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INTERNACIONAL

a tecnologia emergente
Daisy Prétola
Especial para Conjuntura Econômica

A
Índia está se consolidando desenvolvidos às voltas com mão-de- decorrentes contribuíram para que cres-
como importante centro de obra especializada e cara. cesse a antipatia da indústria local pelo
desenvolvimento mundial de Atualmente, a Índia detém a segun- capital estrangeiro e pelas importações.
software, processo acelerado da maior reserva mundial de recursos A guerra Índia-Paquistão em 1965 e as
a partir da década de 90, com pesados humanos com formação científico-tec- sanções impostas ao país pelas nações
investimentos na formação de mão- nológica, com baixo custo operacional e ocidentais endureceram as regras para
de-obra qualificada e em centros de razoável domínio da língua inglesa — he- a entrada de dinheiro externo. Somente
pesquisas. O país ocupa hoje a quarta rança deixada pelos ex-colonizadores e bens de capital eram aceitos, muitas ve-
posição entre as maiores economias que vem sendo bem aproveitada. Seria zes sujeitos a cláusulas especiais, como
emergentes do mundo, com taxa média impossível agregar tantos profissionais a transferência de tecnologia.
anual de crescimento entre 6% e 7% e uma área onde o conhecimento da língua Nos anos 60 e 70, o comércio
inflação de 3,7% ao ano. Em 2003 o inglesa é primordial em todo o mundo. mundial desenvolveu-se rapidamente
desempenho do Produto Interno Bruto Em termos de comunicação, no entanto, e os países emergentes foram favore-
(PIB) brasileiro foi de -0,2% em relação o país é uma babel. Com dois idiomas cidos pelos novos rumos tomados pela
a 2002. O avanço indiano no campo da oficiais (o hindi e o inglês), a Índia acolhe economia. Nações do Leste Asiático e
Tecnologia da Informação (TI) levou outras 14 línguas principais e 844 diale- da América Latina se beneficiaram de
a um significativo aumento do setor tos falados em diversas regiões. investimentos internacionais e melho-
dentro do PIB num curto espaço de raram a competitividade tecnológica
tempo: dos 0,59% entre 1994 e 1995, A Índia detém a segunda e o desempenho das exportações. O
essa participação pulou para 2,87% no maior reserva mundial zelo excessivo dos indianos pela auto-
período 2001-2002. suficiência, no entanto, deixou escapar
de recursos humanos
Os Estados Unidos absorvem cerca os benefícios propiciados pela expansão
de 60% dos aplicativos para computa-
com formação científico- do comércio mundial e pelos fluxos de
dores desenvolvidos na Índia e são seu tecnológica, com baixo capitais, o que os fez ficar à margem
principal mercado de destino, a ponto custo operacional e razoável desse processo. Entre 1966 e 1977 a
de a indústria indiana ter se transfor- domínio da língua inglesa então primeira-ministra Indira Gandhi
mado num prolongamento da economia nacionalizou minas privadas nacionais
norte-americana. A Europa é o segundo A fluência no inglês está restrita às e estrangeiras, refinarias de petróleo,
mercado para o software produzido na camadas sociais mais elevadas e que pu- impondo limitações à produção e aos
Índia, consumindo 21% de suas expor- deram ter acesso a uma educação mais investimentos externos. O motivo
tações, seguindo-se o Japão, que fica qualificada. O país tem 300 milhões de não era apenas a auto-suficiência,
com 4%. Embora modesta, há previ- analfabetos, um dos maiores índices do mas a hostilidade política ao capital
sões de que a demanda japonesa cresça planeta, que incluem 150 milhões de ocidental.
no curto prazo. párias remanescentes do sistema de Quando em 1974 a primeira crise do
Como explicar essa privilegiada po- castas abolido em 1950, mas que so- petróleo atingiu a economia mundial, a
sição dos indianos na área tecnológica? brevive até hoje, estigmatizando alguns da Índia já estava seriamente abalada.
Segundo Paulo Soeiro de Carvalho, em segmentos. A segunda crise do petróleo, de 1979,
estudo publicado na revista Informa- Globalização — A globalização na afundou ainda mais a economia india-
ção internacional 2000, de Lisboa, Índia não é tão recente quanto parece. na. Sem crescimento, o país importava
existem alguns fatores relevantes para Em meados dos anos 60, a interrupção mais bens de consumo e o precário
esse boom tecnológico. O primeiro de- do fluxo de divisas estrangeiras, conse- desempenho da agricultura tornava
les, uma considerável força de trabalho qüente de elevadas barreiras tarifárias, insustentável a situação da balança
com avançados conhecimentos na área quase levou à lona as importações de comercial. A carência de alimentos e o
de informática e (TI). O segundo, os bens de consumo. Taxas e impostos efeito cumulativo da crise internacional
profissionais qualificados de menor locais subiram à estratosfera, causan- em curso desestabilizaram a economia.
custo no mundo. Este, aliás, é um ar- do recessão e afugentando o capital O país teve de recorrer ao Banco Mun-
gumento bastante sedutor entre países externo. Os problemas econômicos daí dial e ao Fundo Monetário Internacio-

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Antonio Milena/Radiobrás
nal (FMI) para implantar um senvolvimento econômico
programa de ajuste estrutural. sustentável, em que pese o
Como contrapartida, teve de grande boom tecnológico dos
aceitar o investimento externo dias de hoje. Até o momento,
direto, quase um imperativo a globalização em nada afetou
num quadro de recessão, crise o padrão de vida de quem vive
cambial e investimento inter- do campo. Para grande parte
no em declínio. O dinheiro desse contingente, as melho-
novo também serviu para rias não chegaram.
aliviar a balança de paga- Tecnologia — Tentando de-
mentos sob forte pressão das mocratizar a informática em
importações crescentes e das função da diversidade lingüís-
exportações estagnadas. tica e também pela exclusão da
A partir de 1980, os in- Diante do presidente da Índia, Abdul Kalan, o primeiro-ministro população rural, a Índia apela
Atal Bijari cumprimenta o presidente Lula no Palácio Rashtrapati
dianos passaram a aceitar Bhawan, em Nova Delhi mais uma vez para os avanços
financiamentos comerciais da modernidade, desenvolven-
externos. Até certo ponto, Agricultura — O que leva um país do um computador de bolso,
tudo parecia favorável já que a razão em acelerado processo de desenvolvi- o Simputer, um palm top de baixíssimo
entre endividamento externo e PIB era mento a se posicionar contrariamente à custo: US$250. Segundo Shashank
baixa e o risco de crédito para emprésti- globalização? O que leva grande parte Garg, criador da máquina e vice-presi-
mos comerciais, bastante razoável. Isso de sua população e até partidos que dente de desenvolvimento de produtos
permitia taxas de juros relativamente anteriormente apoiavam a abertura de da Encore Ltd., de Bangalore, “é real-
baixas. Mas à proporção que a dívida mercado a não apoiá-la mais? A maioria mente trágico observar que embora a
externa começou a aumentar, a crise da população indiana habita regiões ru- Índia se considere uma superpotência
atingiu o seu ápice. rais e depende da agricultura e de suas do software, a indústria de TI pratica-
A hostilidade política à globalização atividades correlatas. Algumas medidas mente tenha ignorado as necessidades do
atravessou toda a década de 80, encabe- tomadas para estabilizar a economia mercado local”. O Simputer é criação de
çada pela agricultura nacional e pelos não beneficiaram a agricultura, um dos um grupo de professores e alunos do Ins-
lobbies industriais. Uma série de restri- setores mais produtivos da Índia. tituto Indiano de Ciências, de Bangalore,
ções às importações foi adotada com a Pelo acordo estabelecido com a dotado de recursos que permitem o uso
racionalização das estruturas tarifárias. OMC, as importações de produtos de geração de voz e é capaz de lidar com
Para evitar concorrência direta à indús- agrícolas passariam a gozar de tarifas algumas das línguas indianas.
tria nacional, permaneceram restrições baixas, o que só era permitido em casos Segundo dados publicados pela
sobre importações, o que contrariou a de quebra de safra. Com o sistema de Associação Nacional de Companhias
classe média, indianos não-residentes e preços mínimos adotado na agricultu- de Software e Serviços (Nasscom), em
exportadores. Surgiu uma mobilização ra, que já vem de governos passados, as 2000 o setor de TI na Índia empregava
por maior desregulamentação. cotações de muitos produtos agrícolas mais de 410 mil trabalhadores qualifi-
Foi de crise em crise que o país che- estão acima dos níveis internacionais. cados e semiqualificados. A demanda
gou à globalização no seu sentido mais Como a população agrícola é forma- por engenheiros é tão grande que o
amplo. A situação econômica estava da por um grande contingente de elei- governo pretende triplicar esse núme-
debilitada no início da década de 90. A tores, nenhum partido político poderá ro em quatro anos e está oferecendo às
política protecionista adotada nos anos apoiar abertamente o livre-comércio na indústrias benefícios fiscais até 2010
anteriores, com forte regulamentação e agricultura. Essa é a razão pela qual a para a exportação de serviços basea-
acentuada presença do setor público, Índia, mesmo sendo a maior produtora dos em TI.
tornava-se insustentável. O setor públi- mundial de açúcar, leite, chá, banana, Duas cidades se destacam nesse
co fixava preços, condicionava investi- manga, coco, castanha, tomate, mantei- contexto: Bangalore e Mumbai, ex-
mentos e a importação de produtos a ga; segunda em arroz, trigo, amendoim; Bombaim. Bangalore, ao sul, conhe-
autorização prévia, o que estimulava a terceira em algodão e tabaco; e quarta cida como a Sillicon Valley da Índia,
corrupção, estrangulava a iniciativa e produtora em ovos, perde este filão de detém o maior número de empresas
limitava a concorrência. Com as reser- captação de divisas. de software (em torno de 300) e é
vas cambiais exauridas — não ultrapas- O estado de carência que predomina responsável por mais de 32% da pro-
savam US$1 bilhão —, o país estava à em certas camadas da população trava dução de sistemas do país. O setor de
beira de quebrar. Para receber recursos a economia sustentável de que o país TI na região está crescendo à taxa de
do FMI, teve de desregular totalmente tanto precisa. A política econômica, 58% ao ano. Nos seus 225 centros de
a economia e ingressar na Organização muito centrada no mercado externo, formação para profissionais, a cidade
Mundial do Comércio (OMC). tem criado problemas para um de- integra jovens ao mercado de trabalho,

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a maioria desempregados de impostos indiretos, como as


níveis intermediários de ha- tarifas impostas às importa-
bilitação. O lado negativo é a ções. Entre 1991 e 1998, 70%
competição por profissionais das receitas fiscais do governo
qualificados, que aumenta a central vinham de impostos
cada dia. Com a rotatividade, indiretos. O que contrasta
o aperfeiçoamento tão neces- com a base de tributos de
sário à mão-de-obra pode impostos diretos que inclui
ser adiado. Além de ser a apenas 20 milhões de con-
segunda cidade indiana mais tribuintes de uma população
poluída, Bangalore tem uma total de 1 bilhão de pessoas.
infra-estrutura deficiente de Algumas empresas brasilei-
transportes e fracas ligações ras de tecnologia já negociam
aéreas internacionais. parcerias com a Índia, mas
Mumbai, uma das maio- ainda com muita parcimô-
res em perspectivas futuras nia. Segundo o Consulado
no desenvolvimento de soft- Geral da Índia, algumas joint
ware, é uma das principais ventures atuam no país como
cidades exportadoras e tem a Tata Consultancy Services,
algumas vantagens sobre Mumbai e a TCS Brazil, entre
Bangalore: baixos custos de que englobam agricultura, indústria outras. O comércio entre Bra-
imóveis, muitos recursos de profissio- e serviços, operam em mercado livre sil e Índia ainda não traduziu o poten-
nais qualificados e um grande centro com uma proteção de emprego muito cial dos dois países. Em 2002 o volume
de serviços financeiros e de engenharia, limitada. Muitas indústrias indianas não dos negócios entre os dois países ficou
além de bons serviços aéreos internacio- estão conseguindo competir com os im- em US$1,22 bilhão, com saldo positivo
nais e as melhores redes de transportes portados e com as empresas estrangeiras para o Brasil de US$80,41 milhões. Em
públicos e de energia elétrica do país. que vieram depois da globalização. Elas 2003, entretanto, o total negociado caiu
Para que a indústria de software formaram um lobby político e têm como para US$1,03 bilhão, com um superávit
cresça a mais de 10% do PIB, em 2008, maior reivindicação a desaceleração da de US$67,21 milhões na balança co-
alguns desafios terão de ser enfrenta- globalização. Pequenas e médias indús- mercial brasileira (ver gráfico).Em sua
dos. Um deles, o da escassez crescente trias estão progredindo graças à reserva visita ao país asiático no início do ano,
de engenheiros especializados. Por mais de mercado e concessões fiscais. Se tais o presidente Luiz Inácio Lula da Silva
que os institutos tecnológicos estejam benefícios forem retirados, conforme as assinou uma carta de intenções para
formando 2.200 engenheiros por ano, regras da OMC, elas enfrentarão um sé- um acordo preferencial entre Merco-
o número é insuficiente para atender rio problema de sobrevivência. E mesmo sul e Índia. O acordo definitivo deverá
tanto ao mercado interno como ao sem a revogação da reserva de mercado sair em junho.
externo. As empresas de software es- para as pequenas e médias indústrias, Na pauta do comércio entre os dois
tão evoluindo para áreas que oferecem elas terão um sério problema pela frente países, as exportações cresceram e se
maior produtividade e mais lucros. O já que dão emprego a um grande contin- diversificaram. O Brasil atualmente
baixo custo por si só já não angaria gente da população. exporta óleo cru e derivados, óleo
contratos. Empresas, como a Infosys, Os bancos estatais e demais insti- de soja, algodão, autopeças, açúcar e
estão desenvolvendo projetos mais tuições financeiras, como seguradoras, produtos químicos inorgânicos. A área
complexos. Os prazos para entrega também não escapam às pressões da farmacêutica, entretanto, é das mais
diminuíram para atender às mudanças globalização. Dominados por sindica- estratégicas na pauta de exportações
aceleradas pela competitividade das tos poderosos sofrem, com freqüência, indianas, por conta do fornecimento
empresas pressões para que o governo diminua ou de medicamentos para o Programa
Conjuntura — Empresários da área in- contemporize medidas de privatização Nacional de Saúde. Seis empresas, em
dustrial que a princípio eram favoráveis e desregulamentação. regime de joint-venture, estão instala-
à globalização agora também estão mais A economia indiana está limitada das no eixo Rio-São Paulo.
cautelosos com relação a ela na Índia. pela burocracia do governo. Embora as Como o Brasil, a Índia vai ter de
Tanto a indústria como a agricultura autoridades tenham adotado medidas fazer de sua economia emergente uma
foram durante muito tempo protegidas mais liberais, vários produtos essen- economia sustentável, conciliando o
pelo governo. Os sindicatos concentram ciais, como açúcar, óleos, serviços mé- grande crescimento do mercado externo
todos os seus poderes no setor público dicos básicos, energia e água, também com o pouco crescimento do mercado
e, neste, apenas 10% da mão-de-obra estão sendo regulados pelo governo. As interno e conseqüente problema de
estão protegidos. Os restantes 90%, finanças públicas ainda dependem dos desigualdade social.

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