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01 Etica e Politica PDF
01 Etica e Politica PDF
Temáticas transdisciplinares
Sessões especiais de orientação acadêmica
Ética e política
Este texto de trabalho foi elaborado pelo Grupo SOA
com vistas exclusivamente ao debate no âmbito do Pré-Vestibular Social
◄ 19 ►
1 Pensamento filosófico e literário: construções
históricas dos valores éticos e políticos
Os antigos filósofos ocidentais entendiam a ética como um campo do saber que permitia
aos indivíduos estabelecer o melhor modo de viver e conviver, tanto em sua vida privada
quanto na vida pública. Autores contemporâneos1 também afirmam que a ética está direta-
mente relacionada à necessidade de ajustar o comportamento individual aos interesses de
determinada coletividade. A partir desse objetivo, e produzida na experiência de convívio
cotidiano, a construção da ética leva a sociedade a refletir sobre aquilo que entende como
bom e sobre o que considera ruim. Definem-se, então, padrões de sociabilidade que devem
orientar as condutas e relações entre indivíduos. Tais padrões podem estimular, por exemplo,
práticas individualistas e imediatistas ou ações com referências coletivas e de longo prazo;
podem naturalizar condutas de submissão e escravidão de outros seres ou almejar condições
efetivamente emancipatórias e igualitárias para o conjunto dos seus integrantes.
No entanto, para muitas pessoas a noção de ética não está atrelada à sua construção
social. Assim, concebem a ética, a moral e o conjunto de valores e regras de comporta-
mento que as orientam como determinadas por forças maiores, como Deus ou a “natureza
instintiva” dos homens. Essas interpretações naturalizam a existência moral e negam sua
dimensão histórico-cultural. Na medida em que colocam a origem dos valores éticos acima
das relações humanas, afastam a possibilidade de reflexão e de intervenção do homem
sobre seus códigos.
A concepção que adotamos reconhece a existência desse vínculo essencial entre a vida
em coletividade e a constituição da ética. Esta pressupõe a dinâmica das relações sociais e
estabelece uma conexão direta com a política, entendida aqui no seu sentido mais amplo,
como exercício individual ou coletivo de formular necessidades e interesses sociais, visando
à realização dos mesmos.
Entretanto, como não costumamos dedicar muito do nosso tempo à observação e à análise
de nossas práticas diárias, somos levados a pensar que nossas escolhas são “neutras” e que
política é apenas aquilo que acontece nos atos dos governantes, nas assembleias legislativas,
nas campanhas eleitorais, nas associações de moradores e nos grêmios escolares etc.
Outra distorção que encontramos frequentemente é a ideia de que política é “coisa suja”
e, por isso, realizada por aqueles que querem obter “vantagens pessoais” a partir do po-
der que outros lhes conferem. Assim, não havendo possibilidades de mudanças, restaria às
“pessoas de bem” distanciar-se dessa arena, abdicando de exigir um posicionamento ético
dos representantes e de agir em prol da transformação da sociedade em que vivem. Nosso
propósito é justamente apresentar diversos argumentos e informações que permitam rever
algumas dessas noções preestabelecidas, entendendo que ética e política são dinâmicas e,
exatamente por isso, sempre passíveis de disputas e transformações.
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O sentido político das atitudes e escolhas
A política não está presente na vida social apenas na época das eleições. Todos os
aspectos da vida humana têm relação com a política, pois esta se materializa cotidia-
namente em nossas atitudes e escolhas. Segundo o filósofo Wolfgang Maar (1994), a
política é multifacetada e está presente quando se relaciona com o Estado, o poder, a
representatividade, as ideologias, a participação, a violência. Também se encontra em
qualquer espaço: sindicatos, igrejas, tribunais, escolas, salas de jantar ou reuniões de
partidos. Dessa forma, a política é tanto o conjunto de atividades a que se dedicam os
homens para coexistir, quanto o estudo objetivo dessas mesmas atividades.
Assim, as relações políticas não se dão apenas através da política institucionalizada, ou
seja, pelo Estado. Nós produzimos e executamos política no nosso dia a dia, visto que, seja
na esfera institucional, seja nas relações cotidianas, exercemos relações de poder uns sobre
os outros, influenciando o que acontece ao nosso redor. As expressões “você precisa ser
mais político” e “você precisa se politizar mais” demonstram diferentes sentidos que a po-
lítica assume em nosso cotidiano, seja na relação interpessoal ou no exercício institucional.
É importante ressaltar que as escolhas que fazemos ou deixamos de fazer (dia-
riamente ou em processos eleitorais) repercutem em todas as esferas de nossas vidas
e modelam a sociedade em que vivemos. Mesmo o ato de se omitir, institucional ou
cotidianamente, é um ato político, que pode derivar de um posicionamento consciente
ou indiferente perante uma situação. A questão é saber quando isso resulta em que os
outros escolham por você. As trajetórias de militância de Henri Thoureau, Mahatma
Gandhi, Nelson Mandela, Malcon X e Martin Luther King exemplificam a ação política
de indivíduos mesmo quando as instituições eram extremamente contrárias às suas
posições. Esses personagens históricos atuaram conscientemente no seu cotidiano, con-
tagiando outras pessoas e levando ao enfrentamento da ordem vigente.
Finalmente, o fato de ética e política serem dois campos entrelaçados sugere que
as escolhas que tomamos podem ou não influenciar uma sociedade mais justa. Ao es-
colher se posicionar contra ou a favor de determinado projeto, engajar-se ou não em
uma causa, interferir ou não em determinada ação preconceituosa, estamos exercendo
política e defendendo aquilo que acreditamos. Se a política é liberdade, como apontou
a filósofa Hannah Arendt (1999), devemos buscar garantir não apenas a liberdade
individual – tão valorizada nos dias de hoje –, mas também aquela relacionada ao
conjunto, à comunidade em que estamos inseridos.
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Desde a Antiguidade clássica, muitos filósofos se debruçaram sobre o tema. Para Platão, um
dos principais estudiosos do assunto, as ideias fundamentais como o bem e o mal são imutáveis
e deveriam ser alcançadas através da reflexão filosófica. Já alguns filósofos sofistas2afirmavam
a relatividade desses conceitos, acreditando que o julgamento de todas as coisas é feito pelo
próprio homem. Por outro lado, em Ética a Nicômaco, Aristóteles defende que o objeto da
ética é o estudo sobre o Sumo Bem, noção que deve orientar todas as ações humanas, como
finalidade suprema. A busca da felicidade, para o indivíduo ou para a comunidade política, se
encontraria no justo meio entre os extremos, na prudência e nos hábitos gerados pelo seu exer-
cício. Assim, percebemos que a noção de ética, mesmo entre os gregos, não era um consenso.
Distintas interpretações também foram formuladas durante a Idade Média, época em
que predominaram tratados sobre ética e política de teólogos da Igreja Católica, mar-
cando o pensamento europeu com uma noção de moral baseada em princípios cristãos.
Agostinho de Hipona afirmou que o mal não era criação de Deus e que o livre-arbítrio
dava ao homem a escolha de praticar o bem e levar uma vida virtuosa. Em A Cidade de
Deus, o autor defende sua visão da história hu-
mana como um conflito entre a cidade divina e a
cidade dos homens, representando, respectiva-
mente, a luz e as trevas. Sua ideologia baseada
no maniqueísmo3, afirmava que este conflito es-
tava destinado a terminar com o triunfo daqueles
que se dedicam à verdade eterna sobre aqueles
que se dedicam aos prazeres mundanos.
Agostinho de Hipona, considerado santo nas
Igrejas Católica, Anglicana e Ortodoxa, também
influenciou decisivamente os reformadores protes-
tantes. Martinho Lutero foi sacerdote agostiniano
antes de romper com o Vaticano, e João Calvino
reconheceu em Agostinho de Hipona uma de suas
principais influências. Sua obra representa, des-
sa maneira, uma referência à moral cristã de um
modo geral. Diz-se que Carlos Magno considera-
va A Cidade de Deus sua obra favorita. A ética
agostiniana não só influenciou governos desde
Santo Agostinho (c. 1480), afresco de Sandro então, como também inspirou estudos de muitos
Botticelli na Igreja de Ognissanti, Florença, Itália. outros filósofos, como Arthur Schopenhauer, Frie-
Fonte: The Yorck Project: 10.000 Meisterwerke der drich Nietzsche, Albert Camus e Hannah Arendt.
Malerei. DVD-ROM, 2002. ISBN 3936122202.
Sandro Botticelli foi apenas um dos muitos pin-
Distributed by DIRECTMEDIA Publishing GmbH. Dis-
ponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:- tores de sua época a retratarem Agostinho de Hi-
Sandro_Botticelli_050.jpg – Acesso: 27/08/2013 pona, considerado um modelo de intelectual cris-
2 Os sofistas eram mestres que viajavam de cidade em cidade, na Grécia Antiga, realizando discursos
públicos para atrair estudantes, de quem cobravam pela educação. O foco central dos ensinamentos
dos mestres sofistas eram o discurso e as estratégias de argumentação, e acreditavamque a “virtude”
seria passível de ser ensinada aos seus discípulos. Protágoras (481-420 a.C.), Górgias (483-376 a.C.) e
Isócrates (436-338 a.C.) são alguns dos mais conhecidos filósofos da escola sofística.
3 Doutrina fundada pelo profeta persa Manes (conhecido no ocidente como Maniqueu – 216-276 d.C.), que
está baseada na oposição entre os princípios de Bem e Mal.
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tão durante o Renascimento. Todavia, se a política esteve submetida à ética religiosa ao longo
da Idade Média, o pensamento renascentista traria novas perspectivas sobre a relação entre
ética e política. O mais criativo e influente teórico do século XVI foi Nicolau Maquiavel, cujos
escritos submeteram a ética religiosa à experiência política.
Maquiavel não se prendeu à análise da política a partir de valores cristãos e destacou a
importância da Fortuna (deusa pagã) e da virtù do governante. Afastando-se do maniqueís-
mo presente nas concepções religiosas de “bem” e “mal”, a virtù representa para o autor a
capacidade do governante de oscilar entre os extremos da moral, agindo de acordo com a
circunstância. A virtude cristã não poderia ser adotada como modelo para a política e o vício
fatalmente levaria o governante à perda do poder. É fácil perceber os motivos que levaram a
Igreja Católica a incluir O Príncipe na lista de livros proibidos, o que não impediu que este se
tornasse uma referência obrigatória na Ciência Política.
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Um dos fundadores do liberalismo político4, John Locke, defendeu a soberania popular
e o direito de depor um governante que desrespeitasse os direitos e liberdades naturais do
homem, entre os quais figurava a liberdade religiosa. Para o autor, as religiões cristã, judai-
ca e muçulmana deveriam ser aceitas na Inglaterra. Todavia, assim como Thomas More, ele
repudiava os adeptos do ateísmo por não os considerar comprometidos com as práticas de
conduta moral. Nesse sentido, reproduzia um princípio disseminado na sociedade protes-
tante da época: em 1644, a legislação inglesa obrigava as autoridades a reunir os vadios,
vagabundos e pedintes em igrejas durante o culto de domingo.
Dois autores nascidos no século XIX também contribuíram em grande medida para as
reflexões a respeito da ética protestante e da política. O nobre francês Alexis de Tocqueville,
após visitar os EUA na década de 1830, publicou o livro Da Democracia na América, em que
descreveu os costumes da sociedade nova-iorquina, seu sistema prisional, sua economia e
política. Tocqueville afirmou que a opinião pública americana era particularmente dura com
a falta de moral, que prejudicaria a harmonia doméstica e o sucesso nos negócios. Nos EUA,
ser casto seria uma questão de honra e um requisito para a prosperidade pessoal. Da mesma
forma, um desvio moral de um representante seria prejudicial para os negócios públicos.
Em 1998, tivemos a oportunidade de verificar a permanência desses valores na opinião
pública estadunidense quando o presidente Bill Clinton foi duramente criticado por manter
relações sexuais com a estagiária Monica Lewinsky. O escândalo levou o presidente a júri e
causou grande desgaste de sua imagem, além de pedidos de renúncia por parte da oposição.
O economista e sociólogo alemão Max Weber, por sua vez, também contou com uma
viagem aos EUA, por ocasião da Exposição Universal de St. Louis em 1904, para produ-
zir a segunda parte de sua obra mais lida, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.
Para Weber, um aspecto que diferencia os protestantes dos católicos seria a preferência pela
educação técnica em lugar da formação humanista. Isto estaria relacionado à mudança da
concepção de “vocação” por Lutero, retirando o sentido de chamado ao sacerdócio e intro-
duzindo o sentido de chamado de Deus para o exercício de uma profissão. Além disso, a
ética econômica do capitalismo seria derivada da noção de predestinação do calvinismo.
Diante da angústia de não saber se estaria condenado ou escolhido por Deus a ser salvo, o
trabalho e o sucesso econômico apareciam como compromissos do crente e indícios de sua
salvação. Ainda hoje, a defesa da propriedade individual pelo Estado aparece como um ele-
mento fundamental da tradição política dos EUA, buscando incluir socialmente os cidadãos a
partir da vinculação entre democracia e possibilidades econômicas individuais.
“O mito é o nada que é tudo”. Uma das leituras desse verso de Fernando Pessoa é a de
que quando a história não alcança suas respostas, o homem recorre à literatura, à ficção.
É no processo artístico que seres humanos, dotados de suas paixões, buscam resolver ques-
tões que extrapolam conceitos objetivos. Desse modo, os temas da política e da ética são
recorrentes nas artes e, em especial, na literatura.
Em nosso país, por longos anos, a produção literária do cânone nacional esteve restrita
a homens intimamente ligados às elites econômicas e políticas que dividiram seu tempo com
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esse fazer e, consequentemente, encontraram nesta forma um meio legítimo de expressarem
seus ideais políticos. Inúmeros autores, como Gregório de Matos em relação à Bahia colo-
nial, destinaram longos versos à crítica da sociedade brasileira. Da condição de colônia que
pagava altos impostos à metrópole, à luta pelo fim da escravidão, como podemos ver na
poesia de Castro Alves, muitas foram as demandas políticas, econômicas e sociais expressas
em nossa literatura. Assim, há de se destacar o papel que a literatura desempenhou na busca
da formação da identidade nacional dos brasileiros, ainda que seu alcance tenha sido histo-
ricamente restrito aos segmentos letrados da população, exercendo menor influência entre os
setores analfabetos e pauperizados.
No período que entendemos como Romantismo, a identidade nacional estava, através da
poesia e de diversos romances, atrelada a uma visão subjetiva tanto da natureza de nossa
pátria quanto da figura idealizada do índio. Essa imagem de que os solos do Brasil são
extremamente férteis e que a fauna e a flora são exuberantes, não havendo no globo outra
terra como esta, ainda permanece no ideário nacional. Mais do que isso, tornou-se um forte
“marketing” do país no exterior, atraindo para cá, por exemplo, inúmeros imigrantes no início
do século XX.
Por outro lado, também no contexto do início do século XX, autores como Lima Barreto,
buscaram questionar a identidade nacional que se formava através de fortes críticas às desi-
gualdades sociais. Inclusive, o referido autor lança a obra O triste fim de Policarpo Quaresma
que, dentre outras questões, aborda os malefícios do nacionalismo ufanista. Nesse mesmo
sentido, e já influenciado pelas mudanças sociais ocorridas com a chegada dos imigrantes
nesse período, Graça Aranha escreve o livro Canãa e, de forma original, levanta o debate
sobre as tensões entre as diferentes etnias que formam o país. Com igual perspectiva crítica, os
intelectuais e poetas responsáveis pela organização da Semana de Arte Moderna, em 1922,
buscaram construir uma identidade nacional que refletisse a realidade e o cotidiano do bra-
sileiro. Eles foram responsáveis por trazer, por exemplo, para a literatura e para os círculos
acadêmicos a valorização da língua brasileira, do português como por aqui falamos.
Segundo o filósofo Jean Paul Sartre (1993), “A prosa é utilitária por excelência; eu defi-
niria de bom grado o prosador como um homem que se serve das palavras. [...] O escritor
é um falador; designa, demonstra, ordena, recusa, interpela, suplica, insulta, persuade, insi-
nua”. O autor pensa que ao criar um narrador/personagem este assume uma postura e com
ela desvenda as coisas do mundo. Para ele, esse processo de desvendar, de refletir sobre o
mundo, apenas se completa quando o leitor lança mão da obra e a partir dela traça um novo
olhar sobre o mundo. Assim, no processo de produção da literatura – quenão é destinado
apenas ao autor, mas também ao leitor – residea reflexão e a construção subjetiva de valores
morais e éticos. É nessa perspectiva que propomos a leitura de quatro textos da literatura bra-
sileira que trazem em si a temática da ética como aspecto central: a crônica sobre o escravo
Pancrácio, de Machado de Assis; o conto O homem da cabeça de papelão, de João do Rio;
o conto A nova Califórnia, de Lima Barreto; e a crônica Mineirinho, de Clarice Lispector.
No dia 19 de maio de 1888, ou seja, seis dias após a abolição da escravidão, no jor-
nal Gazeta de Notícias, Machado de Assis publica a crônica sobre o escravo Pancrácio e,
com a ironia que é peculiar aos seus narradores, põe em discussão o futuro dos homens
livres e, sobretudo, a moral e a ética dos antigos donos. Às vésperas da abolição, o senhor
de Pancrácio se adianta e entrega ao escravo a alforria. Para a circunstância, prepara um
jantar, manda chamar alguns homens da alta sociedade e faz a manumissão para que seu
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ato sirva de exemplo. Com o desenrolar da narrativa, percebemos que tanto a condição de
Pancrácio não muda “De lá pra cá, tenho-lhe dado alguns pontapés, um ou outro puxão de
orelhas. E o chamo de besta quando lhe não chamo filho do diabo; Coisas que ele recebe
humildemente, e – Deus me perdoe! – creio que alegre.”, como os interesses do senhor são
individuais “Tracei um plano. Quero ser deputado”. Esse senhor assume na crônica o papel
metonímico da elite brasileira, que é criticada pela postura hipócrita diante da manutenção
de comportamentos próprios da escravidão em nosso país e pelo uso político de seus atos
aparentemente generosos.
Nessa mesma perspectiva, a relação entre indivíduos e sociedade é criticada por João do
Rio em seu conto O homem da cabeça de papelão. De início, a personagem é apresentada
como um ser “sem importância social” em oposição àqueles que podem ser classificados
como seres importantes: príncipe, deputado, rico e jornalista. Ao colocar essas pessoas na
mesma enumeração, podemos fazer a leitura de que, de alguma forma, esses homens estão
intimamente associados ao poder. Além de opor a personagem a essas figuras, Antenor é
completamente diferente dos demais concidadãos em um aspecto importante: ele só dizia a
“verdade verdadeira”. Da mesma maneira, agia para o bem “– Mas, Deus, eu sou honesto,
bom, inteligente, incapaz de fazer mal...” e isso causava o espanto dos demais cidadãos, que
estavam preocupados apenas com seus próprios interesses.
Cansado de ser criticado, de ser rejeitado por suas posições, de ser expulso de diversas
ocupações por dedicar-se demais ao trabalho e de ser pressionado pela mulher que amava,
Antenor decide trocar sua cabeça. Em um processo metafórico, ele troca sua cabeça por uma
de papelão e, assim, ganha respeito e começa a galgar postos mais elevados na sociedade,
chegando a ser eleito para um cargo legislativo.
Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adu-
lava, falsificava. Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas
Antenor, logicamente, desprezou-a propondo um concubinato que o não desmoralizasse
a ele. Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha
de escolher. [...] Foi eleito deputado por todos, e, especialmente, pelo presidente da Re-
pública – a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente seria outro. A sua
ascensão só podia ser comparada à dos balões. Antenor esquecia o passado, amava a
sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava admiravelmente.
Adaptado de: RIO, João do. O homem da cabeça de papelão. São Paulo: Hedra, 2012.
Com esse texto, podemos fazer a reflexão de que valores morais se modificam com as
sociedades. Porém, é necessário notarmos que o exagero de valores tão opostos àqueles que
no Brasil se convencionou como positivos trazem à tona duas importantes críticas: até que
ponto há o respeito aos valores individuais quando estes se opõem ao pensamento vigente e
até que ponto os valores sociais são postos em prática ou não passam de discursos marcados
pela hipocrisia.
É na mesma tentativa de discutir a hipocrisia da sociedade, que Lima Barreto, em A nova
Califórnia, cria uma situação extremamente peculiar: um alquimista é capaz de transformar
ossos em ouro. A princípio, apenas os homens da elite local sabem disso, porém, interessados
no ouro e na manutenção de seu poder, começam a roubar os ossos dos mortos da cidade
e, assim, chamam a atenção dos demais cidadãos. Sem saber o motivo dos furtos, homens
e mulheres organizam escalas para proteger o cemitério, uma vez que os ossos dos mortos
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devem ser respeitados. Entretanto, tudo muda de figura quando todos tomam conhecimento
da técnica de transmutação. Os valores são deixados de lado e uma grande disputa pelos
ossos começa. Fica-nos a reflexão: quanto valem os valores dos indivíduos?
Em uma sociedade cujas relações sociais estão intimamente atreladas ao dinheiro e à valo-
rização do poder, não podemos deixar que valores como o respeito aos mortos, a honestida-
de ou a liberdade, por exemplo, sejam sobrepujados por interesses, coletivos ou individuais,
que levem à corrupção e que acirrem ainda mais as diferenças sociais entre os indivíduos. E
é essa última reflexão que encontramos na crônica Mineirinho, de Clarice Lispector.
A crônica foi publicada em 1969, a partir de um fato policial verídico, ocorrido em 1962,
data em que os jornais cariocas noticiavam a morte do assaltante Mineirinho, apelido pelo
qual era conhecido o fugitivo José Miranda Rosa. Há dias procurado por mais de trezentos
policiais, Mineirinho havia escapado do Manicômio Judiciário e jurado nunca mais voltar ao
cárcere para cumprir sua pena de 104 anos. Acuado pela polícia, acabou crivado de balas
e seu corpo foi encontrado à margem da Estrada Grajaú-Jacarepaguá, no Rio de Janeiro.
Nessa crônica, Clarice Lispector discute a ética envolvendo o assassinato de Mineirinho e
a relação com os crimes cometidos por esse homem. Antes de tudo, traz à tona a reflexão de
como o sujeito pode se posicionar diante deste fato, em suas palavras, tem-se:
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me fez ouvir o primeiro tiro com um alívio de
segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me
cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no
nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome
de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina –
porqueeu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.
Adaptado de: LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: LISPECTOR, Clarice.
A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964.
Nesse sentido, esse texto coloca a dualidade que há entre o eu e o outro. Julgar o outro
de uma perspectiva afastada é diferente de julgar a si mesmo. Só mudamos nossa postura
quando nos entendemos como o outro, ou seja, quando nos colocamos na posição do outro.
É esse o exercício proposto pela autora. De modo que afirma, já no fim de seu texto, que é
necessária outra justiça.
Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama
viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue
à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um
crime de fuzilamento. Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos,
e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo
eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guar-
dado. Na hora de matar um criminoso – nesseinstante está sendo morto um inocente.
Adaptado de: LISPECTOR, Clarice. Mineirinho. In: LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de
Janeiro: Editora do Autor, 1964.
Assim, com a breve análise dos textos propostos, entendemos que a literatura é capaz de sa-
tisfazer lacunas sociais no que tange ao exercício da reflexão de valores muitas vezes tidos como
previamente consagrados, ou seja, temos o costume de pensar que os valores são elementos
anteriores às sociedades e não sofrem a influência dos homens no seu cotidiano. Propomos, por-
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tanto, a seguinte reflexão: em muitos casos, reproduzimos em nosso discurso e atitudes alguns
valores, sem nos questionarmos se estes realmente são os nossos, se são frutos de uma reflexão
coletiva ou individual. Apenas os reproduzimos. Como visto em outros momentos deste texto,
os valores éticos se transformam ao longo dos diversos contextos sociais, cabendo às diversas
gerações questioná-los e modificá-los. Nesse sentido, a literatura pode ser uma grande aliada.
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Muitos julgavam que o mundo globalizado estava radicalmente transformado e conde-
nado ao distanciamento face-a-face pelo implacável e quase tirânico impacto da tecnologia
informacional que prioriza as relações virtuais entre pessoas e espaços. Paradoxalmente, as
ruas de grandes e médias cidades voltaram a ser palco privilegiado de intensos confrontos,
onde as profundas contradições que caracterizam as sociedades, em pleno século XXI, se
materializam e reassumem feições humanas.
Embora haja uma relação íntima entre os conceitos de ética e política, também não pode-
mos deixar de destacar as tensões naturais existentes entre estes campos. Um dos aspectos
que podemos considerar mais tensos na relação entre esses temas diz respeito ao uso da
violência pelo Estado.
O monopólio da força e o uso legítimo – ético – da violência são ideias defendidas por
grande parte dos cientistas políticos e sociais como pré-requisitos para a defesa do conjunto da
sociedade e manutenção da ordem. No entanto, vemos cotidianamente repetidos o abuso e o
excesso no uso da violência, justificado em nome da maior eficácia dos resultados pretendidos.
Entendemos assim porque a questão da violência é um conflito natural entre ética e política: a
primeira não é operacional, não visa resultados, embora seja um meio para atingirmos a har-
monia social; a segunda é prática, objetiva e visa à eficiência máxima dos meios empregados.
Durante o regime nazista na Alemanha (1933-45), em nome do desenvolvimento indus-
trial e da resolução da crise econômica, foram praticados terríveis abusos da violência por
parte do governo. A falta de sentimento nacionalista e de comprometimento com o Estado
totalitário, acusação feita pelos nazistas a ciganos, judeus, testemunhas de Jeová, entre
outros grupos minoritários, serviu como argumento para que se desconsiderassem princí-
pios morais e se abusasse da força. Os trabalhos forçados e a pena de morte impostos aos
perseguidos nos campos de concentração permaneceram, todavia, ocultos à maior parte
da população alemã da época. Transparência política é uma exigência da ética. A violên-
cia praticada de forma oculta e negada nunca pode ser aceita pela moral, mas a pena de
morte ainda é adotada e justificada eticamente em muitos países.
Baseado nas ideias de uma raça superior, o regime nazista realizou inúmeros experimen-
tos, ditos científicos, com grupos considerados impuros ou inferiores, como as minorias per-
seguidas a que nos referimos ou anões, pessoas com Síndrome de Down etc. O médico Josef
Mengele, conhecido como o Anjo da Morte, e outros médicos como Carl Clauberg, Aribert
Heim, cometeram diversas atrocidades com suas cobaias humanas. Na tentativa de criar a
raça perfeita, por exemplo, injetavam tinta azul no olho de suas vítimas.
Alguns experimentos resultaram em importantes contribuições para o conhecimento
científico. Podemos citar a descoberta da relação entre o tabagismo e alguns tipos de
câncer, o desenvolvimento de fertilizantes, bem como de drogas contra bactérias e vírus.
Porém, a maneira como esses resultados foram obtidos não foi orientada no que há de
mais importante para a ciência, o respeito à ética. No estudo sobre o efeito do frio no
corpo (hipotermia) prisioneiros eram colocados em tanques com água gelada por 3 ho-
ras; sentiam seu corpo congelando até que a morte chegava. Alguns eram reanimados e
colocados novamente a temperaturas baixas.
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A ciência nazista era pautada na higiene racial e pregava a eliminação de genes não aria-
nos entre o povo alemão. Devemos ressaltar que os médicos que realizavam esses experimentos
eram pessoas formadas em escolas tradicionais e respeitadas da Europa. Cabe então pergun-
tar: afinal, a ciência pautada sob um regime tão desumano é justificável e merece credibilidade?
Alguns cientistas querem usar os dados obtidos nesse período em suas pesquisas atuais.
O professor Robert Pozos, da Universidade Estadual de San Diego, estuda o efeito do frio
no corpo humano a fim de elaborar a melhor maneira de reanimar pessoas congeladas.
Porém, encontra um problema: seus voluntários podem morrer se a temperatura corpórea
baixar demais. Assim, a única fonte de dados conhecida sobre pessoas nessas condições são
os experimentos nazistas. Seria ético utilizá-los? Muitos defendem que não, pois esses expe-
rimentos causaram dor, humilhação, mortes terríveis e careceram de parâmetros científicos.
Pozos acredita que para salvar vidas esses dados devam ser usados.
As revelações e os julgamentos dos experimentos nazistas provocaram debates que culmi-
naram na criação do Código de Nuremberg. Ele norteia as diretrizes éticas na experimen-
tação com seres humanos, preservando a dignidade, a autonomia e a integridade física dos
voluntários envolvidos nas pesquisas, objetivando evitar abusos.
◄ 30 ►
Com a ascensão do governo nazista e a caça aos judeus, Einstein teve seus escritos
queimadose começou a criticar o regime com vigor. Um ponto polêmico de sua bio-
grafia é a Carta Einstein-Szilárd, em 1939, dirigida ao então presidente dos Estados
Unidos, Franklin Roosevelt. No documento assinado por Einstein e redigido pelo hún-
garo Leó Szilárd, os físicos informavam sobre a possibilidade de construção de bombas
atômicas na Alemanha, país que era líder na Física Nuclear. Sugeriam que os EUA
também tomassem a dianteira nestas pesquisas. A carta é considerada uma das origens
do Projeto Manhattan, através do qual foram construídas as bombas lançadas sobre
Hiroshima e Nagazaki. Einstein não trabalhou no projeto, mas morreria arrependido
de ter assinado a referida carta.
Portal do professor Carlos A. Santos, do Curso de Física da UFRG: http://www.if.ufrgs.br/~cas/
BIERMANN, Richard. Gigantes da Física. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
◄ 31 ►
Movimento hippie, arte contemporânea e pacifismo
“Make Love, not war!” –
Esse lema do movimento hi-
ppie representa bem como o
corpo humano foi trabalhado
de maneira política por uma
geração de jovens ocidentais.
Ao defender o amor livre, a
juventude da época fazia, ao
mesmo tempo, um repúdio à
guerra e propunha a liberta-
ção de alguns princípios éticos
que regiam a sociedade em
meados do século XX. Assim, a
pregação de “paz e amor” re- Yoko Ono e John Lennon no Amsterdam Hilton Hotel, em 25
vela uma contestação da guer- de março de 1969.
ra e da rigidez moral. Fonte: Nationaal Archief, Den Haag, Rijksfotoarchief: Fotocollectie
O casal John Lennon e Yoko Algemeen Nederlands Fotopersbureau (ANEFO), 1945-1989 - nega-
tiefstroken zwart/wit, nummer toegang 2.24.01.05, bestanddeelnum-
Ono se destacou na luta paci- mer 922-2302 Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/Bed-In
fista dos anos 1960 e 1970. - Acesso: 27/08/2013.
Em 1969, aproveitaram-se da
repercussão na mídia do seu casamento para organizarem em sua lua-de-mel uma ma-
nifestação contra o alistamento para a Guerra do Vietnã. O “Bed-in for Peace”, como
ficou conhecido, consistiu em receberem a imprensa mundial na suíte em que estavam
hospedados (primeiro em Amsterdã, depois em Montreal) para defenderem que ao
invés dos jovens dos EUA se alistarem, deveriam ficar em suas camas – “Don’t go to
war! Stay in bed!”.
Além de compor a canção “Imagine”, considerada um manifesto pacifista e uma das
canções mais gravadas e tocadas em todo o mundo, John Lennon produziu muitas outras
composições com esta temática após romper com o grupo “The Beatles” e ir morar com
Yoko Ono no EUA. Uma das canções produzidas na frutífera parceria do casal foi “Happy
Xmas (War is over)”, lançada no Natal de 1971. Essa foi a culminação de dois anos de
ativismo pacifista do casal, que organizou manifestações em doze cidades do mundo com
outdoors que diziam “WAR IS OVER! If You Want It – Happy Christmas from John & Yoko”.
◄ 32 ►
Muitos conflitos e guerras civis envolvem minorias, sobretudo as étnicas e religiosas.
O Brasil foi constituído por grupos étnicos distintos, cuja convivência social foi atravessada
por conflitos e preconceitos, propiciando, sobretudo, o desaparecimento de alguns grupos in-
dígenas. Mas essa é uma situação comum a outras nações em diferentes contextos históricos.
No pós-Guerra Fria, emergiram conflitos de origem étnica e religiosa que adquiriram
importância no sentido de explicar disputas por territórios ou por uma determinada ordem
política. Esses conflitos podem envolver dois ou mais Estados – como a Guerra entre Armênia
e Azerbaijão pela posse de Magorno-Karabakh, entre os anos de 1988 e 1994 – ecaracte-
rizam-se como separatistas quando uma minoria ambiciona um território específico do país
ao qual pertence. Um exemplo disso é o movimento separatista basco na Espanha, que foi
comandado pela organização clandestina Euskadi Ta Askatasuna (ETA) ou “Pátria Basca e
Liberdade”, criada em 1959. No ano de 2011, o ETA divulgou uma nota oficial declarando
o fim de suas atividades armadas.
Existem ainda as guerras civis ou movimentos guerrilheiros objetivando a mudança de
regime em inúmeros países. Na Argélia, desde 1989, no contexto da nova Constituição, a
Frente Islâmica de Salvação reivindica a implantação do Estado teocrático. Outros conflitos
e guerras civis têm como pano de fundo a oposição entre segmentos da religião muçulmana,
como os sunitas, xiitas, alauítas e salafistas. Destacam-se como mais sangrentos os casos da
Síria e do Egito. Os interesses religiosos em disputa ficam, no entanto, ofuscados na mídia,
posto que as revoltas nesses países são apresentadas somente a partir de seus questionamen-
tos ao autoritarismo político, como parte da chamada “Primavera Árabe”.
Importante ressaltar que tais conflitos não ocorrem apenas entre povos com distintas reli-
giões, mas também podem surgir entre grupos de uma mesma religião. Assim como presen-
ciamos embates entre cristãos católicos e protestantes desde a Europa moderna até o Brasil
contemporâneo, o mundo islâmico também é marcado por conflitos entre minorias e grupos
religiosos majoritários. Desde 2011, a Síria vive uma guerra civil com forte componente re-
ligioso. Bashar al-Assad, presidente do país, é alauíta, enquanto a maioria da população é
sunita. Já o conflito no Egito não é explicado apenas pela questão religiosa, pois há quatro
grupos distintos em luta: as forças armadas, os liberais, os salafistas e a irmandade mu-
çulmana. Em 2011, o ditador militar Hosni Mubarak foi deposto, seguindo-se a eleição de
Mohammad Morsy, da irmandade muçulmana. Em 2013, o governo de Morsy também foi
destituído, contando com a mobilização dos três primeiros grupos, e assumiu o poder uma
junta militar. A irmandade muçulmana tem exercido, desde então, um papel desestabilizador
em relação ao regime implantado pelas forças armadas.
◄ 33 ►
Ao que se indica, utilizou-se o gás “Sarin”, um composto organofosforado altamente
tóxico. O contato com o gás causa vômito, sudorese, dificuldade respiratória, náuse-
as, dores de cabeça, fraqueza e espasmos musculares (enfraquecimento dos múscu-
los), além da incapacidade de sustentar funções básicas como respiração e batimen-
tos cardíacos, levando a óbito. É absorvido através dos olhos, pele, e também pela
ingestão ou inalação. Em concentrações de 200 mg de sarin/m³, age muito rápido
no organismo causando a morte em poucos minutos.
Para que se tenha ideia da potencialidade dessa arma química, o Brasil é sig-
natário de um acordo internacional que proíbe a fabricação ou utilização de tal
substância, inclusive para fins científicos, em seu território. A questão da proibição
do uso de certos compostos, mesmo que para fins científicos, pode acarretar certa
vulnerabilidade ao país. Em contrapartida, gera uma imagem de país politicamente
correto frente ao cenário mundial.
De todo modo, cabe o seguinte questionamento: qual seria o limite da ética
científica no uso de compostos extremamente letais em prol do desenvolvimento ou
socorro da sociedade?
Outra fonte de conflitos que envolvem religião e etnia no interior de comunidades na-
cionais é o fenômeno da xenofobia, palavra de origem grega que significa antipatia ou
aversão a pessoas e objetos estrangeiros, estranhos à realidade de determinado grupo
social. Como o preconceito, a xenofobia acontece quando há racismo ou aversão em re-
lação à cultura, à opção sexual etc. O apartheid na África do Sul (1940-1990) resultou
de um movimento de segregação racial, no qual limitaram-se os direitos da maior parte
da população, que é negra. Mesmo após o término desse regime, verificam-se na África
do Sul, os movimentos xenofóbicos, agora não somente devido à cor da pele, mas tam-
bém contra imigrantes de países vizinhos.
Com o advento da globalização, em que o intercâmbio de pessoas e mercadorias se inten-
sifica, os movimentos xenofóbicos contra imigrantes tornaram-se mais frequentes em países
desenvolvidos, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, posto que esses migrantes,
em geral muito pobres, são vistos como concorrentes no mercado de trabalho e nos benefí-
cios sociais que esses países podem oferecer. Além disso, a aversão aos imigrantes árabes,
sobretudo os mulçumanos, deve-se ao fato de que estes são portadores de uma religião e de
costumes distintos daqueles da cultura ocidental.
No Brasil, pode-se também observar a xenofobia em sua história. No contexto da
Independência, por exemplo, o sentimento de aversão era comum em relação aos portu-
gueses. Com a entrada de outros imigrantes no final do século XIX e início do XX, a discri-
minação passou a atingir também outros grupos: espanhóis, italianos, sírios, japoneses
etc., que disputavam o mercado de trabalho com os brasileiros. As acusações contra
estrangeiros considerados perturbadores da ordem da República levaram a medidas re-
pressoras, como as sucessivas leis do senador Adolfo Gordo, a partir de 1907, determi-
nando a deportação de militantes anarquistas de outras nacionalidades. Recentemente,
com os fluxos globalizados, a discriminação que sofrem os trabalhadores estrangeiros
é forte, mesmo quando se trata de segmentos mais qualificados. Isso se evidenciou, ao
longo de 2013, com a reação que tiveram as associações médicas em torno do Progra-
◄ 34 ►
ma Mais Médicos, pautado para o preenchimento de vagas ociosas no Sistema Único de
Saúde (SUS) no interior do Brasil por profissionais estrangeiros, sobretudo cubanos.
Muitas vezes, a aversão ao estrangeiro tem origem em um discurso nacionalista ou está
associada a este. O nacionalismo consiste em uma ideologia e movimento político, que expri-
mem a crença na existência de certas características comuns em uma comunidade, nacional
ou supranacional, e o desejo de modelá-las politicamente. Não existe nada de amoral no
amor à sua terra pátria ou ao seu povo, manifesto atualmente de maneira muito forte nas
Copas do Mundo de futebol, por exemplo. Porém, quando este nacionalismo leva a práti-
cas xenofóbicas, não pode ser tolerado do ponto de vista ético. No início do século XX, o
ultranacionalismo emerge associado com teorias racistas, como na Alemanha (o nazismo
apresentava-se ao povo alemão como nacional-socialismo), na Itália (fascismo) e no Japão.
Desse ultranacionalismo, decorreram os mais variados abusos, que observamos no item 2.1.
◄ 35 ►
Vale destacar que movimentos dessa natureza originaram um projeto de lei, de iniciativa
popular, que tenta barrar ou dificultar a candidatura de pessoas com antecedentes crimi-
nais ou que estejam respondendo a processo judicial. Surgiu, então, a Lei da Ficha Limpa5,
julgada constitucional pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), em fevereiro de
2012, e que passou a valer nas eleições municipais do mesmo ano. É importante dizer que
a lei foi um grande avanço para o processo eleitoral no nosso país, mas que, sozinha, não
consegue garantir a organização de eleições totalmente limpas. Por isso, é necessário que
toda a sociedade fiscalize a atuação dos ocupantes de cargos públicos e se informe sobre
a vida pregressa do candidato em quem pretende votar.
Outra questão recorrente nos noticiários brasileiros são as denúncias de autoridades acu-
sadas de improbidade administrativa. Trata-se de uma imoralidade qualificada, isto é, uma
conduta antiética praticada apenas por quem ocupa cargo público, seja servidor efetivo ou
não, contra a gestão pública. A lei de improbidade administrativa6especifica as punições
aplicáveis ao agente que, no exercício da sua função ou cargo, viole os princípios básicos da
administração estatal, tais como moralidade, impessoalidade, publicidade dos atos adminis-
trativos e legalidade, descritos no artigo 37 da Constituição Federal.
Um elemento relacionado à improbidade administrativa é o nepotismo. Como vimos, a
moralidade deve ser uma das qualidades inerentes a qualquer administração do bem públi-
co, especialmente quando a política é o pano de fundo das relações entre os indivíduos. Por
definição, o nepotismo ocorre quando um gestor público aproveita a sua posição e nomeia
parentes para funções qualificadas na cúpula da gestão. É o exemplo mais do que conhecido
de um prefeito que nomeia o seu irmão para o cargo de secretário de obras do município ou
a esposa para a secretaria de educação etc.
Cabe, assim, destacar o aumento da importância do papel da mídia como mediadora dos
grandes debates de interesse público. Em alguns casos, essa mediação é positiva, quando os
desvios de comportamento de políticos e autoridades são denunciados pelos diversos veículos
de comunicação. Por outro lado, as grandes corporações do meio da comunicação social,
muitas vezes exploram esses escândalos políticos, não necessariamente para prestar um ser-
viço de interesse da população, mas para respaldar interesses de grupos dominantes. Isso
fica claro quando, não raro, constatamos o modo como jornais e emissoras de TV qualificam
os ativistas brasileiros como vândalos, enquanto tratam as manifestações em outros países
de forma positiva. Alguns críticos analisam essa prática comparativamente ao contexto da
ditadura militar, quando militantes de esquerda eram classificados e perseguidos como terro-
ristas. Essa tensão passou a ser mais evidenciada a partir da intervenção de diversas formas
de mídias alternativas que ganham espaço com a divulgação de pensamentos críticos e a
veiculação imediata da informação através dos meios virtuais. É importante que não rece-
bamos passivamente o que é veiculado pela grande imprensa. Fiscalizar o papel da mídia,
cobrando transparência e pluralidade faz parte do exercício da cidadania.
Nesse sentido, é preciso que se note a importância do papel daqueles que trabalham nos
veículos de comunicação: a simples escolha da pauta a ser publicada pode ser considerada
um ato político. Há no Brasil, uma falsa ideia de que a boa imprensa é neutra. Porém, essa
neutralidade é uma ilusão, já que essa área também é atravessada por relações de poder que
nos impõem o consumo de notícias previamente selecionadas. Ao longo de nossa história,
◄ 36 ►
a grande mídia foi responsável por influenciar diversas decisões políticas importantes. Na
imprensa, e até mesmo no nosso dia a dia, a escolha das palavras remete a diversos posi-
cionamentos políticos. Há, portanto, uma grande diferença entre dizer “Fui assaltado por um
trombadinha” ou “Fui assaltado por uma criança em situação de rua”. Não se trata de nos
adequarmos ao politicamente correto, mas de perceber que nossas posições políticas, como
as dos diversos meios de comunicação, passam pelo discurso.
Em função de distorções, muitas vezes alimentadas pelo discurso midiático, é comum a
reprodução da opinião generalizada e apressada por grande parte das pessoas sobre gover-
nantes e representantes: “todo político é corrupto”. É claro que esse julgamento não reflete a
realidade, pois existem pessoas eticamente comprometidas na política. Contudo, as inúmeras
denúncias de corrupção, que envolvem desvio de dinheiro público, apropriações indevidas,
superfaturamento de contratos com empreiteiras e fornecedores, pagamento de propina a au-
toridades, tráfico de influência etc., reforçam a ideia de que não existe seriedade na forma de
fazer política no Brasil. A crise ética instalada atualmente no meio social encontra base numa
cultura política marcada por práticas patrimonialistas, coronelistas e clientelistas, que sempre
reforçou o hábito da preservação do privilégio e do querer “se dar bem” em qualquer situação.
Associada à ideia de falta de honestidade, a corrupção é uma realidade que, obviamente,
supera os limites geográficos da capital federal e alcança a vida de qualquer pessoa, seja no
trânsito ou no “jeitinho” para se conseguir uma vantagem, por exemplo. Este quadro fica agrava-
do, quando o mesmo sujeito reproduz no seu dia a dia, a má-fé que tanto critica nas ações dos
políticos. Consequentemente, além do problema ético nas relações interpessoais, uma parcela da
população do nosso país também é marcada por um comportamento que prefere não enxergar
as pequenas “exceções” ao modelo ideal de honestidade, desde que ninguém fique sabendo.
◄ 37 ►
vale da ética para solucionar problemas. Esse modo de resolver problemas cotidianos
revela a “malandragem” como uma opção individual de proceder perante a sociedade.
A postura do indivíduo frente à ética nacional muitas vezes não está em consonância
com as leis prescritas para o país. A sociedade brasileira possui matriz aristocrática,
ainda que as posições de poder possuam certa relatividade no país. Para exemplificar,
podemos tomar a interrogativa autoritária clássica: “você sabe com quem está falando?”.
Este mecanismo distingue pessoa onde antes só havia o indivíduo e define suas posições
no sistema social, revelando uma separação radical e autoritária entre duas posições
sociais, real e teoricamente, diferenciadas. Essa expressão foi discutida com propriedade
pelo antropólogo Roberto DaMatta em sua obra Carnavais, Malandros e Heróis (1997).
http://www.youtube.com/watch?v=MZZdNxETx8g Acesso em: 21 ago. 2013.
http://www.ceap.br/material/MAT20082012200620.pdf Acesso em: 21 ago. 2013.
◄ 38 ►
Considerações finais
É bem verdade que as tensões naturais entre ética e política, como os excessos de violência
e a corrupção, sempre acompanharam o desenvolvimento tecnológico e material da humani-
dade. Por sua vez, as utopias surgidas das reflexões de filósofos, transformadas em bandei-
ras sociais, serviram como princípios morais para as regras de sociabilidade, viabilizando
grandes avanços, e ainda podem nos servir de inspiração para ousarmos forjar novas uto-
pias que nos orientem na luta pela redução ou eliminação dos desvios verificados ainda hoje.
A atualidade de se pensar a ética está em buscar essa orientação, em construir um farol
que nos indique o caminho que precisamos percorrer em meio às tormentas e à escuridão
para estabelecermos uma política e uma economia amparadas em princípios morais univer-
salmente reconhecidos. Para isso, não podemos abrir mão da esperança, dos sonhos e de
acreditar em utopias. Por mais que a política a que estamos habituados pareça muito afas-
tada de qualquer princípio ético, não podemos deixar de lutar por uma política pautada na
transparência e que rejeite a corrupção como um elemento natural das relações de poder.
Os acordos parlamentares são parte integrante da democracia brasileira, uma vez que a
composição de uma maioria legislativa é condição necessária ao funcionamento do nosso
sistema presidencialista. Pode-se dizer que é preciso certo “jogo de cintura” para conseguir
governar. A troca de votos de vereadores, deputados e senadores por investimentos ou gastos
públicos de interesse político pessoal pode merecer a aprovação da opinião pública, caso
esta tenha conhecimento do preço e das condições acordadas. No entanto, não podem ser
aceitos acordos feitos às escondidas, uma vez que o encobrimento das transações só pode
significar a não aceitação das condições do acordo pela moral.
Já foi dito que a política não acontece somente nos grandes espaços institucionais nem é
realizada apenas por políticos profissionais. A falta de transparência nos acordos que faze-
mos com colegas no ambiente de trabalho, quando precisamos nos ausentar ou de uma subs-
tituição não permitida pelas regras contratadas, demonstram que uma visão mais elástica
da moral não é privilégio da classe dirigente. É comum vermos ser reproduzida uma lógica
segundo a qual a sociedade brasileira estaria naturalmente dividida entre “malandros” e
“manés”, e caberia a cada um de nós escolher o que prefere ser.
Além disso, contribuímos para a falta de transparência no próprio meio político quando
premiamos com o nosso voto aquele candidato que utiliza uma grande dose de mentira elei-
toral. De fato, um candidato cujo excesso de realismo e sinceridade beire o pessimismo não
será capaz de arrebanhar muitos votos numa eleição. No entanto, não podemos deixar de
exigir que as promessas de campanha sejam verdadeiras, fundadas em valores amplamente
aceitos e utopias sonhadas coletivamente.
Outro aspecto a ser considerado na formulação de uma ética para o século XXI são os
sistemas econômicos. Esses precisam ser projetados levando em conta a importante função de
distribuição das riquezas geradas pelo conjunto da sociedade e não ter sua eficácia medida
apenas enquanto capacidade de concentrar e multiplicar recursos nas mãos de poucos indiví-
duos. Não é justificável do ponto de vista ético uma política econômica que não se preocupe
com a coletividade.
Uma das questões que mais chama nossa atenção e demanda uma mudança urgente de
postura da comunidade internacional está relacionada ao consumismo. Os avanços tecnoló-
gicos da atualidade permitiriam que lutássemos por uma redução na jornada de trabalho, o
◄ 39 ►
que já ocorreu em outros momentos do desenvolvimento capitalista. Por exemplo, a redução
da jornada de trabalho nas repartições públicas do México para 6 horas diárias (e 30 horas
semanais) proporcionou um maior tempo livre para os trabalhadores. Cabe a cada um esco-
lher o que fazer deste tempo conquistado: trabalhar mais para acumular mais ou dedicar-se
ao “ócio criativo”, à formação intelectual e à educação moral. Além disso, a jornada de tra-
balho permitiu a criação de dois turnos nas repartições, que passaram a funcionar 12 horas
diárias, atendendo mais pessoas e gerando mais empregos.
Vale ressaltar que na ilha de Utopia, conforme concebida por Thomas More, mesmo ha-
vendo um desenvolvimento muito menor das forças produtivas, a jornada de trabalho era de
seis horas diárias. No entanto, esta luta fica em segundo plano na maioria das reivindicações
trabalhistas contemporâneas. O hiperconsumo, estimulado desde a infância a partir de pro-
pagandas enganosas e apelativas veiculadas pela mídia, leva os homens a focarem a luta
por um maior salário que os permita consumir mais.
Assim como os diversos pensadores da história ocidental fizeram em suas épocas, algu-
mas pessoas se dedicam atualmente a reflexões sobre princípios éticos que orientem a polí-
tica no tempo presente. Um exemplo é o político e engenheiro econômico Roberto Saturnino
Braga, que em um livro chamado Ética e política, procura pontuar algumas questões que
sirvam como orientação para a construção de uma ética para o século XXI: a) o aperfeiçoa-
mento da democracia a partir da participação direta do povo em decisões importantes e na
fiscalização da política; b) a intolerância com relação a desigualdades estruturais, que geram
humilhações e violências; c) o desenvolvimento de uma economia mista, que faça a mediação
entre a competição e a cooperação; d) a eliminação do desemprego e da miséria; e) o resga-
te dos valores humanísticos para uma educação que não estimule apenas a produtividade e a
eficácia; e f) o fim do flagelo da guerra e da destruição humana e ambiental que ela provoca.
◄ 40 ►
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