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AS ESCRITURAS E OS INÍCIOS DA DOUTRINA TRINITÁRIA

(PROF. ROGÉRIO MIRANDA DE ALMEIDA)

O ANTIGO TESTAMENTO

Deus se apresenta no Antigo Testamento como um ser misterioso, transcendente e, ao mesmo


tempo, próximo do homem. Às vezes ele se exprime, ou dele se fala, no plural. É o caso, por
exemplo, em:
Gn 1,26: “Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que eles
dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os
répteis que rastejam sobre a terra’”.
Gn 3,4-5: “A serpente disse então à mulher: ‘Não, não morrereis! Mas Deus sabe que, no dia em
que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal’”.
Gn 3,22: “Depois disse Iahweh Deus: ‘Se o homem já é como um de nós, versado no bem e no
mal, que agora ele não estenda a mão e colha também da árvore da vida, e coma e viva para
sempre!’”
Sl 8,6: “E o fizeste pouco menor do que um deus, coroando-o de glória e beleza”.
Sl 110, 1: “Oráculo de Iahweh ao meu senhor: ‘Senta-te à minha direita, até que eu ponha teus
inimigos como escabelo de teus pés’”.
A fala de ou sobre Deus no plural pode indicar Deus e a sua corte celestial (os anjos) com a qual
ele delibera, ou então a sua majestade e riqueza interiores, porquanto o nome comum de Deus em
hebraico se acha na forma plural: Elohim. Foi neste sentido que o interpretaram os Padres da Igreja,
vendo nesta forma uma alusão à Trindade.
Vemos esta forma plural reaparecer no primeiro Isaías, na teofania de Iahweh, no contexto da
vocação do profeta. É o famoso Trisagion:
Is 6,2-3: “Acima dele, em pé, estavam serafins, cada um com seis asas: com duas cobriam a face,
com duas cobriam os pés e com duas voavam. Eles clamavam uns para os outros e diziam: ‘Santo,
santo, santo é Iahweh dos Exércitos, a sua glória enche toda a terra’”.
Mas Iahweh se dá a conhecer também como a Palavra, uma Palavra que protege, que cria ou que
salva. Assim em:
Gn 15,1: “Depois desses acontecimentos, a palavra de Iahweh foi dirigida a Abrão, numa visão:
‘Não temas, Abrão! Eu sou o teu escudo, tua recompensa será muito grande’”. Veja também: Am
5,1-18.
Sl 33,6.9: “O céu foi feito com a palavra de Iahweh, e seu exército com o sopro de sua boca.
Porque ele diz e a coisa acontece, ele ordena e ela se afirma”.
Sl 147,18: “Ele envia sua palavra e as derrete, sopra seu vento e as águas correm”.
Iahweh se manifesta também como espírito, ou sopro de vida:
Sl 104,29-30: “Escondes tua face e eles se apavoram, retiras sua respiração e eles expiram,
voltando ao seu pó. Envias teu sopro e eles são criados, e assim renovas a face da terra”.
Na época helenística e, mais exatamente, com o surgimento da literatura sapiencial, Iahweh se
manifesta como a personificação da Sabedoria:
Jó 28,20-21. 28: “Donde vem, pois, a Sabedoria? Onde está o lugar da Inteligência? Está oculta
aos olhos dos mortais e até às aves do céu está escondida. E disse ao homem: ‘O temor do Senhor,
eis a Sabedoria; fugir do mal, eis a Inteligência’”. Veja também: Br 3,9-4,4; Sb 1-9; Eclo 24 (a
Sabedoria faz o seu próprio elogio); Pr 8.

O NOVO TESTAMENTO

Segundo a interpretação mais recorrente nos inícios da formação do dogma trinitário (Padres da
Igreja), a Trindade, que se acha aludida e sugerida no Antigo Testamento, será explicitada e levada a
efeito no Novo Testamento. Foi assim que se quis ver uma dimensão claramente trinitária em At 2,
no contexto de Pentecostes, onde Lucas mostra o que seria a primeira proclamação oficial da
ressurreição, ou do quérigma pascal.
Já outras narrativas colocam em cena o Pai, o Filho e o Espírito. É o que ocorre, por exemplo, na
anunciação a Maria:
Lc 1,35: “O anjo lhe respondeu: ‘O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo vai te
cobrir com a sua sombra; por isso o Santo que nascer será chamado Filho de Deus.’”
Também no batismo de Cristo no Jordão: Mt 3,13-17.
Os Evangelhos mencionam também as palavras de Cristo dirigindo-se a Deus como a seu Pai,
com referência, às vezes, ao Espírito. É o que vemos, por exemplo, no júbilo de Cristo em:
Lc 10,21: “Naquele momento, ele exultou de alegria sob a ação do Espírito Santo e disse: ‘Eu te
louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste essas coisas aos sábios e entendidos, e as
revelaste aos pequeninos’”.
Vê-se também essa referência no discurso de adeus em Jo 14-17.

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Todavia, um dos textos mais importantes para o desenvolvimento do dogma trinitário é a fórmula
batismal que se encontra em Mt 28,19:
“Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando-as em nome do Pai, do
Filho e do Espírito Santo e ensinando-as a observar tudo quanto vos ordenei”.
Já em At 1,5, é mencionado somente o Espírito Santo: “Pois João batizou com água, mas vós
sereis batizados com o Espírito Santo dentro de poucos dias”.
Em At 2,38, são mencionados os nomes de Jesus Cristo e do Espírito Santo: “Respondeu-lhes
Pedro: ‘Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para a remissão
dos vossos pecados. Então recebereis o dom do Espírito Santo”.
Há também, no corpus paulino, proclamações do quérigma pascal que constituem profissões de fé
de dimensão trinitária, cujo conteúdo comporta ora dois, ora três termos.
Os que comportam dois termos podem ser encontrados em:
1Cor 8,6: “Para nós, contudo, existe um só Deus, o Pai, de quem tudo procede e para quem nós
somos, e um só Senhor, Jesus Cristo, por quem tudo existe e por quem nós somos”.
1Tm 2,5-6: “Pois há um só Deus, e um só mediador entre Deus e os homens, um homem, Cristo
Jesus, que se deu em resgate por todos”.
1Tm 6,13: “Eu te ordeno, diante de Deus, que dá a vida a todas as coisas, e de Cristo Jesus, que
deu testemunho diante de Pôncio Pilatos numa bela profissão de fé”.
Os que comportam três termos:
1Cor 12,4: “Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo; diversidade de ministérios, mas
o Senhor é o mesmo; diversos modos de ação, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos”.
2Cor 13,13: “A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo
estejam com todos vós!”
Ef 4,6: “Há um só Corpo e um só Espírito, assim como é uma só a esperança da vocação a que
fostes chamados; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; há um só Deus e Pai de todos, que é
sobre todos, por meio de todos e em todos”.
Essas duas séries foram, pois, livremente retomadas pelos primeiros Padres da Igreja na
elaboração do dogma trinitário e nas fórmulas que iriam caracterizá-los naqueles concílios que
marcaram os séculos IV-V.

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