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PARTE 1
O contexto da terapia familiar
1
Os fundamentos da terapia familiar
sua vida. Falava sobre não ter namorado – de Roberts estavam vermelhos de chorar. Holly
fato, ela raramente saía com alguém. Ela nun- lançou-lhe um olhar carrancudo e ameaçador
ca falava muito sobre sua família. Para dizer a e virou o rosto, os lábios cerrados e comprimi-
verdade, eu não estava muito interessado. Na dos. O Sr. Morgan voltou-se para mim: “Briga-
época, eu achava que o lar era o lugar que você mos durante todo o fim de semana. Holly me
tinha de deixar para conseguir crescer. insultava, e, quando eu tentava responder, Lena
Holly era vulnerável e precisava de alguém ficava do lado dela. É assim que tem sido des-
em quem se apoiar, mas algo a continha, como de o primeiro dia deste casamento”.
se ela não se sentisse segura, não confiasse muito A história relatada foi uma daquelas his-
em mim. Era frustrante. Eu queria ajudá-la. tórias tristes de ciúme e ressentimento que trans-
Um mês se passou e a depressão de Holly formam o amor comum em sentimentos amar-
piorou. Comecei a atendê-la três vezes por se- gos, feridos, que, com excessiva freqüência, se-
mana, mas não estávamos chegando a lugar param famílias. Lena Roberts tinha 34 anos
nenhum. Em uma tarde de sexta-feira, Holly quando conheceu Tom Morgan. Ele era um ho-
estava se sentindo tão desesperançada que mem robusto de 56 anos. A segunda diferença
achei que ela não deveria voltar sozinha para óbvia entre eles era o dinheiro. Ele era um cor-
o dormitório da faculdade. Então lhe pedi para retor bem-sucedido que se aposentara para cui-
deitar no divã do consultório e, com sua per- dar de uma fazenda de cavalos. Ela trabalhava
missão, liguei para os pais. como garçonete para sustentar a si mesma e à
A Sra. Roberts atendeu o telefone. Eu lhe filha. Era o segundo casamento de ambos.
disse que achava que ela e o marido deveriam Lena esperava que Tom fosse a figura pa-
vir a Rochester e encontrar-se comigo e com terna ausente na vida de Holly. Infelizmente,
Holly para discutir a possibilidade de Holly con- Lena não conseguiu aceitar todas as regras que
seguir uma licença de saúde e ir para casa. In- Tom se sentia convidado a estabelecer. Assim,
seguro na época quanto à minha autoridade, ele se tornou o padrasto malvado. Tom come-
eu me preparei para uma controvérsia. A Sra. teu o erro de tentar assumir o controle, e, quan-
Roberts me surpreendeu concordando em vir do começaram as brigas previsíveis, Lena to-
imediatamente. mou o partido da filha. Havia lágrimas e dis-
A primeira coisa que me chamou a atenção putas aos berros à meia-noite. Duas vezes,
em relação aos pais de Holly foi a disparidade Holly fugiu para a casa de uma amiga por al-
de suas idades. Lena Roberts parecia uma ver- guns dias. Esse triângulo quase arruinou a re-
são um pouco mais velha de Holly – ela não lação de Lena e Tom, mas as coisas se acalma-
podia ter muito mais de 35 anos. O marido ram quando Holly partiu para a universidade.
parecia ter 60. Fiquei sabendo que ele era o Holly esperava sair de casa e não olhar
padrasto de Holly, não o pai. Eles tinham casa- para trás. Faria novos amigos. Estudaria muito
do quando Holly estava com 16 anos. e escolheria uma carreira. Jamais dependeria
Pensando no que aconteceu na época, não de um homem para sustentá-la. Infelizmente,
me lembro de muita coisa ser dita naquele pri- Holly saiu de casa com assuntos não-resolvidos.
meiro encontro. Ambos os pais estavam muito Ela odiava Tom por ele implicar com ela e pela
preocupados com Holly. “Faremos o que você maneira como tratava sua mãe. Tom sempre
achar melhor”, disse a Sra. Roberts. O Sr. Morgan exigia saber aonde a mãe ia, com quem sairia
(o padrasto) disse que poderiam conseguir um e quando estaria de volta. Se a mãe se atrasas-
bom psiquiatra “para ajudar Holly nessa crise”, se, mesmo que apenas alguns minutos, havia
mas Holly disse que não queria ir para casa, e uma cena. Por que a mãe agüentava aquilo?
afirmou isto com muito mais energia do que eu Culpar Tom era simples e satisfatório.
escutara dela nos últimos tempos. Era um sába- Além disso, outra série de sentimentos, mais
do. Sugeri que não havia necessidade de uma difíceis de enfrentar, estava corroendo Holly.
decisão apressada, então combinamos nos en- Ela odiava a mãe por ter casado com Tom e
contrar novamente na segunda-feira. por deixar que ele fosse tão mesquinho com
Quando Holly e seus pais sentaram em ela. O que sua mãe vira nele, para começar?
meu consultório na segunda-feira, estava ób- Será que ela se vendera por uma bela casa e
vio que algo havia acontecido. Os olhos da Sra. um carro do último modelo? Holly não tinha
TERAPIA FAMILIAR 23
as respostas para essas perguntas, não ousava familiar não é apenas um novo conjunto de
sequer ter plena consciência delas. Lamenta- técnicas; é uma abordagem inteiramente nova
velmente, a repressão não funciona assim: tran- ao entendimento do comportamento humano
camos alguma coisa em um armário e esque- – que é em essência moldado por seu contexto
cemos dela. É necessária muita energia para social.
manter à distância emoções indesejadas.
Holly encontrava desculpas para não ir
muito em casa durante a faculdade. Não pare- O MITO DO HERÓI
cia mais a sua casa. Ela mergulhou nos estu-
dos. Todavia, a raiva e a amargura a roíam por A nossa cultura celebra a singularidade
dentro até que, em seu último ano da universi- do indivíduo e a busca de um self autônomo. A
dade, deparando-se com um futuro incerto, história de Holly poderia ser contada como um
sabendo apenas que não poderia voltar para drama do tornar-se adulto: um jovem luta para
casa, entregou-se à desesperança. Não é de libertar-se da infância e da estreiteza de espí-
surpreender que estivesse deprimida. rito, para assumir a idade adulta, a promessa e
Achei toda a história muito triste. Sem o futuro. Se falhar, é tentado a olhar para den-
conhecer a dinâmica familiar e nunca tendo tro do jovem adulto, o herói fracassado.
vivido em uma família com um segundo casa- Embora o ilimitado individualismo do “he-
mento, eu me perguntei por que eles não po- rói” possa ser incentivado mais para os homens
diam simplesmente tentar se dar bem. Eles sen- do que para as mulheres, como um ideal cultu-
tiam tão pouca simpatia uns pelos outros. Por ral ele lança sua sombra sobre todos nós. Mes-
que Holly não conseguia aceitar o direito da mãe mo que Holly se importe com relacionamentos
de encontrar o amor uma segunda vez? Por que tanto quanto com autonomia, ela talvez seja
Tom não conseguia respeitar a prioridade do julgada pela imagem dominante da realização.
relacionamento da esposa com a filha? Por que Fomos criados com o mito do herói: o Vin-
Lena não conseguia escutar a raiva adolescen- gador Solitário, o Robin Hood, a Mulher Mara-
te da filha sem ficar tão defensiva? vilha. Quando crescemos, buscamos heróis na
A sessão com Holly e seus pais foi a mi- vida real: Eleanor Roosevelt, Martin Luther King
nha primeira lição de terapia familiar. Os mem- Jr., Nelson Mandela. Esses homens e essas mu-
bros da família em terapia não falam sobre lheres representam alguma coisa. Se ao menos
experiências reais, e sim sobre memórias re- pudéssemos ser um pouco como essas pessoas
construídas que se assemelham às experiências maiores-que-a-vida, que parecem se erguer aci-
originais apenas de certa maneira. As lembran- ma de suas circunstâncias...
ças de Holly eram muito pouco parecidas com Só mais tarde percebemos que as “circuns-
as lembranças de sua mãe e bem diferentes das tâncias” acima das quais queremos nos erguer
lembranças do padrasto. Nas lacunas entre as são parte da condição humana – nossa inesca-
suas verdades, havia pouco espaço para a ra- pável conexão com nossas famílias. A imagem
zão e nenhum desejo de buscá-la. romântica do herói baseia-se na ilusão de que
Embora a sessão não tivesse sido muito podemos atingir a autêntica individualidade se
produtiva, certamente colocou a infelicidade nos tornarmos indivíduos autônomos. Fazemos
de Holly em perspectiva. Eu já não pensava muitas coisas sozinhos, inclusive alguns de nos-
nela como uma jovem trágica, sozinha no mun- sos atos mais heróicos, mas somos definidos e
do. Ela era isso, evidentemente, mas também sustentados por uma rede de relacionamentos
uma filha dividida entre fugir de um lar do qual humanos. A nossa necessidade de idolatrar
não se sentia mais parte e o medo de deixar a heróis é, em parte, uma necessidade de nos er-
mãe sozinha com um homem em quem ela não guermos acima da pequenez e da dúvida em
confiava. Acho que foi aí que me tornei um relação a nós mesmos, mas talvez igualmente
terapeuta de família. um produto de imaginarmos uma vida livre
Dizer que eu não sabia muito sobre desses incômodos relacionamentos que, por al-
famílias e menos ainda sobre técnicas para guma razão, nunca são como gostaríamos.
ajudá-las a pensar coletivamente seria uma ex- Quando pensamos sobre famílias, geral-
posição muito atenuada dos fatos. A terapia mente é em termos negativos – como forças de
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dependência que nos aprisionam ou como ele- rio, um refúgio de um mundo perturbado e
mentos destrutivos na vida de nossos pacien- perturbador.
tes. O que chama a nossa atenção nas famílias Debatendo-se com o amor e com o traba-
são as diferenças e a discórdia. A harmonia da lho, incapazes de encontrar consolo e alívio em
vida familiar – lealdade, tolerância, ajuda e algum lugar, os adultos buscavam terapia para
apoio mútuos – muitas vezes deixa de ser per- encontrar satisfação e significado. Os pais,
cebida, sendo parte daquele pano de fundo da preocupados com o mau comportamento, com
vida que tomamos como algo natural. Se qui- a timidez ou com falta de realização dos fi-
sermos ser heróis, então precisamos ter vilões. lhos, os enviavam para que recebessem orien-
Hoje em dia, fala-se muito sobre “famílias tação e direção. De muitas maneiras, a psico-
disfuncionais”. Lamentavelmente, isso se terapia deslocava o papel da família na solu-
centra muito nos golpes infligidos pelos pais. ção dos problemas da vida cotidiana.
Sofremos por causa do que eles fizeram: o al- É tentador olhar para trás, para os dias
coolismo da mãe, as expectativas irracionais que antecederam a terapia familiar, e ver aque-
do pai – essas são as causas da nossa infelici- les que insistiam em segregar os pacientes de
dade. Talvez isso seja um avanço em relação a suas famílias como expoentes ingênuos de uma
chafurdarmos na culpa e na vergonha, mas está visão fossilizada dos transtornos mentais, de
muito longe de um entendimento do que real- acordo com a qual as doenças psiquiátricas es-
mente acontece nas famílias. tavam firmemente inseridas na cabeça das pes-
Uma razão para pôr a culpa dos sofrimen- soas. Considerando que os terapeutas só co-
tos familiares nas falhas pessoais dos pais é a meçaram a tratar a família inteira por volta de
dificuldade de uma pessoa comum enxergar, 1950, é tentador perguntar: “Por que eles le-
através das personalidades individuais, os pa- varam tanto tempo para fazer isso?” De fato,
drões estruturais que as tornam uma família – havia boas razões para a terapia ser conduzida
um sistema de vidas interligadas governado por de forma privada.
regras estritas, mas não-verbalizadas. As duas abordagens de psicoterapia mais
As pessoas sentem-se controladas e desam- influentes no século XX, a psicanálise de Freud
paradas não porque são vítimas das loucuras e e a terapia centrada no cliente de Rogers, ba-
das trapaças parentais, mas porque não compre- seavam-se na suposição de que os problemas
endem as forças que agem em maridos e mulhe- psicológicos surgiam de interações não-sadias
res, pais e filhos juntos. Assoladas pela ansieda- com os outros e que a melhor maneira de
de e depressão ou meramente perturbadas e minorá-los era um relacionamento privado
inseguras, algumas pessoas recorrem à psicote- entre terapeuta e paciente.
rapia em busca de ajuda e de consolo. No pro- As descobertas de Freud culpavam a famí-
cesso, afastam-se dos irritantes que as impeli- lia, primeiro como um espaço criador de sedu-
ram à terapia. Entre esses se destacam os rela- ção infantil e depois como o agente de repres-
cionamentos infelizes – com amigos, amantes e são cultural. Se as pessoas cresciam um pouco
a família. Nossos transtornos são sofrimentos neuróticas – com medo de seus instintos natu-
privados. Quando recuamos para a segurança rais –, quem deveriam culpar a não ser os pais?
de um relacionamento sintético, a última coisa Dado que os conflitos neuróticos seriam gera-
que queremos é levar junto a nossa família. Será dos na família, parecia muito natural supor que
que deve nos surpreender, então, que, quando a melhor maneira de desfazer a influência da
Freud aventurou-se a explorar as forças som- família era isolar os parentes do tratamento,
brias da mente, ele tenha deixado a família impedir que sua influência contaminadora che-
trancada do lado de fora do consultório? gasse à sala de operações psicanalíticas.
Freud descobriu que, quanto menos re-
velava sobre si mesmo, mais seus pacientes rea-
SANTUÁRIO PSICOTERAPÊUTICO giam a ele como se fosse uma figura significa-
tiva de sua família. A princípio, essas reações
A psicoterapia, outrora, era um empreen- de transferência pareciam um obstáculo, mas
dimento privado. O consultório era um lugar Freud logo percebeu que elas forneciam um
de cura, sim, mas era igualmente um santuá- vislumbre inestimável do passado. A partir de
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nalizam isso. Engolimos a nossa raiva, abafa-
mos a nossa exuberância e enterramos a nossa
vida sob uma montanha de expectativas.
A terapia desenvolvida por Rogers tinha
por objetivo ajudar os pacientes a descobrirem
seus reais sentimentos. Sua imagem do tera-
Freud excluiu a família da peuta era a de uma parteira – passiva, mas
apoiadora. O terapeuta rogeriano não fazia
psicanálise a fim de ajudar os
pacientes a se sentirem seguros nada pelo paciente, mas oferecia apoio para
para explorar o alcance total ajudá-lo a descobrir o que precisava ser feito,
de seus pensamentos e principalmente ao dar a ele uma consideração
sentimentos. positiva incondicional. O terapeuta ouvia com
simpatia, era compreensivo, cordial e respei-
toso. Na presença desse ouvinte acolhedor, o
paciente gradualmente entrava em contato
então, analisar a transferência se tornou a pe- com seus sentimentos e desejos interiores.
dra fundamental do tratamento psicanalítico. Como o psicanalista, o terapeuta centrado
Isso significava que, como o analista estava no cliente mantinha uma privacidade absolu-
interessado nas memórias e fantasias do pa- ta no relacionamento terapêutico, para evitar
ciente, a presença da família só obscureceria a qualquer possibilidade de que os sentimentos
verdade subjetiva do passado. Freud não esta- do paciente fossem subvertidos pela necessi-
va interessado na família viva, mas sim na fa- dade de aprovação. Só uma pessoa desconhe-
mília das lembranças. cida e objetiva seria capaz de oferecer a acei-
Ao conduzir o tratamento privadamente, tação incondicional para ajudar o paciente a
Freud salvaguardava a confiança dos pacien- redescobrir seu self real. É por isso que os mem-
tes na santidade do relacionamento terapêutico bros da família não tinham lugar no trabalho
e, assim, maximizava a probabilidade de repe- da terapia centrada no cliente.
tirem, em relação ao analista, os entendimen-
tos e desentendimentos da infância.
TERAPIA FAMILIAR VERSUS TERAPIA INDIVIDUAL
Como podemos ver, havia e há razões
Carl Rogers também acreditava que os válidas para realizar a psicoterapia em um re-
problemas psicológicos originavam-se de inte- lacionamento privado e confidencial. No en-
rações iniciais destrutivas. Cada um de nós, di- tanto, embora haja sólidas alegações em favor
zia Rogers, nasce com uma tendência inata para da psicoterapia individual, podemos fazer uma
a auto-realização. Se deixados por nossa pró- defesa igualmente sólida da terapia familiar.
pria conta, tendemos a seguir os nossos me- Tanto a psicoterapia individual quanto a
lhores interesses. Uma vez que somos curiosos terapia familiar oferecem uma abordagem de
e inteligentes, exploramos e aprendemos; como tratamento e uma maneira de compreender o
temos um corpo forte, brincamos e nos exerci- comportamento humano. Como abordagens de
tamos; como estar com os outros nos traz ale- tratamento, ambas possuem virtudes. A tera-
gria, somos sociáveis, amorosos e afetuosos. pia individual pode fornecer o foco concentra-
Infelizmente, disse Rogers, o nosso ins- do para ajudar a pessoa a enfrentar seus me-
tinto para a realização é subvertido por nossa dos e aprender a se tornar, mais integralmen-
ânsia de aprovação. Aprendemos a fazer o que te, o que ela é. Os terapeutas individuais sem-
achamos que os outros querem, mesmo que pre reconheceram a importância da vida fami-
isso não seja o melhor para nós. liar na formação da personalidade, mas supu-
Gradualmente, esse conflito entre auto- nham que essas influências eram internalizadas
realização e necessidade de aprovação leva à e que a dinâmica intrapsíquica tornava-se a for-
negação e à distorção daquilo que nos impele ça dominante que controlava o comportamen-
interiormente – e até dos sentimentos que si- to. Portanto, o tratamento podia e devia ser
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dirigido à pessoa e à sua constituição pessoal. sistente com a maneira pela qual experien-
Os terapeutas familiares, por outro lado, acre- ciamos a nós mesmos. Reconhecemos a influên-
ditavam que as forças dominantes na nossa cia das pessoas íntimas – especialmente como
vida estão localizadas externamente, na famí- obrigações e limitações –, mas é difícil enxer-
lia. A terapia baseada nessa estrutura tem por gar que estamos inseridos em uma rede de re-
objetivo mudar a organização da família. Quan- lacionamentos, que somos parte de algo maior
do a organização desta é transformada, a vida do que nós mesmos.
de cada um de seus membros também é corres-
pondentemente alterada.
Este último ponto – mudar a família muda PSICOLOGIA E CONTEXTO SOCIAL
a vida de cada um de seus membros – é impor-
tante o suficiente para ser examinado com A terapia familiar floresceu não só devi-
maior cuidado. A terapia familiar não busca do à sua efetividade clínica, mas também por-
apenas mudar o paciente no contexto indivi- que redescobrimos a interligação que caracte-
dual. A terapia familiar provoca mudanças em riza a nossa comunidade humana. Em geral, a
toda a família; portanto, a melhora pode ser questão da terapia individual versus familiar é
duradoura, porque cada membro da família é colocada como uma questão técnica: qual abor-
modificado e continua provocando mudanças dagem funciona melhor em um determinado
sincrônicas nos outros. problema? A escolha também reflete um en-
Quase todas as dificuldades humanas tendimento filosófico da natureza humana.
podem ser tratadas com terapia individual ou Embora a psicoterapia possa ter sucesso ao fo-
com terapia familiar, mas certos problemas são calizar ou a psicologia do indivíduo ou a orga-
especialmente suscetíveis a uma abordagem nização da família, ambas as perspectivas – psi-
familiar: problemas com os filhos (que preci- cologia e contexto social – são indispensáveis
sam, independentemente do que acontece na para um entendimento completo das pessoas
terapia, voltar para a casa dos pais), queixas a e de seus problemas.
respeito do casamento ou de outros relaciona- Os terapeutas familiares nos dizem que a
mentos íntimos, hostilidades familiares e sin- família é mais do que uma coleção de indiví-
tomas que se desenvolvem no indivíduo no duos separados: é um sistema, um todo orgâni-
momento de uma importante transição fami- co cujas partes funcionam de uma maneira que
liar. Se os problemas que surgem em função transcende suas características separadas. To-
de transições familiares fazem o terapeuta pen- davia, mesmo como membros de sistemas fa-
sar primeiro sobre o papel da família, a tera- miliares, não deixamos de ser indivíduos, com
pia individual pode ser especialmente útil quan- corações, mentes e desejos próprios. Embora
do as pessoas identificam algo em si mesmas seja possível compreender uma pessoa sem le-
que estão tentando em vão mudar, enquanto var em conta seu contexto social, especialmente
seu ambiente social parece estável. Assim, se a família, é enganador limitar o foco à superfí-
uma mulher se deprime durante o primeiro ano cie das interações – ao comportamento social
da faculdade, o terapeuta poderia se perguntar separado da experiência interna.
se sua tristeza está relacionada a sair de casa e Trabalhar com o sistema completo signi-
deixar os pais sozinhos um com o outro, mas se fica considerar não apenas todos os membros
a mesma mulher se deprime aos trinta e poucos da família, mas também as dimensões pessoais
anos, durante um longo período de estabilidade da sua experiência. Considere um pai que sor-
em sua vida, poderíamos nos perguntar se exis- ri sem querer durante uma discussão sobre o
te algo em sua forma de viver que não a reali- comportamento delinqüente de seu filho. Tal-
za e é responsável por sua infelicidade. Exami- vez o sorriso revele o secreto prazer do pai com
nar sua vida de forma privada – longe de rela- a rebelião do filho, algo que ele teme fazer. Ou
cionamentos perturbados – não significa que tome o caso do marido que se queixa de que a
ela deveria acreditar que é possível se realizar mulher não o deixa fazer nada com os amigos.
isoladamente das outras pessoas da sua vida. A mulher, na verdade, pode restringi-lo, mas o
A idéia da pessoa como uma entidade se- fato de ele ceder sem lutar sugere que talvez
parada, com a família agindo sobre ela, é con- tenha conflitos em relação a se divertir. Será
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que negociar com a mulher vai resolver sua mente sugerimos que, ao ler sobre eles, você
ansiedade interna em relação a fazer coisas considere a possibilidade de apresentarem,
sozinho? Provavelmente não. Se ele resolver como todos os novos desenvolvimentos, pon-
suas próprias restrições internas, será que a tos positivos e negativos.
mulher começará subitamente a incentivá-lo a
sair e se divertir? Não é provável. Esses impas-
ses, como a maioria dos problemas humanos, PENSANDO EM LINHAS, PENSANDO EM CÍRCULOS
existem na psicologia dos indivíduos e são en-
cenados em suas interações. O ponto é o se- A doença mental tem sido explicada, tra-
guinte: para oferecer uma ajuda psicológica dicionalmente, em termos lineares, quer mé-
efetiva e duradoura, o terapeuta precisa com- dicos, quer psicanalíticos. Ambos os paradig-
preender e motivar o indivíduo e influenciar mas tratam o sofrimento emocional como um
suas interações. sintoma de disfunção interna com causas his-
tóricas. O modelo médico supõe que agrupar
sintomas em síndromes levará a soluções bio-
O PODER DA TERAPIA FAMILIAR lógicas para problemas psicológicos. Nas ex-
plicações psicanalíticas, é dito que os sintomas
A terapia familiar nasceu na década de surgem de conflitos que têm origem no passa-
1950, cresceu nos anos de 1960 e ficou adulta do do paciente. Em ambos os modelos, o trata-
na década de 1970. A onda inicial de entusias- mento focaliza o indivíduo.
mo por tratar a família como uma unidade foi As explicações lineares assumem a forma
seguida por uma crescente diversificação de es- de A causa B. Este tipo de pensamento funcio-
colas, todas competindo pelo monopólio da na bem em algumas situações. Se você está
verdade e pelo mercado de serviços. dirigindo sozinho e seu carro pára subitamen-
Algum dia, talvez vejamos os anos de te, vá em frente e procure uma explicação sim-
1975 a 1985 como o período dourado na tera- ples. Talvez você tenha ficado sem gasolina.
pia familiar. Esses anos testemunharam o ple- Se for o caso, a solução é simples. Os proble-
no desabrochar das mais imaginativas e vitais mas humanos, normalmente, são um pouco
abordagens de tratamento. Foi uma época de mais complicados.
entusiasmo e confiança. Os terapeutas familia- Quando as coisas dão errado nos relacio-
res podem ter tido suas diferenças em relação namentos, a maioria das pessoas dá o crédito,
à técnica, mas compartilhavam um senso de generosamente, ao outro. Uma vez que olha-
otimismo e propósito comum. Desde então, mos para o mundo do interior da nossa própria
algumas turbulências sacudiram o campo, atin- pele, vemos mais claramente a contribuição das
gindo esse zelo e essa confiança excessiva. Os outras pessoas para os nossos problemas mú-
modelos pioneiros foram desafiados (tanto em tuos. É muito natural pôr a culpa nos outros. A
termos clínicos quanto socioculturais), e suas ilusão da influência unilateral tenta também os
fronteiras ficaram menos nítidas: atualmente, terapeutas, em especial quando ouvem apenas
menos terapeutas de família identificam-se um lado da história. No entanto, quando com-
exclusivamente com uma escola específica. Até preendem que a reciprocidade é o princípio que
a distinção entre terapeutas individuais e de governa o relacionamento, os terapeutas podem
família é menos definida, na medida em que ajudar as pessoas a ir além do pensar apenas
mais e mais terapeutas realizam ambas as for- em termos de vilões e vítimas. Suponha, por
mas de tratamento. exemplo, que um pai se queixa do comporta-
As tendências dominantes da década pas- mento de seu filho adolescente.
sada foram o construcionismo social (a idéia
de que a nossa experiência é uma função da Pai: É o meu filho. Ele é grosseiro
nossa maneira de pensar sobre ela), a terapia e desafiador.
narrativa, as abordagens integrativas e uma Terapeuta: Quem o ensinou a ser assim?
crescente preocupação com questões sociais e
políticas. Os capítulos seguintes examinam es- Em vez de aceitar a perspectiva do pai de
tes e outros desenvolvimentos. Aqui, simples- que ele é a vítima da vilania do filho, a per-
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gunta provocativa do terapeuta o convida a Quando Shirley criticou Bob por se quei-
procurar padrões de influência mútua. Não se xar, ele tentou recuar, mas o terapeuta disse:
trata de transferir a culpa de uma pessoa para “Não, continue. Você ainda é um sapo”. Bob
outra, e sim de se afastar totalmente da culpa. tentou transferir a responsabilidade de volta
Enquanto enxergar o problema como algo que para Shirley. “Ela não precisa me beijar primei-
o filho faz, o pai terá pouca escolha além de ro?” “Não”, disse o terapeuta. “Na vida real,
esperar que o rapaz mude. (Esperar que as ou- isso vem depois. Você precisa merecer.”
tras pessoas mudem é como planejar o futuro
em torno de ganhar na loteria.) Aprender a
pensar em círculos e não em linhas capacita o Na abertura de Anna Karenina, Tolstói
pai a examinar a metade da equação sobre a escreveu: “Todas as famílias felizes se parecem;
qual ele tem controle. cada família infeliz é infeliz à sua maneira”.
O poder da terapia familiar deriva-se de Cada família infeliz pode ser infeliz à sua ma-
juntar pais e filhos para transformar suas inte- neira, mas todas elas tropeçam nos mesmos
rações. Em vez de isolar os indivíduos das ori- obstáculos conhecidos da vida familiar. Esses
gens emocionais de seus conflitos, os proble- obstáculos não são nenhum segredo – apren-
mas são tratados na sua fonte. O que mantém der a viver junto, lidar com parentes difíceis,
as pessoas empacadas é a sua grande dificul- correr atrás das crianças, enfrentar a adoles-
dade de enxergar a própria participação nos cência, e assim por diante. Todavia, o que nem
problemas que as atormentam. Com os olhos todo o mundo percebe é que, uma vez compre-
fixos firmemente no que os outros recalcitran- endidas, um número relativamente pequeno
tes estão fazendo, é difícil para a maioria das de dinâmicas sistêmicas ilumina esses obstá-
pessoas enxergar os padrões que as unem. A culos e permite que as famílias enfrentem bem
tarefa do terapeuta familiar é acordá-las para os dilemas previsíveis da vida. Como todos os
isso. Quando um marido queixa-se de que a mu- curadores, os terapeutas familiares às vezes li-
lher é ranzinza, e o terapeuta pergunta como dam com casos bizarros e desconcertantes, mas
ele contribui para isso, está desafiando o mari- grande parte de seu trabalho tem a ver com
do a enxergar o ele-e-ela hifenizado de suas seres humanos comuns, aprendendo as lições
interações. difíceis da vida. Suas histórias, e as histórias
dos homens e das mulheres da terapia familiar
que decidiram ajudá-los, são a inspiração para
Quando Bob e Shirley vieram em busca este livro.
de ajuda para seus problemas conjugais, a quei-
xa dela era que ele jamais compartilhava seus
sentimentos; a dele, de que ela sempre o criti- LEITURAS RECOMENDADAS
cava. Essa é uma troca clássica de queixas que
mantém os casais empacados, na medida em Nichols, M. P. 1987. The self in the system. New York:
que não conseguem enxergar o padrão recí- Brunner/Mazel.
proco no qual cada parceiro provoca no outro Nichols, M. P. 1999. Inside family therapy. Boston:
exatamente o comportamento que não supor- Allyn & Bacon.
ta. Então o terapeuta disse a Bob: “Se você fos-
se um sapo, como você seria se a Shirley o trans-
formasse em um príncipe?” Quando Bob re- REFERÊNCIAS
trucou que ele não conversava com ela por ela
ser tão crítica, pareceu para o casal que eles Minuchin, S. 1974. Families and family theraphy.
estavam recomeçando a mesma velha discus- Cambridge, MA: Harvard University Press.
são, mas o terapeuta viu isso como o início da Selvini Palazzoli, M., Boscolo, L., Cecchin, G., e Pra-
mudança – Bob começando a falar. Uma ma- ta, G. 1978. Paradox and counterparadox. New York:
neira de criar abertura para a mudança em fa- Jason Aronson.
mílias rígidas é apoiar a pessoa acusada e aju- Watzlawick, P., Beavin, J., e Jackson, D. 1967. Prag-
dar a trazê-la de volta para a rixa. matics of human communication. New York: Norton.