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ESTRUTURAÇÃO MUSICAL

AULA 1

Prof. Alan Rafael de Medeiros


CONVERSA INICIAL

Iniciamos esta aula com um conjunto de abordagens que buscam


contribuir para nossa compreensão sobre modelos composicionais fundamentais
para a música do Ocidente, compreendidos desde a Idade Média até o advento
do século XVII. Verificaremos elementos constitutivos dos desdobramentos do
cantochão e da monodia gregoriana até o advento da polifonia; identificaremos
sua estruturação e utilização no principal serviço público da igreja cristã – a
missa; acompanharemos as práticas dessas estruturas composicionais no
campo da música secular e suas imbricações e rupturas no advento do gênero
dramático musical ópera. Essa é uma oportunidade para aprofundar seus
conhecimentos musicais com conteúdos que, muitas vezes, são deixados de
fora de nossa formação em música.

TEMA 1 – ESTRUTURAÇÃO MUSICAL – ESTILO EM MÚSICA

Antes de iniciarmos as abordagens sobre as estruturas musicais


propriamente ditas, é importante definirmos alguns elementos que contribuem
para a visualização da construção do discurso musical ao longo dos períodos
que perpassam várias disciplinas da área da música, sejam elas teóricas, sejam
elas práticas. Apesar de básicos, esses elementos ajudam a identificar de
maneira mais clara as questões que envolvem uma dada produção musical. Para
tanto, usamos como base a indicação de Bennett (2007), indicando como
elementos prioritários: melodia – harmonia – ritmo – timbre – forma – textura. O
estilo em música seria, portanto, a maneira como um compositor organiza essa
somatória de elementos em uma dada estrutura musical, em um dado momento
da história, sempre influenciado pelo contexto da produção musical daquele
período.

1.1 Melodia

Como sabemos, trata-se da organização horizontal das notas no tempo,


diferenciando-se entre alturas distintas. Melodia é, portanto, uma sequência de
notas (frequências), organizadas de maneira a fazer sentido no contexto musical
(Bennett, 2007).

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1.2 Harmonia

Trata-se da disposição vertical das notas no tempo, ou seja, quando duas


ou mais notas (frequências) soam simultaneamente. Ao longo da história, o
conjunto de notas simultâneas executadas passou a ser chamado de acorde, e
a palavra harmonia passou a ser usada para avaliar a seleção de notas que
constituem um determinado acorde, assim como para a descrição da progressão
dos acordes em uma composição.

1.3 Ritmo

Descreve diferentes modos de agrupamento dos sons musicais,


especialmente no que diz respeito à duração e à acentuação. Existe uma
marcação constante que organiza o ritmo de uma determinada obra, uma
pulsação contínua chamada de pulso e que funciona como uma referência na
percepção do ritmo.

1.4 Timbre

Diz respeito à sonoridade específica dos instrumentos e do agrupamento


destes em uma composição. Cada instrumento musical tem sua qualidade
sonora específica, e justamente a esta particularidade dá-se o nome de timbre.
Os compositores fazem uso desse elemento no momento em que organizam
uma obra musical, selecionando sonoridades específicas (muitas delas
estabelecidas em convenções de composições da época em que viveram) com
base em agrupamentos instrumentais (coros, orquestras, conjuntos de câmara).

1.5 Forma

Descreve o projeto básico, o escopo da estrutura musical sob a qual um


compositor estabelecerá sua composição. De maneira semelhante, esse escopo
inicial está vinculado ao contexto histórico e geográfico no qual o compositor está
inserido, fazendo com que os modelos formais sejam confirmados e muitas
vezes negados, na tentativa de superação e criação de novas estruturas formais.

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1.6 Textura

É a forma como o “tecido” é permeado entre si, por meio da conexão das
diferentes sonoridades que soam simultaneamente e que geram, desse modo,
uma determinada estrutura musical (Bennett, 2007). As texturas elementares
convencionadas ao longo da história da música seriam: a textura monofônica,
que se constitui de uma única linha melódica sem qualquer harmonia; textura
polifônica (também chamada contrapontística), caracterizada pela existência de
duas ou mais linhas melódicas simultâneas independentes; textura homofônica,
conhecida pela noção de uma linha melódica única que faz uso de
acompanhamento de acordes, ritmicamente idêntica em todas as vozes (linhas
melódicas).

TEMA 2 – MONODIA GREGORIANA E ORGANUM

A partir de agora, damos início às abordagens acerca de estilos musicais


e é importante que você, aluno, tenha consciência dessas estruturas que
mencionamos no tópico anterior. Levá-las em consideração enquanto
apreciamos exemplos musicais vai contribuir para o desenvolvimento de uma
apreciação musical crítica, auxiliando-o no processo de distinção entre um estilo
e outro.
Iniciaremos, neste tópico, estudos sobre estilos musicais ainda inseridos
em períodos históricos distintos, que vão da Idade Média e que adentram a
modernidade. É importante que você tenha em mente que, ao analisarmos
produções musicais, levamos em conta as mudanças estruturais que os estilos
musicais carregam consigo, as quais são fruto dos desdobramentos culturais
verificados na sociedade ao longo da história

2.1 Monodia gregoriana

Ao estudarmos a monodia/monofonia que, conforme verificamos, está


relacionada à ideia de uma única linha melódica, devemos levar em
consideração que essa configuração advém de uma estrutura musical vigente
desde a Antiguidade clássica, em períodos que remontam, por exemplo, a
práticas musicais verificáveis na cultura grega e nas tradições musicais cristãs
primitivas. Quando indicamos o termo monodia gregoriana, estamos localizando
historicamente esse estilo musical dentro do contexto da produção musical
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cristã, idealizado nos espaços da Igreja e que estabeleceu certa unidade à
produção do período.
Ao estudarmos o canto gregoriano, devemos levar em conta o vasto
território da Igreja cristã na Idade Média e a dificuldade de centralização do
repertório, já que não havia notação musical sistematizada e outros meios de
uniformização da prática musical. Um importante divisor de águas ocorreu no
século VIII, com a coroação de Carlos Magno (742-814) na Francônia (território
que abrange, atualmente, França, Suíça e parte da Alemanha), uma vez que
esse contexto fortaleceu a liturgia religiosa realizada entre os francos que, por
sua vez, assumiram a missão de expansão dos domínios cristãos. Apesar de a
maioria das melodias de cantochão utilizadas por eles ser oriunda do canto
romano, é certo que sofreram adaptações na maneira como eram entoadas.
Nesse momento, o cantochão realizado na Francônia passou a ser difundido
para grande parte da Europa sob a designação de canto gregoriano (Grout;
Palisca, 2007, p. 39). Portanto, o canto gregoriano é um tipo específico de
cantochão cristão, marcado pela concentração, sistematização e difusão pelo
reino franco no século VIII, constituído, em sua maioria, de textos bíblicos e
fazendo uso do latim como idioma oficial. Seu nome, de acordo com os
historiadores, deriva da figura do Papa Gregório (590-604), importante
incentivador e criador de vasto repertório gregoriano.
Poderíamos indicar como estrutura central da monodia gregoriana o fato
de ser composta por uma única linha melódica, sem qualquer tipo de
acompanhamento instrumental, flexível ritmicamente em função do uso
prosódico do texto como matriz rítmica. Tratava-se de cantos monofônicos
derivados do cantochão primitivo da Igreja cristã, que utilizavam textos bíblicos
ou sacros (sem relação com a Bíblia, mas de inspiração religiosa) com fluência
rítmica livre em função do texto, mantendo-se geralmente dentro da estrutura da
oitava e movimentando-se prioritariamente com base em intervalos de graus
conjuntos.
Trata-se de um momento histórico na produção musical em que a
tonalidade não havia sido definida, portanto a monodia gregoriana era baseada
nos modos eclesiásticos, desenvolvidos ao longo da Idade Média, com a melodia
constituída em forma de arco (ideia de ponto de partida – ponto de repouso).
Exemplificando essa premissa, poderíamos dizer que, em seu estado mais
rudimentar, apresentavam um movimento inicial ascendente e, depois,

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mantinham-se em uma mesma nota chamada tenor (do latim tenere –
manter/sustentar), finalizando-se com o movimento por graus conjuntos
descendentes (Bennett, 2007).

Figura 1 – Exemplo de monodia gregoriana

Fonte: Bennett, 2007, p. 13.

A monodia gregoriana tinha como espaço de execução os centros


religiosos do Ocidente (igrejas, catedrais, abadias etc.). Os principais tipos de
execução das obras se davam por meio da antifonia, ou seja, coros cantavam
alternadamente um responsório, que consiste na variação entre solista(s) e coro,
e a forma direta, que não apresenta variação, sendo executada por todos os
cantores sem alternância.

2.2 Organum

O organum tem suas origens que remontam aos espaços de produção da


própria monodia gregoriana. A Igreja ocidental cristã desse período concentrou
os principais processos composicionais, justamente por ser uma instituição de
reflexão sobre as práticas musicais de seu tempo. Entretanto, é importante
termos em mente que a produção secular (não vinculada à Igreja) existiu, apesar
do escasso material de sua tradição localizado no presente, dada a dificuldade
de localização/conservação de manuscritos sobre as práticas medievais.
A inserção de mais linhas melódicas no cantochão foi promovida
gradualmente ao longo das práticas musicais entre os séculos IX e XI, e não
deve ser entendida como rompimento com a tradição o passado, já que a prática
do cantochão permaneceu. A palavra organum, do latim, remete à ideia de
música “organizada” ou “planificada” e, mesmo assim, ainda permaneceu como
termo genérico até o século XIII, englobando toda a música polifônica realizada
com base no cantochão. Estamos falando, a partir de agora, de processos de
textura polifônica.
Suas derivações resultam da diversidade do processo composicional
gradualmente construído ao longo, prioritariamente, do século XI. O organum

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primitivo, iniciado desde o século IX, consiste na inclusão de uma linha melódica
adicional (vox organallis) em relação intervalar de 4ª, 5ª, ou 8ª inferior ao
cantochão (vox principallis). A primeira teorização do organum ocorreu nos
tratados Musica enchiriadis e Scolica enchiriadis, escritos entre os séculos IX e
X. Neste momento, é importante destacar que a vox organallis já era indicada e
construída acima da vox principallis (cantochão) (Grout; Palisca, 2007).
O organum paralelo pode ser entendido como o mais antigo dos organa
(plural de organum) e consiste na duplicação paralela da voz principal
(cantochão) em intervalos de 4ªs, 5ªs ou 8ªs justas. O organum paralelo,
inicialmente, possui uma voz principal, a qual é duplicada a uma 4ª justa ou a
uma 5ª justa abaixo da voz principal (Grout; Palisca, 2007).
No século XII, foi escrito o tratado Ad organum faciendum, iniciando o
processo de composição dos organa predominantemente em duas ou mais
vozes (linhas melódicas). Os exemplares de cantochão utilizados como base da
prática do organum passaram, nesse contexto, a se chamar cantus firmus (canto
de base). Nesse período, encontramos, portanto, os tipos mais desenvolvidos de
organum que predominaram durante o século XIII e o início do XIV.

Figura 2 – Organum paralelo

Fonte: Bennett, 2007, p. 14.

A partir desse momento, compositores foram gradualmente dando passos


no que toca à libertação da vox organallis do seu papel de cópia fiel da vox
principallis. Surgiu, assim, o organum livre, que permitia à primeira, além do
movimento paralelo, a possibilidade de realizar o movimento oblíquo
(sustentação da voz enquanto o cantochão se movia), além do movimento
contrário. Além dos intervalos perfeitos, de 4ªs, 5ªs e 8ªs justas, passou-se a
admitir, em certos momentos, intervalos de 3ªs e 6ªs em relação a uma outra voz
e ao cantochão.
Na metade do século XII, a polifonia entrou em uma nova etapa. Uma
nova maneira de se compor o organum foi desenvolvida no convento de Saint
Martial de Limoges, no sul da França, importante centro musical da Europa
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medieval. Essa nova estruturação musical ficou conhecida como Organum
melismático (melismas – várias notas). A inovação desse organum se caracteriza
pelo alongamento das notas do cantus firmus, e este passou a ser chamado de
tenor justamente por ser o portador da sustentação das demais linhas. Como
desdobramento, a voz que vox organallis passou a receber a denominação de
duplum.
Pode-se afirmar que o organum melismático é caracterizado
essencialmente por mais notas na vox organallis para cada nota do cantus firmus
(voz principal). Assim, sobre as notas longas formam-se extensos melismas, o
que, na prática, justifica o nome dessa estruturação composicional. O tenor
passava a ser executado por grupo de cantores alternadamente, uma vez que
as notas longas eram impraticáveis a um só fôlego. O duplum melismático era
cantado por um solista (Grout; Palisca, 2007).

Figura 3 – Organum melismático

Fonte: Bennett, 2007, p. 15.

Em Sant Martial, foi desenvolvido tipo específico de polifonia que recebeu


o nome de discantus, entretanto pode-se afirmar que esse estilo foi amplamente
disseminado com base na posição de destaque que a França passou a ter com
o grupo de compositores pertencentes à Catedral de Notre-Dame. A palavra
discantus deriva da palavra diaphonia (canto divergente) e até o século XIII
discante significou “movimento contrário das vozes” (Grout; Palisca, 2007).
Entretanto, a partir desse século, passou a designar um tenor (lembre-se, voz de
sustentação grave) ritmicamente organizado, já que nesse tipo de polifonia,
passa a haver o movimento de nota contra nota. Quando o compositor chegasse
a um segmento do canto original dotado de melisma, ele poderia incluir o tenor
no mesmo ritmo, movimentando as notas desse segmento, agora em andamento
mais rápido. O momento em que essa alteração ocorria ficou conhecido como
clausula, e a característica majoritária era o movimento das notas do tenor
geralmente construído formando desenhos rítmicos repetidos (Bennett, 2007).

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Figura 4 – Discantus

Fonte: Bennett, 2007, p.16.

2.3 Missa

Ao mencionarmos esses estilos composicionais que permearam as


práticas musicais dos séculos IX a XVI, conforme já indicamos, estamos nos
referindo a um tipo de produção que tem no contexto religioso seu principal meio
de propagação. Com isso, naturalmente, os ritos religiosos estão permeados de
música e requerem uma produção musical elaborada por parte dos compositores
desse período, do cantochão, quando pensamos na igreja primitiva, passando
pela monodia gregoriana a partir do século XI, até chegarmos à polifonia dos
séculos XI ao XIV, com organa paralelo, livre, melismático.
O culto cristão está organizado segundo uma organização intitulada
liturgia, a qual seguia (e ainda hoje segue) um calendário predeterminado de
acordo com períodos específicos do ano. A liturgia cristã (conjunto de textos
sagrados, práticas rituais e calendário religioso), em seu processo de
estruturação, passou por percurso de estabilização, tendo várias mudanças
significativas definidas pelos Concílios da Igreja Católica (Hanning, 2010).
Os textos estão distribuídos em ritos de dois principais tipos: as missas e
os ofícios, sendo a missa considerada o serviço mais difundido da Igreja cristã.
É dividida em três grandes partes: o Introito (introdução), a Liturgia da Palavra e
a Liturgia da Eucaristia (Grout; Palisca, 2007). De maneira semelhante, é
possível indicar que a missa está estruturada em um calendário litúrgico anual
que demanda diversificados tipos de música.
Os cantos que compunham a missa estão divididos em Ordinarium, que
engloba os cantos invariáveis no calendário, presentes, portanto, durante todos
os dias do ano (principais textos musicados: Kyrie Eleison, Gloria, Credo), e
Proprium, que agrega cantos variáveis de acordo com a data e o tema do
calendário litúrgico (principais textos musicados: Aleluia, Ofertorium). Os cantos
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utilizados na Missa (tanto do Ordinarium quanto do Proprium) estão disponíveis
em um compêndio intitulado Graduale
Cabe acrescentar que o ritual completo é chamado de Missa Solene. Além
dele, existem outros tipos especiais de missa, dentre os quais podemos citar a
Missa de Requiem, uma missa fúnebre na qual Gloria e Credo são substituídos,
por exemplo, pelo texto “Dies Irae, Dies illa“. Essa realidade geral indica a função
da missa dentro do processo de composição musical no medievo: uma
estruturação lógica e organizada que servia de base sólida para a produção
musical de uma dada localidade da Europa, gradativamente consolidada pela
Igreja cristã e que abarcava uma série de estruturas composicionais em sua
estruturação (Grout; Palisca, 2007).
Inicialmente, o cantochão da Igreja Primitiva permeou a produção musical
desse cenário. Gradativamente, a monodia gregoriana foi abundantemente
utilizada como transmissora musical do texto religioso nos serviços públicos da
Missa. Por fim, apesar das inúmeras ressalvas, passou-se a considerar válida a
utilização da polifonia como estilo composicional na Igreja, ao despontar dos
séculos XI ao XIV e paulatinamente sendo evidenciados novos aspectos da
criação musical no cenário europeu desse contexto. Exemplo dessa variação de
possibilidades pode ser apreciada na obra Missa de Notre Dame, do compositor
francês Guillaume de Machaut (c.1300-1377).
Essa obra é um os primeiros exemplares de Ordinarium de missa
completo, composto em estilo polifônico, relevante pelas suas amplas
proporções e textura a quatro vozes – Triplum: voz aguda; Duplum: logo acima
do tenor e abaixo do triplum; Tenor: voz de base com cantus firmus; Contratenor
Bassus: registro mais grave que o tenor. De importância ímpar para a história da
música, trata-se de uma primeira investida de um compositor pensando a missa
como unidade musical temática, concebida como um todo musical e, sob todos
os pontos de vista, uma obra de primeira grandeza (Grout; Palisca, 2007). Tendo
em vista a validade confirmada na estrutura composicional de Machaut, muitos
outros compositores levaram adiante a composição da missa baseando-se
nessa premissa, uma obra coesa pensada temática e texturalmente em sua
totalidade.

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TEMA 3 – FORMAS POÉTICO-MUSICAIS TROVADORESCAS

A música secular, conforme indicado anteriormente, coexistiu com a


música sacra produzida nos centros religiosos da Europa Ocidental. Com base
nos processos de notação que gradativamente se estabeleceram para dar conta
da complexidade técnica da monodia gregoriana, com seus desdobramentos
polifônicos, passa-se a considerar a produção secular em idioma vernáculo
produzida em diferentes polos europeus.
Nesse momento, verificaremos vertentes musicais que foram largamente
produzidas na Europa medieval e que contribuíram para a ampliação das
estruturas composicionais modernas. No decorrer da Baixa Idade Média, as
línguas vernáculas se desenvolveram, formando matrizes dos idiomas nacionais
europeus que conhecemos hoje. Em conjunto, cantos monofônicos não latinos
(oriundos de outros idiomas que não o latim) também se consolidaram,
incrementando, assim, o repertório de obras entoadas em idioma vernacular
secular, em sua grande maioria.
Nesse período, grande importância para a ampliação do repertório reside
na existência dos jograis (jongleurs) e menestréis (ménestrels), uma categoria
de músicos profissionais que promoviam entretenimento em pequenos
espetáculos de declamação, teatro e canto, organizados em confrarias, que mais
tarde dariam origem a corporações de músicos, oportunizando formação
profissional à maneira dos atuais conservatórios (Grout; Palisca, 2007). Outro
grupo de cantores compositores eram os trovadores (chamados de troubatours
no sul da França e de trovére no norte – termo oriundo da ideia de inventores,
“descobridores”), personagens que floresceram em círculos comumente
aristocráticos (apesar da possibilidade de ascensão de um artista pobre, em
virtude do talento) e que disseminaram amplamente obras relacionadas ao
repertório musical secular em idioma vernáculo entre os séculos XI e XIII (Grout;
Palisca, 2007).

3.1 Chanson

O termo chanson (canção) é largamente usado como designação para


composições dos trovadores, agrupadas em manuscritos chamados
chansonniers (cancioneiros). Apesar de a substância poética e musical das
canções não ser demasiado profunda, as estruturas formais demonstram

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variedade e interesse (Grout; Palisca, 2007). No que diz respeito ao
acompanhamento instrumental, é importante ter em mente que este difere
radicalmente da atual concepção de acompanhamento da canção, já que
inexistia o conceito de harmonia funcional tal como temos contemporaneamente.
Os acompanhamentos se caracterizavam pelo dobramento da melodia principal,
pela sua ornamentação, pela execução de notas pedais ou, no caso da
percussão, executar algum padrão rítmico característico de dança.
Os tipos de canções, geralmente caracterizados pela sua temática poética
(Stolba, 1998):

 Chanson: temáticas relacionadas ao amor;


 Pastourelle: poemas referentes a cenários bucólicos contendo como
enredo principal cavaleiros seduzindo uma pastora;
 Sirventes: canções de serviço que comentavam sobre a subserviência a
algum nobre ou tratavam de forma satírica de assuntos políticos e morais;
 Lai: de origem celta, trata-se de narrativa rimada geralmente dissertando
sobre temáticas lendárias;
 Balata ou danse: canção, geralmente de caráter dançante, com menções
à leveza da primavera e a cenários campestres;
 Carole, ronde, rondel, rondelete: mais um gênero de canção, geralmente
dançante, estruturada para danças circulares, cuja estrutura enfatiza a
alternância de uma estrofe cantada por solista, e um refrão entoado por
todos.

Para dar conta da estruturação das formas poéticas produzidas na música


trovadoresca, elaboraram-se mecanismos formais para estabelecer coerência
no discurso musical das chansons e, para tanto, as formas fixas acabaram
incorporando formatos poéticos e musicais que se solidificaram na tradição
trovadoresca monofônica. Com o advento da polifonia, elas também foram
usadas para a composição de peças a duas ou três vozes. Surgidas na França,
influenciaram a música de outras regiões, como a Espanha, a Alemanha e a Itália
As formas fixas mais conhecidas são as seguintes (Grout; Palisca, 2007,
p. 138-139):

 Rondeau: seu esquema formal só utilizava duas frases musicais


comumente organizadas no formato ABaAabAB, no qual cada letra

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maiúscula corresponde a um refrão e a minúscula à sua estrofe
correspondente;
 Viralai: seu esquema formal é Abbaa, na qual A é o refrão, b a primeira
parte da estrofe e a a segunda parte da estofe (que faz uso da mesma
melodia do refrão).;
 Ballade: poderíamos resumi-la no esquema aabC, sendo C o refrão.

3.2 Moteto

No século XIII, as vozes mais agudas das clausulae começaram a receber


palavras independentes do texto sacro do organum. Foi nesse momento que o
duplum (segunda voz aguda) passou a ser chamado motetus (do francês mots
que significa palavras), dando origem a um tipo de música popular que passou
a ser chamada de moteto (Bennett, 2007). Pensadas para serem utilizadas fora
do contexto religioso, receberam gradativamente texto com temática secular.
Sobre uma clausula, retirada geralmente de um organum a duas vozes,
era acrescentada uma terceira voz (triplum), organizada com notas ritmicamente
mais rápidas, com texto e por vezes até mesmo idioma distinto em relação às
demais linhas melódicas. O triplum poderia ajustar-se tanto ao tenor (que a essa
altura era mais executado instrumentalmente que propriamente cantado) quanto
ao duplum, mas não necessariamente obedecer aos dois, uma vez que o
resultado acabava gerando resultados intervalares dissonantes.
O exemplo a seguir demonstra essa realidade plural do ponto de vista
textual: enquanto a voz de sustentação entoa um Domino, o Duplum apresenta
tristes palavras de um poema amoroso, contraposto com o texto mais alegre
disposto no triplum. É desse destaque no cantus firmus litúrgico, com texto em
latim que se consolidou a ideia de que este, pelo fato de já desempenhar
qualquer função nesse cenário, seriam provavelmente executados por
instrumentos (Grout; Palisca, 2007).

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Figura 5 – Motete

Fonte: Bennett, 2007, p. 18.

Em meados do século XIII, os motetes passaram a utilizar outras


clausulae específicas dos serviços da Igreja cristã, fazendo uso de textos menos
usuais como o Kyrie e antífonas, bem como buscando novas fonte nas canções
profanas. Nesse alargamento de repertório, uma nova gama expressiva rítmica
emergiu, já que agora havia certa flexibilidade textual na voz do cantus firmus,
menos engessada em relação ao longo texto latino (lembre-se de que a voz do
tenor – cantus firmus, nos organa, era responsável pela sustentação de longas
sílabas das palavras enquanto a vox organallis executava variação melismática
das notas mais rápidas). Essa conjuntura contribuiu para o desenvolvimento de
nova sensibilidade rítmico melódica dos compositores de motetes, ampliando as
práticas composicionais polifônicas ao longo dos séculos XIII e XIV.

3.3 Madrigal

Diferentemente do cenário relativamente estável vivenciado na França


desse período, as cidades-estado italianas disputavam o poderio sociocultural,
incluindo o das manifestações artísticas, gerando diferentes movimentos
contrastantes com outros polos europeus. Dessa pluralidade emergiram
movimentos musicais que, apesar de levarem em conta o espírito do que
acontecia em outros locais da Europa, possuem características específicas.
Dentre essas manifestações musicais, destaca-se o madrigal italiano.
Escritos geralmente para duas vozes, os madrigais italianos possuíam
texto idílicos, bucólicos, amorosos ou então satíricos, com duas ou três estrofes
e três versos. As estrofes possuíam todas a mesma música, e no final dessas
estrofes um par de versos adicional chamado ritornelo, com música e fórmula

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rítmica diferentes. Aproxima o madrigal de fórmulas musicais antigas a presença
de passagens melismáticas decorativas no fim, e por vezes, no início dos versos
(Grout; Palisca, 2007).
Os desdobramentos desse gênero musical serão desenvolvidos e, mais
tarde, no século XVI, seriam incorporados pelos compositores italianos como um
estilo composicional de extrema nobreza, elaborado com base nos textos dos
grandes poetas italianos (em especial, Francesco Petrarca) sobre grandes
temáticas intelectuais. Em relação à produção do século XIV, guardaria
similaridade apenas no nome.
Das principais características desse madrigal italiano no século XVI (mais
elaborado em função das mudanças musicais ocasionadas no início do
Renascimento), destacam-se: valorização da musicalidade da palavra e do texto;
utilização de poemas elevados e sérios; música reservata – representação, por
meio da música, dos sentimentos oferecidos pelo poema; escrita polifônica
liberta da necessidade do cantus firmus; inicialmente a quatro vozes, ampliada
posteriormente a cinco e seis vozes, alternância entre polifonia imitativa com
partes homofônicas, incorporação de ornamentos dissonantes admitidos na
improvisação (Grout; Palica, 2007).

Figura 6 – Madrigal italiano

Fonte: Verdelot; Machiavelli, 1537

TEMA 4 – ÓPERA RENASCENTISTA

Neste momento de nosso estudo, abordaremos os aspectos constitutivos


da ópera renascentista, verificando suas principais características que,

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naturalmente, constituem importante arcabouço musical para os
desdobramentos que se seguirão nos séculos seguintes. Nesse sentido, tente
visualizar o que já foi visto até aqui, no intuito de perceber um processo em
construção de aspectos constitutivos dos estilos musicais (inicialmente monodia
– desenvolvimento gradual da polifonia; uma única linha melódica –
desdobramentos harmônicos/consecutivos na relação entre as notas etc.).
Agora, verificaremos algumas das principais características que
introduziram no cenário ocidental a ópera como um gênero musical que
praticamente monopolizou a produção musical do séculos XVII, com larga
aceitação ao longo dos séculos seguintes, XVIII e XIX.

4.1 Princípios da ópera

Podemos considerar uma ópera como uma obra teatral que combina
monólogos, diálogos, cenário, ação e música contínua (Grout; Palisca, 2007). No
Teatro do Renascimento, em que tantas tragédias e comédias imitavam os
modelos gregos ou a eles referenciavam, a busca por um modelo que
remontasse à estrutura do teatro musical clássica transcendeu interesse de
artistas e intelectuais, que empreenderam intenso movimento em prol de uma
estrutura dramática que ganharia corpo no século seguinte.
A ópera foi, sem dúvida, o gênero musical de maior representatividade do
século XVII, entretanto é importante ressaltar que seu desenvolvimento advém
de reflexões realizadas no século XVI. Caracteriza-se por um produto musical
que enfatiza a interação entre drama encenado e música, que tem como pano
de fundo uma vontade dos intelectuais daquele contexto em conectar música e
teatro ao modelo da Antiguidade clássica, imitando modelos gregos e nestes
buscando inspiração.
No século XVI, dois gêneros musicais e um poético se estabeleceram e
ofereceram a estrutura necessária ao desenvolvimento da ópera:
Os intermezzi eram interlúdios musicais, com representação dos
sentimentos com base em ações sublinhadas musicalmente. Como o nome
sugere, trata-se de um interlúdio mais leve, de caráter bucólico, alegórico ou
mitológico, apresentado entre as partes de uma comédia ou de uma tragédia de
maiores proporções. Como uma consequência da produção musical do século
XVI, boa parte dos compositores madrigalistas escreveram música para o

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intermezzi, conferindo dramaticidade musical necessária para o
desenvolvimento musical da ópera (Grout; Palisca, 2007).
A pastorella conectou o interesse dos dramaturgos e musicistas do século
XVI por concentrar, poeticamente, uma estrutura rica a ser elaborada do ponto
de vista teatral, e consequentemente musical. Como o nome sugere, trata-se de
poemas sobre pastores ou temas campestres semelhantes, com caráter
levemente dramático e com detalhamentos de natureza idílica e amorosa. Essa
forma exigia do poeta a capacidade de tradução de uma atmosfera de um mundo
remoto, de uma natureza requintada e civilizada, em um contexto social simples
e rústico. Como finalidade temática, o caráter idealizado de paisagem, o clima
nostálgico e a vontade por um paraíso inacessível atraíram os compositores
interessados na representação musical deste contexto poético (Grout; Palisca,
2007).
Os ciclos de madrigais são representativos para esse contexto da
elaboração da ópera por oportunizar a representação de uma série de cenas ou
estados de alma. As personagens eram diferenciadas por grupos de vozes e
solos, e essas obras não se destinavam à representação, mas simplesmente a
concertos relacionados ao entretenimento privado. A contribuição majoritária do
ciclo de madrigais resulta na concatenação da narrativa poética e sua
representação musical direta (Grout; Palisca, 2007, p. 317-318).

4.2 Tragédia grega como modelo – A Camerata Fiorentina – O recitativo

A tragédia grega serviria de modelo idealizado para o tipo de produção


musical dramática que os literatos do Renascimento consideravam apropriado
ao teatro, havendo, nesse ponto, duas correntes de pensamento sobre o lugar
da música na tradição teatral grega: uma que acreditava no potencial exclusivo
dos corais, e outro que defendia que todo o texto deveria ser musicado. A
segunda corrente foi amplamente difundida e minuciosamente estudada por um
erudito fiorentino, Girolamo Mei, tendo como base fontes gregas.
Mei tinha correspondentes entusiastas, dentre eles Giovanni Bardi e
Vicenzo Galilei, que se reuniam em uma espécie de academia informal, cujos
encontros eram sediados no palácio do próprio Bardi (agrupamento mais tarde
intitulado Camerata Bardi pelos integrantes). Mei considerava que os gregos
obtinham efeitos singulares com a música, pois esta consistia em uma única
linha melódica, quer cantada a solo, com acompanhamento, quer por um coro,
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e essa melodia tinha o poder de afetar diretamente os sentimentos do ouvinte,
pela exploração da expressividade natural das mudanças ascendentes e
descendentes das notas (frequências), do registro da voz e das mudanças de
ritmo e andamento. Para ele, apenas uma única linha melódica, com alturas e
ritmo definidos, seria capaz de exprimir adequadamente um dado verso, opondo-
se drasticamente à ideia de polifonia vocal, em que várias vozes independentes
cantavam melodias e letras diferentes. (Grout; Palisca, 2007).
Posteriormente, os envolvidos com a Camerata Bardi também
estabeleceram bases importantes do ponto de vista estilístico acerca das
mudanças necessárias à produção de música que antecedeu à ópera: Vicenzo
Galilei, seguindo o escopo teórico de Mei, atacava a polifonia vocal vigente até
então. Temos aqui um exemplo claro de quebra dos paradigmas musicais então
vigentes: a tentativa de transição para novas propostas estilísticas tendo como
base, neste caso, a redescoberta da tradição clássica.
Os músicos vinculados a esse movimento ou influenciados por ele, cada
um ao seu modo, com algumas contribuições pontuais, foram essenciais para as
transições que determinaram a ópera como gênero que conhecemos. O
compositor Jacopo Peri (1561-1633) foi convidado a musicar o texto de Dafne
de Rinuccini no intuito de desenvolver um novo estilo teatral, no qual eram
combinados a declamação e o canto. Era uma clara tentativa de levar ao teatro
um novo estilo, baseado na declamação e no canto, e com base em experiências
como essa, o referido modelo passou a ser chamado de estilo de recitativo e em
resposta ao sucesso desta empreitada, outros compositores foram levados a
mesclar teatro e música.
Conforme indicado, Peri desenvolveu um modo de cantar diálogos ou
solos vocais dos personagens, conhecido como estilo recitativo, na busca por
uma espécie de canção falada, intermediando a relação entre essas instâncias.
O recitativo pode ser traduzido com base na sustentação das notas do baixo
contínuo, enquanto o movimento melódico da voz encontra sistematicamente
consonâncias e dissonâncias, simulando, desse modo, o movimento contínuo da
fala. Peri libertou de maneira satisfatória a foz da harmonia para fazer com que
esta se assemelhasse a uma declamação livre e sem altura predeterminada.
Quando havia a necessidade de enfatizar uma sílaba importante para o contexto
dramático, havia-se o cuidado de colocá-la em constância com o baixo contínuo
e a respectiva harmonia (Grout; Palisca, 2007).

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Verifique essa ideia na figura abaixo, identificando que, apesar de haver
barras de compasso convencionais, a quantidade de durações rítmicas não é
regular.

Figura 7 – Estilo recitativo

Fonte: Peri, 1908.

4.3 Claudio Monteverdi – a síntese da ópera no início do século XVII

Claudio Monteverdi (1597-1643) era integrante da escola veneziana de


ópera e herdeiro dos avanços renascentistas da Catedral de São Marcos (sede
do trabalho de uma linhagem de madrigalistas desde o século XV). Destacamos
essa vinculação estilística para contrapor seu posicionamento em relação ao que
apregoavam os intelectuais vinculados à Camerata Bardi, uma vez que em suas
composições buscou equilíbrio entre as práticas vigentes de fins do século XVI.
Em Monteverdi, o recitativo cantado da camerata fiorentina torna-se mais
flexível, ou seja, ele busca um discurso musical que não reproduza a
complexidade sonora polifônica, mas que não seja exclusivamente vinculada à
palavra como o estilo recitativo de Peri. O compositor também idealiza que o
estilo recitativo encontra maior funcionalidade em momentos de diálogo entre os
personagens, mas enfatiza que a utilização de estilo melódico (lírico) como a ária
e até mesmo o uso de madrigais por coros em outros momentos eram mais
assertivos quanto ao grau de dramaticidade para as óperas. Com isso,
Monteverdi acaba por mesclar o estilo antigo do madrigal com o estilo moderno
da monodia acompanhada. Esse avanço pode ser percebido já em 1607, quando
da composição de seu L’Orfeu – La favola in musica.
Depois de Monteverdi, as óperas passaram a ser pensadas com base na
interação direta com um libreto, ou seja, um texto narrativo preparado por um
poeta que enfatizasse o teor narrativo ideal para a composição musical. Esse

19
libreto deveria ser dividido em atos (grandes partes), havendo entre cada um
deles uma introdução instrumental, abrigando gêneros tais como a tocata ou
mesmo uma abertura orquestral. Prioritariamente, na parte musical de interação
com o texto, enfatizaram-se trechos cantados por solista, por duo, trio ou mesmo
coral, havendo a possibilidade de interação entre as vozes, seja no momento do
recitativo, seja ainda enfatizados na parte conhecida como ária, trecho de maior
destaque melódico e mais detalhamento musical na representação do texto.
O compositor teve papel decisivo na estruturação da ópera como gênero
predominante desenvolvido no século seguinte, influenciando uma geração de
compositores posteriores. Seu recitativo ganhou maior fluência e continuidade;
seus momentos-chave ganham relevância pela expressividade e pelo lirismo
empregado; a orquestra é utilizada como rico recurso dramático pela sua vasta
paleta de sonoridades; a inserção de várias árias a solo, duetos, conjuntos vocais
do tipo madrigal e corais, além de gêneros de dança que, quando somados,
constituem parte importante da obra e dão o necessário equilíbrio formal ao
recitativo (Grout; Palisca, 2007).

TEMA 5 – ATIVIDADE ANALÍTICA

Com o objetivo de detalhar um pouco mais as diferenças que caracterizam


os principais movimentos nos quais uma ópera gravita, na atividade analítica
desta aula verificaremos as principais diferenças entre o recitativo e a ária.
Lembre-se de que esses movimentos orientam e organizam o desenvolvimento
da ópera, seja do ponto de vista musical, seja do ponto de vista dramático.
De início, podemos dizer que toda a construção depende
fundamentalmente da criatividade do compositor, que pode estruturar cada uma
dessas partes, que se sucedem várias vezes ao longo dos atos de uma ópera,
de maneira bastante distinta. Cabe a ele escolher se haverá árias/recitativos
elaborados para solo, dueto, trio, quarteto ou ainda com interação do coro.
Compete a ele, do mesmo modo, elaborar o acompanhamento instrumental que
representará aquela parte específica da história narrada, utilizando toda a
orquestra, um pequeno grupo, ou ainda instrumento solo. Essa escolha está
diretamente vinculada ao caráter dramático do libreto (que contém o texto
dramático a ser interpretado) e às convenções composicionais da época.

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5.1 Recitativo

Do ponto de vista dramático (pensando na interpretação teatral), é


possível dizer que o recitativo é o momento em que os atores/personagens
desenvolvem a trama, sendo, portanto, um trecho em que o diálogos (canto
falado – fórmula recitativo) mais longos são priorizados. Aqui ocorrem as
discussões entre personagens, as ideias e os planos para uma determinada
ação são apresentados, a resolução dos conflitos é enfatizada. Estamos
querendo dizer que, no recitativo, o compositor encaminha a trama da obra com
maior dinamismo, partes, em certa medida, menos importantes para a
dramaticidade da ária. Lembre-se de que, no recitativo, geralmente o
acompanhamento é reduzido a um baixo contínuo e/ou poucos instrumentos,
justamente para concentrar a atenção do ouvinte na trama.

5.2 Ária

Em oposição ao recitativo, a ária é o momento de maior beleza musical.


É nesse momento que o compositor se empenha em criar interesse musical, seja
do ponto de vista melódico, seja do ponto de vista da escrita orquestral. Basta
dizermos, para ilustrar essa ideia, que existem várias árias de óperas que são
internacionalmente famosas e tidas como as mais representativas da história,
sendo em muitos concertos executadas como partes independentes das óperas
às quais pertencem. Durante o desenvolver da história da música, a importância
da ária foi sendo amplificada até um ponto de saturação, em que os recitativos
quase já não eram relevantes para o desdobramento dramático da obra. Isso
ficou latente no século XVII e parte do XVIII, sobretudo com árias de óperas
sendo interpretadas pelos cantores mais famosos e ovacionados do cenário
musical. Esse momento de uma ópera consiste, sobretudo, na ambição do
compositor em oferecer um material musicalmente interessante melódica
(cantor/cantores) e harmonicamente (orquestra). Diferentemente do recitativo,
na ária são concentradas cenas de maior caráter dramático, uma elucubração,
uma reflexão, a externalização de um sentimento do(s) personagem(ns), e
mesmo por isso, faz-se importante a habilidade do compositor em tentar
transparecer essa gama de sentimentos musicalmente.

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NA PRÁTICA

Como exercício prático, é extremamente importante identificarmos os


aspectos constituintes de um dado estilo musical.
Como primeiro passo prático para essa atividade, procure se informar
sobre a história que caracteriza o mito de Orfeu. Na mitologia grega, o que esse
personagem representa? Qual era o seu poder? Qual era a sua relação com
Eurídice? O que acontece como trama principal dessa história?

Saiba mais

Após ter respondido a essas questões, que são cruciais para a


compreensão do drama em torno da construção musical, busque identificar
alguns trechos da obra, utilizando para tanto a execução indicada na obra que
pode ser acessada no link a seguir;
ORFEO Monteverdi Savall Liceo. Caballerito de Arratia, 1 mar. 2011.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=dBsXbn0clbU>. Acesso
em:1 ago. 2019.

1. O que você ouve ao início da música? Há vozes ou apenas instrumentos?


Poderíamos chamar esse trecho de abertura instrumental.
2. Perceba que em 2min24 existe um novo tema musical executado pela
orquestra. Ele se assemelha em termos de sonoridade e intenção
(dramaticidade) da parte instrumental anterior?
3. Em 3min01, inicia-se um trecho com solista. Aqui poderíamos identificar
um tipo de canto. O que acha desse momento? É um tipo convencional
de canto ou a solista está cantando mais no sentido de narrar um
acontecimento? Poderíamos enquadrar como um recitativo?
4. Ainda nesse mesmo trecho, quais instrumentos você consegue identificar
como aqueles que acompanham a voz? É a orquestra toda ou existe uma
redução na quantidade (intensidade) dos instrumentos? Esse é o tipo de
estruturação que poderíamos chamar de baixo contínuo, pontuando
trechos específicos e marcando harmonicamente a linha melódica do
canto.
5. 3min53: perceba como a orquestra sempre retorna ao mesmo tema que
apresentou na abertura da entrada da solista. Consegue identificar o tema

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nos instrumentos agudos e cantá-lo? Essa estrutura entre solista e
orquestra permanece até os 10min41.
6. Por fim, perceba a mudança que ocorre nas vozes. É um trecho mais
musical do ponto de vista melódico? O coral ajuda na construção
dramática da música?

Esta abordagem investigativa contribui para uma escuta crítica dos


exemplos musicais com os quais somos confrontados. Tente ouvir as partes
posteriores dessa ópera e vá identificando as características de cada parte.
Confronte seus resultados com o de colegas e cheguem a conclusões coletivas
sobre cada um dos trechos dessa ópera de Claudio Monteverdi.

FINALIZANDO

Verificamos, nesta aula, uma gama variada de recursos estruturais da


música que contribuem para a compreensão dos processos composicionais
existentes em um período relativamente grande de tempo. Essa afirmação
demonstra a importância de estarmos atentos às permanências culturais, aqui
no nosso caso musicais, que confirmam a ideia de que as rupturas tendem a ser
gradativas, nunca abruptas.
Acessamos inicialmente estruturas musicais oriundas de uma tradição
primitiva da Igreja cristã, no estabelecimento de um cancioneiro oficial
relacionado ao culto oficial público da igreja, a missa. Dentro desse escopo
estrutural, verificamos que inicialmente a textura musical utilizada gravitava em
torno da monodia, ou seja, uma única linha melódica na entonação do canto,
representadas no cantochão e, posteriormente, no canto gregoriano. A inserção
de mais linhas melódicas no cantochão foi promovida gradualmente ao longo
das práticas musicais entre os séculos IX e XI, com ápice entre os séculos XIII e
XIV e inicia um movimento polifônico na história da estruturação musical
ocidental. Movimentos paralelos, oblíquos e contrários passam a ser aceitos na
composição de obras sacras, incursões de vozes mais agudas e o alargamento
temporal do cantus firmus acarretaram na estilização do próprio estilo musical
polifônico.
A apropriação dessa estruturação polifônica passou, naturalmente, a ser
uma realidade também no campo da música secular nesse mesmo período. A
elaboração de canções trovadorescas, proeminentes no período, foi também

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influenciada pela incursão polifônica de duas ou mais vozes. As chansons na
França, ou os próprios madrigais italianos são a confirmação desse estado de
confluências na esfera da composição musical.
Por fim, verificamos a idealização de um movimento em torno de uma
tentativa de redescoberta do cenário cultural grego para a reconstrução de uma
prática artística que englobasse de maneira efetiva o teatro e a música. O
recitativo foi elaborado no intuito de dar corpo a um teatro inteiramente musicado,
com um canto que se aproximasse tanto quanto fosse possível, da naturalidade
da fala. Um movimento intelectual ganhou corpo nesse momento da história da
música, sobretudo em fins do século XVI, com interação entre pensadores e
artistas, para dar cabo a essa empreitada. Entretanto, seria Claudio Monteverdi
o compositor capaz de sintetizar de maneira mais efetiva esse cenário,
mesclando o que havia sido produzido de novo no capo do recitativo (monódico
com acompanhamento) com estratégias polifônicas herdadas dos madrigais
italianos tradicionalizados.

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REFERÊNCIAS

BENNETT, R. Forma e estrutura na música. Rio de janeiro: Zahar, 2010.

_____. Uma breve história da música. Rio de janeiro: Zahar, 2007.

BROWN, H. M. Music in the Renaissance. Nova Jersey: Prentice-Hall, 1976.

FUBINI, E. Estética da música. Lisboa: Edições 70, 2008.

GROUT, D; PALISCA, C. História da música ocidental. Gradiva, 2007.

LANG, P. H. Music in western civilization. Nova Iorque: W. W. Norton &


Company, 1997.

PERI, J. Uccidimi dolore. Milão: L’arte musicale in Italia, 1908.

STOLBA, K. M. The development of western music: a history. Nova Iorque:


MacCgraw-Hill Companies, 1998.

TOMAS, L. Música e filosofia: estética musical. São Paulo: Irmãos Vitale, 2005.

VERDELOT, P.; MACHIAVELLI, N. Il terzo libro de madregali. Veneza: [s. n.],


1537.

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