente expulsar de seu jornal.
Para poder falar no jornal, o literato se ajusta à exigência
do mesmo: informa, assumindo inclusive a informação como
um objeto privilegiado da sua reflexão. Porém, ao informar,
sobrescreve; escreve sobre o jornal, que continuamente lê, num
ato de palimpsesto, pois projeta ao mesmo tempo um trabalho
verbal sumamente enfático que a notícia – o objeto lido – não
possuía antes.64 A crônica, então, como exercício de sobres-
crita, altamente estilizada por Martí, é uma forma jornalística
ao mesmo tempo que literária. É um lugar heterogêneo, ainda
que não heterônomo; a estilização – já percebida por Sarmiento
em sua leitura de Martí – pressupõe um sujeito literário, uma
autoridade, um “olhar” altamente especificado. Trata-se de um

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olhar especificado, mas, no entanto, sem um lugar próprio,
submetido, limitado, pelas outras autoridades que confluem
(em luta) na crônica. Por isso é que formalmente a crônica re-
presenta, e até simboliza, tanto a operação do sujeito literário (a
estilização), quanto os limites de sua autonomia (a informação).
Se a poesia, idealmente, representava o “interior” por excelência
da literatura finissecular (um campo de imanência, purificado ou
purificável de interpelações externas), a crônica (tão conflituosa
em sua disposição formal) representa a luta entre autoridades, a
competência discursiva, pressuposta pelo “interior” poético. O
interior, o campo de identidade do sujeito (literário, neste caso),
só tem sentido em oposição aos “exteriores” que o limitam, que
o acossam, mas que são, por outro lado, a condição de possi-
bilidade da demarcação de seu espaço. O limite, desse modo,
não é estritamente negativo, segundo afirmavam os modernistas
do espaço “antiestético” do jornal. O limite permite reconhecer
a especificidade do interior; a ênfase do “estilo” (dispositivo de
especificação do sujeito literário no final do século, recordemos)
somente adquire densidade em proporção inversa aos lugares
“antiestéticos” em que opera. Nesse sentido, a crônica não foi
um mero suplemento da modernização poética, idéia presente
em quase toda a historiografia do modernismo. A crônica – o
encontro com os campos “outros” do sujeito literário – foi uma
condição de possibilidade do alto grau de consciência e auto-
reflexão desse sujeito, já em processo de autonomização.

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5.
DECORAR A CIDADE
CRÔNICA E EXPERIÊNCIA URBANA

Freqüentemente, o racionalismo aparece acompanhado do


prazer da vida, pois, em geral, quem pensa racionalmente,
também descobre que os prazeres da vida devem ser
desfrutados. Por outra parte, o racionalismo exige uma visão
de mundo sóbria e clara, realista e direta, uma vez que não
tarda em descobrir que a crueldade e a abominação impedem
o pleno gozo da vida; ou se toma como belo o abominável
(...) para conseguir o pleno prazer da vida, ou se fecham os
olhos ao abominável e à crueldade, e selecionar o belo para
que, convertido em esteticamente “seleto”, permita o prazer
sem perturbações. Entretanto, como num caso ou no outro –
seja na afirmação da crueldade, seja em seu repúdio – trata-se,
sempre, apesar da pretensão racionalista de uma autenticidade
sem cosmética, de disfarçar esteticamente o abominável de
suas hipertrofias ou docilidade; trata-se de um escamoteio
através da “decoração”.

H. Broch. Poesía e investigación.

Em vários sentidos, a crônica é uma instância “frágil” da


literatura para os escritores finisseculares. É um espaço sujeito à
contaminação, perigosamente aberto à intervenção de discursos
que – longe de coexistir dentro de algum tipo de multiplicidade
em equilíbrio – lutam por impor seu princípio de coerência.
No capítulo anterior, vimos como, apesar das queixas dos
modernistas, que em geral idealizavam a totalidade, autônoma
e “pura”, do livro, a heterogeneidade da crônica cumpriu uma

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tarefa importante no processo de constituição da literatura.
Paradoxalmente, o encontro com os discursos “menores” e
“antiestéticos” na crônica é que possibilita a consolidação do
emergente campo estético.
Gostaríamos agora de explorar outros usos da crônica no
final do século. Veremos como a crônica, como forma menor,
possibilita o processamento de regiões do cotidiano capitalista
que, naquela época de intensa modernização, extrapolavam o
horizonte temático das formas canônicas e codificadas. Isto é algo
que Martí já notava no Prólogo al Poema del Niágara (1882). Para
ele, a modernidade implicava a experiência de uma temporalidade
vertiginosa e fragmentária, que anulava a própria possibilidade de
“uma obra permanente”, “já que as obras dos tempos de reorde-
namento e remodelagem são essências mutáveis e inquietas.”1
“Daí essas pequenas obras fúlgidas”,2 juntamente com as crônicas,
surgidas da mesma fragmentação moderna, conformarem um
meio adequado para a reflexão sobre a mudança.
No entanto, não nos propomos a idealizar a “marginalidade” e
nem a “heterogeneidade” da crônica. Pelo contrário, tentaremos
ver como sua flexibilidade formal permitiu que se convertesse
num arquivo dos “perigos” da nova experiência urbana; um
ordenamento da cotidianidade ainda não “classificada” pelos
“saberes” instituídos.
Retomaremos uma pergunta feita anteriormente: Por que, em
plena época de racionalização da imprensa, a crônica modernista
prolifera? Que utilidade podia ter o emergente sujeito estético,
protuberante e enfático (por sua ansiedade) na crônica, para a
moderna indústria cultural?

Retórica do consumo

A crônica – como o próprio jornal – é um espaço enraizado


nas cidades em vias de modernização, no final do século. Isso
ocorre, precisamente, porque a autoridade (e o valor) da palavra
do correspondente se baseia em sua representação da vida urbana
de alguma sociedade desenvolvida, para um destinatário desejante
– em alguns momentos também temeroso – dessa modernidade.

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Daí, como dissemos antes, ser estreita a relação entre a crônica
(em sua forma epistolar) e a literatura de viagem, fundamental
entre os patrícios modernizadores.
Na época de Martí, o relato de viagem, a correspondência, era
expressamente heterogêneo em termos temáticos. Com impres-
sionante intensidade intelectual, ele escrevia praticamente sobre
qualquer aspecto da vida cotidiana, no mundo capitalista dos
Estados Unidos, conforme lemos em suas Escenas norteameri-
canas. Porém, mesmo na época em que Darío, Nervo e Gómez
Carrillo, nos anos 90, já tinham se tornado correspondentes-
modelo, as exigências do jornal sobre o cronista mudaram
consideravelmente. Nessa época, o cronista será, sobretudo, um
guia no cada vez mais refinado e complexo mercado do luxo e
dos bens culturais, contribuindo para cristalizar uma retórica do
consumo e da publicidade. Vejamos:

Móveis de todos os estilos – destacando-se o modern style –


certificam a intensiva procura pela elegância, juntamente com
o sentimento de comodidade. Em tudo vocês encontrão o dom
geométrico e forte da raça e da preocupação com o lar.

É uma mostra de tudo o que tem feito a indústria doméstica, sob


a ótica da preocupação com a casa (...).3

Não é necessária muita análise para reconhecer, na entonação


empregada, na disposição adjetival, no apelo a certo tipo de des-
tinatário (burguês, refinado e doméstico, muito próprio do fim do
século), o aparecimento de uma retórica publicitária. Trata-se,
na verdade, de Rubén Darío, sentindo-se à vontade na grande
Exposição de Paris (1900), onde identificava a realização de uma
das utopias que atravessam o modernismo (possivelmente sem
o dominar): o ideal de uma modernidade capitalista, tecnológica
e, ao mesmo tempo, estética:

Maior em extensão que todas as outras Exposições anteriores,


encontramos como uma vantagem desta, seu elemento pitoresco.
Na de 89, prevalecia o ferro – que levou Huysmans a escrever
uma de suas mais belas páginas; nesta, a engenharia aparece mais
unida à arte; a cor, em alvas arquiteturas, nos palácios cinzentos,
nos pavilhões de distintos aspectos, dá o tom, seus matizes, o
cabochon e os dourados, e a policromia que impera, asseguram, à

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luz do sol ou do resplendor das lâmpadas elétricas, uma repetida
e variada sensação das mil e uma noites.4

A estilização na crônica transforma os signos ameaçadores


do “progresso” e da modernidade num espetáculo pitoresco,
estilizado. Obliterada a “vulgaridade” utilitária do ferro, a má-
quina se torna bela, maquiada, e o “ouro” (léxico) modernista
é aplicado à decoração da cidade. Na Exposição, antecedente
direto da moderna indústria do entretenimento, não se fala na
diatribe da arte contra a mercantilização. Por outro lado, o cro-
nista é seduzido pela promessa de seu encontro com um novo
público – massificado –, cujo contato será facilitado ao artista
pela indústria cultural. Isso ocorre porque mesmo na Exposição,
entre seus cenários de entretenimento e de lazer, o próprio mer-
cado cobria seu rosto utilitário, abrindo assim um espaço para
a “experiência” do belo na cidade. Benjamin assinalava que as
“Exposições Universais são lugares de peregrinação ao fetiche
que é a mercadoria”.5 É necessário acrescentar que, em relação
a Darío, o cronista é um fervoroso peregrino:

Rodeado de um mar de cor e formas, meu espírito não encontra


lugar certo onde fixar sua atenção. É comum ser interpelado por
um quadro por alguma razão direta, ao mesmo tempo em que
outro e mais cem anunciam as potências de suas pinceladas, ou
a melodia de suas tintas e matizes. E nos levam, em tal caso, a
pensar na realização de muitos livros, na meditação de muitas
páginas. Mil nebulosos poemas flutuam no firmamento oculto do
cérebro; mil germes despertam sua vontade e sua ânsia artística
(...).6

Na exposição de arte, como nas outras “novidades”, os objetos


interpelam o consumidor, em meio a uma competição infernal.
Esse é o chamado da mercadoria: “ser interpelado por um quadro
por alguma razão direta, ao mesmo tempo que outro e mais cem
anunciam as potências de suas pinceladas”. O objeto de arte,
incorporado ao mercado, já não aparece como cristalização de
uma experiência particularizada e “original”. Nesse caso, Darío
está celebrando a produção em série de objetos belos, perante
os quais o espectador figura claramente como um virtual compra-
dor. E o escorregadio detalhe que acompanha o “chamado” das
mercadorias é ainda mais revelador: “E nos levam, em tal caso,

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a pensar na realização de muitos livros, na meditação de muitas
páginas. Mil nebulosos poemas flutuam no firmamento oculto do
cérebro.” Possivelmente a poesia também poderia ser produzida
em massa, como os quadros que esperavam compradores.
Nas crônicas de Gómez Carrillo, o carisma da mercadoria,
sempre luxuosa, é ainda mais intenso, numa retórica – tão atual
– na qual o fetichismo é explicitamente erótico: “a suntuosidade
das vitrines, com o perpétuo atrativo do luxuoso, do luzidio, do
feminino”.7 O sujeito, no contexto dessa citação, é um caminhante
por Buenos Aires:

Para prolongar o encanto da hora, me deixo guiar por um amigo e


entro numa loja que, de fora, não me parecia tão grande. Qual não
foi minha surpresa ao me encontrar trasladado à verdadeira capital
das elegâncias! Seria o Printemps, com seus mil empregados gentis
e seu perpétuo fru-fru de sedas levadas por mãos aristocráticas?
Seria o Louvre e sua interminável exposição de objetos preciosos?
(...) É tudo isso junto: é o castelo dos sonhos femininos, o antro
em que as bruxas juntaram tudo o que faz palpitar a alma de
Margarida; é, resumindo, o palácio das tentações.8

E logo acrescenta:

Não é a doçura desinteressada que proporciona um museu, com


efeito, o que lugares como este têm a oferecer. É o temível, o
imperioso, o titânico desejo. Como resistir a tudo o que nos atrai?
Nas lojas, em geral, os objetos não estão perante a compradora,
mas através dos vidros das vitrines (...) Aqui o mais raro e o mais
caro, o mais frágil, o mais delicioso (...) está ao alcance das mãos.
E as mãos, as pálidas mãos, se aproximam, nervosas, tocam, digo
melhor, acariciam, o que a graça deseja, e pouco a pouco, uma
embriaguez verdadeira vai tomando conta do ânimo mulheril,
ao contato com o que é tépido e suave.9

À medida que a mercadoria adquire vida – na palpitação


erótica, “tépida e suave” – o consumidor a perde, em sua “embria-
guez” e perda do “ânimo”, aqui celebradas. Essa é, precisamente,
a lógica do fetichismo. Mais significativo ainda é que o fetichismo
da mercadoria se representa como experiência estética. A loja
substitui o museu como instituição da beleza, e a estilização –
impressionante no trabalho sobre a língua – opera em função
da epifania consumista. Em Gómez Carrillo, de um modo um

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tanto inflado e grotesco, encontramos uma das conseqüências
extremas da autonomização da esfera estética, na sociedade
moderna: a separação do estético e do cultural da vida prática,
que predispõe a arte autônoma, “desinteressada”, corre o risco
de ser incorporada pela mesma racionalização opressiva da qual
a arte procurava se autonomizar.
Em Gómez Carrillo, ou anteriormente em Darío, a estética
do luxo, umas das ideologias da autonomização, também podia
representar uma crítica à economia utilitária da eficiência de
produtividade distinta do capitalismo; economia que atravessa
o próprio uso das linguagens des-estilizadas, tecnologizadas,
da burocracia (e da bolsa) moderna. O luxo – a estética do
desperdício – na economia da literatura finissecular, podia ser
lido como uma subversão do utilitarismo dos outros discursos,
propriamente orgânicos do capitalismo (incluída a informação).
Porém, a partir desse momento crítico da vontade autonômica,
o espaço distanciado do estético se reifica, torna-se objetivo (no
“estilo”) e resulta facilmente apreensível como atividade conso-
ladora, afirmativa, compensadora da “feiúra” da modernização.
A estilização, na poética do luxo, ao recusar o valor de uso
da palavra, permanece inscrita como a forma mais elevada de
fetichização, em que a palavra possui estrito valor de câmbio,
reconhecendo na jóia (mercadoria inútil, por excelência) um
modelo de produção. Isto, já no final do século, preparava o
caminho para o desenvolvimento de uma arte kitsch, definidora
da cultura de massas moderna.
Em um trabalho bastante lúcido, Maria Luisa Bastos lê nas
crônicas de Gómez Carrillo uma aplicação do “estilo” modernista
às necessidades do emergente mercado de luxo, interpretando-a
como uma espécie de vulgarização da estética inicialmente “alta”,
autônoma, e possivelmente radical do modernismo.10 No fundo,
ela concorda com a leitura de Rama, Jitrik e Pacheco, que viam
dois momentos no modernismo: um crítico e radical, antiburguês,
e uma segunda etapa, em que o modernismo, já no começo do
século, havia se convertido na estética dos grupos dominantes. As
crônicas de Gómez Carrillo, ou melhor, o que ele denominava de
sua literatura aplicada à moda,11 viria a representar essa segunda
etapa (que Pacheco reconhece, com simpatia, nos boleros de
Agustín Lara).

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Entretanto, a leitura das duas etapas – uma inicial de ple-
nitude e outra involuntariamente paródica, ou de trivialização
no kitsch – estabelece uma cronologia que dissolve a própria
complexidade do momento inicial. Darío, em seu ambíguo “O
rei burguês”, presente em Azul, refletia sobre o perigo que sua
produção atravessava, desde o começo: o recinto interior do
rei burguês – visto ali com grande desprezo – estava repleto de
objetos luxuosos; o poeta, com sua maquininha musical, corria
o risco de ser incorporado como um objeto a mais.
O próprio Martí, que antes criticou a vontade autonômica em
suas sistemáticas críticas ao luxo, definia assim um dos possíveis
usos da beleza, do estético autonomizado:

O amor à arte engrandece a alma e a enaltece: um belo quadro,


uma estátua límpida, um brinquedo artístico, uma modesta flor
num lindo vaso, colocam sorrisos nos lábios em que, poucos
momentos atrás, haviam lágrimas. Sobre o prazer de conhecer o
belo, que melhora e fortifica, está o prazer de possuir este mesmo
belo, que nos deixa envaidecidos conosco mesmos. Decorar a
casa, pendurar os quadros na parede, gostar deles, estimar seus
méritos, falar de suas belezas, são prazeres nobres que dão valor à
vida, distração à mente e alto emprego ao espírito. Sente-se correr
pelas veias uma seiva nova quando se contempla uma obra de
arte. (...) É como beber numa taça de Cellini a vida ideal.12

Aqui também a esfera do belo, reificada, é incorporada ao


mercado como objeto decorativo, compensatório, crítico do
utilitarismo, como querem alguns, mas em última instância, afir-
mativo da própria lógica da racionalização (e mercantilização do
mundo). A literatura – na própria crítica da modernização disposta
pela vontade autonômica – é reincorporada ao campo do poder
como mecanismo decorativo da “feiúra” moderna, especialmente
urbana: o escritor modernista figura como maquiador, cobrindo
o perigoso rosto da cidade. Daí, desde a primeira etapa, a “radi-
calidade” da vontade autonômica – a lógica do desperdício – ser
sumamente imprecisa e frágil. A cronologia (primeiro da radi-
calidade e depois da incorporação) dissolve essas contradições.
Seria também necessário falar das contradições, porque já no final
do século se debate a ambígua relação entre a literatura (como
discurso autonômico) e o poder que caracterizará o século 20.

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O problema está em pensar a cultura dominante como um
bloco homogêneo e estático. O campo do poder, especialmente
na modernidade, é fluido e desterritorializador, o que também
não significa que não estabeleça redes de dominação. Para
entender mais a fundo esta flexibilidade, bem como as contra-
dições que a mesma pressupõe para a vontade de autonomia
estética, convém retomar o problema da crônica no jornal e a
relação entre a literatura e a “feiúra” urbana.

Representar a cidade

O que significava, no final do século, a “cidade”? Para


Sarmiento, como para muitos patrícios modernizadores, a cidade
(quase sempre em negrito) era um espaço utópico, lugar de uma
sociedade idealmente moderna e de uma vida racionalizada.
Nessa perspectiva, podemos ler etimologicamente o conceito
de “civilização” – e da política – em sua relação com o de
“cidade”.
No último quarto do século, em parte pelo processo concreto
de urbanização que caracteriza muitas das sociedades latino-
americanas da época, o conceito de cidade – que em boa medida
continua legitimando o discurso do cronista – se problematizou.13
Em Martí a cidade aparecerá estritamente ligada à representação
do desastre, da catástrofe, como metáforas centrais da moder-
nidade. A cidade, para Martí e muitos de seus contemporâneos
(particularmente, ainda que não apenas, os literatos), condensa
o que poderíamos chamar de a catástrofe do significante. Para o
escritor cubano, a cidade espacializa a fragmentação – que ela
mesma determina – da ordem do discurso, problematizando a
própria possibilidade da representação: “Nesta marejada turbu-
lenta, não aparecem as correntes naturais da vida. Tudo está
obscuro, desarticulado, empoeirado, não se consegue (distinguir),
à primeira vista, as virtudes [dos] vícios. Esfumam-se misturados
em meio a um tumulto.”14
A cidade, nesse sentido, não é apenas o pano de fundo, o
cenário, onde se representaria a fragmentação do discurso, algo
característico da modernidade. Seria necessário pensar o espaço
da cidade como o campo da própria significação, algo que em

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sua própria disposição formal – com suas redes e desarticulações
– estaria atravessado pela fragmentação dos códigos e dos sis-
temas tradicionais de representação na sociedade moderna. A
partir dessa perspectiva, a cidade não seria apenas um “contexto”
passivo da significação, mas a cristalização da distribuição dos
próprios limites, articulações, cursos e aporias que constituem o
campo pressuposto pela significação.
Certamente, a metáfora da catástrofe não era nova no mo-
mento de sua inscrição martiana. Foram os próprios iluministas
que situaram a metáfora no centro mesmo da retórica. Em 1851,
por exemplo, Sarmiento interpreta os efeitos de um terremoto
no Chile:

Este tremor interessa como um estimulante para que o público


preste atenção nos assuntos relacionados à arquitetura, em cuja
solução se perde a vida, o repouso, quando não a fortuna. Se
a terra gosta de tremer, este é um prazer perverso do qual não
devemos culpar nem a Providência e nem o governo. Nosso único
meio de enfrentar o problema é extinguir o perigo, melhorando
a construção dos edifícios, porque se a casa não nos caísse sobre
a cabeça, um tremor seria uma ocasião perfeita para admirar sem
medo as sublimes batalhas da natureza. Um tremor é, portanto,
para os homens, uma questão de arquitetura.15

É significativa a passagem da descrição para a inscrição


metafórica do desastre: “Este assunto ainda interessa, porque os
tremores aparecem no momento preciso em que uma estranha
revolução está acontecendo em nossa vida.”16 O desastre, sem
dúvida, poderá ser um fenômeno natural, externo ao discurso;
sua representação, no entanto, transforma o acontecimento em
condensação dos diferentes significados que o “caos” – o perigo,
a desordem – podem ter numa dada conjuntura. Ao longo do
século 20 (ao menos), a catástrofe é o outro por excelência da
racionalidade. Em seu extremo, condensa o perigo do “caos”
revolucionário.
Para Sarmiento, no entanto, em sua exacerbada fé na ordem
virtual do discurso (neste caso arquitetônico), o terremoto cumpre
uma função positiva: desmantela o espaço tradicional, possibili-
tando a reorganização e modernização de Valparaíso e Santiago.
A catástrofe problematiza a arquitetura da ordem tradicional,

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possibilitando, dessa maneira, a construção da nova cidade, da
modernidade desejada. No relato sarmientino da história, a
catástrofe não constitui uma fissura insuperável. Pelo contrário,
ela registra o marco de uma nova fundação, a partir do qual o
devir do progresso adquire impulso.
Em Martí, particularmente nas Escenas norteamericanas, em
que sua reflexão sobre a modernidade é central, a catástrofe é
também uma figura-chave. No entanto, a carga da metáfora – e
sua relação com a teleologia iluminista – se altera completamente.
Em suas impressionantes crônicas, “El terremoto de Charleston” e
“Inundaciones de Johnstown”, por exemplo, a representação da
catástrofe pressupõe uma crítica do iluminismo capitaneado por
Sarmiento. Notemos, brevemente, o lugar do transporte (ícone
da ordem iluminista) na seguinte descrição:

Os trens não podiam chegar a Charleston, porque os trilhos


haviam saído de seu lugar, ou estavam arrebentados, ou
dançavam sobre seus dormentes suspensos. Uma locomotiva
vinha a todo vapor na hora do primeiro tremor e, depois de dar
um salto, virou, deixando seu maquinista morto (...) Outra, que
a pouca distância continuava apitando alegremente, foi colhida
pelo terremoto, que a jogou num tanque próximo.17

Nesse caso, é evidente que a catástrofe não promove a ordem


na cidade; pelo contrário, destrói, insiste Martí, todos os emble-
mas da modernidade (especialmente o mercado). Porém possi-
bilita, mediante a destruição da cidade, o retorno à origem que
o progresso obliterava: “Naquela noite, os bosques se encheram
de pessoas comuns, que fugiam dos tetos caindo e buscavam
amparo nas árvores, juntando-se no escuro da selva para cantar
em coro.”18
O desastre produz, paradoxalmente, o reencontro da comuni-
dade, a reconstrução do coro. E são os negros (em plena época
de conflitos raciais nos Estados Unidos), os que guiam o retorno
ao outro da cidade, à selva; retorno, por sua vez, que implicava a
restituição do poder do mito e da imaginação (próprio da literatura),
interrompido na cidade pelo desencantamento racionalizador:
“O espanto [do desastre] deu asas à imaginação tempestuosa dos
negros.”19 Inventar a tradição, a origem; “recordar” o passado da
cidade, mediar entre a modernidade e as regiões excluídas ou

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arrasadas pela mesma: essa será uma das grandes estratégias de
legitimação instituídas pela literatura moderna latino-americana a
partir de Martí. Porque na literatura, como ele sugere em “Nuestra
América”, fala o “índio mudo”, o “negro atalaia”. A literatura, com
efeito, se legitima como lugar do outro da racionalização.
Certamente que não apenas em Nova Iorque, Londres ou na
própria Paris (de Baudelaire), a cidade condensava a problemá-
tica do “irrepresentável”, da “desarticulação”, da “turbulência”,
da crise das categorias tradicionais de representação. Em várias
regiões da América Latina o processo de urbanização finissecular
foi bastante radical e decisivo. Como afirma J. L. Romero, nem
todas as cidades mudaram de forma homogênea.20 Houve “cidades
estancadas”, mas especialmente nas cidades portuárias, como
Rio de Janeiro, Havana, Montevidéu e a cidade do México, as
transformações foram surpreendentes. Particularmente em Buenos
Aires e na cidade do México, eixos da modernização literária
finissecular, as mudanças foram intensas, tal como registra – de
modo às vezes mistificador – toda a literatura urbana do período,
principalmente as crônicas e o emergente romance.
O processo de transformação das cidades foi muito pouco
calculado, ainda que na Buenos Aires do intendente Torcuato
de Alvear e no México porfirista tenha tido influência decisiva o
projeto de racionalização (e prévia demolição) do espaço urbano
que o barão de Haussmann executou na Paris de Napoleão III.21
Em Buenos Aires, especialmente, como diria Romero, “decidiu-se
pelas demolições”, cujo primeiro foco foi a renovação radical
dos centros tradicionais da “grande aldeia”. Essas transformações,
como sugeria Lewis Mumford ao falar das cidades européias
do século 19, não foram simplesmente “físicas” ou materiais; a
reorganização e racionalização do espaço cristalizava uma trans-
formação dos espaços simbólicos da época.22 Observemos, em
Apariencias (1892), do mexicano Federico Gamboa, os matizes
figurativos na descrição da cidade “reconstruída”:

Era uma rua recém-construída, e como são em sua maioria as


ruas novas, situadas no elegante rumo das extensões das grandes
cidades, oferecem um aspecto singular e característico: os
passeios, amplos e recém-acabados; as casas em construção, com
seus materiais acumulados, os cômodos vazios, sem andaimes,

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sem marcos de portas e janelas, como cavidades de crânios anti-
diluvianos; os andaimes, que se parecem como as armações de
navios fantasmas; os solares, cercados de paliçadas irregulares,
nas quais é possível ver anúncios multicoloridos de diversões
públicas e de remédios patenteados; em alguns trechos aparece
um pequeno barranco ou uma diminuta proeminência, que ainda
conservam um musgo verde e abatido (...).23 (grifo nosso)

“Conservar” aí é, paradoxalmente, uma palavra-chave; é uma


palavra inserida para enfatizar sua fragilidade, nessa paisagem
configurada pela retórica do desastre. A cidade, para Gamboa, é
o contrário da conservação, é uma força que organiza o espaço,
o cotidiano, com um impulso iconoclasta. Literalmente, a cidade
é iconoclasta uma vez que desarma os ícones, os sistemas tradi-
cionais de representação; “destrói” – se preferimos – as figuras,
o espaço como figura, da cultura tradicional. Essa também é a
questão de V. L. López, em outro esquecido romance da época,
La gran aldea: “Como as coisas tinham mudado em vinte anos
em Buenos Aires!”24 Escrever, para López, e em boa medida para
Gamboa, era recordar – ou inventar a tradição – que a força ico-
noclasta da modernização desmantelava; a retórica do desastre
é sistematicamente nostálgica, mesmo que de diferentes ângulos
e posições políticas.
Os testemunhos finisseculares da “crise” gerada pela urbani-
zação se multiplicam. Esses testemunhos comprovam as tensões
desatadas pela modernização – pelo menos para a literatura – e
também para os grupos sociais identificados com as instituições,
os ícones e os espaços simbólicos que a racionalização desmon-
tava. No entanto, também é impressionante como a modernização,
ao revelar paradoxalmente a outra face de seu impulso demo-
lidor, promoveu a “reconstrução” de territorialidades, usando, em
muitos casos, as máscaras ou disfarces de uma tradição reificada.
Assim como destruía os modos tradicionais de representação e
identificação, a modernização produzia ao mesmo tempo novas
imagens, freqüentemente passadistas, simulacros da tradição e
da ordem social, numa resposta – compensatória – às mudanças
violentas que ela mesma promovia.
Esse aspecto “reconstrutivo” e compensatório da moderni-
zação se nota, por exemplo, no historicismo monumentalista
que domina a arquitetura mexicana finissecular. A importância

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que certa noção do natural assume no período modernizador do
porfiriato é, também, um índice desse impulso reconstrutor no
México. Israel Katzman afirma:

Desde o ano de 1880 começam a ser construídas casas de campo


no Passeio da Reforma, mas como depois sentiram que estava
se perdendo o ambiente campestre, foi decretado, em 1889, a
isenção do imposto predial por cinco anos, para quem deixasse
na frente de suas casas um jardim de pelo menos oito metros
de comprimento.25

Também na Buenos Aires do Intendente Pueyrredón, nos anos


de 1870, em plena época de urbanização, foram criados vários
“espaços recreativos”, “lugares de lazer”, na cidade orientada
para a produtividade e eficiência tecnológica.26 Um importante
cronista da época, Eduardo Wilde, comenta sobre a inauguração
do inovador Parque Tres de Febrero, em 1875: “Buenos Aires te
esperava (...) No limite de seu território, nem uma árvore, nem
um jardim, nem um lugar livre, nem uma ampla avenida; em suas
pequenas praças, nem uma sombra ou frescor, nem vegetação
que mudasse sua vida com o veneno de nossos pulmões.”27
Ar puro numa cidade maldita: Wilde não apenas comenta
sobre a invenção de um espaço natural na cidade, mas sobre uma
das funções que seu próprio discurso, na crônica, cumpriria nas
décadas finais do século. Se por um lado a modernização demolia
os sistemas tradicionais de representação, produzindo tensões
sociais, por outro, fomentou a produção de imagens resolutivas
dessas contradições. Fomentou também um discurso da crise
e adensou a memória de certo passado. Representar a cidade,
ou seja, representar o irrepresentável da cidade, não foi apenas
um mero exercício de registro ou documentação da mudança,
do fluxo, constituído pela cidade. Representar a cidade era um
modo de dominá-la, de reterritorializá-la, nem sempre de fora do
poder. Assim como Haussmann em Paris, ou Alvear e Limantour,
em Buenos Aires e no México, demoliram e ao mesmo tempo
reorganizaram os espaços urbanos em função de um monumen-
talismo espetacular e passadista, a indústria cultural (no jornal)
encontrou nos novos literatos os agentes da produção de imagens
reorganizadores dos discursos que a cidade – e o próprio jornal,
em outras de suas facetas – desmantelavam.28

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Jornalismo, fragmentação,
narratividade

O jornal moderno, como nenhum outro espaço discursivo no


século 19, cristaliza a temporalidade e a espacialidade segmen-
tadas características da modernidade. O jornal moderno mate-
rializa – e fomenta – a dissolução do código e a explosão dos
sistemas estáveis da representação.29 O jornal não apenas erige o
novo – o outro da temporalidade tradicional – como princípio de
organização de seus objetos, tanto publicitários como informa-
tivos; também deslocaliza – inclusive em sua disposição gráfica
do material – o processo comunicativo. No jornal, a comunicação
se descola de um contexto delimitado de enunciação, configu-
rando um mundo abstrato, nunca experimentado totalmente
pelos leitores como o campo de sua existência cotidiana. Nesse
sentido, o jornal pressupõe a privatização da comunicação social,
assim como simboliza a sujeição do sujeito – no processo dessa
privatização – a uma estrutura do público que tende a obliterar,
cada vez mais, a experiência coletiva. Dessa maneira, o jornal
faz com o trabalho sobre a língua o que a cidade fazia com os
espaços públicos tradicionais. Não seria absurdo, por isso, ler o
jornal como a representação (na própria superfície da sua forma)
da organização da cidade, com suas ruas centrais, burocráticas
ou comerciais, com suas pequenas praças e parques; lugares de
lazer e reencontro.
Acontece que, em parte, o jornal passa a ser uma condição
da “unidade” da nova cidade. Nele, o comerciante, o político e
até o literato se comunicam com o sujeito privado. No jornal se
estabelecem as articulações que possibilitam pensar a cidade –
desterritorializada – como um espaço social congruente; o sujeito
urbano experimenta a cidade, não apenas porque caminha por
suas regiões limitadas, mas porque a lê num jornal que lhe
fala de seus diferentes fragmentos. Porém, consideramos mais
importante ainda o fato de que o jornal (como as modernas lojas)
permanece atravessado por uma lógica do sentido, que também
determina a disposição do espaço urbano. Uma lógica de sentido
profundamente fragmentária, desierarquizada, constituída por
uma acumulação de fragmentos de códigos, em que as linguagens
se superpõem, justapõem, ou simplesmente se misturam, com

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discursos de todos os tipos e procedência histórica, impossível
de definir. O jornal, como a cidade, é um espaço derivativo por
excelência, apesar do fato de que em seu interior proliferam
as tentativas de recomposição do espaço e de articulação da
fragmentação.
Por outro lado, como sugere Benjamin, a fragmentação não
pode ser lida simplesmente em termos formais ou descritivos.
Para Benjamin, a forma do jornal cristaliza a dissolução do social
– da “experiência” comunitária –, que para ele estava encarnada
na narrativa tradicional:

As aspirações interiores do homem não têm por natureza um


caráter privado tão irremediável. Somente o adquirem depois
que diminuem as possibilidades de que as exteriores sejam
incorporadas a sua experiência. O jornal representa um dos
muitos indícios dessa diminuição. Se a imprensa tivesse o pro-
pósito de fazer o leitor tomar as informações como parte de sua
própria experiência, não conseguiria seu objetivo. Porém, sua
intenção é o contrário, e imediatamente a alcança. Consiste em
impermeabilizar os acontecimentos frente ao que poderia se
chamar de experiência do leitor. Os princípios fundamentais da
informação jornalística (curiosidade, concisão, fácil compreensão
e, especialmente, desconexão das notícias entre si) contribuem
para o sucesso, da mesma maneira que a paginação e uma certa
conduta lingüística. (Karl Krauss não se cansava de dizer que a
conduta lingüística dos jornais paralisa a capacidade imaginativa
de seus leitores) (...) A atrofia crescente da experiência se reflete
no destaque que a informação dá ao antigo relato, passando
dessa, por sua vez, à sensação.30

Seria difícil precisar o lugar histórico desse tipo de comu-


nicação narrativa, nostalgicamente evocada por Benjamin. De
qualquer modo, sua leitura da escrita moderna (em Baudelaire
e Proust, entre outros) como tentativa (sempre rasurada, na ale-
goria) de reconstruir um âmbito comunicativo orgânico é um
bom índice de uma ideologia que de fato impulsionou muita
produção intelectual, sobretudo nessa etapa inicial do capita-
lismo avançado.
A problemática da fragmentação é fundamental para entender a
função ideológica da crônica no final de século latino-americano.

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A crônica procura sistematicamente renarrativizar (unir o pas-
sado ao presente) aquilo que postula simultaneamente como
fragmentário, como o novo da cidade e do jornal. Por exemplo,
se a Exposição de Paris era o espetáculo da novidade, o gesto
de Darío opera ao revés, vendo em cada acontecimento um
fragmento articulável na continuidade imposta pela visão:

A moda parisiense é encantadora; porém, o mundano moderno


não pode tomar o lugar, na glória da alegoria ou do símbolo, do
que foi consagrado em Roma e na Grécia (...) À noite, causa uma
impressão fantasmagórica ver uma porta branca com milhares de
luzes elétricas (...) É a porta de entrada de um país de mistério e
poesia, habitado por magos. Certamente que em toda alma que
contempla estas esplendorosas féeries desperta um sentimento
infantil. (...) Aqui, o moderno da conquista científica se junta à
antiga iconoplastia sagrada (...).31

Impor à tradição, a experiência arcaica, o “sentimento infantil”,


sobre o moderno, ligado à tecnologia e à cidade: este será o gesto
diferenciador do cronista e da própria indústria cultural descrita
aí e da qual ele participa.
Em Martí, por outro lado, o acontecimento – o fragmento da
temporalidade urbana – se relaciona diretamente com o discurso
jornalístico, informativo. Conforme sugerimos antes, ele arma
suas crônicas como leituras das diferentes notícias que aparecem
no espaço fragmentado do jornal. Lê a variedade presente nas
páginas do jornal e com o mesmo movimento reflete sobre a
problemática de sua fragmentação:

Como juntar em uma só tantas cenas variadas? Lá, nas resplan-


decentes solidões do Ártico, uns expedicionários valorosos
descansam, ao fim, sua cabeça sobre um travesseiro de neve;
aqui, numa casa colossal, perante milhares de ouvintes absortos,
ressoam os acordes sacerdotais e místicos da música excelsa, a
mais solene das artes humanas. Nas árvores, tudo é verdor. Nos
rostos, tudo é alegria. Na Irlanda, tudo é susto. Em São Francisco,
os inimigos dos chineses venceram. Nas prateleiras das livrarias,
encontra-se a obra monumental de um ancião de oitenta e dois
anos. Em torno de uma mesa farta, os mexicanos de Nova Iorque
se juntam para comemorar as glórias pátrias. Massas ensande-
cidas se juntam para protestar contra os assassinos dos ministros
ingleses na Irlanda e contra os assassinos dos patriotas irlandeses,

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pelos soldados ingleses. Houve um festival grandioso. Guiteau
já entrou em sua cela da morte. Sussurros sugerem que haverá
mudanças importantes nos postos diplomáticos.32

À primeira vista, parece que se trata apenas de um problema


de composição, da “sintaxe” da crônica. Porém, o problema da
disposição das notícias na crônica é ideologicamente sobredeter-
minado, exatamente pelo fato de a informação ser um modo de
representação que, como sugeria Benjamin, cristalizava a proble-
mática da ordem e da comunicação na sociedade moderna. Ou
seja, ao reescrever a fragmentação do jornal, o cronista trabalha
com a temporalidade segmentada da cidade, num plano estrita-
mente formal. Daí ser a cidade, na crônica martiana, não apenas
um “objeto” representado, mas um conjunto de materiais verbais,
ligados ao jornalismo, que o cronista procura dominar no próprio
processo da representação. O cronista procura, sistematicamente,
rearticular os fragmentos, narrando os acontecimentos, procu-
rando reconstruir a originalidade que a cidade destruía.
Por sua vez, na crônica – não apenas as de Martí – esse desejo
de ordem integradora da fragmentação moderna é semantizada
naquilo que poderíamos chamar de a retórica do passeio. Ou seja,
a narrativização dos segmentos isolados do jornal e da cidade
é representada, freqüentemente, em função de um sujeito que,
ao caminhar pela cidade, traça o itinerário – um discurso – no
discorrer do passeio. No passeio, o sujeito ordena o caos da
cidade, estabelecendo articulações, suturas, pontes, entre espaços
(e acontecimentos) desarticulados. Por essa razão podemos ler
a retórica do passeio como uma encenação do princípio da
narratividade na crônica.

O passeio e a privatização
do sujeito urbano

A partir da crônica, seria possível propor uma tipologia dos


diferentes modos de representar a cidade finissecular. Dois tipos
de olhares são dominantes. O primeiro, totalizador, pressupõe
a distância do sujeito como uma condição da representação.
Darío:

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Visto o magnífico espetáculo como o veria uma águia, ou seja,
de cima da Torre Eiffel, a cidade aparece fabulosa, de maneira
que custa acreditar que não estamos sonhando. O olhar se cansa,
porém, mais ainda, o espírito, frente à perspectiva assombrosa,
monumental.33

Nessa representação o espaço se encontra fortemente hierar-


quizado: do alto, o sujeito tende a demarcar a heterogeneidade
urbana, condensando sua multiplicidade no quadro do “magnífico
espetáculo”. Esse olhar pan-óptico, nas palavras de Michel de
Certeau, é um núcleo produtor da cartografia profissionalizada
pela urbanística do século 19. Seu sentido pressupõe a transfor-
mação do fato urbano num conceito da cidade.34
Entretanto, especialmente no final do século 19, o conceito
da cidade se problematiza à medida que a própria cidade pro-
gressivamente passa a ser o espaço do acontecimento da contin-
gência instaurada pelo fluxo capitalista. O olhar pan-óptico, na
citação anterior de Darío, “se cansa”: sua capacidade ordenadora
é mínima. Caminhar seria um modo alternativo, na crônica, de
experimentar – e dominar – a contingência urbana.35
No passeio, a crônica representa (e se nutre de) um novo tipo
de entretenimento urbano, muito significativo em termos das
transformações pelas quais passa o espaço no final do século.
O passeio – o caminhar – era uma nova instituição cultural. Na
Argentina dos anos 80, L. V. López afirma:

Enfim, eu, que havia conhecido aquela Buenos Aires de 1862,


patriota, simples, com suas vendas, meio curial e quase-aldeia,
encontrava agora com um povo com grandes pretensões euro-
péias, que perdia seu tempo em flanar pelas ruas, e na qual já
não reinavam generais predestinados, nem a família dos Trevexo,
nem as dos Berrotarán.36

É claro que caminhar pela cidade, inclusive passear, era


uma atividade milenar, seguramente ligada à estrutura da praça
pública, centro de uma cidade relativamente orgânica e tradi-
cional. Porém, como sugere López, flanar era uma espécie de
entretenimento diferente, que ele relaciona com a modernização
de Buenos Aires.

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O flanar é um modo de entretenimento característico dessas
cidades finisseculares, submetidas a um processo de intensa
mercantilização que, além de erigir o trabalho produtivo e a
eficiência como valores supremos, instituiu o espetáculo do
consumo como um novo modo de diversão. O tempo livre do
novo sujeito urbano também se mercantilizava.
Em seu livro México pintoresco, artístico y monumental (1880),
Manuel Rivera Cambas assinala o caráter de classe do novo
entretenimento, que ameaçava destronar o teatro do centro das
diversões: “Atualmente, o passeio vespertino é uma necessidade
para a classe social que pode se dedicar ao descanso; em outro
tempo, não era o passeio, mas o teatro, a diversão favorita e
exigida pela sociedade mexicana (...).”37
O perambular desinteressadamente é o corolário da indústria
do luxo e da moda, no interior de uma emergente indústria do
consumo: “As ruas de Plateros encerram estabelecimentos que
oferecem tudo o que pode satisfazer o mais exigente capricho
do gosto e da moda; grandes aparadores e seus mostruários, por
trás de enormes vitrines; multidões de damas elegantes percorrem
essas ruas (...).”38
Por outro lado, o flanar não é simplesmente um modo de
experimentar a cidade. É um modo de representá-la, olhando e
contando o que se viu. Ao flanar, o sujeito urbano, privatizado, se
aproxima da cidade como quem vê um objeto em exibição. Daí
a vitrine ter se tornado um objeto emblemático para o cronista.
Justo Sierra afirma:

Como se traduz o verbo francês flâner (...)? Vagar caprichosa-


mente com a segurança de não ser aprisionado pelo pensamento
interior, como uma mosca é presa pela aranha; vagar com a
certeza da perpétua distração para os olhos, certo de objetivar
sempre, para não cair em poder do subjetivo (...); vagar no meio
da multidão, confiando nas vitrines dos mostradores (...) olhando
dentro das casas.39

Incômodo entre a multidão, apesar de esgotado pelos limites


impostos pelo interior, o sujeito privado sai para objetivar, para
reificar o movimento urbano, mediante um olhar que transforma
a cidade num objeto contido atrás do vidro dos mostradores. A
vitrine, nesse sentido, é uma figura privilegiada, uma metáfora

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da própria crônica como mediação entre o sujeito privado e a
cidade.40 Ela é uma figura da distância entre esse sujeito e a
heterogeneidade urbana que o olhar procura dominar, contendo
a cidade por detrás do vidro da imagem e transformando-a em
objeto de consumo.
Em Gómez Carrillo, a poética consumista da crônica é
ainda mais acentuada. Nele, também reencontramos a atração
que exerce no caminhante “a suntuosidade das vitrines, com
a perpétua atração do luxuoso, do brilhante, do feminino”. O
cronista-flâneur, angustiado com o ruído urbano, busca refúgio.
Nas regiões comerciais de luxo (na rua Florida, em Buenos
Aires), encontra um lugar alternativo:

[A rua Florida] é feita de uma arte maravilhosa, do que há na


Europa de mais distinto, mais animado, mais brilhante, mais
moderno. (...) e na verdade é assim, com suas inumeráveis lojas
de amenas suntuosidades, com seus letreiros áureos anunciando
sobre os balcões trajes e blusas, (...) com seus mostradores cheios
de pedras preciosas, com suas numerosas exposições de arte. Ao
mesmo tempo, é outra coisa mais alegre e íntima: é quase um
salão onde ninguém tem pressa.41

No passeio, o cronista transforma a cidade num salão, no


espaço íntimo, mediante esse olhar consumista que transforma a
atividade urbana e mercantil, como afirmamos antes, em objeto de
prazer estético e, inclusive, erótico. No reverso do seu desejo de
conter a cidade e transformá-la em um espaço íntimo e familiar,
a ansiedade do cronista-flâneur é notável. Essa ansiedade é, em
vários sentidos, o impulso que desencadeia tanto a “flaneria”,
como a escrita sobre a cidade na crônica. A falta de comodi-
dade do cronista-flâneur na cidade pressupõe a redistribuição
do espaço urbano de acordo com a oposição entre as regiões
privadas e as da vida pública e comercial. No passeio, o sujeito
privado sai de uma zona residencial para fazer turismo em sua
própria cidade, nos centros do espaço público que, progressi-
vamente, foram se tornando regiões comerciais, convertendo-se
em “estranhos” e “alienantes” para o próprio sujeito privado
(burguês).42 O consumo – e os discursos da cultura de massa
que o sustentam – começarão a mediar entre os dois campos da
experiência urbana.

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Convém voltar à história dessa polarização na cidade de
Buenos Aires:

O comércio na Buenos Aires colonial, em grande parte produto


do contrabando, era realizado numa infinidade de pequenos
locais incluídos na mesma casa, como quartos que davam para
a rua ou para corredores. Com seu crescimento, este sistema foi
ocupando todas as casas mais importantes, uma por uma, o que
levou à construção de outras com locais especiais para alugar.
Porém, o aumento das atividades e o grande volume de merca-
dorias colocaram outros problemas de espaço, que fizeram com
que as moradias fossem empurradas para trás, até finalmente
usarem todo o edifício como negócio. As estruturas de ferro
permitiam cobrir os pátios, o que oferecia um amplo espaço
coberto e iluminado. Depois veio a etapa seguinte, que foram
as construções específicas para o comércio. Eram características
da época as grandes lojas de produtos em geral, tanto na cidade
como no interior; tinham vários depósitos, salões de exposição
e venda de produtos.43

A outra face dessa divisão do trabalho sobre o espaço urbano


foi o surgimento de novas áreas residenciais. Em Buenos Aires,
a primeira rua propriamente habitacional, ou residencial, foi a
Avenida Alvear, em 1885. As zonas residenciais, na região norte
da cidade, se distinguiam pela

introversão que traduzem suas fachadas e as defesas de seus


jardins adiantados. São mansões para admirar de longe (...).
Quando o espectador chega próximo a elas, a espessura férrea
das grades italianas ou Luis XV, a cerca estriada ou a balaustrada
de grossas pilastras impedem sua visão. A casa só pode ser vista
de perto por quem tem acesso a ela (...).44

O interior – fundamental para a literatura finissecular – é o


espaço de uma nova individualidade, que pressupõe a progres-
siva dissolução dos espaços públicos, comunitários, na cidade
moderna. No passeio, o sujeito privado – a partir da estranheza
que seu olhar turístico projeta sobre o espaço urbano – procura
sair do interior, num gesto não necessariamente crítico, que, em
todo caso, comprova a necessidade de construir e consolidar os
campos de identidade coletiva, de classe. A própria cidade (con-
formando a capacidade re-territorializante do poder moderno)

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proverá os meios para a reinvenção da comunidade. Essa seria
umas das funções da crônica e da indústria cultural naquela época
de entrada na modernidade.

O passeio e a reinvenção
do espaço público

O caminhante – sujeito curioso – procura expandir na crônica


os limites de sua interioridade. No passeio, não apenas reifica o
fluxo da cidade, convertendo-a em matéria de consumo, mas a
incorpora nesse curioso invólucro – ou vitrine – que é a crônica.
Além disso, o cronista-caminhante, no divagar turístico que o
individualiza e o distingue da massa urbana, procura – no rosto
de certos outros – as marcas de uma virtual identidade compar-
tilhada. Como resposta à solidão do interior, o cronista investiga
a privacidade alheia, convertendo-se em voyeur, em curioso. Em
Gutiérrez Nájera, encontramos os gestos do voyeur: “Saí a cami-
nhar por um momento pelas ruas (...) Tristes aqueles que percor-
rem as ruas com seu gabão abotoado, espiando pelos resquícios
das portas, o calor de um lar.”45 Se a cidade (e o próprio jornal,
como dizia Benjamin) fragmentava e privatizava a experiência
social, a crônica – ao contrário da fragmentação – gerava simu-
lacros, imagens de uma “comunidade” orgânica e saudável. Essa
é, por exemplo, a função da oralidade na crônica, que entre os
discursos mercantilizados e tecnologizados do jornal, continuava
se auto-representando como um colóquio familiar.
“La novela del tranvía”, excelente conto de Gutiérrez Nájera, é
um bom exemplo de como o cronista, em seu passeio pela cidade,
reinventa um espaço coletivo, nesse caso mediante o comentário
(modo de representação tradicional, antiprivado por excelência).46
Nessa crônica, o caminhante toma um bonde e se encontra num
ambiente radicalmente estranho e desconhecido:

Não, a cidade do México não começa no Palácio Nacional, nem


acaba no Passeio da Reforma. Dou a vocês minha palavra de que
a cidade é muito maior. É uma grande tartaruga que estende suas
patas deslocadas na direção dos quatro pontos cardeais. Essas
patas são sujas e peludas.47

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A estranheza, para além da cidade, se projeta sobre as relações
entre as próprias pessoas no bonde: “Quem seria meu vizinho?
Certamente era casado, e com filhas.”48 O sujeito, ao longo da
crônica, não simplesmente informa sobre a cidade; junto com
a informação, conjetura, inventa, tornando a crônica, em última
instância, num relato ficcional.49 De novo estamos frente ao gesto
antiinformativo da crônica, que viola continuamente as normas
da referencialidade jornalística. Mais ainda, a funcionalidade aí
é concomitante à vontade de recriar (no comentário) o espaço
coletivo desarticulado exatamente pela fragmentação e pelo deslo-
camento urbano. O narrador, em “La novela del tranvía”, inventa
uma vida para cada um dos passageiros, inventa tramas com uma
impostura – sempre irônica – que enfatiza o desconhecimento da
privacidade do outro, ou seja, a crescente dificuldade de conceber
uma esfera vital coletiva, compartilhada, na cidade moderna.
Dada sua brevidade, gostaríamos de citar uma crônica de
Gutiérrez Nájera, em que o dispositivo do comentário e do voyeur
(como resposta à solidão urbana) são ainda mais transparentes:

Um encontro
Costumo passear nas manhãs pelas calçadas das redondezas e pelo
Bosque de Chapultepec, o lugar preferido dos namorados.
Isto me proporcionou ser testemunho involuntário de mais um
encontro amoroso. Três dias atrás, vi chegar num carro elegante
uma bela dama desconhecida, morena, de olhos fogosos, de
corpo esbelto e elegante. Um jovem, um adolescente, quase um
garoto, esperava por ela na entrada do bosque. Ela desceu da
carruagem, que o cocheiro levou discretamente para um lugar
distante, e o jovem se acercou tremendo, respeitoso, encarnado
como uma amapola, demonstrando em todos os seus gestos que
se tratava do primeiro encontro, e foi necessário que a dama o
tomasse do braço, que ele se recusava a oferecer. Começaram
a andar como dois apaixonados por uma rua isolada e solitária.
Fiquei interessado no casal e passei a segui-los a certa distância.
A dama chorava e a emoção do garoto subia de tom à medida
que a conversa se tornava animada. Algumas frases chegavam a
meu ouvido; não eram dois apaixonados, eram mãe e filho. Sem
querer, soube de toda a história, um verdadeiro romance que me
interessou de maneira extraordinária, que me fez ser não apenas
indiscreto, mas desleal, porque minha curiosidade, vencendo os
escrúpulos, levou-me mais próximo do casal que, abstraído na

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relação de suas desgraças, não escutava minhas pisadas sobre as
folhas secas derramadas pelo solo. Aquela mulher era um anjo,
um mártir; aquele garoto um ser digno de respeito, interesse e
compaixão, que se sacrificava pelo descanso e o respeito da
sociedade por sua mãe. Havia naquela história dois infames que
merecem estar marcados pelo ferro do verdugo; dois homens
que sacrificaram aqueles dois seres desgraçados e dignos de
melhor sorte.50

Esse chegar “mais próximo” do outro é próprio da curiosi-


dade bisbilhoteira. Não postula apenas um ouvir, mas também
contar a vida do outro; um desejo de torná-la pública. Seu
reverso – seu referente apagado – é a privacidade humana, a
fragmentação do coletivo que faz da cidade um cruzamento de
discursos enigmáticos, às vezes ilegíveis, a partir da perspectiva
do sujeito privatizado. Certamente que Gutiérrez Nájera antecipa
aí alguns aspectos de “Las babas del diablo”. Mas se no conto
de Cortázar o outro é finalmente um objeto perdido e irrecu-
perável, em Gutiérrez Nájera o perigo e a sexualidade desatada
da cidade são domesticados por meio da afirmação da estrutura
familiar. A literatura – a ficção – ainda podia postular a reinven-
ção de um espaço orgânico estável, a contrapelo do perigo da
cidade, que concretamente desmontava as formas tradicionais
da familiaridade.
Por outro lado, é necessário enfatizar o caráter de classe
na constituição de qualquer espaço público, como campo de
identidade. O “comentário”, em última instância, não inclui a
“todos”. Na própria disposição oral das crônicas, que geralmente
no final do século continuam se apresentando como causeries
ou conversas, é notória a exclusividade que erige a voz do
comentário e os limites ansiosamente protegidos da “comunidade”
reconstruída. Gutiérrez Nájera:

A pobre crônica, de tração animal, não pode competir com esses


trens velozes. E que nos resta, míseros cronistas (...)? Chegamos
ao banquete na hora da sobremesa. Sirvo-lhe um café, senhorita,
um pousse-café? (...)

Por outro lado, essa hora é propícia para as conversas amenas,


intencionadas e (...) de futuro. Volta a abrir-se em suas mãos, ó
feiticeiras volúveis! o leque (...).51

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A oralidade – a conversa amena – poderia se opor à linguagem
tecnologizada da informação, projetando-se inclusive como um
simulacro de familiaridade, de (certa) comunidade, no interior
do âmbito fragmentado do jornal. Porém, é sobretudo uma ora-
lidade que interpela – não sem ironia em Gutiérrez Nájera – os
leitores de uma classe social capaz de se identificar com esse
tipo de “comunidade”, cristalizada na conversa do clube. Ou
seja, é necessário evitar a idealização abstrata dos “espaços de
discussão” (Habermas) e inclusive de seus modelos retóricos,
sempre socialmente sobredeterminados. A oralidade da crônica
é um procedimento inclusivo, um dispositivo de formação do
sujeito social. Essa inclusão de certo outro na crônica tem sua
contrapartida excludente. O que havia no “exterior”?

Passeio e representação do
“exterior” proletário

Em seu arquivo dos “perigos” engendrados pela cotidiani-


dade moderna, a crônica situa a “problemática” da proletarização
num lugar proeminente, sempre aos olhos do ansioso cronista.
Mesmo em Martí, que ao longo dos anos de 1880, em Nova
Iorque, geralmente apoiava as lutas do ativo movimento sin-
dical, a ambigüidade na representação das novas forças sociais é
irredutível: “Havia o Bowery, a Broadway dos pobres, um ar de
campanha [durante uma greve de 1886]; e tantos homens robustos
e sombrios inspiravam respeito, como davam medo (...).”52 Frente
a outra multidão de trabalhadores, a polícia consola o cronista:
“Surgem no meio da massa negra os capacetes dos policiais”53 e
“se destacam no meio da multidão, com as cabeças cobertas por
um humilde capuz azul, as eminentes cabeças dos policiais da
cidade, ordenando a turba”.54 Perante a energia física, incontro-
lável, das multidões, o discurso na crônica vai constituindo seus
próprios mecanismos disciplinares.
Para o cronista, frente à emergente cultura trabalhadora, uma
opção era a obliteração – mediante o escamoteio decorativo – do
perigoso corpo do outro. Numa Argentina que se aproximava do
Centenário, repleta de imigrantes e de um movimento sindical

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marcadamente anarquista, ainda era possível para Gómez Carrillo
escrever o seguinte:

E se tivesse alguma dúvida, não teria mais que ver os lindos des-
files de mocinhas que caminham, ligeiras e ritmadas, à procura
de alguma próxima rue de Paix (...) São as mesmas de todos os
dias, são as de ontem, são as de sempre; são as que, com seus
gentis acenos, alegram as horas em que as damas ricas dormem;
são as humildes tentações encarnadas, que vão levando visões
de amor e alegria (...).55

Em Gómez Carrillo o gesto decorativo é exacerbado. Por outro


lado, muita da literatura argentina, desde os anos 80 (Cambaceres,
J. M. Miró), havia relatado o terror que o novo “bárbaro” – segundo
a retórica da época – produzia junto aos grupos dirigentes. Depois
de descrever o luxuosíssimo interior da casa de seu protagonista,
o narrador de La bolsa, de Julián Martel (J. M. Miró) afirma:

Do outro lado da grade de ferro dourada, como um esboço nas


trevas, [vê] vultos de gente (...); vultos entre os quais o doutor vê
reluzir, como os de um gato, olhos que certamente pertencem
a algum ser faminto, desses que vagam pelas noites (...) com o
punhal no cinto.56

O terror não está em contradição, necessariamente, com o


gesto decorativo; pelo contrário, poderia se pensar no embele-
zamento da miséria urbana como um dos efeitos do terror, da
paranóia de uma classe que em seu próprio projeto moder-
nizador – que consistia em erradicar a “barbárie” rural – tinha
gerado novas contradições, que relativizavam sua hegemonia já
no final do século. Sem dúvida alguma, a cidade na época da
crônica modernista já era o espaço dessas contradições.
Como resposta a essas tensões, a crônica elabora, na figura
do caminhante, outros modos de representação do “exterior”
obreiro. A divagação quase turística na direção das margens da
cidade será outro gesto distintivo do cronista-transeunte. Nesses
passeios, o cronista aparece novamente como um produtor de
imagens da alteridade, contribuindo para elaborar um “saber”
sobre os modos de vida das classes subalternas, aplacando, assim,
sua periculosidade.

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Vejamos uma crônica de Eduardo Wilde, “Sin rumbo”, que
posteriormente dará nome a um romance de E. Cambaceres:
“Caminhando, caminhando, cheguei até os limites da cidade,
perto das quintas (...). Nas redondezas é possível ver homens e
mulheres que já moraram no centro, e que a cidade, com seu
eterno fluxo e refluxo, empurrou para as periferias.”57 A primeira
marca da diferenciação do outro é sua carência de propriedade,
sua carência do interior que define o sujeito que sai de passeio:
“Mais longe se disseminam as casas pequenas e os pequenos
ranchos, com suas janelas microscópicas e deslocadas, através
das quais se vê um interior vazio e sem posses, onde uma família
sem genealogia controla o expediente de sua vida faminta.”58
(grifo nosso)
Sem posse e carente de genealogia: no reverso da descrição
do outro se delimita o campo da própria identidade. O sujeito
vai para a “periferia”, no limite da cidade, não para ser outro,
mas para constatar sua diferença, se consolidar.
Se o outro é, por definição, o exterior do discurso – é o
particular, contingente por natureza – em Wilde encontramos
(como antes em Sarmiento) a funcionalidade do quadro, a cena
generalizante, que condensa e classifica a heterogeneidade e o
perigo: “Todos têm a marca da miséria e do vício na cara, nesse
modo de olhar suplicante que choca e entristece.”59 Porém, mesmo
em Wilde a contingência do particular resiste ao dispositivo do
quadro estereótipo:

[um mendigo] me abordou pedindo centavos para completar (...)


seu capital destinado ao sustento do dia. Eu havia saído para
contemplar a natureza sempre bela e pensar em algumas idéias
que tinha na cabeça, enquanto repassava com meus sentidos os
variados aspectos das questões. O pobre cavalheiro me deixou
descomposto, mudando o curso de meus pensamentos.60 (grifo
nosso)

O contato com o mendigo impede o ensimesmamento, desar-


ticulando o “todo” generalizante, o estereótipo, inventado pelo
caminhante, como modo de ordenar o “caos” da cidade, cada
vez mais proletarizada.

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É significativo esse aspecto disciplinar, ordenador, do passeio,
que passa a ser, posteriormente, uma narrativa de certa crimino-
logia finissecular. Em La mala vida en Buenos Aires (1908), por
exemplo, Eusebio Gómez escreve:

Agora, internemos nos baixos fundos da cidade de Buenos Aires;


vejamos como operam os “cavalheiros do vício” e do crime;
surpreendamo-os em seus conciliábulos; percorramos os antros
em que se reúnem para deliberar ou para desfrutar dos benefícios
de seu parasitismo; escutemos suas conversas; examinemos em
todos os detalhes suas personalidades. Será necessário, para isso,
sacrificar muitas conveniências e, sobretudo, vencer profundas
repugnâncias; porém, façamo-lo, e ao final da jornada, certamente
que não restará para eles, no íntimo de nosso eu, qualquer
sentimento de ódio ou desejo de vingança (...).61

A retórica do passeio, já formalizada na crônica, se converteu


num modo paradigmático de representação dos perigos da nova
vida urbana.

Cronistas e prostitutas

Possivelmente, nenhuma figura da época encarne melhor o


“perigo” da cidade proletarizada como a prostituta. A prostituta
é uma condensação, nos discursos sobre a cidade (o romance
naturalista Santa, de F. Gamboa, seria um exemplo clássico) dos
“perigos” da heterogeneidade urbana. Como afirmava G. Simmel,
a prostituição é o emblema do impacto das leis do mercado
sobre as regiões mais “íntimas” ou “privadas” da vida moderna.62
Ou seja, a prostituta simboliza a intervenção do mercado nas
regiões mais protegidas do “interior”. A prostituição – longe de
ser uma anomalia – pode ser vista como modelo das relações
humanas no capitalismo. Os discursos sobre a modernidade
não deixaram de refletir sobre isso, condensando na prostituta
não apenas uma ameaça à família burguesa e uma “figura” da
sexualidade moderna, mas também a “periculosidade” da nova
classe trabalhadora.
Em sua lúcida leitura de Olimpia de Manet, o historiador de
arte T. J. Clark traça a relação entre a cultura burguesa parisiense,

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a prostituição e a função ideológica – sempre tensa e contraditória
– do impressionismo. Para Clark, a representação da prostituta
era um lugar simbólico, em que se refletia sobre uma experiência
sexual desterritorializada, sumamente problemática para a
cultura dominante, não apenas pelo fato da nudez (e da própria
prostituição), mas porque essa nudez, em meados do século
passado, era um “signo de classe”.63 O impressionista, de maneira
contraditória, em razão de seu lugar subalterno frente à cultura
dominante, viria a cobrir a nudez, submetendo sua particularidade
(e perigo) às formas canônicas e processadas do nu. Segundo
Clark, a radicalidade de Manet estaria na ambigüidade e nas
aporias que enfrenta na tomada do corpo do outro, nessa espécie
de nudez irônica que é Olimpia.
Na Buenos Aires do final do século a prostituição começava a
ser um problema ameaçador, que inclusive colocava em xeque a
capacidade disciplinadora da polícia urbana. As prostitutas – como
sugere Gómez Carrillo em El encanto de Buenos Aires – saíam
para a rua, não se prendendo aos lugares institucionais, como
o prostíbulo ou a casa de encontros. Por essa razão, a prostituta
se tornaria um dos objetos privilegiados da “ciência” da crimi-
nologia, conforme comprova a proliferação de livros como La
mala vida en Buenos Aires, de Eusebio Gómez. Ainda segundo
Ernesto Goldar, naquela Buenos Aires finissecular já começara o
fluxo imigratório de prostitutas, trazidas muitas vezes contra sua
vontade pela sinistra organização de Zwi Migdal, que administrou
a tratativa de brancas, e explodiria posteriormente na década de
20 (o que seria fundamental para Arlt).64
Para nós, esse pano de fundo é significativo: remete à cidade
apagada, ou melhor, decorada e domesticada, por muitas crônicas
finisseculares. Gómez Carrillo:

Antes de me deitar volto a abrir a janela para contemplar o


espetáculo da rua expressiva.
(...) o ir e vir lento, tão lento como em todas as partes, das
vendedoras de carícias, sugere idéias de infinita piedade. Ah! As
cortesãs da Avenida de Mayo! (...) Se pelo menos tivessem algo de
provocador, algo de perversão, algo de diabólicas! (...) Mas vão,
as pobres, uma após a outra, sem elegância, quase sem alento, e
quando, de tempos em tempos se detém para atrair algum homem
que passa precipitado ou distraído, nota-se que o movimento

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de sua cabeça, que se levanta, é puramente mecânico. Daqui de
meu observatório não vejo seus olhares, nem seus sorrisos. Mas
sei bem como são (...).65

Aqui o sujeito não é um flâneur, pois o lugar de onde olha


é muito mais seguro e protegido: um interior a partir do qual,
novamente, se apaga a particularidade do objeto – seu aspecto
ameaçador – e se produz uma cena generalizante. A prostituta
é “cortesã” que inspira “piedade”. Apesar de sua “piedade”, o
sujeito insiste em registrar a distância: a partir do “observatório”,
o olhar domestica a cidade.
Por outro lado, mais “empírico” que esse olhar distanciado
era a saída em busca dos arrabaldes prostibulares. Gómez
Carrillo também sai a passeio. Numa crônica intitulada “El tango”,
escreve:

É um bairro longínquo, sórdido e quase deserto. No chão, cheio


de água, as poucas luzes da iluminação pública se refletem com
uma lividez espectral. Pela calçada, verdadeira “vereda”, como se
diz por aqui, caminhamos, saltando sobre as poças (...).

Mas não são as meninas francesas, não, nem mesmo graças finas
e estilizadas o que vamos ver, mas as flores naturais do pântano
portenho, as ondulações portenhas.66 (grifo nosso)

O cronista não precisava ver uma prostituta estilizada; a esti-


lização – carnê de identidade “literário” – é o que seu discurso
informaria ao mundo representado, dominando-o. Sobre a mi-
séria sem piedade da cidade, ele impõe o mapa de outra cidade,
estritamente livresca:

Mas o mais estranho, o inexplicável, é que o tango que esta noite


escuto neste baixo e vil bouge de Buenos Aires não se diferencia
em nenhum detalhe do tango parisiense. As bailarinas de Luna-
Park são, de verdade, mais bonitas, mais luxuosas, mais graciosas
e mais airosas que as daqui. A dança é a mesma. Consistiria tal
fenômeno no fato de que a influência do refinamento parisiense
chegou até tão miserável e distante arrabalde?67

É o cronista que impõe ao miserável arrabalde o refinamento


parisiense, a estilização de certa cidade literária. Porque: “Onde
está a cidade? (...) – Onde está a cidade? (...) Eu também me

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pergunto quando, em certas tardes quentes, me deixo levar, pra-
zerosamente, ao dirigir um carrinho minúsculo, sem rumo certo,
por entre as frondosas avenidas.”68
A cidade é apagada pelo discurso estetizador. Há muitos en-
contros entre cronistas e prostitutas, nem sempre tão sublimes
como o de Gómez Carrillo. Em suas crônicas sobre Paris, (a cidade
ideal), Darío registra certa ansiedade:

No lado direito, pela enorme artéria do bulevar, os veículos luxuosos


passam rumo aos teatros elegantes. Depois aparecem os cafés
caríssimos, onde as mulheres do mundo da alta cotação exercem
seu tradicional ofício de deslumbrar os mancebos. (...)

Próximo da Magdalena e da Praça da Concórdia, está o lugar


famoso que certa vez provocou a pena de um dramaturgo. Ali
essas “damas” usam os mais faustuosos penachos, apresentam as
mais ousadas túnicas, aparecem grupos abastados, ou traficantes
bem vestidos (...)

Pela rua do Faubourg Montmartre e de Notre-Dame-de-Lorette,


ascende todas as noites uma procissão de festeiros, tanto cos-
mopolitas como parisienses, adeptos do Moinho-Vermelho e das
brancas noites. Ninguém tem mais lembranças literárias e artísticas
para o que era então um refúgio de artistas e literatos. Além disso,
todos sabem da mercantilização da Arte.69 (grifo nosso)

Não seria possível falar, partindo dessa descrição das prosti-


tutas com “túnicas” e “faustuosos penachos”, de uma prostituição
modernista? É impressionante como Darío nessa crônica, após
descrever a prostituta, reflete sobre a mercantilização da arte, um
de seus assuntos favoritos. Novamente:

À noite, Paris é luz e única, deleite e harmonia; e, hélas! delito


e crime (...) Sabe que com outro tudo se consegue, nas horas
douradas da vila do ouro, onde o Amor transforma esse recanto
de alegria, onde alguns anos atrás ainda se sonhava sonhos de
arte e se amava com menos interesse (...) dizem que os artistas
de hoje, os próprios artistas, só pensam nos ganhos (...).70

Da prostituição à mercantilização da arte; a passagem, em


Darío, é constante, o que nos leva a suspeitar que na prostituta
o cronista projetava algumas das condições de possibilidade de

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sua própria prática. Porque, não é a crônica, precisamente, uma
incorporação da arte ao mercado, à emergente indústria cultural?
E não era a mercantilização, segundo o idealismo professado por
muitos modernistas, uma forma de prostituição?
Um estranho passeio – um passeio-esquizo, é preciso acres-
centar – do poeta Fernández em De sobremesa, de J. A. Silva,
intensifica a sugestão:

Eram onze e quarenta quando fui ao bulevar e me confundi com


o rio humano que por ele circulava (...) Caminhei por uns quinze
minutos com um passo bem firme e (...) Cartas transparentes?,
me perguntou um garoto, que guardou o obsceno pacote ao
voltar a olhá-lo.

A luz das janelas de uma loja de bronzes me atraiu e, caminhando


devagar, porque sentia que as forças me abandonavam, fui parar
na frente de uma delas.

Uma mulher pálida e magra, com cara de fome, as bochechas e a


boca pintadas de carmim, me fez estremecer dos pés à cabeça, ao
tocar a manga do pesado casaco de peles que me envolvia, e soou
sinistramente em meus ouvidos o pssit, pssit, que lhe dirigiu um
inglês obeso e corado. (...) Prestei atenção na janela (...) Parecia
que eu estava preso entre dois muros de vidro e que nunca mais
poderia sair dali. (...) Uma névoa espessa flutuou perante meus
olhos, uma neuralgia violenta me atravessou a cabeça de lado a
lado, como um raio de dor, e caí desacordado sobre o gelo.71

O caminhante parece inicialmente protegido por um parapeito


que o “envolve”, que o interioriza nesse “pesado casaco de peles”.
No entanto, na frente da janela/vitrine o contato com a prostituta
faz estremecer – deixa fora de si – o sujeito, que imediatamente
se imagina “preso entre dois muros de vidro”.
O deslocamento metonímico, da prostituta ao eu encerrado
na vitrine, é revelador. Como afirmamos anteriormente, a vitrine
é um dos objetos privilegiados pelo caminhante. A vitrine é um
objeto que nos remete ao consumo, na condição de mediador
entre o sujeito urbano e seu mundo. Porém, ao mesmo tempo, é
também uma metáfora mediante a qual certa escrita finissecular
(especialmente na crônica) auto-representa sua submissão às leis
do mercado.

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O passeio de Fernández é duplamente significativo: situa o
sujeito duplamente “retido” pelo vidro, justamente ao lado da
prostituta que vende seus serviços. Isso ocorre num romance em
que o intercâmbio econômico de objetos artísticos e o processo
de mercantilização são assuntos fundamentais.
Foram muitas as queixas – e as pequenas obsessões – dos
modernistas contra o dinheiro. Apesar de suas freqüentes e
ansiosas demandas de pureza (na modernidade a pureza é
altamente cotizável, como é o caso da inutilidade do luxo), o
poeta figurava, especialmente nas crônicas, como trabalhador
assalariado. No momento em que o escritor, rasgados os véus,
se reconhece no interior da vitrine começa a se ver como outro
– às vezes como prostituta –, complicando, entre outras coisas,
a disposição decorativa da beleza. A partir desse momento, o
literato, inclusive o cronista, deixa de ser um flâneur.

Martí: crônica e cotidianidade

A crônica é um tipo de literatura menor, de forma fragmen-


tária e derivada, porém, fundamental para o campo literário
finissecular. Como forma menor, genericamente imprecisa, pos-
sibilita o processamento de regiões emergentes da cotidianidade,
até então excluídas dos modos mais estáveis da representação
literária (ou artística). Porém, é difícil postular abstratamente o
signo político do “menor”. Conforme vimos no caso da crônica,
a própria indisciplina e flexibilidade formal do gênero poderia
ser um dispositivo disciplinar, um ordenamento da cotidianidade
ainda “não classificada” pelas formas instituídas.
Mesmo assim, é certo que a heterogeneidade da crônica, pelo
menos em Martí, permitiu ao literato uma saída do campo da
“arte” e da “alta cultura”. Essas saídas em Martí se negam a pro-
duzir uma imagem decorativa da cidade. Ao contrário da função
decorativa que tende a cumprir a crônica modernista, Martí registra
a miséria, a exploração, que as formas até então mais avançadas
da modernidade (nos Estados Unidos) produziam:

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Dos tetos das casas dos vizinhos, que são a maioria nos bairros
pobres, estão pendurados montes de pernas.

De baixo, bem de baixo, se vê lá, nas alturas de um sétimo


andar, uma camisa colorida empinando uma caneca de cerveja,
como uma gota de sangue sobre a qual caiu outra de leite. A
lua dá tons de enxofre à cabeleiras amarelas, e pinta de bílis
as caras pálidas. De uma chaminé a outra, procurando tijolos
menos quentes onde possam se reclinar, passam semi-nus, como
duendes, os trabalhadores exaustos, o cabelo emaranhado, a
boca caída, jurando e tremendo, limpando com as mãos as
gotas de suor, como se estivessem desfazendo o tecido de
suas entranhas. Na calçada, onde os meninos consolam o
ventre sedento deitando-se de bruços sobre as pedras mornas,
se estiram ao pé de uma árvore pequena ou nos degraus da
escadaria, as mães exaustas, desfalecidas pela rotina da casa,
mortal no verão: as faces são covas; os olhos, sobressalto ou
petição; se seu seio se mostra não se preocupam; só tem forças
para sossegar a criaturinha que morre agarrada a sua saia.72

Aqui é possível comparar a distância enfática que separa o


sujeito do objeto representado, o corpo operário. Distanciamento
semântica e ideologicamente carregado, notável também no estilo
grotesco (nada enaltecedor) da descrição. A fragmentação, como
traço do outro, atravessa a própria disposição descritiva. Porém,
igualmente digna de nota é a ausência de embelezamento da
miséria. O corpo do outro – conjunto de fragmentos – aparece
em oposição ameaçadora para o sujeito, mas permanece não-
domesticado. A miséria aí não é pitoresca ou dócil, em contraste
com a retórica do passeio de Wilde ou de Gómez Carrillo. A
crônica martiana não decora, não resolve as tensões da cidade;
ao contrário – bem ao contrário dos padrões da prosa estilizada
que domina na crônica modernista – parece que a fragmentação
do corpo do outro contamina, com sua violência, o próprio
espaço do discurso, o lugar seguro do sujeito que, por seu lado,
reclama distância.
Por volta de 1881, seus primeiros textos sobre Nova Iorque
– onde Martí por certo não era um turista – registravam sua am-
bígua posição frente às culturas marginais e operárias da cidade.
Posição de distância e até de medo, porém, ao mesmo tempo,
de filiação:

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Amo o silêncio e a quietude. O pobre Chatterton tinha razão
quando relembrava desesperadamente as delícias da solidão. Os
prazeres citadinos começam para mim quando os motivos que
produzem prazer para os demais vão se desvanecendo. O verda-
deiro dia para minha alma amanhece em meio à noite. Enquanto
fazia noite passada meu passeio noturno habitual, muitas cenas
lamentáveis me causaram pena. Um ancião, vestido naquele
estilo que revela, ao mesmo tempo, a boa fortuna que temos tido
e os maus tempos que nos esperam, passeia silenciosamente
debaixo de um poste da rua. Seus olhos, fixos sobre as pessoas
que passavam, estavam molhados de lágrimas (...). Não conseguia
articular uma só palavra.73

O caminhante procura um espaço alternativo na cidade, na


solidão da noite. Porém, em sua procura por um lugar vazio –
próprio – na cidade, o sujeito é interpelado pelo olhar do outro.
Talvez seja possível ler aí não apenas um encontro, mas uma
projeção do sujeito no outro. Outro que “revela, ao mesmo
tempo, a boa fortuna que temos tido e os maus tempos que nos
esperam”. Em boa medida, essas palavras descrevem o próprio
Martí exilado recém-chegado a Nova Iorque, bem como aqueles
seus primeiros textos submetidos ao mercado como escritor as-
salariado. Efetivamente, Efetivamente, apesar de suas irredutíveis
contradições, no Martí nova-iorquino opera o conceito do escritor
como outro, o escritor como trabalhador. A crônica é o lugar
onde se coloca em prática tal conceito.
Por outro lado, essa aproximação de Martí das regiões margi-
nais da cidade – da matéria “antiestética” da cidade – não pode ser
explicada somente em termos de uma experiência pessoal. Essa
relação é mediada, como afirmamos antes, pelas lutas no interior
do campo intelectual; pelas pugnas entre diferentes posições e
conceitos literários. Em Martí, a recusa do luxo e da escrita como
decoração urbana supõe uma crítica da incorporação do estético,
como esfera autônoma, pela indústria cultural. No entanto, essa
crítica se apóia, ao mesmo tempo, nas formas “baixas” e menores
do jornalismo para atacar certo tipo de intelectual “alto”:

A história que vamos vivendo é mais difícil de tomar e contar


que a que dorme nos livros das idades passadas; esta se deixa
coroar de rosas, como um boi manso; a outra, escorregadia e
de numerosas cabeças como o polvo, sufocam os que a querem

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reduzir a forma viva. Vale mais um detalhe finamente percebido
do que acontece agora, vale mais a pulsação surpreendida a
tempo de uma fibra humana, que esse requentado de fatos e
generalizações pirotécnicas tão usadas na prosa brilhante e na
oratória (...)

[Quando] se fala cara a cara com um desocupado faminto nas


praças, no ônibus com o motorista necessitado, nas lojas elegantes
com o jovem trabalhador, com os tabagistas boêmios em suas
mesas fétidas e os poloneses (...), então, voltam a se entrever
como realidade terrível as cenas de horror fecundo da revolução
francesa, e se aprende que em Nova Iorque, em Chicago, em San
Luis, em Milwaukee, em São Francisco, fermenta hoje a sombria
levedura que temperou com sangue o pão da França.74

A crônica ofereceu uma saída a Martí – desterritorializada – da


rua. Permitiu sua crítica ao livro, assim como uma reflexão, bem
avançada, sobre os riscos do desejo de autonomia da literatura.
Crítica do interior, já projetada em seus minuciosos testemunhos
da cotidianidade capitalista, feitos, em muitos casos, com a mesma
matéria verbal, fragmentada e derivada, da cidade moderna.

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