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TERAPIA FAMILIAR 19

PARTE 1
O contexto da terapia familiar
1
Os fundamentos da terapia familiar

poderia ajudar. Eu me sentia à vontade com


Saindo de casa pessoas deprimidas. Desde meu último ano de
ensino médio, quando meu amigo Alex morre-
ra, eu mesmo vinha me sentindo um pouco
Não havia muitas informações na folha deprimido.
de entrada: apenas um nome, Holly Roberts, o
fato de que ela era uma estudante universitá- 
ria prestes a concluir o curso e a queixa apre-
Depois da morte de Alex, o restante do
sentada: “dificuldade para tomar decisões”.
verão foi um borrão escuro. Eu chorava muito.
A primeira coisa que Holly disse quando
Ficava furioso sempre que alguém sugeria que
se sentou foi: “Eu não tenho certeza se preci-
a vida continua. O pastor da Igreja de Alex dis-
sava estar aqui. Você provavelmente tem mui-
se que sua morte na verdade não era uma tra-
tas pessoas que precisam mais de ajuda do que
gédia, porque agora “Alex estava com Deus no
eu”. Depois, ela começou a chorar.
céu”. Tinha vontade de gritar; em vez disso,
Era primavera. As tulipas estavam em flor,
eu me anestesiei. No outono, fui para a uni-
as árvores copadas de folhas verdes, e moitas
versidade, e, mesmo que parecesse um pouco
de lilases roxos perfumavam o ar. A vida e todas
desleal para com Alex, a vida realmente conti-
as suas possibilidades se abriam diante dela, mas
nuou. Eu ainda chorava de vez em quando, mas
Holly estava importuna e inexplicavelmente de-
as lágrimas vieram acompanhadas por uma
primida.
descoberta dolorosa. A minha tristeza não era
A decisão que Holly estava com dificul-
dade de tomar era o que fazer após a formatura. apenas por causa de Alex. Sim, eu o amava.
Quanto mais ela tentava imaginar, menos capaz Sim, eu sentia falta dele. Mas a sua morte tam-
se sentia de se concentrar. Começara a dormir bém me dava a justificativa para chorar pelos
tarde, a perder aulas. Finalmente, sua colega sofrimentos do dia-a-dia na minha própria vida.
de quarto a convencera a procurar o serviço Talvez a tristeza seja sempre assim. O tempo
de saúde. “Eu não teria vindo”, disse Holly. “Eu todo aquilo me parecia uma traição. Estava
consigo cuidar dos meus próprios problemas.” usando a morte de Alex para sentir pena de
No momento, eu fazia uma terapia catár- mim mesmo.
tica. A maioria das pessoas tem histórias para 
contar e lágrimas a derramar. Algumas das histó-
rias, eu desconfiava, eram dramatizadas para O que, eu me perguntei, deixava Holly
provocar simpatia e atenção. Parece que nós só tão triste? De fato, ela não tinha uma história
nos damos permissão para chorar quando temos dramática. Seus sentimentos não tinham foco.
alguma desculpa aceitável. De todas as emoções Depois daqueles primeiros momentos em meu
humanas das quais nos envergonhamos, sentir consultório, raramente chorou. Quando cho-
pena de nós mesmos está no topo da lista. rava, era mais uma lágrima involuntária do que
Eu não sabia o que estava por trás da de- um soluçar libertador. Ela falava sobre o futu-
pressão de Holly, mas tinha certeza de que ro e sobre não saber o que queria fazer com
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sua vida. Falava sobre não ter namorado – de Roberts estavam vermelhos de chorar. Holly
fato, ela raramente saía com alguém. Ela nun- lançou-lhe um olhar carrancudo e ameaçador
ca falava muito sobre sua família. Para dizer a e virou o rosto, os lábios cerrados e comprimi-
verdade, eu não estava muito interessado. Na dos. O Sr. Morgan voltou-se para mim: “Briga-
época, eu achava que o lar era o lugar que você mos durante todo o fim de semana. Holly me
tinha de deixar para conseguir crescer. insultava, e, quando eu tentava responder, Lena
Holly era vulnerável e precisava de alguém ficava do lado dela. É assim que tem sido des-
em quem se apoiar, mas algo a continha, como de o primeiro dia deste casamento”.
se ela não se sentisse segura, não confiasse muito A história relatada foi uma daquelas his-
em mim. Era frustrante. Eu queria ajudá-la. tórias tristes de ciúme e ressentimento que trans-
Um mês se passou e a depressão de Holly formam o amor comum em sentimentos amar-
piorou. Comecei a atendê-la três vezes por se- gos, feridos, que, com excessiva freqüência, se-
mana, mas não estávamos chegando a lugar param famílias. Lena Roberts tinha 34 anos
nenhum. Em uma tarde de sexta-feira, Holly quando conheceu Tom Morgan. Ele era um ho-
estava se sentindo tão desesperançada que mem robusto de 56 anos. A segunda diferença
achei que ela não deveria voltar sozinha para óbvia entre eles era o dinheiro. Ele era um cor-
o dormitório da faculdade. Então lhe pedi para retor bem-sucedido que se aposentara para cui-
deitar no divã do consultório e, com sua per- dar de uma fazenda de cavalos. Ela trabalhava
missão, liguei para os pais. como garçonete para sustentar a si mesma e à
A Sra. Roberts atendeu o telefone. Eu lhe filha. Era o segundo casamento de ambos.
disse que achava que ela e o marido deveriam Lena esperava que Tom fosse a figura pa-
vir a Rochester e encontrar-se comigo e com terna ausente na vida de Holly. Infelizmente,
Holly para discutir a possibilidade de Holly con- Lena não conseguiu aceitar todas as regras que
seguir uma licença de saúde e ir para casa. In- Tom se sentia convidado a estabelecer. Assim,
seguro na época quanto à minha autoridade, ele se tornou o padrasto malvado. Tom come-
eu me preparei para uma controvérsia. A Sra. teu o erro de tentar assumir o controle, e, quan-
Roberts me surpreendeu concordando em vir do começaram as brigas previsíveis, Lena to-
imediatamente. mou o partido da filha. Havia lágrimas e dis-
A primeira coisa que me chamou a atenção putas aos berros à meia-noite. Duas vezes,
em relação aos pais de Holly foi a disparidade Holly fugiu para a casa de uma amiga por al-
de suas idades. Lena Roberts parecia uma ver- guns dias. Esse triângulo quase arruinou a re-
são um pouco mais velha de Holly – ela não lação de Lena e Tom, mas as coisas se acalma-
podia ter muito mais de 35 anos. O marido ram quando Holly partiu para a universidade.
parecia ter 60. Fiquei sabendo que ele era o Holly esperava sair de casa e não olhar
padrasto de Holly, não o pai. Eles tinham casa- para trás. Faria novos amigos. Estudaria muito
do quando Holly estava com 16 anos. e escolheria uma carreira. Jamais dependeria
Pensando no que aconteceu na época, não de um homem para sustentá-la. Infelizmente,
me lembro de muita coisa ser dita naquele pri- Holly saiu de casa com assuntos não-resolvidos.
meiro encontro. Ambos os pais estavam muito Ela odiava Tom por ele implicar com ela e pela
preocupados com Holly. “Faremos o que você maneira como tratava sua mãe. Tom sempre
achar melhor”, disse a Sra. Roberts. O Sr. Morgan exigia saber aonde a mãe ia, com quem sairia
(o padrasto) disse que poderiam conseguir um e quando estaria de volta. Se a mãe se atrasas-
bom psiquiatra “para ajudar Holly nessa crise”, se, mesmo que apenas alguns minutos, havia
mas Holly disse que não queria ir para casa, e uma cena. Por que a mãe agüentava aquilo?
afirmou isto com muito mais energia do que eu Culpar Tom era simples e satisfatório.
escutara dela nos últimos tempos. Era um sába- Além disso, outra série de sentimentos, mais
do. Sugeri que não havia necessidade de uma difíceis de enfrentar, estava corroendo Holly.
decisão apressada, então combinamos nos en- Ela odiava a mãe por ter casado com Tom e
contrar novamente na segunda-feira. por deixar que ele fosse tão mesquinho com
Quando Holly e seus pais sentaram em ela. O que sua mãe vira nele, para começar?
meu consultório na segunda-feira, estava ób- Será que ela se vendera por uma bela casa e
vio que algo havia acontecido. Os olhos da Sra. um carro do último modelo? Holly não tinha
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as respostas para essas perguntas, não ousava familiar não é apenas um novo conjunto de
sequer ter plena consciência delas. Lamenta- técnicas; é uma abordagem inteiramente nova
velmente, a repressão não funciona assim: tran- ao entendimento do comportamento humano
camos alguma coisa em um armário e esque- – que é em essência moldado por seu contexto
cemos dela. É necessária muita energia para social.
manter à distância emoções indesejadas.
Holly encontrava desculpas para não ir
muito em casa durante a faculdade. Não pare- O MITO DO HERÓI
cia mais a sua casa. Ela mergulhou nos estu-
dos. Todavia, a raiva e a amargura a roíam por A nossa cultura celebra a singularidade
dentro até que, em seu último ano da universi- do indivíduo e a busca de um self autônomo. A
dade, deparando-se com um futuro incerto, história de Holly poderia ser contada como um
sabendo apenas que não poderia voltar para drama do tornar-se adulto: um jovem luta para
casa, entregou-se à desesperança. Não é de libertar-se da infância e da estreiteza de espí-
surpreender que estivesse deprimida. rito, para assumir a idade adulta, a promessa e
Achei toda a história muito triste. Sem o futuro. Se falhar, é tentado a olhar para den-
conhecer a dinâmica familiar e nunca tendo tro do jovem adulto, o herói fracassado.
vivido em uma família com um segundo casa- Embora o ilimitado individualismo do “he-
mento, eu me perguntei por que eles não po- rói” possa ser incentivado mais para os homens
diam simplesmente tentar se dar bem. Eles sen- do que para as mulheres, como um ideal cultu-
tiam tão pouca simpatia uns pelos outros. Por ral ele lança sua sombra sobre todos nós. Mes-
que Holly não conseguia aceitar o direito da mãe mo que Holly se importe com relacionamentos
de encontrar o amor uma segunda vez? Por que tanto quanto com autonomia, ela talvez seja
Tom não conseguia respeitar a prioridade do julgada pela imagem dominante da realização.
relacionamento da esposa com a filha? Por que Fomos criados com o mito do herói: o Vin-
Lena não conseguia escutar a raiva adolescen- gador Solitário, o Robin Hood, a Mulher Mara-
te da filha sem ficar tão defensiva? vilha. Quando crescemos, buscamos heróis na
A sessão com Holly e seus pais foi a mi- vida real: Eleanor Roosevelt, Martin Luther King
nha primeira lição de terapia familiar. Os mem- Jr., Nelson Mandela. Esses homens e essas mu-
bros da família em terapia não falam sobre lheres representam alguma coisa. Se ao menos
experiências reais, e sim sobre memórias re- pudéssemos ser um pouco como essas pessoas
construídas que se assemelham às experiências maiores-que-a-vida, que parecem se erguer aci-
originais apenas de certa maneira. As lembran- ma de suas circunstâncias...
ças de Holly eram muito pouco parecidas com Só mais tarde percebemos que as “circuns-
as lembranças de sua mãe e bem diferentes das tâncias” acima das quais queremos nos erguer
lembranças do padrasto. Nas lacunas entre as são parte da condição humana – nossa inesca-
suas verdades, havia pouco espaço para a ra- pável conexão com nossas famílias. A imagem
zão e nenhum desejo de buscá-la. romântica do herói baseia-se na ilusão de que
Embora a sessão não tivesse sido muito podemos atingir a autêntica individualidade se
produtiva, certamente colocou a infelicidade nos tornarmos indivíduos autônomos. Fazemos
de Holly em perspectiva. Eu já não pensava muitas coisas sozinhos, inclusive alguns de nos-
nela como uma jovem trágica, sozinha no mun- sos atos mais heróicos, mas somos definidos e
do. Ela era isso, evidentemente, mas também sustentados por uma rede de relacionamentos
uma filha dividida entre fugir de um lar do qual humanos. A nossa necessidade de idolatrar
não se sentia mais parte e o medo de deixar a heróis é, em parte, uma necessidade de nos er-
mãe sozinha com um homem em quem ela não guermos acima da pequenez e da dúvida em
confiava. Acho que foi aí que me tornei um relação a nós mesmos, mas talvez igualmente
terapeuta de família. um produto de imaginarmos uma vida livre
Dizer que eu não sabia muito sobre desses incômodos relacionamentos que, por al-
famílias e menos ainda sobre técnicas para guma razão, nunca são como gostaríamos.
ajudá-las a pensar coletivamente seria uma ex- Quando pensamos sobre famílias, geral-
posição muito atenuada dos fatos. A terapia mente é em termos negativos – como forças de
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dependência que nos aprisionam ou como ele- rio, um refúgio de um mundo perturbado e
mentos destrutivos na vida de nossos pacien- perturbador.
tes. O que chama a nossa atenção nas famílias Debatendo-se com o amor e com o traba-
são as diferenças e a discórdia. A harmonia da lho, incapazes de encontrar consolo e alívio em
vida familiar – lealdade, tolerância, ajuda e algum lugar, os adultos buscavam terapia para
apoio mútuos – muitas vezes deixa de ser per- encontrar satisfação e significado. Os pais,
cebida, sendo parte daquele pano de fundo da preocupados com o mau comportamento, com
vida que tomamos como algo natural. Se qui- a timidez ou com falta de realização dos fi-
sermos ser heróis, então precisamos ter vilões. lhos, os enviavam para que recebessem orien-
Hoje em dia, fala-se muito sobre “famílias tação e direção. De muitas maneiras, a psico-
disfuncionais”. Lamentavelmente, isso se terapia deslocava o papel da família na solu-
centra muito nos golpes infligidos pelos pais. ção dos problemas da vida cotidiana.
Sofremos por causa do que eles fizeram: o al- É tentador olhar para trás, para os dias
coolismo da mãe, as expectativas irracionais que antecederam a terapia familiar, e ver aque-
do pai – essas são as causas da nossa infelici- les que insistiam em segregar os pacientes de
dade. Talvez isso seja um avanço em relação a suas famílias como expoentes ingênuos de uma
chafurdarmos na culpa e na vergonha, mas está visão fossilizada dos transtornos mentais, de
muito longe de um entendimento do que real- acordo com a qual as doenças psiquiátricas es-
mente acontece nas famílias. tavam firmemente inseridas na cabeça das pes-
Uma razão para pôr a culpa dos sofrimen- soas. Considerando que os terapeutas só co-
tos familiares nas falhas pessoais dos pais é a meçaram a tratar a família inteira por volta de
dificuldade de uma pessoa comum enxergar, 1950, é tentador perguntar: “Por que eles le-
através das personalidades individuais, os pa- varam tanto tempo para fazer isso?” De fato,
drões estruturais que as tornam uma família – havia boas razões para a terapia ser conduzida
um sistema de vidas interligadas governado por de forma privada.
regras estritas, mas não-verbalizadas. As duas abordagens de psicoterapia mais
As pessoas sentem-se controladas e desam- influentes no século XX, a psicanálise de Freud
paradas não porque são vítimas das loucuras e e a terapia centrada no cliente de Rogers, ba-
das trapaças parentais, mas porque não compre- seavam-se na suposição de que os problemas
endem as forças que agem em maridos e mulhe- psicológicos surgiam de interações não-sadias
res, pais e filhos juntos. Assoladas pela ansieda- com os outros e que a melhor maneira de
de e depressão ou meramente perturbadas e minorá-los era um relacionamento privado
inseguras, algumas pessoas recorrem à psicote- entre terapeuta e paciente.
rapia em busca de ajuda e de consolo. No pro- As descobertas de Freud culpavam a famí-
cesso, afastam-se dos irritantes que as impeli- lia, primeiro como um espaço criador de sedu-
ram à terapia. Entre esses se destacam os rela- ção infantil e depois como o agente de repres-
cionamentos infelizes – com amigos, amantes e são cultural. Se as pessoas cresciam um pouco
a família. Nossos transtornos são sofrimentos neuróticas – com medo de seus instintos natu-
privados. Quando recuamos para a segurança rais –, quem deveriam culpar a não ser os pais?
de um relacionamento sintético, a última coisa Dado que os conflitos neuróticos seriam gera-
que queremos é levar junto a nossa família. Será dos na família, parecia muito natural supor que
que deve nos surpreender, então, que, quando a melhor maneira de desfazer a influência da
Freud aventurou-se a explorar as forças som- família era isolar os parentes do tratamento,
brias da mente, ele tenha deixado a família impedir que sua influência contaminadora che-
trancada do lado de fora do consultório? gasse à sala de operações psicanalíticas.
Freud descobriu que, quanto menos re-
velava sobre si mesmo, mais seus pacientes rea-
SANTUÁRIO PSICOTERAPÊUTICO giam a ele como se fosse uma figura significa-
tiva de sua família. A princípio, essas reações
A psicoterapia, outrora, era um empreen- de transferência pareciam um obstáculo, mas
dimento privado. O consultório era um lugar Freud logo percebeu que elas forneciam um
de cura, sim, mas era igualmente um santuá- vislumbre inestimável do passado. A partir de
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nalizam isso. Engolimos a nossa raiva, abafa-
mos a nossa exuberância e enterramos a nossa
vida sob uma montanha de expectativas.
A terapia desenvolvida por Rogers tinha
por objetivo ajudar os pacientes a descobrirem
seus reais sentimentos. Sua imagem do tera-
Freud excluiu a família da peuta era a de uma parteira – passiva, mas
apoiadora. O terapeuta rogeriano não fazia
psicanálise a fim de ajudar os
pacientes a se sentirem seguros nada pelo paciente, mas oferecia apoio para
para explorar o alcance total ajudá-lo a descobrir o que precisava ser feito,
de seus pensamentos e principalmente ao dar a ele uma consideração
sentimentos. positiva incondicional. O terapeuta ouvia com
simpatia, era compreensivo, cordial e respei-
toso. Na presença desse ouvinte acolhedor, o
paciente gradualmente entrava em contato
então, analisar a transferência se tornou a pe- com seus sentimentos e desejos interiores.
dra fundamental do tratamento psicanalítico. Como o psicanalista, o terapeuta centrado
Isso significava que, como o analista estava no cliente mantinha uma privacidade absolu-
interessado nas memórias e fantasias do pa- ta no relacionamento terapêutico, para evitar
ciente, a presença da família só obscureceria a qualquer possibilidade de que os sentimentos
verdade subjetiva do passado. Freud não esta- do paciente fossem subvertidos pela necessi-
va interessado na família viva, mas sim na fa- dade de aprovação. Só uma pessoa desconhe-
mília das lembranças. cida e objetiva seria capaz de oferecer a acei-
Ao conduzir o tratamento privadamente, tação incondicional para ajudar o paciente a
Freud salvaguardava a confiança dos pacien- redescobrir seu self real. É por isso que os mem-
tes na santidade do relacionamento terapêutico bros da família não tinham lugar no trabalho
e, assim, maximizava a probabilidade de repe- da terapia centrada no cliente.
tirem, em relação ao analista, os entendimen-
tos e desentendimentos da infância.
TERAPIA FAMILIAR VERSUS TERAPIA INDIVIDUAL

Como podemos ver, havia e há razões
Carl Rogers também acreditava que os válidas para realizar a psicoterapia em um re-
problemas psicológicos originavam-se de inte- lacionamento privado e confidencial. No en-
rações iniciais destrutivas. Cada um de nós, di- tanto, embora haja sólidas alegações em favor
zia Rogers, nasce com uma tendência inata para da psicoterapia individual, podemos fazer uma
a auto-realização. Se deixados por nossa pró- defesa igualmente sólida da terapia familiar.
pria conta, tendemos a seguir os nossos me- Tanto a psicoterapia individual quanto a
lhores interesses. Uma vez que somos curiosos terapia familiar oferecem uma abordagem de
e inteligentes, exploramos e aprendemos; como tratamento e uma maneira de compreender o
temos um corpo forte, brincamos e nos exerci- comportamento humano. Como abordagens de
tamos; como estar com os outros nos traz ale- tratamento, ambas possuem virtudes. A tera-
gria, somos sociáveis, amorosos e afetuosos. pia individual pode fornecer o foco concentra-
Infelizmente, disse Rogers, o nosso ins- do para ajudar a pessoa a enfrentar seus me-
tinto para a realização é subvertido por nossa dos e aprender a se tornar, mais integralmen-
ânsia de aprovação. Aprendemos a fazer o que te, o que ela é. Os terapeutas individuais sem-
achamos que os outros querem, mesmo que pre reconheceram a importância da vida fami-
isso não seja o melhor para nós. liar na formação da personalidade, mas supu-
Gradualmente, esse conflito entre auto- nham que essas influências eram internalizadas
realização e necessidade de aprovação leva à e que a dinâmica intrapsíquica tornava-se a for-
negação e à distorção daquilo que nos impele ça dominante que controlava o comportamen-
interiormente – e até dos sentimentos que si- to. Portanto, o tratamento podia e devia ser
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dirigido à pessoa e à sua constituição pessoal. sistente com a maneira pela qual experien-
Os terapeutas familiares, por outro lado, acre- ciamos a nós mesmos. Reconhecemos a influên-
ditavam que as forças dominantes na nossa cia das pessoas íntimas – especialmente como
vida estão localizadas externamente, na famí- obrigações e limitações –, mas é difícil enxer-
lia. A terapia baseada nessa estrutura tem por gar que estamos inseridos em uma rede de re-
objetivo mudar a organização da família. Quan- lacionamentos, que somos parte de algo maior
do a organização desta é transformada, a vida do que nós mesmos.
de cada um de seus membros também é corres-
pondentemente alterada.
Este último ponto – mudar a família muda PSICOLOGIA E CONTEXTO SOCIAL
a vida de cada um de seus membros – é impor-
tante o suficiente para ser examinado com A terapia familiar floresceu não só devi-
maior cuidado. A terapia familiar não busca do à sua efetividade clínica, mas também por-
apenas mudar o paciente no contexto indivi- que redescobrimos a interligação que caracte-
dual. A terapia familiar provoca mudanças em riza a nossa comunidade humana. Em geral, a
toda a família; portanto, a melhora pode ser questão da terapia individual versus familiar é
duradoura, porque cada membro da família é colocada como uma questão técnica: qual abor-
modificado e continua provocando mudanças dagem funciona melhor em um determinado
sincrônicas nos outros. problema? A escolha também reflete um en-
Quase todas as dificuldades humanas tendimento filosófico da natureza humana.
podem ser tratadas com terapia individual ou Embora a psicoterapia possa ter sucesso ao fo-
com terapia familiar, mas certos problemas são calizar ou a psicologia do indivíduo ou a orga-
especialmente suscetíveis a uma abordagem nização da família, ambas as perspectivas – psi-
familiar: problemas com os filhos (que preci- cologia e contexto social – são indispensáveis
sam, independentemente do que acontece na para um entendimento completo das pessoas
terapia, voltar para a casa dos pais), queixas a e de seus problemas.
respeito do casamento ou de outros relaciona- Os terapeutas familiares nos dizem que a
mentos íntimos, hostilidades familiares e sin- família é mais do que uma coleção de indiví-
tomas que se desenvolvem no indivíduo no duos separados: é um sistema, um todo orgâni-
momento de uma importante transição fami- co cujas partes funcionam de uma maneira que
liar. Se os problemas que surgem em função transcende suas características separadas. To-
de transições familiares fazem o terapeuta pen- davia, mesmo como membros de sistemas fa-
sar primeiro sobre o papel da família, a tera- miliares, não deixamos de ser indivíduos, com
pia individual pode ser especialmente útil quan- corações, mentes e desejos próprios. Embora
do as pessoas identificam algo em si mesmas seja possível compreender uma pessoa sem le-
que estão tentando em vão mudar, enquanto var em conta seu contexto social, especialmente
seu ambiente social parece estável. Assim, se a família, é enganador limitar o foco à superfí-
uma mulher se deprime durante o primeiro ano cie das interações – ao comportamento social
da faculdade, o terapeuta poderia se perguntar separado da experiência interna.
se sua tristeza está relacionada a sair de casa e Trabalhar com o sistema completo signi-
deixar os pais sozinhos um com o outro, mas se fica considerar não apenas todos os membros
a mesma mulher se deprime aos trinta e poucos da família, mas também as dimensões pessoais
anos, durante um longo período de estabilidade da sua experiência. Considere um pai que sor-
em sua vida, poderíamos nos perguntar se exis- ri sem querer durante uma discussão sobre o
te algo em sua forma de viver que não a reali- comportamento delinqüente de seu filho. Tal-
za e é responsável por sua infelicidade. Exami- vez o sorriso revele o secreto prazer do pai com
nar sua vida de forma privada – longe de rela- a rebelião do filho, algo que ele teme fazer. Ou
cionamentos perturbados – não significa que tome o caso do marido que se queixa de que a
ela deveria acreditar que é possível se realizar mulher não o deixa fazer nada com os amigos.
isoladamente das outras pessoas da sua vida. A mulher, na verdade, pode restringi-lo, mas o
A idéia da pessoa como uma entidade se- fato de ele ceder sem lutar sugere que talvez
parada, com a família agindo sobre ela, é con- tenha conflitos em relação a se divertir. Será
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que negociar com a mulher vai resolver sua mente sugerimos que, ao ler sobre eles, você
ansiedade interna em relação a fazer coisas considere a possibilidade de apresentarem,
sozinho? Provavelmente não. Se ele resolver como todos os novos desenvolvimentos, pon-
suas próprias restrições internas, será que a tos positivos e negativos.
mulher começará subitamente a incentivá-lo a
sair e se divertir? Não é provável. Esses impas-
ses, como a maioria dos problemas humanos, PENSANDO EM LINHAS, PENSANDO EM CÍRCULOS
existem na psicologia dos indivíduos e são en-
cenados em suas interações. O ponto é o se- A doença mental tem sido explicada, tra-
guinte: para oferecer uma ajuda psicológica dicionalmente, em termos lineares, quer mé-
efetiva e duradoura, o terapeuta precisa com- dicos, quer psicanalíticos. Ambos os paradig-
preender e motivar o indivíduo e influenciar mas tratam o sofrimento emocional como um
suas interações. sintoma de disfunção interna com causas his-
tóricas. O modelo médico supõe que agrupar
sintomas em síndromes levará a soluções bio-
O PODER DA TERAPIA FAMILIAR lógicas para problemas psicológicos. Nas ex-
plicações psicanalíticas, é dito que os sintomas
A terapia familiar nasceu na década de surgem de conflitos que têm origem no passa-
1950, cresceu nos anos de 1960 e ficou adulta do do paciente. Em ambos os modelos, o trata-
na década de 1970. A onda inicial de entusias- mento focaliza o indivíduo.
mo por tratar a família como uma unidade foi As explicações lineares assumem a forma
seguida por uma crescente diversificação de es- de A causa B. Este tipo de pensamento funcio-
colas, todas competindo pelo monopólio da na bem em algumas situações. Se você está
verdade e pelo mercado de serviços. dirigindo sozinho e seu carro pára subitamen-
Algum dia, talvez vejamos os anos de te, vá em frente e procure uma explicação sim-
1975 a 1985 como o período dourado na tera- ples. Talvez você tenha ficado sem gasolina.
pia familiar. Esses anos testemunharam o ple- Se for o caso, a solução é simples. Os proble-
no desabrochar das mais imaginativas e vitais mas humanos, normalmente, são um pouco
abordagens de tratamento. Foi uma época de mais complicados.
entusiasmo e confiança. Os terapeutas familia- Quando as coisas dão errado nos relacio-
res podem ter tido suas diferenças em relação namentos, a maioria das pessoas dá o crédito,
à técnica, mas compartilhavam um senso de generosamente, ao outro. Uma vez que olha-
otimismo e propósito comum. Desde então, mos para o mundo do interior da nossa própria
algumas turbulências sacudiram o campo, atin- pele, vemos mais claramente a contribuição das
gindo esse zelo e essa confiança excessiva. Os outras pessoas para os nossos problemas mú-
modelos pioneiros foram desafiados (tanto em tuos. É muito natural pôr a culpa nos outros. A
termos clínicos quanto socioculturais), e suas ilusão da influência unilateral tenta também os
fronteiras ficaram menos nítidas: atualmente, terapeutas, em especial quando ouvem apenas
menos terapeutas de família identificam-se um lado da história. No entanto, quando com-
exclusivamente com uma escola específica. Até preendem que a reciprocidade é o princípio que
a distinção entre terapeutas individuais e de governa o relacionamento, os terapeutas podem
família é menos definida, na medida em que ajudar as pessoas a ir além do pensar apenas
mais e mais terapeutas realizam ambas as for- em termos de vilões e vítimas. Suponha, por
mas de tratamento. exemplo, que um pai se queixa do comporta-
As tendências dominantes da década pas- mento de seu filho adolescente.
sada foram o construcionismo social (a idéia
de que a nossa experiência é uma função da Pai: É o meu filho. Ele é grosseiro
nossa maneira de pensar sobre ela), a terapia e desafiador.
narrativa, as abordagens integrativas e uma Terapeuta: Quem o ensinou a ser assim?
crescente preocupação com questões sociais e
políticas. Os capítulos seguintes examinam es- Em vez de aceitar a perspectiva do pai de
tes e outros desenvolvimentos. Aqui, simples- que ele é a vítima da vilania do filho, a per-
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gunta provocativa do terapeuta o convida a Quando Shirley criticou Bob por se quei-
procurar padrões de influência mútua. Não se xar, ele tentou recuar, mas o terapeuta disse:
trata de transferir a culpa de uma pessoa para “Não, continue. Você ainda é um sapo”. Bob
outra, e sim de se afastar totalmente da culpa. tentou transferir a responsabilidade de volta
Enquanto enxergar o problema como algo que para Shirley. “Ela não precisa me beijar primei-
o filho faz, o pai terá pouca escolha além de ro?” “Não”, disse o terapeuta. “Na vida real,
esperar que o rapaz mude. (Esperar que as ou- isso vem depois. Você precisa merecer.”
tras pessoas mudem é como planejar o futuro
em torno de ganhar na loteria.) Aprender a 
pensar em círculos e não em linhas capacita o Na abertura de Anna Karenina, Tolstói
pai a examinar a metade da equação sobre a escreveu: “Todas as famílias felizes se parecem;
qual ele tem controle. cada família infeliz é infeliz à sua maneira”.
O poder da terapia familiar deriva-se de Cada família infeliz pode ser infeliz à sua ma-
juntar pais e filhos para transformar suas inte- neira, mas todas elas tropeçam nos mesmos
rações. Em vez de isolar os indivíduos das ori- obstáculos conhecidos da vida familiar. Esses
gens emocionais de seus conflitos, os proble- obstáculos não são nenhum segredo – apren-
mas são tratados na sua fonte. O que mantém der a viver junto, lidar com parentes difíceis,
as pessoas empacadas é a sua grande dificul- correr atrás das crianças, enfrentar a adoles-
dade de enxergar a própria participação nos cência, e assim por diante. Todavia, o que nem
problemas que as atormentam. Com os olhos todo o mundo percebe é que, uma vez compre-
fixos firmemente no que os outros recalcitran- endidas, um número relativamente pequeno
tes estão fazendo, é difícil para a maioria das de dinâmicas sistêmicas ilumina esses obstá-
pessoas enxergar os padrões que as unem. A culos e permite que as famílias enfrentem bem
tarefa do terapeuta familiar é acordá-las para os dilemas previsíveis da vida. Como todos os
isso. Quando um marido queixa-se de que a mu- curadores, os terapeutas familiares às vezes li-
lher é ranzinza, e o terapeuta pergunta como dam com casos bizarros e desconcertantes, mas
ele contribui para isso, está desafiando o mari- grande parte de seu trabalho tem a ver com
do a enxergar o ele-e-ela hifenizado de suas seres humanos comuns, aprendendo as lições
interações. difíceis da vida. Suas histórias, e as histórias
 dos homens e das mulheres da terapia familiar
que decidiram ajudá-los, são a inspiração para
Quando Bob e Shirley vieram em busca este livro.
de ajuda para seus problemas conjugais, a quei-
xa dela era que ele jamais compartilhava seus
sentimentos; a dele, de que ela sempre o criti- LEITURAS RECOMENDADAS
cava. Essa é uma troca clássica de queixas que
mantém os casais empacados, na medida em Nichols, M. P. 1987. The self in the system. New York:
que não conseguem enxergar o padrão recí- Brunner/Mazel.
proco no qual cada parceiro provoca no outro Nichols, M. P. 1999. Inside family therapy. Boston:
exatamente o comportamento que não supor- Allyn & Bacon.
ta. Então o terapeuta disse a Bob: “Se você fos-
se um sapo, como você seria se a Shirley o trans-
formasse em um príncipe?” Quando Bob re- REFERÊNCIAS
trucou que ele não conversava com ela por ela
ser tão crítica, pareceu para o casal que eles Minuchin, S. 1974. Families and family theraphy.
estavam recomeçando a mesma velha discus- Cambridge, MA: Harvard University Press.
são, mas o terapeuta viu isso como o início da Selvini Palazzoli, M., Boscolo, L., Cecchin, G., e Pra-
mudança – Bob começando a falar. Uma ma- ta, G. 1978. Paradox and counterparadox. New York:
neira de criar abertura para a mudança em fa- Jason Aronson.
mílias rígidas é apoiar a pessoa acusada e aju- Watzlawick, P., Beavin, J., e Jackson, D. 1967. Prag-
dar a trazê-la de volta para a rixa. matics of human communication. New York: Norton.

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