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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizacáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DA EDIpÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanza a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
'.'■" visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.
Eis o que neste site Pergunte e
Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
_ vista cristáo a fim de que as dúvidas se
. dissipem e a vivencia católica se fortalega
i no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Verítatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo.
A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaca
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
ANO XXXVI JUNHO 1995 397

Seja Herói!

"Parusia ou a próxima volta de Cristo"

As Setenta Semanas de Daniel 9, 24-27

Apocalipse: interpretado

As principáis linhas doutrinárias do Protestantismo

Sobreviventes de Incesto Anónimos


PERGUNTE E RESPONDEREMOS JUNHO1995
Publicacáo Mensal N9397

Diretor Responsável SUMARIO


Estéváo Bettencourt OSB
Autor e Redator de toda a materia Seja Herói 241
publicada neste periódico Sinistras Profecías:
'Parusia ou a volta de Cristo' 242
Diretor-Administrador: Enigmático:
D. Hildebrando P. Martins OSB As Setenta Semanas de Daniel 9, 24-27 251
Livro dos Misterios?
Administra9áo e di3tribuicáo: Apocalipse: ¡nterpretacáo 259

Ed¡c6es 'Lumen Christi" Quais sao...?

Rúa Dom Gerardo, 40 - 5o andar - sala 501 As Principáis Linhas Ooutrinárias do


Tel.: (021)291-7122 Protestantismo 273

Fax (021) 263-5679 Quem sao?


Sobreviventes de Incestos Anónimos 281

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Ed. 'Lumen Christi'
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Cep 20001-970 - Rio de Janeiro - RJ

Impressíoe Encaderna<;3o

"MARQUES SARAIVA "


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Tels.: (021Í 273-9498 /273-9447

NO PRÓXIMO NÚMERO:
Quando foi escrito o Evangelho segundo Mateus? - "O Evangelho Perdido" (Bruton
L. Mack). - A Entrevista de Jacques Duquesne. - Os Magos e Jesús. - Tradicáo,
Familia e Propriedade (TFP). - Os Institutos Seculares. - O Caso Jacques Gaillot.

COM APROVACÁO ECLESIÁSTICA


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SEJA HERÓI!
M
HWí
Ser herói parece um privilegio reservado a poucos... No entanto,
quando a Igreja se dispóe a averiguar a autenticidade crista de alguém
que tenha morrido em odor de santidade, o primeiro passo consiste em
examinar se foi heroico ou nao na prática das virtudes. Isto quer dizer
que o herofsmo é um componente básico do ideal cristáo. Ser heroico
vem a ser algo de normal ou normativo para o cristáo.
E em que consiste o heroísmo?
- Nao é necessariamente fazer coisas vistosas, mas, sim, fazer
aquilo que Deus pede (ás vezes, simplesmente o cotidiano rotlneiro) de
maneira coerente e radical, sem regateios nem tibieza. Ai está o extra
ordinario do heroísmo cristáo: apesar da tendencia á lerdeza e á aco-
modacáo, mobiliza-se para realizar com a possível perfeigáo cada tare-
fa do dia e da noite. Com outras palavras: o heroísmo consiste em que
o cristáo nao se deixe abater por erras e falhas, nao capitule nem se
entregue á mórbida compaixáo para consigo mesmo, mas procure
reerguer-se prontamente de suas quedas e prossiga com fortaleza e
serenidade na estrada do Senhor.
Um texto bíblico vem muito a propósito... A epístola aos Hebreus é
dirigida a crístáos propensos ao desánimo... O autor sagrado propóe-
Ihes entáo, no capítulo 11, á galería dos heróis da fé desde o justo Abel
até os mártires macabeus (séc. II a. C). E acrescenta: toda essa multl-
dáo de gente forte se coloca agora como "torcedores" num estadio, a
espreitar o modo como as geracóes cristas, por sua vez, assumem o
desafio da sua vocagáo: esta nao é voca$áo para urna corrida de salto
espetacular, que em segundos é superada retumbantemente, mas é
corrida de fólego, que tanto mais gloriosa é quanto mais prolongada :
um passo, um passo, mais um passo, mais um passo... até chegar "ca-
indo aos pedacos"; cf. Hb 12,1-4. Tal é o heroísmo cristáo: urna corrida
de fólego, que os espectadores nao tém paciencia e tempo para acom-
panhar, porque "nao termina mais:"; Deus, porém, e o atleta cristáo
sabem quanto esse heroísmo imperceptível é grande. Para vencer o
pareo, o cristáo tem que deporo fardo do pecado, que o torna pesado
(torne-se "peso leve") e munir-se de paciencia tenaz e perseverante. O
autor observa ulteriormente: "Ainda nao disputastes até o derramamento
do sangue" (Hb 12,4), o que lembra um principio proposto aos atletas
greco-romanos: "Nao é atleta consagrado aquele que nao vé correr o
seu sangue".
Neste mes de junho, que lembra o amor heroico de Cristo configu
rado em seu Coracáo, possam os fiéis católicos tomar-se conscientes
desta sua vocacáo ao heroísmo e fujam da "áurea mediocridade", que
é anemia e leva á estagnacáo e á morte.
"Somos filhos dos Santos, e esperamos aquela vida que Deus há
de dar aqueles que nunca retiram dele a sua fé' (Tb 2,18 Vg).
E.B.

241
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS"
ANO XXXVI - Ns 397 — Junho 1995

Sinistras Profecías:

"PARUSIA OU A PRÓXIMA VOLTA DE CRISTO"


por Leo Persch

Em síntese: O livro do Pe. Leo Persch procura ilustrar as passagens de


Daniel e do Apocalipse, aparentemente proféticas, á luz das revelacóes parti
culares atribuidas ao Senhor Jesús e a sua Máe Santíssima; Medjugorje, Pe.
Gobbi e Vassula Ryden seriam luzeiros para se entenderem os textos sagra
dos. Em conseqüéncia, o Pe. Persch professa a volta de Cristopara breve (ano
2000), a fim de instaurar sobre a térra um reino de paz e bonanca espiritual;
esse evento, diz ele, será precedido de terríveis catástrofes, que puniráo os
maus e deixaráo os bons incólumes.

A estasproposicoes se deve oporo caráter arbitrario e subjetivo da inter-


pretagáo da Biblia porparte do autor; nao leva em conta o género literario dos
escritos apocalípticos de Daniel e de Sao Joño. Além do qué, é temerario dar
tanto peso a revelacóesparticulares como se fossem a continuagáo ou explici-
tagáo da revelagáo pública e oficial feita á Igreja por Jesús e pelos autores
sagrados. A índole subjetiva e imaginosa da obra do Pe. Persch prejudica a
sua credibilidade. - Dizemos isto sem pretender desmerecer o zelo do autor
pelo reafervoramento de vida dos fiéis cristáos. Este zelo missionário é muito
válido, mas vem sendo exercido sem base suficiente na Palavra de Deus.

O Pe. Leo Persch é Professor universitario em Pelotas (RS). Publicou em


1994 um livro que está causando impacto, a respeito da parusia ou da próxima
volta de Cristo'. Distingue este evento daquilo que se costuma chamar "o fim
do mundo". Admite na base de textos bíblicos (Daniel e Apocalipse principal
mente) relidos á luz de revelacóes particulares (Medjugorje, Pe. Gobbi, Vassu
la Ryden) a ¡mínente volta do Senhor Jesús para instaurar um reino de paz e
bonanca espiritual na térra; antes, porém, deste período feliz, registrar-se-áo,
como sinais precursores, terríveis catástrofes e tribulacóes nos próximos anos,
ficando a humanidade reduzida a um terco de seu montante. O livro tem aspec-

1 Parusia ou a Próxima volta de Cristo. Secretariado Rainha da Paz, Porto Alegre, 140 x 220
mm, 183 pp.

242
•PARUSIA OU A PRÓXIMA VOLTA DE CRISTO"

to de erudicáo, pois apela para numerosos textos bíblicos conjugados entre si.
A leitura de tal obra pode incitar o leitor que Ihe dé crédito, a urna atitude cada
vez mais piedosa ou a conversáo mais radical, mas também pode suscitar um
clima de apavoramento e terror, que, em vez de beneficiar, prejudica a vida
espiritual de muitos fiéis.
Dada a importancia de tal livro, consagramos-lhe as páginas subseqüen-
tes deste fascículo.

1. DUAS ADVERTENCIAS PRELIMINARES

1.1. Metodología

A obra do Pe. Leo Persch utiliza varios textos bíblicos. Todavía nao leva
em conta o sentido original, o género literario e a intencáo dos autores sagra
dos; interpreta-os como se fossem textos modernos, que podem ser entendi
dos segundo as categorías de pensamento do homem de hoje. O autor parece
mesmo desconfiar da exegese dita "científica" (cf. p. 161).

Eis, porém, que é regra de sadia exegese procurar, antes do mais, o sig
nificado preciso do texto original; é necessário entender o texto como o autor
sagrado o entendía e daí depreender a mensagem que ele quería transmitir. A
inspiracáo do texto bíblico por parte do Espirito Santo nao equivale a ditado
mecánico; supóe sempre as categorías de pensamento do escritor oriental,
antigo. Estas, portanto, tém que ser, primeramente, detectadas e reconheci-
das para que se possa compreender genuinamente a página bíblica. Este pro-
cedimento exegético tem sido enfáticamente recomendado pela Igreja desde
Pió XII (encíclica Divino Afilante Spirítu, 1943) até o Concilio do Vaticano II,
que em sua Constituicao Dei Verbum ditou as normas seguintes:

"Já que Deus falou na Sagrada Escritura através de homens e de modo


humano, deve o intérprete da Sagrada Escritura, para betn entender o que
Deus nos quis transmitir, investigar atentamente o que os hagiógrafos de fato
quiseram dará entender e aprouve a Deus manifestarpor suas palavras.

Para descobrira intencáo dos hagiógrafos, devem-se levar em conta, entre


outras coisas, também os géneros literarios. Pois a verdade é apresentada e
expressa de maneiras diferentes nos textos históricos, proféticos ou poéticos
ou nos demais géneros de expressáo. Ora é preciso que o intérprete pesquise
o sentido que, em determinadas circunstancias, o hagiógrafo, conforme a situ-
agáo de seu tempo e de sua cultura, quis exprimir e exprimiu por meio dos
géneros literarios entáo em uso. Pois, para entender devidamente aquilo que o
autorsagrado quis afirmarpor escrito, é necessário levar em conta sejam aquetas
usuais maneiras nativas de sentir, de dizer e de narrar que eram vigentes nos
tempos do hagiógrafo, sejam as que em tal época se costumavam empregar
ñas relacóes dos homens entre sh (n° 12).

243
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 397/1995

Verdade é que muitos dos exegetas científicos desde o fim do século


XVIII tém cedido ao racionalismo, a ponto de esvaziarem por completo o texto
bíblico. É o que vem provocando a réplica do chamado "Fundamentalismo",
que se apega á letra do texto como ele soa em suas versees vernáculas e se
fecha aos estudos de lingüística, arqueología, historia antiga... Ora o Funda
mentalismo é posicáo extremada, errónea, como o racionalismo, pois ignora o
misterio da condescendencia divina, que assume as modalidades da lingua-
gem e da cultura dos homens antigos para falar á humanidade. Assim se lé
num documento da Pontificia Comissáo Bíblica intitulado "A Interpretacáo da
Biblia na Igreja" e datado de 15/4/1993:

"O problema de base da leitura fundamentalista é que, recusando levar


em consideragáo o caráter histórico da revelagáo bíblica, e/a se toma incapaz
de aceitarplenamente a verdade daprópria Encamagáo. O Fundamentalismo
foge da estreita relagáo do divino e do humano no relacionamento com Deus.
Ele se recusa a admitir que a Palavra de Deus inspirada foi expressa em lin-
guagem humana e que e/a foi redigida, sob a inspiragáo divina, por autores
humanos cujas capacidades e recursos eram limitados. Por esta razáo, ele
tende a tratar o texto bíblico como se ele tivesse sido ditado, palavra porpala
vra, pelo Espirito e nao chega a reconhecer que a palavra de Deus foi formula
da numa linguagem e numa fraseología condicionadas por urna ou outra épo
ca. Ele nao dá atengáo as formas literarias e as mane/ras humanas de pensar
presentes nos textos bíblicos, muitos dos quais sao fruto de urna elaboragáo
que se estendeu por longos períodos de tempo e leva a marca de situagóes
históricas multo diversas.

O Fundamentalismo insiste também de maneira indevida sobre a inerran


cia dos pormenores nos textos bíblicos, especialmente em materia de historia
ou de pretensas verdades científicas. Multas vezes ele toma histórico aquilo
que nao tinha apretensáo de historicidade, pois ele considera como histórico
tudo aquilo que é narrado ou contado com os verbos em tempo pretérito, sem
a necessária atengáo á possibilidade de um sentido simbólico ou figurativo" (I F).

Por conseguinte, nem racionalismo nem fundamentalismo... Mas é ne-


cessário que o exegeta proceda sempre em duas etapas:

— procure, mediante os recursos da lingüística, da arqueología, da histo


ria antiga... definir claramente o sentido do texto original ou aquilo que o autor
humano quería dizer;
— a seguir, coloque esses resultados no conjunto das proposicoes da fé.
A Sagrada Escritura é um longo discurso de Deus, homogéneo, que tem suas
linhas centráis e seus acordes, que devem projetar luz sobre cada seccáo des-
se discurso. É o que Sao Paulo chamava "a analogía da fé ou a proporcáo da
fé" (Rm 12,6). Esta fé é vivida e proclamada pela Igreja, cujo magisterio rece-
beu de Cristo a garantía da autenticidade (cf. Jo 14, 26; 16,13-15).

244
■PARUSIA OU A PRÓXIMA VOLTA DE CRISTO"

Asslm o estudioso católico chega ao entendimento exato do texto sagra


do. Nao incute suas idéias ao texto (o que seria fazer in-egese), mas deduz do
texto a mensagem objetiva (faz ex-egese).
Quem assim nao procede, corre o risco do subjetivismo ou de interpreta
res pessoais, semelhantes ás que ocorrem no protestantismo.

1.2. As Revelacóes Particulares

A originalidade do livro do Pe. Persch está em ilustrar os textos bíblicos de


Daniel e do Apocalipse (principalmente) a partir das revelacóes particulares
ocorridas em Medjugorje ou nos escritos do Pe. Gobbi e de Vassula Ryden.
Essas revelacóes seriam roteiro para se entender a mensagem da Escritura.

A propósito observamos:

1) Nenhuma revelacáo particular é endossada oficialmente pela Igreja.


Esta nao pode colocar no mesmo plano a revelacáo feita por Jesús Cristo e
pelos autores bíblicos e qualquer revelacáo ocorrida em caráter particular após
a era dos Apostólos. A revelacáo oficial e pública termina com a geracáo dos
Apostólos; cf. Lumen Gentium n9 25; Dei Verbum nB 4. Em conseqüéncia
torna-se difícil crer que Deus queira continuar e explicitar a revelacáo outrora
feita pelas Escrituras servindo-se de revelacóes nao oficiáis ou fazendo destas
o complemento daquelas.

As revelacóes particulares, quando germinas, geralmente corroboram o


Evangelho, incutindo duas notas importantes: oracáo e penitencia. Assim em
La Salette, em Lourdes, em Fátima... Qualquer outra predicáo, principalmente
se é muito minuciosa, torna-se suspeita. É nao raro a satisfacáo que os "viden
tes" dáo á sua própria curiosidade de saber o decurso do futuro; imaginam-no
como se fosse revelado por Deus. Independentemente dessas minucias, ficará
sempre válida a exortacáo á conversáo e á oracáo, táo recomendada pelo
Evangelho e corroborada pelos sinais dos tempos atuais; estes pedem que os
cristáos muito especialmente sejam o sal da térra, a luz do mundo (cf. Mt 5,13s),
o fermento na massa (cf. Mt 13,33). A consideracáo dos nossos tempos, por-
tanto, deve levar ao afervoramento da vida dos cristáos, abstracáo feita de
predicóes sinistras.

Examinemos agora o teor do livro do Pe. Persch.

2. O CONTEÚDO DO LIVRO

O Pe. Persch distingue a ¡mínente volta de Cristo e o fim do mundo. Cristo


há de vir em breve para instaurar um reinp de paz e bonanca espiritual, que nao
pora o fim á historia da humanidade (nao chega a definir a duracáo desse reino
de paz ou nao chega a professar o milenarismo). Assim o autor respeita a

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 397/1995

recusa do Senhor, que nao quis revelar a data do juizo final (cf. Me 13, 32; At
1,7); julga, porém, que Ele manifestou a data da sua segunda vinda; cf. pp. 33-37.

Qual seria essa data?

Nao é indicado o ano preciso. Mas o autor afirma: "Depois do atual Papa,
o Anticristo e o desenrolar do Apocalipse" (p. 123).

O Anticristo é detido pela fori^a do Cristianismo, representada muito espe


cialmente pelo Papa Joáo Paulo II. Este é o obstáculo que impede a plena
manifestacáo do misterio da iniqúidade (cf. 2Ts 2,3-8); há de ser removido esse
obstáculo.

Precedendo a volta de Cristo, estáo acontecendo, e aconteceráo com


mais virulencia, grandes males sobre a térra, e Leo Persch fala de aconteci-
mentos dramáticos (pp. 19-21); a Maconaria (p.103), a Nova Era (pp. 103-117)
seriam torcas desencadeadas para provocar a perseguicáo dos cristáos em
nossos días; a AIDS é um dos flagelos preditos pelo Apocalipse (cf. p. 127); o
Apocalipse terá talado de produtos tóxicos, armas químicas, biológicas, nucle
ares... (cf. pp. 127-137).

Mais precisamente, o autor constrói sua cronología sobre dados do livro


de Daniel (como, alias, fazem os Adventistas e as Testemunhas de Jeová).
Parte de Dn 9,24-27. que afirma o seguinte:

24 "Um prazo de setenta anos foi fixado


A respeito do teupovo e da tua Cidade Santa.
Para por termo ao pecado,
Para dar fim á iniqüidade,
para expiara culpa,
Para introduzirjustiga eterna,
Para selar (= cumprir) visáo e profecía,
Para ungir o Santo dos Santos.

25 Reconhece e compreende:
Desde o momento em que foi emitida a palavra
De restauragáo e reconstnjgáo de Jerusaiém
Até a vinda do Príncipe Ungido,
Transcorreráo sete semanas.
E durante sessenta e duas semanas
Será restabeiecida e reconstruida (Jerusaiém)
Com sua praca e seu fosso,
Mas na angustia dos lempos.

26 E, depois de sessenta e duas semanas,


O Ungido será eliminado

246
•PARUSIA OU A PRÓXIMA VOLTA DE CRISTO"

Sem que naja pecado nele.


Entáo um príncipe que há de vir com seupovo,
Destruirá a cidade e o santuario.
Eseu fim se dará no cataclismo (na inundagáo)!
Até o fim haverá guerras
E os desastres decretados.

27 Ele firmará alianca com muitos


No decorrer de urna semana.
Eno meto da semana
Fará cessar o sacrificio e a obiagáo.
E sobre o santuario haverá a horrível abominagao.
Até que a destruigáo decretada
Se abata sobre o devastador".

Como se vé, o texto parece prever setenta semanas de anos (490 anos)
para que Cristo venha pela segunda vez, segundo o Pe. Persch. Essa duracáo
é dividida em tres segmentos:

- o primeiro compreende sete semanas de anos (49 anos); ver Dn 9,25a;


- o segundo compreende 62 semanas de anos (cf. Dn 9,25b);
- o terceiro compreende a última semana de anos, que, por sua vez, é
subdividida em dois fragmentos de 3,5 anos cada qual; ver Dn 9,27.

Segundo L Persch. a contagem das setenta semanas comeca em 5/3/


444 a.C, quando Artaxerxes da Pérsia decretou a restauracáo de Jerusalém
conforme o livro de Neemias1. As primeiras sete semanas ou o primeiro seg
mento dos 490 anos foram dedicadas á reconstrucáo do Templo de Jerusalém
e á reorganizacáo da vida teocrática na térra de Judá. Notemos que o Profeta
dirige a predicáo "ao povo de Israel e á cidade santa". Ora estes destinatarios
só subsistiram até o ano de 70 d.C, quando Jerusalém foi tomada pelos roma
nos e o povo disperso na diáspora. Persch julga que nessa data (ou, mais
precisamente em 33 d.C, quando Jesús morreu; cf. p.150) a execucáo da
profecía ou da previsáo de 490 anos foi interrompida, porque seus destinatari
os deixaram de existir. Faltava apenas urna semana para se completarem as
setenta semanas de anos. Os destinatarios tornaram a existir em 31/12/1993,
quando foi assinado o reconhecimento do Estado de Israel por parte do Vatica
no. Comeca entáo a fluirá última semana de anos, o que leva a historia atribu
lada a terminar no ano 2000.

Estes últimos sete anos (1993-2000) estáo divididos em dois segmentos,


sendo que no segundo segmento será abolida a celebracáo da Eucaristía:

' O autor cita vagamente o livro de Neemias sem indicar capitulo e versículos. Na verdade.
quem decretou a restauracáo de Jerusalém, foi o re/ Ciro da Pérsia; cf. Esd 1,2-4.

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■PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 397/1995

"A supressáo do sacrificio da Missa e conseqüentemente a abominável


desoiagáo somente acontecemos partir da metade da semana de anos, isto é,
nos últimos tres anos e me/o" (p. 152).

Isto quer dizer que, a partir de julho de 1986, deixará de ser celebrada a
Eucaristía. Ver aínda:

"A duragáo da grande tribulagáo é oficialmente estabelecida em sete anos,


ou 'urna semana de anos', terminología criada por Moisés e empregada ñas
revelapóes do profeta Daniel. Tratase exatamente da última semana de anos
(últimos sete anos) das 'setenta semanas de anos' que ¡he foram reveladas. É
o tempo final'do nosso mundo, que será destruido em grande parte, para ser
inteiramente renovado pelo poder de Deus. Na esleirá da destruigáo acontece
rá também o Yim da prevaricagáo pela redengáo dos pecados e expiagáo da
iniqüidade - instauragáo de umajustiga eterna - fim (= cumprimento) das vi-
sóes eprofecías e a ungáo do Santo dos santos' (Dn 9,24).

Esses últimos sete anos, queprecedem a vinda de Cristo, se dividem em


dois períodos iguaís, de tres anos e meio cada um, isto é, quarenta e dois
meses ou 1.260 dias -períodos mencionados quatro vezes em Daniel e cinco
no Apocalipse.

Nos primeiros tres anos e meio, as turbulencias seráo de menor gravida-


de, e os acontecimentos ou tribulacóes permanecem ocultos, sendo que pou-
cos fatos vém á tona. Nos bastidores da historia, secreta e anulosamente,
armam-se esquemas e tramas que ¡rao evoluir em grandes catástrofes nos
anos seguintes. No segundo periodo, que terá inicio com a morte ou afasia-
mentó do Papa Joño Paulo II, será oficialmente abolido o santo sacrificio da
Missa, comegando, a partir daí, a precipitagáo dos graves acontecimentos.
Vejam o que diz Daniel: 'No meio da semana cessará o sacrificio e a oblagáo'
(9,27). Em 12,11, designa esse fato como 'abominável desoiagáo', expressáo
consagrada posteriormente nos Evangelhos, onde Jesús acrescenta: 'Quem
/eroprofeta Daniel, procure entender"(Mt24,15).

A partir desse marco inicial—a 'supressáo oficial do santo sacrificio da


Missa'—, que Jesús, em suas atuais mensagens a Vassula denomina 'omeu
Sacrificio Perpetuo', a situagáo irá se agravando mais e mais. Comegará pela
abertura dos 'sete setos', degenerando em catástrofes sempre maiores, á me
dida que se aproximam os derradeiros dias desses tres anos e meto" (pp. 82s).

"Essa aboiigáo oficialda Missa, que vira, como dissemos, depois da morte
do Papa Joáo Paulo II, será decretada pela autoridade máxima da Igreja, o
Anticristo, em nome de um malfadado modernismo, doutrina que entáo será
invocada para justificar tamanho sacrilegio" (pp. 92s).
•PARÚSIA OU A PRÓXIMA VOLTA DE CRISTO"

Finalmente vira gloriosamente o Senhor Jesús para reinar visivelmente


sobre a térra.

Interessante é que o autor tempera suas afirmacóes, caindo em certa


contradicáo, quando á p. 93 afirma:

"Dentro da hierarquia sempre haverá alguns que permaneceráo fiéis á


doutrína milenarda Missa e da Eucaristía. Durante esse turbulento período de
1.290 dias, mu/tos bispos e sacerdotes fiéis continuaráo a celebrar a santa
Missa. Seráo por isto perseguidos e uns quantos pereceráo, ¡motados como
cordeiros, pelos agentes que se encontram a sen/ico da efémera furia triunfan
te da segunda besta do Apocalipse.

Nao está claramente definido se isto acontecerá em todo o mundo".

O autor acrescenta á p. 161:

"Os sinais estáo em toda parte. Sim, só em nosso secuto, já sobem a


centenas as aparigóes de Jesús e María, de anjos e santos. Nos locáis de
aparigóes há 'sinais no sol, na lúa e ñas estrelas' - como predisse Jesús -,
vistos e testemunhados por dezenas de milhares depessoas. Diante deles os
simples se converíem. Convertem-se porque véem os frutos abundantes, e
também porque, com o instinto sobrenatural que Ihes confere o batismo, sen-
tem que a máo de Deus está operando a/i.

O grande problema sao os 'doutores', os 'dentistas', que sempre tém en-


gatilhada urna explicagáo parapsicológica. E/es falam em alucinapáo, em dra-
matizagáo do inconsciente, em aporte e outras coisas aínda mais bizarras"
(p.161).

Pergunta-se agora:

3. QUE DIZER?

3.1. Consideracdes Gerais

Sob o subtítulo 1 deste artigo já mencionamos a necessidade de um estu-


do serio e científico das Escrituras para se poder depreendera sua mensagem
com seguranca. Ora infelizmente o Pe. Persch nao pesquisa o sentido dos
textos bíblicos do Antigo Testamento nem seus géneros literarios. Entrega-se a
cálculos de cronología a partir de Dn 9, que sao artificiáis ou mesmo falsos; as
69 semanas de anos (483 anos) que ele julga comecar em 444 a.C, termína-

'Pode-se supor erro gráfico: 3ia anos corresponden! a 42 meses e 1260 dias. (N.d.R.)

249
_IO -PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 397/1995

ram em 39 d.C, ano este que nao corresponde nem ao da morte de Cristo
(esta terá ocorrido em 33, conforme Persch á p. 150) nem ao da queda de
Jerusalém (ocorrida em 70 d.C). - O recomeco do Estado de Israel, supresso
em 70 d.C., nao se deu em 1993, mas em 1947, quando a ONU houve por bem
reconhecer os direitos dos judeus sobre sua térra de origem. Donde se vé quáo
inconsistentes sao os cálculos e as datacóes de Persch; dir-se-ia que, de ante-
máo, ele concebeu o ano 2000 d.C. como o da volta do Senhor Jesús e quer
forcar o texto sagrado a afirmar o que ele predefiniu.

Quanto ás revelacóes particulares, é arbitrario tomá-las como luzeiro para


interpretar o texto sagrado. Supor-se-ia, da parte do Senhor Deus, a revelacáo
de artigos independente do magisterio oficial da Igreja. O grande número de
revelacóes particulares hoje proclamadas suscita o senso crítico do observa
dor; nao se poderiam reduzir a urna especie de reacio psicológica de pessoas
que, impressionadas pela inclemencia dos tempos atuais, procuram urna con-
solacáo na previsáo de castigo para os maus e recompensas para os bons
dentro dos próximos anos? Sabemos que a Igreja é sobria no tocante ás reve
lacóes particulares, e os Santos Doutores alertam para o perigo de confundir
fenómenos psicológicos com dons de Deus.

Ademáis a aplicacáo do raciocinio e do estudo a assuntos de fé nao so-


mente nao é má, mas vem a ser necessária; a fé requer credenciais ou motivos
de credibilidade. Compete á razio investigar as razóes por que os fiéis possam
ou devam crer nesta ou naquela proposicáo religiosa. Sem este sustentáculo
da razáo, pode o fiel cair no imaginoso ou fantasioso, confundindo intuicóes
subjetivas com artigos de fé. - O uso moderado da razáo nada tem que ver
com racionalismo ou incredulidade; está subordinado á autoridade da Palavra
de Deus, que chega até nos pelo magisterio da Igreja.

3. 2. Os livros de Daniel e do Apocalipse

O livro de Daniel, em seus capítulos 7-12, pertence ao género literario


apocalíptico, que é caracterizado por imagens, símbolos, números convencio-
nais... O leitor que nao leve em conta esse estilo da obra, corre o risco de
passar ao largo de sua auténtica mensagem.

Em dois artigos deste fascículo seráo abordados explícitamente o cap. 9


de Daniel e o livro do Apocalipse. Procuraremos apresentar o significado des-
sas seccoes bíblicas consideradas de maneira objetiva e sobria. O leitor pode-
rá entáo perceber mais claramente quáo pouco fidedignas sao as predicóes
minuciosas atualmente deduzidas desses livros. A conclusao que, sem dúvida,
se impóe a todo cristáo que reflita sobre os tempos presentes, é a da necessi-
dade absoluta de oracáo e penitencia. Pratique-as sem depender de profecías,
e estará dando a genuína resposta aos sinais dos nossos tempos.

250
Enigmático:

AS SETENTA SEMANAS DE DANIEL 9, 24-27

Em síntese: A profecía das setenta semanas de Daniel 9,24-27 é urna


das passagens mais obscuras e controvertidas da S. Escritura, pois o texto
nao sonriente é conciso e misterioso, mas também está mal conservado, pres
tándose conseqüentemente a variadas interpretagóes.

Abaixo será examinado o texto como tal. Ao que se seguirá a explanagáo


das duas interpretagóes mais em voga entre os exegetas. Nenhuma, porém, é
plenamente convincente. -Alias, deve-se levar em conta o fato de que o texto
de Dn 9,24-27está inserido num contexto apocalíptico ou de um género litera
rio simbolista, que nao é propriamente profético.

A profecía das setenta semanas de Daniel 9,24-27 é urna das passagens


mais obscuras e controvertidas da S. Escritura, pois o texto nao somente é
conciso e misterioso, mas também está mal conservado, prestando-se conse
qüentemente a variadas interpretares.

Já Sao Jerónimo, no séc. V, enumerava nove explicacóes diversas do


vaticinio (cf. In Dn 9,24 ed. Migne lat. 25,542-553).

F. Fraidl em 1883 enunciava 107 interpretagóes do texto, propostas todas


antes do século XVI; dessas interpretacóes, 22 eram messiánicas, isto é, refe
rentes a Jesús Cristo. Os exegetas modernos aumentaram esses números;
contudo reconhecem abertamente que nenhuma sentenca é cabal ou capaz de
elucidar plenamente o texto. Em conseqüéncia, devemos de antemáo renunci
ar a conclusóes irreformáveis na nossa exegese de Dn 9,24-27, e contentar
nos com a mais provável das explicares que se possam dar.

Ñas considerares que se seguem, procuraremos ser sobrios, evitando


questóes sutis, para deter-nos ñas grandes linhas e ñas expressóes mais im
portantes do texto sagrado. Examinaremos primeramente a face do trecho a
ser analisado; a seguir, percorreremos as duas principáis interpretacóes que
tém sido dadas á profecia das setentas semanas, tentando porfim dai deduzir
urna conclusáo positiva.

1. O TEXTO DE DN 9, 24-27

A passagem de Dn 9 nos apresenta o jovem israelita Daniel no fim do


exilio de Israel na Babilonia (587-538), ou seja, no fim do ano de 539 ou no

251
22 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 397/1995

inicio de 538 (é o que equivale ao "primeiro ano de Darío Medo" mencionado


em Dn 9,1). Daniel entáo se lembra da profecía que Jeremías (25,11 -13) profe
rirá em 606, anunciando que o degredo devia durar 70 anos (cifra arredondada,
á qual nao se deve atribuir precisáo matemática). Conseqüentemente, inflama
se do desejo de ver, quanto antes, terminada a humilhacáo de Israel, e derra
ma ardente oracáo penitente, a fim de impetrar a almejada misericordia para o
seu povo (Dn 9,3-19). Em resposta a esta prece, o anjo Gabriel é enviado ao
jovem orante, a fim de comunicar-lhe o seguinte:

24 "Um prazo de setenta anos foi fixado


A respeito do teupovo e da tua Cidade Santa,
Para por termo ao pecado,
Para dar fim á iniqüidade,
Para expiara culpa,
Para introduzirjustiga eterna,
Para selar(= cumplir) visáo e profecía,
Para ungir o Santo dos Santos.

25 Reconhece e compreende:
Desde o momento em que foi emitida a palavra
De restauragáo e reconstrucáo de Jerusaiém
Até a vinda do Principe Ungido,
Transcorreráo sete semanas.
Edurante sessenta e duas semanas
Será restabelecida e reconstruida (Jerusaiém)
Com sua praga e seu fosso,
Mas na angustia dos tempos.

26 E, depois de sessenta e duas semanas,


O Ungido será eliminado
Sem que naja pecado nele.
Entáo um príncipe que há de vir com seu povo,
Destruirá a cidade e o santuario.
Eseu fim se dará no cataclismo (na inundagáo)!
Até o fim haverá guerras
E os desastres decretados.

27 Ele firmará al/anca com muitos


No decorrer de urna semana.
Eno me/o da semana
Fará cessar o sacrificio e a oblagáo.
Esobre o santuario naveta a horrível abominagáo.
Até que a destmigáo decretada
Se abata sobre o devastador".

A principal dúvida de reconstituicáo do texto ocorre no v. 25. Poder-se-iam


juntar numa só frase as duas indicacóes cronológicas: "sete semanas e ses-

252
AS SETENTA SEMANAS DE DANIEL 9,24-27 13

senta e duas semanas" (cancelando-se o "durante" da traducáo ácima propos


ta); a segunda frase entáo cometaria por "será restabelecida e reconstruida...".
Contudo esta outra maneira de pontuar nao correspondería ao teor do texto
hebraico hoje existente, pois este indica pausa (ou separacáo de frase, atha-
nah) entre as duas cifras assinaladas (verdade é que os sinais de pontuacáo
nao sao primitivos nos livros bíblicos, mas foram introduzidos durante a Idade
Media segundo o modo de ver dos rabinos ditos "massoretas").

Passemos agora á

2. ANÁLISE DO TEXTO DE DN 9, 24-27

Como se vé, o anjo Gabriel quería dizer a Daniel que a aguardada vinda
do reino de Deus se daría, sim, ao cabo de setenta períodos, nao, porém,
setenta anos {como Daniel depreendia de Jr 25.11 -13) e, sim, setenta semanas
de anos ou setenta vezes sete anos (ou ainda, ao cabo de quatrocentos e
noventa anos).

A profecía de Jeremías vem assim considerada dentro de nova perspecti


va: nao é relacionada com o fim do exilio babilónico, mas com outra interven-
cáo forte e gloriosa de Deus em favor do seu povo.

Qual seria essa outra intervencáo predita para mais tarde?

As respostas dos exegetas variam do acordó com o ponto de partida que


tomam para calcular os 490 anos.

Há os que se baseiam no ano de 606, no qual Jeremías proferiu o seu


oráculo (25,11-13); chegam entáo ao séc. II a.C, ou seja. ao tempo dos Maca-
beus, em que de fato Deus se manifestou gloriosamente em defesa do seu
povo oprimido. - Há, porém, os que se apoiam em data posterior; podem assim
chegar á época de Jesús Cristo, e ver em Dn 9,24-27 urna profecía diretamente
messiánica.

Tal outra interpretado é a mais antiga na Igreja; os escritores e Padres


dos primeiros tempos a afirmavam, impressionados pelas expressñes de Dn
9,24, que parecem referir a bonanca messiánica simplesmente dita; também
os guiava a aplicacáo que Jesús fez de Dn 9,24-27 a acontecimentos da era
messiánica ou á destruicáo de Jerusalém em 70 d.C. (cf. Mt 24,15).

Contudo os exegetas mais recentes, atendendo melhor á letra do texto,


preferem a primeira interpretacáo atrás assinalada (interpretacáo referente á
era dos Macabeus).

Vejamos sumariamente como se desenvolve cada urna das duas explica


res (note-se que as múltiplas tentativas exegéticas de Dn 9,24-27 se redu-
zem finalmente a estas duas; por isto basta-nos levar em conta apenas essas).

253
'PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 397/1995

I) A interpretado diretamente messiánica

1. Observe-se, antes do mais, que o decreto ou a palavra de reconstruyo


de Jerusalém a partir da qual se comecam a contar as setenta semanas (cf. Dn
9,25), poderia situar-se em alguma dessas datas:

Na época em que Jeremías proferiu o oráculo de Jr 25,11, isto é, no ano


de 606 a.C.;

Na época em que Ciro libertou do cativeiro babilónico os judeus, autori-


zando-os a reconstruir o templo de Jerusalém, isto é, entre 538 e 535 (cf. Esd
1,14; 5,15; 6,3-5);

Na época em que Darío Histaspe renovou essa autorizacáo aos judeus,


isto é, no ano de 520 aproximadamente (cf. Esd 6,6-12);

Na época em que o reí Artaxerxes I (464-424), em seu sétimo ano de


reinado, promulgou semelhante permissáo, isto é, no ano de 458 {cf. Esd 7,12-26);

Na época em que o mesmo Artaxerxes I, em seu vigésimo ano de reina


do, reiterou essa permissáo, isto é, no ano de 445.

Dentre essas diversas possibilidades, certos exegetas escolhem a do ano


458 ou ano sétimo do reinado de Artaxerxes I (as outras datas ou nao seriam
muito precisas, ou nao se refeririam propriamente a um decreto de restauracáo
e reconstrucáo de Jerusalém). Ora, de 458 até a vinda do Príncipe Ungido (=
Messias, Cristo), devem transcorrer, conforme Dn 9,25, sessenta e nove se
manas de anos, isto é, 483 anos - o que nos leva até o ano 23 da era crista.
Esta data, porém, nao condiz exatamente com a cronología real da vida de
Jesús, que comecou a sua vida pública por volta do ano de 27 ou de 29/30.

Diante disto, outros exegetas comecam a contar os anos do reinado de


Artaxerxes I desde que, como dizem, este foi nomeado "co-regente" (compa-
nheiro de governo) de Xerxes no regime da Pérsia, isto é, desde 474. Além
disto, escolhem como ponto de partida do cálculo o decreto do ano 20 de Arta
xerxes I, decreto portante datado de 445/44. Acrescentando a este termo ses
senta e nove semanas de anos (483 anos), chega-se á data de 29/30 da era
crista, data que bem corresponde á do batismo de Jesús1. - Dado que o Se-
nhor tenha pregado aproximadamente tres anos, foi no meio da septuagésima
semana que Ele morreu (o que concordaría com os dizeres de Dn 9,26 e 27).

2. Urna vezfeitos estes cálculos, os adeptos da ¡nterpretacáo diretamente


messiánica explicam do seguinte modo os sucessivos dizeres do vaticinio:

10 cálculo ó toreado ou artificioso, pote 483 - 444 dn 39, o nao 29.

254
AS SETENTA SEMANAS DE DANIEL 9,24-27 15

O texto de Dn 9,24 seria como que urna visáo de conjunto da bonanca


acarretada pela vinda do Messias. O "Santo dos Santos" a ser ungido significa
ría Jesús Cristo (cf. At 10,35).

No v. 25 dever-se-ia fazer a soma das sete e das sessenta e duas sema


nas ai mencionadas. No decurso deste período (mais precisamente: durante o
secuto V) Jerusalém foi, sím, restaurada e reconstruida, embora em meio a
muitas dificuldades, como assevera o texto de Daniel.

O v. 26, falando da extirpado do Ungido, aludiría á morte de Cristo. O


príncipe que sobreveio com seu povo, destruindo Jerusalém e o santuario, seria
Tito com seu exército, ao qual de fato se deve a ruina de Jerusalém em 70 d.C.

No v. 27, a alianca firmada com muitos sería a nova e definitiva alianca


estabelecida por Cristo com todo o género humano. O sacrificio e a oblacáo
que cessam, seriam o ritual do Antigo Testamento, tornado inútil após o sacri
ficio de Cristo na Cruz. A devastacáo do santuario referir-se-ia ao que se deu
em 70 d.C, quando os romanos entraram em Jerusalém.

3. Agora pergunta-se: que dízer de tal corrente exegética?

— A mais de um titulo, é faina:

a) Ressente-se de um erro fundamental, pois comete círculo vicioso: su-


póe de antemáo que Daniel tenha tido em vista diretamente o Messias {coisa
que deveria ser provada) e, a partir desse pressuposto, tenta provar que real
mente o Messias como tal é focalizado pela profecía. A data do "decreto" ou da
"palavra" (v. 25) é entáo calculada em funcáo da provável cronología da vida de
Cristo e, para que haja plena convergencia entre a profecía e o Evangelho,
alguns intérpretes chegam a admitir urna pretensa elevacáo de Artaxerxes I á
co-regéncía no ano de 474 - hipótese esta que é assaz arbitraria, pois nao há
documentos nem testemunhos para provar que Artaxerxes tenha sido nomea-
do co-regente de Xerxes.

b) A teoría diretamente messiánica negligencia a perspectiva geral do livro


de Daniel. Este tem em mira geralmente os tempos dos Macabeus ou o séc. II
a.C.: sao assim orientados, de modo especial, os capítulos 7,8, 10 e 11, que
cercam a profecía das setenta semanas (c. 9); seria, portanto, muito estranho
que o autor sagrado neste vaticinio tivesse fúgido ao cenário geral das suas
descricóes. "Bom número de traeos se unem, compenetram e identificam do c.
7 ao c. 12 do livro de Daniel, de modo que, colocados táo perto uns dos outros,
lógicamente nao podem significar coisas diferentes" (I. Bigot, em "Dictionnaire
de Théologie Catholique" IV 1911.102).

c) A exegese judaica geralmente interpretou o oráculo em funcáo da era


dos Macabeus, e nao diretamente em vista do Messias.

255
'PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 397/1995

Conscientes destas dificuldades, abalizados exegetas propóem outra sen-


tenca, a saber:

II) A interpretacáo diretamente macabaica (ou referente á era dos Ma-


cabeus no séc. II a.C).

1. Os fautores desta tese partem do principio de que o decreto ou a pala-


vra mencionada em Dn 9,25 é a profecía de Jeremías (25,11 -13) concernente á
ruina de Jerusalém em 587-86.

Baseados nisto. há exegetas que comecam a contar as sete primeiras


semanas de anos (cf. v.25) a partir de 587/86; com mais 49 anos (7x7 anos),
chegam a 538/37, quando justamente apareceu o "Príncipe Ungido", que, se
gundo Is 45,1, seria Ciro, reí da Pérsia; este, com efeito, em 538/37 promulgou
um decreto que permitía aos judeus voltar do exilio para a Térra Santa e lá
reconstruir Jerusalém com seu templo.

A seguir, partindo de 538, tais autores (segundo Dn 9,25) contam 62 se


manas de anos, isto é, 434 anos... Pretendem chegar á morte do "Principe
Ungido", que seria Onias III, Sumo Sacerdote em Jerusalém, o qual, por insti-
gacáo de Menelau. foi assassinado em 171 a.C. (cf. 2 Me 4,27-50).

Acontece, porém, que entre a intervencáo de Ciro (538/37) e a morte de


Onias III decorreram 367 anos apenas, e nao 434. Já que um desses números
nao se pode reduzir ao outro, os adeptos de tal sentenca se véem em embara
po... Outros entáo retomam a explicacáo nos seguintes termos:

O ponto de partida do cálculo há de ser o ano de 606, em que Jeremías


proferiu o seu oráculo concernente á reconstrucáo de Jerusalém (cf. Jr 25,11-
13). Acrescentadas a este termo sete semanas de anos, atinge-se o ano de
557, em que Ciro se tornou rei de Asan; tem-se entáo o aparecimento do Ungi
do do qual fala Dn 9,25. - Voltemos agora ao ano de 606 e acrescentemos-lhe
62 semanas de anos, isto é, 434 anos; chegamos assim ao ano de 171 a.C,
quando de fato outro Ungido que nao Ciro, isto é, o sacerdote Onias III foi
morto! - A última ou a septuagésima semana estender-se-ia de 171 a 164; ora
precisamente no meio desta semana, em 168, Antíoco Epifanes, rei da Siria,
fez cessar ou proibiu os sacrificios e as oblacóes em Jerusalém (cf. 1 Me 1,45);
profanou o Templo, colocando sobre o altar a estatua de Júpiter Olímpico, ou seja,
a "horrível abominacáo" (o autor de 1Mc repete esta expressáo de Dn 9,27).
Antíoco também "firmou alianca com muitos", isto é, procurou aliciar muitos
judeus para pactuarem com a cultura helenística paga. Ter-se-áo assim cumprido
os w. 26 e 27 na época dos Macabeus pelas impías facanhas do rei Antíoco.

Segundo esta sentenca, a bonanca predita em Dn 9,24 seria a restaura-


cáo do santuario e do culto sagrado realizada pelos Macabeus em reacáo con
tra Antíoco; esta restauracáo (dizem os fautores da sentenca) podia muito bem

256
AS SETENTA SEMANAS DE DANIEL 9,24-27 17_

ser predita nos termos grandiosos do v . 24, pois era um prenuncio da plena
restauracáo que o Messias mais tarde devia trazer a Israel; o "Santo dos San
tos", no caso, seria o templo de Jerusalém, que foi novamente "ungido" ou
dedicado sob Judas Macabeu em 165 a.C, ou, possivelmente, o altar dos ho
locaustos, que foi consagrado de novo, conforme 1 Me 4,42-58.

Quanto á reconstrucáo de Jerusalém (com sua praca e seu fosso) menci


onada em Dn 9,25, seria a que se deu no séc. V, logo após o exilio ou a volta
dos judeus á Térra Santa.

2. Como julgar esta outra tentativa exegética?

A sentenca "macabaica" se apresenta, sem dúvida, bem arquitetada. Con-


tudo nao pode deixar de suscitar reservas por parte do leitor; principalmente
estranho é o processo de volta ao ano de 606 para se contarem as 62 semanas
até Onias III (estranho, sim, mas necessário... para que o cálculo dé certo). -
Nao obstante, esse outro modo de explicar o texto sagrado evita as dificulda-
des feitas á sentenca diretamente messiánica; é, ao menos, mais plausível do
que esta, e merece a preferencia.

Os autores católicos que admitem a interpretacáo macabaica da profecía


das setenta semanas, estáo de acordó em atribuir a este oráculo um sentido
típicamente messiánico, isto é, asseveram que os acontecimentos - inglórios
uns, gloriosos outros - ocorridos no período dos Macabeus eram tipo ou figura
dos fatos análogos que se deram na época do Messias, ou seja, no séc. I da
nossa era, em torno de Jesús Cristo e do Templo de Jerusalém (devastado
pelos romanos em 70). Compreende-se assim que Jesús, ao predizer a profa-
nacáo do Santuario de Israel em 70, tenha podido aludir á "horrível abomina-
cao" profetizada por Daniel e já urna vez instalada no Templo sob o reí Antíoco
Epifanes em 168 a.C. (cf. Mt 24,15); Daniel predisse o que havia de se dar -
primeiramente na qualidade de tipo durante a era dos Macabeus, depois na
qualidade de antítipo, nos tempos do Messias. Dentre os personagens da his
toria mencionada, o Ungido (= Christós, em grego; Messias, em hebraico),
Onias seria o tipo de Jesús Cristo; Antíoco, o do Anticristo ou dos poderes
deste mundo perseguidores de Cristo. - Além do mais, as expressoes de bo-
nanca do v. 24 sao táo grandiosas e categóricas que muitos intérpretes juigam
que nao podem significar apenas a purificacáo do Templo e a restauracáo do
altar verificadas na época dos Macabeus, mas háo de designar os bens messi-
ánicos ou os bens do reino de Deus consumado. Neste caso, o v. 24 deve ser
considerado diretamente (e nao apenas em tipo) messiánico.

Com efeito, no v. 24 a salvacáo vindoura é solenemente anunciada em


termos negativos (tres expressoes) e termos positivos (tres outras expressoes).

O pecado desaparecerá por completo, poís Ihe será dado fim (ele será en
cerrado e selado ou lacrado, dizotextooriginal hebraico) easculpas serao expiadas.

257
18 'PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 397/1995

Em substituicáo ao pecado, difundir-se-áo os bens espirituais da era mes


siánica:

a justica eterna será introduzida, isto é, nao haverá mais tratamento


injusto para os cidadáos do Reino de Deus;

visees e profecías seráo seladas, isto é, cumpridas, e o seu cumplimen


to será o sinal da sua autenticidade;

algo ou alguém de muito santo será ungido, palavras suscetíveis de


mais de um sentido: significam ou o templo de Deus vivo que é a Santa Igreja,
ou o Messias.

Em conclusáo: deveremos contentar-nos com urna atitude sobria diante


da profecía das setenta semanas, renunciando a querer deduzir de seus dize-
res datas precisas ou indicacóes muito minuciosas. Ela fala, sim, da vinda do
reino de Deus messiánico sobre a térra; fala, porém, no estilo habitual dos
profetas, isto é, usando de tipos e figuras, o que quer dizer:... aludindo direta-
mente a personagens e fatos (tipos) da historia antiga, pré-cristá, que devem
simbolizar, para o leitor, o antítipo ou a realidade final, messiánica. O estudioso
portanto desistirá de forcar artificialmente (mediante cálculos cronológicos re
buscados) a aplicacáo do texto á vinda de Jesús Cristo; admitirá, antes, que os
números 7,70 e 490 no vaticinio sao cifras arredondadas e simbólicas, destina
das a caracterizar perfeicáo e boas noticias em geral, conforme a linguagem
mística dos antigos.

Historia da Igreja de Lulero a nossos días. Vol I: A Era da Reforma, por


Giacomo Martina. Tradugáode Orlando Soares Moreira. -Ed. Loyola Sao Paulo
1995, 135x210mm, 261 pp.
O Pe. Giacomo Martina S. J. éprofessorde Historia da Igreja na Pontificia
Universidade Gregoriana (Roma). Langou em italiano urna obra de quatro voluntes
de Historia da Igreja: I-O Periodo da Reforma Protestante; II-O Período do
Absolutismo dos Reis; III - O Periodo do Liberalismo; IV-O Período Contemporá
neo (Concilio do Vaticano II e época pos-conciliar). Oprimeiro volume, traduzido
para oportugués, aborda as Causas da Revolugáo Protestante, a Propagagáo da
Reforma, a Reforma Católica ou Contra Reforma. O estudb é tartamente docu
mentado (boas indicacóes bibliográficas); aprésenla objetivamente os fatores ou
as idéias que moveram a historia, sem cederá crítica sistemática, mas ao contra
rio;ponderando ospontos de vista dos historiadores anteriores, nem sempre con
cordes entre si. Após cada capítulo, o autor aprésenla as questóes que pedem
ulteriores investigagóes. Chamam-nos a atengáo, entre outras, as páginas 181-
183, em que o autor estuda a questáo: será que o desenvoMmento dos povos
nórdicos é devido á sua religiáo protestante, aopasso que a situagáo dos países
meridionais se deve á sua fidelidade católica ?-OPe. Giacomo Martina responde
serenamente, mostrando que a questáo é um tanto tendenciosa, pois nao sepode
(Continua na pág. 288)

258
Livro dos Misterios:

APOCALIPSE: INTERPRETAQÁO

Em síntese: O presente artigo aborda o livro do Apocalipse de Sao Joáo, que


nao deve ser tido como fonte de argumentos em prol de ¡mínente fim do mun
do. O núcleo do livro dispóe-se em tres septenarios, que recapitulam toda a
historia da humanidade e da Igreja sob forma simbolista, mostrando que as
calamidades de toda e qualquer época estáo englobadas num plano sabio de
Deus. Este dirá a última palavra da historia; todavia o livro nao permite calcular
a data da consumapáo dos tempos ou da segunda vinda de Cristo. O Apocalip
se é um livro de reconforto e esperanca, e nao um livro de apavoramento. Há
de ser ¡ido dentro dos parámetros do respectivo género literario apocalíptico,
que tem seu estilo e seu linguajar próprios. Quem nao leva em conta tais pecu
liaridades, corre o risco de deduzir do texto sagrado o que ele nao quer dizer.

0 Apocalipse, com seus símbolos e suas cenas aterradoras, presta-se á


tentativa de se calcular a data do fim do mundo e das calamidades que, como
se eré, o devem preceder. Visto que a interpretacáo do livro nao é fácil, pois
requer criterios precisos deduzidos do próprio género literario apocalíptico, va
mos, a seguir, apresentar o problema suscitado pelo livro e a solugáo mais
plausível para o mesmo.

Dividiremos a nossa exposicáo em cinco partes: I. Que é um Apocalipse?;


II. O contexto histórico do Apocalipse de Sao Joáo; III. A interpretacáo do Apo
calipse; IV. Questóes especiáis; V. Conclusáo.

1. QUE É UM APOCALIPSE?

A palavra grega apokálypsis quer dizer revelacáo. O género literario das


revelacóes (ou apocalíptico) teve grande voga entre os judeus nos dois sáculos
¡mediatamente anteriores e posteriores a Cristo. A sua origem se deve princi
palmente ao fato de que os auténticos profetas foram escasseando em Israel
após o exilio babilónico (587-538 a.C); os últimos profetas bíblicos - Ageu,
Malaquias e Zacarías - exerceram o seu ministerio nos séculos VI e V a.C.

Ora após o séc. V o povo de Israel continuou sujeito ao jugo estrangeiro:


retomando do exilio babilónico em 538 a.C, ficou sob o dominio persa até
Alexandre Magno (336-323 a.C.) da Macedónia, que conquistou a tetra de Isra
el, anexando-a ao Imperio Macedónico. Após a morte do Imperador, a Palesti
na ficou sob os egipcios (dinastia dos Ptolomeus) até o ano de 200 a.C. Nesta
data, os sirios ocuparam e dominaram a térra de Israel, constituindo ai o perío-

259
20 'PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 397/1995

do dos Antíocos ou Seléucidas. Finalmente, os Romanos em 63 a.C. invadiram


o territorio palestinense e impuseram seu jugo aos judeus, jugo que perdurou
até que o povo de Israel foi expulso da sua térra em 70 d.C. (queda e ruina de
Jerusalém revoltada). Ora nessas duras circunstancias de vida o povo de Isra
el, nao tendo profeta, sentía necessidade de ser consolado e alentado para nao
desfalecer. Foi entáo que os autores judeus se puseram a cultivar mais assidu-
amente o género literario apocalíptico ou da revelacáo, que tem afinidade com
a profecía, mas, na verdade, nao se identifica com esta.

O apocaltpse (revelacáo) tende a incutir aos leitores urna conf¡anca inaba-


lável na Providencia Divina. Todavía, em vez de o fazer de maneira escolar ou
meramente teórica, exortando á fé, o autor recorre a um artificio: atribuí a um
famoso personagem bíblico do passado (Enoque, Moisés, Elias, Daniel) ou a
um anjo do Senhor revelacoes proféticas a respeito da época que ele e seus
correligionarios estáo vivendo. Esse personagem famoso antigo descreve os
tempos atribulados que os leitores experimentan! e assegura que a tormenta
passará, devendo a causa de Deus triunfar da faccáo dos impíos; estes serio
prostrados, pois ocorreráo em breve o juízo final da historia e a consumacáo
dos tempos. É isto que dá ao apocalipse a aparéncia de profecía; todavía nóte
se que o autor, ao descrever os fatos de sua época (como se tivessem sido
preditos por Enoque ou Moisés...), os descreve na base de suas observacóes
e experiencias pessoais. O recurso a personagem famoso da antigüidade como
revelador da mensagem é artificio próprio do género apocalíptico: tende a incu
tir mais ánimo e esperanca nos leitores; com efeito, se o próprio autor sagrado,
contemporáneo dos leitores ¡mediatos, predissesse días melhores, nao teria a
mesma autoridade que era inegavelmente reconhecida a Enoque, Moisés, Eli
as, Daniel... Por sua vez, o escritor sagrado tinha fundamentos para consolar
seus companheiros perseguidos e predizer a Vitoria final do bem sobre o mal,
porque esta é anunciada por todas as profecías e promessas feítas a Israel. O
autor de um apocalipse nada acrescenta de novo a essas promessas; apenas
as torna atuais, repetindo-as de maneira solene e enfática em momento peno
so da historia do seu povo e anunciando para breve o cumprimento das mes-
mas. De resto, a Saivacáo, já oferecida por Deus em fases anteriores de tribu-
lacóes de Israel, era penhor de que, também dessa vez, o Senhor nao abando
naría seu povo.

As páginas mais típicamente apocalípticas do Antigo Testamento sao os


capítulos 7 a 12 do livro de Daniel. Estas seccóes foram escritas no séc. II sob
o dominio dos sirios ou Antíocos na Palestina; atribuem a Daniel, famoso vario
do séc. VI, a descricáo simbolista dos acontecimentos que se desenrolaram
desde o dominio persa (séc. VI a.C.) até o dominio sirio (séc. II a.C); em estilo
de sonhos e visóes, sao apresentados os reís persas, macedónios, egipcios,
sirios que imperaran) sobre Israel até Antíoco IV Epifánio (175-164); para os
tempos deste, o autor apocalíptico anuncia a intervencáo final de Deus e saiva
cáo a ser trazida pelo Messias. Nao é fácil entender um apocalipse, visto que
utiliza exuberante simbolismo e coloca o leitor diante de um cenário cósmico,
que conjuga o céu e a térra.

260
APOCALIPSE: INTERPRETAQÁO

Mais precisamente, podem-se assim caracterizar os elementos formáis


do género apocalíptico:

1) A pseudonímia do autor. Este é um contemporáneo dos seus primei-


ros leitores, mas fala-lhes como se fosse um personagem antigo e venerável. É
o que se vé claramente, por exemplo, no livro de Daniel. No Apocalipse de Sao
Joáo é um anjo quem revela.

2) O caráter esotérico (ou reservado) das revelacóes. Estas teráo sido


comunicadas outrora ao venerável personagem da antigüidade; deviam, po-
rém, ficar em segredo até os dias do autor do apocalipse. Veja-se, por exem
plo, Dn 8,26; 12,9.

3) Freqüentes intervencóes de anjos. Estes aparecem, nos apocalipses,


ora como ministros de Deus que colaboratn com a Providencia Divina na dis-
pensacáo da salvacáo aos homens, ora como intérpretes das visóes ou revela
cóes que o autor do livro descreve. Cf. Ez40,3;Zc2,1s;2,5-9; 5,1-4; 6,1-8; Ap
7. 1-3; 8,1-13.

4) Simbolismo rico e, por vezes, singular. Animáis podem significar ho


mens e povos; feras e aves representam geralmente as nacoes pagas; os an
jos bons sao descritos como se fossem homens, e os maus como estrefas
caídas. O recurso aos números é freqüente, explorando-se entáo o simbolismo
dos mesmos (3,7,10,12,1000 como símbolos de bonanca; 3W( como símbolo
de penuria e tribulacáo). É a exuberancia do simbolismo dos apocalipses que
torna difícil a compreensáo dos mesmos; o leitor ou intérprete deve procurar
entender esse simbolismo a partir de passagens bíblicas e extra-bíblicas para
lelas (na verdade, há símbolos que se repetem com a mesma signif¡cacao:
gafanhotos, águias, cedro, tres anos e meio, mil anos...).

Os autores de apocalipses sao assaz livres ao conceber seus símbolos,


suas visóes e personificacóes; propóem cenas estranhas sem se preocupar
com a sua verossimilhanca; cf., por exemplo, a Jerusalém nova em Ap 21,1-
27; Ez 47,1-12.

5) Forte nota escatológica. Os apocalipses se voltam todos para os tem-


pos fináis da historia e os descrevem com grandiosidade, apresentando a ínter-
vencáo solene de Deus em meio a um cenário cósmico, o julgamento dos po
vos, o abalo da natureza, a punicáo dos maus e a exaltacáo dos bons (estando
reservado para Israel nesse contexto um papel de relevo e recompensa).

Este trago diferencia bem da profecía o apocalipse. A profecía é sempre


urna palavra dita em nome de Deus (propheemi = dizer em lugar de); todavía
nem sempre visa ao futuro; refere-se muitas vezes a situacóes do presente,
procurando sacudir os homens de sua indiferenca religiosa ou da hipocrisia de
vida, levando-os a conduta moral mais digna e correta; a profecía tem, sim, um

261
22 'PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 397/1995

caráter fortemente moralizante, válido para os contemporáneos, mas nem sem-


pre voltado para o futuro ou a escatologia. - Ao contrario, nos apocalipses a
índole moralizante desaparece quase por completo; o que preocupa o autor
sagrado sao os acontecimentos fináis da historia, que redundaráo em derrota
definitiva dos maus e premio para os bons; as visóes, os sonhos e os símbolos
fantasistas (que já os profetas cultivavam, mas com sobriedade) tornam-se o
elemento dominante na forma literaria dos apocalipses.

6) O género literario apocalíptico foi-se formando, com suas diversas ca


racterísticas, através dos sáculos ou paulatinamente. Já se encontram alguns
de seus elementos nos escritos dos profetas, antes do séc. II a.C. Há mesmo
passagens de profetas que tém estilo apocalíptico, como pode haver nos escri
tos apocalípticos trechos de índole profética. Assim no livro de Daniel sao tidas
como proféticas as passagens de Dn 2,34.44s; 7,9-14; 12,1-3.

2. CIRCUNSTANCIAS DE ORIGEM DO APOCALIPSE DE SAO JOÁO

1. No fim do séc. I tornava-se cada vez mais penosa a situacáo dos cris-
táos disseminados no Imperio Romano.

Em verdade, o Senhor Jesús deixou este mundo, intimando aos discípu


los aguardassem a sua volta gloriosa; nao Ihes quis indicar, porém, nem o dia
nem a hora de sua vinda, pois esta deveria ser tida como a de um ladráo que
aparece imprevistamente á meia-noite (cf. Mt 24,43; 1Ts 5,2s); vigiassem, pois,
e orassem em santa expectativa. Todavía, apesar da sobriedade das palavras
de Jesús, os discípulos esperavam que a sua vinda se desse em breve, en-
quanto aínda vivesse a geracáo dos Apostólos mesmos. Á medida, porém, que
se passavam os decenios, essa esperanca se dissipava; a nao poucos parecía
que Cristo havia esquecido a sua Igreja e que váo era crer no Evangelho.

A situacáo se tornara aínda mais angustiosa desde que Ñero, em 64,


desencadeara a primeíra perseguicáo violenta contra os cristáos. "Ser discípu
lo de Cristo" equivalía, daquela ocasiio em diante, a ser tido como "inimigo do
género humano": manifestava-se cada vez mais a oposicáo entre mentalidade
crista e mentalidade paga, de modo que, vivendo em plena sociedade paga, os
cristáos tinham nao raro que se abster das festas de familia, das celebracoes
cívicas, dos jogos públicos, até mesmo de certas profissóes e ramos de nego
cio (pois através de todos esses meios se exprimía a mentalidade politeísta e
supersticiosa reinante).

Em particular, na Asia Menor o ambiente era carregado de maus presságios:


lá ia tomando proporcóes cada vez mais avultadas o culto dos Imperadores, a
ponto de se tornar a pedra de toque da fidelidade de um cidadáo romano á patria.

Desde 195 a.C. a cidade de Esmirna possuía um templo consagrado á


deusa Roma; em 26 d.C. os esmirnenses ergueram outro santuario em honra
de Tiberio, Lívio e do Senado.

262
APOCAUPSE: INTERPRETACÁO 23

Em Pérgamo. desde 29 a.C., fora instituido o culto do Imperador.

A cidade de Éfeso, nos inicios do reinado de Augusto, construirá um altar


dedicado a este soberano no recinto do "Artemision" ou templo de Diana.

Os habitantes da Asia Menor eram especialmente inclinados a tal forma


de culto, pois se sentiam altamente beneficiados pelos governantes de Roma,
que haviam posto termo ás guerras civis na regiáo, assegurando á populacáó
prosperidade na industria, no comercio e na cultura em geral.

Ademáis outro perigo para o Cristianismo se fazia notar na Asia Menor em


fins do séc. I. A gente dessa regiáo era dotada de exuberante alma religiosa, de
sorte que dava acolhida nao somente ás religióes tradicionais do Imperio e ao
Cristianismo, mas também a formas de culto ditas "dos misterios" (de Mitra,
Cibele, Apolo...), recém-trazidas do Oriente. Tais misterios fascinavam pela
sua índole secreta e por sua promessa de divinizacáo.

Esse estado de coisas permite tirar a seguinte conclusáo: na Asia Menor


urna religiáo que, como o Cristianismo, professasse rigorosamente um Deus
único e transcendente manifestado por um só Salvador, Jesús, devia necessa-
riamente defrontar-se em breve com formidável alianca de todas as torcas do
paganismo: sistemas religiosos, interesses políticos, planos económicos devi-
am armar-se num combate unánime e cerrado contra o monoteísmo cristáo;
ser discípulo de Cristo, em tais circunstancias, significaría sofrer o odio e o
boicote geral de parentes, amigos e concidadáos nao cristáos. de tal modo que
até mesmo na vida cotidiana do lar o cristáo se sentiría sufocado por causa de
sua fé.

A situacáo sugería a nao poucos discípulos de Jesús ou a apostasia em


relacáo ao Divino Mestre ou urna especie de pacto com as ¡dejas do paganis
mo, de sorte a dar origem ao sincretismo religioso (caracterizado principalmen
te pelo dualismo ou o repudio á materia que a mística oriental muito propalava).
Foi em tais circunstancias sombrías que Sao Joáo quis escrever o Apocalipse.

2. A finalidade do livro toma-se assim evidente.

O autor sagrado visava, ácima de tudo, a alentar nos seus fiéis a coragem
depauperada; o Apocalipse, em conseqüéncia, é essencialmente o livro da
esperanca crista ou da confianca inabalável no Senhor Jesús e ñas suas pro-
messas de vitória.

Pergunta-se entáo: como terá Sao Joáo procurado levantar o ánimo e


corroborar a esperanca dos leitores? Haverá. em nome de Deus, prometido
dias melhores aqui na térra em recompensa da fidelidade a Cristo, de maneira
que quem fosse hostilizado por causa do Senhor Jesús viria a ser estimado

263
24 'PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 397/1995

pelos concidadáos e acariciado por prósperas condicoes de vida temporal (eco


nomía feliz, saúde, sucesso nos empreendimentos...)?

3. A INTERPRETACÁO DO APOCALIPSE

Como se compreende, grande é o número de sistemas que tentam inter


pretar o Apocalipse. Todos concordam sobre o sentido geral do livro, que quer
anunciar a Vitoria do Bem sobre o mal, do reino de Cristo sobre as maquína
les dos pecadores. Divergem, porém, quando tentam indicar a época precisa
em que o Apocalipse sitúa essa vitória. As diversas teorías se agrupam sob os
títulos seguintes:

1) Sistema dito "escatológico" ou do fim dos tempos: Sao Joáo estaría


descrevendo os embates fináis da historia. Esta interpretacáo esteve em voga
na antigüidade; foi posta de lado na Idade Media; do século XVI aos nossos
días é mais e mais prestigiada principalmente por parte de correntes que profe-
tizam o fim do mundo para breve;

2) Sistema da historia antiga (do século I aos séculos IVA/): o Apocalipse


descreveria a luta do judaismo e do paganismo contra os discípulos de Cristo,
luta que terminou com a queda da Roma paga (476) e o triunfo do Cristianismo;

3) Sistema da historia universal: o Apocalipse apresentaria, sob a forma


de símbolos, urna visáo completa de toda a historia do Cristianismo: descreve
ria sucessivamente os principáis episodios de cada época e do fim do mundo.

Todas estas interpretares sao, de algum modo, falhas, pois nao levam
em conta suficiente o estilo próprio do livro e querem deduzir do Apocalipse
noticias que satisfacam aos anseios de concreto ou mesmo á curiosidade do
leitor. Por isto, deixando-as de lado, proporemos a teoría da recapituladlo, que
tem seu grande mestre no Pe. E.-B. Alio O.P., professor da Universidade de
Friburgo (Suíca) e autor do livro: Saint Jean. L'Apocalypse. París, 1933 (4a
edicáo)'. Examinemos essa teoría.

A Recapitulacáo

Antes do mais, é necessário observar que nem todo o livro do Apocalipse


está redigido em estilo apocalíptico. Compreende duas partes anunciadas em Ap 1,19:

1,4-3,22: as coisas que sao (revisáo da vida das sete comunidades da


Asia Menor as quais Sao Joáo escreve); o estilo é sapiencial e pastoral;

'Segundo nos conta, até hoja nao foipublicado algum comentario do Apocalipse táo denso e
documentado quanto o do Pe. Alio O.P.

264
APOCALIPSE: INTERPRETAgÁO 25

4,1 -22,15: as coisas que devem acontecer depois. Esta é a parte apoca
líptica propriamente dita, para a qual se volta a nossa atencáo. Observemos a
estrutura dessa parte:

4,1-5,14: a corte celeste, com sua liturgia. O Cordeiro "de pé, como que
imolado" (5,6), recebe em suas máos o livro da historia da humanidade. Tudo o
que acontece no mundo está sob o dominio desse Senhor, que é o Rei dos
séculos. - Notemos assim que a parte apocalíptica do livro se abre com urna
grandiosa cena de paz e seguranza; qualquer quadro de desgraca posterior
está subordinado a essa intuicáo inicial.

O corpo do livro, que se segué, compreende tres septenarios:


6,1 -8,1: os sete selos
8,2-11,18: as sete trombetas
15,5-16,21: as sete tacas.

Refutamos sobre este núcleo central (de sentido decisivo) do Apocalipse.

Pergunta-se: urna estrutura táo artificiosamente construida poderá aínda


ser o reflexo ¡mediato da historia tal como ela é vivida pelos homens? Nao
seria, antes, o fruto de um arranjo lógico ou do trabalho de um espirito que
reflete sobre os acontecimentos e procura discernir alguns fios condutores por
debaixo das diversas ocorréncias da vida cotidiana? Sabemos que o estilo de
Sao Joáo é comparado ao vóo de urna águia que gira em torno do objeto con
templado até finalmente dar o bote ou dizer claramente o que quer. Levando
em conta esta peculiarídade de estilo, podemos dizer que o autor sagrado nao
expóe os sucessivos acontecimentos concretos da historia do Cristianismo,
mas apresenta a realidade invisível que se vai afirmando constantemente por
detrás dos episodios visíveis da historia. Em outros termos: o Apocalipse
apresenta (sob forma de símbolos) a luta entre Cristo e Satanás, luta que é o fundo
e a coluna dorsal de toda a historia. Cada septenario (o dos selos, o das trombetas
e o das tacas) é conseqüentemente urna peca literaria completa em si mesma; o
número 7. alias, significa plenitude ou totalidade, segundo a mística dos antigos.

6,1- 8,1:7selos.
Abre-se um livro -,
sfntese da historia.

15,5-16,21:7tagas. A
historia da Igreja per-
segu'da.sendo protago 8,2 -11,18: 7 trombetas.
nistas a MULHER e o Livro aberto: os flagelos
DRAGAOdocap. 12. sobre o mundo profano

265
26 'PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 397/1995

A seguir, de 17,1 a 22,15, ou seja, após os tres septenarios, ocorre a


queda dos agentes do mal:

17,1-19,10: a queda de Babilonia (símbolo da Roma paga);

19,11 -21: a queda das duas Bestas que regem Babilonia (o poder imperial
pagáo e a religiáo oficial do Imperio);

20,1-15: a queda do Dragáo, supremo instigador do mal.

Em contra-parte, a seccáo final (21,1-22,15) mostra a Jerusalém celeste,


Esposa do Cordeiro e antítese da Babilonia pervertida.

Os vv. 22,16-21 constituem o epílogo do livro.

Aprofundemos um pouco mais o sentido do tríplice septenario central do


Apocalipse.

O prímeiro, o dos selos (6,1-8,1) nos dá a ver a paulatina abertura do livro


que está ñas máos do Cordeiro. É o septenario mais sobrio e nítido, que, póde
se dizer, resume o livro inteiro; examinemo-lo de perto:

— o primeiro selo corresponde a "um cávalo branco, cujo montador tinha


um arco. Deram-lhe urna coroa e ele partiu vencedor e para vencer ainda"
(5,2). O cávalo branco reaparece em 19,11-16; seu montador é o Senhor dos
Senhores e o Rei dos Reís (19,16). - Conseqüentemente dizemos que o pri
meiro septenario se abre com urna figura alvissareira: a do Verbo de Deus ou
Evangelho que, vencedor (porque já propagado no mundo), se dispoe a mais
ainda se difundir. Sobre este paño de fundo vém os tres flagelos clássicos da
historia:

— o segundo selo corresponde ao cávalo vermelho, símbolo da guerra


(6.3s);

— o terceiro selo é o do cávalo negro, símbolo da fome negra e da


carestía que a guerra acarreta (6,5s);

—o quarto selo é o do cávalo esverdeado, símbolo da peste e da morte


decorrentes da guerra e da fome (6,7s).

Ai estáo os tres flagelos que afligem os homens em todos os tempos e


que a Biblia freqüentemente menciona; cf. Lv 26,23-29; Dt 32,24s; Ez 5,17;
6,11-12; 7,15; 12,16.

Depois disto, o quinto selo apresenta os mártires no céu pedindo a Deus


justica para aterra ou o fim da desordem que campeia no mundo. Reproduzem

266
APOCALIPSE: INTERPRETADO

o clamor dos justos de todos os tempos, ansiosos de que termine a inversáo


dos valores na historia da humanidade. Em resposta, é-lhes dito que tenham
paciencia e aguardem que se complete o número dos habitantes da Jerusalém
celeste; cf. 6,9-11.

O sexto selo já nos póe em presenca do desfecho da historia: chegou o


Grande Dia do juízo final (6,17). Aparecem entáo os justos na bem-aventuran-
9a celeste: os judeus representados por 144.000 assinalados, e os provenien
tes do paganismo, a constituir "urna multidáo inumerável de todas as nacóes,
tribos, povos e linguas" (7,9); celebram a liturgia celeste. - Aqui se encerra
propriamente o primeiro septenario; compreende em suas grandes linhas os
aspectos aflitivos da historia da humanidade e o anseio dos justos para que a
ordem se restabeieca; a consumacáo da historia é, para os fiéis, Vitoria e felici-
dade. A consolacáo que Sao Joáo quer transmitir aos seus leitores, consiste
precisamente em mostrar que as calamidades sob as quais os homens ge-
mem, estáo envolvidas num plano sabio de Deus, onde todos os males estáo
dimensionados para que sirvam á salvacáo das criaturas e á gloria do Criador.
Eis ai a síntese do Apocalipse apresentada com clareza no primeiro septenario.

E o sétimo selo (8,1)? -Corresponde a um silencio de meia-hora. Sim, o


Iivro se abriu por completo. O vidente espera a execucáo dos designios de
Deus contidos no Iivro aberto. Este silencio de meia-hora é o "gancho" do qual
pende o segundo septenario.

O segundo e o terceiro septenarios (8,2-11,18 e 15,5-16,21) retomam o


conteúdo do primeiro com algumas variantes. Observemos, para comecar, que
terminam cada qual com a consumacáo da historia (sétima trombeta em 11,14-
18 e sétima taca em 16,17-21). O segundo septenario tem em vista principal
mente os flagelos que afligem o mundo profano: aterra, a vegetacáo, as aguas,
os astros... Ao contrario, o terceiro septenario tem em mira as sortes da Igreja
perseguida pelo Dragáo (Satanás) e seus dois agentes (o poder imperial pa-
gáo, que manipula a religiáo oficial do Estado pagáo).

Observemos dentro do segundo septenario o "gancho" do qual pende o


terceiro septenario: em Ap 10,8-11 é entregue a Joáo um livrinho, doce na boca
e amargo no estómago. Como entender isto? - O segundo septenario apresen-
ta a execucáo do plano de Deus contido no Iivro cujos selos se abriram. Portan-
to, se deve haver outra serie de reveiacóes, deve haver também outro Iivro que
as traga; é precisamente este que Joáo recebe em 10,8-11 (amargo no estó
mago, porque portador de noticias pesadas para os cristáos fiéis).

Merece atencáo especial o intervalo ocorrente entre o segundo e o tercei


ro septenarios, ou seja, a seccáo de 11,19 a 15,4. Ele prepara a serie das
tacas, apresentando os grandes protagonistas da historia da Igreja: a Mulher e
o Dragáo no capítulo 12; as duas Bestas, manipuladas pelo Dragáo, sendo que
a primeira sobe do mar (quem olha da ilh'a de Patmos para o grande mar, se
volta para Roma) e representa o poder imperial perseguidor, ao passo que a

267
28 'PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 397/1995

segunda Besta sobe da térra (quem de Patmos olha para o continente próximo,
volta-se para a Asia Menor, onde campeia o culto religioso do Imperador); ver
respectivamente Ap 13,1 e 11. A sede capital destes dois agentes é Babilonia
(= a Roma paga). O cap. 12, ao apresentar a Mulher e o Dragáo, é também
urna síntese da mensagem da Apocalipse e da historia da Igreja, que será
comentada na quarta parte deste estudo. - Como dito, os agentes do mal es-
táo fadados a perecer, como se lé em 17,1-20,15, dando lugar á Jerusalém
celeste e á bem-aventuranea dos justos.

Por conseguinte as calamidades que o Apocalipse apresenta a se desen-


cadear sobre o mundo, nao háo de ser interpretadas ao pé da letra; antes,
depreender-se-á o seu sentido á luz das cenas de paz e triunfo que o autor
sagrado intercala entre as narrativas de flagelos (enquanto os justos padecem
na térra, há plena seguranca no céu, conforme o Apocalipse). Justapondo afli-
cóes (na térra) e alegría (no céu), Sao Joáo quería precisamente dizer aos seus
leitores que as tribulacóes desta vida estáo em relacáo estrita com a Sabedoria
de Deus; foram cuidadosamente previstas pelo Senhor, que as quis incluir den
tro de um plano muito harmonioso, plano ao qual nada escapa. Em conseqüén-
cia, ao padecer as aflicóes da vida cotidiana, os cristáos se deviam lembrar de
que tais adversidades nao esgotam toda a realidade, mas sao apenas as face
tas externas e visíveis de urna realidade que tem seu aspecto celeste e grandi
oso; as calamidades, portante, sob as quais os cristáos do primeiro século se
sentiam prestes a desfalecer, nao os deveriam impressionar; constituiam como
que o lado avesso e inferior de um tapete que, visto no seu aspecto auténtico e
superior, é um verdadeiro tapete oriental, cheio de ricas cores e belos desenhos.

Eis a forma de consolo que o autor sagrado quería incutir aos seus leitores
(nao só do séc. I, mas de todos os tempos da historia): os acontecimentos que
nos acometem aqui na térra sao algo de ambiguo ou algo que tem duas faces:
urna exterior, visível, a qual é muitas vezes aflitiva e tende a nos abater; outra,
porém, interior, invisível aos olhos da carne (mas perceptível aos olhos da fé),
a qual é grandiosa e bela, pois faz parte da luta vitoriosa do Bem sobre o mal;
é mesmo a prolongacáo da obra do Cordeiro que foi imolado, mas atualmente
reina sobre o mundo com as suas chagas glorificadas (cf. c. 5). Por isto, en
quanto os cristáos na térra gemem (Ai, ai, ai!), os bem-aventurados na gloria
cantam (Aleluia, aleluia, aleluia!)

No céu os justos nao se acabrunham com o que acontece de calamitoso


na térra; antes, continuam a cantar jubilosamente a Deus porque percebem o
sentido verdadeiro das nossas tribulagóes. Pois bem, quer dizer Sao Joáo,
essa mesma paz e tranqüilidade deve tornar-se a partilha também dos cristáos
na térra, pois, embora vivam no tempo e no mundo presentes, já possuem em
suas almas a eternidade e o céu sob forma de germen (o germen da graca
santificante, que é a sementé da gloria celeste).

Assim o Apocalipse oferece urna imagem do que é a vida do cristáo ou,


mais amolamente. a vida da Igreia: é urna realidade simultáneamente da térra
APOCALIPSE: INTERPRETADO 29

e do céu, do tempo e da eternidade. Na medida em que é da térra e do tempo,


apresenta-se aflitiva; este aspecto, porém, está longe de ser essencial; no seu
ámago, a vida do crístáo é celeste e, como tal, é tranquila, á semelhanca da
vida dos justos que no céu possuem em plenitude aquilo mesmo que os cris-
táos possuem na térra em germen.

4. DOIS TEXTOS EM PARTICULAR

Examinaremos mais precisamente Ap 12,1-17 e 20,1-10.

4.1. Ap 12,1-17

Este capítulo sintetiza toda a historia da Igreja sob a forma de luta entre a
Muiher e o Dragao, figuras paralelas as da Mulher e da serpente em Gn 3,15.

Em poucas palavras, este trecho apresenta urna Mulher gloriosa e dolori


da ao mesmo tempo. Está para dar á luz um filho que um monstruoso Dragao
espreita para abbcanhá-lo. A Mulher gera seu Filho, que tem os traeos do Mes-
sias; Ele escapa ao Dragao e é arrebatado aos céus. Dá-se entáo urna batalha
entre Miguel com seus anjos e o Dragao; este acaba sendo projetado do céu
sobre a térra, onde procura abater a Mulher-Máe, perseguindo-a de diversos
modos. Todavia o próprio Deus se encarrega de defender a Mulher no deserto
durante os tres anos e meio ou os 42 meses ou os 1260 días de sua existencia.
Vendo que nada pode contra essa figura grandiosa, a Serpente antiga atira-se
contra os demais filhos da Mulher. tentando perdé-los.

Que significa este capítulo?

Está claro que o Dragao representa Satanás, aquele que é "mentiroso e


homicida desde o inicio" (cf. Jo 8,44).

Quanto á Mulher, nao pode ser identificada com algum personagem indi
vidual, mas é a Mulher que perpassa toda a historia da salvagáo. Com efeito; já
á primeira Eva (= Máe dos vivos ou da vida) Deus prometeu um nobre papel na
obra da Redencáo. A primeira Eva (= Máe da Vida) se prolongou na Filha de
Sion (o povo de Israel, do qual nasceu o Messias); a filha de Sion culminou na
segunda Eva, María SS., que teve a graca de ser pessoalmente a Máe de
Redentor; por isto em Ap 12,1s a Mulher é gloriosa como María, mas dolorida
como o povo de Israel. A maternidade de María continua na da Santa Máe
Igreja; esta tem a garantía da incolumidade (cf. Mt 16,18) que Cristo Ihe prome
teu, mas os filhos que ela gera ñas aguas do Batismo estáo sujeitos a ser
atingidos pela sanha do Dragao, que age neste mundo como um Adversario já
vencido, mas cioso de arrebanhar os incautos que Ihe déem ouvidos (S. Agos-
tinho diz que o demonio é um cao acorrentado; pode ladrar, fazendo muito
barulho, mas só morde a quem se Ihe chegue perto). Por último, a Mulher-Máe,
30 'PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 397/1995

que exerce sua maternidade por toda a historia da salvacáo, se consumará na


Jerusalém celeste, a Esposa do Cordeiro (Ap 21 s).

A batalha entre Miguel e o Dragáo nao corresponde á queda original dos


anjos, mas significa plásticamente a derrota de Satanás, vencido quando Cris
to venceu a morte por sua Ressurreicao e Ascensáo. Deus Ihe permite tentar
os homens nestes sáculos da historia da Igreja, com um fim providencial, ou
seja, a fim de provar e consolidara fidelidade dos mesmos. Satanás só age por
permissáo de Deus.

A duracáo de 1260 dias ou 3I!S anos que a Mulher passa no deserto, nao
designa cronología, mas tem valor simbólico.

Com efeito, 3" anos, 42 meses e 1260 dias sao termos equivalentes
entre si; correspondem á metade de 7 anos. Ora, sendo 7 o símbolo da totali-
dade, da perfe¡9áo e, por conseguinte, da bonanca, a metade de 7 vem a ser o
símbolo do inacabamento e da dor. Portante, 3"* anos (e as expressóes equi
valentes em meses e dias) no Apocalipse designam toda a historia da Igreja na
medida em que é algo de aínda nao rematado ou na medida em que é luta
penosa entre a primeira e a segunda vínda de Cristo, no deserto deste mundo.

4.2. Ap 20,1-10

É este o trecho que fala de aparente reino milenar de Cristo sobre a térra,
estando Satanás acorrentado. O milenio sería inaugurado pela ressurreicao
primeira, reservada aos justos apenas, aos quais seria dado viver em paz e
bonanca com Cristo. Terminado o milenio, Satanás seria soltó para realizar a
sua invectiva final, que terminaría com a sua perda definitiva. Dar-se-iam entáo
a ressurreicao segunda, para os demais homens, e o juízo final.

A teoría milenarista, entendida ao pé da letra, foi professada por antigos


escritores da Igreja (S. Justino 1165, S. Ireneu 1202, Tertuliano t após 220,
Lactáncio t após 317...) Todavía S. Agostinho (t 430) propós novo modo de
entender o texto - o que excluiu definitivamente a ¡nterpretacáo literal; o S.
Doutor baseou-se em Jo 5,25-29, onde se le:

"Em verdade, em verdade vos digo, aquele que ouve a minha palavra...
passou da morte para a vida. Em verdade, em verdade vos digo, que vem a
hora, ejá veto, em que os morios ouviráo a voz do Filho de Deus e os que a
ouvirem viveráo... Nao vos admiréis disto, pois vem a hora em que ouviráo sua
voz todos os que estáo nos sepulcros. Os que praticaram o bem sairáo para a
ressurreigáo da vida; os que, porém, praticaram o mal, sairáopara a ressurrei
cao dojuízo".

Nesse trecho, o Senhor distingue duas ressurreicóes: urna, que se dá


"agora" ("e já veio"), no tempo presente, quando ressoa a pregacáo da Boa-

270
APOCALIPSE: INTERPRETADO

Nova; é espiritual, devida ao Batismo; equivale á passagem do pecado original


para a vida da gra9a santificante. A outra é simplesmente futura e se dará no
fim dos tempos, quando os corpos forem beneficiados pela vida nova agora
latente ñas almas.

Por conseguinte, no Apocalipse a ressurreicáo primeira é a passagem da


morte para a vida que se dá no Batismo de cada cristáo, quando este comeca
a viver a vida sobrenatural ou a vida do céu em meio as lutas da térra. A
ressurreicáo segunda é, sim, a ressurreicáo dos corpos, que se dará quando
Cristo vier em sua gloria para julgar todos os homens e por termo definitivo á
historia.

Mil anos, em Ap 20,1-10, designam a historia da Igreja na medida em que


é luta vitoriosa ("mil" é um símbolo de plenitude, de perfeicáo; "mil felicidades",
na linguagem popular, sao "todas as felicidades"). Pela Redencáo na Cruz,
Cristo venceu o Príncipe deste mundo (cf. Jo 12,31), tornando-o semelhante a
um cao acorrentado, que muito pode ladrar, mas que só pode morder a quem
voluntariamente se Ihe chegue perto (S. Agostinho). É justamente esta a situa-
cáo do Maligno na época que vai da primeira á segunda vinda de Cristo ou no
decurso da historia do Cristianismo; por isto os tres anos e meio que simboli-
zam o aspecto doloroso desses séculos (já estamos no vigésimo século), sao
equivalentes a mil anos, caso queirantos deter nossa atencáo sobre o aspecto
feliz, transcendente ou celeste da vida do cristáo que peregrina sobre a térra; a
graca santificante é a sementé da gloria do céu.

Assim se vé quanto seria contrario á mentalidade do autor sagrado tomar


ao pé da letra os mil anos do c. 20 e admitir um reino milenario de Cristo visível
na térra após o currículo da historia atual.

5. CONCLUSÁO

O sistema da recapitulado assim proposto merece francamente ser pre


ferido aos demais, pois é o que mais leva em conta a mentalidade e o estilo do
autor sagrado Sao Joáo; este, também no seu Evangelho, recorre ás repeti-
cóes ou ao estilo de recapitulacáo em espiral.

Contudo ninguém negará as alusóes do Apocalipse a personagens da


historia antiga (Ñero, a invasáo dos bárbaros, Roma, Babilonia...). Mediante
essas referencias, Sao Joáo nao tinha em vista deter a atencáo do seu leitor
sobre episodios da antigüidade, mas apenas mencionar tipos característicos
de mentalidades humanas ou de situacdes de vida que acompanham toda a
historia da Igreja: assim Ñero vem a se/ o tipo dos soberanos políticos que
persigam a Igreja em qualquer época (há muitas reproducóes de Ñero através
da historia). Por isto também o número 666 da Besta do Apocalipse, adversaria

271
32 .' " TERGUNTE E RESPONDEREMOS'397/1995

dos cristáos, equivale (segundo a interpretado mais provável) á expressáo


Kaisar Nerón (Imperador Néro).1

Roma e Babilonia, por sua vez, designam de maneira típica o poderío


deste mundo que, com seus mil atrativos de esplendor e prazer, procura sedu-
zir os discípulos de Cristo para o pecado - A luta a que Sao Joáo assistiu, entre
Roma paga e a Igreja, é evocada no Apocalipse nao por causa dessa luta
mesma, mas dentro de urna perspectiva mais ampia, isto é, a fim de simbolizar
e predizer o combate perene que se vai travando entre o poder diabólico e
Cristo através dos séculos, até terminar com a plena vitória do Senhor Jesús.
Estas consideracóes concorrem para evidenciar quanto é vá a tentativa
de descobrir a predicáo de fenómenos estranhos da hora presente (bombas
atómicas, explosóes, endientes e secas, discos voadores) nos quadros do
Apocalipse. Estes sao quadros típicos e perenes, quadros que se reproduzem
por todo o decorrer da historia, variando apenas de facetas.
A sua mensagem abrange todas as situacóes análogas: querem, sim,
dizer que as desgracas da vida presente, por mais aterradoras que parecam,
estáo sujeitas ao sabio plano da Providencia Divina, a qual tudo faz concorrer
para o bem daqueles que O amam (cf. Rm 8,28).

AOS NOSSOS LEITORES DESEJOSOS DE ESCLARECER-SE A


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' A indlcacáo da ¡denudado daprimeira Besta sob a forma do número 666, em Ap 13,18,
pertence ao artificio literario chamado gematria: as letras aribuia-se valor numérico, de modo
que cada nomo tinha um número equivalente. A InterpretacSo de 666 há de ser procurada no
contexto lingüístico, geográfico e histórico de Sao Joáo e de seus ¡mediatos leitores, nao em
época posterior ou em outra llngua que nao o hebraico e o grego. Levando em consideracño
este principio, pódese dizer que 666 equivale a Kaisar Nerón escrito em caracteres hebraicos:
N V R N R S Q
50 6 200 50 200 60 100 =666
Esta ¡nterpretacáo é confirmada pelo tato de que alguns manuscritos antigos tém 616 e
nao 666. Isto se explica pela queda doNno final (ler da direita para a esquerda), compreensivel,
pois se podía dizer Ñero em vez de Nerón.

272
Quaissáo...?

AS PRINCIPÁIS LINHAS DOUTRINÁRIAS


DO PROTESTANTISMO

Em síntese: O protestantismo se aprésenla ño/e em dia sob centenas de


modalidades, muitas vezes divergentes entre si. Todavía repousa sobre linhas
básicas, devidas aos respectivos fundadores no secuto XVI: Lutero, Calvíno,
Melanchton, Knox... Essas linhas sao: 1) ajustif¡cacaopela fé semasobras;2)
a Biblia como única fonte de fé, sujeita ao "livre exame"; 3) a negagáo de inter
mediarios entre Deus e o crente. Estes principios serio, a seguir, expostos e
avallados.

O protestantismo representa urna realidade assaz complexa, ou seja, o


bloco de aproximadamente 400.000.000 de cristáos que nao pertencem nem á
Igreja Católica, cujo Pastor visível reside em Roma como sucessordo Apostó
lo Pedro, nem as comunidades cristas orientáis (ortodoxa, nestoriana e mono-
fisita). comunidades que se separaram do tronco primordial em etapas suces-
sñ/as desde o sáculo V até o século XI.

O iniciador do movimento protestante é Martinho Lutero, que, a partir de


1517, quis reformar o Credo e as instituicóes cristas, e por isto se afastou da
Igreja dando inicio ao Luteranismo. Ao lado deste, enumeram-se

o Calvinismo (que absorveu o Zwinglianismo ou a reforma de Ulrich Zwin-


gli em Zürich, Suica), movimento afim ao de Lutero, empreendido por Calvino
em Genebra, Suica,

eo Anglicanismo, reforma semelhante oriunda na Inglaterra. Distinguem-


se 1) a High Church, Alta Igreja, que conserva muitos elementos do Catolicis
mo e pretende ser a ponte entre Catolicismo e Protestantismo propriamente
dito, e 2) a Low Church, Baixa Igreja. fortemente impregnada de principios
doutrinários do Protestantismo. Os anglicanos mais radicáis emigraram para
os Estados Unidos, onde tém dado origem a novas e novas divisdes.

Estas tres denominares (Luteranismo, Calvinismo e Anglicanismo) re-


presentam o que se pode chamar "Igrejas protestantes tradicionais", todas ini
ciadas no séc. XVI (os Anglicanos nem sfempre aceitam a designacáo de "pro
testantes", embora, por seus principios doutrinários, se filiem ao Protestantismo).

273
34 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 397/1995

Oestes tres grandes troncos do Protestantismo derivaram-se centenas de


sociedades menores, que por vezes já nlo recebem o nome de Igrejas, mas o
de seitas, visto serem movidas por espirito diverso do das Igrejas; sao refor
mas da reforma, dissidéncias da dissidencia: metodistas, batistas, congrega-
cionais, quakers, Ciencia Crista, Mórmons, Adventistas, Testemunhas de Jeová...

Esses múltiplos grupos protestantes autónomos professam credos dife


rentes, anegando alguns a negar a própria Divindade de Cristo; o liberalismo
doutrinário predomina entre eles. Contudo podem-se enunciar tres grandes te
ses como características dos diversos tipos de Protestantismo: 1) a justifica
do pela fé sem as obras; 2) a Biblia como única fonte de fé, interpretada
segundo o "livre exame"; 3) a negacáo de intermediarios entre Deus e o crente.

1. TRES PONTOS CAPITAIS

a) A justificacáo pela fé sem as obras

Lutero considerava esta tese como central dentro da sua Teología: "artigo
do qual nada se poderá subtrair, aínda que o céu e a térra venham a desmoro
nar" (Artigos de Schmakalde, 1537).

Qual o significado de tal proposicáo e donde Ihe vem a sua importancia no


Protestantismo?

A resposta nao é difícil; deriva-se da situacáo psicológica em que o refor


mador se achou em certa fase de sua vida. Lutero fez-se frade agostiniano,
mais movido pelo medo (tendo escapado á fulminacáo por um raio, prometeu
entrar no convento) do que por auténtica vocacáo. No claustro, experimentou a
concupiscencia, á qual opós penitencia e ascese. Sentindo, porém, continua
mente as más tendencias em sua natureza, entrou em angustiosa crise: quería
libertar-se da concupiscencia, mas nao o conseguía... Um belo dia julgou ter
encontrado a solucáo: apelando para Sao Paulo (principalmente para a epísto
la aos Romanos), comecou a ensinar que a concupiscencia é realmente inven-
cível; por conseguinte é inútil procurar dominá-la mediante penitencia e boas
obras. Nem Deus requer isto do homem; basta aceitar Cristo como Salvador,
isto é, crer com confianca que Deus Pai, em vista dos méritos de Jesús, nao
leva em conta os pecados do individuo; a fé confiante ("fiducial"), independen-
temente de boas obras, faz que Deus nos recubra com o manto dos méritos de
Cristo, declarando-nos justos. Tal declaracáo é meramente jurídica ou extrín
seca, nao afeta o interior da natureza humana; esta, mesmo depois de "justifi
cada", nada pode fazer para obter a salvacáo eterna, pois se acha como que
aniquilada pelo pecado, reduzida á categoría de instrumento inerte ñas máos
de Deus ou de serra ñas máos do carpinteíro (assim se formula a famosa tese
do "servo arbitrio" de Lutero).

274
AS PRINCIPÁIS LINHAS DOUTRINÁRiAS DO PROTESTANTISMO 35

Neste quadro de idéias, vé-se que nao se pode falar de cooperacáo do


homem com a graca de Deus, nem de méritos. Lulero e Calvino reconheciam
que a caridade nasce da fé, como a maca provém da macieira, mas (acrescen-
tavam) nao sao a caridade e suas obras que importam (ou ao menos... que
importam em primeiro lugar); o crente pode estar certo da salvacáo eterna em
qualquer fase da sua vida, desde que mantenha a sua fé confiante. Donde o
famoso adagio de Lutero: "Pecco fortiter, sed fortius credo. - Peco intensamen
te, mas ainda mais intensamente creio" (carta a Melanchton, 19 de agosto de
1521); com estas palavras, o reformador nao recomendava o pecado, mas
quena dizer que a simples conf¡anca no Salvador ainda tem mais peso no pro-
cesso de salvacáo do que a culpa do homem. Calvino, do qual muito se inspi-
raram os presbiterianos e batistas, acentuou ao extremo estas idéias, afirman
do que Deus predestina infalivelmente para a salvacáo eterna, de sorte que, se
o homem nao perde a sua fé, pode ter certeza de que chegará á bem-aventu
rarla celeste (donde se deriva para o crente um grande reconforto).

b) A Biblia, única fonte de fé, sujeita ao "livre exame"

A ¡novadora tese da justificacáo pela fé fiducial encontrou fundamento


numa revisto ñas fontes da Revelacao crista. Estas sao a Palavra de Deus,
que nos vem por dois cañáis: a Escritura Sagrada e a Tradicáo oral apregoada
pelo magisterio da Igreja. Resolveram, pois, rejeitar a Tradicáo ou o magisterio,
para só dar crédito á Palavra escrita ou á Biblia. Esta, para o protestante, tudo
contém; é. por si mesma, clara em tudo que concerne a salvacáo eterna.

Calvino se exprime a respeito em termos muito fortes:

"Quanto á objegáo que os católicos nos fazem, perguntando-nos de quem,


donde e como temos a convicgáo de que a Escritura provém de Deus, é seme-
ihante á questáo de quem quisesse saber como aprendemos a distinguirá luz
das trevas, o branco do negro, o doce do amargo. A Escritura, com efeito, tem
seu modo de se manifestar, modo táo notorio e seguro que se compara á ma-
neira como as coisas brancas e negras manifestam sua cor e as coisas doces
e amargas manifestam o seu sabor" (Institution Chrétienne 17§ 3).

Para ajudar a pessoa a ler e entender a Biblia, o Espirito Santo dá seu


testemunho interior, iluminando a mente e dirigindo o coracáo. Em conseqüén-
cia, cada crente tem o direito de "deduzir" da Biblia as verdades que ele, em
seu bom senso, julgue haverem sido a ele ensinadas pelo Espirito Santo.

Assim o Protestantismo atribuí ao individuo urna prerrogativa que ele nega


á Igreja visível e hiérárquica: esta pode errar no seu ensinamento, corrompen-
do o depósito da fé (apesar das promessas de Cristo, seu Fundador); toca, por
conseguirte, a cada cristáo, guiado pelo Espirito Santo, encontrar de novo a
Palavra de Deus perdida pela Igreja...

275
36 . •PEHGUNTE E RESPONDEREMOS' 397/199S

A reacáo do crente protestante contra o magisterio eclesiástico é, alias,


típica expressao da mentalidade da Renascenca: no séc. XVI o homem criou,
sim, urna consciéncia nova dentro de si, tendente a por em xeque qualquertipo
de autoridade, para mais exaltar o individuo. "O que rejeito absolutamente, é a
autoridade", escrevia Alexandre Vinet (1797-1847), chefe do movimentodito
"da Igreja Livre" na Suíca ocidental calvinista. O Evangelho, para Lutero, devia
ser nao somente urna escola de obrigacóes, mas também urna via de liberta-
cóes (entre as quais, a libertacáo frente á autoridade religiosa visivel).

c) A negacáo de intermediarios entre Deus e o crente

O Protestantismo dá valor decisivo á atitude do individuo diante de Deus;


segundo a teología reformada, é a fé subjetiva nos méritos de Cristo que garan
te a salvacáo. Em conseqüéncia, pouca margem ai resta para se conceberem
dons de Deus que permanegam extrínsecos ao individuo e a este comuniquem
os méritos do Salvador. Em outros termos: nao tém cabimento cañáis trans-
missores da graca, como sejam ritos e práticas a serem administrados por urna
sociedade visível (a Igreja) e por urna hierarquía de ministros oficialmente ins
tituida. Para o protestante, entre o homem justificado pela fé e Deus, nao há
Sacerdote senáo o Senhor Jesús invísível, que está nos céus (a prolongagáo
da Encarnacáo através da Igreja e dos sacramentos é depreciada): também
nao há outio Mestre senáo o Espírito'Santo, que fala ñas Escrituras e no intimo
de cada crente, sum se servir de algum magisterio visível e objetivo.

Note-se, em particular, a repercussáo destas idéías nos conceitos de sa


cramento e Igreja.

O número dos sacramentos foi notavelmente diminuido pelos doutores


do Protestantismo.' Dentre os sete tradicionais, Calvino chegou a admitir dois
apenas: o Batismo e a Ceia. Quanto á fungió dos sacramentos, os reformado
res nos diriam que estes nao sao portadores da graca, mas apenas sinais que,
lembrando as promessas da benevolencia divina, excitam a fé (ou confianca)
nessas promessas; estimulada por tais sinais, é a fé que produz a santificacáo
do crente. Os sacramentos portante nao exercem, como se diz em linguagem
teológica, causalidade nem física nem moral no processo de santificacáo; a
sua influencia fica limitada ao setor psicológico (recordam a palavra de Deus...).

No Calvinismo, torna-se mesmo impossível que a graca esteja associada


a algum sinal objetivo, pois ela só é dada aos piedestinados; a quem nao per-
tenca ao. número destes, nao adianta recorrer a algum rito sensivel. Lutero, um
pouco menos ¡novador neste ponto, afirmava que o Batismo confere a santida-
de, mas so o faz mediante a fé: "Nao o sacramento, m«x¡¡ a fé no sacramento é
que justifica. - Non sacramentum, sed fides in sacramento iustificat", escrevia
o reformador ao Cardeal Caetano. O Zwinglianismo empalidecia ainda mais o
papel dos sacramentos, reduzindo-os a meros testemunhos da fé capazes de

276
AS PRINCIPÁIS LINHAS POUTRINÁRIAS DO PROTESTANTISMO 37

unir os homens entre si: pelos sacramentos, ensinava Zwingli, o crente atesta
e comprova á Igreja a sua fé. sem que da Igreja receba sequer o selo ou a
comprovacáo da fé.

A prevaléncia do individuo sobre a coletividade se exprime com nao me


nor clareza no conceito protestante de Igreja. Esta, conforme os reformadores,
nao é um corpo visivel, mas sociedade invisível; só urna coisa impede que
alguém a ela pertenca: o pecado. Quem nao se deixa contaminar por este,
torna-se membro da Igreja, independentemente dos quadros externos nos quais
os crentes professam a sua fé. Em geral, dizem os protestantes que a Igreja
visivel se corrompeu e extinguiu no séc. IV, sob o Imperador Constantino, dada
a colaboracáo do Estado e da Igreja, pois entáo se introduziram nos mais ínti
mos redutos do Cristianismo doutrinas e costumes pagaos. Subsiste, porém, a
Igreja invisível, a qual continua a vida da comunidade primitiva de Jerusalém.
Ora seria essa Igreja invisível que vai tomando corpo ñas denominares pro
testantes a partir do séc. XVI...

Se agora se pergunta como é governada a Igreja invisível, toca-se urna


questáo ardua para o Protestantismo: este, de um lado, rejeita o Papado e, de
outro lado, afirma que todos os fiéis sao sacerdotes. Em conseqüéncia, nao
restam criterios muito seguros para se constituir o governo da Igreja... Donde a
multiplicidade de solucdes: há denominacóes protestantes dirigidas por seus
"bispos" (tais sao o episcopalismo anglicano. o metodismo...), bispos, porém,
que sao mais mentores dos crentes do que sacerdotes ou ministros dos meios
de santificacáo; há-as também dirigidas por presbíteros (o presbiterianismo,
por exemplo), e há-as dirigidas por meros delegados da coletividade ou da
congregacáo (congregacionalismo, que reproduz o sistema democrático no setor
religioso). Varios grupos protestantes nao concebem mesmo dificuldade em
admitir a autoridade mais ou menos absoluta dos governos civis, no que diz
respeito á vida temporal da Igreja (o que resulta em secularizacáo da face
visivel do Cristianismo).

Expostas sumariamente as tres características da teología protestante,


incumbe-nos agora analisar o seu significado.

2. UMA ESTIMAgÁO DA DOUTRINA

a) A justificacáo pela fé sem as obras

1. Nao há dúvida, a Escritura ensina que a remissáo dos pecados é gratui


tamente outorgada aos homens pelos méritos de Jesús Cristo (cf. Rm 5.8s); o
homem nao pode merecer o perdáo, mas tem que o aceitar contritamente,
crendo no amor de Deus e entregando-se humilde a esse amor. Contudo a
Escritura ensina outrossim que o perdáo concedido por Deus nao é mera fór
mula jurídica em virtude da qual nao nos sería mais levado em conta o pecado,

277
38 'PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 397/1995

pecado que, apesar de tudo, ficaría inamovível a contaminar a alma. Nao; jus-
tificacáo, segundo as Escrituras, é regeneracáo (cf. Jo 3,3.5; Tt3,5), elevacáo
á dignidade de filhos de Deus nao nomináis apenas, mas reais (cf. 1 Jo 3,1), de
modo a nos tornarmos consortes da natureza divina (cf. 2Pd 1,4), capazes de
produzir atos que imitem a santidade do Pai Celeste (cf. Mt 5,48). Se, por
conseguirte, Deus, ao nos perdoar as faltas, nos concede urna nova natureza,
está claro, conforme as Escrituras mesmas, que as obras boas que estejam ao
alcance desta nova natureza, devem pertencer ao programa de santificado do
cristáo; elas se tornam condicáo indispensável para que alguém consiga a vida
eterna. Deus nao pode deixarde exigir tais obras depois de nos haver concedi
do o principio capaz de as produzir.

É obvio que essas obras boas nao constituem o pagamento dado pelo
homem em troca da graca de Deus, nem sao algo que a criatura efetue inde-
pendentemente dos méritos de Cristo Salvador, mas sao os frutos necessários
da acao de Deus (ou da graca) no homem regenerado, sao concretizacóes dos
méritos do Salvador; na verdade, é Cristo quem vive no cristáo e neste exerce
seu influxo vital, como a cabeca nos seus membros e como o tronco da videira
nos seus ramos (cf. Gl 2,20; Jo 15,1s).

Sao Paulo, na epístola dos Romanos, tanto inculca a justificacáo pela fé


sem as obras, porque tem em vista a primeira conversáo ou a conversáo do
pecador a Deus (claro está que esta nao pode ser o resultado de obras merito
rias previas). Sao Tiago, porém, que visa propiamente ao desabrochar da vida
crista após a conversáo, inculca fortemente a necessidade das boas obras (por
isto a epístola de Tiago muito desagradava a Lutero, que quis negar a sua
canonicidade).

Quanto á concupiscencia que permanece no cristáo por toda a vida, ela


nao constituí pecado enquanto o individuo nao Ihe dá consentimento; por muito
intensa que seja, a graca do Redentor é certamente capaz de triunfar sobre
ela. O fato de que a Escritura a chama "pecado" (cf. Rm 7,20), explica-se por
estar a concupiscencia intimamente ligada ao pecado como conseqüéncia deste.

De resto, na vida cotidiana os protestantes valorizam altamente as boas


obras; falam entáo linguagem muito semelhante á dos católicos.

b) A Biblia e o livre exame

Visto que a S. Escritura teve origem após a pregacáo oral e como eco da
pregacáo oral dos Profetas e dos Apostólos, entende-se que a Tradicáo (trans-
missáo) oral seja necessário criterio de interpretacáo da Biblia Sagrada. O va
lor da Tradicáo se explica pelo fato de que a Revelacáo oral antecedeu a reda-
cáo das Escrituras nem foi, por inteiro, consignada nos livros sagrados (os
autores sagrados nunca tiveram a ¡ntencáo de confeccionar um manual com
pleto dos ensinamentos revelados; ver Jo 20,30s; 21,24s); donde se vé quáo

278
AS PRINCIPÁIS LINHAS DOUTRINÁRIAS DO PROTESTANTISMO 39

alheio é ao espirito mesmo da Biblia interpretá-la independentemente da cor-


rente de doutrinas dentro da qual a Escritura se originou, se conservou e sem-
pre se transmitía

Ao que foi dito ainda se pode acrescentar a mencáo de algumas conseqü-


éncias do principio do livre exame (é pelos frutos que se condece a árvore!).

Os próprios reformadores e seus discípulos, desejando exaltar a autorida-


de das Escrituras, tornaram-se deturpadores da Palavra de Deus. Foi, sim, em
nome do Antigo Testamento que Lutero permitiu a bigamia a Filipe de Hessen.
E em nome das Escrituras que os fundadores de seitas váo ensinando teses
fantasistas e contraditórias sobre a data do fim do mundo (tenham-se em vista
os Adventistas, as Testemunhas de Jeová, alguns grupos pentecostais). Em
nome do livre exame da Biblia os críticos protestantes tém rejeitado inteiras
secóes ou até livros escriturísticos; chegam a negar a Divindade de Cristo (o
primeiro autor que negou a plena veracidade dos Evangelhos, foi o protestante
H. S. Reimarust1768).

De resto, verifica-se que as comunidades de crentes, tendo abandonado


a venerável Tradicáo transmitida desde os inicios do Cristianismo, ainda, e
apesar de tudo, seguem uma tradicáo,... tradicáo evidentemente humana, a
que deu inicio tal ou tal fundador de seita. Criou-se em cada denominacáo de
"reformados" uma tradicáo particular ou uma via própria de interpretacáo da
Biblia.

É a rejeicáo de todo magisterio munido da autoridade do próprío Deus que


gera instabilidade ñas comunidades protestantes, ocasionando a criacáo de
novas e novas denominacóes. A razáo destas múltipas reformas nao será o
fato de que nenhuma délas é realmente guiada pelo Espirito Santo, mas todas
sao obra meramente humana? Alias o próprio Lutero já verificava em seus
tempos: "Há tantos credos quantas cabecas há".

Alexandre Vinet, já citado, afirmava, por sua vez, no século passado:

"Para mim, o Protestantismo é apenas um ponto departida; a religiáo fíca


muito além dele... A reforma será uma exigencia permanente dentro da Igreja;
ainda hoje a reforma está por se fazer".

A experiencia de 400 anos mostrou que se volta contra os próprios irmáos


separados o principio com que estes quiseram outrora impugnaros católicos:
"Mais vale obedecer a Deus do que aos homens" (At 5,29).

c) A negacáo de intermediarios entre Deus e o crente


r

Esta posicáo acarreta, como dizíamos, a negacáo de varias ¡nstituicóes


que se tornaran) clássicas no Cristianismo: os sacramentos concebidos como

279
40 'PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 397/1995

cañáis da grapa, a intercessáo dos Santos, o sacerdocio oficial e hierárquico, a


visibilidade da Igreja, etc.

Seguem-se tres observares aptas a mais evidenciar o erro radical conti-


do no principio protestante:

a') a rejeicáo dos sacramentos e do sacerdocio hierárquico contradiz á lei


geral que Deus sempre quis observar ñas suas relacóes com o homem: assim
como na plenitude dos tempos o Senhor atingiu a criatura mediante o misterio
da Encarnacáo, assim antes e depois desta Ele veio e vem sob sinais sensí-
veis; principalmente no Novo Testamento a dispensacáo das gracas conserva
a estmtura da Encarnacáo: os sacramentos e sacramentáis sao materia con
sagrada que prolonga e desdobra a estrutura do Verbo Encarnado. Como o
corpo de Jesús recebeu outrora a vida divina e a comunicou aos homens seus
contemporáneos, assim os elementos corpóreos (agua, pao, vinho, óleo, pala-
vras e gestos do homem...) vém a ser, nos sacramentos, os cañáis que contém
e transmitem a graca de Deus; nlo os poderíamos reduzir á categoría de me
ros estimulantes da memoria, vazios de conteúdo sobrenatural, sem quebrar a
harmonía do plano da salvacáo.

b1) Nos designios de Deus, a santificado do homem sempre foi concebi


da comunitariamente, em oposicáo a qualquer individualismo. O Criador houve
por bem, no inicio da historia, incluir todos os homens no primeiro Adáo; quis
outrossim restaurar todos conjuntamente em Cristo; conseqüentemente santi
fica-nos hoje por meio de urna comunidade, que é a Igreja, caracterizada por
sinais objetivos e por um ministerio visível, fora do qual ninguém pode preten
der encontrar o Cristo. - Exaltando o individuo a ponto de relegar para plano
secundario a comunidade, o Protestantismo vem a ser auténtico produto da
mentalidade subjetivista e antropocéntrica do Renascimento.

c') A Reforma pretende corresponder á Igreja primitiva, anterior á corrup-


cáo que "paganizou" o Evangelho... Esta pretensáo é tao vá que os mestres
protestantes se tém visto obligados a fazer recuar constantemente o periodo
da "grande corrup$áo": ao passo que os primeiros reformadores a colocavam
no séc. IV, outros foram retrocedendo até os tempos de S. Cipriano (t 258), S.
Ireneu (t cerca de 202), Clemente Romano (t 102?) ou até a geracáo apostó
lica. O famoso crítico Harnack (t 1930) chegava a dizer que já os Apostólos
perverteram o Evangelho de Cristo - o que é evidentemente absurdo, pois nao
conhecemos o Evangelho de Cristo senáo através da pregacáo e dos escritos
dos Apostólos; Harnack, porém, era obrigado a proferir tal contra-senso, por
que reconhecia claramente que a Igreja Católica atual corresponde fielmente á
Igreja primitiva ou, como dizia ele, que "Cristianismo, Catolicismo e Romanis-
mo constituem urna identidade histórica perfeita" (Theologische Literaturzei-
tung,16jan. 1909).

280
Quem sao?

SOBREVIVENTES DE INCESTO ANÓNIMOS

Em síntese: Os Sobreviventes de Incesto Anónimos (SIA) constituem


grupos de ajuda mutua, nos quais os traumas sofridos no passado váo sendo
superados em vista da plena reintegragáo da vida na sociedade. Cada grupo
segué um roteiro de Doze Passos, corroborados por Doze Tradigóes.ás quais
se seguem Doze Promessas. As reunidas de grupo sao sigilosas, de modo a
permitirá cada membro talar livremente de seusproblemas. Muito bem se tem
feito desta maneira. Os SIA nao cobram taxas nem impóem alguma terapia;
recorrem a um Poder Supremo (= Deus) entendido como cada um O pode
entender. OsinteressadosqueirampedirinformagóesaSIA, Caixa postal 11766,
CEP 22022-970 Rio (RJ) ou Caixa postal 132, CEP 13600-000 Araras (SP).

Existem grupos de ajuda mutua aos alcóolicos, aos neuróticos, aos narcó
ticos..., como também as vítimas (sobreviventes) de incesto anónimas (SIA).
Já tratamos de Alcoólicos Anónimos em PR 183/1975, pp. 116-135, e de Nar
cóticos Anónimos em PR 392/1995, pp. 36-48. Neste fascículo abordaremos o
SIA, valendo-nos de impressos distribuidos pela própria instituicáo em vista de
esclarecer o público. A sede do Sen/ico Mundial do SIA encontra-se em Balti-
more (USA).

1. QUEM SAO OS SOBREVIVENTES DE INCESTO ANÓNIMOS?

1. Eis a autoapresentacáo encontrada no folheto "Os Lemas do SIA":

"Somos um grupo de auto-ajuda para pessoas maiores de 18 anos que


viveram a experiencia do abuso sexual por membros da familia ou da familia
por extensáo, ou por quaisquer outros adultos que abusaram de poder sobre
nos. Usamos nossos prime/ros romes apenas, e mantemos a confidencialida-
de. SIA nao é ligado a qualquer seita, denominagao, entidade política, organi-
zagáo ou instituicáo; nao deseja entrar em controversias, e nao endossa ou
apoia qualquer causa que se/a. Nos nos auto-sustentamos financeiramente.
Nosso propósito primordial é ajudar aqueles que foram vítimas de abuso ".

2. E que entende o SIA por incesto?

- A resposta é dada em diversos fplhetos. Vai aqui transcrito o texto de


"Sobreviventes de Incesto Anónimos. Folheto Informativo":
£2 -PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 397/1995

DEFINICÁO DE INCESTO PARA O SIA

"Urna traigáo de confíanga por contato ou ato sexual claro ou camuflado,


que possivelmente incluí: toque ou nao, sedugáo verbal ou abuso venial, pene-
tragño, sodomía, penetragáo anal, estímulagáo manual, ameagas diretas ou
veladas, práticas de atos sexuais ou sensuais na presenpa da enanca ou ou-
tras formas de abuso, entre pessoas que tém algum tipo de relagáo, se/a e/a
genética, por casamento, pormorarJunto ou que seja alguém em quem a enan
ca deposita confíanga ou supostamente deveria fazé-lo; isto incluí: máe, pai,
avó, avó, tíos, tías, primos/as, padrasto, madrasta ou párenles dos mesmos,
co'parentes, meio-parentes, amantes e/ou amigos depárenles ou de amigos
da familia, irmáos/ás, vizinhos e também. qualquerpessoa conhecida ou estra-
nha com qualquer forma de poder sobre a enanca como: profissionais tais
como professores, instrutores extracurriculares, treinadores, enfenveiros, mé
dicos, dentistas, terapeutas, padres, freirás etc., ou aínda qualquerpessoa cu/o
trabalho ouprofissáo Ihe conceda poder sobre a crianga. Também incluimos
qualquer adulto emposigáo de poder que traía confíanga de outro adulto.

Quando a confíanga de urna crianga é violada, seja por urna crianga mais
velha, um irmáo ou irmá, aparentados ou qualquer outro adulto, este ato se
torna incestuoso. Colocamos plena responsabilidade no iniciador, para o que
quer que ocorra. A idade da crianga pode variar da concepgáo, recém-nasci-
mento, pré-escola, escola, adolescente oumesmo adulto".

3. A pessoa que foi vitima de incesto no sentido atrás definido, pode ficar
profundamente marcada pela ocorréncia:

"Nos nos chamamos 'sobreviventes', porque é isto que somos. Sobrevi-


vemos a horrível trauma e tortura quando criangas. Foi exigida urna coragem
extrema para que sobrevivéssemos. ¿ufamos continuamente para poder ter
vida adulta produtiva e criativa.

Muitos sobreviventes sao diagnosticados como tendo Disturbio de Stress


Pós-Traumático; outrosapresentam múltiplas personalidades. A maioria denos
está fufando, de alguma forma, com o trauma emocional de nosso passado.
Muitos lutam contra dependencia de comida, álcool, drogas, relacionamentos
abusivos, e muitos outros comportamentos destrutivos" (Folbelo Para Profissi
onais da Área da Saúde)

Do folheto "Características de um Sobrevivente e Efeítos do Abuso Sexu


al na Infancia" (o que se segué é realista e duro; prublicamo-loporque eremos
que interessa aos nossos leitores conhecer este tipo de sofrimento):

"5 • Multas de nos tinham um concertó negativo de si mesmas. Aprende


mos a acreditar que estávamos destinadas a negar a nos mesmas. Nos nos
sentimos usadas e nos víamos como nao tendo nada para oferecer além de,
talvez, sexo.

282
SOBREVIVENTES DE INCESTO ANÓNIMOS 43

6 - Nos nos sentimos enralecidas e exploradas, dependentes e impoten


tes, ansiosas e embarazadas, ofendidas e solitarias. Temíamos nossos abusa
dores. As vezes, bloqueávamos nossos sentimentos, usando máscaras e fa-
zendo brincadeiras. Nos negamos, minimizamos ou diminuimos nossa vitimi-
zacáo. Éramos despreocupadas, retraídas, esquivas, super-ativas, delinquen-
tes, promiscuas, dependentes... cada urna de nos encontrou sua forma de
tentar nao sentir. Nos dirigimos nossa raiva para o enderego errado e freqüen-
temente a expressamos inapropriadamente. Algumas denos sentimos raiva de
outros membros da familia por nao nos protegerem. Nos nos sentimos confu
sas com nossas necessidades e, algumas vezes, nos culpamos por ter neces-
sidades. Algumas de nos se sentiram inadequadas ao se relacionar com os
outros; nos nos retraimos e nos ¡solamos e éramos incapazes de deixar que os
outros se aproximassem.

7- Multas de nos eram envergonhadas e deprimidas. Desejávamos mor-


rer. Tentávamos livrar-nos de nossosproblemas, livrando-nos de nos mesmas.
Abusávamos de nos mesmas (dependencia de drogas, prostituido, mutila-
cóes corporais, auto-desprezo etc..) e nos aceitábamos o abuso de outros.
Éramos exploradas, porque nunca aprendemos a dizernao, nao apenas sexu-
almente, mas em outras áreas de nossa vida também.

8 - Está vamos freqüentemente confusas sobre sexo e sobre nossa sexu-


alidade. Algumas de nos acredttavam que o que nos estava acontecendo nao
era fora do comum, enquanto outras acreditavam que possivelmente eram as
únicas a vivenciar este tipo de contato sexual. Algumas de nos aprenderam a
usarsexo como a única forma de obterafeigáo ou de manterum relacionamen-
to, enquanto outras aprenderam a sentir que sexo é sujo e principalmente um
ato físico. Freqüentemente tínhamos nojo de nossos corpos e dos corpos dos
outros, ou éramos incapazes de distinguir entre amor e sexo. O incesto afetou
a forma como nos nos relacionamos com os outros sexualmente, também.

9 - Nos experimentamos culpa e vergonha como resultado da nossa expe


riencia do incesto. Freqüentemente nossos pensamentos eram: 'O que eu fiz
para merecer isto?'

10 - Mu/tas de nos estavam com medo. Tinhamos medo de nossos abu


sadores e de outras pessoas também (principalmente figuras de autoridade).
Algumas de nos tinham medo de ser tocadas ou medo de irpara casa. Tinha
mos medo de fícar no escuro, medo de ficarsozinhas, medo de ir dormir, medo
do tenor da noite. Nos tínhamos medo de nossa memoria, medo de que as
coisas nunca mudassem. Tínhamos medo de confiarnos outros e de confiar
até em nos mesmas. A maioria de nos tinha medo de revelar seus segredos".

283
44 'PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 397/1995

"Qualquercontato sexual entre urna crianga e umapessoa de confianca,


que causou daño á crianga, seja este contato claro ou camuflado, seja flerte ou
relagao sexual, precisa ser trabalhado com seriedade. Ele afeta virtualmente
todas as áreas da vida da vítima, já que ela é deixada com pouca ou nenhuma
auto-estima. O desenvolvimento emocional da crianga será interrompido na
idade em que ocorrer o primeiro ataque, e a vítima nao comegará a se recupe
rar até que atinja a idade adulta, se isto ocorrer.

Meninos, tanto quanto meninas, podem ser vítimas de abuso sexual. Qual
quer um pode ser o abusador, principalmente se a pessoa é percebida pela
crianga como tendo autoridade, incluindo irmao, tío, amigo da familia, tía, pro-
fessor - a lista é infindável. Todavía, para sermos claros, vamo-nos referir á
vítima como sendo a filha e ao abusador como sendo o pai.

Alguns dos desajustes sociais oriundos do incesto sao alcoo/ismo, depen


dencia de drogas, prostituigáo e promiscuidade. Disturbios alimentares e de
sonó, enxaquecas, dores de coluna e de estómago, sao apenas algumas da
conseqüéncias físicas que a vítimapode apresentar. Comida, sexo, álcoole/ou
drogas amortecem a recordacéo dolorosa do abuso e camuflam a realidade
temporariamente. Se a vitima acredita que obesidade nao é atraente. e se ela
acredita que foi vitima de abuso por ser bonita, ela pode comer em excesso
numa tentativa desorientada de se defender de outros ataques sexuais. 'Eu me
sentía como se fosse vomitar". Esta é urna colocagáo comum entre as vítimas
e bulimia (apetite insaciável) é urna forma de lidar com este sentimento. Anore-
xia (falta de apetite) é outra forma de auto-punigáo, que algumas vezes leva ao
extremo da auto-vitimagáo: o suicidio".

4. Quanto á freqüéncia com que ocorrem abusos sexuais, registra-se o


seguirte (texto extraído de um folheto dirigido aos profissionais da área da
saúde):

"Abuso sexual de criangas nao é táo raro quanto multas pessoas gostari-
am de acreditar. As estatísticas sugerem que urna entre tres meninas e um
entre cinco meninos sao vítimas de abuso sexualporparte de alguém que e/es
conhecem, até os dezoito anos. Isto significa que muitos dos pacientes que
vocé vai tratar, sao provavelmente adultos sobreviventes de abuso sexual. Al
gumas vezes vocé saberá isto sobre seus pacientes, quando e/es confiarem
em vocé o suficiente para dividir esta parte de seu passado com vocé. Com
freqüéncia vocé nao saberá quem sao os sobreviventes; efespodem termedo
de revelar estaparte de sua historia.

Até recentemente, muño pouco havia sido escrito tanto em literatura de


apoto como em bibliografía profissional, sobre as conseqüéncias de longo pra-
zo do abuso sexual de criangas. Quanto mais adultos vítimas de abuso sexual
na infancia superam a vergonha e se tomam fortes para falar sobre o assunto,
tanto mais suas vozes sao ouvidas.

284
SOBREVIVENTES DE INCESTO ANÓNIMOS 45

É difícilpara urna pessoa que nao foi vitima de abuso sexual na infancia,
entender a sensagáo arrasadora de vergonha que resulta do abuso sexual.
Aquetas de nos que foram molestadas e vftimas de abuso quando criangas,
cresceram pensando que o abuso era, de alguma forma, nossa culpa. Pode
mos acreditar que fizemos algo que provocou o abuso, que somos culpadas.
Podemos ter medo de que riam de nos ou digam que somos ridiculas por ima
ginar que os outros podem, de alguma maneira, contar que carregamos este
segredo. Esta condigno de infancia é algo difícil de superamos quando adul
tas, epode impedir que revelemos o abuso. Podemos estar cheias de medo de
que figuras de autoridade (incluindo profissionais de saúde) venham a nos cul
par pelo abuso. Podemos viver na ilusáo de que figuras de autoridade nos
puniráo. O poder dos profissionais de saúde sobre nos, mesmo que tempora
rio, pode trazer de volta o medo de ser vitima de abuso".

2. O PROGRAMA DO SIA

Em termos negativos assim se define o SIA:

"SIA -nao é terapia convencional, agencia de informagóes, movimento


religioso, agencia educativa, servigo de assisténcia social (nao temos profissi
onais da área nem trabajadores pagos).

SIA - nao sugere ou requer que sobreviventes freqúentem terapias ou


médicos. Apesardossobreviventespoderem ter terapeutas ou médicos, esta é
urna decisáo pessoal de cada sobrevivente. Nos vemos isto como urna ajuda
adicional ao programa do SIA

SIA - nao permite queprofissionais participem das reunióes como profissio


nais, exceto por decisáo da consciéncia coletiva do grupo". (Folheto Informativo).

O único pré-requisito para ser membro do SIA é o desejo de deixar de


ser urna vitima do incesto e se tornar um sobrevivente do mesmo.

Nao se aceitam nos grupos do SIA "perpetradores", isto é, pessoas que


praticam o incesto ou abusos sexuais. Também nao se aceitam vítimas de
incesto que se tornaram abusadores e cometem abusos sexuais.

Nao se cobram taxas ñas reunióes do SIA. Todavía quem pode dar urna
contribuicao para o pagamento das despesas com aluguel de sala, impressos,
telefone, é convidado a dá-la. Cada grupo de SIA é autofmandado.

Nao existe Coordenador(a) permanente de grupo. Afuncáo de coordenar


um grupo e suas reunióes toca aos membros do grupo por rodízio.

285
46 'PERGUNTE E RESPONDEREMOS' 397/1995

3. DOZE PASSOS, TRADIQÓES E PROMESSAS

1. O SI A propóe Doze Passos como roteiro de recuperacáo dos respecti


vos membros. Ei-los como se acham enunciados nos impressos oficiáis do SIA:

"/. Admitimos que éramos impotentes diante de nossa experiencia do


incesto, e que tínhamos perdido o controle de nossas vidas.
2. Viemos a acreditar que um Poder Superior a nos mesmos poderia nos
devolverá sanidade.
3. Tomamos a decisáo de entregar nossa vontade e nossa vida aos cuida
dos de Deus, na forma em que o/a concebíamos.
4. Fizemos um minucioso e destemido inventario moral de nos mesmos.
5. Admitimos para nos mesmos, para Deus e para outro ser humano, a
natureza exata de nossas falhas.
6. Ficamos inteiramente prontos para que Deus removesse todos estes
defeitos de catéter.
7. Humildemente rogamos a Ele/Ela que removesse nossas imperfeigóes.
8. Fizemos urna lista de todas as pessoas que tínhamos prejudicado e
nos dispusemos a fazer reparacóes a todas elas.
9. Fizemos reparacóes diretas a estas pessoas, sempre que possivel,
exceto quando fazé-lo viesse a prejudicá-las ou a outrem.
10. Continuamos fazendo o inventariopessoale, quando estávamos erra
dos, nos o admitíamos prontamente.
11. Procuramos, através daprece e da meditagáo, melhorar nosso conta
to consciente com Deus, na forma em que o/a concebíamos, rogando apenas
o conhecimento da Sua vontade em relacao a nos, e foreas para realizar essa
vontade.
12. Tendo experimentado um despertar espiritual, grapas a estes passos,
procuramos transmitir esta mensagem a outraspessoas epraticar estesprinci
pios em todas as nossas atividades".

2. Além dos Doze Passos. o SIA professa Doze Tradicóes. Sao linhas de
orientacáo para os grupos como tais, a fim de que os sobreviventes possam
encontrar unidade e continuidade na sua marcha; visam a formar "a conscién-
cia de grupo":

"/. Nosso bem-estarcomum deveria estar emprimeiro lugar, a recupera-


gao pessoal, para o maior número de membros, depende da unidade do SIA
2. Para nosso propósito de grupo, existe apenas urna autoridade • um
Deus amoroso, que se expressa através da consciéncia degrupo. Nossos líde
res sao apenas servidores de confianga; eles nao governam.
3. O único requisito para ser membro do SIA é que vocé se/a vítima de
abuso sexual na infancia e deseje recuperarse disto.
4. Cada grupo deveria serautónomo, exceto em assuntos que afetam um
outro grupo ou o SIA como um todo.

286
SOBREVIVENTES DE INCESTO ANÓNIMOS 47

5. Cada grupo SIA tem apenas um propósito primordial - levar esta men-
sagem, apoiando e praticando osDoze Passos; nos mesmos, encorajando e
compreendendo outros sobreviventes de abuso sexual eajudandoe confortan
do uns aos outros.
6. Os grupos de SIA jamáis deveriam endossar, financiar ou emprestar
seu nome a qualquer empreendimento de fora, para que problemas com di-
nheiro, propriedade e prestigio nao nos desviem de nosso objetivo primordial.
7. Cada grupo deve ser totalmente auto-suficiente, recusando contribuí-
góes de fora.
8. O trabalho do SIA deverá permanecer nao profissional, mas nossos
centros de servicos poderáo contratar funcionarios especializados.
9. SIA como um todo jamáis se deveria organizar, mas podemos criar
¡untas ou comités, diretamente responsáveis por aqueles a quem prestam ser-
vicos.
10. Sobreviventes de Incesto Anónimos nao opina sobre questóes de fora;
portanto, o nome do SIA jamáis deveria ser envolvido em controversia pública.
11. Nossa política de relagóes públicas se baseia na atracáo, nao na pro-
mogáo; precisamos manter o anonimato pessoal, a nivel de imprensa, radio,
TV e filmes.
12. O anonimato é a base espiritual das nossas Tradicóes, lembrando-nos
sempre de colocar os principios ácima das personalidades".

3. Como resultado de seguir os Doze Passos e as Doze Tradicóes, há


Doze Promessas para os Sobreviventes de Incesto Anónimos:

"1. Nos alcangaremos e maniéremos serenidade.


2. Conheceremos urna nova liberdade e urna nova felicidade.
3. Nos nao vamos lamentar nossa parte no passado nem vamos querer
fechar as portas sobre ele.
4. Comprenderemos a palavra "serenidade" e conheceremos a paz.
5. Nao importa quáo baixo tenhamos descido, veremos como nossas ex
periencias podem beneficiaros outros.
6. O sentimento de ¡nutilidade e auto-piedade desaparecerá.
7. Perderemos o interesse por coisas egoístas eganharemos interesse
por nossos companheiros.
8. O autoabuso desaparecerá.
9. Nossa atitude e aparéncia na vida vai mudar.
10. O medo daspessoas e da inseguranca económica nos abandonará.
11. Saberemos intuitivamente como lidar com situagóes que geralmente
nos derrubavam.
12. De repente perceberemos que Deus está fazendo por nos o que nao
poder/amos fazer sozinhos."

Como se vé, a recuperagáo passa'pela fé em Deus entendido como o


pode entender a pessoa interessada. Espontáneamente aflora nos grupos de

287
48 'PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 397/199S

ajuda mutua (alcoólicos, neuróticos, narcóticos anónimos e outros) a conscién-


cia de que um Ser Superior existe e tem amor á criatura para ajudá-la. Após
muito sofrer, a vítima de incesto percebe que somente com a graca de Deus
conseguirá recuperar suas disposicóes para viver alegre e corajosa. O fato é
muito significativo; quando a criatura toma consciéncia da sua insuficiencia
para superar males que a afetam, a verdade emerge com mais pujanca: Deus
pode fazer o que nao conseguimos realizar.

4. OBSERVAQÓES COMPLEMENTARES

Verifica-se que maior é o número de muiheres do que o de homens nos


grupos de SIA. As muiheres sao vítimas de incesto mais freqüentemente do
que os homens.

Para entrar num grupo de SIA, a pessoa interessada deve escrever a:


SIA, Caixa Postal 11766, 22022-970 Rio (RJ) ou Caixa Postal 132.13600-000
Araras (SP), anunciando seu desejo de admissáo. Em resposta, receberá um
questionário cujas respostas ajudaráo os dirigentes de SIA a identificar o(a)
candidato(a) e averiguar se tem condicóes para participar de algum grupo de
SIA. Caso a conclusáo seja positiva, a pessoa interessada receberá o endere-
90 dos grupos mais próximos e poderá comecara freqüentar; o anonimato dos
membros é guardado rigorosamente fora das reunióes de grupo de SI A; procu-
ra-se assim manter o clima de confianca e abertura dentro do respectivo grupo.

Possam os grupos de SIA atingir sua finalidade, levando murtas e muitas


pessoas a se reencontrar consigo mesmas e com a sociedade!

Estéváo Bettencourt O.S.B.

(continuacáo dapág. 258}

ver nospaíses nórdicos únicamenteprosperidade e nos meridionais únicamen


te atraso: "A decadencia espanhola no campo político-económico é paralela a
um notável desenvoMmento cultural, que somente ño/e se comega a avaliar im-
paroalmente; urna grave crise perpassa, alias, toda a Aíemanha arrasada pela
guerra dos trinta anos; o pauperismo é um fenómeno comum aos varios países
absolutos, da Inglaterra á Franca e, talvez, se nos países protestantes, o nivel
medio de vida era mais elevado, as (Merengas reais entre as varias classes eram
ainda mais acentuadas do que em outraspartes. Etambém nao nos esquecamos
da bnga hegemonía exercidapela Franga, país quepermaneceuprofundamente
católico' (pp. 182s). Além disto, o autor aponta o fator geográfico, que explica o
desigual desenvoMmento dos hemisferios Norte e Sul.
A obra muito se recomenda, pois abre horizontes de maneira lúcida e objetiva
ou imparcial. Épara desejar que sem demora venham alumeosvolumes restantes.

288
€M COMUNHñO
Revista bimestral (5 números: marco a dezembro)
Editada pelo Mosteiro de S. Bento do Rio de Janeiro, desde
1976 (já publicados 107 números), destina-se a Oblatos
beneditinos e pessoas interessadas em assuntos de
espiritualidade bíblica e monástica. — Além de artigos, contém
traducoes e comentarios bíblicos e monásticos, e, ainda a
crónica do Mosteiro.

1995, assinatura ou renovacao, RS 12,00


Dirija-se as Edipoes "LUMEN CHRISTI".

- ARTE PARA A FÉ, nos caminhos tracados pelo Vaticano II.


2a. edicao revista e ampliada. Complemento: O Código de Direito
Canónico de 1983 e a arte sacra. Autor: Mons. Guilherme Schubert
1987. 385p R$ 7/50.

O livro destina-se a todos quantos tém de tratar de urna ou outra manei-


ra da construcao, decoracao e aparelhamento de novas igrejas e cápelas
e da adaptacao de templos existentes á liturgia renovada pelo Concilio
Vaticano II: de um lado clérigos e religiosos que os promovem; do ou-
tro: arquitetos, projetistas, construtores, artistas, artesaos que os exe-
cutam).

- Pedido pelo Reembolso Postal.

Já anunciado em números anteriores, o índice de "Pergunte e Res


ponderemos" de 1978 a 1993. Apresenta. por ordem alfabética, os verbe-
tes relativos aos diversos temas abordados pela revista com a indicacáo do
número do fascículo e das páginas respectivas. Ao mesmo tempo. é pro-
posto aos interessados um servico de copias: pode rao ser solicitadas copi
as de artigos de números atrasados desde 1957. Encomendas e pedidos
sejam enderezados a Edicóes "Lumem Christi" - Caixa Postal 2666, 20001-
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