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P rojeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(¡n memorísun)
APRESENTAQÁO
DAEDipÁOON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.
Eis o que neste site Pergunte e
Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.
Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.
Pe. Estevao Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.
A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
responderemos
Z) SUMARIO

500 Anos
</>
UJ
■O 'A Igreja, minha Mae"
t-
v> A Virgindade Perpetua de Maria Santi'ssima
UJ

^ Pecado Original: Que É?


o
-^ Biblia e Homossexualismo

< A Associacao dita "Obra dos Anjos"

m 0 Tempo: Valor Básico


_i

en A Nulidade do Casamento da
O Princesa Carolina de Monaco
oc
o.

ANO XXXIII OUTUBRODE1992 365


PERGUNTE E RESPONDEREMOS
OUTUBRO 1992
Publicagáo mensal
N9 365

SUMARIO
Oirator-Responsável:
Estévao Bettencourt OSB 500 Anos! 433
Autor e Redator de toda a maléna Frente a mal-entendidos:
publicada neste periódico "A Igreja, minha Mae" 434
Urna Palavra do Papa:
Dicolor Administrador:
A Virgindade Perpetua de
0. Hildebrando P Mamns OSB
María Santíssima 441

Administracao e distnbuicao: Sempre em foco:


EdicSes Lumen Christi Pecado Original: Que é? 447
Dom Gerardo. 40 - 5? andar. i/50l Estranho par:
Tel.:(021) 291 7122 Biblia e Homossexualismo 456
Caixa Postal 2666
Advertencia:
20001-970 -. Rio de Janeiro - RJ
A AssociacSo Dita
Improssáo o Encademacáo "Obra dos Anjos" 462

Sabedoria humana e crista:


O Tempo: Valor Básico 467
Declararlo oficial:
"MARQUES-SARAIVA'
A nulidade do casamento da
GRÁFICOS E EDITORES SA
Tets (02tK73-9i9Í - ÍT3-9447
Princesa Carolina de Monaco 475

NO PRÓXIMO NUMERO:

"Muito além do Amor" (D. Lapietre). — O Homossexualismo pe-


rante a Le¡ Civil. - "O Sexo na Fogueira" (Isto É). — "O Gosto
do pecado" (A. Mendes de Almeida). — 0 Santo Graal.

COM APROVAQAO ECLESIÁSTICA

ASSINATURA ANUAL (12 números) de P.R.: Cr$ 40.000,00 - n? avulso ou atrasadoCr* 4.000,00

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Sendo renovacao, anotar no VP nome e endereco em que está recebendo
a Revista.
500 Anos!
Sata de 12 de outubro assinala o quinto centenario da descoberta da
fíérica e da ¡mplantacáo do Evangelho em nosso continente. A Boa-Nova
de Jesús Cristo, que renovou a face da Europa nos séculos V/VI, quando en
tregue aos germanos, veio marcar em nossas térras o inicio de nova era.
Conscientes disto, nao podemos deixar de dar gracas a Deus.

Todavía, se a data aniversaria suscita gratidao e alegría, ela é também


um desafio... Desafio ás populacoes do continente, para que saibam manter
as tradicoes cristas que bercaram a América. Nao somente as ideologías
ameacam a autenticidade do Cristianismo entre nos, mas também a falta de
senso ético e de f idelídade á Lei de Deus, como se verifica especialmente em
nosso Brasil. Precisamente neste ano do quinto centenario se torna patente
a gravidade de tal lacuna e das infelizes conseqüéncias que ela acarreta. Ou-
ve-se um clamor geral em prol de honestidade e dignidade; o povo brasileiro
sofre, e sofre profundamente, em última análise por causa da corrupgao mo
ral que provoca a destruicáo da vida nacional, a dilapidacao do patrimonio
espiritual e material e a desercao de muitos jovens e de personalidades de
valor.

É mais do que compreensível o brado por uma restauracao da Ética


em nosso país. A Ética, porém, exige sacrificios, de modo que ela precisa
de fundamentacao sólida e firme para poder motivar a renuncia á cobica, ao
egoísmo e ás paixoes que infestam o país. Ora somente Deus e a Rel¡giá*o
podem oferecer esse sustentáculo seguro aos ditames moráis.

Observava o ateu Jean-Paul Sartre, fazendo eco a Dostoievski: "Se


Deus ná"o existe, tudo é permitido". Com estas palavras quería refutar os po
sitivistas, que, embora negassem a existencia de Deus, apregoavam honesti
dade, honra e brío em termos absolutos e indiscutíveis. Respondíales Sar
tre que, se nao há um Ser Absoluto, fundamento de uma Ética válida para
todos os homens, o homem passa sorrateiramente a ocupar o lugar de Deus
e se relativízam os valores éticos; cada individuo, consciente ou inconsciente
mente, se torna para si o referencial da sua conduta; cada qual há de julgar
licito o que Ihe convém, ¡licito o que nao Ihe convém. Donde o dilema: ou
se admite e reverencia a existencia de Deus, o Valor Absoluto em virtude do
qual o homem se dispoe ao sacrificio necessário para renunciar ao egocen
trismo, ou se nega a existencia de Deus e, ao mesmo tempo, se tornam vá"os
todos os clamores em prol da restauracao da ordem. Possa a celebracao do
quinto centenario tornar este dilema muito vivo á consciéncia do mundo
moderno e, especialmente, do nosso Brasil!

"Volta ás tuas origens. Térra de Santa-Cruz! Cada personalidade se


torna mais auténtica sempre que retorna ao seu berpo e aos seus principios!".

E.B.

433
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS"
ANO XXXIII - N9 365 - Outubro de 1992

Frente a mal-entendidos:

"A Igreja, minhaMáe"

Em símese: O Cardeal Hanri de LubacS.J. considera o misterio da Igre


ja, nem sempre devidamente entendida e estimada, numa reflexao objetiva
e serena. Retoma o apelativo bíblico de Igreja nossa M3e (cf. Ap 12,1-17;
Gl 5¿6; ICor 4,15).... Mae porque gera os cristSos para a vida definitiva
mediante o Batismo e os alimenta mediante o PSo da Palavra e o PSo da
Eucaristía. Foi a Igreja que guardou íntegra a mensagem da fé através dos
sáculos, preservando* da deterioracao das heresias. Até nossos dias verifica
se que quem abandona a Igreja, acaba perdendo também o próprio Cristo
(ver as mais recentes derivacoes do protestantismo, como os Mórmons as
Testemunhas de Jeová, os Amigos de Jeová, a Ciencia Cristi...).

As falhas ocorrentesna historia da Igreja, devidas á fragilidade dos ho-


mens que a integram, nao destroem a grandeza e a nobreza da Igreja. Os
flinos que criticam a Igreja, podem encontrar em grandes genios do passado
o modelo de comportamento humilde e fiel á S. Igreja; tal foi, entre outros
o de S. Agostinho. Em suma, sSo inseparáveis Cristo e a Igreja que Cristo
fundou e entregou a Pedro e seus sucessores. "Onde está'a Igreja, a( está o
Espirito de Deus". "Na medida em que alguém ama a Igreja, é que possul
o Espirito Santo" (S. Agostinho).

■ü-h-ti

Os jomáis t§m publicado declarares de um famoso teólogo que pediu


reducáo ao estado laical, acusando a Igreja de ser "cruel e sem piedade, vigi
lante a ponto de coibir atividades e tarefas em favor dos pobres...".

O bom católico nao pode deixar de se entristecer por tais invectivas.


Ele sabe que sSo passionais, emotivas e nato davem ser tomadas como autén-
i

434
"A IGREJA, MINHAMÁE"

ticas conceituacoes. Para nos darmos contas disto, é oportuno citar, entre
outros, o caso do Pe. Henri de Lubac S.J., que na década de 1950 sofreu res-
tricoes por parte das autoridades eclesiásticas, dado que enveredava por ca-
minhos de uma "nova teología"; esta podia prestar-se a mal-entendidos na
época, embora na"o fosse errónea. De Lubac soube submeter-se filialmente ás
intervencoes da hierarquia, dando provas de grandeza de alma e genuino es
pirito crístáfo. Em conseqüéncia foi nomeado Cardeal por Joao Paulo II e
morreu em 1991 em plena comunhao com a Igreja.

Revolvendo com olhar objetivo o misterio da Igreja, de Lubac deixou-


nos páginas admiráveis de fé e amor ao sacramento do Cristo prolongado.1
Dessas páginas extrairemos e publicaremos, a seguir, alguns trechos mais sig
nificativos, que vém a ser a mais eloqüente réplica ás palavras passionais de
cristáfos dissidentes.

Sao dizeres do Cardeal de Lubac, entrecortados por subtítulos da nos-


sa Redacao.

1. Cómo definirei a Igreja?

"Como apreender a Igreja?

Quanto mais o meu olhar procura adaptar-se, quanto mais afasto as


concepcSes engañadoras, quanto mais resplandece aos meus olhos a sua ver-
dade profunda - tanto menos sei como definir a Igreja.

Se Lhe pego que Ela mesma me revele a sua definicSo, eis que Ela me
fala com uma profusSo de imagens, tiradas da sua velha Biblia; bem sei que
estas nao sSo meras ilustracSes pedagógicas, mas sim alusoes a urna realidade
que ficará sempfe transcendental... para a minha inteligencia.

Todavía o meu olhar nao se enganou. Revelou-me algo anterior a toda


reflexSo e confirmado por toda reflexao. Esse algo, posso resumi-lo numa
palavra, a mais simples, a mais infantil, a primeira de todas: a Igreja é a mi
nha MSe. Sim; a Igreja, a Igreja toda, a das gerapóes passadas, que me trans-
mitiram a sua vida, os seus ensinamentos, os seus exemplos, os seus costu-
mes, o seu amor - e a de hoje;a Igreja toda, nfo somente a Igreja oficial ou
a Igreja docente, ou, como dizemos ainda, a Igreja hierárquica, aqueta que
traz as chaves que o Senhor Lhe confiou, mas mais amplamente, mais sim-

1 Ver a obra Paradoxe et Mystére de 1'EgHse. Aubier-Montaigne. París


1967. Traduziremos, a seguir, excerptos das pp. 9-29 desta obra.

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 365/1992

plesmente, a Igreja viva: aquela que trabalha e que ora, que atua e aue se re-
cothe, que se recorda e que procura; a Igreja que eré, espera e ama. .., a Igre
ja que se perpetua mesmo ñas épocas de decadencia, que se dedica, se sacri
fica. . . A Igreja inteira,... da qual tantos membros sao tao pouco conscien
tes do seu sacerdocio regio e da comunhío fraterna que eles constituem en
tre si. Nessa comunidade encontró meu sustento, minha forca, minha ale
gría. Essa Igreja é minha Mae. Foi assim que comecei a conhecé-la nos joe-
Ihos de minha máe carnal e foi assim que, em cada etapa da minha peregri
nacSo,. . . aprendí a melhor reconhece-la . . Esse apelativo Mae, o mais in
fantil, o prímeíro, é também aquele que melhor resume o conhecímento ad
quirido pelo adulto ou por quem, de algum modo, experimentou o que sao
os homens, e o que há dentro do homem...

A Igreja é minha Mae, porque Ela me gerou para a Vida. É minha Máe,
porque Ela nao deixa de me alimentar e, por pouco que eu me preste, Ela
me aprofunda na Vida. E, se em mim a Vida ainda é frágil e trémula, fora
de mim eu a contemplei na forca e na pureza do seu borbulhar. Eu a vi, eu
a toquei, de modo indubitável, e posso tesmunhá-lo a todos.

Ougo todas as críticas que fazem á minha Mae; em certo días, meus
ouvidos ficam ensurdecidos. Nao quero dizer que sejam sem fundamento. Mas
diante das evidencias que acabo de mencionar, todas essas críticas, e todas
aquelas que se Ihes possam acrescentar, perderam para sempre a sua forga...

Felizes aqueles que aprenderam da sua má"e dasde a infancia a olhar


a Igreja como urna míe! Felizes, mais felizes. aqueles que a experiencia ...
confirmou nesse primeiro olhar! Felizes aqueles que foram um dia tocados
- e que o sá"o cada vez mais - pela ¡nconcebível novidade, a incoVicebível ri
queza, a ¡nconcebível profundidade da vida comunicada por essa Mae! ...

Com urna palavra: a Igreja é nossa Mae, porque Ela nos dá o Cristo.
Ela gera o Cristo em nos. Eta nos gera para a vida do Cristo. Ele nos diz como
Paulo dizia a seus caros corintios: 'No Cristo Jesús, mediante o Evangelho eu
vos gereil' (1 Cor 4, 15). Em sua funcao materna, a Igreja é essa Esposa glo
riosa e sem mancha, que o Homem-Deus fez sair do seu coracao transpassa-
do paré uni-la a Si no éxtase da Cruz e torná-la fecunda para sempre.

2. A Igreja e o Depósito da Fé

Cremos com Sao Paulo que nenhuma crise da historia nos separará de
Cristo. Mas esta seguranea nos vem precisamente da Igreja: Jesús está vivo
para nos. Mas em que areias se teria perdido a sua influencia viva, a apao do
seu Evangelho e a fé em sua Pessoa Divina, sem a continuidade visível da sua
Igreja? Se a primitiva comunidade crista", no fervor da sua fé e do seu amor,
i

436
"A IGREJA, MINHA MÁE"

nao tivesse sido o ambiente portador do Espirito que gerou os Evangelis


tas . . .; se de geracao em geracao essa comunidade nao se tivesse mantido
substancialmente idéntica, transmitindo o culto do seu Senhor; se em ca
da necessidade alguns homens da Igreja nao tivessem surgido como grandes
doutores, chefes intrépidos ou humildes testemunhas para manter no seu ri
gor enasuasimplicidade a letra do dogma inalterável (como fez no século III
o bom Papa Zeferino, pouco versado em metafísica, mas envolvido ñas espe
culares contraditórias de Hipólito, Noeto e outros), se os grandes Concilios
nao tivessem fixado para sempre a ortodoxia cristológica . . ., que seria o
Cristo hoje para nos? 'Sem a Igreja, o Cristo se evapora se esfarela ou se
anula' (Teilhard de Chardin). - E que seria a humanidade privada de
Cristo?1

Saiba-o ou nao, a humanidade precisa dele...

A Igreja é o sacramento de Cristo. É o canal pelo qual chegam ate nos


a luz e a forca do seu Evangelho. Ela é, em nossa historia, o eixo em torno
do qual se deve realizar a grande reuniao mística. A Jerusalém dos hebreus
nao era senao a pequeña capital de urna pequeña nacáo, sempre á mercé dos
poderosos imperios que a cercavam...

3. Os ataques á Igreja

A Igreja sofre o assalto, brutal ou insidioso. . . de forcas poderosas,.


forcas da carnee forcas do Espirito, que ás vezes parecem prontas para sufo-
cá-la ou miná-la ou desagregá-la. Herdeira espiritual da amiga cidade, verda-
deira Jerusalém, Ela nem por isto deixa de ser o Eixo privilegiado central...
em torno do qual deve finalmente encontrar-se tudo o que um dia há de ser
transformado, salvo, levado á plenitude da vida. A Ela se aplica a profecía do
Salmista:

'O Senhor conta glorias de ti, ó cidade de Deus:


'Eu recordó Raab e Babilonia entre os que me conhecem;
eis a Filistéia, Tiro e a Etiopia,
onde tal e tal homem nasceu'.

Mas de Sion será dito:


'Todo homem ali nasceu, e foi o Altfssimo que a firmou"
(SI 87 (86), 3-6)

lA experiencia ensina que, desde que se afrouxe o vinculo com a Igre


ja, a imagem de Jesús comeca a perderse. (Nota do tradutor).

437
6 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 365/1992

Ora, acontece que essa Igreja santa seja por vezes abandonada por
aqueles que tudo receberam déla, cegos aos dons recebidos. Acontece tam-
bém - e os dias atuais no-lo confirmam - que Ela seja injuriada por aqueles
que Ela continua a alimentar. Um vento de crítica amarga, generalizada e
sem inteligencia vem, por vezes, virar as cabecas e deteriorar os coracoes.
Vento que resseca, esteriliza, destrói, hostil ao sopro do Espirito. É entao
que, contemplando a face humilhada da minha Mae, eu hei de amá-La com
redobrado amor. Sem me entregar a réplicas, saberei mostrar que amo a
Igreja em sua forma de escrava. E, enquanto alguns se detém nos tragos que
envelhecem o seu semblante, o amor me fará descobrir nela, com muito
mais veracidade, as virtualidades, as atividades silenciosas, que Ihe asseguram
urna perpetua juventude, 'as grandes coisas que nascem em seu coracao e
que contagiaráo a térra' (Teilhard de Chardin)...

Infeliz de mim, se sob o pretexto de abertura ao mundo ou renovacáo,


eu me puser a adorar, como dizia Newman, vagas e pretensiosas ficcoes do
meu espirito em lugar do Filho que vive para sempre na sua Igreja; se eu
depositar minha confianca ñas novidades meramente humanas, cujo calor
momentáneo já nao é senao o de um cadáver prestes a desaparecer!... Pos-
sa eu compreender sempre que somente a minha fidelidade á Tradipfo da
Igreja (Tradicáto que nSo é um peso, mas uma forca) sera o dínamo de meus
empreendimentos audaciosos e fecundos!

4. Duas Testemunhas

A fim de corroborar estas reflexoes, refiro-me a duas testemunhas, que


invoco como intercessores.

'Recebemos o Espirito de Deus, diz-me o grande S. Agostinho, se


amamos a lireja. Somos reunidos pela carídade. se nos regozijamos por tra-
zer o nome de católicos e por professar a fé respectiva'. - Poucos homens
tiveram o genio intelectual, a experiencia íntima e a forte personalidade de
Agostinho. Poucos homens, se de fato os houve, foram, como ele, os pers-
crutadores do íntimo da pessoa humana, a tal ponto que ele modelou a
humanidade ocidental por varios sáculos. Poucos homens, também, sofreram
tanto quanto ele, na Igreja, por se depararem com a forma, de escrava, da
Igreja. Mas nenhuma grandeza individual, nenhum valor interior tem signifi
cado aos olhos de Agostinho, se criam obstáculo ao Dom de Deus, que vém
ao homern mediante a Igreja. Ele compreendeu que nenhum sofrimento
pode ser mais forte do que os vínculos da unidade católica. Quem pretenda
abalar essa unidade, comete um sacrilegio; só pode ser 'um falso amigo da
Esposa'; o auténtico Amigo da Esposa zela ciosamente, a comecar pelo seu
i

438
"AIGREJA, MINHAMÁE'

próprio comportamento, pela ¡ncorruptibilidade da Esposa. Ele sabe que o


criterio decisivo nao é a grande erudicáo nem a sabedoria mais profunda,
mas a grande obediencia e a profunda humildade. Agostinho o repete inces-
santemente. Ele quer apenas ser o homem da Igreja; prega incansavetmente a
unidade, a unidade que prevalece sobre toda tendencia á divisao, a unidade
que é amor e que vem a ser a expressao mais nítida do amor. Para Agostinho
como para Ireneu, 'onde está a Igreja, ai está o Espirito de Deus'. Diz-nos
ele: 'Na medida em que amamos a Igreja de Cristo é que temos o Espirito
Santo'.

E entre os homens da Igreja, meus país na fé, escolho um segundo in-


tercessor, muito diferente do genial Agostinho, um homem murto próximo
de nos, que nos chamamos 'o Bom Papa Joao'. ..Ele desconfiava de tudo
que é pretensfo e procura de auto-afirmapao e se precavía contra o inimigo
mortal que corrompe tudo o que nos fazemos. O amor e a fidelidade á Igreja
orientaram a sua vida".

Comentando...

0 belo texto do Cardeal Henri de Lubac S.J., em suma, quer lembrar


ao leitor que

1) a Igreja, conforme a linguagem bíblica mesma (cf. Ap 12,1-17; Gl


5,26; ICor 4,15), é nossa M5e..., Mae porque nos gerou para a Vida defini
tiva mediante o Batismo... Mae porque nos alimenta com o Pao da Palavra
e o Pao da Eucaristía. A essa MSe todo cristáfo deve ternura filial e incondi
cional; ele sabe que a maternidade da Igreja se deve nao á virtude dos ho
mens que a ¡ntegram, mas á presenca do Cristo nela latente..., presenga que
faz da Igreja algo de divino-humano ou o Grande Sacramento da salvacáo de
todos os homens.

2) A Igreja desempenhou, e desempenha, papel decisivo na preserva-


cao da mensagem de Cristo. Quem abandona a Igreja para fícar somente com
o Cristo transmitido pela Biblia, acaba perdendo também o Cristo, como de
monstra a historia do protestantismo; este, entregue ao subjetivismo de seus
"profetas", vai-se distanciando cada vez mais das fontes do Cristianismo,
chegando a negar a Divindade de Cristo e a SS. Trindade... Foi através dos
Concilios, assistidos pelo Espirito Santo, que a Igreja díssipou as contraía-
coes da fé, assegurando a pureza do Evangelho.

3) Se houve falhas humanas na historia da Igreja, estas nao destróem a


grandeza e a nobreza da Santa Mae Igreja. Nem justificam as injurias que
filhos e disidentes tém infligido á mesma. Pode alguém ser genial como in-

439
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS"365/1992

teligéncia e cultura e, ao mesmo tempo, guardar a humildade e a fé que rejei-


tam peremptoriamente toda ruptura da Igreja ou com a Igreja; tal fo¡ S.
Agostinho, foram tais outros muitos doutores... cientes de que "onde está
a Igreja, ai está o Espirito de Deus" e "na medida em que amamos a Igreja, é
que temos o Espirito Santo" (S. Agostinho).

A propósito vém as sabias ponderacoes de outro grande teólogo, o Pe.


YvesCongar O.P.:

"A Igreja é esencialmente uma comunháo. Nela existo participando


de uma vida que é comum a nos, proveniente da mesma Cabeca, da mesma
Alma, dos mesmos principios. Essa realidade concreta, que ná*o é limitada
pelo espapo e pelo tempo, me envolve, me carrega, me gera e me alimenta
em meu ser espiritual. Que seria eu, que seria a minha fé, que seria a minha
oracSo se eu estivesse reduzido a mim mesmo e deixado a sos em presenca
da Biblia? Alias, em virtude de que existiría uma Biblia? Tudo recebi da
Igreja e na Igreja; o que Ihe devo, é apenas uma ínfima restituicáo, toda tira
da do tesouro que a Igreja me comunicou. Sou apenas um momento de uma
vida ¡mensa que se personaliza em mim (e este aspecto pessoal é magnífico),
mas que me envolve e me ultrapassa, que me precedeu e que sob reviverá a
mim. Essa vida nao é coisa minha!" (Changements et Continuité dans l'Egli-
se, im La Franee Catholique, mars 1967).

YvesCongar observa sabiamente que nem a Biblia existiría se nao tives-


se sido bercada, conservada e transmitida pela S. Igreja!

DISSE O MONGE TEOTIMO.. .

"Pai, nffo... Francamente ná*o sou um homem de oracSo. Talvez Deus


me ten ha dado outros carismas, que eu poderia utilizar para o seu servico;
mas a oracáfo nSo é meu carisma. Enfastio-me, perco o meu tempo, quando
quero rezar; eu poderia fazer outra coisa mais útil." - "Que fariasT" pergun-
tou o Abade Samuel. - "N8o sei", respondeu Teotimo. - "E onde gosta-
rias de estar quando te aborreces na oracSo?" - "Também nSo seí", disse
Teotimo. - "Entao, afirmou Samuel, enquanto aguardas que Deus te mos
tré onde mdhor estarías e o que poderias fazer de melhor, reza".

440
Urna Palavra do Papa:

A Virgindade Perpetua de
Maria Santíssima

Em símese; Aos 24/05/1992 o Papa Joao Paulo II proferíu importan


te alocucSo em Cápua (Italia), encerrando um Encontró de Estudos, por
ocasiSo do 169 Centenario do Concilio regional de Cápua (391-392). S.
Santidade quis dissipar dúvidas atinentes á virgindade perpetua de Maria SS.,
frisando principa/mente a virgindade no parto, que é um dos pontos mais
discutidos do tema: Joao Paulo II retoma o testemunho de Concilios e da
Tradicao anterior, reafirmando que María "deu á luz verdadeira e original
mente o seu Filho", conservando sempre a integridade da carne.

Tal fato nio pode ser provado apoditicamente, mas pertence aos arti-
gos fundamentáis da fé. De certo modo é ilustrado porpassagens bíblicas do
Antigo Testamento, entre as quais a da sarca que ardia, mas nSo se consumia
(ver Ex 3¿s), as narrativas da natividade extraordinaria de Isaque, Sansao,
Samuel, JoSo Batista... (cf. Gn 17,17-22; Jz 132-7; ISm 1,1-23; Le 1,5-25).
Ademáis a valorízalo da virgindade de Maria nio deprecia a vocacao ma
trimonial, santificada por um sacramento próprío. A virgindade hoje pouco
estimada e vivenciada. será sempre dom de Deus, que Implica liberdade inte
rior para servir radicalmente ao Reino de Deus e ¡anear olhar muito perspi
caz sobre os bens transcendental.

■ti-tftt

A virgindade de Maria SS., Máe de Oeus feito homem, é ponto nevrál-


giqo no depósito da fé, para muitos cristaos. De modo geral, aceitam que
Maria tenha sido virgem antes do parto e haja concebido virginalmente. To
davía mais difícilmente acreditam que tenha permanecido virgem após o
parto.1 Quanto á virgindade no parto, há quem a rejeite como algo de im-

lA questio da virgindade de María após o parto coincide com a dos


"irmaos de Jesús". Na verdade, a boa exegese dos Evangelhos mostra que,
segundo a linguagem semita, estes eram primos de Jesús, isto é, filhos de
Cleofas ou Alfeu, IrmSo de Sao José, casado com urna certa mulher, de no-
me Maria; cf. Mt 27,56; Jo 19J5. A propósito ver: £ Bettencourt, Diálogo
Ecuménico, Ed. Lumen Christí, Caíxa postal 20001-970 Rio (RJ).

441
JO "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 365/1992

possível. Todavía a fé católica afirma a virgindade perpetua de María antes


do parto, no parto e após o parto. Retomando o testemunho da Tradícífo
antarior, o Papa Paulo IV em 7/8/1555 apresentou a perpetua virgindade de
María entre os temas fundamentáis da fé: "permaneceu María sempre virgem
antes do parto, no parto e depois do parto" (Denzinger-Schonmetzer Enchi-
ridionn9 1880(993]).

Tal verdade tradicional tem sido ampíamente debatida na bibliografía


teológica. Principalmente a virgíndade de María no parto vem questionada.
- Ora a fim de esclarecer os fiéis católicos, o Papa Joáo Paulo II quís pro-
nunciar-se sobre o assunto, com a autoridade de quem deve confirmar seus
irmaos na fé (cf. Le 22, 31 s). S. Santidade o fez aos 24/5 pp. por ocasilo
de urna visita pastoral á arquidiocese de Cápua (Italia). Encerrava-se entáo
um Encontró Internacional de Estudos, organizado pela Pontificia Faculda-
de Teológica Maríanum de Roma, em colaborado com o Instituto Supe
rior de Ciencias Religiosas de Cápua, por ocasiao do 16? Centenario do Con
cilio regional de Cápua (391-392).

Joao Paulo II proferíu entá*o urna alocucao muito significativa, abor


dando as questdes suscitadas em torno da temática. De tal pronuncia'mento
destacamos os tópicos mais salientes.

I. A Palavra do Papa

"Um Concilio Importante

2. Era o ano de 392. Em Roma, a cátedra de Pedro era ocupada pelo


Papa Sirfcio. Em Cápua celebrou-se um importante Concilio, que as fontes
históricas qualificam como plenarium (cf. I. D. MANSI, Sacrorum Concilio-
rum nova et amplissima Collectio, III. Cañones Conciliorum Ecclesiae Afri-
canae, can. 48, col. 738). pela participado dos Bispos provenientes de varias
regiSes do Ocidente, e pela gravidade das questdes que teve de enfrentar, en
tre as quais a composicío do cisma de Antioquia e o exame da doutrina de
Bonoso, que negava a perpetua virgindade da Santa MSe do Senhor. Sabe
mos que o Papa Sirícío acompanhou com vigilante atencfo os trabalhos do
Concilio, e que Santo Ambrosio de Mitóo deixou neles a marca da sua per-
sonalidade forte e prudente (Ep. 71, De Bonoso episcopo: CSEL 82/3, pp.

O tema entSo enfrentado oferecé-nos o motivo para juntos refletir-


mos sobre algumas condicóes previas, que parecem indispensáveis para que
o teólogo possa aprofundar, com a razao iluminada pela fé, o fato e o sig
nificado da virgindade da humilde e gloriosa MSe de Cristo.
i
442
A VIRGINDADE PERPETUA DE MARÍA 11

Na luz da encarnapao do Verbo

3. Já os Padres da Igreja perceberam com clareza que a virgindade


de Maria, antes de constituir urna questSo mariológica, é um tema cristo-
lógico. Eles faziam notar que a virgindade da Ma*e é urna exigencia deri
vante da natureza divina do Filho; é a condicao concreta em que, segundo
um livre e sapeinte designio divino se efetuou a encarnapao do Filho eterno,
d'Aquele que é Deus de Deus (CONC. ECUM. CONSTANTINOP. I, Expo-
sitio fidei CL Patrum seu Symbolum Nicaenum-Constantinopolitanum), so
Ele é Santo, só Ele é o Senhor, só Ele é o Altíssimo (cf. Missale Romanum,
Haymnus Gloria in excelsis Deo). E conseqüentemente, para a tradipáo
crista, o seio virginal de Maria, fecundado pelo Pneuma divino sem inter-
vencao de homem (cf. Le 1, 34-35), tornou-se, como o madeiro da cruz
(cf. Me 15, 39) ou as ligaduras do sepulcro (cf. Jo 20, 5-8), motivo e sinal
para reconhecer em Jesús de Nazaré o Filho de Deus.

Com profundo sentido de veneracao

5. Na reflexao adorante sobre o misterio da encarnapao do Verbo, foi


detectada urna relacao particularmente importante entre o inicio e ó fim da
vida terrena de Cristo, ou seja, entre a concepcao virginal e a ressurreicao de
entre os mortos, duas verdades que se ligam intimamente á fé na divindade
de Jesús.

Elas pertencem ao depósito da fé, sao professadas pela Igreja inteira e


enunciadas expressamente nos Símbolos da fé. A historia demonstra que
dúvidas ou incertezas sobre urna repercutem inevitavelmente sobre a outra,
como, ao contrario, a humilde e forte adesáo a urna délas favorece o acolhi-
mento cordial da outra.

No paralelismo, relativamente á gerapao de Cristo, alguns Padres res-


saltam a concepcao virginal, outros o nascimento virginal, outros a subse-
qüente virgindade perpetua da Má"e, mas todos testemunham a conviecáo
de que entre os dois eventos salvíficos - a geracao-nasci mentó de Cristo
e a sua ressurreipáío de entre os mortos - existe um nexo intrínseco que
responde a um preciso plano de Deus: um nexo que a Igreja, guiada pelo
Espirito, descobriu, ná"o criou.

Os fatos

6. Na confissáo de fé na virgindade da Mae de Deus, a Igreja proclama


como fatos reais que Maria de Nazaré:

- concebeu verdaderamente Jesús, por obra do Espirito Santo, sem


intervenpao do homem;

443
J2 "PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 365/1992

- deu á luz, verdadeira e virginalmente, o seu Filho, razáo pela qual


depois do parto permaneceu virgem; virgem - segundo os Santos Padres e
os Concilios que trataram expressamente a questSo (cf CONC ROMÁN
LATERAN., can. 3: I.D. MANSI. Sacrorum Conciliorum nova et amplissi-
ma Collectio, X, col. 1151; CONC. TOLET. XVI, Symbolum, art. 22) -
também no que se refere á integridade da carne;

- viveu, depois do nascimento de Jesús, em total e perpetua virgin-


dade; e, juntamente com Sao José, também ele chamado a desempenhar
um papel primario nos eventos iniciáis da nossa salvacao, se dedicou ao ser-
vico da pessoa e da obra do Filho (cf. CONC. ECUM. VATICANO II Const
dogmática Lumen gentium, 56).

7. No nosso tempo a Igreja sentiu a necessidade de evocar a realidade


da concepcáo virginal de Cristo, fazendo notar que as páginas de Lucas 1
26-38 e de Mateus 1, 18-25 nao podem ser reduzidas a simples narracóes
etiologicas, para facilitar a fé dos fiéis na divindade de Cristo. Elas sSo antes
para além do género literario adotado por Mateus e por Lucas, expressfó
duma tradipáo bíblica de origem apostólica.

Afirmar a realidade da concepcao virginal de Cristo nao significa que,


em referencia a ela, se possa fornecer urna prova apodítica de tipo racional.
Com efeito, a concepcao virginal de Cristo é urna verdade revelada por Deusi
que o homem acolhe em virtude da obediencia da fé (cf. Rm. 16 26) So
quem está disposto a crer que Deus age na realidade ¡ntramundaná e que a
Ele "nada é impossível" (Le 1, 37), pode acolher com devota gratidSo as
verdades da "kenosis" do Filho eterno de Deus e da sua concepcáo-nasci-
mento virginal, do valor salvífico universal da sua morte na cruz e da ressur-
reícao verdadeira, no próprio corpo, d'Aquele que foi suspenso e morreu
no madeiro da Cruz.

O Significado dos Fatos

9. Ora, na pesquisa do sentido oculto no fato, abre-se ao teólogo um


campo de trabalho vasto, fecundo e exaltante. Se ele, com método rigoroso
com fidelidade á Palavra normativa, á TradicSo universal, ás diretrizes do'
Magisterio, com atencab á experiencia litúrgica investigar o evento salvífico
da concepeáo e do nascimento de Cristo, bem como a virgindade perpetua
de Mana, vira a encontrar-se, por assim dizer, em contato com a Escritura
inteira: com a página em que Deus plasma o homem com a "térra virgem"
(cf. Gn. 2, 4b-7); com os textos que narram as amigas Aliancas, as profecías
messiamcas, as promessas feitas a David, cujos ecos se ouvem distintamente
na Alianca da Encarnaclo; com a narracao dos gestos de AbraSo cuia fé
obediente revive, intensificam, no fíat de María; com os relatos da materní-
dade prodigiosa de algumas mulheres esteréis - Sara, a mulber de Manoach,
Ana, Isabel - que se tornaram fecundas com o favor de Deus; com os tre-
I
444
AVIRGINDADE PERPETUA DE MARÍA 13

chos que descrevem o nascimento dos discípulos "do Alto", "da agua e do
Espirito" (cf. Jo 3, 3-8), ¡sto é, modelado no nascimento de Jesús no seio
de María, por obra do Espirito Santo; com o episodio da maternidade pascal
de María (cf. Jo 19, 25-27). ocorrida também ela na fé á palavra e na qual os
Padres divisaram também urna dimensao virginal: o Filho, virgem, confia a
Máe virgem ao Discípulo virgem (cf. S. JERÓNIMO, Ep. 127, 5; CSEL 56,
pp. 149-150; S. SOFR0NIO, In lohannis Evangelium, 69-76; PG 78, 3',
3788); com a mesma literatura intertestamentáría, na quai se senté, em pá
ginas de intenso lirismo, o pungente desejo de Israel de se tornar esposa pura
e fiel, comunidade escatológica em que já nao se ouga o lamento da dor do
parto nem os cantos fúnebres da morte. Sao exemplos. Eles indicam que ex-
pressoes, tais como Theotokos ou Virgo Mater, se lídas em profundidade e
com atencáo as múltiplas vozes convergentes, sao como que síntese da eco-
nomia salvífica...

De modo íntegro e correto

11. A exatidao na exposícfo da doutrína exige que sejam evitadas po-


sicoes unilateral, exageracoes ou dístorsoes. Por exemplo, a afírmagáo da
virgíndade de Maria deve ser feita de modo que em nada, direta ou indireta-
mente, aparecam diminuidos o valor e a dignidade do matrimonio, querido
por Deus, por Ele abencoado, sacramento que configura o cristao a Cristo,
via de perfeipao e de santidade,... nem se banalize a mensagem que déla de
riva, relegando-a a um aspecto marginal do cristianismo.

De modo atento á cultura contemporánea

12. Certamente o clima cultural do nosso tempo nem sempreé sensf-


vel aos valores da virgindade crista. Náío seria difícil enumerar as causas. Mas
isto nao deve desencorajar o teólogo no seu empenho. No tempo de Paulo,
a cultura dominante nSo estava pronta a acolher o misterio da Cruz, mas ele]
por fidelidade a Cristo, fez dele o fulcro da sua mensagem (cf 1 Cor 2 2- G¡
3,1; 6,14). ' '
O teólogo deve ser animado pela confianca serena em que os valores,
auténticamente evangélicos, sao válidos para o homem e para a mulher con
temporáneos, mesmo quando estes os ignoram ou os transcuram.

A virgindade é dom e graca. Ela é um bem da Igreja, do qual partici-


pam também aqueles — sem dúvida a maior parte —, que nao sao chamados
a vivé-la na própria carne, mas embora sempre no próprio coracao.

Compete ao teólogo indicar as razoes que podem ajudar o homem e a


mulher do nosso tempo a redescobrirem os valores da virgindade; ele deve
determinar a iinguagem mais apta para transmitir os valores evangélicos, dos
quais ela é portadora, mostrar como em muitos casos a virgindade é sinal de
liberdade interior, de respeito pelo outro, de atencáo aos valores do Espíri-

445
J4 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 365/1992

to, de capacidade de lancar o olhar para além dos confins do mundo tempo
ral (cf. Mt 22, 30), de viver radicalmente ao servico do Reino".

II. REFLETINDO. . .

Em suma, a alocucá"o do S. Padre, que certa mente visava a por termo


ás hesitacoes dos fiéis, afirma as seguintes proposicoes:

1) A virgindade de Maria vem a ser, antes do mais, um tema cristológi-


co, no sentido de que é toda relativa a Cristo. Contribuí para identificar o
Senhor Jesús, indicando que nao era mero homem (embora fosse verdadeiro
homem); por ser também Deus Filho, Maria recebeu do próprio Deus o Fi-
Iho ao qual ela havia de dar a natureza humana.

2) A virgindade de Maria no parto tem seu paralelo no final da vida


terrestre de Jesús: Este, ressuscitado, atravessava as paredes do Cenáculo sem
as rasgar, como o fizera em relacao a Maria SS. quando nasceu.

O principal objetivo da alocucao de Joao Paulo II em Cápua foi preci


samente incutir o ponto mais delicado da temática, ou seja, a virgindade de
Maria no parto. A recomendacao deste traco ocupa notável porcáo do pro-
nunciamento. O S. Padre renunciou a expor teorías biológicas que nos últi
mos tempos foram apresentadas para elucidar a partenogénese, como se se
pudesse enquadrar o caso de Maria em alguma ocorréncia conhecida pelas ci
encias médicas.

3) A Escritura do Antigo Testamento prepara o conceito do parto vir


ginal de Maria, conforme a interpretado dos Padres amigos e da Tradicao.
Com efeito; apontam-se textos bíblicos, em que a graca de Deus aparece a
suprir as deficiencias da natureza ou age uitrapassando as possibiiidades da
natureza. Assim é recomendada ao leitor a nocao de que Deus pode fazer o
que Ele quer com os elementos que Ele escolhe, por mais ineptos que pare-
cam. E Deus quem toma a iniciativa de salvar o homem gratuitamente, e nao
é o homem que provoca Deus para realizar atos salvfficos.

4) A profissSo da matemidade virginal de Maria em nada deprecia o es


tado conjugal consagrado pelo sacramento do matrimonio. Todo cristSo é
chamado a santificar-se ñas condicdes de vida que Deus Ihe assinala (virgin
dade ou matrimonio).

5) A virgindade ou a vida una e indivisa, hoje em dia pouco estimada


e praticada, vem a ser penhor de liberdade interior, de olhar perspicaz sobre
os valores transcendental e de radical vivencia a servico do Reino de Deus.
Por isto fica sendo, em nossos dias mesmos, um ideal ao qual podem e de-
vem aspirar aqueles(as) a quem Deus concede tal graca.
i

446
Sempre em foco:

Pecado Original: que é?

Em síntese: A doutrina do pecado original nio é questSo de lingüísti


ca, historia geral ou filosofía apenas, maséassunto de fé, sobre o quala Igre-
ja se tem pronunciado sucessivamente desde os primeiros séculos até nossos
tempos, quando JoSo Paulo II tem proferido varias catequeses sobre a te
mática. - 0 presente artigo recolhe sumariamente os dados atinentes ao pe
cado original como a fé da Igreja os ensina, ilustrando-os aínda corrí trechos
do magisterio do Papa JoSo Paulo II; este fala nSo apenas como erudito, mas
como aquele a quem Cristo confiou a missa~o de confirmar seus irmSos na fé
(cf. Le 21¿2). A palavra do Santo Padre, nesta temática, tem mais autorida-
de do que a de qualquer outro pensador, pois se trata esfritamente de um te
ma de fé, que só pode ser auténticamente estudado á luz dos documentos
dafé.

ix-tt-ü

O tema "pecado original" causa dificuldades ao homem moderno. Por


isto autores católicos, desejosos de facilitar a aceitacSo de tal conceito, tém
proposto explicares de Gn 3,1-24 que esvaziam o conteúdo da fé e prejudi-
cam o povo de Deus. Verda de é que o texto bíblico respectivo {Gn 3,1-24)
aprésente locucdes figuradas, que se prestam a interpretares diversas.

Aínda recentemente, num periódico de grande circulacSb entre os fiéis


católicos, liase que "AdSo e Eva sao apenas figuras de retórica, que nunca
existíram"; o pecado original nSo seria um acontecimento real do passado,
mas o orgulho e o egoísmo que afeta toda criatura humana: "Quando se diz
que nascemos marcados pelo pecado original, o que se entende por isso é
que há na pessoa humana, desde o comeco, urna tendencia a escolher a si
mesmo em detrimento dos outros. No Brasil isto se caracteriza pela expres-
sio 'levar vantagem em tudo'". Em conseqüéncia, diz o respectivo articulis
ta, "libertar-se do pecado original é algo mais do que derramar agua na cabe-
ca da manca. É educá-la para a justica e a misericordia". Tais palavras sao
erróneas ou, ao menos, ambiguas.

447
J16 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 365/1992

Quem assim escreve, esquece que a temática do pecado original foi


objeto de prolongados estudos e debates no decorrer dos séculos. O assunto
nao é apenas da aleada da lingüística, da literatura ou da historia antiga; é
também assunto de fé, de modo que tem de ser considerado á luz dos varios
pronunciamentos do magisterio da Igreja efetuados em Concilios ou em do
cumentos dos Sumos Pontífices. - Eis por que, ñas páginas subseqüentes,
retomaremos a questSo do pecado original, levando em conta especialmente
as Catequeses proferidas pelo Papa JoSo Paulo II durante o ano de 1986.
Ninguém é mais abalizado do que o S. Padre para expor o assunto, pois ele
o faz nao apenas na qualidade de estudioso e erudito, mas no exercício da
fungao que Jesús Ihe confiou: "Confirma teus irmáos na fé" (Le 22, 32); de
preferencia a qualquer outro autor, merece atenpao a palavra do Papá, a
quem Jesús prometeu sua especial assisténcia (cf. Mt 16 17-19- Le 22 31s-
Jo 21,15-17; 14,26; 16,13-15). ' '

1. AdaoeEva

Nao se diga que "Adao e Eva sao figuras de retórica, que nunca existí-
ram". Eis o que a propósito a fé ensina:

Deus criou o homem e a mulher... Em hebraico Adam significa ho-


mem, e Eva significa M3e dos vivos. Por conseguinte, AdSo e Eva sao tafo
reais quanto o género humano é real. Dizer que Adao e Eva nunca existiram
é afirmar que os primeiros pais da humanidade ná"o existiram - o que vem a
ser absurdo.

Todavia o cristáo nao é obrigado a crer que o primeiro homem tenha


sido tirado do barro. Na verdade, a imagem do Deus Oleiro é freqüente ñas
literaturas antigás; nao pretende entrar no campo das ciencias naturais, mas
apenas significa que "como o oleiro está para o barro, Deus está para o ho
mem", ou seja, Deus é sabio, providente, senhor, carinhoso... para com o
homem, á semelhanca do oleiro que é sabio,... carinhoso em relacáo a'os
seus artefatos. Mais nada daf se deve depreender.

Quanto á costela de Adao da qual terá sido feita a mulher, é símbolo


da identidade de natureza que existe entre o homem e a mulher; esta com-
partilha a dignidade do homem, e nSo é inferior a este. Trata-se, pois, de um
símbolo cujo significado é filosófico-teológico, e nada insinúa no tocante ás
ciencias naturais.

Os primeiros pais, por conseguinte, podem ter tido origem por evolu-
cá*o da materia preexistente; quando esta, sob a acáo da Providencia Divina,
estava suficientemente organizada para ser sede da vida humana, Deus terá
criado a respectiva alma espiritual e a terá infundido naquele(s) organis-

448
PECADO ORIGINAL: QUE É? 17

mo(s), de modo a dar origem ao ser humano; este é um composto de materia


(corpo), para a qual se pode admitir evolucáo, e alma espiritual, que só pode
ter origem por criacio direta da parte de Deus.

2. Elevapao á filiapáo divina

Os primeiros homens, logo no inicio de sua existencia, foram eleva


dos ao estado dito "de justica original", ou seja, foram enriquecidos por
dons que os elevavam ao estado de grapa ou á ordem sobrenatural1. Tais
dons eram:

a) a graca santificante,' que tornava os primeiros homens filhos de


Deus em sentido muito denso, aptos a viver em comunháo e intimidade com
Deus;

b) os dons preternaturais ou dons que aperfeicoavam a natureza hu


mana:

— a imortalidade ou a isencao de morte violenta e arrebatadora como


ela é hoje; o fim de vida terrestre do homem seria suave transigió para a glo
ria; ver Gn 2,17; 3,19;

— a ¡mpassibilidade ou a ausencia de dores geralmente precursoras da


morte; cf. Gn 3,16-19;

— a integridade ou a imunidade de cobicas desregradas, que tornam o


homem contraditório (vé o que é melhor, e realiza o que é pior cf Rm 7
15-19). Ver Gn 2, 25; 3, 7. 21;

— a ciencia moral infusa, para que pudesse agir responsavelmente pe-


rante o designio de Deus.

É de notar que tais dons nao implicavam beleza física para os primei-.
ros homens. Eram realidades latentes no íntimo do ser humano; só transpa
recer¡a m -no físico se os primeiros pais se mostrassem fiéis ao designio de
Deus.

Afirma o S. Padre Jofo Paulo II em sua Catequese de 3/9/1986, n? 5:

"A luz da Biblia, o estado do homem anterior ao pecado aparece co


mo urna situacSo de perfeicSo original, expressa, de algum modo, pela ima-

'Sobrenatural, no caso, nao significa extraordinario ou maravilhoso,


mas designa a riqueza espiritual de que eram dotados os primeiros pais.

449
18 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 365/1992

gem do paraíso... Se perguntarmos qual era a fonte dessa perfeicSo, a res-


posta será: era principalmente a amizade com Deus mediante a grapa santifi
cante e os dons chamados em linguagem teológica preternatural, que foram
perdidos mediante o pecado. Gracas a tais dons de Deus, o homem, que se
achava unido em amizade e harmonía com o seu Principio, possuia e manti-
nha em si o equilibrio interior; nSo era angustiado pela prospectiva da deca
dencia e da morte. O dominio sobre o mundo, que Deus dera ao homem
desde o comeco, realizava-se, antes do mais, no próprio homem, como do
minio de si. E neste autodominio e equilibrio consistía a integridade da exis
tencia (integritas), no sentido de que o homem era intato e harmonioso em
todo o seu ser, porque livre da triplice concupiscencia, que o dobra aos pra-
zeres dos sentidos, á ambicio dos bens terrestres e á afirmacao de si contra
os ditames da raza o".

Por conseguínte, a fé nao pode esquecer o paño de fundo da historia


da humanidade. Esta nao decorre simplesmente como a historia de viventes
racionáis, mas é, sim, a existencia da humanidade chamada originariamente
á filiacao divina em grau especial e decaída dessa dignidade mediante o
pecado.

3. A transgressáío

Os dons de Deus aos primeiros homens deviam ser confirmados pela


conduta dos primeiros pais ou pelo Sim do homem. Daí a historia da árvore
da ciencia do bem e do mal. Esta é símbolo1 de um modelo de vida a que o
homem se devia submeter pelo fato mesmo de estar elevado a urna dignidade
superior; já ná"o competía ao homem ditar as normas racionáis, "pruden
ciáis", do seu comportamento, mas, feito filho de Deus em grau especial, de
via viver conforme as normas da nova ordem de coisas a que pertencia. É isto
que vem simbolizado pelo preceito de nao comer do fruto da árvore da cien
cia do bem e do mal. O homem devia dar o seu assentimento ao dom de
Deus, comportando-se nao como autónomo, mas como teónomo.
Diz o S. Padre Joáo Paulo 11:

"A presertca da justipa original e da perfeícSo no homem, criado á ima-


gem de Deus... ná"o excluía que o homem, como criatura dotada de liberda-

As literaturas e a arte antigás atestam que, para os povos primitivos, a


árvore e a vegetacSo tinham, nSo raro, o valor de símbolo religioso. Tenha-
mos em vista a ambrosia e o néctar dos deuses ñas mitologías. Ainda hoje
certas trióos primitivas julgam que produtos vegetáis (folhos, frutas.. .) dio
uniSo com a Divindade. A crenca na eficacia do Santo Daime da Amazonia é
um espécimen desse modo de pensar.

450
PECADO ORIGINAL. QUE É? 19

de, fosse submetido (como os outros seres espirituais, os anjos) desde o ini
cio á prowa da liberdade. A própria Revelacáo... nos dá noticia da prova
fundamental reservada ao homem, prova na qual ele caiu em falta" (Cate-
quese de 3/9/1986, n° 6).

Esta falta foi, antes do mais. a do orgulho. Com efeito; o tentador


(sob forma de serpente é designado o demonio em Gn 3,1) sugeriuaos pri
meiros país que, se transgredissem a ordem de Deus, seriam como Deus, ar
bitros do bem e do mal. A soberba humana foi assim bajulada e cede'u á
mentira.

Afirma aínda Joáo Paulo II:

"A árvore (da ciencia...) significa o limite ¡mpreterfvel ao homem e a


qualquer criatura, por mais perfeita que seja. Assim, a criatura é sempre ape
nas urna criatura, e nío Deus. Por certo, nao pode pretender ser como Deus,
conhecer o bem e o mal como Deus. Só Deus é a fonte de todo ser, só Deus
é a Verdade e a Bondade absolutas, a quem se sujeita e de quem recebe sua
identidade o que é bem e o que é mal. Só Deus é o Legislador eterno, do
qual procede toda lei no mundo criado, em particular a lei da natu reza hu
mana (lex naturae)... Nem o homem nem alguma criatura pode colocar-se
no lugar de Deus, atribuindo a si o controle da ordem moral" (Cateauese de
10/9/1986. nP 5).

4. Fato Histórico

A fé crista" professa que a desobediencia dos primeiros pais elevados ao


estado de justica original foi um acontecimento real, histórico, que condicio-
nou a subseqüente historia da humanidade. 0 fato de estar o relato de Gn 3
marcado por urna linguagem simbolista nao pode ser invocado para se negar
a historicidade da queda original. É o que afirma Joio Paulo II:

"Na descricSo do pecado, trátate de um evento primordial, isto é, de


um fato que, segundo a Revelacáo, teve lugar no inicio da historia da huma
nidade" (Catequese de 10/9/1986, n? 11).

5. Conseqüéncias

1) A falta dos primeiros pais é. chamada pecado original originante.


Teve conseqüéncias graves e duradouras.

Com efeito. Os primeiros pais perderam os dons gratuitos que recebe-


ram logo depois de criados. Isto quer dizer que

451
20 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 365/1992

- a morte passou a ser o que ela naturalmente é: arranco violento, que


contraria profundamente o instinto de conservacao da pesroa;

- os impulsos ou instintos sensíveis nao se harmonizam sempre com a


razao, mas antecipam-se desordenadamente aos criterios do raciocinio, pro
vocando o que se chama "a cobipa des regrada";

- o ser humano sofre os choques dolorosos e embates naturais, de-


correntes da fragilidade da sua natureza;

- o homem é obnubilado em seu entendimento das coisas de Deus.


Este é invisível, ao passo que as criaturas sao coloridas, sonoras e mais atra-
entes para os sentidos.

A propósito observa o S. Padre Joao Paulo II:

"Toda a existencia do homem sobre a térra está sujeita ao medo da


morte, que, segundo a Revelacao, se acha claramente conjugada com o peca
do original... Sinal e conseqüéncia do pecado original é a morte do corpo,
como desde entá"o ela é experimentada por todos os homens. O homem foí
criado por Deus para a imortalidade; a morte, que aparece como um trágico
salto no escuro, vem a ser a conseqüéncia do pecado, quase devida á lógica
imánente do próprio pecado, mas principalmente infligida como castigo de
Deus. Tal é o ensinamento da Revelacao e tal é a fé da Igreja: sem o pecado,
o fim da nossa provacab terrestre ná"o seria tío dramático.

O homem foi criado por Deus também para a felicidade, que, no ámbi
to da existencia terrestre, significava ser ¡sentó de muitos sofrimentos, ao
menos no sentido da possibilidade de ser isento: posse non pati, como tam
bém a isencSo da morte tinha o sentido de posse non morí. Como se depre-
ende das palavras atribuidas a Deus no Génesis (Gn 3,16-19) e em outros
muitos textos da Biblia e da Tradicffo, o pecado original fez que essa isencSo
deixasse de ser o privilegio do homem. A vida deste na térra foi submetida a
muitos sofrimentos e á necessidade de morrer" (Catequese de 8/10/1986,

"O Credo do povo de Deus, redigido por Paulo VI, ensina que a natureza
humana, após o pecado original, já nffo se acha no estado em que se encon-
trava inicialmente em nossos primeiros pais. Ela está decaída (lapsa), porque
privada do dom da graca santificante e também dos outros dons, que no es
tado de justica original constituiam a perfeicSo (integritas) da natureza hu
mana. Trata-se aqui náfo só da imortalidade e da isencao de dons perdidos
por causa do pecado, mas também das disposicóes interiores da razáo e da
vontade, isto é, das energías habituáis da razSo e da vontade. Como conse-
i

452
PECADO ORIGINAL: QUE É? 21

qüéncia do pecado original, o homem todo, alma e corpo, foi afetado- se-
cundum animamet corpus, precisa o*fnodo de Orange !m 529, Sínodo ao
rtaíd •"?detenus
riorada in ° commutatum
et° * Trent°'fuisse.
°"ierea"d0 *» o homem todo foi déte
Quanto ás faculdades espirituais do homem, esta deteriorado consiste
no ofuscamento da capacidade do intelecto para conhecer a verdade e no en
taqueamento da vontade livre. que se debilitou frente aos atrativos dos
bens sensíveis e está exposta ás falsas imaflens do bem elaboradas pela razáo
sob o influxo das paixtSes" (Catequese de 8/10/1986, n? 6s).
2) Despojados dos dons iniciáis, os primeiros país só puderam aerar
prole carente, também ela. da justica original. Ora essa carencia é o que se
chama pecado original originado. Nao é pecado propriamente dito da parte
da enanca, mas é conseqüéncia do pecado dos primeiros pais. Deus nao é in
justo ao permitir que a crianca nasca despojada da graca, pois a graga é gra
tuita; ademáis toda crianca é naturalmente solidaria com seus genitores- re
cebe o que estes tém. e nfo recebe o que estes nSo possuem. - Eis as 'res
pectivas palavras do S. Padre:

"O pecado original n3o tem o caráter de culpa pessoal em nenhum


descendente de AdSo. Consiste na privacáo da graca santificante na natureza
humana, que, por culpa dos primeiros pais, foi desviada da sua finalidade so
brenatural. É um pecado da naftireza', que tem apenas analogía com 'o pe
cado da pessoa'. No estado de justica original, antes do pecado, a graca san
tificante era como que um dote sobrenatural da natureza humana. Na lógica
do pecado, que 6 a recusa da voniade de Deus, doador deste dom, está im
plicada a perda da graca. A graca santificante deixou de sera riqueza sobre
natural da natureza humana, que os primeiros pais transmitiram a todos os
seus descendentes.

Por isso o homem é concebido e nasce sem a graca santificante. Preci


samente este estado inicial do homem, decorrente da sua origem, constituí a
essencw do pecado original como urna heranca (pecado original originado)
como se costuma dizer" {Catequese de 19/10/1986, n9 5).
O Concilio de Trento afirma que o pecado dos primeiros pais se trans
mite por geracSo. Isto nao significa que o ato de gerar seja pecaminoso, mas,
apenas, que é o vefeulo pelo qual se transmite a natureza humana destituida
da graca e dos dons preternatural.

Por conseguinte, o pecado original na crianca nfo implica culpa da


crianca, mas resulta da solidariedade dos pequeninos com os seus antepas-
sados. especialmente com os primeiros pais. Consiste na ausencia da justica
original, que tem por conseqüéncia o desencadeamento das paixoes e co-
bicas desordenadas.

453
22 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 365/1992

O S. Padre enfatiza as afirmacóes do magisterio relativas ao pecado


original: •,

"Os textos bíblicos referentes á universalidade e ao caráter hereditario


do pecado, quase congénito com a natu reza humana concebida pelos res
pectivos genitores, ¡ntroduzem-nos no exame mais direto da doutrina católi
ca.

Trata-se de urna verdade transmitida implícitamente no ensinamento


da Igreja desde o inicio; foi explicitamente aclarada pelo magisterio da Igreja
no Sínodo XV de Cartago em 418 e no Sínodo de Orange em 529. principal
mente contra os erros de Pelágio (cf. Denzinger-Schonmetzer, Enchiridion
Symbolorum et Definitionum, n° 222s e 371s). A seguir, na época da Refor
ma protestante tal verdade foi solenemente formulada pelo Concilio de
Trento em 1564 (cf. Denzinger-Schonmetzer, Enchiridion n° 1510-1516).
O Decreto de Trento sobre o pecado original exprime tal verdade nos termos
precisos em que é objeto da fé e do ensinamento da Igreja. Por conseguinte,
podemos referir-nos a esse Decreto para daí tirar o conteúdo essencial do
dogma católico atinente a tal assunto" (Catequese de 24/9/1986, nP 4).

V§-se, pois, que o tema do pecado original originante e originado nao


é assunto de livre discussáb na Igreja; nao está subordinado aos pareceres de
teólogos e pesquisadores. mas é objeto de definicóes por parte do magisterio
ordinario e extraordinario da Igreja.

0 Papa Paulo VI, no seu Credo do Povo de Deus, redigido em 1967


para concluir o Ano da Fé, professou: '

"Cremos que em AdSo todos pecaram; ¡sto significa que a falta origi
nal, cometida por ele, fez que a natureza humana, comum a todos os ho
mens, cafsse num estado em que arrasta as conseqüéncias desta falta e que
nSo é aquele em que ela se encontrava antes, nos nossos primeiros pais, cons
tituidos em santidade e justica, e em que o hornera nao condecía o mal nem
a morte. A natureza humana assím decaída, despojada da graca que a reves
tía, fenda ñas suas próprias forcas naturais e submetida ao dominio da mor
te, é que é transmitida a todos os homens, e neste sentido é que cada ho-
mem nasce em pecado. Professamos, pois, com o Concilio de Trento, que o
pecado original é transmitido com a natureza humana, nao por imitacSo
mas por propagado e que, portante, ele é próprio de cada um".

6. O Protoevangelho

NSo se pode falar do pecado original sem mencionar também o resgate


ou a Redencffo trazida por Cristo. O primeiro Adío nSo pode ser entendido
senao á luz do segundo Adao. É o que observa JoSo Paulo II:

454
PECADO ORIGINAL: QUE É? 23

"Segundo a doutrina católica, fundada sobre a Revelacao, a natureza


humana ná"o se acha apenas decaída; ela foi remida por Jesús Cristo, de mo
do que onde o pecada abundou, superabundou a grapa (Rm 5,20). F.steé o
auténtico contexto dentro do qual se devem considerar o pecado original e
as suas conseqüéncias" (Catequese de 8/10/1986).

Em vista da Redencáo, logo após o pecado dos primeiros pais, o texto


do Génesis refere o Protoevangelho, ou o primeiro anuncio da Boa-Nova.
Disse o Senhor Deus á serpente tentadora: "Porei inimizade entre ti e a mu-
Iher, entre a tua linhagem e a linhagem déla. E a linhagem da mulher te es-
magará a cabega, ao passo que tu Ihe ferirás o calcanhar" (Gn 3,15).

Jesús Cristo é, por excelencia, o descendente da mulher por excelencia


que é Maria. Ele esmagou a cabeca da serpente ou do tentador, obtendo para
o género humano a reconciliapáfo com o Pai. Tal reconciliacá"o é comunicada
a cada crianca que nasce, mediante o sacramento do Batismo. Este confere a
grapa santificante, nao, porém, os dons preternaturais, de modo que o cris-
tato batizado é portador da desordem que as paixSes naturalmente causam
dentro dele; a educapSo religiosa deve tornar a crianpa consciente do dom de
Deus e ajudá-la a dominar as tendencias desregradas (orgulho, egoísmo. ..).

A educapao religiosa supoe a grapa batismal e colabora com ela. O Ba


tismo é essencial para que dentro do cristao a nova ordem, a filiapáo divina
sobrenatural, se instaure. A vida sacramental traduzida em conduta moral
condigna é que faz o cristáfo, e nao apenas o bom comportamento ético.

7. ConclusSo

Apresentamos os principáis trapos da doutrina do pecado original co


mo é professada pela fé da Igreja. Vé-se que é deduzida da Escritura e da
Tradipao expressas pelo magisterio da Igreja; estas instancias sá"o os auténti
cos referenciais para se configurar tal doutrina. Nao é lícito a um católico
encará-la apenas do ponto de vista lingüístico, histórico ou filosófico.

Bem entendida, a doutrina do pecado original nao entra em choque


com as ciencias naturais, pois ná"o interfere ñas conceppoes da paleontología
ou da arqueología. Nem é absurda aos olhos da razao, mas, ao contrario, pSe
em evidencia o principio da solidariedade, tSo importante para a compreen-
sao da historia humana.

Além do mais, a doutrina do pecado original, se tem seus aspectos


sombríos, é também o paño de fundo que melhor ajuda a compreender o
misterio do amor de Deus para com os homens, pois "onde abundou o peca
do, ai superabundou a grapa" (Rm 5,20).

455
Estranho par:

Biblia e Homossexualismo

Em síntese A imprensa tem publicado artigos que insinuar» se/a o fio-


mossexualismo aceitável, visto que o rei Davi e outros personagens bíblicos
o teriam praticado. — A propósito registramos: 1} o homossexualismo é for
malmente condenado pelo texto sagrado em Lv 18¿2; 20,13; Rm 1, 26s;
ICor 6.9s; 1Tm 1J9-11, ppis é prática antinatural; 2) há episodios em que
grupos homossexuais sSo mencionados na Biblia, mas os seus costumes sSo
condenados pelos autores sagrados (cf. Gn 19,1-29); 3) nSo se pode afirmar
que Davi tenha tido amizade homossexual com Jdnatas, filho do rei Saúl
(cf. 1Sm, 19,1-7; 20,1-42); ao contrario, sabe-se que David teve varias espo
sas (concubinas) e cometeu adulterio com Betsabéia, esposa do general
Uñas (cf. 2Sm 11, 2-17); 4) nem todos os personagens que desempenharam
papel importante na historia sagrada, sao santos; os autores sagrados referen)
as suas facanhas com realismo, sem dissimular o pecado, para que o leitor
avalie melhor a miseria humana sobre a qual se débrucou a misericordia
divina.

it-Ct-ü

O jornalista Janer Cristaldo, da FOLHA DE SAO PAULO, d¡z-se ateu


e vem escrevendo artigos sobre a interpretacSo da Biblia que tém causado
estranheza. Vém ao caso especialmente dois dos mesmos, datados respectiva
mente de 17/3/1992 ("Biblia relata varios casos de amor entre homens") e
5/4/1992 ("Dogmáticos se julgam únicos donos da Biblia"), em que atribuí
ao rei Davi relacionamento homossexual com Jdnatas e sugere que a recusa
de homossexualismo é "anacronismo do Terceiro Mundo, ao lado do
socialismo e da inflacSo".

Examinaremos, pois, os casos citados por J. Cristaldo na sua tentativa


de julgar normal o homossexualismo.

456
BÍBLIAE HOMOSSEXUALISMO 25

1. A Historia de Ló

1.1. Destruido de Sodoma

a)Ofato(Gn19,1-29)

Sábese que o Senhor Deus houve por bem punir a cidade de Sodoma,
profundamente poluída pelo pecado de seus habitantes (cf. Gn 18,16-33).
Foram entSo dois anjos emissários de Deus a Sodoma, onde habitava Ló,
sobrinho de Abraáo; iam inspecionar a cidade antes da sua destruícáo. Tais
visitantes foram recebidos por Ló em sua casa. Eis, porém, que os sodomitas
insistiram com Ló para que Ihes entregasse os dois hospedes que iam pernoi-
tar na casa desse sobrinho de Abraao. Ló, porém, cíente de que tinham in-
tencdes perversas, ofereceu-lhes suas duas filhas virgens, em vez dos dois vi
sitantes. Estes, porém, afastaram os homens que queriam tomar de assalto
a casa de Ló, ferindo-os de cegueira. A seguir, Ló e sua familia receberam a
ordem de deixar Sodoma ¡mediatamente, e o castigo se desencadeou sobre a
cidade infqua. Cf. Gn 19,1-29.

2) Que dizer?

a) Evidentemente os sodomitas eram homossexuais; daí o nome de so


domía, que caracteriza essa tendencia.

b) O fato de se mencionarem homossexualismo e outros graves peca


dos na Biblia está longe de significar que o Livro Sagrado os aprova. Ao con
trarío, o homossexualismo é abominável segundo a Lei de Moisés e punido
com a morte. Ver

Lv 18,22: "NSo te deitaras com um homem como te deltas com urna


mulher. É urna abominacSo".

Lv 20,13: "O homem que se deita com outro homem como se fosse
urna mulher, ambos cometem urna abominacSo, deverao morrer, e o seu san-
gue caira sobre eles".

A prática homossexual, porém, era difundida em torno de Israel. Ver


Lv 20,23; Jz19,22s.

c) Nem tudo o que a Biblia relata, é modelo edificante. O texto sagra


do descreve, sim, sem dissimulacSes, a miseria do homem, para que melhor
sobrasáis a misericordia de Deus. Precisamente misericordia é a atitude de
quem tem um coracao (cor, cordis) voltado para a miseria, a f ¡m de saná-la.
É nesta perspectiva que se devem ler e interpretar as passagens "escabrosas"

457
26 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"365/1992

da Biblia Sagrada. - Em conseqüéncia, o leitor avisado nao se surpreende


com o fato de haver perversao sexual em Sodoma, mas também ná"o julga
que esteja ai proposto um paradigma para o comportamento dos pósteros.

d) A atitude de Ló que prefere entregar suas filhas virgens a entregar


os dois hospedes, evidencia o repudio ao homossexualismo. Mas também
nao é modelo de conduta, pois se trataría de concessao á paixao mórbida
dos sodomitas. Explica-se, mas nao se justifica, pelo fato de que a honra de
urna mulher, nos tempos recuados do século XIX a.C, era menos considera
da do que o dever sagrado da hospitalidade; as categorías da Moral foram
aos poucos e lentamente desabrochando na conscíencia das geracoes do po-
vo israelita.

1.2. Ló e suas Filhas (Gn 19,30-38)

Tendo Ló procurado abrigo numa montanha perto de Segor com suas


duas filhas, estas quiseram ter relacSes sexuais com seu pai, por medo de que
ná"o encontrassem outro homem com quem pudessem perpetuar a sua estir
pe. O episodio é narrado fríamente pelo texto bíblico: as jovens embríaga-
ram seu pai em duas noites sucessivas; tiveram numa noite urna, e em outra
noite a outra, relacdes com seu pai; deste consorcio nasceram respectivamen
te Moab, o patriarca dos moabítas, e Ben-Amon, o patriarca dos amonitas.

Este trecho bíblico, pouco edificante como é, pode ser entendido de


duas maneiras:

a) ¡nterpretacao literal. Mais urna vez, a miseria humana estaría relata


da na Biblia para que o leitor compreendaem que degradacáo moral o amor
de Deus encontrou a humanidade que ele vinha resgatar na plenitude dos
tempos. — Nao se trata, pois, de aprovacáo ao incesto.

b) narracáo etiológlca: bons exegetas admitem que o texto de Gn 19,


30-38 possa ser urna "narrativa etiológica"1 cujo significado sería o seguin-
te: os moabitas e os amonitas eram povos vizinhos que, tendo-se oposto
aos hebreus por ocasiáío do éxodo, haviam incorrido no odio e no desprezo
destes <cf. Dt 23, 3-7; Jr 48,26; Ez 25,1-11). Ora, para exprimir a animosi-
dade, ter-se-ia formado em Israel urna narrativa ficticia: "Moab" (mé-ab) po-
dia, conforme a etimologia, significar "Ele é do meu pai"; "Amon" {ben-
ammi) seria "Filho do meu povo" ou, segundo um termo paralelo árabe,
também "Filho do meu pai". Poís bem, estes nomes no decorrer do tempo

1 Em grego, aitia = causa; lógos = discurso. Etiología = discurso que re


vela a causa.

458
BÍBLIA E HOMOSSEXUALISMO 27

haveriam sido apresentados pela tradicSo israelita como os sinais de ato$ pe


caminosos que teriam dado origem aos dois povos:duas filhas haveriam, sim,
concebidos de seu pai Ló e gerado os homens a quem teriam imposto os
nomes adequados "Ele é do meu pai" (Moab), "Filho do meu pai" (Amon).1
Destes var3es eram ditas proceder as duas napóes ¡nimigas ferrenhas de Is
rael, as quais assim ficavam bem caracterizadas como oriundas do pecado,
impuras, gente com a qual nao se podia ter amizade.2 A narrativa, portanto]
exprimía urna "historia" imaginada para depreciar amonitas e moabitas. Eis
como o Pe. Lagrange resume as razoes que o levam a adotar esta explicapao:

"O autor certamente nao acreditava na historícidade do episodio,,


quando narrava a origem incestuosa de Moab e Amon. A ironía é tao acerba,
os trocadilhos tSo artificiosos e cruéis que a tradicSo sabia muito bem como
os devia entender; S. Jerónimo dizia dos rabinos do seu tempo, sem contra
eles protestar: 'Assinalam o trecho com pontinhos, para indicar que nSo me
rece fe". AbstracSo feita da finalidade do pontilhado, o sentido exegético é
muito exato: urna sátira nSo é historia".3

A interpretado assim concebida nao é incompatível com a ¡nspjracao


do texto sagrado. Com efeito, o hagiógrafo pode ter consignado no livro do
Génesis tradicSes populares, cujo significado era conhecido entre os judeus;
¡nserindo o episodio de Gn 19,30-38, o autor ná"o fazia senao exprimir, nos
termos mesmos em que isto se costumava fazer em Israel, a animosidade
existente entre o seu povo e os adversarios do seu povo. Nao quería de modo
nenhum apresentar como históricos os tragos que nao eram tidos como tais
pela gente que os referia.

2. Davi e Jónatas

2.1. O relato

Diz o texto sagrado que Davi nutria profunda amizade para com Jóna
tas, «Iho de Saúl; cf. ISm 18,1-7; 20,1-42. Morto Jónatas, Davi cantou a ele
gía da qual se destaca a seguinte passagem: "Tu me eras ¡mensamente queri-

1 Note-se como por tres vezes é inculcado que as filhas de Lo concebe-


ram de seu pai (w. 32.34.3S). Esta insistencia se explica bem pela intencSo
de dar urna interpretado pejorativa aos dois nomes.
2 Os hebreus abominavam o ato incestuoso que atribufam és filhas de
Ló (cf. Dt27¿0¿3; Lv 18. 6-8).
\3La méthode historíque, 207. Com Lagrange concordan) Cfamer, La
Sainte Bible. I (París. 1953), 297; J. Chame, Le livre de la Genése (París
1949). 253.

459
28 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"365/1992

do; a tua amizade me era mais cara do que o amor das mulheres" (2Sm
1.26).

2.2. O significado

Significa isto que Davi e Jónatas eram homossexuais?

1) Tal interpretado é destituida de fundamento, como se verá adian-


te. Mas, ainda que o vicio existisse entre Davi e Jónatas. nao seria modelo
aprovado pela Biblia para legitimar o homossexualismo.

2) Na verdade, Davi parece ter nutrido para com Jdnatas a amizade de


dois bons companheiros de luta, interessados em apaziguar os ánimos do
rei Saúl. Davi era o perseguido e Jdnatas o protetor de Davi. Esta atitude de
Jónatas basta para explicar a profunda gratidao e amizade de Davi para com
Jónatas.

Notemos, alias, que Davi teve muitas mulheres - o que nSo se dá com
os homossexuais. Seja citado o texto de 2Sm 5,13-16:

"A sua chegada de Hebron, tomou Davi aínda concubinas e mulheres


em Jerusa/ém, e nasceram-lhe filhos e fílhas. Estes sSo os nomes dos filhos
que Ihe nasceram em Jerusalém: Samua, Sobab, Nata, Salomio, Jebaar
Eiisua, Nafeg, Jáfia, Elisama. Baalida, Elifalet".

Considerem-se também os dizeres de 2Sm 16,21s, que falam repetida


mente das "concubinas de Davi".

Ademáis é muito significativo o caso de Davi, que se apoderou da mu-


Iher Betsabéia, do general Urias, e, por isto, mandou matar Urias expondo-o
na frente de batalha ás invectivas do ¡nimigo; cf. 2Sm 11, 2-17. 0 texto sa
grado dá a entender que Davi se apaixonou por tal mulher e déla teve um fi-
Iho, que morreu, e outro que foi o rei Salomfo. Ora tais coisas nSo costu-
mam acontecer aos homossexuais. Donde se v§ que é gratuita a hipótese de
ter sido Davi um homossexual. Como dito, mesmo que o tivesse sido, daf
nao se poderia depreender argumento nenhum em favor do homossexualis
mo.

3. A doutrina do Novo Testamento

O Novo Testamento, como também o Antigo, é muito explícito na


condenacá*o do homossexualismo. Tenham-se em vista os seguintes textos:

Rm 1,26s: "Deus os (pagaos) entregou a paixóes aviltantes: suas mu


lheres mudaram as relacóes naturais por re/acdes contra a natureza; igual-

460
BÍBLIA E HOMOSSEXUALISMO 29

mente os homens, deixando a relacao naturai com a muiher, arderam em de-


se/o uns para com os outros, prat¡cando torpezas homens com homens e re-
cebendo em si mesmos a paga da sua aberracSo".

1Cor 6,9s "Nao sabéis que os injustos nSo herdarSo o Reino de Deus?
Nao vos iludáis \ Nem os impúdicos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem
os depravados, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrdes, nem
os avarentos, nem os bébados, nem os injuriosos herdarao o Reino de Deus".

1 Tm 1,9-11: "Sabemos que a Leí nio é destinada aos justos, mas aos
iníquos e rebeldes, impíos e pecadores, sacrilegos e profanadores, parricidas
e matricidas, homicidas, impúdicos, pederastas, mercaderes de escravos,
mentirosos, perjuros e para tudo o que se opon ha á sS doutrina, segundo o
Evangelho da gloria do Deus bendito, que me foi confiado".

Já os filósofos estoicos, antes dos cristaos, haviam condenado o ho


mossexualismo. Isto bem mostra que o repudio a tal prática nao procede
únicamente da fé crista, mas deriva-se da própria razao humana. Esta verifica
que o homossexualismo é antinatural e, por isto, uma aberracao. Todavía é
de notar que nem todo individuo homossexual é culpado: a Moral Católica
distingue entre a inclinacao homossexual e a prática homossexual. Esta, sim,
é pecaminosa, ao passo que aquela, se nao é alimentada voluntariamente
(por pensamentos, desejos ou atos) pela pessoa, nao constituí pecado.

Eis o que convinha observar á margem dos comentarios da imprensa


relativos ao homossexualismo na Biblia. Registra-se mais uma vez o fato de
que a Biblia hoje em dia é dilacerada pelos seus leitores segundo as mais
diversas tendencias do pensamento moderno.

O tema "homossexualismo" é abordado de maneira sistemática em


PR 288A986, pp. 233-240.

■ü-üú

"APRENDE COM AS ONDAS. . .

RECUA, MAS PARA VOLTAR, PARA INSISTIR SEM


CANSACO, SEM DESISTENCIA NOITE E DÍA, ENQUANTO A
MAO DIVINA NAO DER SINAL E TIVER SIDO ATINGIDA A
PLENITUDE DAS GRANDES AGUAS VIVAS."

D. Hélder Cámara

461
Advertencia:

A Associacao Dita
'Obras dos Anjos"

Em síntese: A devocSo aos Santos An/os vem tomando formas estra-


nhas, que ná~o condizem com o patrimonio da fé, mas se baseiam em revela-
cSes particulares. Visto que assim se originam desvíos da piedade crista" que
podem ter graves conseqüéntías, a Congregacáó para a Doutrina da Fé, aos
6/6/Í992, houve por bem intervir no caso, reiterando advertencias anterio
res e formulando mais severas normas, a fim de preservar a reta fé. "Lex
orandi lex credendi", reza o famoso adagio, incutindo a harmonía quedeve
existir entre as fórmulas deféeas expressoes da piedade.

Acontece que a piedade popular, em seu fervor espontáneo, se expri


me, por vezes, de maneiras exóticas ou estranhas á oracáo oficial da S. Igre-
ja. NIo raro essas novas formas de devocao reivindicam para si a autoridade
de pretensas revelacóes particulares. Ora, conforme a Constituipao Lumen
Gentium n° 12, do Concilio do Vaticano II, compete á autoridado da Igreja
julgar tais manifestacSes extraordinarias:

"O j'uízo sobre a autenticidade e o reto exercfcio dos dons extraordi


narios compete aos que governam a Igreja. A e/es em especial cabe nSo ex
tinguir o Espirito, mas provar todas as coisas e ficar com o que é bom (cf.
1Ts5,1Z 19-21)".

Em vista de tal ministerio, o Senhor Jesús prometeu á sua Igreja a ¡n-


falível assisténcia do Espirito Santo {cf. Jo 14,26; 16, 13-15), mediante a
qual Ela conserva íntegro e puro o depósito da fé ensinada por Cristo. Visto
que a oracao (a piedade) e o Credo estío intimamente relacionados entre
si, a vigilancia da Igreja, Máe e Mestra, se estende ás expressoes devocionais

1 Lex orandi lex credendi, diz o famoso adagio da Teología desde re


mota época, afirmando que as normas de fé oríentam o teor da oracSo dos
fiéis e více-versa.
(continua na pág. 463)

462
A ASSOCIAQÁO DITA "OBRA DOS ANJOS" 31

do povo de Deus, procurando fazer que correspondam sempre ao reto senti


do das verdades da fé e nunca suponham ou insinuem proposicoes contra
rias aos artigos do Credo.

Ora nos últimos decenios está sendo difundida urna devocao aos San
tos Anjos, baseada em revelacóes particulares; para cada dia do ano julga ha-
ver um anjo patrono, de modo que o calendario dessa devocao, dita "Opus
Angelorum (Obra dos Anjos)", conhece 365 diferentes nomes de anjos!

A Santa Sé, mediante a CongregacSo para a Doutrina da Fé, tem


acompanhado a evolucao de tal piedade e houve por bem publicar um De
creto ou resolucóes a respeito, no intuito de preservar a integridade da fé
católica.

O texto de tal Documento, datado de 6/6/92, va¡, a seguir, transcrito


em traducao portuguesa. Vem esclarecer algumas questoes que tém sido le
vantadas também no Brasil.

I. O Documento1

"Com urna carta enviada á Sé Apostólica a 19 de Dezembro de 1977,


o Cardeal Joseph Ratzinger, Arcebispo de Munique e Presidente da Confe
rencia Episcopal Alema, sol ¡citava que se procedesse a um exame sobre a
Associacao chamada Opus Angelorum (Engelwerk) e sobre as suas doutrinas
e práticas particulares originadas das supostas revelacoes privadas, recebidas
pela Senhora Gabriele Bitterlich.

Depois de ter realizado este exame, especialmente acerca dos escritos


que contém as mencionadas doutrinas, a Congregacao para a Doutrina da
Fé comunicou ao Em.mo Prelado, através da carta de 24 de Setembro de

A orígem desse adagio está no Indiculus ou Capitula pseudo-caelestina


(ano de 413?), capítulo 81, onde se le:
"Obsecrationum quoque sacerdotalium sacramenta respiciamus, quae
ab Apostolis tradita in toto mundo atque in omni Ecclesia Catholica unifor-
miter celebrantur, ut legem credendi lex statuat supplicandi. - Considere
mos os sacramentos da Liturgia, que nos foram entregues pelos Apostólos e
sSo celebrados uniformemente no mundo inteiro e em toda a Igreja Católica,
de modo que as normas da oracSo fundamentem as normas da fé".

1 Extraído da edicSo portuguesa de L'Osservatore Romano datada de


19/7/92, p. 7.

463
32 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"365/1992

1983, as seguintes decisdes, aprovadas anteriormente pelo Santo Padre na


Audiencia de 1? de Julho {cf. AAS LXXVI, 1984, pp. 175-176).

"1. A Obra dos Anjos, na promocao da devolucao aos Santos Anjos,


deve obedecer á doutrina da Igreja e dos santos Padres e Doutores.

Em particular, nao difundirá entre os seus membros e entre os fiéis


um culto dos Anjos, que se sirva de "nomes" condecidos por urna suposta
revelacao privada (atribuida á Senhora Gabriele Bitterlich}. Nao será Ifcito
usar esses mesmos nomes em nenhuma oracáo da comunidade.

2. A Obra dos Anjos nao exigirá dos seus membros nem Ihes proporá a
chamada "promessa do silencio" (Schweige-Versprechen), ainda que seja le
gitimo conservar urna justa discrigSo acerca das coisas internas da Obra dos
Anjos, tal como convém aos membros de institutos da Igreja.

3. A Obra dos Anjos e os seus membros observaráo com rigor todas as


normas litúrgicas, de modo especial as relativas á Eucaristía. Isto vale parti
cularmente para a chamada "comunhao reparadora".

Em seguida, a Congregacao para a Doutrina da Fé pdde examinar ou-


tros escritos provenientes da mesma fonte, e também dar-se conta de que as
suas dedsSes precedentes nao foram interpretadas nem observadas de manei-
ra correta.

O exame destes outros escritos confirmou o juízo que servia de funda


mento das decisoes anteriores, a saber, que a angelologia própria da Opus
Angelorum e certas práticas que déla derivam sao estranhas á Sagrada Escri
tura e á Tradicao {cf. Benedictus PP. XIV, Doctrina de Beatificatione Ser-
vorum Dei et de Canonizatione Beatorum, Lib. IV, Paris II, cap. XXX De
Angelis et eorum cultu, Venetüs, 1777), e por isso nao podem servir cómo
base para a espiritualidade e atividade de associacoes aprovadas peta Igreja.

Portanto, a Congregacao para a Doutrina da Fé adven iu a necessidade


de repropor estas decisSes, completando-as com as seguintes normas:

I. As teorías provenientes das supostas revelacSes recebidas pela Se


nhora Gabriele Bitterlich acerca do mundo dos anjos, dos seus nomes pes-
soais, dos seus grupos e funcóes, nao podem ser nem ensinadas nem utiliza
das de modo algum, explícita ou implícitamente, na organizacáo e na estru-
tura operativa (Baugerüst) da Opus Angelorum, nem sequer no culto, ñas
oracoes, na formacfo espiritual, na espiritualidade pública e privada, nó mi
nisterio ou apostolado. A mesma disposicao vale para quafquer outro Insti
tuto ou Associacao reconhecidos pela Igreja.-

i
464
A ASSOCIACÁO DITA "OBRA DOS ANJOS" 33

O uso e a difusSo, dentro ou fora da Associacao, dos livros ou de ou-


tros escritos contendo as referidas teorías sao proibidos.

II. Ficam proibidas as diversas formas de consagrado aos Anjos


(Engelweihen), praticadas na Opus Angelorum.

III. Além disso, sao proibidas a chamada administracáto dos sacramen


tos á distancia (Fernspendung), bemcomoa insercáo, na liturgia eucarística
e na liturgia das Horas, de textos, orac6es ou ritos que direta ou indireta-
mente se referem ás mencionadas teorias.

IV. Os exorcismos podem ser praticados únicamente segundo as nor


mas e a disciplina da Igreja nesta materia e com o uso das fórmulas aprova-
das por ela.

V. Um Delegado com faculdades especiáis, nomeado pela Santa Sé, ve


rificará e exigirá, em contato com os Bispos, a aplicacao das normas supraci-
tadas. Ele esforcar-se-á por esclarecer e regularizar as relacoes entre a Opus
Angelorum e a Ordem dos Cónegos Regulares da Santa Cruz.

O Sumo Pontfficie Joáo Paulo II, durante a audiencia concedida ao


subscrito Cardeal Prefeito, aprovou o presente Decreto, decidido na reuniao
ordinaria desta Congregado, e ordenou a sua publicacSo.

Roma, na sede da Congregacao para a Doutrina da Fé, 6 de Junho de


1992.

Joseph Card. RATZINGER


Prefeito
tAlberto BOVONE
Arcebispo Titular de Cesaréia de Numídia, Secretario"

ft-ü-ü

II. TRES OBSERVAQOES

A propósito tres breves observacoes podem ser formuladas:

1) A Comunhao Eucarística reparadora ou feita em expiacao dos peca


dos, como tal, é aceita pela Igreja. Receber a S. Eucaristía com piedade é
obra meritoria, que pode ser realizada em atitude de desagravo pelos peca
dos |do mundo. Neste sentido é praticada a Comunhao Eucarística em nove
primeiras sextas-feiras do mes; os fiéis procuram viver mais intensamente o
seu amor a Cristo em reparacao das ofensas cometidas contra o amor de

465
34 "PERPUNTE E RESPONDEREMOS" 365/1992

Deus. - á de supor que na Obra dos Santos Anjos tal prática ten ha tomado
algum significado pouco condizente com as verdades da fé.

2) A administracao dos sacramentos requer a presenca física do minis


tro aos fiéis. Por isto nao se pode dar a absolvicSo sacramental por telefone
nem por carta. Por isto também assistir á S. Missa pela televisao é ato meri
torio, se praticado com piedade, mas ná*o se pode dizer que o telespectador
cumpre o preceito dominical mediante esse seu gesto, pois a participado na
Missa, em sentido pleno, requer presenca f fsica. - Os enfermos que assistem
á S. Missa pela televisSo. realizam obra muito louvável; estáo dispensados do
preceito dominical, se a molestia na*o Ihes permite locomover-se até a igreja.

3) Os exorcismos há"o de ser aplicados com cautela e discernimento,


pois atualmente se registra forte tendencia a supor possessfo ou infestagao
diabólica em acidentes, doencas e desgracas que se podem explicar pelas
próprias limitacoes dos homens. A possessao diabólica deve ser diagnostica
da muito criteriosamente, evitando-se precipitado no julgar. O exorcismo
dito "maior ou solene" só pode ser aplicado por um sacerdote devidamente
autorizado pelo Sr. Bispo diocesano.

ifüú

A Formacío Integral do Sacerdote Católico, por Marcial Maciel LC


TraducSo do espanhol por Antonio da S. Rodrigues S.J. — Ed. Layóla, Sao
Paulo 1992, 140x210 mm, 239 pp.

O Pe. Marcial Maciel é o Fundador e Superior Geral da Congregacao


dos Legionarios de Cristo, Congregado que vem crescendo rápidamente,
com fundacóes em diversos países e grande número de vocacoes. OJivro em
pauta resulta da experiencia de formacSo sacerdotal realizada na Congrega-
ció. O autor insiste na seriedade dos estudos, na ascese pessoal, na disciplina
comunitaria, no zelo missionário e na vida espiritual alimentada pela oracSo
e os sacramentos — valores estes indispensáveis ao preparo de um sacerdote,
principalmente na época de secularismo que atiavessamos. Diz o autor na
sua IntroducSo: "Cresce na Igreja a consciéncia da hecessidade de contar
com sacerdotes santos e profundamente preparados, quepossam verdadeira-
mente servir a todo o povo de Deus na sua busca de santidade e no seu com-
promisso apostólico de anuncio do Evangelho. Esta consciéncia vai crescen
do, talvez mais e de modo especial entre os leigos... Dizia um deles durante
o último Sínodo dos Bispos: 'Sem os sacerdotes, que podem convocar os leí-
gos a realizar seu papel na igreja e no mundo, que podem contribuir para a
formacSo dos leigos no apostolado, apoiando-os na sua difícil vocacSo, falta
ría um testemunho essencial na vida da Igreja'" (p. 7)..

A obra promete ser valioso instrumento de tiabalho para quantos a


quíserém utilizar.
i

466
Sabedoria humana e crista":

O Tempo: Valor Básico

Em símese: O presente artigo discorre sobre o tempo, va¡endose das


fuzes da razao como Séneca asapresenta, e das luzes da fé. O tempo é o prí-
meiro dom deDeus.base de todos os demais (saúde, trabalho, felicidade.. J.
Em perspectiva cristS, o tempo está prenhe dos valores definitivos, que ten-
dem a desabrochar cada vez mais, suscitando no crístio a consciéncia de pe
regrino do Absoluto, em demanda daplenitude da Vida. O caminhar através
das estradas desta vida será sempre penoso, mas as dificu/dades sSo algo de
normal na vida de quem aspira a um nobre ideal; por isto o cristSo nSo espe
ra o Dia D, sonhado románticamente, para comecar a agir, maspoe-se hoje
mesmo á obra na construcio de sua personalidade (do seu eu cristSo) e da
sociedade a que ele pertence.

A experiencia ensina quao precioso é o tempo. Basta lembrar exclama-


cees que freqüentemente vém aos labios das pessoas: "O tempo voa!", "Ga-
nhar tempo...", "Perder tempo...", "Quisera mais um pouco de tempo",
"Se eu pudesse recomecar...", "Enquanto é tempo..." - Daf a importan
cia de urna reflexao sobre o tempo, reflexao pela qual tanto a Filosofia
quanto a Teología se interessam.

1. Séneca e o Tempo

Como expressao da Filosofia ou da razio humana, seja aduzido o se-


guinte texto de Séneca, pensador estoico (65 d.C), preceptor do Imperador
Ñero. Assim escreve Séneca a Lucí lio:

Í "Meu caro Lucflio, reivindica a posse de ti mesmo. Teu tempo até ago
ra te era tomado, roubado; ele te escapava. Recupera-o e cuida dele. A ver-
dade, ei-la: nosso tempo, arrancam-nos urna parte dele, desviam outra parte

467
35 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 365/1992

e o resto nos escorre entre os dedos. Todavía é mais digno de censura perdé-
lo por negligencia. E, para quem considera bem, urna boa parte da vida de-
corre em feitos desaceitados; outra parte decorre na vadiagem; a vida inteira
passa enquanto fdzemos coisas diferentes daquelas que deveríamos fazer.

Poderias citar-me um homem que dé valor ao tempo, que reconheca o


valor de um dia, que compreenda que ele morre diariamente? Nosso erro es
tá em julgar que a morte está diante de nos. No que se refere ao essenclal,
ela já passou. Urna parte da nossa vida está atrás de nos e pertence á morte!
Por conseguinte, caro Lucílio, faze o que dizes: segura cada hora. Serás
assim menos dependente do amanhá~, pois tu te terás apoderado do dia pre
sente. Os homens adiam a vida para mais tarde. Enquanto o fazem, a vida se
escoa.

Lucflio, tudo se acha fora do nosso alcance. Sonriente o tempo nos


pertence. Este bem fugidio, escorregadio, é a única coisa de que a natureza
nos fez proprietários. E o primáro que sobrevém, no-lo arrebata! As pessoas
sSo loucas: diante do mínimo presente, de quase nenhum valor, cada qual se
senté obrigado a retribui-lo, ao passo que ninguém se julga obrigado em vir-
túde do tempo que Ihe é concedido, tempo que é a única coisa que homem
algum pode retribuir, seja ele o mais grato dos homens" (Séneca, Carta a Lu
cflio I § 2).

Este texto de um filósofo de bom senso já nos sugere algumas consi-


deracSes, válidas também para os cristaos:

1) "Tudo se encontra fora do nosso alcance. Sonriente o tempo nos


pertence". i

Na verdade, o tempo é o dom básico, sem o qual nenhuma grapa ou


dádiva pode ocorrer; é o pressuposto de qualquer outro valor (saúde, aplica-
cá"o dos talentos, conquista da felicidade...).

É também no tempo que nos construímos, desdobrando nossas virtua


lidades, atingindo nossa estatura espiritual (e física) definitiva.

E como o tempo nos escapa!

— Deixamos que no-lo arrebatem mediante conversas ociosas, ocupa-


cSes e preocupacoes fúteis

— Deixamo-lo escapar
por curiosidade desregrada ou por frivolidade;
por preguica, comodismo...

468
O TEMPO: VALOR BÁSICO 37

- "Matamos o tempo" - o que significa "matar nossa construcao pes-


soal", matar a nos mesmos, condenando-nos á atrofia ou a sermos andes es-
prituais (o a nao é aquele cuja estatura física, sem culpa própria, nao acom-
panha o ritmo do tempo).

2) "Adiamos a vida para mais tarde. Enquanto o fazemos, ela se esvai".

Toda pessoa experimenta urna certa lerdeza natural diante de tarefas


que se impoem; trata-se de urna resistencia inconsciente ou quase inconsci
ente, que posterga tanto quanto possfvel (ou além do possfvel) as suas deci-
soes e atuacoes. Cada qual, desde enanca, parece ter a ¡mpressao de que há
muito tempo pela frente, pois a vida será longa, de modo que o tempo hoje
perdido poderá ser recuperado no futuro.

Na verdade, somente o hoje é certo; o amanháé incerto para cada ser


humano. A qualquer momento da juventude ou da idade madura o Senhor
pode chamar seus servidores a contas; a morte nao pede I ¡cenca; ela arrebata.
Feliz aquele que vive intensamente cada um dos seus dias, como se fosse o
último da sua vida terrestre!

3) "Nosso erro está em pensar que a morte está diante de nos... Ela
já passou. Urna parte da nossa vida está atrás de nos e pertence á morte".

Com estas palavras o autor quer dizer-nos que é oportuno familiarizar


se com a morte. Nao é algo de meramente futuro. Já devorou parte de nossa'
vida ou o nosso passado, que ná"o voltará. E devorará inexoravelmente o res
to da nossa existencia terrestre. Alias, a morte é a única realidade com que
certamente podemos contar ao prever nosso futuro.

2. A Perspectiva CristS

Cinco proposites nos ocorrem:

2.1. Tempo prenhe de eternidade1

Mediante a vinda de Cristo, o tempo tomou significado ainda mais


denso, pois o Senhor Jesús introduziu a eternidade no tempo. É Sao Joao
quem o afirma:

' Ao falar de eternidade, usamos um conceito bíblico, que há de ser


entendido no sentido de SSo Joao. Trata-se dos valores definitivos, que nSo
sSo meramente futuros, mas se fazem presentes no tempo mediante a vinda
de Cristo.

469
38 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"365/1992

Jo 6,54: "Quem come a minha carne e bebe o meu sangue, tem a vida
eterna, eeuo ressuscitarei no último día".

Jo 11,25: "Quem eré em mim, aínda que morra, vivera, E quem vive e
eré em mim, ¡amáis morrerá".

Alias a eternidade que entrou no tempo, é o próprio Deus, que se fez


companheiro de viagem do homem peregrino; "Ele armou sua tenda entre
nos" (Jo 1,14).

Daí falar-se do hoje de Deus ou do hoje que Deus santifica com a sua
presenca. A epístola aos Hebreus enfatiza solenemente a importancia desse
HOJE, referindo-se, alias, ao SI 95 (94):

"Assim declara o Espirito Santo: 'Hoje, se Ihe ouvirdes a voz. nao en-
durepais os vossos coracSes, como aconteceu na ProvocacSo, no día da Ten-
tacSo, no deserto, onde vossos país me tentaram, pondo-me á prova, embora
vissem minhas obras durante quarenta anos. Pelo que me indignei contra es-
sa geracSo, e afirme/: sempre se enganam no coracSo, e desconhecem os
meus camlnhos. Assim jurei em minha ira: nSo entramo no meu repouso'"
(Hb 3,7-11, citando o SI 95 [94] 711).

A esta citacao do salmo o autor da epístola faz o comentario seguinte:

"A Palavra de Deus é viva, eficaz e mais penetrante do que qualquer


espada de dois gumes; penetra até dividir alma e espirito, junturas e medul-
las. Ela julga as disposicoes e as ¡ntencoes do coracáo. E na*o há criatura
oculta á sua presenca. Tudo está nu e descoberto aos olhos daquele a quem
devemos prestar contas" (4,12s). '

O HOJE de Deus é dito kairós, na linguagem grega do Novo Testamen


to, significando o tempo oportuno; o tempo (chrónos) que o relógio dimen-
siona com fria indiferenca, vem a ser o tempo bom e propicio (kairós), des
de que Deus nele coloque a oportunidade de salvacao.

É interessante notar a freqüéncia e a variedade de ocurrencias das pala-


vras "hoje, agora" e equivalentes no Novo Testamento:

Le 2,11: "Nasceu-vos hoje um Salvador, que é o Cristo Senhor".

Le 24,43: "Em verdade eu te digo: hoje estarás comigo no Paraíso".

Jo 5,25: "Em verdade, em verdade eu vos digo: vem a hora —eé agora
- em que os morios ouvirSo a voz do Filho de Deus, e os que a ouvirem, w-
verSo".

470
O TEMPO: VALOR BÁSICO 39

Jo 4,23: "Vem a hora — eé agora — em que os verdadeiros adoradores


adorarao o Pai em espirito e verdade".

Me 1,15: "Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arre-


pendei-vos e crede no Evangelho".

Le 19,44: "LancarSo por térra a tí ea teus filhos no meio de ti, e nSo


deixarSo de ti pedra sobre pedra, porque nSo reconheceste o tempo em que
foste visitada".

Rm 5,6: "Foi quando aínda éramos traeos que Cristo, no tempo mar
cado, morrea pelos fmpios".

Em suma, a palavra agora (nyn) ocorre 95 vezes no Novo Testamento;


hoje ocorre 43 vezes; neste instante, 36 vezes; a hora de Jesús ou de Deus,
28 vezes.

2.2. Viver intensamente cada minuto

De quanto acaba de ser dito, segue-se que é necessário vivermos inten


samente o presente ou vivermos empenhando a plenitude de nossas convic-
goes e potencialidades. Isto significa ainda: evitar os atos tibios ou remissos,
praticar atos férvidos, que fujam á superficialidade e á rotina de vida mais ou
menos inconsciente.

Escreve o Pe. Charles de Foucauld (t 1916) missionário entre os ára


bes muculmanos no deserto do Saara:

"Jamáis nos inquietemos por causa do futuro. Em todo instante da


nossa vida, fagamos o que é mais perfeito, isto é, o que a vontade de Deus
nos impSe no momento presente. Feito isto, nSo nos inquietemos por cau
sa do futuro mais do que se tivéssemos de morrer na hora seguinte.

Pensemos no futuro tio somente para pedir a Deus que cumpramos


a sua vontade em todos os instantes da nossa existencia, e assim o glorifi
quemos o mais que pudermos.

Quanto ao mais, nSo nos ocupemos com o futuro mais do quesea vi


da deste mundo fosse acabar para nos. Estejamos totalmente no único mo
mento presente" (Comentario de Me 132).

Está claro que estes dizeres valem particularmente para um eremita,


corno era o Pe. de Foucauld. Aplicam-se menos a quem tem obrigacSes a
cumprir aman ha e depois de amanhá*; mesmo estes, porém, há*o de evitar
preocupacSes supérfluas ou passionais.

471
40 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"365/1992

2.3. Peregrinos do Absoluto

O fato de viver intensamente o presente nao deve fazer que o cristáo


esquepa que está em viagem, em tensao ou em demanda do Absoluto. A
eternidade que ele possui em virtude do Batismo e dos demaís sacramentos,
aínda é germinal. Por isto a S. Escritura incute freqüentemente a ¡magem da
estrada ou do caminho a percorrer.

É, por exemplo, o .que S3o Paulo lembra ao referir seu itinerario de


vida:

Fl 3,13k "IrmSos, eu nSo ¡ulgo que eu mesmo o tenha alcanzado, mas


urna coisa fofo: esquecendo-me do que fica para tras e avanzando para o que
está diante, prossigo para o alvo, para o premio da vocacao do alto, que vem
de Deus em Cristo Jesús".

A epístola aos Hebreus faz eco a este modo de ver. No seu capítulo 11
passa em revista os grandes heróis da fé desde Abel até os irmá*os Macabeus
(sáculo II a.C), e acrescenta:

"Todos eles, se bem que pela fé tenham recebido um bom testemu-


nho, apesar dísso nSo obtiveram a realizado da promessa. Pois Deus previa
para nos algo de melhor, a fim de que sem nos nSo chegassem á plena reafi-
za&o" (Hb 11 J9s).

Isto quer dizer que o povo de Deus está em marcha na historia e aguar
da a consumacao dos dons de que goza seminalmente na vida terrestre.
Alias, ao referír-se aos Patriarcas bíblicos, o mesmo autor observa: i

"Na fé todos estes morreram, sem ter obtído a realizacao da promessa,


depoís de té-la visto e saudado de longe, e depois de se reconhecerem estran-
geiros e peregrinos nesta térra. Pois aqueles que assim falam, demonstram
claramente que estSo á procura de urna patria. E, se lembrassem a que dei-
xaram, teriam tempo de voltar para lá. Eles aspira vam, com efeito, a urna
patria melhor, isto é, a urna patria celestial. E' por isto que Deus nSo se en-
vergonha de ser chamado o seu Deus. Pois, de fato, preparou-fhes urna cida-
de"(Hb 11,13-16).

A propósito podemos dizer que a ¡magem crista do tempo é a de um


cone que se abre: parte de um pontinho (urna sementé) e se dilata progressi-
vamente até chegar á sua plena abertura no face-á-face da eternidade. Outra
é a imagem do tempo que os pagaos concebiam: professando o eterno retor
no ou o ciclo das reencarnares, comparavam a historia a urna serpente que
se enrosca, gira sobre si mesma, mas acaba por morder a própria cauda; cabe-

472
O TEMPO: VALOR BÁSICO

ca e cauda coincidem entre si; o fim repetiria o cooiego, toda a movimenta-


cáo seria destituida de sentido. Por isto os pagaos desprezavam a historia, ao
passo que os cristSos a estimam como sendo o desdobramento do plano de
Deus, que se manifesta a través do próprio tempo.

2.4 CairSo os véus...

0 cristao que possui a sementé da vida eterna, sabe que a cada mo


mento pode ser chamado pelo Senhor para a sua Páscoa ou a sua passagem
do provisorio ao Definitivo, do terrestre ao Celeste...

Por isto, o Senhor Jesús o exorta insistentemente á vigilancia:

Me 13,35: "AtencSo, e vigiai, pois nao sabéis quando será o momento".

Le 12,35s "Tende os rins cingidos e as lámpadas acesas. Sede seme-


Ihantes a homens que esperam seu senhor voltar das nupcias, a fim de Ihe
abrirem logo que ele vier e bater".

Mt 25,13: "Vigiai,portante,porquena~o sabéis nem o dia nem a hora".

0 cristao deve fazer como as virgens sabias da parábola de Mt 25,1 -13:


durma (pois é de carne e osso), mas com a lámpada acesa, de modo a poder
responder ao chamado do Senhor desde que Ele Ihe venha ao encontró. É o
que diz a esposa do Cántico dos Cánticos: "Eu durmo, mas o meu coracáb
vigía" (Ct 5,2).

Seja filho da luz, e nao filho das trevas: "Todos vos sois filhos da luz,
filhos do dia. Nao somos da noite, nem das trevas" (1Ts 5,5).

Faca tudo em nome do Senhor Jesús, ou seja, consciente de que a


multidao de seus afazeres temporais deve ser perpassada por urna única gran
de intencáo: a de servir ao Senhor Jesús e encaminhar-se, através das coisas
temporais, para as definitivas.

2.5. "Na angustia dos tempos" (Dn 9,20)

O livro de Daniel (9,25) fala da reconstrucao de Jerusalém por parte


dos judeus que voltaram do exilio no sáculo VI a.C. E nota que essa recons
trucao haveria de se dar na angustia dos tempos, ou seja, em tempos dif icéis,
pois os estrangeiros ocupavam a térra de Judá e resistiriam aos esforcos dos
repatriados desejosos de restaurar a CidadeSanta O Pe. Charles de Foucauld,
militar francés convertido ao Catolicismo e feito eremita no deserto do
Saara, comenta tal passagem bíblica nos seguintes termos:

473
42 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"365/1992

"Há urna palavra da S. Escritura de que devemos sempre recordar-nos,


creio eu: Jerusalém fot reconstruida in angustia temporum (Dn 9,20), é pre
ciso ter consciéncia de que a vida inteira trabaiharemos in angustia tempo
rum. As dificuldades na"o sSo algo de transitorio, que devamos deixar passar
como urna borrasca, para comecar a trabalhar quando o tempo estiver cal
mo. Nao; elas sSo as condicdes normáis; é preciso saber que por toda a vida
estaremos in angustia temporum sempre que quisermos praticar coisas boas".

Estas palavras sSo realistas e muito verídicas: as dificuldades nao sao


algo de transitorio que devamos deixar passar como passa urna borrasca, pa
ra, depois, comecarmos a agir. Nao há que esperar o dia D, acalentado em
sonho, comoo tempo em que teremos o que julgamos necessário para agir
bem. Ná*o; é no dia de hoje, ingrato como nos parece, que sem demora de-
vemos viver a nossa vida com todo o entusiasmo que a idéia despena em
nos; nao se pode protelar sob o pretexto de que nos faltam as condicSes al-
mejadas para conseguir éxito. O amanha "sonhado" é incerto; só nos é ga
rantido o momento presente.

Nesse hoje ingrato, ás vezes hostil á fé (como era o hoje do Pe. de


Foucauld, que acabou sendo assassinado pelos árabes em 19/12/1916), po
demos agir se nao pelo nosso discurso religioso, ao menos pelo nosso com-
portamento fiel e intrépido, testemunhando pelo nosso porte os valores cris-
tafos. É o que observa o mesmo Pe. de Foucauld em seu Diario, parafrasean
do Sao Francisco de Sales e Sfo Vicente de Paulo:

"Meu apostolado há de ser o apostolado da bondade. Vendo-me, é pa


ra desejar que as pessoas digam: 'Já que este homem é tSo bom, a sua retí-
giSo deve ser boa'. E, se me perguntarem por que sou manso e boni, devo di
zer: 'Porque sou o servidor de alguém melhor do que eu. Se voces soubessem
como é bom o meu Mestre JesusV Eu quisera ser tao bom que possam dizer:
'Se talé o servidor, como deve ser bom o mestreV ".

Assim é que todo tempo é kairós para o cristáo. Este conta nSo apenas
com os seus talentos pessoais (sempre limitados), mas conta principalmente
com a grapa de Oeus para viver com plena consciéncia e dedicacao cada um
dos momentos de sua vida terrestre. E um dia o cristSo experimentará quao
verazes safo as palavras do salmista:

"Os que semeiam com lágrimas, ceifarSo em meio a caneces" (S1126


[125], 5).
Declaracao oficial:

A Nulidade do Casamento da
Princesa Carolina de Monaco

Em síntese O casamento da Princesa Carolina de Monaco com o Sr.


Philippe Junot esteve em foco últimamente, pois foi declarado nulo pela
Santa Sé após um julgamento de duas instancias sucessivas. Os tríbunais
eclesiásticos examinaram atentamente a documentado e ouviram as teste-
munhas respectivas, chegando á conclusSo de que simplesmente nSo houve
matrimonio no caso, em virtude de impedimentos canónicos existentes por
ocasiSo da cerimónia religiosa. - A Igreja entSo reconheceu a nulidade desse
enlace; nSo o anuiou, pois anular significa desfazeralgo de válido (coisa que
a Igreja nSo pode efetuar, quandose trata de matrimonio válido e consumado).

Os jomáis noticiaram a dissolucao do casamento da Princesa Carolina


de Monaco, suscitando certa curiosidade. Em tais ocasioes, há quem confun
da declaracáb de nulidade com divorcio - o que gera comentarios pouco
verídicos.

Em vista disto, o Diretor da Sala de Imprensa do Vaticano emitiu urna


Nota elucidativa, datada de 19/07/92, Nota que vai abaixo transcrita em tra-
ducáo portuguesa.

A NOTA OFICIAL

"0 casamento entre pessoas batizadas, fundado sobre o consentimen-


to pessoal e irrevogável dos esposos, e o vínculo sagrado que daí resulta, náfo
dependem do arbitrio dos sores humanos. SSo, portanto, indissolúveis.

O dom de si realizado reciprocamente pelos genitores e o bem dos fi-


Ihos exigem a plena fidelidade dos esposos e a sua uniao indissolúvel. Este
ensinamento da Igreja foi mais urna vez recordado pelo Concilio do Vatica
no II, para a salvaguarda da dignidade da instituicao matrimonial e familiar
(cf. Const¡tu¡cá"o Gaudium et Spes n9s 47-52).

475
44 "PERPUNTE E RESPONDEREMOS"365/1992

A indissolubilidade do matrimonio sacramental é constantemente rea


firmada nos ensinamentos dos Soberanos Pontífices. Em particular, Joao
Paulo II, em seus discursos á Rota Romana, lembrou muitas vezes que o
fracasso do casamento nao significa a nulidade do mesmo (cf. Alocucoes de
6/2/1987 e 24/1/1988).

De fato, a legislacao da Igreja declara que a indissolubilidade é proprie-


dade essencial do matrimonio; no quadro das nupcias cristas essa indissolubi
lidade tem sua estabilidade reforcada por efeito do sacramento (cf. canon
1056 do Código de Direíto Canónico). Isto nao impede a Igreja de reconhe-
cer a existencia de circunstancias que podem invalidar um casamento, seja
por causa de impedimentos existentes em casos particulares, seja por defeito
de forma, seja por insuficiencia de consentimento. Dado que, no momento
da celebracao do casamento, se verifiquem uma ou algumas dessas circuns
tancias, entendidas no sentido do Direito. . . o matrimonio é ineficaz e, por
conseguinte, nulo desde o inicio, mesmo que as partes interessadas expri-
mam sensivelmente o seu consentimento matrimonial. A nulidade ocorre in-
dependentemente da consciéncia, mais ou menso esclarecida, que da mesma
possam ter os nubentes.

A nulidade assim entendida difere radicalmente do divorcio. Este pre


tende cancelar o que foi validamente contraído. Ao contrario, a pesquisa de
nulidade procura averiguar se, em sua origem ou no momento da manifesta-
cao do consentimento, um determinado matrimonio foi ou nao validamente
celebrado em vista de um ou de alguns dos motivos enunciados.

A Igreja confia aos seus tribunais a incumbencia de julgar a*nulidade


de um casamento. Estes tribunais funcionam, de um lado, assegurando aos
esposos o direito de intervir com os próprios representantes para defender
a nulidade ou eventualmente a validade do vínculo conjugal e, de outro la
do, vigiando em prol da seriedade da pesquisa que examina os motivos ale
gados para obter a declaracio de nulidade; para tanto, sao interrogadas as'
partes interessadas, convocadas as testemunhas indicadas e outras pessoas
que, segundo o Direito, devem ser ouvidas; sao investigados documentos e,
freqüentemente, efetuadas pericias médicas. Isto tudo ocorre sempre em
presenca de um Defensor Público do vínculo conjugal.

Além disto, a -fim de se evitarem erros que a administracáfo da justica


pode incorrer, o julgamento da validade de um casamento é confiado a co
legiados constituidos por, ao menos, tres juízes; para que a sentenca destes,
em alguns casos, possa tornar-se definitiva, deve ser confirmada por um Tri
bunal de Apelacao, também este constituido por tres jufzes, que, como se
compreende, nao s3o os do primeiro julgamento.
i

476
A DISSOLUCÁO DO CASAMENTO DA PRINCESA DE MONACO 45

Mediante esta atividade jurídica, a Igreja tenciona cumprir urna dolo-


rosa missao temporal (Alocucao de Joá"o Paulo II á Rota Romana em
31/1/86), nao somente averiguando a verdade, mas também proporcionando
a serenidade e a paz aos fiéis, quando as circunstancias o requerem.

O Processo de Declarado de Nulidade do Casamento Grimaldi-Junot

No tocante a este específico processo de declaracáo de nulidade, pare


ce oportuno esclarecer o que segué:

Em 1982, a Princesa Carolina Grimaldi de Monaco, valendo-se do di-


reito reconhecido a todo fiel, manifestou á autoridade eclesiástica a sua von-
tade de encaminhar o processo de nulidade do casamento queela contraíra
com o Sr. Philippe Junot aos 29 de junho de 1978, casamento sobre o qual
a autoridade civil já pronunciara sentenca de divorcio aos 9 de outubro de
1980.

A Santa Sé de conformidade com o Direito entáo vigente (canon


1557 § 1?, n? 1 do Código de Direito Canónico de 1917), nomeou urna
Comissao especial, isto é, um tribunal de primeira instancia, competente
para julgar tal causa, já que se tratava de pessoa isenta da jurisdicáo dos
tribunais eclesiásticos ordinarios, na qualidade de filha de um Príncipe So
berano (que reinava no Principado de Monaco).

Essa mesma Comissao, composta de tres juízes da Rota Romana,


um Defensor do Vínculo Conjugal e um Notario (ficando ressalvada a pos-
sibilidade de que os esposos se fizessem defender por seus advogados), deu
andamento ao processo segundo as normas do Direito Canónico. A Comis
sao dispensou grande atencao as partes interessadas e a documentos perti
nentes, provendo-se de informacoes necessárias e levando em conta pericias
médicas.

O processo concluiu-se com a sentenca de 27/2/1992, que reconhecia


e declarava que a nulidade do casamento Grimaldi-Junot estava comprovada.
Todavía urna das partes aduziu elementos ou motivos em conseqüéncia dos
quais a causa foi levada ao julgamento de um Tribunal de Apelacao. Por con-
seguinte, foi nonTeada nova ComissSo, mais numerosa, composta por cinco
juízes da Rota Romana (cf. canon 1245 § 2), que, como se compreende,
ná"o constavam da Comissao de primeira instancia. A pos ter ouvido as partes,
recebido a defesa dos apelantes e obtido o parecer do Defensor do Vínculo
Conjugal, a nova Comissao, em data de 20 de junho de 1992, confirmou a
serttenca de primeira instancia, e reconheceu que chegara á plena certeza da
nulidade do casamento Grimaldi-Junot, ou seja, á certeza da inexistencia
desse casamento desde as suas origens "

477
46 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"365/1992

NOTA DA CONFERENCIA DOS BISPOS DA FRANCA

"A Sala de Imprensa do Vaticano tornou público o julgamento do Tri


bunal Eclesiástico da Santa Sé que declara nulo o casamento da Princesa Ca
rolina de Mdnaco e do Sr. Philippe Junot. A Princesa Carolina, católica, deve
ser tratada com justica, como os outros fiéis batizados, qualquer que se/a a
sua condicao social e independentemente das circunstancias que acompa-
nham tal processo.

Valendo-se do direito reconhecido a todos os fiéis, a Princesa em


1982 julgara poder apresentar á Igreja a questSo da validade do seu casamen
to com o Sr. Junot; era seu direito.

Os jufzes foram nomeados pelo Papa, ouviram os interessados e aque


les que tinham um depoimento a prestar. Esses magistrados eclesiásticos pro-
nunciaram sua sentenca e declararam nulo o casamento.

Os motivos da sentenca nao devem ser dados a público, pois perten-


cem ao foro privado dos interessados e ao segredo das consciéncias.

A Princesa de Monaco e seus filhos tém direito ao respeito, como qual


quer outra pessoa.

Pe. Jean-Michel di Falco


Porta-voz da Conferencia dos Bispos da Franca"

ULTERIORES INFORMACOES

"Casamentes reconhecidos nulos no decorrer de um ano '

Cerca de 30.000 casamentos sSo anualmente reconhecidos nulos pela


Igreja no mundo inteiro.

Na Franca cerca de 300 causas sá*o anualmente introduzidas, das quais


150 sao, em media, reconhecidas como fundamentadas.

OsCustos

Estío na faixa de 2.000 a 4.000 francos franceses. Todavía é possfvel


que um casal se beneficie de assisténcia gratuita ou semi-gratuita.

Os casos de possível declámelo de nulidade

O casamento entre pessoas batizadas é fundado sobre o consentimiento


pessoal e ¡rrevogável dos esposos. O vínculo sagrado que daí resulta, ná*o de
pende do arbitrio dos homens. É indissolúvel. Todavia a Igreja reconhece
i

478
A DISSOLUCÁO DO CASAMENTO DA PRINCESA DE MONACO 47

circunstancias que podem levar a declarar um casamento nulo. Ela nao anula
um casamento; Ela reconhece a sua eventual nulidade. Esta difere do divor
cio no sentido de que o processo procura averiguar se desde o inicio o casa
mento foi inválidamente celebrado por um ou mais dos motivos seguintes:
1) falta de liberdade de urna das partes; 2) recusa de fidelidade ou de fecun-
didade; 3) imaturidade que impossibilite assumir um compromisso; 4) im-
possibilidade ponderável de viver a vida conjugal; 5) falta de discernimento;
6) incapacidade psicológica ou física de contrair as obrigacSes essenciais do
casamento; 7} erro de pessoa."

(Notas colhidas río Boletim S.N.O.P. n? 879, 10/7/1992, da Conferen


cia dos Bispos da Franqa).

Ver a respeito PR 303/1992, pp. 338-357, onde se encontra a explana-


cá*o minuciosa dos impedimentos que tornam ou inválido ou ilícito o casa
mento religioso.

Estévao Bettencourt O.S.B.

■ü-üit

DIZ O MONGE TEOTIMO...

"Já nao tenho nome. Aqora chamam-me 'o Velho', sem mais. Ou 'Pai, o
Ve I no' nos dias mais favoráveis. Minha barba pende como farrapos de linho
amarelado. Cuspi ou engoli todos os meus dentes, uns após os outros. Cami-
nho a passos curtos; fico sentado diante da minha porta ou dentro do meu
cubículo. Velho, parece que sou muito velho.

Se posso dizer 'parece', é porque me basta fechar os olhos (mas isto


me acontece, por vezes, também com os olhos abertos), basta fechar os
olhos para ver urna enanca, urna criancinha, desajeitada, encantadora, ino
cente, e, essa criancinha, eu sei que sou eu. Ela brinca na areia do deserto,
diante da minha porta, tranquilamente, sorrindo para mim.

Apesar dos ferimentos, das rugas, das cicatrizes de minha alma e de


meu corpo, após tantos combates nesta térra, sei que sou sempre, diante de
Deus, a criancinha que corre sobre as colinas, que vai e vem. Sei que, apesar
de todos os anos que me desgastaram, minha vida nao está para tras, mas es
tá diante de mim. Eu, o velho que nada mais pode, vou deixar o mundo in-
teiro atrás de mim, passarei á frente do mundo inteiro na corrida; chegarei
primeiro. Em breve a porta do jardim se abrirá; entrarei na poma dos pés,
muito delicadamente, para cativar urna borboleta sobre urna flor".

479
48 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"365/1992

A EXISTENCIA DO DEMONIO

O Sr. Geraldo E. Dal legrave escreveu no jornal "Gazeta do Povo" de


Curitiba, edicá*o de 23/8/92, um artigo intitulado "O termo 'demonio' nío
aparece urna $6 vez no original do Velho Testamento". - Estranho título,
visto que o termo demonio é grego (daimon), ao passo que o texto original
do Amigo Testamento é hebraico em sua quase totalidade, havendo poucos
livros em grego. Há, pois, certa incoeréncia no título.

No final do artigo escreve o Sr. Dallegrave:

"Dentre os 65% dos teólogos cató/icos que nao aceitam a existencia


absoluta do demonio, cito no momento dois, entre outros, de certa impor
tancia, porserem muito conhecidos:

O Dr. Boaventura Kloppenburg e Osear G. Quevedo S. J., que escreve-


ram numerosas obras, todas com aprovacoes eclesiásticas".

Diante da referencia a D. Boaventura Kloppenburg, a revista PR escre


veu a este Sr. Bispo e teólogo de Novo Hamburgo (RS), pedindo-lhe a even
tual confirmacao dos dizeres de Dallegrave. Eis a resposta de D. Boaventura:

"O artiguinho do Sr. Geraldo E. Dallegrave na Gazeta do Povo,


23-08-92, Curitiba, sobre o demonio ná*o tem nenhum valor, nem exegético,
nem teológico, nem histórico. Tem 'dalle grave' errori. Que eu alguma vez
tenha negado a existencia do diabo, é pura invencSo. Tentei resumir a dou-
trina crista* católica sobre o diabo e seus demonios ñas pp. 194 e seguintes de
meu livro Espiritismo (Edicdes Loyola). O que lá está, é a expressao de mi-
nha fé crista* católica.

(a) Freí Boaventura Kloppenburg O.F.M."

Novo Hamburgo, 09-09-92

Como se vé, o artigo em pauta nao é fiel á verdade, e nao pode ser tido
como canal de informales sobre o assunto abordado.

■ü-ü-Cr

480
LITURGIA E VIDA - 229 - JUL-AGO-SET - 1992 -XXXVIII

Continuadora da REVISTA GREGORIANA, direpáo e redacáo de D.


Joáo Evangelista Enout OSB. Há 38 anos sai regularmente.

D. Eduardo Schulz OSB


Le 6,36: utopia ou possibilidade?

Julián Lopes Martín


O "tempo Comum"

Congresso de Musicología

María Augusta Calado


Offícium Hebdomadae, Sanctae
A Presenta do Passionário Toletano de 1702
na Liturgia das "Minas dos Guaíazes",
Sertáo do Brasil

Crónicas Diversas
Crises dos últimos tempos
Crise ética e uma nota eclesiástica
Urna crise além da Ética
Uma Ética maior que ela mesma
Cinema: Aula de Ética
Ética dos "desenvolvidos"
O Santo: Ética do Céu

O Papa: Ética da Vida de hoje


Os Jovens de Angola

LITURGIA E VIDA com este número - o 4? de 1992 - ultra-


passa a metade do ano e boa parte de seus assinantes nao
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Santa Sé, contando 11 Oracóes Eucarfsticas, inclusive a mais recente
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staca está entre as fontes do monaquisino antigo. Escrita entre
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O genio, ou seja a santidade de um monge da Igreja latina do século


VI (480-540) - SAO BENTO - transformou-o em exemplo vivo, em
mestre e em legislador de um estado de vida crista, empenhado na
procura crescente da face e da verdade de Deus, espelhada na trajetó-
ria de um viver humano renascido do sangue rKdentor de Cristo.- As-
sim, o discípulo de Sao Bento ouve o chamado para fazer-se monge,
para assumir a "profissáo de monge".

Á SUA ESPECIAL ATENCÁO


Nos últimos meses tivemos enorme prejuízo com o desvio de centenas
de correspondencias e logo em seguida os CHEQUES (vindos em caretas)
descontados em conta "alheia" numa agencia do Banco do Brasil. Pedimos
sua colaboracao para que tal situacao nao continué.

RENOVÉ QUANTO ANTES SUA ASSINATURA PARA 1993:


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