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ISSN 1413-389X Trends in Psychology / Temas em Psicologia – 2014, Vol.

22, nº 4, 839-851
DOI: 10.9788/TP2014.4-13

O Fenômeno da Cronificação nos Centros de Atenção


Psicossocial: Um Estudo de Caso

Maria da Graça Silveira Gomes da Costa1


Rafael de Albuquerque Figueiró
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, Natal, Rio Grande do Norte, Brasil
Curso de Psicologia da Universidade Potiguar, Natal, Rio Grande do Norte, Brasil
Flávia Helena Miranda de Araújo Freire
Universidade Federal Fluminense, Volta Redonda, Rio de Janeiro, Brasil

Resumo
Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) exercem um papel fundamental dentro da rede de assistên-
cia à saúde mental ao articularem os serviços e os usuários dentro do território, além de se apresentarem
como um espaço privilegiado de produção de cuidado, de autonomia, e de inclusão social. No entanto,
diversas pesquisas sobre o campo da Reforma Psiquiátrica no Brasil apontam para o fenômeno da nova
cronificação nos serviços substitutivos de saúde mental. Assim, o presente artigo se propõe a problema-
tizar as práticas de cuidado em um CAPS II da cidade de Natal-RN, tendo como analisador a existência
dos “usuários profissionais”, usuários que mantém uma relação de grande interdependência junto ao ser-
viço, que não se articulam na comunidade e dificilmente recebem alta do CAPS. A partir da perspectiva
teórico-metodológica da cartografia, investigamos como se dá a produção do usuário profissional e quais
práticas sustentam esse fenômeno. Notamos que, mesmo indo contra o modelo tradicional da psiquiatria
e da hospitalização, esse serviço pode gerar a institucionalização e a cronificação dos sujeitos através
de métodos de organização e trabalho que seguem uma lógica hierárquica da tutela, do isolamento em
relação ao meio social e da despolitização dos usuários.
Palavras-chave: Reforma psiquiátrica, saúde mental, práticas de cuidado, Centros de Atenção
Psicossocial, cartografia.

The Phenomenon of Chronification on Psychosocial Aid Centers:


A Case Study

Abstract
The psychosocial aid centers (CAPS) play a key role within the network of mental health assistance
articulating services and users within the territory, in addition to be a privileged space for the produc-
tion of care, autonomy and social inclusion. However, several researches on the field of the Psychiatric
Reform in Brazil point to the phenomenon of the new chronification on the mental health substitute
services. Therefore, this article purports to discuss the care practices in a CAPS II in the city of Natal-
-RN, having as an analyzer the existence of the “professional users”, users who maintains a relationship

1
Endereço para correspondência: Escola da Saúde, Universidade Potiguar, Avenida Engenheiro Roberto Freire,
Capim Macio, Natal, RN, Brasil, 59082-400. E-mail: mariaggomes@gmail.com, figueiroz@hotmail.com e
flaviah.freire@gmail.com
840 Costa, M. G. S. G., Figueiró, R. A., Freire, F. H. M. A.

of great interdependence with the service, which don’t integrate themselves in the community and are
hardly discharged from the CAPS. From the theoretical and methodological perspective of cartography,
we investigate how the professional user is produced and which practices sustain this phenomenon. We
noticed that, even going against the traditional model of Psychiatry and hospitalization, this service can
generate the institutionalization and chronification of the subjects through methods of organization and
work that follows a hierarchical logic of tutelage, isolation from the social environment and the depoli-
ticisation of the users.
Keywords: Psychiatric reform, mental health, care practices, Psychosocial Aid Centers, cartography.

El Fenómeno de la Cronicidad en los Centros de Atención


Psicosocial: Un Estudio de Caso

Resumen
Los centros de atención psicosocial (CAPS) desempeñan un papel clave dentro de la red de asistencia
de salud mental articulando servicios y usuarios dentro del territorio, además de presentasen como un
espacio privilegiado para la producción de cuidado, autonomía y inclusión social. Sin embargo, va-
rias investigaciones en el campo de la Reforma Psiquiátrica en Brasil apuntan para el fenómeno de la
nueva cronicidad en los servicios sustitutivos de salud mental. Así, este artículo pretende discutir las
prácticas de atención en un CAPS II en la ciudad de Natal-RN, teniendo como analizador la existencia
de los “usuarios profesionales”, usuarios que mantienen una relación de gran interdependencia con el
servicio, que no se encajan en la comunidad y difícilmente reciben alta del CAPS. Desde la perspectiva
teórica y metodológica de la Cartografía, investigamos cómo el usuario profesional es producido y que
prácticas sustentan este fenómeno. Tomamos nota de que, incluso yendo contra el modelo tradicional de
la Psiquiatría y hospitalización, este servicio puede generar la institucionalización y cronicidad de los
sujetos a través de métodos de organización y trabajo que siguen una lógica jerárquica de la tutela, del
aislamiento del entorno social y de la despolitización de los usuarios.
Palabras clave: Reforma psiquiátrica, salud mental, prácticas de cuidado, Centros de Atención
Psicosocial, cartografía.

O fenômeno da loucura acompanha a his- mental (Foucault, 2006, 2008). Em consequên-


tória da humanidade e, ao longo dela, diferentes cia, dá-se a emergência de uma ordem discipli-
maneiras de lidar e de compreender tal questão nar física e moral a vigorar principalmente nos
foram sendo forjadas. Michel Foucault (2008) asilos e manicômios designados como os novos
revela, através de sua “genealogia da loucura”, espaços de circulação da “alienação mental”.
o processo de apropriação desse fenômeno pela O isolamento é, então, definido como prin-
Psiquiatria de Philippe Pinel2 no século XIX, cípio terapêutico, justificado pela necessidade de
deslocando a experiência da loucura, que até en- garantir a segurança pessoal dos loucos e suas
tão era essencialmente considerada uma forma famílias; para liberá-los das influências exter-
de erro ou de ilusão, para a condição de doença nas; para submetê-los ao regime médico e para
impor-lhes novos hábitos intelectuais e morais
2
Philippe Pinel é visto como o médico respon- (Amarante, 2003). Apenas na segunda metade
sável pela instituição da Psiquiatria Moderna. Seu do século XX, vão começar a surgir diferentes
“Tratado Médico-Filosófico sobre a Alienação propostas que visam a transformação das práti-
Mental ou a Mania” de 1800/2007 é seminal no
que se refere à classificação nosográfica dos tran- cas psiquiátricas, institucionais e hospitalocên-
stornos mentais. tricas. Dentre essas propostas, a Antipsiquiatria
O Fenômeno da Cronificação nos Centros de Atenção Psicossocial: Um Estudo de Caso. 841

e a Psiquiatria Democrática Italiana aparecem lecidos os tipos de CAPS I, CAPS II, CAPS III,
como movimentos que vão se contrapor a esse CAPSi e CAPS AD3, e os respectivos modos de
poder disciplinar da Medicina Psiquiátrica, pro- funcionamento.
pondo novas maneiras de lidar com a loucura, O primeiro CAPS do Brasil (CAPS Luis da
levando em conta a potência criadora, a alterida- Rocha Cerqueira) foi implantado na cidade de
de e a contestação da sociedade trazida na figura São Paulo - SP em 1987. Desde então, entraram
do louco. Esses movimentos objetivavam não só em funcionamento no país aproximadamente
o fim dos manicômios, mas o rompimento com 2.269 centros (Ministério da Saúde, 2013). De
o paradigma psiquiátrico, entendendo a loucura acordo com o Ministério da Saúde (2012), os
também enquanto fato social. CAPS são serviços de saúde municipais, orien-
Nesse sentido, a desinstitucionalização apre- tados pelos princípios fundamentais do Sistema
senta-se como um processo de construção de uma Único de Saúde (SUS) - universalidade, equida-
nova política de saúde mental a partir da mobili- de e integralidade – abertos e comunitários, que
zação e participação de todos os atores interes- oferecem atendimento diário à população reali-
sados, tendo como foco do trabalho o enriqueci- zando acompanhamento clínico com o objetivo
mento da existência global, complexa e concreta de proporcionar a reinserção social dos usuários4
dos usuários e a construção de estruturas externas pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício da ci-
que sejam totalmente substitutivas da internação dadania e o fortalecimento dos laços familiares
no manicômio (Rottelli, Leonardis, Mauri, & Ri- e sociais.
sio, 1990). Além de prestar atendimento aos usuários
Inspirando-se principalmente na Psiquiatria e a seus familiares, esses serviços têm a incum-
Democrática Italiana, o movimento da Reforma bência de, no âmbito do seu território, articular
Psiquiátrica ganha força no Brasil ao final da e organizar a demanda da rede de cuidados em
década de 1970 denunciando os maus tratos nos saúde mental; desempenhar o papel de regulador
manicômios, a precariedade da assistência de da porta de entrada da rede assistencial; coorde-
saúde mental e a predominância da rede privada nar as atividades de supervisão de unidades hos-
de assistência, além de reivindicar uma mudança
nos paradigmas do cuidado relativo aos sujei- 3
“CAPS I - são serviços para cidades de pequeno
tos com transtornos mentais através de medidas porte, que devem dar cobertura para toda cliente-
como a diminuição dos leitos nos hospitais psi- la com transtornos mentais severos durante o dia
quiátricos e a implantação de serviços substitu- (adultos, crianças e adolescentes e pessoas com
tivos de atenção como Hospitais-dia, Centros de problemas devido ao uso de álcool e outras dro-
gas); CAPS II - são serviços para cidades de mé-
Atenção Psicossocial (CAPS), Serviços Resi-
dio porte e atendem durante o dia clientela adulta;
denciais Terapêuticos, entre outros programas e CAPS III – são serviços 24h, geralmente dispo-
ações de cuidado à saúde mental (Ministério da níveis em grandes cidades, que atendem clientela
Saúde, 2004). adulta; CAPSi – são serviços para crianças e ado-
Promulgada em 2001, a Lei Federal 10.216, lescentes, em cidades de médio porte, que funcio-
nam durante o dia; CAPS ad – são serviços para
dá à Reforma Psiquiátrica Brasileira um caráter pessoas com problemas pelo uso de álcool ou ou-
de proteção de direitos dos portadores de trans- tras drogas, geralmente disponíveis em cidades de
torno mental, com foco nas internações involun- médio porte. Funciona durante o dia” (Ministério
tárias, em detrimento da extinção progressiva da Saúde, 2012).
dos manicômios, como enfatizava o projeto de
4
Essa terminologia é usada habitualmente para
designar todos os cidadãos que utilizam o serviço
lei 3.657 de 1989 de autoria do deputado Pau- do SUS. No caso especifico deste trabalho nos
lo Delgado (Ministério da Saúde, 2005). Com a referiremos aos usuários que estão inseridos na
publicação da portaria do Ministério da Saúde rede de atenção psicossocial, entendendo que essa
nº 336 de 2002, os CAPS passam a assumir um nomenclatura permite o abandono da expressão
“paciente” que remete à condição de passividade
papel de centralidade dentro do processo de reo-
do sujeito enquanto objeto de ações técnicas e
rientação do modelo assistencial, ficando estabe- terapêuticas.
842 Costa, M. G. S. G., Figueiró, R. A., Freire, F. H. M. A.

pitalares psiquiátricas; supervisionar e capacitar vilegiado de interação como o CAPS e levando


às equipes de atenção básica, serviços e progra- em consideração a dimensão subjetiva dos acon-
mas de saúde mental, desempenhando desta for- tecimentos, definimos a cartografia como guia
ma um papel de suma importância dentro da rede teórico-metodológico nos caminhos trilhados.
de atenção psicossocial. A cartografia em questão se refere a uma
Para Yasui (2007) o CAPS não pode ser geografia dos afetos, ocupando-se de um plano
entendido apenas como um serviço, mas como movente, interessando-lhe as metamorfoses e
“uma estratégia para a mudança do modelo as- anamorfoses tomadas como processos de dife-
sistencial e para a produção de cuidado e bons renciação nos territórios – aqui entendidos como
encontros” (Yasui, 2007, p. 155). Segundo o au- existenciais, não consistindo na delimitação ob-
tor, o CAPS é um espaço privilegiado de geração jetiva de um lugar, mas daquilo que circunscre-
de cuidados, de subjetividades mais autônomas ve, para cada um, o campo do familiar e do vin-
e de inclusão social, que articula a singularidade culante, em uma delimitação material, rítmica e
de cada usuário à diversidade de possibilidades afetiva (Deleuze & Guattari, 2005).
de intervenções terapêuticas. Desta forma, os Segundo Rolnik (2007) o que o cartógrafo
CAPS são dispositivos importantes que podem quer é “participar, embarcar na constituição de
possibilitar um processo de empoderamento dos territórios existenciais, constituição de realida-
usuários e de suas famílias, entendendo esse pro- de” (Rolnik, 2007, p. 66). Dessa forma nos im-
cesso como um fortalecimento do poder pesso- plicamos no campo, ao mesmo tempo em que
al e coletivo de pessoas e grupos submetidos a nele interferimos (e somos por ele interferidos) já
longo processo de dor, opressão e discriminação, que, de acordo com Passos e Benevides (2010),
como grande parte dos usuários da rede de saúde “não há neutralidade do conhecimento, pois toda
mental (Vasconcelos, 2003). pesquisa intervém sobre a realidade mais do que
Contudo, no decorrer dos mais de dez anos a representa ou constata em um discurso cioso
da regulamentação da lei da Reforma no Brasil, das evidências” (Passos & Benevides, 2010, p.
vários autores (Amarante, 2007; Desviat, 1999; 20).
Pande, 2008; Severo, 2009) vêm apontando para Através da experiência de estágio profissio-
o fenômeno da “nova” cronicidade que surge nalizante de quase um ano na Rede de Atenção
nos dispositivos substitutivos de saúde mental. Psicossocial (RAPS), entramos em contato com
Esses autores assinalam que, mesmo indo contra a realidade cotidiana de um CAPS II. Frequen-
o modelo tradicional da psiquiatria e da hospi- tamos o CAPS em média três vezes por semana,
talização, esses serviços podem gerar a institu- variando entre os turnos da manhã e da tarde, nos
cionalização dos sujeitos através de práticas que valendo da observação, participação e registro
seguem uma lógica de tutela e despolitização. de diário de campo da rotina institucional do ser-
Diante desse cenário, nos propomos a pro- viço em oficinas terapêuticas, rodas de conversa,
blematizar o cotidiano de um CAPS II na cida- acolhimento de novos usuários, festas dentro do
de de Natal - RN apresentando alguns elemen- serviço, assembléias gerais dos usuários, reuni-
tos para análise do processo de cronificação de ões da equipe, supervisões da equipe junto aos
seus usuários, a partir da observação daquilo supervisores clínico-institucionais da Secretaria
que denominamos como “profissionalização da Municipal de Saúde de Natal, além de eventos
loucura”, fenômeno que tem dificultado maiores fora do serviço que estavam relacionados ao
avanços no cenário da Reforma Psiquiátrica bra- tema da saúde mental e contaram com a presença
sileira. de usuários e profissionais do CAPS.
Em um segundo momento, elaboramos um
Percursos Metodológicos levantamento sócio-demográfico da clientela
que frequenta o CAPS, com o intuito de saber
Como forma de acompanhar os diversos maiores informações acerca do tempo no ser-
processos que se desenrolam em um espaço pri- viço, do tratamento e das possibilidades de ar-
O Fenômeno da Cronificação nos Centros de Atenção Psicossocial: Um Estudo de Caso. 843

ticulação com outros dispositivos do Estado e co; 3 Policlínicas; 5 CAPS, sendo 2 CAPS AD,
setores da comunidade. Organizamos a lista de 1 CAPSi, 1 CAPS II e 1 CAPS III (o único do
usuários de acordo com o bairro de origem, o tipo em todo o estado do Rio Grande do Norte);
tempo de vinculação ao CAPS, seu diagnóstico 107 equipes da estratégia saúde da família (ESF)
e o tipo de tratamento (intensivo, semi-intensivo e apenas 3 equipes do NASF (Secretaria Munici-
e não intensivo5). pal de Saúde, 2010).
Vários estudos realizados no cenário local
O Dia a Dia do CAPS: Cronificação apontam para a fragilidade da RAPS no municí-
do Cotidiano? pio e para a dificuldade de articulação dos com-
ponentes que deveriam compô-la (Dimenstein et
De acordo com o decreto nº 7.508 de 2011 al., 2012; Pessoa, 2011; Severo & Dimenstein,
que regulamenta a Lei nº 8.080 de 1990, que dis- 2011). De acordo com Dimenstein et al. (2012), o
põe sobre a organização do SUS, a RAPS deve número reduzido de serviços voltados ao suporte
funcionar de maneira integrada articulando a à crise; a estrutura física inadequada da maior
atenção primária (Núcleos de Atenção à Saúde parte dos serviços de saúde; o número reduzido
da Família [NASF], Consultórios de Rua, Uni- de profissionais qualificados; o despreparo do
dades Básicas de Saúde, etc.); a atenção psicos- SAMU no atendimento de casos de pessoas em
social estratégica (os CAPS); a atenção de ur- sofrimento mental agudo; a carência de ações de
gência e emergência (Serviço de Atendimento promoção e cuidado em saúde mental na atenção
Móvel de Urgência [SAMU], Unidades de Pron- primária; e a falta de leitos nos hospitais gerais,
to Atendimento 24 horas [UPAs], etc.); a aten- fazem com que o hospital psiquiátrico continue
ção residencial de caráter transitório (Unidade de sendo uma das principais “portas de entrada” dos
Acolhimento e Serviço de Atenção em Regime usuários na rede de cuidado à saúde mental no
Residencial); a atenção hospitalar (enfermaria estado do Rio Grande do Norte, configurando-
especializada em Hospital Geral); as estratégias -se como uma rede “hospital-centrada”. Vemos,
de desinstitucionalização (Serviços Residenciais diante de tal cenário, que os CAPS possuem um
Terapêuticos e programa “De Volta para Casa”); grande desafio no que se refere ao seu funciona-
e as estratégias de reabilitação psicossocial (ini- mento de forma integrada nessa rede.
ciativas de geração de trabalho e renda). O CAPS no qual realizamos nosso estu-
Atualmente o município de Natal conta com do foi o segundo serviço substitutivo de saúde
2 Ambulatórios de Saúde Mental (o Ambulatório mental implantado pela Secretaria Municipal
de Prevenção e Tratamento do Tabagismo, Al- de Saúde de Natal, no ano de 1995. O serviço
coolismo e outras Drogadições [APTAD] e ou- possui 17 profissionais na equipe, entre trabalha-
tro para atendimento de transtornos psiquiátricos dores de nível básico, médio e superior, sendo
gerais); 2 Serviços Residenciais Terapêuticos três cozinheiras, dois vigias, uma copeira, duas
(voltadas para egressos de longas internações e enfermeiras, uma terapeuta ocupacional, uma
sem vínculos familiares); 1 Hospital Psiquiátri- nutricionista, um pedagogo, um educador físico,
duas psicólogas, dois médicos e dois farmacêu-
ticos, atendendo oficialmente, por volta de 180
5
O tratamento intensivo é destinado aos usuários usuários (o número de usuários pode variar bas-
que estão saindo de uma situação de crise ou que tante de acordo com a demanda) de segunda a
chegaram recentemente ao serviço e precisam sexta, das 8 horas às 17 horas. Nas quartas-feiras
de um maior acompanhamento. Esses usuários
devem frequentar o CAPS quatro vezes por o CAPS não é aberto aos usuários, pois é reser-
semana, por um ou dois turnos. Os tratamentos vado para expediente interno e reunião de equi-
semi-intensivo e não intensivo destinam-se aos pe, salvo nas primeiras quartas do mês, quando
usuários que já estão sendo acompanhados pela há assembleia geral.
equipe e têm um quadro estável, assim eles vão
A entrada dos novos usuários no serviço é
ao serviço com menor frequência, dependendo da
demanda de cada um. feita a partir de uma entrevista que ocorre com
844 Costa, M. G. S. G., Figueiró, R. A., Freire, F. H. M. A.

a participação de dois técnicos que colhem in- que, ao invés de desinstitucionalizar o paradig-
formações sobre a história pessoal e familiar dos ma manicomial, parece reforçá-lo.
usuários, histórico do transtorno mental, itine- Para Golberg (2001), o princípio norteador
rário terapêutico, entre outros aspectos. Dessa de atuação no CAPS, dentro do conjunto da Re-
forma, o ingresso do usuário está condicionado forma, é o da reabilitação como um “processo
à adequação nosológica psiquiátrica específica. articulado de práticas (sustentadas por uma tra-
Além disso, muitas vezes os usuários têm de en- ma de conceitos), que não se deteria até que a
frentar uma “lista de espera”, por conta da difi- pessoa acometida por problemas mentais pudes-
culdade do serviço em acolher o contingente da se sedimentar uma relação mais autônoma com
demanda que é maior que a sua capacidade, sen- a instituição” (Golberg, 2001, p. 34). Assim, o
do que, a cada ano, diminuem a porcentagem de tratamento dos usuários deve ser desenvolvido
admissões e altas de usuários no serviço. respeitando o tempo e incentivando a participa-
É importante ressaltar que a equipe do ção dos mesmos em seus próprios processos te-
CAPS II não entende que esse seja um serviço rapêuticos.
de referência no atendimento e suporte às crises As atividades do CAPS em questão, no en-
psiquiátricas, de forma que nesses casos os usuá- tanto, são planejadas pela equipe em reuniões
rios são encaminhados preferencialmente para o internas, quando não há usuários no serviço,
CAPS III e o hospital psiquiátrico. Nessas situa- fato também notado por Figueiró e Dimenstein
ções o acompanhamento do caso cabe ao técnico (2010), que a partir dessa observação se questio-
de referência do usuário. nam sobre como se pode pensar o cotidiano de
Logo nos primeiros dias de convivência, um equipamento em condições irreais:
nos chamou a atenção a dinâmica das refeições Irreal no sentido de extraordinário, já que tal
coletivas que, como apontam Alverga e Dimens- conjuntura, a presença exclusiva dos técni-
tein (2006), é um importante analisador para en- cos, não faz parte da realidade de um CAPS,
tender os territórios existenciais das interações e, em nossa opinião, nem deve fazer. Um
que se constroem nas minúcias do cotidiano dos equipamento de saúde só tem sentido com a
serviços. As refeições são servidas em espaços presença de seus usuários, principais atores
separados para técnicos e usuários. Enquanto . . . daquele espaço. (Figueiró & Dimens-
os técnicos almoçam ou lancham na cozinha tein, 2010, p. 434)
(espaço interditado aos usuários) e no pátio da Diante da não participação dos usuários na
entrada do CAPS, os usuários comem em uma gestão do cotidiano do serviço, várias estratégias
mesa grande próxima ao quintal. Os talheres, os de atuação são elaboradas sem levar em conta
copos e até a água para beber são separados entre as demandas dos mesmos. O dia a dia do CAPS
aquilo que é dos usuários e aquilo é dos técnicos, é normalmente preenchido com oficinas de ar-
e, nas poucas ocasiões em que lanchamos junto tesanato e/ou de escrita e rodas de conversas
com os usuários ou usamos os mesmos talheres, chamadas de “encontro de ideias”, onde, com a
fomos duramente repreendidos pelo restante da mediação dos técnicos, os usuários contam ao
equipe. grupo sobre o fim de semana anterior ou sobre
Apesar de compreendermos que a separação alguma novidade em suas vidas. Kastrup e Be-
entre usuários e técnicos pode ser uma estratégia nevides (2009) apresentam as oficinas artísticas
para organizar as refeições, além de servir como como dispositivos que permitem o agenciamen-
um momento de descanso para os trabalhadores to, através dos materiais, de uma subjetividade e
do serviço, a existência de uma proibição sobre uma aprendizagem-inventiva.
esse tipo de relação entre os usuários e os inte- As oficinas, portanto, devem ser pensadas
grantes da equipe (que desejavam o contrário) como estratégias que visam o objetivo de pro-
nos causou estranhamento. Percebemos, dessa duzir possibilidades nos sujeitos, compondo a
forma, que a relação estabelecida entre técnicos teia de dispositivos que tem como meta final a
e usuários é bastante hierarquizada, de forma reabilitação psicossocial dos usuários. No en-
O Fenômeno da Cronificação nos Centros de Atenção Psicossocial: Um Estudo de Caso. 845

tanto, as oficinas no CAPS são pensadas não a clínico-institucional da Secretaria Municipal de


partir de demandas e objetivos, mas a partir das Saúde, contudo a elaboração de PTS foi coloca-
habilidades e disposição de quem as estão con- da em prática de maneira insipiente nos métodos
duzindo. Diante da falta de profissionais ligados de trabalho, de forma que a realidade do serviço
à terapia ocupacional, à música, à arteterapia, à não condiz em vários aspectos com as necessida-
dança, etc., a elaboração e condução das ofici- des de muitos ali presentes.
nas ficavam a cargo do técnico (ou estagiário) Junto ao projeto de elaboração do PTS sur-
que estivesse disponível no momento. Como ob- giu o projeto de realizar o apoio matricial junto
servamos, essas atividades acabavam servindo às equipes da ESF dos territórios em que vivem
como um “passatempo” tanto para os usuários os usuários, dialogando com suas equipes de re-
quanto para os profissionais do CAPS. ferência da atenção primária à saúde. O apoio
Na maioria das vezes percebemos que há um matricial é uma estratégia de gestão para a cons-
esvaziamento nesses momentos. Frente a pouca trução de uma rede ampla de cuidados em saúde
participação e interesse dos usuários, os técnicos mental, desviando a lógica de encaminhamentos
tentavam persuadi-los a participar das atividades indiscriminados para uma lógica da co-respon-
através da utilização de vários recursos, inclusi- sabilização entre os diferentes níveis de atenção
ve com pequenas ameaças – certa vez, ouvimos à saúde, sendo um dispositivo articulador de um
de uma técnica: “Aqui nós temos um combinado conjunto de estratégias fundamentais no proces-
que quem não participa das atividades não lan- so de construção e transformação da assistência
cha”. em saúde mental (Bezerra & Dimenstein, 2008).
A elaboração de oficinas que não levam em A partir das reuniões e supervisões para a
consideração o desejo e a demanda dos usuários implantação dessa estratégia, um processo de
e o uso da ameaça de penalização como um re- “pensar sobre” a sistematização do trabalho fez
curso por parte dos técnicos é um exemplo de com que a equipe se organizasse, redefinindo
prática alienante do cotidiano, que não está de metas e dialogando mais. Esse processo mos-
acordo com a ideia de reinserção social e, prin- trou-se ser um dispositivo potencializador do co-
cipalmente, com a noção de desinstitucionaliza- letivo-equipe do CAPS. Entretanto, depois de 06
ção a que o serviço se propõe, e mostra como meses de discussões internas e junto às equipes
o funcionamento do trabalho está alicerçado na da ESF, essa prática foi sendo, gradativamente,
manutenção da tutela em relação aos usuários e deixada de lado, devido a uma série de proble-
do poder/saber nas mãos dos profissionais. mas como falta de transporte para visitação das
No mesmo sentido, percebemos que a fal- equipes, o número de profissionais do CAPS, a
ta de projetos terapêuticos singulares (PTS) in- dificuldade de comunicação com as equipes da
viabiliza a elaboração de estratégias de cuidado ESF, entre outros.
para com os usuários do serviço. O PTS funciona Segundo Merhy (2001), é essencial que os
como um conjunto de propostas de condutas te- trabalhadores da saúde sejam capazes de intervir
rapêuticas articuladas, para um sujeito individu- de forma a satisfazer a necessidade e os direitos
al ou coletivo, resultado da discussão coletiva de dos usuários de acordo com as suas realidades.
uma equipe interdisciplinar, com apoio matricial O processo de trabalho que procura resolver os
quando necessário (Ministério da Saúde, 2008). “problemas de saúde” nem sempre é um proces-
Portanto, entende-se que a elaboração de so produtivo que implica ganhos dos graus de
PTS junto aos usuários e suas famílias, levan- autonomia no sentido de o usuário gerir sua pró-
do em conta seus anseios e particularidades, é pria vida, algo que Merhy (2001) entende como
um artifício importante no aumento da autono- saúde em última instância, pois aquele processo
mia desses sujeitos, pois permite que eles façam de produção de atos de saúde pode simplesmen-
escolhas e estabeleçam normas para sua própria te ser “procedimento-centrado” e não “usuário-
vida. Essa discussão foi trazida para a equipe -centrado”, onde a finalidade última pela qual ela
do CAPS II através das reuniões de supervisão se realiza se esgota na produção de um pacien-
846 Costa, M. G. S. G., Figueiró, R. A., Freire, F. H. M. A.

te operado e “ponto final”, ou, em um paciente podem participar, de forma que aquilo que é de-
diagnosticado organicamente e “ponto final”: cidido em assembleia geral tem de passar pela
“Nós enquanto usuários podemos ser operados, equipe, em um momento a parte, para ser ou não
examinados, etc., sem que com isso tenhamos legitimado. Ao mesmo tempo, nas assembleias,
necessidades/direitos satisfeitos” (Merhy, 2001, percebemos que os usuários e familiares são
p. 8). pouco propositivos, se contentando em aceitar
Essa dissociação entre a organização do tra- ou rejeitar aquilo que é proposto pelos profissio-
balho e as necessidades dos usuários se traduz nais, conforme já sinalizado por Figueiró e Di-
na pouca participação desses últimos em grupos menstein (2010).
de conversa, na prática mecânica em oficinas, e, Tal funcionamento, centrado na hetero-
principalmente, no sentimento de obrigação, por gestão6 do cotidiano, coloca o poder de decisão
parte de alguns, de frequentar o serviço. Muitos acerca do funcionamento do serviço nas mãos
usuários chegam a chamar o CAPS II de “esco- dos técnicos, reforçando assim uma relação de
la” e os profissionais da equipe de “tio” e “tia”, tutela, o que diminui as possibilidades de empo-
algo que não é problematizado nas reuniões da deramento daquele coletivo, podendo fazer com
equipe, nas assembléias gerais e nem na reunião que o CAPS se torne um espaço cronificante e
com familiares. despotencializador no que se refere à produção
Nas assembleias, comumente, discute-se de vida para os usuários.
questões do funcionamento interno do serviço,
tal como falta de medicamentos, de água ou de Os “Usuários Profissionais”:
gás, três itens que estiveram em falta, com cer- A História de Raimunda7
ta regularidade, durante o ano que estivemos
acompanhando o serviço. As assembléias tam- Durante a experiência de estágio pôde-se
bém são um espaço onde são dados informes perceber, de modo geral, como se dão as práticas
para os usuários sobre eventos ligados ao CAPS. de cuidado dentro do serviço. Essas observações
Porém, pouco é discutido nessas reuniões em re- do funcionamento do CAPS nos despertaram vá-
lação aos assuntos que envolvam o serviço em rios questionamentos e inquietações, ou, como
um contexto mais geral, o que mostra uma des- diria Rolnik (1993), “linhas de desassossego”
politização e despotencialização desse disposi- que foram traçadas criando rupturas na maneira
tivo que poderia funcionar como um espaço de como enxergávamos o trabalho em saúde men-
exercício de cidadania. tal. Dentre os analisadores dos processos em mo-
Da mesma forma, tampouco se discute vimento no campo, passamos a notar que muitos
sobre as políticas de saúde, e, mais especifica- daqueles que frequentam o serviço se “especia-
mente, de saúde mental, levando-nos a crer que lizam” na função de usuários da rede de atenção
existe um grande processo de “alheamento” dos à saúde mental, tornando-se o que chamamos de
sujeitos em relação a seus contextos econômi- “usuários profissionais”. Em geral, esses usuá-
cos, históricos e sociais, processo esse que nos rios se caracterizam por frequentar o serviço há
parece ser incentivado, mesmo que de forma não muitos anos e manter uma relação de interde-
deliberada, pela equipe do serviço. Um exemplo
significativo disso é o fato de que os profissio-
nais e usuários entendem e se referem ao dia 18
6
Conceito utilizado pela Administração que se
de maio, dia internacional da luta antimanico- refere a um tipo de gestão oposta à autogestão,
isto é, a gestão é gerida por outra pessoa, que pode
mial, como se fosse um feriado do serviço, ha- ser um gerente, dono de empresa, ou no caso de
vendo pouco debate sobre a importância política instituições públicas, os gestores. Esse modelo,
e simbólica dessa data. portanto, dificulta o controle social a participação
Parece ser consenso entre todos que o espa- do usuário no processo de gestão democrática dos
serviços de saúde preconizadas pelo SUS.
ço onde são tomadas as decisões é o das reuniões 7
Utilizamos um nome fictício para preservar a
de equipe, das quais os usuários e familiares não identidade da usuária.
O Fenômeno da Cronificação nos Centros de Atenção Psicossocial: Um Estudo de Caso. 847

pendência com os técnicos, o que lhes confere enquanto conversávamos no pátio: “Deus me
uma autoridade em relação aos outros usuários livre de sair do CAPS. O que eu faria se não
e à equipe. viesse para cá?”. Ao propor que ela se inserisse
No levantamento que elaboramos sobre a em outros espaços, como no grupo de teatro da
clientela que frequenta o CAPS, contabilizamos associação de moradores de seu bairro, ela res-
mais de trinta usuários que estão em tratamento pondeu que não tinha interesse, pois o território
intensivo (vão ao serviço de duas a quatro ve- onde se sentia segura era o CAPS. Ela também
zes por semana) desde a inauguração do CAPS. dizia não se dar bem com o pai e a madrasta e
Para explicitar esse fenômeno, tomaremos como que, por isso, não gostava de ficar em casa e as-
exemplo a história de Raimunda. sim ia para o serviço.
Raimunda, de 46 anos de idade, é usuária Houve tentativas de diminuir a frequên-
do CAPS desde o início do serviço. Solteira e cia de idas da usuária, que passaria do regime
sem filhos, ela vive em um quartinho separado de tratamento intensivo para o semi-intensivo e
na casa do pai e da madrasta em Felipe Camarão, posteriormente o não intensivo, porém, sem o
bairro periférico da cidade de Natal. uso de estratégias específicas pensadas para ela,
De acordo com seu prontuário, o diagnós- Raimunda continua voltando várias vezes por
tico de Raimunda aponta para a presença de um semana, alegando os mais diversos motivos. Pre-
transtorno de personalidade paranoica. Ela teve senciamos algumas ocasiões em que a usuária
sua primeira crise aos 12 anos de idade, depois chegava depois do horário do almoço, afirmando
do falecimento de sua mãe, quando se mudou que estava por perto do CAPS e resolvera visitar
para Natal, vinda da área rural do estado. A par- a equipe. A equipe muitas vezes a ignorava, no
tir de então ela teria começado a apresentar cri- entanto não apresentava objeção à sua presen-
ses epilépticas, agressividade, anorexia e auto- ça ali. Já os outros usuários tinham uma relação
mutilação, que a levaram a ter várias internações difícil com Raimunda, mesmo que ela fizesse
psiquiátricas. questão de afirmar que era amiga de todos.
Raimunda é bastante comunicativa, gosta de Em eventos fora do serviço, um dos técni-
atuar nas peças de teatro organizadas em dias de cos sempre pedia pra que Raimunda “tomasse
festa no serviço e, apesar de ter uma certa di- conta” de outros usuários e isso parecia incomo-
ficuldade de locomoção devido a uma pequena dá-los bastante, pois alguns questionavam por
trombose em uma das pernas, não tem proble- que ela, também usuária, tinha um poder de tu-
mas para andar de ônibus, sozinha, por toda a tela semelhante aos profissionais do serviço. Ela
cidade. A equipe a descrevia como uma pessoa também costumava contar para os técnicos sobre
manipuladora, carente, ansiosa e que, aparente- qualquer conduta dos outros usuários que fosse
mente, não apresentava crises graves há vários considerada errada e isso gerava ainda mais con-
anos. Segundo os relatos dos profissionais mais flitos. À Raimunda, também eram concedidos
antigos, Raimunda teve um considerável ganho alguns privilégios, como o acesso ao espaço da
de autonomia desde que entrou no CAPS, no en- cozinha, por exemplo, que como já menciona-
tanto, mesmo estável, ela nunca deixou de fre- mos anteriormente, era proibido para a maioria
quentar, quase diariamente, o serviço. dos usuários do CAPS.
Passamos a prestar uma atenção especial ao O caso de Raimunda nos chama atenção por
seu caso, quando em uma supervisão, diante da diversos motivos. Da mesma forma que grande
sugestão do supervisor clínico-institucional de parte dos usuários, ela admite que o CAPS trans-
dar alta à Raimunda, quase todos os técnicos fo- formou-se em seu único espaço de convivência
ram contra, argumentando que a mesma entraria - é importante lembrar que um dos trabalhos do
em crise ao se desligar do CAPS, pois, de acor- CAPS é o de articular as redes de apoio social no
do com a fala de um técnico: “ela não estaria território. Assim, notamos que a saída dos usuá-
preparada para sair”. Poucos dias depois dessa rios do serviço não parece ser um recurso possí-
reunião, coincidentemente, Raimunda comentou vel, chegando a ser temida pelos técnicos, mos-
848 Costa, M. G. S. G., Figueiró, R. A., Freire, F. H. M. A.

trando que existe uma relação de dependência que implica em uma espécie de ruptura com o
mútua: usuário-dependente/ serviço-dependente. mundo externo.
Segundo Severo (2009) a rede especializada Desse modo, não há projetos, mesmo que
de cuidado à saúde mental, tal como os CAPS e pontuais, de saída do CAPS, nem de visita do-
ambulatórios de saúde mental, parece se consti- miciliares, salvo quando há caminhadas em um
tuir como o único espaço que permite a sociabili- parque municipal – que fica há poucos metros
dade entre seus usuários, que muitas vezes ficam do serviço – coordenadas pelo educador físico.
restritos ao “circuito especial” (rede especializa- Apesar de Raimunda residir em um bairro com
da de serviços de saúde mental – domicílio) o diversos dispositivos sociais que possivelmente
que pode gerar uma dependência destes em rela- poderiam mobilizar a usuária, como o grupo de
ção a esses serviços, além de indicar a existência teatro, nunca se pensou em tal inserção comu-
de uma cronificação dos usuários dentro da rede. nitária como uma estratégia efetiva de cuidado
Ao mesmo tempo, essa permanência indiscrimi- para a usuária.
nada no serviço gera excesso de demanda e, con- A relação entre Raimunda e os funcionários
sequentemente, a incapacidade dos profissionais do CAPS aponta ainda para o processo de “infan-
de atenderem satisfatoriamente a população. tilização” dos usuários. Os técnicos, ao estabele-
O caso de Raimunda também nos cha- cerem a figura de Raimunda como “dedo-duro”
ma atenção à falta de articulação entre a rede do grupo – que por tal razão goza de certo capital
especializada de cuidado em saúde mental e a social e moral entre os funcionários – reafirmam
atenção primária no município, o que dificulta a necessidade da tutela e da hierarquia naquele
sobremaneira a prática de matriciamento e o de- espaço, reproduzindo, mais uma vez, uma lógica
senvolvimento de ações compartilhadas entre as do CAPS-escola.
equipes da ESF, dos NASF e dos serviços subs- O cenário em questão corrobora com aqui-
titutivos nos territórios de vinculação dos usuá- lo que nos assinala Rangel (2008). Segundo a
rios. Apesar de Raimunda morar em uma área autora, três pontos parecem ser especialmente
que conta com cobertura da ESF e do NASF, não relevantes quando se trata da contribuição do
houve diálogo com as equipes do seu território serviço para a cronicidade dos usuários. São
para pensar as estratégias a serem desenvolvidas eles: a “infantilização” dos usuários; o aparente
junto à usuária para que pudesse se vincular a isolamento do serviço em relação à comunidade;
outros dispositivos sociais e serviços públicos. e finalmente, as relações hierárquicas entre téc-
A existência dos usuários de longa perma- nicos e usuários.
nência, como Raimunda, representa um desafio Vale enfatizar, entretanto, que o aumento da
ao projeto da Reforma Psiquiátrica, pois mostra autonomia dos usuários é diferente de indepen-
os entraves no desenvolvimento do modelo inte- dência, pois somos todos dependentes de algo e
gral de saúde pensado pelo SUS e a dificuldade de alguém. Concordamos com Kinoshita (2001)
dos serviços substitutivos em articular verdadei- que o mais importante é que se possa desenvol-
ramente esses usuários ao meio social promo- ver uma pluralidade de dependências, um mun-
vendo a reinserção psicossocial, ao reproduzir a do rico de possibilidades, de forma que não se fi-
lógica de exclusão ao restringir a vida dos su- que preso a algo específico, como um serviço ou
jeitos aos espaços exclusivos de circulação da determinados técnicos, por exemplo. A desvin-
loucura. culação do serviço não implica necessariamente
De acordo com Amarante (2007), os novos em uma nova relação dos usuários com o mundo
serviços de atenção psicossocial podem funcio- exterior, no sentido de estabelecer autonomia,
nar como “instituições totais como metáfora” independência, ampliação das relações sociais e
no sentido em que podem concentrar atividades dos vínculos afetivos. Essa articulação deve ser
importantes da vida do usuário geralmente reali- tomada também como uma prática de cuidado
zadas em espaços distintos, como vínculos afe- e de saúde, assim como a Reforma Psiquiátrica
tivos, tratamento, trabalho, alimentação, lazer, o deve se expandir para além dos serviços de saú-
O Fenômeno da Cronificação nos Centros de Atenção Psicossocial: Um Estudo de Caso. 849

de e da comunidade para se efetivar também no manente da relação tutelar e libertadora. Para o


âmbito sociocultural. autor, o ato cuidador é centralmente um ato de
Considerando que os CAPS se constituem tutela outorgada, que poderá, conforme o mode-
como carros-chefe da Reforma Psiquiátrica bra- lo de intervenção, ser ou não castradora. Tam-
sileira, torna-se urgente problematizar o modo bém no CAPS percebemos essa tensão e vemos
como vem funcionando seus cotidianos, sua que quando as intervenções e a construção das
micropolítica. Acreditamos que esses serviços práticas no serviço não levam em conta o mun-
devem se constituir enquanto dispositivos pro- do das necessidades/direitos dos usuários, e as
dutores de subjetividades, capazes de agenciar necessidades trazidas pelos usuários são julga-
práticas de cuidado que permitam o empodera- das e catalogadas como adequadas ou não ao
mento dos usuários, possibilitando a produção tipo de serviço que se oferece, a tutela torna-se
de saúde e de uma vida mais potente, dentro e castradora de desejos, impedindo os usuários de
fora do serviço. se empoderarem politicamente e afetivamente,
de forma a produzir percursos que invistam no
Considerações Finais mundo, para torná-lo e tomá-lo, em parte, como
seu (Merhy, 2001; Merhy, Feuerwerker, & Go-
O presente trabalho se propôs a problema- mes, 2010).
tizar o fenômeno da cronificação do cotidiano e Por fim, queremos enfatizar que as reflexões
dos usuários em equipamentos de saúde mental aqui apresentadas não objetivam julgar o valor
como o CAPS. Acreditamos que as práticas da do trabalho que vem sendo realizado nos CAPS.
tutela, da hierarquização entre usuários e profis- Enxergamos esses serviços também como es-
sionais e da não articulação entre serviço e so- paços de luta contra concepções hegemônicas
ciedade, sustentam a existência do fenômeno da de cuidado pautadas na lógica manicomial. Por
cronificação dos usuários, que não desenvolvem isso, buscamos através da problematização das
autonomia e desinstitucionalização como é dese- questões levantadas, reafirmar a potência e as
jado no projeto institucional, político e cultural possibilidades que esses dispositivos apresen-
da Reforma Psiquiátrica. tam para o processo de desinstitucionalização e
O processo de desinstitucionalização não afirmação da cidadania daqueles considerados
se refere apenas à desospitalização dos sujeitos, loucos, entendendo que os serviços substitutivos
mas sim à construção de práticas e saberes que de saúde mental, tais como o CAPS, devem se
produzam determinadas formas de perceber, en- apresentar não como “espaços-fim”, mas como
tender e relacionar-se com os fenômenos sociais “espaços-meio” que possibilitem a inserção de
e históricos. Para tanto, é preciso problematizar outros modos de existência na sociedade.
as bases do saber psiquiátrico e a função social e
política desempenhada pela ciência, pelos técni- Referências
cos e pelo manicômio (Saraceno, 2001).
Para Rottelli et al. (1990), o verdadeiro ob- Alverga, A., & Dimenstein, M. (2006). A reforma
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