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I Seminário Nacional Crítica da

Economia Política e do Direito


Belo Horizonte, 21 a 23 de maio de 2018
Anais do
I Seminário Nacional Crítica da Economia
Política e do Direito
~~~
21 a 23 de Maio de 2018
Faculdade de Direito
Universidade Federal de Minas Gerais
~~~
Organização
Coordenação Geral:
Vitor Sartori, UFMG
Coordenação Executiva:
Bábara Duarte, UFMG
Helena Coelho, UFMG
Lucas Álvares, UFMG
Coordenação Acadêmica:
Alice Nogueira Monnerat, UFJF
Anna Paula Sales, UFJF
Elcemir Paço Cunha, UFJF
Comissão científica:
Deise Ferraz, UFMG
Elcemir Paço Cunha, UFJF
Vitor Sartori, UFMG
~~~
Programa de Pós-Graduação em Administração – UFJF
Programa de Pós-Graduação em Administração – UFMG
Programa de Pós-Graduação em Direito e Inovação – UFJF
Programa de Pós-Graduação em Direito – UFMG
~~~

Realização:

https://tramarx.org/
Sumário Geral

Mesa Redonda...........................................................................................................1

GT 1
Acumulação de capital, inovação tecnológica e desigualdade.................................55

GT 2
Crítica da economia política e crítica do Direito em Marx e no Marxismo............279

GT 3
Trabalho, Crise e Financeirização...........................................................................508
Mesa redonda

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

DINÂMICA AUTOMÁTICA DO CAPITAL E COTIDIANO: uma análise d’O


Capital ao “último” Lukács

Alexandre Arbia
Universidade Federal de Ouro Preto
aarbia@gmail.com

Resumo Como conciliar as diversas passagens em que Marx faz referência ao


desenvolvimento de uma dinâmica automática do capital com o papel ativo do homem
na construção de seu próprio devir? Estariam as proposições de Lukács em contradição
com os desenvolvimentos de O Capital? O presente artigo procura, problematizando
essas questões e suas consequências, demonstrar a perfeita compatibilidade entre as
teorizações sobre a dinâmica automática do capital, a determinação de classe e o agir
cotidiano dos indivíduos, trasladando da posição marxiana aos desdobramentos
categoriais do “último” Lukács.
Palavras-chave: dinâmica automática do capital; classe social; individualidade
moderna; cotidiano.

CAPITAL’S AUTOMATIC DYNAMICS AND DAILY: an analysis from Capital


to the “late” Lukács

Abstract
How to reconcile the Marx’s affirmations refers to the development of an automatic
dynamics of capital with the active role of man in the construction of his own
becoming? Are the Lukács’s propositions in contradiction with the developments of
Capital? The present article seeks to show the perfect compatibility between the
theories about the automatic dynamics of capital, the class determination and the daily
action of the individuals, approaching the Marxian acquisitions to the categorical
unfoldings from the "late" Lukács.
Keywords: Capital’s automatic dynamics; social class; modern individuality; daily.

Para demonstrarmos a compatibilidade entre a autonomização da dinâmica do


capital, como tratado por Marx n’O Capital, e as proposições do último Lukács sobre as
determinações ontológicas do cotidiano, devemos iniciar nosso argumento pela
explicação de como uma relação social1 pode adquirir autonomia. Em outros termos,

1
Retomemos a célebre definição: “o capital não é uma coisa, mas uma determinada relação social de
produção, que pertence a uma determinada formação histórico-social, representa-se numa coisa e confere
a esta um caráter especificamente social. O capital não consiste na soma dos meios de produção materiais
e produzidos. Ele consiste nos meios de produção transformados em capital, meios que, em si, são tão
pouco capital quanto o ouro ou a prata são, em si mesmos, dinheiro. Consiste nos meios de produção
monopolizados por determinada parte da sociedade, os produtos e as condições de atividade da força de
trabalho autonomizados precisamente diante dessa força de trabalho, que se personificam no capital
mediante essa oposição. O capital não se resume aos produtos dos trabalhadores, produtos transformados
em forças autônomas, aos produtores como dominadores e compradores daqueles que os produzem, mas
também se constitui pelas forças sociais e a forma futura […] desse trabalho que eles se contrapõem como
atributos de seu produto. De modo que temos aqui, pois, uma forma social determinada, muito mística à

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como uma ação executada socialmente pelos homens, e que somente por essa execução
pode adquirir existência, pode obter independência a ponto de constrangê-los a adotar
um determinado comportamento? Se nenhum objeto torna-se capital por suas
características imanentes, por suas propriedades físicas, como podemos falar, então, de
autonomia em relação a uma força que se manifesta materialmente através de um
conjunto de unidades corpóreas em mútua relação, sem estar presente em nenhuma
delas isoladamente?
Marx nos dá, já de saída, algumas pistas. O fundamento da questão pode estar
localizado na possibilidade de os homens dirigirem o próprio devir. Vejamos.
Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob
circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e
transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o
cérebro dos vivos (Marx, 1988, p. 7).

Adicionalmente,
na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas,
necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau
determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas
relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se
eleva uma superestrutura jurídica e política à qual correspondem formas sociais determinadas de
consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política
e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o ser dos
homens que determina sua consciência (Marx, 2008, p. 47).
Duas ordens de problemas, ambos inscritas na relação sujeito/objeto, se põem.
Primeiro, em relação à forma e ao alcance da ação dos homens na construção de sua
própria história, voltamo-nos aos problemas da extensão e da qualidade do pôr, do
imperativo de um dever-ser, da escolha entre alternativas concretas, da possibilidade e
da qualidade da liberdade, da potência e da efetividade das ações e do caráter e da
autonomia das objetivações. Segundo, questões de ordem causal reportam à
permeabilidade dos processos e objetos externos a ação dos homens: o grau e a extensão
de sua deformação pela ação humana, a nova composição adquirida após as ações, as
possibilidades concretas de sua modificação, gênese e destruição, assim como sua
dinâmica de funcionamento imanente (o que inclui, também, uma explicitação da
orientação de suas linhas de força em relação a complexos outros, bem como a
influência que estes exercem sobre aqueles), o desenvolvimento de suas leis
constitutivas apesar (e para além) das relações dos próprios homens. Se gênese desse
processo se encontra na interação humana primária, responsável pela produção material
da própria existência – a relação entre o homem e as materialidades puramente naturais
– parece de reducionismo inegável deduzir toda sua complexidade a partir somente
desta forma de relação – sobretudo porque, ela mesma, estabelecido certo grau de
evolução, é moldada pelas relações dos homens entre si (em suma, as ações dos homens
em materialidades naturais são moldadas e condicionadas por meio da materialidade de
suas ações sociais)2.
Todo ser é objetivo3 e todo pôr humano tem, em última instância, um
ineliminável caráter prático – é sempre determinado por necessidades objetivas e visa a

primeira vista, de um dos fatores de um processo social de produção historicamente fabricado” (Marx,
2017, pp. 877-8).
2
Para uma explicitação do ser social como uma totalidade de complexos em interação, cf. Lukács (2013).
3
“Um ser não objetivo é um não ser. Ponha-se um ser que não seja propriamente objeto nem tenha um
objeto. Um tal ser seria, em primeiro lugar, o único ser, não existiria nenhum ser fora dele, ele existiria

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promover alguma alteração real, mesmo que de alcance limitado. Como ser autoposto e
autoconstituído, o homem nada mais é, em última instância, do que o resultado de
processos estabelecidos historicamente por ele próprio; é sua própria gênese e
desenvolvimento e está no cerne dos mais elevados complexos que o circundam: “a raiz,
para o homem, é o próprio homem” (Marx, 2010, p. 151). Como ser natural, o homem é
carente de objetos materiais; como ser genérico, é pela interação com outros homens
que produz e reproduz a materialidade que lhe permite existir:
o modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida depende, antes de tudo, da própria
constituição dos meios de vida já encontrados e que eles têm de reproduzir. Esse modo de
produção não deve ser considerado meramente sob o aspecto de ser a reprodução da existência
física dos indivíduos. Ele é, muito mais, uma forma determinada de sua atividade, uma forma
determinada de exteriorizar a vida, um determinado modo de vida desses indivíduos. Tal como
os indivíduos exteriorizam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, pois, com sua
produção, tanto com o que produzem como também com o modo como produzem. O que os
indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção (Marx; Engels, 2007,
p. 87 – itálicos do original).

Os meios de vida encontrados foram postos por outros homens; as relações


sociais, como modo de exteriorizar a vida, pela ação pretérita de outros homens.
Explicita-se a unidade histórica do gênero, ficando excluída da conformação humana
qualquer natureza abstrata geral, de caráter trans-histórico: o homem está imerso e ativo
em relações sociais dadas, em um mundo que não escolheu, mas no qual põe sobre um
conjunto de cadeias causais; é conformado pelas objetivações postas pelo gênero e, ao
mesmo tempo, as conforma, molda, destrói, reorienta e cria novas formas de
objetivação. O homem faz e se faz nesse processo, põe o mundo e a si mesmo. O objeto
posto retroage sobre seu criador, amplia e/ou restringe sua gama de possibilidades de
ação; o objeto posto confronta o homem, exigindo-lhe repostas, suprimindo e criando
novas carências. Ao objetivar, o homem responde às determinações que afetam sua vida
singular ao mesmo tempo em que suas objetivações tornam-se a herança dos homens
que virão, “oprimindo como um pesadelo o cérebro” dos homens futuros. Aclara-se a
“identificação ontológica da objetividade social – posta e integrada pelo complexo
categorial que reúne sujeito e objeto sobre o denominador comum da atividade sensível”
(Chasin, 2009, p. 95).
Qualquer possibilidade de autonomia, portanto, deve ser vista a partir de dois
aspectos. Primeiro, qualquer ser existente deve, necessariamente, ser um ser objetivo:
um ser que não seja objeto de um outro ser supõe, portanto, que não existe nenhum ser objetivo.
Logo que eu tenha um objeto, esse objeto tem-me por objeto. Mas um ser não objetivo é um ser
não real, não sensível, apenas pensado, i.e., apenas imaginado, um ser da abstração. Ser sensível,
i.e., ser real, é ser objeto do sentido, ser objeto sensível, portanto, ter objetos sensíveis fora de si,
objetos de sua sensibilidade (Marx, 2015, p. 376 – itálicos do original).

Segundo, embora a materialidade social tenha como base a própria cadeia de


causalidades naturais sobre a qual se assenta, não devemos tomá-las nem a partir de
uma correspondência determinativa imediata, nem em absoluto isolamento. Erigir-se
tendo por base as cadeias causais da materialidade natural não significa que a
materialidade social se desenvolva como simples reflexo mimético dos movimentos da
natureza e tampouco como uma entidade plenamente independente, transubstanciada e

solitário e sozinho. Pois, desde que haja objetos fora de mim, desde que eu não esteja só, sou um outro,
uma outra realidade que não o objeto fora de mim. Para este terceiro objeto eu sou, portanto, uma outra
realidade que não ele, i.e., seu objeto” (Marx, 2015, p. 376 – itálicos do original).

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destituída de vínculo. Ao tomarmos a objetividade da materialidade social temos de ter


claro que sua gênese reporta, por incontáveis mediações, à refuncionalização de nexos
causais naturais pela ação humana: em poucas palavras, à atividade sensível. Toda e
qualquer autonomia, portanto, tem como solo a objetividade real dos complexos, que
encontra seu fundamento mais profundo na forma originária da atividade sensível.
O capital, por exemplo. Tomado em si mesmo, é uma simples abstração. Seu
significado é puramente social, ou seja, é no estabelecimento de dadas relações sociais
de produção entre os homens que o capital se manifesta como espírito fugidio, ao
mesmo tempo omnipresente, a mover a produção material. Sua natureza evanescente
adquire objetividade através de formas (primárias4) bem definidas: como capital
monetário (D), capital produtivo (P) e capital-mercadoria (M’).
As formas, em seu isolamento, também nada dizem acerca do capital. Pensemos
na maquinaria. Empregada na produção de um dado objeto, não passa de um conjunto
de fixos e fluidos, causalidades naturais, teleologicamente reorientadas a partir de
determinados padrões rígidos, de modo a funcionar somente desta e não de outra forma.
O que torna a maquinaria uma manifestação do capital é seu desenvolvimento, emprego
e funcionamento dados e estruturados por um conjunto de relações sociais de produção
– o que, por seu turno, lhe confere certa conformação material específica5. Aqui,
portanto, não nos deparamos com uma reorganização teleológica in abstractu de
causalidades naturais, que viabiliza uma produção material abstrata; estamos diante de
uma reorganização teleológica de causalidades naturais que, conforme são confrontadas
teleologicamente de forma permanente, dando origem a formas complexas cada vez
mais elaboradas e independentes, viabiliza a produção material em condições de
produção socialmente dadas e historicamente constituídas – podemos completar, em
condições de produção “determinadas, necessárias, independentes de sua [dos homens]
vontade”, fetichistas e alienadas, na ordem do capital.
As formas pelas quais o capital se objetiva não podem ser assim reduzidas a
mero conjunto de causalidades naturais organizadas ao acaso; tampouco podem ser
deduzidas a partir dos movimentos internos autoconstitutivos dessas causalidades
mesmas: o specifico da objetivação do capital está exatamente nas formas mistas6 pelas
quais se materializa como relação social. O capital se objetiva nessas formas, pois essas
são formas necessárias de sua objetivação. Exatamente porque dessa forma, e não de
outra, servem de repositório objetivo da relação-capital. Toda autonomia, portanto, está
realmente condicionada e é sempre relativa – está condicionada pelas formas materiais
(materialidades naturais e sociais) históricas de sua expressão.

4
“Primárias” pois não estamos esgotando aqui todas as formas contemporâneas de manifestação do
capital. Por certo, elas envolvem todas as formas de irracionalismo, as instituições políticas, jurídicas e
burocráticas do Estado, o complexo militar-industrial e seu desdobramento em mecanismos de
administração, controle e supervisão da vida, etc.
5
“Os instrumentos humanos não são incontroláveis sob o capitalismo por serem instrumentos [...], mas
porque eles são os instrumentos – mediações de segunda ordem específicas, reificadas – do capitalismo.
Enquanto tais, eles não podem funcionar a não ser de forma ‘reificada’; isto é, controlando o homem em
lugar de serem controlados por ele. Não é, portanto, a característica universal de serem instrumentos que
está envolvida diretamente na alienação, mas sua especificidade de serem instrumentos de um certo tipo”
(Mészáros, 2006, p. 227 – itálicos do original).
6
Conjunto de legalidades nas quais “objetividade e subjetividade são resgatadas de suas mútuas
exterioridades, ou seja, uma transpassa ou transmigra para a esfera da outra, de tal modo que interioridade
subjetiva e exterioridade objetiva são enlaçadas e fundidas, plasmando o universo da realidade humano-
societária – decantação de subjetividade objetivada ou, o que é o mesmo, de objetividade subjetivada”
(Chasin, 2009, p. 98 – itálicos do original).

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O capital não pode ser tomado por unidade autônoma etérea, conteúdo
puramente espiritual, dotado de teleologia própria e, por essa razão, capaz de pôr.
Apenas o homem põe teleologicamente. Como relação social, o capital é essencialmente
objetivo7: dotado de materialidade social, encontra formas específicas de manifestação
no conjunto de causalidades postas com as quais os homens estão em interação
permanente – sejam essas causalidades mais estreitamente vinculadas ao sistema
primário de mediações, sejam elas conformadas pelas formas mais elevadas de
causalidades (puramente) sociais.
Enquanto relação social, portanto, o capital é uma objetividade objetivada pelos
homens, que engendra, por meio da construção de seu próprio sistema secundário de
mediações, todo o conjunto de mediações de primeira ordem8, envolvendo, num
processo de totalização totalitária, desde as primeiras ações teleológicas sobre
causalidades naturais até o conjunto de ações humanas sobre complexos outros – as
ações teleológicas dos homens sobre si mesmos (ou o conjunto das praxes). Na
concretude histórica da objetividade do capital temos uma peculiaridade:
a objetivação sob condições em que o trabalho se torna exterior ao homem assume a forma de
um poder alheio que confronta o homem de uma maneira hostil. Esse poder exterior, a
propriedade privada, é o ‘produto, o resultado, a consequência necessária, do trabalho
exteriorizado [alienado], da relação externa do trabalhador com a natureza e consigo mesmo’.
Assim, se o resultado desse tipo de objetivação é a produção de um poder hostil, então o
homem não pode realmente ‘contemplar a si mesmo num mundo criado por ele’, mas,
submetido a um poder exterior e privado do sentido de sua própria atividade, ele inventa um
mundo irreal, submete-se a ele, e com isso restringe ainda mais sua própria liberdade
(Mészáros, 2006, p. 146).

Como resultado dos atos humanos, o capital se constitui em ações que,


autonomizando-se dos indivíduos, tomam a forma de causalidades postas9 sob
condições sociais e históricas específicas – em que o trabalho foi tornado “exterior ao
homem” –, padecendo da mesma sorte das demais objetivações humanas nessa
circunstância: “assume a forma de um poder alheio que confronta o homem de maneira
hostil” (Mészáros, 2006, p. 146).

7
Embora encontre também formas de manifestação subjetiva, dentro da interação sujeito/objeto que
abordamos até aqui.
8
Sobre o conjunto primário de mediações, cf. Mészáros (2002, p. 213). Sobre o conjunto secundário,
Mészáros (2002, p. 180).
9
Neste ponto exsurge uma polêmica de difícil solução neste espaço: uma vez consubstanciadas as
relações sociais entre os homens, uma vez imersos em relações sociais dadas, que individualmente não
controlam, não poderiam estar confrontados, em seu agir teleológico, com cadeias causais postas? Poder-
se-ia abrir aqui tal polêmica a partir de uma interpretação da proposta lukacsiana, especialmente se
considerarmos que “o significado da causalidade posta consiste no fato de que os elos causais, as cadeias
causais etc. são escolhidos, postos em movimento, abandonados ao seu próprio movimento, para
favorecer a realização do fim estabelecido desde o início” (Lukács, 2013, p. 99). Ainda que, no fragmento
anterior, o marxista magiar esteja referindo-se estritamente ao trabalho, voltamos a nos deparar com a
questão quando do trato da ideologia: “embora tenham necessariamente surgido de pores teleológicos,
eles, enquanto processos sociais, não podem possuir qualquer caráter teleológico. O próprio processo
social consiste de cadeias causais, que de fato foram postas em marcha por pores teleológicos, mas que,
uma vez ganhando realidade, podem operar exclusivamente como causalidades” (Lukács, 2013, p. 536).
Estamos abordando até agora a ação teleológica dos homens de forma muito geral, em sua constituição
fundamental e genérica, e não temos condição de abrir, nos limites desta tese, tal polêmica. De resto, o
pôr teleológico cotidiano (logo, concreto) em situações de alienação possui características bastante
peculiares. Trataremos do agir cotidiano dos homens ao final deste item.

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A independência do valor toma uma feição fugidia. Ao mesmo tempo em que se


instaura pelas formas materiais de manifestação do capital, esconde, sob essas mesmas
formas, seu mecanismo de autovalorização, ou seja, seu acréscimo contínuo. Da mesma
forma que, sob a forma de capital monetário (D) – ou sob a forma de capital produtivo
(Mp, condições objetivas de trabalho), por exemplo – , o valor se confronta com a força
de trabalho como uma forma externa, alheia e estranha, como uma objetividade
independente, por outro lado, subsume em si os processos de sua constituição; apaga em
sua materialidade corpórea a diferença existente entre o valor original empregado e o
mais-valor, enquanto resultado do processo de produção do capital. As formas
instauram o capital como objeto externo, estranho e enigmático – e a forma mais geral
de manifestação do valor é, claro, a mercadoria10.
A independência do valor se instaura ao defrontar-se com a força criadora do valor, a força de
trabalho, na operação D – F (compra de força de trabalho), e realiza-se durante o processo de
produção como exploração da força de trabalho; mas não continua a ostentar-se nesse ciclo em
que dinheiro, mercadoria, elementos de produção são apenas formas alternativas do valor-capital
em movimento e em que se confronta a magnitude anterior do valor com a magnitude atual
modificada do capital (Marx, 2006b, p. 120).

Na circulação, o valor, por meio de suas formas necessárias (D e M), confronta-


se consigo mesmo em um processo de metamorfoses recíprocas. Dinamizando essas
metamorfoses estão os homens. A ação de realização global do valor que executam é
“inconsciente”, ou sua consciência adstringe-se aos resultados imediatos da ação
singular: as metamorfoses ocorrem para eles, em última instância, como a forma de
realização dos valores de uso (ainda que essa realização possa ser mediada não por uma,
mas por uma sequência infindável de processos de troca que, intermediários, não visam
a realizar o valor-de-uso, mas somente o valor). Para que possam realizar o valor-de-uso
não há outro meio: o confronto entre valores de troca torna-se condição inescapável,
sem a qual as necessidades não podem ser satisfeitas. No mercado, cada portador de
mercadoria precisa deter a posse (preferencialmente) exclusiva11 do veículo de
satisfação da necessidade alheia e, assim, busca obter maior quantidade possível de
mercadorias em troca da sua.
Em uma sociedade mercantil desenvolvida, as formas envolvidas nas relações de
troca – mercadoria e dinheiro (mercadoria em forma específica) – já se apresentam
tomadas pelo fetichismo: objetivas, figuram como objeto externo, estranho,
independente, sobre o qual repousam os desejos dos homens. Não por outra razão, a
sociabilidade adquire uma forma contingente: os contatos humanos – encontros
inevitáveis, sem os quais se inviabiliza a reprodução individual – aprecem como simples
meio para a obtenção de mercadorias. No quadro da “sociabilidade contingente”, cada
homem só desempenha seu papel social na exata medida em que é portador de
mercadoria permutável. Nessa condição, encontra-se protegido pelas leis e pelo Estado.
Todas as suas determinações concretas singulares, abstraídas, estão, finalmente,

10
Esclarece-se, pois, a constituição última das três formas de manifestação do capital (D, P e M’): a
mercadoria. Não por outra razão, a ordem do capital apresenta a generalização absoluta dessa forma como
generalização absoluta das formas de manifestação do capital. “A mercadoria é misteriosa simplesmente
por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como
características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; finalmente, as relações
entre os produtores nas quais se afirma o caráter social dos seus trabalhos, assumem a forma de relação
social entre os produtos do trabalho” (Marx, 2006, p. 94).
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“Preferencialmente exclusiva”, pois a existência de outros agentes portadores dos mesmos valores de
uso baralha as possibilidades de troca nas melhores condições possíveis.

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reduzidas à simples condição de portadores de mercadoria permutável – o que


pressupõe a condição de sujeito apto para a troca. Legitimado como sujeito abstrato
(proprietário-trocador ou, na definição marxiana de 1843/44, bourgeois), unidade
consciente do mundo burguês, está apto a circular pelo conjunto da “sociabilidade
contingente”, estabelecendo formas variadas de intercâmbio. Está dado o passo decisivo
para que a sociedade apareça como mercado e suas relações como relações mercantis. O
trânsito do valor por meio de suas formas necessárias, realizado pelos homens por
razões práticas e inconscientemente em relação ao seu movimento global, instaura a
reprodução automática do capital como reificação:
o valor torna-se aqui o agente de um processo em que, através do contínuo revezamento das
formas dinheiro e mercadoria, modifica sua própria magnitude como valor excedente, se afasta
de si mesmo como valor primitivo, e se expande a si mesmo. O movimento pelo qual adquire
valor excedente é seu próprio movimento, sua expansão, logo sua expansão automática. Por ser
valor, adquiriu a propriedade oculta de gerar valor. Costuma parir ou pelo menos põe ovos de
ouro12 (Marx, 2006, pp. 184-5).

Mas isso não é tudo. Se, do ponto de vista da circulação, o valor aparece como
mercadorias que se trocam, originando “milagrosamente” valor adicional, na produção a
autonomia se realiza sob a forma de subordinação da força de trabalho.
A constituição de um sistema de máquinas, pelo capital, marginaliza a força de
trabalho no processo de produção – a continuidade de seus movimentos passa a
depender, também de modo crescente e aparentemente tautológico, da continuidade de
seus próprios movimentos.
De acordo com a explanação de Marx, a maquinaria pode funcionar por meio de
um sistema de máquinas que, impulsionado por uma mesma força motriz, sofre ação de
trabalhadores heterogêneos (divididos por gênero, habilidade, força, estatura, destreza
etc.) que o alimentam (lubrificam, reparam etc.) cooperativamente; ou pela forma de um
imenso autômato, cujas partes são constituídas por unidades mecânicas e conscientes,
funcionando de maneira integrada sob o ritmo rígido de uma força motriz unitária que
se autorregula.
Essas duas conceituações não são de modo algum idênticas. Numa, o trabalhador coletivo ou o
organismo de trabalho coletivo aparece como o sujeito que intervém, e o autômato mecânico,
como objeto; na outra, o próprio autômato é o sujeito, e os trabalhadores são apenas órgãos
conscientes, coordenados com órgãos inconscientes e, juntamente com eles, subordinados à força
motriz central. A primeira conceituação aplica-se a qualquer emprego da maquinaria em grande
escala; a segunda caracteriza seu emprego capitalista e, consequentemente, o moderno sistema
fabril (Marx, 2006, p. 479 – itálicos nossos).

O desenvolvimento da produção de tipo capitalista generaliza o emprego da


maquinaria, cuja característica elementar é a elevação da produtividade por seu próprio
movimento, prescindindo, em escala crescente, da ação imediata do trabalho vivo: a
maquinaria empregada pelo capital – ou, em termos mais amplos, o desenvolvimento da
técnica pelo capital – apresenta como tendência generalizante a substituição da ação

12
Em edição mais recente, encontramos o trecho com a seguinte tradução: “o valor se torna, aqui, o
sujeito de um processo em que ele, por debaixo de sua constante variação de forma, aparecendo ora como
dinheiro, ora como mercadoria, altera sua própria grandeza e, como mais-valor, repele [abstösst] a si
mesmo como valor originário, valoriza a si mesmo [sic]. Pois o movimento em que ele adiciona mais-
valor é seu próprio movimento; sua valorização é, portanto, autovalorização. Por ser valor, ele recebeu a
qualidade oculta de adicionar valor. Ele pare filhotes, ou pelo menos põe ovos de ouro” (Marx, 2013, pp.
262-3 – itálicos nossos).

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humana viva, consciente, pelo movimento retroalimentar do próprio capital,


imobilizado como trabalho morto sob a forma de autômatos:
um sistema de máquinas [...] constitui em si mesmo um grande autômato, sempre que é movido
por um primeiro motor que se impulsiona a si mesmo. Mas todo o sistema pode ser impulsionado
pela máquina a vapor, por exemplo, embora certas máquinas-ferramenta precisem do trabalhador
para determinados movimentos [...] ou determinadas partes da máquina, para que esta leve a
cabo sua tarefa tenham de ser dirigidas pelo trabalhador, como se fosse uma ferramenta. É o que
se dava na construção de máquinas antes de a espera de torno se transformar em elemento
automático. Quando a máquina-ferramenta, ao transformar a matéria-prima, executa, sem ajuda
humana todos os movimentos necessários, precisando apenas da vigilância do homem para uma
intervenção eventual, temos um sistema automático, suscetível, entretanto, de contínuos
aperfeiçoamentos (Marx, 2006, p. 437).

O fundamento da constituição do capital enquanto uma dinâmica automática


pode ser encontrado na constituição do sistema de máquinas; no autômato. O meio de
trabalho está convertido em movimento independente, com ritmo próprio, como
objetividade estranha e opressora. Não é controlado pelo trabalho; ao contrário, reina e
governa absoluto todo o processo13. Surge “um monstro mecânico que enche edifícios
inteiros e cuja força demoníaca se disfarça nos movimentos ritmados quase solenes de
seus membros gigantescos” (Marx, 2006, p. 438), contra o qual o trabalhador individual
se confronta enquanto unidade diminuta e impotente14:
assimilado ao processo de produção do capital, o meio de trabalho passa por diversas
metamorfoses, das quais a última é a máquina, ou, melhor dizendo, um sistema automático de
maquinaria (sistema da maquinaria; o automático é apenas a sua forma adequada, mais
aperfeiçoada, e somente o que transforma a própria maquinaria em um sistema), posto em
movimento por um autômato, por uma força motriz que se movimenta por si mesma; tal
autômato consistindo em numerosos órgãos mecânicos e intelectuais, de modo que os próprios
trabalhadores são definidos como membros conscientes deles (Marx, 2011, p. 580 – itálicos do
original).

Está dada a inversão sujeito/objeto, consumando o quadro reificado do capital


como dinâmica automática. O meio de trabalho passa a dominar a força viva, o homem
submete-se ao ritmo e ao tempo do objeto, não como um predomínio do futuro sobre o
presente na forma de um dever-ser que orienta o sentido da ação, mas como uma
submissão opressiva que pressupõe a expulsão da capacidade criativa (da subjetividade
humana) para fora do ato do trabalho. A submissão da força viva às cadeias causais é
dada aqui não pela exigência de respostas em relação a um conjunto de causalidades
dadas como possibilidades expansivas do ser que trabalha, mas como exigência de
respostas limitadas, diminutas, condicionadas, adstringidas pelo ritmo dos meios de
trabalho e pela opressão da divisão técnica como formas necessárias da produção do
valor e do mais-valor. A força viva de trabalho passa a responder conforme as

13
“O processo de produção deixou de ser processo de trabalho no sentido de processo dominado pelo
trabalho como unidade que o governa. Ao contrário, o trabalho aparece unicamente como órgão
consciente, disperso em muitos pontos do sistema mecânico em forma de trabalhadores vivos individuais,
subsumido ao processo total da própria maquinaria, ele próprio só um membro do sistema, cuja unidade
não existe nos trabalhadores vivos, mas na maquinaria viva (ativa), que, diante da atividade isolada,
insignificante do trabalhador, aparece como organismo poderoso” (Marx, 2011, p. 581).
14
“A relação do capital como valor que se apropria da atividade valorizadora [trabalho vivo] é posta no
capital fixo, que existe como maquinaria, ao mesmo tempo como a relação do valor de uso do capital com
o valor de uso da capacidade de trabalho; o valor objetivado na maquinaria aparece, ademais, como um
pressuposto, diante do qual o poder valorizador da capacidade de trabalho individual desaparece como
algo infinitamente pequeno” (Marx, 2011, pp. 581-2).

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necessidades da produção (do valor e do mais-valor) e não a produção conforme as


necessidades do ser que trabalha.
Em nenhum sentido a máquina aparece como meio de trabalho do trabalhador individual. A sua
differentia specifica não é de forma alguma, como meio de trabalho, a de mediar a atividade do
trabalhador sobre o objeto; ao contrário, esta atividade é posta de tal modo que tão somente
medeia o trabalho da máquina, a sua ação sobre a matéria-prima – supervisionando-a e
mantendo-a livre de falhas. Não é como no instrumento em que o trabalhador anima como um
órgão com sua própria habilidade e atividade e cujo manejo, em consequência, dependia de sua
virtuosidade. Ao contrário, a própria máquina, que para o trabalhador possui destreza e força, é o
virtuose que possui sua própria alma nas leis mecânicas que nela atuam e que para seu contínuo
automovimento consome carvão, óleo etc. (Marx, 2011, pp. 580-1).

A adstrição das potencialidades humanas, que toma forma de emasculação da


subjetividade, posta pelo domínio do capital – o domínio do objeto sobre o sujeito – só
pode resultar numa reprodução empobrecida do próprio homem. A maquinaria, como
potência da produção autoexpansiva do capital, não se constitui causalidade posta
indistinta, anistórica ou neutra; sua materialização está condicionada pelo conteúdo
mesmo de seu desenvolvimento: é objetivada com a finalidade primeira de reproduzir o
valor15. Para tanto, está cravejada por determinações de alienação: reifica o trabalho
vivo, converte-o em seu apêndice, obedece estritamente à racionalização típica da
produção do capital, libera força de trabalho como resultado da busca por impulsionar
automaticamente seu próprio movimento, constitui-se em monstruoso volume de
capacidade produtiva, o que é o mesmo que dizer, no caso do capital, como monstruoso
volume de mercadoria (frente ao qual o próprio homem torna-se diminuto) e, como
mercadoria, amontoa-se como monstruoso volume de trabalho excedente objetivado –
ou, em outros termos, de capital.
Toda a produção, agora, aparece como um conjunto de mercadorias postas pelo
próprio movimento automático, do qual os homens participam apenas colateralmente:
como apêndices de autômatos imensos que expelem mercadorias em velocidade
vertiginosa ou como os portadores mudos dessa produção, transportadores de objetos
que precisam ir ao mercado para realizar seu destino: a troca. Toda a sociabilidade,
portanto, reduzida a D – M ... P ... M’ – D’, encontra sua própria razão de ser na
produção/reprodução do valor: os homens aparecem como simples forças vivas, por
meio das quais opera um conjunto de relações sociais entre coisas. A sociabilidade
termina adstringida por um conjunto empobrecido de relações causais postas irradiadas,
ainda que com variações complexas, das linhas de força centrais da reprodução do
valor.
A expansão histórica do capital exigiu a reprodução de suas contradições em
escala ampla. As tentativas de neutralização requereram, também em escala compatível,
a ativação de mecanismos corretivos capazes de garantir seu funcionamento sistêmico.
Sempre que se depara com a impossibilidade de conciliar a autenticidade das demandas
humano-genéricas crescentes e a realização acelerada de seu ciclo, o capital suprime os

15
Abre o capítulo XIII do Livro I de O Capital o seguinte argumento: “não é esse o objetivo do capital
[aliviar a labuta diária de algum ser humano – AA] quando emprega maquinaria. Esse emprego, como
qualquer outro desenvolvimento da força produtiva do trabalho, tem por fim baratear as mercadorias,
encurtar a parte do dia de trabalho da qual precisa o trabalhador para si mesmo, para ampliar a outra parte
que ele dá gratuitamente ao capitalista. A maquinaria é meio para produzir mais-valor” (Marx, 2006, p.
427). Marx refere-se aqui à seguinte afirmação de J. S. Mill: “É duvidoso que as invenções mecânicas
feitas até agora tenham aliviado a labuta diária de algum ser humano” (J. S. Mill, Principles of political
economy, apud Marx, 2006, p. 427).

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elementos humano-civilizatórios e reconstrói, sobre elementos mínimos e funcionais,


seu próprio sistema de mediações. Em seu processo de totalização totalitária, o capital
subordina o pleno desenvolvimento humano aos seus imperativos reprodutivos e realiza
o gênero como desefetivação. Sua instauração como dinâmica automática produz, na
cotidianidade dos homens singulares, uma espécie de inversão: o sujeito histórico
autêntico desenvolve-se como apêndice16, fazendo com que as ações se convertam em
uma espécie de mimese empobrecida e reiterativa dos movimentos de um sistema que
lhes parece, paradoxalmente, corrosivo e necessário. Não por outra razão, o capital
aparece assim como sujeito do nosso tempo.
A dinâmica do valor fornece o húmus que fertiliza a peculiaridade da relação de
classes no modo de produção do capital. A partir dela orienta-se o vetor do momento
preponderante: as relações sociais de produção do capital, relações necessárias, nas
quais se inserem os homens, independentemente de suas vontades, os colocam em
condições dadas de vida e fruição – circunscrevem o campo de possibilidades de seus
desenvolvimentos individuais. A dinâmica das relações sociais de produção (do capital)
inscreve determinados grupos de homens em uma dada posição estrutural, determinando
seus lugares objetivos no conjunto da reprodução do ser social. A realização dinâmica
da produção material pressupõe a existência de grupos humanos capazes de materializá-
la socialmente. Por suas ações, os indivíduos que constituem tais grupos põem e repõem
o conjunto de relações sociais de produção nas quais estão inseridos17. Fazem-no, no
mais das vezes, não como uma ação teleológica consciente de manutenção da
reprodução social do capital enquanto sistema, mas como uma ação prática (reiterativa)
capaz de realizar suas próprias reproduções (suas necessidades vitais de valores de
uso), hipotecadas, antes de tudo, à própria realização do valor.
Nesta perspectiva, a advertência marxiana coloca o problema em termos exatos:
o capital, como valor que acresce, implica relações de classe, determinado caráter social que se
baseia na existência do trabalho como trabalho assalariado. Mas, além disso, é movimento,
processo com diferentes estádios, o qual abrange três formas diferentes do processo cíclico. Só
pode ser apreendido como movimento, e não como algo estático. Aqueles que acham que
atribuir ao valor existência independente é mera abstração esquecem que o movimento do
capital industrial é essa abstração como realidade operante (in actu). O valor percorre aqui
diversas formas, efetua diversos movimentos que se mantém e ao mesmo tempo, aumenta,
acresce. [...] a produção capitalista só pode continuar existindo enquanto acresce o valor-capital
como ente autônomo que efetua seu processo cíclico, enquanto os transtornos de valor são de

16
“O sujeito real da atividade produtiva essencial é degradado à condição de objeto facilmente
manipulável, enquanto o objeto original e o momento anteriormente subordinado da atividade produtiva
da sociedade é elevado à posição na qual pode usurpar toda a subjetividade humana incumbida de tomar
decisões. O novo ‘sujeito’ da usurpação institucionalizada (ou seja, o capital) é de fato um pseudo-
sujeito, já que é forçado por suas determinações internas fetichizadas a operar no interior de parâmetros
extremamente limitados, substituindo a possibilidade de um desígnio consciente adotado a serviço da
necessidade humana, por seus próprios ditames e imperativos materiais cegos” (Mészáros, 2002, p. 432
– itálicos nossos). Essa condição de “pseudo-sujeito” deve ser entendida exatamente no interior da
incapacidade do capital de pôr teleologicamente.
17
“É o desenvolvimento da produção, de suas formas e limitações específicas, que determina o tipo da
diferenciação de classe, da função social e da perspectiva das classes, o que ocorre, todavia, na forma de
uma interação, porque o tipo da constituição das classes, sua relação recíproca, retroage decisivamente
sobre a produção” (Lukács, 2013, p. 183). Ou, em outras palavras: “sobre as diferentes formas de
propriedade, sobre as condições sociais, maneiras de pensar e concepções de vida distintas e
peculiarmente constituídas. A classe inteira os cria e os forma sobre a base de suas condições materiais e
das relações sociais correspondentes. O indivíduo isolado, que as adquire através da tradição e da
educação, poderá imaginar que constituem os motivos reais e o ponto de partida de sua conduta” (Marx,
1988, p. 26),

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qualquer modo dominados e eliminados. Os movimentos do capital aparecem como ações do


capitalista individual, no sentido de que este funciona como comprador de mercadoria e de
trabalho, vendedor de mercadoria e capitalista produtivo, com sua atividade, possibilitando,
portanto, o ciclo. Se o capital social experimenta uma revolução no valor, pode um capital
individual sucumbir e desaparecer por não preencher as condições dessa revolução. Quanto mais
agudas e mais frequentes as revoluções do valor, tanto mais o movimento automático do valor
como ente autônomo, operando com a força de um fenômeno elementar da natureza, se impõe
em confronto com a previsão e os cálculos do capitalista individual, tanto mais o curso da
produção normal se subordina à especulação anormal, tanto maior o perigo para a existência
dos capitais individuais. Essas revoluções periódicas confirmam, portanto, o que se quer que elas
desmintam: a existência independente que o valor como capital adquire e, com seu movimento,
mantém e exacerba (Marx, 2006b, p. 120 – itálicos e negritos nossos).

E em relação à independência que o movimento adquire de suas personificações,


acrescenta, noutro lugar:
Vimos que a crescente acumulação do capital implica uma crescente concentração deste último.
Assim cresce o poder do capital, a autonomização das condições sociais da produção,
personificadas no capitalista em face dos produtores reais. O capital se mostra cada vez mais
como um poder social, cujo funcionário é o capitalista, e que já não guarda nenhuma relação
com o que o trabalho de um indivíduo isolado possa criar – mas se apresenta como um poder
social estranhado, autonomizado, que se opõe à sociedade como uma coisa, e como poder do
capitalista através dessa coisa. A contradição entre o poder social geral em que se converte o
capital e o poder privado dos capitalistas individuais sobre essas condições sociais de produção
desenvolve-se de maneira cada vez mais gritante e implica a dissolução dessa relação, na
medida em que implica ao mesmo tempo a transformação das condições de produção em gerais,
coletivas, sociais. Essa transformação está dada pelo desenvolvimento das forças produtivas sob
a produção capitalista e pela maneira como se opera esse desenvolvimento (Marx, 2017, p. 303 –
itálicos nossos).

A localização dos indivíduos em camadas da estrutura social circunscreve o


conjunto de relações com as quais interagem, oferece possibilidades mais ou menos
limitadas de ação e fruição, das quais podem lançar mão na elaboração de respostas às
suas carências e aos problemas colocados pela vida social na realização prática de suas
próprias reproduções; em uma palavra: determina suas possibilidades de liberdade18.
Enquanto detentor de capital, como forma de manter sua própria reprodução, não
resta ao capitalista19 opção que não seja (re)pôr cadeias causais que permitam a

18
“É comum a toda individualidade a escolha relativamente livre (autônoma) dos elementos genéricos e
particulares; mas, nessa formulação, deve-se sublinhar igualmente os termos ‘relativamente’. O homem
singular não é pura e simplesmente indivíduo, no sentido aludido; nas condições da manipulação social e
da alienação, ele vai se fragmentando cada vez mais ‘em seus papeis’. O desenvolvimento do indivíduo é
antes de mais nada – mas de nenhum modo exclusivamente – função de sua liberdade fática ou de suas
possibilidades de liberdade” (Heller, 2000, p. 22 – itálicos do original).
19
Para não incorrermos em demasiada simplificação, devemos notar que própria morfologia da classe que
personifica o capital – cujo exemplo mais ilustrativo podia ser encontrado no capitalista clássico,
proprietário dos meios de produção – sofre alterações com a formação das sociedades por ações, uma
modificação que, “em oposição ao capital privado”, “é a suprassunção [Aufhebung] do capital como
propriedade privada dentro dos limites do próprio modo de produção capitalista” (Marx, 2017, p. 494). A
constituição do capital social faz com que “o capitalista realmente ativo se convert[a] em simples gerente,
administrador de capital alheio, e os proprietários de capital em meros proprietários, simples capitalistas
monetários. Ainda que nos dividendos que recebem estejam incluídos os juros e o ganho empresarial, isto
é, o lucro total (pois a remuneração do gerente é, ou deve ser, mero salário para remunerar certo tipo de
trabalho qualificado, cujo preço é regulado no mercado de trabalho, como o de outro trabalho qualquer),
esse lucro total é recebido agora apenas na forma de juros, isto é, como simples remuneração à
propriedade do capital, que, por sua vez, passa a ser inteiramente separada da função que desempenha no
processo real de reprodução, do mesmo modo que essa função, na pessoa do dirigente, se encontra

12
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(acelerada) reprodução do valor. Antes que uma reprodução “abstrata” do sistema do


capital, interessa-lhe, de modo bastante prosaico, a reprodução concreta de sua própria
condição – a manutenção de seu sistema de privilégios. Está visceralmente ligado – de
corpo e alma – ao próprio destino do capital. A abundância do valor (e do mais-valor) é
a garantia da abundância de suas próprias formas de fruição. Ao crescimento da
acumulação corresponde a melhoria de sua condição social. Para reproduzir seu modo
de vida, deve reproduzir, inescapavelmente, o capital, estando ou não consciente da
consequência de suas ações em nível sistêmico. Agindo conscientemente – pondo
teleologicamente – lança mão do conjunto de possibilidades que lhe é acessível;
mobiliza os complexos de objetivações necessários ao bom funcionamento da dinâmica
do valor. Sabe que deve produzir valor (e, sobretudo, mais-valor) como forma de
garantir a saúde de seus negócios e sua própria predominância na estrutura social. Por
sua capacidade estrutural de mobilizar maior quantidade de elementos (recursos
materiais, relações sociais etc.) acredita-se autônomo quando, na verdade, é apenas
simples funcionário do valor em seu movimento autorreprodutivo. Não há segredo: no
desdobramento de D’20, cabe-lhe exatamente a parte d21 – seja em sua totalidade, no
caso da reprodução simples, seja apenas uma determinada alíquota, no caso de
reprodução ampliada. Interessa-lhe, portanto, pessoalmente, a ampliação máxima de d
(que nada mais é do que forma transmutada de µ) e agirá teleologicamente para reiterar
o processo de reprodução do capital, facilitando todo o seu curso22.

separada da propriedade do capital. O lucro aparece assim (e não apenas uma parte dele, os juros, que
extrai sua justificação do lucro do prestatário) como simples apropriação de mais-trabalho alheio,
proveniente da transformação dos meios de produção em capital, isto é, de sua alienação diante do
produtor real, de sua oposição, como propriedade alheia, a todos os indivíduos que tomam parte
ativamente na produção, desde o gerente até o último dos diaristas. Nas sociedades por ações, a função
aparece separada da propriedade de capital, e o trabalho também aparece, portanto, completamente
separado da propriedade dos meios de produção e do mais-trabalho. Esse resultado do máximo
desenvolvimento da produção capitalista é uma fase de transição necessária até a reconversão do capital
em propriedade dos produtores, mas não mais como propriedade privada de produtores isolados, e sim
como propriedade dos produtores associados, como propriedade diretamente social. É, por outro lado,
uma fase de transição para a transformação de todas as funções do processo de reprodução até aqui ainda
relacionadas à propriedade do capital em simples funções dos produtores associados, em funções sociais”
(Marx, 2017, p. 494-5).
20
D – M (Mp + F) ... P ... M’ (M = µ) – D’ (D + d).
21
Sobre esta questão, com precisão e atualidade, considera Pachukanis (1988, p. 85): “por causa da
evolução do modo de produção capitalista, o proprietário afasta-se progressivamente das funções técnicas
de produção e deste modo perde também o domínio jurídico total sobre o capital. Numa empresa de
acionistas, o capitalista individual nada possui além da titularidade de uma quota-parte determinada do
rendimento que obtém sem trabalhar. A sua atividade econômica e jurídica, como proprietário, restringe-
se quase que inteiramente à esfera do consumo improdutivo. A massa mais importante do capital torna-se
inteiramente uma força de classe impessoal. Na medida em que esta massa de capital tem participação na
circulação mercantil, o que supõe a autonomia de suas diferentes partes, esta partes autônomas surgem
como propriedade de pessoas jurídicas. Na verdade, é apenas um grupo, relativamente restrito de grandes
capitalistas, que dispõe da grande massa de capital e que, além disso, opera não diretamente, mas por
intermédio de representantes ou de procuradores com poderes estipulados. A forma jurídica distinta da
propriedade privada já não representa mais a situação real das coisas, uma vez que a dominação efetiva se
estende através de métodos de participação, de controle etc., bastante além do quadro puramente
jurídico”.
22
O mesmo vale para outras personificações do capital, cujo fundamento estrutural é a posição na divisão
social e técnica do trabalho. Contudo, aqui, o problema ganha matizes que podemos apenas aludir. Alguns
determinantes precisam ser considerados ao analisarmos a posição e a função social dessas frações de
classes e a primeira delas é o lugar ocupado na estrutura da produção social. Não se pode esquecer ainda
do modo como participam na reprodução do complexo ideológico particular, que se consolida com a

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A reposição das cadeias causais reificadas, portanto, é a função das


personificações do capital. Para sua própria reprodução devem reproduzir o valor,
garantir que se expanda livremente. Fazem-no como forma de manutenção de sua
posição na estrutura social; desfrutam os benefícios que a sociedade do valor lhes pode
proporcionar. Desenvolvem as ações necessárias ao fluxo ininterrupto do capital,
garantindo uma hierarquia social rígida, indispensável à manutenção da subordinação
formal e real do trabalho. “Sua pessoa, ou melhor, seu bolso, é donde sai e para onde
volta o dinheiro. O conteúdo objetivo da circulação em causa – a expansão do valor – é
sua finalidade subjetiva23” (Marx, 2006, p. 183).
Por seu turno, ainda que como o “lado negativo da antítese” (Marx; Engels,
2011, p. 48), as personificações do trabalho, em sua ação econômica, repõem o conjunto
das causalidades postas reificadas: na busca por suas reproduções individuais, têm de se
inserir na cadeia de produção e reprodução do valor e do mais-valor, como condição
necessária – a condição de sua reprodução é, também, reproduzir o capital; do contrário,
torna-se simplesmente impossível seu emprego na ordem do capital. Do ponto de vista
econômico, não há qualquer absurdidade: a relação não viola a lei das trocas, a força de
trabalho é vendida no mercado por seu preço e é concedido ao capital, a partir desse ato,
o jus utendi et abutendi de suas propriedades e qualidades específicas durante o período
contratado. Esta é a condição socialmente posta para a reprodução das personificações
do trabalho na ordem do capital: a produção (e reprodução) do valor (e do mais-valor).
Também aqui, a inserção estrutural desses indivíduos os coloca em condições
determinadas, frente a um conjunto de objetividades sociais que se lhes mostra sob uma
determinada forma, mais ou menos acessível, como um leque de escolhas reduzido (e
permanentemente reduzido, relativamente ao agigantamento do volume de mercadorias
e ao encolhimento social do trabalho necessário), cujo potencial de respostas encontra-
se permanentemente adstringido pela urgência de manutenção/reprodução da própria
vida. A alarmante contingência que permeia suas condições de reprodução reduz
invariavelmente o campo de escolhas. Todavia, é justamente essa redução do leque de
possibilidades que coloca as personificações do trabalho frente à possibilidade decisiva
de realizar ações diruptivas da ordem vigente.
A possibilidade de controlar o sistema, por seu turno, não está dada a nenhuma
das classes. No entanto, elas parecem acessíveis às personificações do capital graças ao
poder que esses indivíduos têm de mobilizar, em prol de seus interesses, maior número
de elementos dos sistemas primário e secundário de mediações. A mobilização dos

generalização histórica do modo de produção burguês, das relações que estabelecem com as classes
fundamentais e outros grupos sociais, do modo como acessam e fruem as objetivações socialmente
produzidas e de como essas camadas organizam seu modo de vida, suas expectativas e suas
movimentações concretas no espectro político mais amplo. Vários autores se dedicaram a esse exercício
(a compreender os impactos dos processos de transformação do trabalho e da sociedade a partir de
meados do século XX na estrutura de classes) e há vastíssima bibliografia sobre o assunto. Apenas para
ficarmos nas mais significativas, pensemos em Braverman (1974); Gorz (1982); Lojkine (2002); Offe
(1989); o operaísmo italiano de Negri e Lazzarato; Sabel e Piore (1984); Schaff (1995) etc.
23
“Não se deve entender com isso como se, por exemplo, o rentista, o capitalista etc. deixassem de ser
pessoas, mas sim no sentido de que sua personalidade é condicionada e determinada por relações de
classe bem definidas; e a diferença torna-se evidente apenas na oposição a uma outra classe e, para os
próprios indivíduos, somente quando entram em bancarrota” (Marx; Engels, 2007, p. 65).

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complexos mediativos de primeira e segunda ordem, pelas personificações do capital,


nada mais é do que a luta por reiterar, em uma ação aparentemente autodeterminada24.
As ações teleológicas das personificações do capital, portanto, passam não
somente pela administração dos elementos propriamente econômicos, necessários ao
bom fluxo do valor, à realização de suas metamorfoses, etc., mas também pela
manutenção de um sistema de hierarquia e opressão social capaz de constranger as
individualidades à realização rápida e eficaz deste fluxo. Em outros termos, elas não
buscam controlar apenas todo o campo de posições teleológicas primárias: num sistema
de reificação generalizado, elas devem, em escala crescente, controlar toda a dinâmica
das posições teleológicas secundárias, mobilizando maior volume de mediações capazes
de influenciar os demais indivíduos sociais a realizar as ações necessárias à
continuidade do capital. Há, aqui, um inegável impulso à ampliação da divisão social e
técnica do trabalho como forma de garantir o direcionamento das posições teleológicas
secundárias. Na brilhante síntese de Lukács:
quanto mais se desenvolve o trabalho, e com ele a divisão do trabalho, tanto mais autônomas são
as formas dos pores teleológicos do segundo tipo, tanto mais eles conseguem se desenvolver
como complexo próprio da divisão do trabalho. Essa tendência do desenvolvimento da divisão
do trabalho cruza, no plano social, necessariamente, com o surgimento das classes; pores
teleológicos dessa espécie podem ser colocados espontânea ou institucionalmente a serviço de
uma dominação sobre aqueles que por ela são oprimidos, do que provém a tão frequente ligação
entre o trabalho intelectual autonomizado e os sistemas de dominação de classe (Lukács, 2013, p.
180).

Portanto, embora os complexos sociais realizem suas malhas causais reificadas


movidos por força de uma dinâmica automática – o capital – eles só o fazem – e só
podem fazê-lo – por meio da ação dos próprios homens, que devem operar num dado
nível de pôr capaz de viabilizar suas próprias reproduções individuais, pelo mesmo
movimento em que garantem a continuidade da reprodução social (da qual dependem
para sua manutenção); fazem-no inconscientes quanto aos resultados mediatos, mas de
maneira socialmente eficaz. Em meio ao fetichismo das formas e a reificação dos
conteúdos, interagem com os complexos sociais e com as determinações por eles postas
de maneira a oferecerem respostas adequadas à continuidade do processo de
produção/reprodução social alienado, pois dessa continuidade depende, no plano
imediato, suas próprias reproduções individuais. A ampliação das possibilidades de
respostas depende, todavia, de condições objetivadas anteriormente. Na positividade do
capital, que restringe tudo à lógica mercantil, o leque de possibilidades de pores
alternativos e enriquecidos torna-se progressivamente adstringido pelo círculo vicioso
da lógica do valor. Portanto, não apenas do ponto de vista da contradição do valor, mas
também a partir do campo de possibilidades humanas, a ordem do capital caminha para
um estrangulamento objetivo e uma tensão genérica: a redução das alternativas do pôr a
uma cadeia empobrecida de possibilidades (cuja essência final é, necessariamente, a
forma mercantil e o valor) oblitera as alternativas de sua administração racional, de
explicitação de uma subjetividade humana enriquecida, acuando as possibilidades
significativas de ação a uma única opção: a ruptura radical com essa cadeia de
alternativas (empobrecidas), de modo a abrir um leque totalmente novo de

24
“Os sujeitos automáticos configuram-se à medida que [os indivíduos – AA] devem aceitar como
evidente e espontânea certa sociabilidade, a qual, por meio do processo de valoração do capital, faz do
sujeito mera personificação de uma relação social” (Sartori, 2010, p. 122).

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possibilidades – o que requer a destruição do conjunto de mediações de segunda ordem


adstringidas e adstringentes do capital.
O movimento automático do capital, como vimos, encontra seu fundamento na
produção alienada – onde já aparece como pressuposto de si mesmo – mas não se
restringe a ela. O estranhamento da produção pelo trabalhador, como estranhamento dos
meios e objetos de trabalho, tem sua própria equivalência no estranhamento
generalizado na circulação. A mercadoria, como forma elementar de manifestação do
capital, invade todos os poros da vida social, evidenciando-se como a raison d’être do
mundo.
Na idade avançada do monopólio, a organização capitalista da vida social preenche todos os
espaços e permeia todos os interstícios da existência individual: a manipulação desborda a esfera
da produção, domina a circulação e o consumo e articula uma indução comportamental que
penetra a totalidade da existência dos agentes sociais particulares – é o inteiro cotidiano dos
indivíduos que se torna administrado, um difuso terrorismo psicossocial se destila de todos os
poros da vida e se instila em todas as manifestações anímicas e todas as instâncias que outrora o
indivíduo podia reservar-se como áreas de autonomia (a constelação familiar, a organização
doméstica, a fruição estética, o erotismo, a criação dos imaginários, a gratuidade do ócio etc.)
convertem-se em limbos programáveis. [...] A organização capitalista da grande indústria
moderna modela a organização inteira da sociedade macroscópica, impinge-lhe os seus ritmos e
os ciclos, introduz com a sua lógica implacável o relógio-de-ponto e os seus padrões em todas as
micro-organizações (Netto, 1981, pp. 81-2 – itálico do original, negritos nossos).

A administração do cotidiano, neste caso, tem de operar por meio de leis de


funcionamento que reinam e governam, sob um aspecto absolutamente natural, a vida
dos homens. As forças constritoras do capital encontram também formas de
materialização pela cadeia hierárquica que vertebra todo o tecido social. O movimento
automático se materializa por linhas de força condicionantes, que se desdobram em
formas coercitivas e ideológicas dimanadas de complexos institucionais coligidos a
partir de um sistema de mediações de segunda ordem reificado, cujo conjunto ocasional
é vivenciado pelos indivíduos como expressão e condição da própria fragmentação
subjetiva de suas personalidades:
a ubiquidade deste poder [...] aparece nas ações da bolsa, nos regulamentos, no talonário de
cheques, nas portarias, nos documentos, nos certificados –, instala-se na parafernália que valida a
cidadania. Está em todas as partes e não reside em lugar algum. Escamoteia os fluxos, as
continuidades e as rupturas: dá ao viver a sequência da lanterna-mágica – normas, trabalho, lazer
etc., tudo é uma mescla inorgânica, cujo enlace é a sucessão no tempo e no espaço: a vida é uma
justaposição de objetos, substâncias, implementos (Netto, 1981, p. 83).

A ação cotidiana dos homens, na ordem do capital, ganha seu sentido pessoal
como uma ação voltada para a própria autorreprodução dos indivíduos25. De acordo
como se inserem dentro de uma cadeia determinada – pelos loci de suas inserções na
estrutura de relações sociais de produção, ou seja, pelas suas posições de classe – de
relações causais que oferecem e restringem alternativas e possibilidades, respondem, a
partir dessas determinações dadas, ao conjunto de problemas e entraves colocados à

25
“As condições sob as quais os indivíduos intercambiam uns com os outros, enquanto não surge a
contradição [entre as forças produtivas e as relações de produção – AA], são condições inerentes à sua
individualidade e não algo externo a eles, condições sob as quais esses indivíduos determinados, que
existem sob determinadas relações, podem produzir sua vida material e tudo o que com ela se relaciona;
são, portanto, as condições de sua autoatividade e produzidas por essa autoatividade. A condição
determinada sob a qual eles produzem corresponde, assim, enquanto não surge a contradição, à sua real
condicionalidade [Bedingtheit], à sua existência unilateral, unilateralidade que se mostra apenas com o
surgimento da contradição e que, portanto, existe somente para os pósteros” (Marx; Engels, 2007, p. 68).

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suas reproduções individuais. As determinações pretéritas e futuras, no mais das vezes,


aparecem distanciadas frente à premência do imediato – a determinação futura sob a
ação teleológica presente, determinando o pôr com a força de um dever-ser, é
circunscrita por um futuro efêmero, cujo caráter é essencialmente iminente, e não como
uma perspectiva da linha histórica e do nexo ético que ligam indivíduo e gênero. Essa
dissociação só pode ser concebida em um modo de produção que, ao mesmo tempo em
que avança a potencialidade produtiva do gênero, o faz à custa da sufocação do
desenvolvimento pleno do indivíduo. Portanto, a ação cotidiana como autorreprodução
findada em si mesma só é possível em uma sociedade de relações sociais que realiza o
gênero pela negação do indivíduo e o indivíduo pela negação do gênero, colocando-os
em aparente oposição mútua.
A positividade do capital, em seu modo peculiar, emerge cotidianamente contra
os indivíduos,
coloca ininterruptamente alternativas que aparecem de forma inesperada e, com frequência, têm
que ser respondidas de imediato sob pena de ruína; uma determinação essencial da própria
alternativa consiste em que a decisão deve ser tomada sem que se conheçam a maioria dos
componentes, a situação, as consequências etc. (Lukács, 2013, p. 139).

É a partir dessa positividade que os homens objetivam cotidianamente. Sabemos


também que, para que a relação sujeito/objeto tenha efeito em toda sua profundidade,
um elevado grau de objetivação é requerido ou, em outros termos, quanto mais
duradouras as objetivações, maiores a relação e o desenvolvimento de possibilidades
que oferecem aos sujeitos; mais se prestam à análise e à formação de um reflexo correto
(condição indispensável para a ação sobre todas as suas causalidades imanentes) e mais
se colocam como condição permanente na vida dos homens, fundamento a partir do
qual serão postas as novas objetivações. O comportamento dos homens depende
também, assim, do grau de objetivação de suas atividades.
As relações imediatas, típicas da cotidianidade, executadas in totum (mesmo que
por formas muitíssimo mediadas) para a reprodução elementar dos indivíduos que as
realizam, resultam em objetivações frágeis. Pelas próprias características de suas
determinações, são repositivas e marginais em relação às linhas de força essenciais das
causalidades postas sobre as quais atuam; “cuanto más inmediatas son esas relaciones
[...] tanto más débil, más cambiante y menos fijada es la objetivación” (Lukács, 1966, p.
42). Atuando tendo por referência a imediatidade epidérmica dos processos causais
reificados, a inconsciência da ação dos homens reporta não tanto à realização das
necessidades imediatas de suas reproduções (no que operam conscientemente), mas a
todo o conjunto macroscópico de formas e conteúdos causais que o somatório das ações
dos indivíduos singulares mobilizam – em palavras rápidas, a todo o conjunto da
reprodução social, em suas formas e conteúdos. Como já dissemos, o valor orienta o
desenvolvimento das formas que adstringem os homens a determinado comportamento.
As ações cotidianas atuam, fundamentalmente, sobre o desenvolvimento epidérmico das
causalidades sociais: ele é seu fim último e o substrato primário das conformações
ideais que as orientam. As decisões tomadas no cotidiano campeiam entre o instantâneo
e o rigidamente fixado (mas pouco refletido):
en la vida subjetiva de la cotidianidad tiene lugar una constante oscilación entre decisiones
fundadas en motivos de naturaleza instantánea y fugaz y decisiones basadas en fundamentos
rígidos, aunque pocas veces fijados intelectualmente (tradición, constumbres) [...]. Se trata
siempre del rápido cambio, a menudo repentino, entre rigidez conservadora en la rutina o la
convención y acciones, decisiones, etc., cuyos motivos [...] presentan un caráter
predominantemente personal (Lukács, 1966, p. 44).

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Não por outra razão, no cotidiano estão mais fortemente vinculados teoria e
prática – a necessidade da ação imediata supõe e exige a formação de estruturas ideais
que possibilitem a ação. Ditas estruturas orientam-se muito mais em relação à eficácia
que o ato deve produzir que propriamente à explicitação de suas conexões internas mais
profundas e decisivas: para que a ação cotidiana funcione, basta que seja eficaz do
ponto de vista do agente26. A relação que se estabelece no cotidiano entre dever-ser,
reflexo, escolha de meios, objetivação e eficácia prática supõe o apagamento das
mediações que se interpõem entre teoria e prática em suas formas mais elevadas. Como
consequência, obtém-se um espelhamento carente de mediações – mas suficiente para a
ação imediata – e uma objetivação pouco duradoura. Na estrutura reificada da ordem do
capital, em poucas palavras: obtém-se um reflexo limitado, construído a partir do
encadeamento mais superficial dos nexos causais, que sequer resvala sobre seus
conteúdos essenciais (sobre a essência de funcionamento da própria socialidade dos
homens submetida ao valor), e uma ação prática epidérmica, reiterativa, incapaz de
atingir e alterar os fundamentos de funcionamento das legalidades autorreprodutivas
do capital, terminando por repor, inconscientemente, seu movimento automático.
Entretanto, é exatamente a ação prática do conjunto dos homens que movimenta, ainda
que sem a intenção direta de fazê-lo, todo o conjunto material de relações sociais,
repondo em patamares mais desenvolvidos e complexos toda essa malha causal.
A vivência cotidiana é, em última instância, uma experiência singular, de cada
indivíduo, na realização prático-empírica de suas demandas mais rotineiras. A urgência
de respostas práticas à pluralidade de situações requer um comportamento eficaz, capaz
de garantir a sobrevivência psicofísica imediata. Tomada por automatismos, a vida
cotidiana é marcada em seu conjunto por um universo plenamente múltiplo e variegado
de objetivações ativas, cujo caráter compósito e heterogêneo27 exige respostas múltiplas
para questões várias (aplicações da física, da biologia, do trabalho, das artes, da política,
etc.). Todas estas questões apresentam-se de maneira mais ou menos imediata,
requerendo respostas urgentes e ativas, a fim de propiciarem ao indivíduo sua realização
vital, de modo pragmático, ou seja, sem um supradesgaste de suas forças vitais. A
pluralidade das situações e a urgência das demandas exigem um rápido processamento
da ação – o que não permite, em último caso e no mais das vezes, uma análise rigorosa e
crítica: estamos diante de ações superficiais e extensivas.
Todas essas determinações são entrecortadas pela historicidade; “a vida
cotidiana não está ‘fora’ da história, mas no ‘centro’ do acontecer histórico: é a
verdadeira ‘essência’ da substância social” (Heller, 2000, p. 20). As formas
heterogêneas que se mostram no cotidiano derivam, por inúmeras mediações, das
condições historicamente postas nas quais os homens estão mergulhados. Como
objetividades heterogêneas da ordem do capital, parte das objetivações sociais tem seu
destino hipotecado à própria sorte do sistema do valor28. O confronto, no cotidiano, com
essas objetivações heterogêneas é resolvido, em sua imediatidade, por ações embasadas

26
“A unidade imediata de pensamento e ação implica inexistência de diferença entre ‘correto’ e
‘verdadeiro’ na cotidianidade; o ‘correto’ também é ‘verdadeiro’. Por conseguinte, a atitude da vida
cotidiana é absolutamente pragmática” (Heller, 2000, p. 32).
27
“Mas a significação da vida cotidiana, tal como seu conteúdo, não é apenas heterogênea, mas
igualmente hierárquica. Todavia, diferentemente da circunstância da heterogeneidade, a forma concreta
da hierarquia não é eterna e imutável, mas se modifica de modo específico em função das diferentes
estruturas econômico-sociais” (Heller, 2000, p. 18).
28
Pense-se, por exemplo, na forma-mercadoria, na forma-dinheiro, no trabalho alienado, no salário, nas
formas jurídica e política etc.

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pelo mais espontâneo materialismo – exatamente por isso, o fiador da ação é o critério
de eficácia e seu resultado uma objetivação efêmera, conforme já aludimos.
La fuerza y la debilidad de esa esponteneidad caracterizan claramente, desde otro punto de
vista, la peculiaridad del pensamiento cotidiano. Su fuerza se revela em el hecho de que
ninguna concepción del mundo, por idealista y hasta solipsista que sea, consiegue impedir que
aquella espontaneidad funcione en la vida y el pensamiento de la cotidianidad. Ni el más
fanático berkeleyano, cuando al cruzar la calle evita un automóvil o espera que éste pase, tiene
la sensación de estar entendiéndoselas sólo cun su propria representación [...]. Y la debilidad de
ese materialismo espontáneo se manifesta en el hecho de que sus consecuencias para la
concepción del mundo son escasísimas, y acaso nulas (Lukács, 1966, p. 48).

Absorvidos por toda ordem de problemas, os homens se comportam no


cotidiano como “homens inteiros” – operam como um todo, fornecendo as respostas
variadas necessárias à sua reprodução, nos mais diversos campos da vida social,
manipulando variáveis que remetem a várias áreas do saber, operando por
instrumentais, muitos dos quais extremamente complexos e sofisticados, mobilizando
um conjunto de objetivações densas, cujas mediações obnubiladas fazem aparecer como
um agrupamento absolutamente simples, funcional e manipulável.
Modificar as causalidades automáticas do capital exige uma ação no cotidiano
e, ao mesmo tempo, para além dele – orientações práticas conscientes que mirem na
eliminação do conjunto forma/conteúdo pelo qual se entificam as linhas de força do
capital. Por certo, não pode ser uma ação reiterativa (pragmática, calcada no
materialismo espontâneo): deve, através de formas conscientes, subverter as dinâmicas
de funcionamento interno das múltiplas manifestações sociais constringidas pelo
imperativo de realização do valor. Por seu desenvolvimento automático, as linhas de
força por meio das quais o capital realiza seu movimento dinâmico não podem ser
controladas – sua natureza imanente é autorreprodutiva, totalizante e totalitária,
parasitária dos homens, necessários apenas à realização de seu movimento
autoconstitutivo e autoexpansivo – embora possam ser destruídas. Somente por sua
destruição pode-se abrir o novo campo de possibilidades efetivamente humanas.

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REFLEXÕES SOBRE O TEXTO TRABALHO ASSALARIADO E CAPITAL

Ivan Cotrim
Fundação Santo André
ivancotrim@uol.com.br

Resumo
O texto Trabalho assalariado e capital de Marx registra um momento decisivo da
crítica originária da economia política, anterior à Contribuição à Critica da Economia
Política, de sua maturidade. O que os põe em conexão profunda é, já nesse texto de
1847, a compreensão sobre o trabalho nas condições históricas capitalistas. Ele observa
no trabalho, sob o capital, características confluentes com as das mercadorias,
especialmente sua subsunção às leis do mercado, como uma mercadoria com as mesmas
condições de qualquer outra. A partir daí Marx elabora sua compreensão do trabalho,
como categoria que se diferencia das demais, ao definir-se sob a forma potencial de
capacidade de trabalho, ao mesmo tempo em que registra sua condição sine qua non
para existência do capital. Ele indica, também, que as coalizões, a união da massa
trabalhadora em seus interesses comuns, em oposição aos do capital, resulta das
relações de assalariamento que no interior da regência do capital restringe o trabalhador
aos limites mínimos de sua sobrevivência. A oposição entre trabalho e capital
evidenciada o leva a definir que só pela organização e luta dos trabalhadores poderia
alcançar a emancipação da sociedade em relação às classes sociais na direção do
comunismo.
PALAVRAS-CHAVE: trabalho assalariado; estranhamento; capital; capacidade de
trabalho

REFLECTIONS ON THE TEXT WAGE LABOUR AND CAPITAL

Abstract
Marx’s writing Wage Labour and Capital sets a decisive moment of the original
critique of political economy, previous to A Contribution to the Critique of Political
Economy, a work belonging to the period of his maturity. Both of these writings connect
deeply in their understanding of labour in the capitalist historical conditions, which
figures already in the 1847 text. Marx observes that, under capitalism, labour assumes
characteristics typical of commodities, in particular their subsumption to the laws of
market as a commodity under the same conditions as any other. From that observation,
Marx elaborates his understanding of labour as a category that differs from others, by
defining itself as the potential form of labour power, while remarking its sine qua non
condition for the existence of capital. Marx also indicates that the coalitions or the union
of the working mass for their common interests as opposed to those of capital result
from the wage labour relationship under the rule of capital, that restricts the worker to
the minimum limits of their survival. The understanding of the opposition between
labour and capital leads Marx to sustain that only by their organization and struggle
could the workers emancipate society from the social classes, towards communism.
KEYWORDS: Wage labour; Estrangement; Capital; Labour power.

Introdução

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Consideramos importante introduzir um registro sintético do percurso teórico


crítico de Marx em sua crítica originária da economia política, recriando o ambiente
intelectual do autor até a elaboração de Trabalho Assalariado e Capital, (neste ano de
2018 em que comemoramos duzentos anos de seu nascimento). Marx enfrentou os
pensadores clássicos da economia política com espírito provido criticamente em
desvelar, por meio das suas formulações teóricas, a base de sustentação dos fenômenos
econômicos por eles abordados e suas derivações ideológicas que permitiram aos
clássicos emoldurarem tal ciência. O período em que essa crítica originária transcorre
tem início com os apontamentos e estudos analíticos publicados com o título de
Extratos de James Mill, mais tarde Cuadernos de Paris, assim nomeado por Adolfo
Sanchez Vasquez (Vasquez, 1974), na década de setenta do século XX. Esse texto
antecede os Manuscritos Econômico-Filosóficos, embora produzido no mesmo ano,
1844, bem antes, portanto, das concreções encontradas na Contribuição à Crítica da
Economia Política, de 1859, e em O Capital, de 1863.
Sua análise sobre a economia política acaba por desembocar no valor, categoria
central dessa ciência. Se a princípio Marx não utiliza o termo valor-trabalho, este será
incorporado durante a própria redação de suas notas, nos momentos em que as teses
tanto de Ricardo como de Smith estiverem sendo examinadas. Desta forma, não é
correto afirmar, como já o fizeram alguns analistas dos escritos desse período, que ele
inicia por rejeitar a teoria do valor-trabalho, mesmo tratando-se de seu primeiro contato
com as teorias da economia clássica. Vasquez nos indica que já nas leituras d’A Riqueza
das Nações, de Smith, Marx põe em destaque uma afirmação desse pensador na qual a
riqueza se coloca como produto do trabalho, e não sob a forma particular do ouro, prata
e pedras preciosas. E, mais adiante, nos Cuadernos, ele deixa apontadas questões
refletidas por Ricardo sobre o trabalhador em que destaca que ao trabalhador não resta
qualquer vantagem com a elevação de sua produtividade, e, de qualquer forma, seu
trabalho é fonte de todo valor. Vazquez faz notar que Marx evidenciou um amplo
quadro de observações sobre os argumentos dos clássicos nos Cuadernos que foram
retomadas para um aprofundamento crítico-analítico em O Capital.
Nessas anotações originárias o tema alienação marca forte presença em suas
críticas à propriedade privada que se torna referência indissociável de toda sua produção
juvenil sobre a economia política. Para os economistas clássicos a propriedade privada
tem origem natural, antropológica, posição plenamente rechaçada por Marx ao indagar
sobre a forma adotada pelas relações sociais nas condições da propriedade privada. Ele
indica, desde logo, que o nexo entre esta e a alienação e o estranhamento que define, em
essência, o agir econômico dos indivíduos nesta sociedade mercantil.
Vazquez destaca que além desse enfrentamento crítico anteriormente indicado,
Marx esteve enredado em várias posições naturalistas da economia política, dando como
exemplo a concepção dos clássicos no que toca ao sistema de necessidades, posição
coincidente com a de Hegel no que diz respeito às necessidades humanas, já que
registram sua origem na raiz natural dos indivíduos. Vazquez observa que em Marx
essa concepção de necessidade cede lugar à determinação social, tendo origem no
sistema de divisão do trabalho e intercâmbio, ambos circunscritos à sociabilidade
humana.
As anotações de Marx nos Cuadernos formam um conjunto temático, mas suas
críticas, no interior de suas anotações, recuperam cada categoria em particular para um
exame e consolidação de seu próprio desenvolvimento intelectual. A partir de então ele

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submete as categorias erigidas pela economia política a uma critica radical. Tomemos
por exemplo, a propriedade privada, esta se lhe afigura como base infundada dessa
ciência, como um fato carente de necessidade, pois, a economia política sustenta-se
nessa categoria, afirmando que não há riqueza sem propriedade privada, mas não
explica a necessidade humana dessa forma social, não explica a demanda histórico-
social da propriedade privada, pondo por terra um dos pilares teóricos dos clássicos.
Marx está, de fato, tomando contato com os pensadores da economia pela
primeira vez, muito embora já se detivera nas análises críticas de Esboço de uma Crítica
da Economia Política, elaborado por Engels, que o auxiliou a enfrentar o emaranhado
teórico deixado pelos clássicos; além disso, ele tem já recursos teóricos constituídos
acumulados que lhe permitiram o tom empregado nesse enfrentamento, principalmente
por ter dominado as críticas ontológicas anteriores, a crítica à politicidade e a
especulação filosófica, ambas expressões teóricas de uma e mesma realidade sócio
econômica. De maneira que estamos vendo uma complementação de seu percurso
crítico, complementação essa que, não custa repetir, tem sua manifestação originária nos
Cuadernos.
Os Manuscritos Econômico-Filosóficos (Marx, 1987) contêm críticas a temas da
economia política que motivaram também a redação dos Cuadernos. Marx explicita
aspectos e ângulos que não foram tratados no texto anterior, conseguindo então elevar a
um patamar crítico mais amplo e esclarecedor alguns dos temas comuns a ambos os
textos, dessa forma ele fica em condições mais favoráveis, no segundo, já que pode
contar com as análises precedentes.
Nesse texto a presença da categoria econômica: produção, ganha destaque; essa
categoria será tratada com mais insistência e por múltiplos ângulos, o que forma um dos
diferenciais em relação aos Cuadernos.
Nas considerações do já citado analista das obras de juventude de Marx, fica
patente um aprofundamento crítico nos Manuscritos, já que Marx avança numa
articulação entre categorias econômicas e as atividades políticas, como a luta de classes
por exemplo, entre outras, mas determinados temas dos Cuadernos serão apenas
referidos nos Manuscritos.
O capítulo Salário do Trabalho dos Manuscritos foi submetido por Marx a um
cotejo com a realidade ativa dos indivíduos. As lutas entre capitalistas e trabalhadores,
levaram vantagem sempre para as mãos dos primeiros, diz Marx, pois estes “podem
viver mais tempo sem o trabalhador do que o trabalhador sem o capitalista” (Marx,
1999, p.2). Em seguida ele desdobra os motivos que levam os capitalistas terem
vantagens no enfrentamento com a classe trabalhadora. O poder de união dos
capitalistas apresenta-se sempre, em condições favoráveis diante das dos trabalhadores,
e da sociedade, enquanto que para estes as adversidades de toda natureza são
evidenciada frente suas tentativas de coalizão que sempre lhes rendem sérias
consequências. Desigualam-se, também, as condições entre capitalistas e trabalhadores
em momentos de enfrentamento ao se tomar as fontes de renda de ambos; os capitalistas
têm seus rendimentos oriundos de distintas fontes, como renda fundiária, lucro
industrial ou juro, enquanto os trabalhadores dependem da única fonte, que é o salário
de seu trabalho, o que faz gerar uma maior intensidade na concorrência entre os
trabalhadores.
Marx destaca também, apoiado nas formulações de Smith, que os salários são
estabelecidos num limite restrito à subsistência do trabalhador e com uma parcela para a
manutenção de sua família, com o que ele “perpetua sua raça”. Eis aqui uma formulação

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que, vinda de Smith, será reposta por Ricardo, e mantida por Marx que afirma ser esta
questão uma expressão do real, da sua determinação, isto é, dos fundamentos sociais das
relações de assalariamento.
Marx apresenta a relação capital-trabalho na forma tal como a supõe a economia
política, ou seja, como “casual, e por isso só pode ser explicada exteriormente” (Marx,
1999, p.3-A) à própria economia política. De maneira que, para os clássicos, a união
dessas categorias mostra-se como se “o capital /.../ [fosse] trabalho acumulado”; ou
então, “o operário é um capital”; ou como “o salário faz [endo] parte dos custos do
capital”; ou ainda, “no que diz respeito ao operário, o trabalho é a reprodução de seu
capital”. Cabe observar que, neste último caso, fica mais evidente a conversão, pela
economia política, de todos os indivíduos em formas de ser do capital; e “no que diz
respeito ao capitalista, é um fator de atividade do capital”.
Ele destaca situações sociais específicas, para indicar a radical desigualdade,
dentro do universo do capital, entre os trabalhadores e os capitalistas: quando a riqueza
produzida socialmente entra em declínio, quem absorve em sua pessoa os danos dessa
situação é o trabalhador; quando a riqueza se eleva, ele tem realmente um momento de
vantagem, pois se acentua a concorrência entre os capitalistas e a procura por
trabalhadores é maior, favorecendo assim uma elevação salarial; entretanto, diz Marx, a
contradição está em que “a alta de salários desperta no trabalhador o mesmo desejo de
enriquecimento que no capitalista, mas só o pode satisfazer pelo sacrifício de seu corpo
e espírito”, e a busca por maiores rendimentos o obriga a uma alienação maior de sua
liberdade e uma subsunção maior ao trabalho assalariado, degenerativo ao trabalhador,
donde resulta uma redução de seu tempo de vida, “uma morte prematura, a degradação
em máquina, a sujeição ao capital que se acumula em ameaçadora oposição a ele”.
O pagamento do trabalho, o salário, revela-se, na economia política, tanto na
prática quanto na teoria, algo semelhante à troca de mercadorias confirmando o que Mar
já havia deduzido nos Cadernos: que o salário é uma expressão, ou uma forma da
relação da propriedade privada. Nos Manuscritos, essa questão é explicitada e
fundamentada nos seguintes termos: “Consequentemente salário e propriedade privada
são idênticos, pois o salário no qual o produto, o objeto do trabalho remunera o próprio
trabalho, é apenas uma consequência necessária do estranhamento do trabalho e no
sistema de salário o trabalho não aparece como fim em si, mas como servo do salário”
(Marx, 1999, p.27-a). Observa ele então que “O capitalista é sempre livre para
empregar o trabalho e o operário se vê obrigado a vendê-lo. O valor do trabalho fica
completamente destruído se não for vendido a todo instante”. (Marx, 1999, p.3-a). De
maneira que a reprodução do valor do trabalho fica na dependência de sua venda ao
capitalista, isto é: a vida do trabalhador tem sua reprodução dependente da venda do
valor do trabalho. E o que é o valor do trabalho? Algo que, diferente do valor “das
autênticas mercadorias /.../ não pode ser nem poupado, nem acumulado”, isto é, só pode
ter valor na compra pelo capital, para utilização na produção.
Mantendo sempre relação com temas presentes nos Cadernos, como o
empobrecimento crescente do trabalhador, contrariamente ao aumento da produção de
riqueza por ele efetivado, Marx procura evidenciar o estranhamento que resulta das
relações do trabalho, sob a propriedade privada, pois, como diz ele, se aquilo com que o
homem se relaciona não tem existência para si, evidentemente lhe é estranho, não faz
parte de sua essência, de sua vida, está alienado dele. Marx põe em evidência também
um dos momentos mais agudos da degradação no trabalho, quando a alienação dos
indivíduos em relação a si próprios desdobra-se no estranhamento social, de seu gênero.

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Se a essência dos indivíduos é parte de sua generidade, o estranhamento em relação ao


gênero, e, portanto à sua sociabilidade é sua própria desefetivação.
Por outro lado, Marx penetra o interior da economia política e articula seus
pressupostos, sempre sublinhando suas contradições, como fez nos Cadernos. Lá ele
afirma ser a propriedade privada o ponto de partida daquela, sem que ela o explique, e
embora aquela teoria estabeleça uma rede interligada de categorias e leis que compõem
a ciência econômica, “Não compreende tais leis /.../ não explica como elas derivam da
propriedade privada” (Marx, 1999, p.22-a). A economia política afirma que o
dinamismo econômico funda-se no interesse dos capitalistas, pressuposto este que
deveria ser explicado como resultado. Ele mantém-se centrado na sua referência
decisiva, a atividade humana, sua autoconstrução, e com vistas a aproximações,
concreções, determinações mais precisas, alinha sua análise crítica pelo ângulo do
trabalho, dizendo: “Não nos colocamos como o economista quando quer explicar algo,
colocando-se num estado original imaginário”, (Marx, 1999, p.22-a) ao contrário, “nós
partimos de um fato econômico atual”, visível e notável até para a economia política,
mas não explicado por ela: “o trabalhador se torna uma mercadoria tanto mais barata,
quanto mais mercadoria produz”, ou então, “com a valorização do mundo das coisas,
aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens”, e por fim,
indicando a absoluta restrição à autoprodução humana, observa que “o trabalho não
produz apenas mercadorias, produz também a si mesmo e ao trabalhador como uma
mercadoria, e justamente na mesma proporção em que produz mercadorias em geral”
(Marx, 1999, p 23). O homem é natureza modificada; sua diferenciação em relação à
natureza pura e simples encontra-se em seu produzir humano em relação ao natural,
pois: “Sem dúvida, o animal também produz /.../ Mas só produz o que é estritamente
necessário para si ou para suas crias; produz (o animal) de uma maneira unilateral,
enquanto o homem produz de maneira universal; produz unicamente sob a dominação
da necessidade física imediata, enquanto o homem produz quando se encontra livre da
necessidade física e só produz verdadeiramente na liberdade de tal necessidade; o
animal apenas se produz a si, ao passo que o homem reproduz toda a natureza; o seu
produto (do animal) pertence imediatamente ao seu corpo físico, enquanto o homem é
livre perante seu produto” (Marx, 1999, p 25-a).
Assim, perfilando essa atividade, o trabalho, com as características fundamentais
de alienação e estranhamento, sob a forma da propriedade privada, Marx extrai a
concepção de que “a propriedade privada resulta então da análise do conceito de
trabalho alienado” (Marx, 1999, p.27)., conceito oriundo da economia política, que,
pelo seu lado, embora tome o trabalho como “verdadeira alma da produção /.../ nada
atribui ao trabalho e tudo atribui à propriedade privada” (Marx, apud Mônica H. Costa,
1999, p27-a), por isso, o estranhamento se põe como expressão amplamente social, que
está permeando todas as relações, toda a sociabilidade. Certamente o trabalhador
questiona, diz Marx, se o produto do trabalho não me pertence, a quem pertence então?
Só pode ser a um não trabalhador, aí observa Marx: “Encontramos como produto, como
consequência necessária desta relação, a relação de propriedade do não trabalhador ao
trabalhador e ao trabalho. A propriedade privada, como expressão material resumida
do trabalho alienado, inclui ambas as relações: a relação do trabalhador ao trabalho,
ao produto do seu trabalho e ao não trabalhador, assim como a relação do não
trabalhador ao trabalhador e ao produto do trabalho daquele” (Marx, 1999, p.28-a). E
mais adiante reafirma: “O que é verdadeiro na relação do homem ao seu trabalho, ao
produto do seu trabalho e a si mesmo, é verdadeiro também na relação do homem aos

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outros homens, bem como ao trabalho e ao objeto do trabalho dos outros homens”
(Marx, 1999, p.25-a).
Depois de se deparar com os textos dos pensadores clássicos da economia
política, nos Cadernos de Paris e nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, depois de ter
redigido A Sagrada Família e A Ideologia Alemã, (aqui apenas citadas com vistas à
ambientação intelectual de Marx), juntamente com Engels, consolidando seu acerto de
contas com o idealismo hegeliano e com o materialismo feuerbachiano; depois de ter
exposto nestes textos o estranhamento, a alienação, a divisão do trabalho e a
propriedade privada, aos quais os indivíduos ativos se encontram subordinados; depois
de mostrar a perda de si a que estão submetidos os homens ativos num mundo cujas
relações são as relações da propriedade privada consigo mesma, e não deles próprios;
depois de ter indicado que a propriedade privada se completa na forma do capital e esta
é a forma estranhada e alienada por excelência da produção dos indivíduos, que, muito
ao contrário de tê-la sob seu controle, são por ela controlados, de tal forma que o
produto dos indivíduos, como expressão de sua generidade, aparece-lhes estranho,
convertendo sua própria generidade em algo estranho; depois de identificar que os
indivíduos ativos no trabalho sob o capital, como produtores de todo o valor que se
incorpora como capital encontra-se despojados ao máximo, isto é, são mantidos por
salários restritos à sua subsistência física, Marx expõe essa situação dos trabalhadores,
cinicamente reconhecida na economia política por Ricardo, observando que isto só
pode se dar sob a forma da relação de exploração de uma classe por outra, em que as
contradições entre proprietários e trabalhadores, capital e trabalho, estão conduzidas
como relações naturais, tal qual a relação de servidão, modernizada, porém, pela
concorrência, pela divisão do trabalho, enfim pelo capital.
Avançando na produção intelectual de Marx, no período de crítica originária à
economia política clássica, o texto A Miséria da Filosofia, (Marx, 1976) se notabiliza
entre outras coisas, pelo domínio sobre o tema alcançado por ele. As pretensões
proudhonianas de criticar a economia política clássica, tendo como alvo Ricardo,
padecia de profunda deficiência demonstrada por ele. Ricardo vinha sendo cotado
intelectualmente como referência teórico-econômica pelos socialistas franceses, o que
movia forte incômodo em Proudhon. De forma que resguardar a importância intelectual
de Ricardo das críticas adstringidas de Proudhon conduziu Marx à elaboração de sua
demolidora crítica em Miséria da Filosofia.
A assimilação das teorias ricardianas pelos socialistas tanto franceses (quanto
ingleses) residia no fato de que Ricardo, ao reafirmar o tempo de trabalho como
fundamento do valor das mercadorias, fazia derivar daí o valor da jornada de trabalho,
garantindo sua concepção de equivalência entre o valor da jornada paga aos
trabalhadores e o valor por eles criado na jornada. Nesse ponto era criticado pela
burguesia, pois, de sua proposição decorria o desaparecimento do capital e, portanto, do
valor excedente que lhe correspondia. Os socialistas, pelo seu lado, aferravam-se a tese
de que todo o produto do trabalho deveria pertencer ao trabalhador, e que o erro não se
encontrava na concepção ricardiana, mas na atitude burguesa-capitalista que não pagava
o valor correto do trabalho. Com isso, nascia para os socialistas ricardianos, uma
fundamentação na defesa de uma nova sociedade, onde vigorasse aquela equivalência
em que o produto integral do trabalho pertencesse ao trabalhador. Marx desmontou essa
concepção pueril em seu livro citado, e em vários artigos sobre o tema, articulando suas
críticas a Proudhon, atingindo indiretamente a ingenuidade dos socialistas
proudhonianos.

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Acrescentemos ainda que logo na primeira abordagem de Marx à obra de


Proudhon ele aponta os limites concepcionais de fundo desse autor relatando-os em
carta de 1846 à Annenkov, em que afirma: “Proudhon recorre a um hegelianismo
superficial para dar-se ares de pensador profundo (...) mas quando o Sr. Proudhon
reconhece que não compreende, em absoluto, o desenvolvimento histórico da hu-
manidade — como o faz ao empregar as palavras ribombantes de razão universal,
Deus, etc. — não reconhece, também, implícita e necessariamente, ser incapaz de
compreender o desenvolvimento económico?” ( Marx, 1976, p.170).
Marx encaminha sua crítica explicitando os limites do filósofo francês em
questões fundamentais, perguntando: “Que é a sociedade, qualquer que seja sua
forma? O produto da ação recíproca dos homens. Podem os homens escolher,
livremente, essa ou aquela forma social? Nada disso. A um determinado nível de
desenvolvimento das forças produtivas dos homens, corresponde determinada forma
de comércio e de consumo. A determinadas fases de desenvolvimento da produção,
do comércio e do consumo, correspondem determinadas formas de constituição
social, determinada organização da família, dos estamentos ou das classes; em uma
palavra, uma determinada sociedade civil. A uma determinada sociedade civil,
corresponde um determinado regime político, que não é mais que a expressão oficial
da sociedade civil. Isso é o que o Sr. Proudhon jamais chegará a compreender, pois
acredita que fez uma grande coisa, apelando do Estado à sociedade civil, isto é, do
resumo oficial da sociedade a sociedade oficial.” (Marx, 1976, p.170).
Essa formulação, exposta na carta de Marx citada, será reencontrada com
modificações apenas formais, mas não de conteúdo, na introdução de sua “Contribuição
à Crítica da Economia Política”, o que mostra a correção de Engels na observação de
que em “Miséria da Filosofia” Marx detinha já na consciência uma concepção nova, que
mostrava a articulação real de história e economia. Além disso, Miséria da Filosofia,
por todo seu conteúdo crítico-econômico, pode ser tratada como um texto no qual as
concepções centrais da economia política de Marx foram expressas pela primeira vez,
conforme posição do próprio autor, exposta no prefácio à Contribuição à Crítica da
Economia Política (Marx,1977). Trata-se de um texto no qual Marx aplica diretamente
sua concepção crítica da economia política, depois de compreendê-la estudando seus
clássicos elaboradores, como Smith e Ricardo, em Cadernos de Paris e Manuscritos
Econômicos Filosóficos, em que os confronta com a realidade concreta. Só então pôde
enfrentar as formulações proudhonianas e aplicar-se na demonstração de suas
insuficiências e incongruências com a realidade mesma.
O trabalho Assalariado: estranhamento e mais-valia
Tendo como referência o texto de 1847 de Marx, Trabalho Assalariado e
Capital (Marx, 2010) destacamos alguns aspectos da análise do autor, nesse e noutros
textos, sobre o trabalho, todos escritos e publicados no período de sua produção
intelectual de juventude. Ele expõe, sinteticamente, a relação fundamental da
sociabilidade do capital, a partir da apropriação das energias humanas objetivadas no
processo de produção dos indivíduos apresentando a noção clara de que o trabalho é a
atividade vital do trabalhador, sua exteriorização de vida, mas que posta sob o domínio
do capital, essa atividade se converte em mercadoria, pois, “ele vende esta atividade
vital a um terceiro, para assegurar-se os necessários meios de vida. Sua atividade vital é,
pois, para ele somente um meio para poder existir. Ele trabalha para viver. Ele não
inclui o próprio trabalho em sua vida, ele é muito mais um sacrifício de sua vida. É uma
mercadoria que adjudicou a um terceiro” (Marx, 2010, p.534).

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Observemos que Marx destaca a ausência de fundamentação da economia


política na sustentação de seus argumentos, como ocorre quando a economia política se
apresenta dissimulada por noções de direito: É o caso da propriedade privada, que
aparece sempre como um direito natural (dependente da diligência dos indivíduos), ou
então do direito à propriedade do produto do trabalho alheio pelos proprietários, ou
ainda pelas determinações do direito natural subjacente aos contratos, entre outros.
Na busca pela determinação do trabalho sob a forma capitalista Marx toma como
referência as características essenciais da mercadoria (numa quase antessala teórica de
O Capital), sua produção, comportamento no mercado, subsunção às leis deste, como
concorrência, oferta e procura etc., para explicar o trabalho, a capacidade de trabalho, a
potência do trabalho, a força de trabalho1, como mercadoria subsumida às mesmas
condições de qualquer outra mercadoria.
Esse artigo foi publicado, junto com outros, num momento agudo do
enfrentamento de classe na Europa. Esse momento revolucionário é analisado em vários
artigos da Nova Gazeta Renana, onde Marx mostra que a permanência dessa relação, o
trabalho assalariado, resulta na subordinação da classe trabalhadora ao capitalismo, sua
derrota diante do capital.
Ao perceber que as lutas entre capitalistas e trabalhadores, naquele período,
levavam as vitórias para as mãos dos primeiros, ele procura desvelar as razões para isso,
indicando que estes “podem viver mais tempo sem o trabalhador do que o trabalhador
sem o capitalista” (Marx, 1999, p.2); os capitalistas se unem nos momentos de
enfrentamento, ao passo que a união dos trabalhadores encontra-se proibida por lei, e
qualquer ato nessa direção lhes traz sérias consequências; os capitalistas têm seus
rendimentos oriundos de distintas fontes, como renda fundiária, lucro industrial ou juro,
etc., enquanto o trabalhador mantém-se restrito à única fonte, que é seu trabalho
produtivo que, além de tudo, também produz seu próprio salário. Observemos que em O
Capital, Marx mostra que basta ao capitalista dispor de apenas o primeiro salário, um
investimento que retornará para ele periodicamente, e que ele o reinvestirá
sucessivamente na obtensão do excedente (mais valor)
Marx busca os elementos para sua análise crítica no bojo da própria economia
política, tendo sempre como referência a realidade que confere sua racionalidade
analítica, ou seja, ele penetra o interior da economia política sublinhando suas
contradições, observando que a propriedade privada se põe como ponto de partida da
economia política, mas que ela não a explica, e embora ela esteja diante do metabolismo
fundante da sociedade, extrai dessas relações sociais de produção leis gerais e abstratas,
que também não são por ela explicadas. O argumento da economia política inverte a
ordem das coisas, pois, embora conclua que as vicissitudes econômicas fundam-se no
interesse dos capitalistas, este pressuposto é que deveria ser explicado como resultado
de sua ação, já que ela, afirma que “os únicos motivos que põe em movimento a
economia política são a sede de riqueza, a guerra entre os avaros, a competição” (Marx,
1999, p.22-a), como se tudo isso fosse natural, sem perguntar ou compreender o que os
engendra, e sem revelar que é o desgaste humano da atividade multimodal da classe
trabalhadora que cria o excedente necessário à “guerra entre os avaros”, a competição,
etc.
Avançando em sua análise ele destaca que a concepção capitalista sobre o
trabalho leva a tratá-lo como uma parte do capital, como é o caso, na composição
1
Engels na reedição da obra em 1891 mostra, em várias passagens, que Marx utiliza o termo trabalho
com o evidente sentido de força de trabalho.

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orgânica do capital em que a força de trabalho é expressa como parcela v (variável) do


capital produtivo, concepção própria da economia política que Marx demonstra em O
Capital.
Marx indica que para os capitalistas “o capital não é senão trabalho acumulado”
e, no caso de Ricardo o tempo de trabalho acumulado se põe sem que ele diferencie
trabalho vivo e trabalho morto, sem indicar a existência de relações sociais de produção
necessárias para a conversão do trabalho vivo em capital. Assim, para a economia
política “o salário faz parte dos custos do capital”, ou ainda, “no que diz respeito ao
operário, o trabalho é a reprodução de seu capital”. Ao explicar o trabalho dessa forma,
a economia política patenteia a conversão dos homens em formas de ser do capital, e
“no que diz respeito ao capitalista, igualmente é um fator de atividade do capital”, fato
que naquele momento o capitalista ainda mantinha-se como classe útil no interior das
relações do capital.
Por outro lado, embora o trabalhador não ganhe quando os capitalistas têm
vantagens, perde, necessariamente, quando estes estão em situação desfavorável;
quando a riqueza produzida socialmente entra em declínio, quem absorve em sua pessoa
os danos dessa situação é o trabalhador; quando a riqueza se eleva, ele tem um momento
de vantagem, pois a concorrência entre os capitalistas favorece uma elevação salarial;
entretanto, diz ele, a contradição está em que “a alta de salários desperta no trabalhador
o mesmo desejo de enriquecimento que no capitalista, mas só o pode satisfazer pelo
sacrifício de seu corpo e espírito” (Marx, 1999, p.3-a), os obriga a uma alienação maior
de sua liberdade e uma subsunção maior ao trabalho, donde resulta uma redução de seu
tempo de vida, “uma morte prematura, sua degradação em máquina, a sujeição ao
capital que se acumula em ameaçadora oposição a ele” (Marx, 1999, p.3-a).
Vale indicar que Marx expõe com mordacidade o caráter inumano da economia
política dizendo: “Visto que, segundo Smith, ‘uma sociedade em que a maioria sofre
não é feliz’, e já que [mesmo] a mais próspera situação da sociedade origina o
sofrimento da maioria, /.../, segue-se que a infelicidade social constitui o objetivo da
economia política” (Marx, 1999, p.4).
De maneira que é o trabalho que resulta sempre prejudicado; se se aprofunda a
divisão do trabalho, a consequência é a unilateralidade e dependência do trabalhador,
pois aumenta a concorrência entre os trabalhadores, e entre eles e as máquinas; isto gera
expansão da indústria, da produção, dos mercados etc., conduzindo à superprodução, e
desta ao refluxo para o trabalhador no que se refere a emprego, salário etc.
Com mordacidade, também, ele critica a posição da economia política, na
formulação smithiana de que não são as pedras, nem os metais preciosos que
compraram a riqueza social, pois “tudo foi é comprado com o trabalho”. Diz Marx: ao
contrário de o trabalho poder comprar tudo, ele se vê compelido a vender tudo, até suas
qualidades humanas.
Marx observa que para a economia política o trabalhador não é mais que uma
besta de carga, pois vive de um trabalho abstrato e unilateral, e acrescenta: “A economia
política não se ocupa dele no seu tempo livre como homem, mas deixa este aspecto para
o direito penal, os médicos, a religião, as tabelas estatísticas, a polícia e o funcionário do
hospício” (Marx, 1999, p.5).
Diante destas considerações ele questiona: “Qual o significado, para o
desenvolvimento da humanidade, da redução da maior parte dos homens ao trabalho
abstrato?”, e responde: não é senão a manutenção da maior parte da população em
condições de restrita subsistência, uma desigualdade profunda lançada no seio da

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sociedade, em que a maior parte dos indivíduos responsáveis pela produção,


diversificação e ampliação das riquezas humanas, ampliação das necessidades humano
societárias mal consegue suprir suas necessidades básicas e as de sua família.
Vemos então como ele responde essa questão: o “significado no
desenvolvimento da humanidade” não é senão a manutenção da maior parte da
população em condições de restrita subsistência, a profunda desigualdade lançada no
seio do “desenvolvimento da humanidade”, em que a maior parte dos indivíduos
responsáveis pela produção, diversificação e ampliação das necessidades humano-
societária mal consegue suprir suas necessidades básicas e as de sua família.
Mais adiante, perspectivando a emancipação humana, observa: “O salário é a
consequência direta do trabalho estranhado e o trabalho estranhado é a causa direta da
propriedade privada, consequentemente, o desaparecimento de um dos termos arrasta
consigo o outro” (Marx, p.27-a). Às pretensões reformistas com relação aos salários,
Marx pergunta nos termos seguintes: “Que erros cometem os reformadores en détail,
que ou desejam elevar os salários e por este meio melhorar a condição da classe
trabalhadora, ou (como Proudhon) consideram a igualdade de salários como objetivo da
revolução social?” (Marx, 1999, p.5) e acrescenta que a concepção da economia política
sobre o trabalho é a de que este “aparece apenas sob a forma de atividade em vista de
um ganho” (Marx, 1999, p.5), portanto, a economia política reduz o trabalho apenas à
necessidade do trabalhador.
Como aponta Marx, as individualidades abstratamente postas pelos economistas
não encontram qualquer relação com seu gênero, ao passo que, para Marx, “O homem –
por mais que seja um indivíduo particular, e justamente é sua particularidade que faz
dele um indivíduo e um ser social individual real – é, na mesma medida, a totalidade, a
totalidade ideal, a existência subjetiva da sociedade pensada e sentida para si, do mesmo
modo que também na realidade ele existe tanto como contemplação e gozo da existência
social, quanto como a totalidade da manifestação da vida humana” (Marx, 1999, p.36).
Perfilando, contudo, a atividade trabalho, com as características fundamentais de
alienação e estranhamento, sob a forma da propriedade privada, Marx extrai a
concepção de que “a propriedade privada resulta então da análise do conceito de
trabalho alienado” (Marx, 1999, p.27), conceito oriundo da economia política, que,
pelo seu lado, embora tome o trabalho como “verdadeira alma da produção /.../ nada
atribui ao trabalho e tudo atribui à propriedade privada” (Marx, 1999, p.27-a).
Cabe ressaltar que as formas de estranhamento nesta sociabilidade, são
assimiladas pela economia política como forma natural de ser dos indivíduos. Desse
ponto de vista a economia política representada por Smith, assume a concepção de que
os indivíduos encontram-se subsumidos à malha categorial de um estado natural
fundado nos sentimentos morais. De sorte que a noção de uma moral natural substitui a
objetividade humana, e, “por isso, a economia política, apesar de sua aparência
mundana e prazerosa, é uma verdadeira ciência moral. A mais moral das ciências. A
autorrenúncia, a renúncia à vida e a todo carecimento humano é seu dogma
fundamental” (Marx, 1999, p.27).
Marx avançou, neste texto, para compreensão crítica muito significativa; vemos,
antecipadamente, formarem-se as condições basilares de sua concepção sobre a essência
do capital, quando observa: “O trabalhador recebe meios de subsistência em troca de
seu trabalho, mas o capitalista, em troca de seus meios de subsistência, recebe trabalho,
a atividade produtiva do trabalhador, a força criadora, pela qual o trabalhador não
apenas repõe o que consome, mas confere ao trabalho acumulado um valor superior ao

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que ele possuía anteriormente” (Marx, 2010, p.544). E na confirmação do custo humano
desta sociabilidade regida pelo capital, ele aduz as inevitáveis consequências para o
trabalhador: “O trabalhador recebe do capitalista uma parte dos meios de subsistência
disponíveis. Para que lhe servem esses meios de subsistência? Para o consumo
imediato. Mas, assim que eu consumo meios de subsistência, eles estão
irremediavelmente perdidos para mim, a menos que utilize o tempo durante o qual esses
meios me mantêm vivo para produzir novos meios de subsistência, para criar por meu
trabalho, durante o consumo, novos valores no lugar daqueles valores destruídos pelo
consumo. Mas o trabalhador transferiu ao capital justamente essa preciosa força
reprodutiva em troca dos meios de subsistência recebidos. Portanto, perdeu-a para si
mesmo” (Marx, 2010, p.554).
Marx procurará evidenciar o estranhamento que resulta das relações no trabalho,
sob a propriedade privada, destacando que aquilo com que os indivíduos se relacionam
não tem existência para eles, evidentemente lhe é estranho, não faz parte de sua
essência, de sua vida, está alienado dele.
Marx reafirma o caráter inumano da economia política indicando que: “O seu
caráter estranho aparece nitidamente no fato de se fugir do trabalho como da peste,
quando não existe nenhum constrangimento físico ou de qualquer outro tipo” (Marx,
1999, p.24-a). E cotejando com a alienação religiosa, ele mostra a perda de si do homem
observando: “Assim como na religião a atividade espontânea da fantasia humana /.../
reage sobre o indivíduo independentemente dele, como uma atividade estranha, divina
ou diabólica, da mesma maneira a atividade do trabalho não é sua atividade própria.
Pertence a outro e é perda de si mesmo” (Marx, 1999, p.24-a).
Mas o homem é como vimos um ser genérico, a perda de si no processo social
de produção, de exteriorização de vida, apresenta-se como perda de sua essencialidade;
esta essencialidade, que é seu gênero, é convertida, reduzida a meio de subsistência, o
que significa que “o homem estranho ao gênero faz de sua vida genérica um meio de
vida individual” (Marx, 1999, p.25) significa ainda que o trabalhador não reconhece a
sociedade senão como meio de sua subsistência e não a condição de sua humanização.

O trabalho assalariado e o capital

Em Trabalho Assalariado e Capital Marx avança na compreensão da base


fundante da exploração do trabalho pelo capital. Ele insere nesse texto o conceito
capacidade de trabalho distinguindo-o do conceito de trabalho em geral, impreciso e
inespecífico. Esta capacidade é uma categoria nova em relação ao trabalho em geral,
tem o formato de mercadoria, pois é comprada e vendida, possui um valor. Essa
capacidade é adquirida pelo capitalista com a finalidade de produzir (trabalhar). Resulta
dessa relação produtos que serão de propriedade daquele que comprou essa capacidade,
de tal maneira que o valor pelo qual foi comprada, reaparece nas mãos do capitalista
com um excedente pelo qual o proprietário dessa capacidade nada recebeu. Com isso,
simplesmente, Marx da o passo decisivo na definição do capital como uma relação
social desigual economicamente, mas uma desigualdade dissimulada pelo direito. Ele
aprofundara, com vários desdobramentos essa temática fundamental que será concluída
na chamada obra de maturidade O Capital. Trata-se do tema central da crítica da
economia política, o mais valor, cuja demonstração, nesse texto, ainda sem uma
nomenclatura definida revela já sua elevada compreensão sobre a economia política,
compreensão com a qual poderá criticá-la na radicalmente.

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O capital produtivo é já, nesse texto, uma referência incontornável para as


análises da relação capital-trabalho, no percurso da expansão do valor, do capital. Marx
expõe aqui, num quadro sintético, a relação fundamental da sociabilidade do capital, a
partir da apropriação das energias humanas objetivadas no processo de sua atividade
vital, convertida em capital. Observa ele então que “O capitalista é sempre livre para
empregar o trabalho e o operário se vê obrigado a vendê-lo. O valor do trabalho fica
completamente destruído se não for vendido a todo instante” (Marx, 1999, p.7-a). De
maneira que a reprodução do valor dessa capacidade de trabalho fica na dependência
de sua venda ao capitalista, isto é: a vida do trabalhador tem sua reprodução dependente
da venda do valor de sua capacidade de trabalho. E o que é o valor do trabalho? Algo
que, diferente “das autênticas mercadorias /.../ não pode ser nem poupado, nem
acumulado”, pois, “O trabalho é a vida e se a vida não for todos os dias permutados por
alimento, depressa sofre danos e morre” (Marx, 1999, p.7-a).
Outra das preocupações de Marx reveladas nesse artigo é a influência do
crescimento do capital produtivo na determinação do salário. A primeira questão posta
por ele é a inevitável acentuação da concorrência entre os operários, que se põe de
várias formas e por várias razões: “A maior divisão do trabalho capacita um trabalhador
a fazer o trabalho de 5, 10, 20; ela multiplica, pois, a concorrência entre os
trabalhadores em 5, 10, 20 vezes. Os trabalhadores concorrem entre si não apenas
vendendo-se um mais barato que o outro; eles concorrem entre si quando um executa o
trabalho de 5, 10, 20, e a divisão do trabalho introduzida e sempre ampliada pelo capital
obriga os trabalhadores a concorrer deste modo entre si” (Marx, 2010, p. 555). Ademais,
a divisão do trabalho simplifica as operações produtivas da indústria, proporcionando a
possibilidade de alocação de trabalhador com nenhuma ou quase nenhuma formação;
isto resulta em que “A habilidade específica do trabalhador se desvaloriza. Ele é
transformado em uma força produtiva simples, monótona, que não precisa pôr em jogo
energias intensas, sejam físicas ou espirituais. Seu trabalho torna-se um trabalho
acessível a todos. Em decorrência, é pressionado por concorrentes por todos os lados, e
ademais lembramos que quanto mais simples, quanto mais fácil de aprender é o
trabalho, quanto menor o custo de produção requerido pelo aprendizado, tanto mais
baixo cai o salário, pois, como o preço de qualquer outra mercadoria, ele é determinado
pelos custos de produção” (Marx, 2010, p. 555)
Por outro lado, o salário não se encontra determinado apenas “pela massa de
mercadorias” pela qual pode se trocar; “outras relações devem ser consideradas” (Marx,
2010, p. 547). Ele tem uma determinação pelo seu preço em dinheiro, mas que, a partir
dela, outras relações se desdobram necessariamente nos marcos do complexo monetário
em que se encontra o dinheiro. Marx toma, como exemplo, as alterações que atingiram
o valor do ouro e da prata no século XVI, com o afluxo desses metais para a Europa,
vindos das minas descobertas nas Américas. E mostra que, com a queda do valor desses
metais na Europa e a manutenção do valor das mercadorias lá produzidas,
considerando-se que os trabalhadores continuaram a receber em salário as mesmas
quantidades daqueles metais, em salário, este reduziu-se proporcionalmente. Certamente
essas desproporcionalidades dos preços ocorrem com todas as mercadorias, mas
nenhuma outra mercadoria sofre danos à sua existência como ocorre com essa
mercadoria intrínseca aos indivíduos trabalhadores sob o capital. Marx expõe outras
relações a que estão sujeitos os salários em dinheiro: “Tomemosnum outro caso. No
inverno de 1847, graças a uma má colheita, os preços dos meios de subsistência
indispensáveis, trigo, carne, manteiga, queijo etc., aumentaram significativamente.

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Suponhamos que os trabalhadores tenham continuado a receber a mesma quantia de


dinheiro por seu trabalho. Seu salário não caiu? Certamente. Pelo mesmo dinheiro
obtiveram em troca menos pão, carne etc. Seu salário caiu, não porque o valor da prata
houvesse diminuído, mas porque o valor dos meios de subsistência havia aumentado”
(Marx, 2010, p. 548). Ademais, “Suponhamos, finalmente, que o preço em dinheiro do
trabalho permaneça o mesmo, enquanto o preço de todos os produtos agrícolas e
manufaturados, graças à utilização de novas máquinas, estação mais favorável etc.,
tenha caído. Com o mesmo dinheiro, os trabalhadores poderiam comprar, então, mais
mercadorias de todo gênero. Portanto, seu salário aumentou, exatamente porque seu
valor em dinheiro não se modificou” (Marx, 2010, p. 548).
De maneira que a elevação ou queda dos salários têm, além das lutas operárias,
que operam evidentemente para sua elevação, determinações que se definem no bojo
das relações de produção próprias do capital, o que leva Marx à conclusão de que o
“preço em dinheiro do trabalho”, que não é outra coisa senão o salário nominal, “não
coincide, pois, com o salário real”, que não é nada além de “a quantidade de
mercadorias que é realmente dada em troca do salário” (Marx, 2010, p. 548).
Num outro ângulo de observação Marx põe em evidência a relação entre salário
real e salário relativo. A primeira expressão é diretamente o preço do trabalho em
relação ao preço das mercadorias; já o salário relativo, diferentemente, constitui a
relação entre o preço do trabalho imediato, vivo, e o preço do trabalho acumulado, que
se define pelo valor relativo do salário e do capital, ou “o valor recíproco de capitalistas
e trabalhadores” (Marx, 2010, p. 548). O que significa isto? Significa que “O salário
real pode permanecer o mesmo, pode inclusive aumentar, e o salário relativo, não
obstante, cair. Suponhamos, por exemplo, que os preços de todos os meios de
subsistência baixaram em 2/3, enquanto o salário diário baixou somente em 1/3,
portanto, por exemplo, de 3 francos para 2. Embora o trabalhador disponha, com estes 2
francos, de maior quantidade de mercadorias do que antes com 3 francos, ainda assim
seu salário diminuiu em relação ao lucro do capitalista. O lucro do capitalista (por
exemplo, do fabricante), aumentou em 1 franco, isto é, por uma quantia menor de
valores de troca que ele paga ao trabalhador, o trabalhador deve produzir uma
quantidade maior de valores de troca do que antes. O valor do capital em relação ao
valor do trabalho subiu” (Marx, 2010, p. 549). Marx aqui já expõe o significado e
importância da forma relativa do excedente a favor do capital, ele expõe aqui, sob a
forma dinheiro, o que será o mais-valor relativo que ele demonstra em O Capital sob
forma de tempo (necessário e excedente).
O que mostra que as relações do valor de troca do trabalho enredam-se numa
complexidade mercantil que se insere ao lado das lutas dos trabalhadores, das lutas de
classe e que são determinações próprias da produtividade e do mercado, para além da
luta de classe. Vale aduzir também que estas relações demonstradas por ele, em que o
movimento do preço do trabalho, do salário, coloca-se inversamente à produtividade do
trabalho, e que mesmo assim os capitalistas mantêm-se em vantagem, será amplamente
desenvolvido em O Capital.
Observemos que o avanço na compreensão e significado da relação capital-
trabalho levou Marx a desenvolver uma protoforma do mais-valor: “Tomemos um
exemplo: um arrendatário paga a seu jornaleiro 5 vinténs de prata por dia. Por 5 vinténs
de prata, ele trabalha no campo do arrendatário durante todo o dia e lhe assegura, assim,
uma receita de 10 vinténs de prata. O arrendatário não recupera somente o valor
transferido ao jornaleiro; ele o duplica. Portanto, ele utilizou, consumiu os 5 vinténs de

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prata pagos ao jornaleiro de uma maneira frutífera, produtiva. /.../ Os 5 vinténs de prata
foram, portanto, consumidos de uma dupla forma, reprodutiva para o capital, pois
foram trocados por uma força de trabalho que gerou 10 vinténs de prata, improdutiva
para o trabalhador, pois foram trocados por meios de subsistência que desapareceram
para sempre e cujo valor só poderá reaver repetindo a mesma troca com o arrendatário.
Portanto, o capital pressupõe o trabalho assalariado, o trabalho assalariado pressupõe
o capital. Eles se condicionam reciprocamente; eles se geram reciprocamente” (Marx,
2010, p. 545).
Marx indica também, a ausência do que é fundamental na determinação do
capital, a relação social que o determina, dando como exemplo o seguinte: “O que é um
escravo negro? Um homem da raça negra. Uma explicação vale a outra. Um negro é um
negro. Só se torna um escravo em determinadas condições” (Marx, 2010, p. 542). o que
obriga à necessária compreensão de que as relações sociais é que determinam sua forma
de ser social.
Dessa forma para ele as relações sociais são a própria sociabilidade humana, a
sociedade, e noutro exemplo afirma: “Uma máquina de fiar algodão é uma máquina de
fiar algodão. Só em determinadas relações se torna capital. Excluída dessas condições,
ela é tão pouco capital como o ouro é em si e por si dinheiro ou o açúcar é o preço do
açúcar” (Marx, 2010, p. 542). Desta forma, “o capital não é, portanto, somente uma
soma de produtos materiais, é uma soma de mercadorias, de valores de troca, de
grandezas sociais” (Marx, 2010, p. 543). De maneira que “É exclusivamente o domínio
do trabalho acumulado, passado, objetivado sobre o trabalho imediato, vivo, que
converte trabalho acumulado em capital” (Marx, 2010, p. 544).

Referências

Marx, K. Cuadernos de Paris [Notas de Lectura de 1844]. México: Ediciones


Era, 1974.
________ Manuscritos Econômico-Filosóficos. Tradução de Mônica H. Costa,
apresentado como anexo de sua dissertação de mestrado A diferença entre as categorias
Lebensäusserung, Entäusserung, Entfremdung e Veräusserung nos Manuscritos
Econômico-Filosóficos de Karl Marx de 1844, UFMG, 1999.
________“Trabalho Assalariado e Capital”, in A Nova Gazeta Renana. São
Paulo: Educ, 2010.
________“Trabajo Asalariado y Capital”, in Marx, K. e Engels, F. Escritos
Económicos Menores. México: Fondo de Cultura Económica, 1987.
________Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Martins
Fontes, 1977.
________Miséria da Filosofia. São Paulo: Grijalbo, 1976.
________A Sagrada Família, ou Crítica da Crítica Crítica. Lisboa/São Paulo:
Editorial Presença-Martins Fontes, s/d.
________O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
________O Capital – Capítulo VI Inédito. São Paulo: Ciências Humanas, 1978.

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DIREITO E ECONOMIA NOS ARTIGOS DE K. MARX


PARA A NOVA GAZETA RENANA1

Lívia Cotrim
Centro Universitário
Fundação Santo André
liviacotrim@uol.com.br

Resumo
Examinando as relações entre modernização do estado – incluindo a legislação e a
magistratura – e as transformações econômicas que aquela requer, numa Prússia que
ainda conserva relações semi-feudais, os artigos marxianos escritos para a Nova Gazeta
Renana (01/06/1848 a 19/05/1849) exibem, por vários ângulos, os vínculos das
transformações econômicas com uma classe particular e com as relações sociais em
geral, bem como com o processo revolucionário. Com isso, demonstra sua condição
determinada, o que não lhe retira importância nem papel efetivo. Sendo necessário nas
sociedades cindidas em classes sociais, evidencia-se o elo entre o direito, o poder e a
força, seja nas formas de estado mais abertamente ditatoriais, seja nas democráticas.
Palavras-chave: Karl Marx; direito; política; revolução.

LAW AND ECONOMICS IN K. MARX’S ARTICLES


FOR THE NEW RHENISH GAZETTE

Abstract
By examining the relations between the modernization of the state – including
legislation and the judiciary – and the economic changes that it requires, in a Prussia
that still bears semi-feudal relationships, Marxian articles written for the New Rhenish
Gazette (06/01/1848 to 05/19/1849) show, from various angles, the bonds of those
economic changes with a particular class and with social relations in general, as well as
with the revolutionary process. Thus Marx demonstrates their determined condition,
what does not belittle their importance and effective role. As necessary in societies
divided in social classes, the bond among law, power and force is made explicit both in
more openly dictatorial forms of state and in democratic ones.
Keywords: Karl Marx; Law; Politics; Revolution.

INTRODUÇÃO

Em 1848, pouco depois da publicação do Manifesto do Partido Comunista,


escrito por Marx e Engels para a recém-criada Liga dos Comunistas, têm início
explosões revolucionárias que se estendem por toda a Europa. Em fins de março
daquele ano, o comitê central da Liga dos Comunistas elabora sua plataforma política,
as Reivindicações do Partido Comunista na Alemanha, que abarcam as transformações
mais radicais então concebíveis do ponto de vista do desenvolvimento burguês e ao
mesmo tempo ultrapassam esse limite, apontando para a revolução proletária. Diante da
fragilidade do proletariado alemão e da Liga, Marx, Engels e outros membros decidem
atuar na ala esquerda do partido democrata, ingressando na Associação Democrática de
1
Este artigo é uma versão modificada de um capítulo de minha tese de doutorado: Marx: política e
emancipação humana – 1848-1871. São Paulo: PPGCS – PUC-SP, 2007.

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Colônia e editar um jornal, a Nova Gazeta Renana (01/06/1848 a 19/05/49) como


instrumento de ação política. Em vários dos artigos que escreveu para esse jornal, Marx
trata de alguns aspectos do direito e suas relações com a economia no contexto do
processo revolucionário e contra-revolucionário na Prússia, no qual se confrontavam
duas formas de sociedade: a feudal ou semi-feudal e a capitalista. Assim, é importante
ter em mente o panorama desses processos, bem como dois aspectos do pensamento
marxiano: a determinação ontonegativa da politicidade (Chasin, 2000) e a questão das
formas particulares de objetivação do capitalismo.

I. A CRÍTICA DA POLITICIDADE E AS FORMAS PARTICULARES DE


OBJETIVAÇÃO DO CAPITALISMO

Ao fundar a Nova Gazeta Renana, Marx já desenvolvera as três críticas


ontológicas que constituem o processo de emersão de seu pensamento próprio: as
críticas da politicidade, da especulação e da economia política2.
Contra Hegel, cuja filosofia do direito era a expressão mais alta da
determinação ontopositiva da politicidade, vale dizer, da afirmação da necessidade do
estado, de sua perenidade e de sua condição de lócus da racionalidade, da liberdade e da
comunidade, Marx já afirmara a busca da “lógica da coisa”, ao invés da “coisa da
lógica”, bem como apreendera os homens, suas relações e sua consciência como
produtos da atividade prática dos indivíduos sociais. Recusando ao estado enquanto tal,
ainda que plenamente posto, o estatuto que Hegel lhe atribuíra, Marx descobre sua
determinação pela sociedade civil e sua complementaridade com esta: originando-se da
divisão social do trabalho, o estado é a encarnação autonomizada do interesse coletivo
contraposto aos interesses particulares, a corporificação do poder social dos indivíduos
previamente separado deles. O estado moderno e seu chão social, o capital, são as
expressões máximas dessa cisão, no bojo da qual a força política se evidencia como
coágulo de forças sociais, genéricas, usurpadas de seus produtores e concentradas.
Donde a percepção marxiana de que a necessidade do estado e da política em geral é tão
histórica quanto a das relações sociais materiais que os geram: as classes sociais,
expressões da divisão social do trabalho resultante do baixo desenvolvimento das forças
produtivas, das capacidades do indivíduo social. A determinação ontonegativa da
politicidade é a reprodução intelectual desta natureza real das instituições e relações
políticas, e a consequente identificação da alternativa, gestada objetivamente pela
ampliação das capacidades produtivas sob a regência do capital, de uma revolução que
liquide a politicidade ao suprimir todo o modo de vida atual.
Essa revolução social, que resulta na emancipação humana, se distingue da
revolução política, que não ultrapassa os limites da ordem do capital, limites que não
são um seu defeito, mas sim sua consumação. No entanto, reconhece sua importância e
a considera um grande progresso, “a última forma da emancipação humana dentro da
ordem do mundo atual”; a república democrática, forma acabada da emancipação
política, se configura como a melhor forma de estado para o proletariado no interior dos
limites da sociabilidade do capital, por ser a que permite levar as contradições deste às
últimas consequências, isto é, à revolução. Longe de significar a recusa liminar de
qualquer luta política, a determinação ontonegativa da politicidade exige uma alteração

2
São críticas ontológicas por tratarem prioritariamente de modos de ser, incluindo a apreensão da gênese,
da necessidade, do desenvolvimento e da eventual desaparição de algo existente; formas de pensar
determinadas são aceitas ou recusadas conforme sejam capazes ou não de os reproduzir.

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também radical nos modos, meios e objetivos dessa luta. Ainda que referida às
instituições políticas ou as tendo como foco, a atuação deve buscar suas raízes sociais, e
transformá-las: deve ser metapolítica (Chasin, 2000), portanto não pode se restringir à
esfera, à lógica ou aos instrumentos políticos.
Essa crítica da política (assim como a da especulação e da economia política)
abrange a um tempo a realidade apreendida e a(s) teoria(s) correspondente(s), razão pela
qual não deu nem poderia dar lugar a uma nova teoria política, sob cuja ótica fossem
observadas as situações concretas, seja porque o objetivo é apreender a lógica da coisa,
isto é, o objeto tal como existe por si mesmo, seja porque aquela crítica envolve a
percepção dos limites da razão política. Ao invés de uma teoria política, há em Marx um
exame que descortina e reproduz mentalmente as determinações, conexões, processos
etc. constitutivos do existente, trabalho possibilitado pela maturação e tensionamento do
próprio objeto.
A crítica ontológica à especulação, simultânea à crítica da política, assenta-se
no reconhecimento da prioridade ôntica do mundo sensível e da determinação objetiva e
subjetiva dos homens, partícipes desse mundo, por sua atividade sensível. Também em
contraposição a Hegel, Marx observa que o ser de algo existente reside nele próprio e
consiste em suas próprias determinidades, bem como que a historicidade é categoria de
todas as coisas, naturais e sociais. Ambas as críticas acarretam a necessidade de
submeter à análise as relações produzidas pela atividade prática dos homens, portanto à
crítica da economia política, entendida como a “anatomia da sociedade civil” (Marx,
1973), e iniciada já em 1844.
Tais lineamentos conduzem à identificação dos modos e formas particulares de
existência. Desde 1844, Marx aborda a “miséria alemã”, o modo particular pelo qual o
capitalismo vai se pondo na Alemanha, e as demandas específicas assim postas para a
classe trabalhadora, especialmente quando o capitalismo tornava-se já o velho, o que as
jornadas de junho de 1848 em Paris explicitarão. Esse modo particular de
desenvolvimento se demarcava pelo atraso e pelo “desajuste geral”, evidenciados na
forma das lutas de classes: mesclavam-se naquela ocasião batalhas que, em outros
povos, se deram em momentos distintos: a do período de unificação nacional e
centralização política, aquela posteriormente travada contra o absolutismo e, ao mesmo
tempo, o combate efetivamente contemporâneo, o do proletariado contra a burguesia
(Marx, 1977).
Diante disso, é essencial a distinção entre revolução social e revolução política;
nesta, uma parte da sociedade civil se emancipa e instaura sua dominação, o que só
pode ocorrer se essa parte for reconhecida como representante geral da sociedade,
encarnando em si a “potência da libertação”, em contraposição a outra parcela que
concentre “todos os defeitos e limites da sociedade”. Mas essas condições de
possibilidade nem sempre estão presente, e não estavam na Alemanha, em que se
mesclavam relações sociais feudais e capitalistas, submetendo os alemães a uma dupla
opressão. A essa mescla correspondia que nem a nobreza encarnava todos os males
sociais, nem a burguesia era ou se dispunha a ser a encarnação da luta contra eles.
Ademais, Marx entende que a própria modernização alemã constituiria um
anacronismo, pois a revolução burguesa, ainda que triunfante, já não mais significaria a
vitória de uma nova sociedade, mas sim a sobrevivência da velha, contra a qual os
povos modernos já lutavam. Assim, a emancipação parcial, meramente política,
mostrava-se ali problemática e sua eventual consecução redundaria em contornos

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distintos dos peculiares às formas clássicas, apontando já para a emancipação humana


geral.
Nesse quadro, em 18 de março de 1848, estimulado pela tempestade que
rebentara em Paris um mês antes, o povo berlinense desencadeia contra a monarquia
absolutista, objetivando a unificação alemã, a erradicação das relações sociais feudais e
o consequente estabelecimento das burguesas, modernas; não se tratava, pois, de uma
batalha do trabalho contra o capital. Desde o início, combatem três forças:
A nobreza de origem feudal – os grandes proprietários de terras (junkers) –,
que conservava grande parte de seus privilégios; embora a agricultura já fosse
“explorada industrialmente, e os velhos senhores feudais decaíram a fabricantes /.../ a
pessoas que comercializam com produtos industriais /.../ na prática se tornam
burgueses” (Marx, 2010, p. 462), os junkers economicamente aburguesados
continuavam apegados aos velhos privilégios econômicos e sociais e a seu domínio
político. Detentores da maioria dos postos na burocracia e no exército, recusavam-se a
se submeter à burguesia, bem como a perder a isenção de impostos, as indenizações pela
abolição de alguns de seus antigos tributos e, é óbvio, a perder suas terras para os
camponeses. Tal aristocracia era o “chão social verdadeiro e natural” da coroa. A
passagem da monarquia absolutista para uma monarquia constitucional, burguesa –
formas políticas de sociedades específicas – exigiria alterações nas relações de produção
e intercâmbio.
A burguesia, numericamente pequena e pouco concentrada, mas em contínuo
crescimento desde 1815, de sorte que os governos eram compelidos a inclinar-se, ao
menos, perante os seus interesses materiais mais imediatos. Para assumir o poder
político, o partido burguês, com a burguesia industrial à frente, precisaria entrar em
choque com a coroa e seus fundamentos sociais, em suma, com o partido feudal.
O povo, representado pelo partido democrático e composto pelos pequenos
comerciantes – a maioria da população das cidades –, operários, na sua maior parte
empregados de manufaturas pré-industriais, embora houvesse um núcleo operário
moderno nos distritos em que imperava a grande indústria, e pelo campesinato, que
constituía a maioria da população e se subdividia em diversas frações: grandes e médios
camponeses; pequenos camponeses livres, predominantes na região do Reno e em
algumas outras poucas localidades, cuja propriedade estava em geral fortemente
gravada por hipotecas; camponeses servis; e trabalhadores agrícolas (Engels, 1981).
Embora de caráter burguês, as conquistas pretendidas pela revolução
dependiam da ação do povo, do partido democrático, pois a burguesia não se dispunha a
revolucionar, sequer em seu próprio interesse, as relações econômico-sociais (e, com
elas, as políticas). Entretanto, quem empolga o poder é o partido burguês, de sorte que
já de início o povo é derrotado. Expressões dessa derrota são a conservação da
monarquia e a convocação, ao lado da Assembleia de Frankfurt, que deveria ser a
assembleia constituinte da unificação alemã, de diversas assembleias constituintes
regionais, das quais a mais significativa foi a Assembleia Nacional Prussiana, que Marx
e Engels denominaram de Assembleia Ententista por sua inclinação conciliatória.
Ao contrário de qualquer intenção revolucionária, os “cretinos ideológicos” da
burguesia defenderão, ao longo de 1848, o “terreno do direito” como ponto de partida
necessário de todas as transformações; mas tal terreno era, “na verdade, o terreno do
direito prussiano”, isto é, o direito existente antes da revolução de março, que
expressava e garantia justamente a situação contra a qual se batera a revolução. O
“terreno do direito” significava que a revolução não havia conquistado seu terreno e que

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a velha sociedade não havia perdido o seu. Apelar a ele, ao direito preexistente,
defender “leis pertencentes a uma época social passada” (Marx, 2010, p. 463), é recurso
próprio a posições retrógradas, com o qual a burguesia nega desde o início a revolução,
pretendendo, por intermédio do ministério Camphausen – fundamentalmente burguês –,
garantir os interesses de sua classe; assim, aquele ministério “semeou a reação no
sentido da grande burguesia” ao “privar a revolução de seus frutos democráticos”
(Marx, 2010, p. 113), alijando o povo que havia lutado por ela. A intenção, vocalizada
pela “teoria ententista”, era limitar as transformações. Mas, contrapondo-se ao povo, a
burguesia viu-se simultaneamente em choque com duas outras classes; incapaz de
sustentar a luta em duas frentes, e vendo-se obrigada a escolher entre a revolução, isto é,
abrir espaço para o povo, e a contra-revolução feudal, acolhe esta última alternativa.
Marx frisa a raiz desta opção: o medo da insurreição popular. A teoria ententista e a
defesa do terreno do direito são as expressões teóricas da aliança prática realizada pela
burguesia com as forças feudais, oferecendo uma interpretação da realidade e nela
sustentando a alternativa escolhida.
A defesa do terreno do direito contra o terreno revolucionário, a negação dos
resultados alcançados pela revolução em sua vitória inicial, e da legitimidade e
necessidade de continuá-la, implicava a tentativa de empreender a transição para o novo
a partir do terreno do direito – parte constitutiva da politicidade –, isto é, estritamente
pelo interior da esfera política existente, de suas formas e regras. Fica claro o nexo entre
a perspectiva conciliatória e a forma política que ela toma.
Camphausen instrumentaliza a teoria ententista e o terreno do direito contra o
povo, isto é, busca conscientemente lográ-lo, exatamente porque acredita nessa teoria,
crê que conseguirá defender seus interesses de classe conciliando com a coroa.
Aparecem aí conectadas a posição contra-revolucionária e uma ilusão politicista,
delineada pela crença em que os feudais também aceitariam o acordo por receio da
revolução popular, que a monarquia absolutista efetivamente precisaria do “escudo”
burguês contra a anarquia ((Marx, 2010, p. 103).
Essa crença, embora ilusória, decorria de uma situação real. Por isso, “A teoria
ententista não era de maneira alguma uma teoria oca”. Ao contrário, expressava o
resultado da revolução de março, que não submeteu o rei ao povo, mas somente obrigou
a Coroa a conciliar com a burguesia. De acordo com o programa burguês daí resultante,
“A Coroa sacrificaria a nobreza à burguesia, a burguesia sacrificaria o povo à Coroa.
Nestas condições, o reino seria burguês e a burguesia seria régia”. O “segredo da teoria
ententista” não residia em proclamar essa conciliação, mas sim em que a Coroa e a
burguesia “Servem-se reciprocamente de pára-raios da revolução” (Marx, 2010, p. 326).
Supondo que o exército, a burocracia e os junkers “tinham-se posto sem
reservas à sua disposição, e que haviam se transformado em devotos de sua própria
onipotência”, a burguesia não os considera mais como inimigos e não aproveita as
condições propícias para eliminá-los, permitindo que se recuperassem. Com as
“chicanas, frequentemente sangrentas, da guarda cívica contra o proletariado
desarmado” e as demais formas de repressão, as “forças do velho estado” sustentam
essa ilusão. Não duvidando de que aquelas forças se haviam posto a seu serviço, a
burguesia tratava de “reduzir ao mínimo os custos de produção de seu domínio e da
revolução de março que o condicionara”, para o que era preciso “restabelecer ‘a calma e
a ordem’”, despedaçando as armas que reclamara sob a razão social do povo e que este
“não tinha mais necessidade de empunhar para a burguesia” e ameaçava empunhar
contra ela ((Marx, 2010, p. 327).

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A defesa do “terreno do direito” é o modo como a burguesia reata a entente


com a Coroa, escamoteando a revolução. Não pretende manter a velha legislação, e sim
somente deduzir dela suas reivindicações, extraindo dela a monarquia constitucional –
para que a revolução não postule as suas próprias exigências.
A teoria ententista, com sua defesa do terreno do direito como patamar para a
conciliação, exalta o estado e a política como o âmbito privilegiado da ação. As
transformações se fariam dentro dos parâmetros institucionais e legais existentes. As
ações realizadas contra o estado, as instituições e leis vigentes é relegada a segundo
plano na teoria, e reprimida na prática.
Com essa teoria, o ministério Camphausen cumpriu “a tarefa da mediação e da
transição” entre a incômoda posição involuntariamente assumida pela burguesia após a
revolução de março – “alçada sobre os ombros do povo”, “que nos confrontos com a
Coroa representava aparentemente o povo” – e aquela mais condizente que pretende
alcançar – a de quem não precisa mais dos ombros do povo, “que nos confrontos com o
povo efetivamente representava a Coroa” ((Marx, 2010, p. 329).
Uma vez cumprida tal tarefa, Camphausen é substituído por Hansemann, que já
podia e “devia transformar a resistência passiva contra o povo em ataque ativo ao povo,
um ministério de ação” ((Marx, 2010, p. 331). Marx ressalta que o ministério
Hansemann passa a existir efetivamente em julho de 1848, pois a “revolução de junho
era os bastidores do ministério de ação, como a revolução de fevereiro era os bastidores
do ministério de mediação” ((Marx, 2010, p. 331). Em outras palavras, o esmagamento
do proletariado parisiense pela burguesia francesa é o estímulo e a retaguarda para a
repressão do povo alemão pela burguesia prussiana. Esse segundo ministério burguês
após março, originado da própria ANP – a Assembleia Ententista –, pretende
simultaneamente barrar a revolução e garantir as condições mínimas para a dominação
burguesa e o desenvolvimento do capitalismo, o que significaria desmantelamento das
relações feudais de propriedade da terra, a reforma do sistema judiciário e do fiscal, a
abolição das isenções de impostos, e o “fortalecimento do poder estatal, necessário à
tutela da liberdade conquistada contra a reação e contra a anarquia e para o
restabelecimento da confiança perdida”, isto é, “da confiança no comércio e no tráfico,
no rendimento do capital, na solvência dos parceiros de negócio, da confiança
comercial” ((Marx, 2010, p. 333).
A essa “ideia fixa da burguesia prussiana” – restabelecer a confiança, ou seja, o
crédito – liga-se diretamente a repressão ao povo. Está em jogo o fundamento da ordem
burguesa, pois o crédito “repousa sobre a certeza de que a exploração do trabalho
assalariado pelo capital, do proletariado pela burguesia, dos pequenos burgueses pelos
grandes burgueses prossiga do modo habitual”. Para sua manutenção é preciso evitar a
“movimentação política do proletariado, de qualquer natureza, mesmo se dirigida
diretamente pela burguesia”, já que põe em risco a permanência da exploração. Por isso
ao lado do restabelecimento da confiança havia sido posto o “fortalecimento do poder
estatal”, ou seja, “a polícia, o exército, os tribunais, a burocracia” ((Marx, 2010, p. 333).
Assim, a defesa dos canais políticos como o âmbito próprio para a efetivação
das transformações necessárias significava expulsar os trabalhadores e seus interesses,
resguardando somente os da burguesia.
A “ordem” é considerada requisito indispensável para realizar as reformas que
estabeleceriam melhores condições para o desenvolvimento do capital. Nesse sentido, o
fortalecimento do poder estatal deveria se voltar também “contra a reação, ou seja,
contra a Coroa e os interesses feudais, na medida em que tentassem se impor contra o

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bolso e ‘as condições mais essenciais’, isto é, as mais modestas pretensões políticas da
burguesia” (Marx, 2010, p. 334). Entretanto, mesmo as tímidas propostas feitas nessa
direção fracassaram, sem que a força do poder estatal se desencadeasse contra a reação.
O ministério Hansemann reafirma a escolha feita há muito pela burguesia
alemã – a conciliação com a grande propriedade agrária, contra o povo – e exprime a
ausência de qualquer perspectiva de libertação humana, de defesa dos interesses gerais
por parte dessa classe, no momento em que ela crê haver conquistado e procura manter
seu poder político. A ilusão de lutar por toda a humanidade, compartilhada pelas
burguesias que trilharam o “caminho europeu”, emanava do progresso real que a
sociedade capitalista representava; diante da perspectiva do trabalho, esta envelhece, e
aquelas ilusões se desfazem, alterando a consciência burguesa; em todos os lugares ela
assume mais ou menos abertamente, conforme suas necessidades específicas, que a
defesa de sua sociedade é a defesa de seus interesses particulares. A burguesia alemã,
que não fizera qualquer revolução quando aquelas ilusões eram possíveis, não pode
compartilhar delas quando busca alçar-se à dominação. Não se dispõe, pois, a alcançar
seu objetivo pela revolução.
O texto marxiano evidencia o vínculo entre a obsolescência da sociedade
burguesa e a ausência de qualquer disposição revolucionária seja na atuação prática,
seja no plano da consciência da burguesia, o que alimenta a estreiteza de seu
pensamento e a brutalidade da repressão que jamais hesita em desencadear. De sorte que
a revolução de março, embora burguesa em seus objetivos, não poderia ter eclodido por
iniciativa da burguesia; uma vez desencadeado o levante pelo povo, ela procura
simultaneamente apropriar-se das vantagens dele advindas e liquidá-lo.
Nesse quadro, a Coroa aparece à burguesia como guarda-chuva protetor de
seus interesses. Tratava-se de passar, pelo alto, para a monarquia constitucional e, por
meio dela, para a reforma das relações de produção e intercâmbio mais básicas para o
desenvolvimento da sociedade burguesa. A defesa dos meios políticos e jurídicos
existentes para realizar as alterações pretendidas é tanto uma tática usada contra a classe
trabalhadora, quanto parte do pensamento burguês, da compreensão que esta classe tem
da realidade.
Entretanto, o resultado do processo contra-revolucionário não foi a vitória da
burguesia, mas a dos junkers, da Coroa. Tanto Camphausen quanto Hansemann, diz
Marx, foram “enganadores enganados”, tornaram-se instrumento dos “apetites contra-
revolucionários” do partido feudal; deixando-se iludir, permitiram o fortalecimento da
contra-revolução, que logo em seguida “sente-se suficientemente forte para se livrar da
inoportuna máscara” liberal-burguesa com que se acobertara. Tanto a derrota de
Camphausen quanto a de Hansemann foram a derrota da burguesia e a vitória da contra-
revolução; ambos semearam “a reação no sentido da grande burguesia” e colheram-na
“no sentido do partido feudal” ((Marx, 2010, p. 113).
Na burguesia alemã, o conservadorismo, que se vai tornando apanágio dessa
classe em termos histórico-universais, envolve a quimera a propósito da suposta
capacidade resolutiva ou determinante da política. A repugnância da revolução
determina sua ilusão de que seria possível conquistar o domínio sem destruir as forças
do velho estado, engano emanado da posição ocupada pelos ministérios burgueses, às
ordens dos quais estavam formalmente os órgãos e instâncias componentes do estado.
Marx demonstra que essa formalidade encobre o elo com os modos de existência real
das classes e suas relações recíprocas, constitutivos da fonte e determinantes do grau de
seu efetivo poder. Formalmente subsumidas à burguesia, as forças feudais não haviam

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sido arrancadas de seu chão social, e nele puderam reforçar suas raízes
momentaneamente abaladas pela revolução.
A teoria ententista, expressando tanto a conciliação pelo alto quanto aquela
fantasia, considerava que não era preciso desmontar o estado, pois poderia transformar-
se – chegar à nova constituição a partir da velha – e tal metamorfose geraria ou imporia
as mudanças requeridas nos outros âmbitos da sociedade. Em contraposição, Marx
insiste em que “Toda situação política provisória posterior a uma revolução exige uma
ditadura, e mesmo uma ditadura enérgica”, a fim de remover “imediatamente os restos
das velhas instituições”, pois estas não se submetem ao novo poder, e sim o debilitam.
Ao contrário do que afirmava a teoria ententista, a Assembleia e a coroa representavam
classes antagônicas: “Atrás da Coroa se escondia a camarilha contra-revolucionária da
nobreza, dos militares, da burocracia. Atrás da maioria da Assembleia, estava a
burguesia”. E esta “não pode lutar por seu próprio domínio sem ter provisoriamente
como aliado todo o povo, sem, por isso, apresentar-se como mais ou menos
democrática” (Marx, 2010, p. 213). O repúdio a qualquer revolução cega a burguesia no
tocante a sua situação específica, levando-a a confundi-la com a da burguesia francesa e
a iludir-se quanto às premissas de sua dominação e a seus inimigos e aliados, pois, ao
contrário da primeira, os burgueses alemães “Não haviam derrubado trono nenhum, não
haviam eliminado a sociedade feudal, muito menos seus últimos vestígios, não tinham
que manter nenhuma sociedade criada por eles próprios” (Marx, 2010, p. 331).
Conservando a cegueira e a ilusão, a burguesia não suspeitou que, se o proletariado
francês era o inimigo da burguesia francesa efetivamente dominante, “a burguesia
prussiana, em luta contra a Coroa, não tinha mais do que um único aliado – o povo. Não
que ambos não tivessem interesses opostos e hostis entre si, mas porque o mesmo
interesse ainda os ligava contra uma terceira força que igualmente os oprimia” (Marx,
2010, p. 332).
A burguesia fortaleceu o poder estatal, mas “se enganou apenas sobre a
natureza deste ‘poder estatal’”, sobre a classe que, “segundo sua opinião, se encontra ao
leme do estado”: ao invés do poder estatal burguês, reforçou o poder estatal feudal,
abrindo caminho para a “restauração do domínio feudal prussiano”, pois, embora
concordando com a necessidade de subjugar o povo, “Apenas com dégoût a feudal casa
Hohenzoller escolheu esta canalha burguesa como vil ferramenta e espreitava o
momento de a despedir com pontapés”, pois ela ousara fazer a contra-revolução para a
Prússia e ainda se vangloriar disso (Marx, 2010, p. 511).
Para as burguesias revolucionárias, a ilusão politicista só se evidencia como tal,
ou seja, só leva ao fracasso, quando é empurrada ao seu limite máximo – no caso da
burguesia francesa, durante o domínio jacobino. Onde a revolução varre as relações
sócio-econômicas feudais remanescentes, a ilusão de que a política gerou a nova
sociedade pode sobreviver sem levar a burguesia ao fracasso porque a nova sociedade
foi efetivamente produzida, ainda que tal tenha se dado no plano das relações materiais.
Na burguesia alemã, retardatária, frágil e contra-revolucionária, a ilusão politicista se
acentua e conduz ao fracasso exatamente porque as velhas instituições não são
eliminadas. Não ocorrendo materialmente a produção da nova sociedade, a suposição de
que é a política que a faz não pode efetivamente se sustentar.
Prisioneira da crença na política por seu atraso e inapetência revolucionária,
acreditando que alterar a forma política era suficiente para garantir sua dominação real,
reduziu mesmo essa transformação à mera posse do aparelho estatal existente e à

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utilização dele para seus próprios fins. O resultado foi sua exclusão do poder político e
o retardamento do desenvolvimento capitalista.

II. DIREITO E ECONOMIA

Entre as diversas indicações que os artigos da NGR oferecem acerca das


instituições constitutivas do estado, a seguinte passagem é especialmente clara: “A
existência do poder soberano é justamente seus funcionários, exército, administração,
juízes. Abstraído desse seu corpo, ele é uma sombra, uma ilusão, um nome”. A menção
aos juízes remete a toda a esfera jurídica, de que estes fazem parte. Estas são as bases da
“alta cúpula política”, isto é, no caso alemão, do monarca e do ministério. Enquanto
componentes do estado, Marx mostra que cada uma delas aparenta autonomia e
desenvolve interesses particulares, aquela uma ilusão, estes vinculados aos de uma
classe e de uma forma social específica.
Como vimos, Marx denuncia inúmeras vezes que a defesa do terreno do direito
contra o terreno revolucionário implica a negação da revolução e de seus resultados, e a
proposta de passar para o novo a partir das condições jurídicas existentes, por dentro do
estado; evidenciou, assim, o nexo entre a conciliação e a via política de transformação.
A defesa do terreno do direito está no centro da teoria ententista; esta apóia no direito,
como expressão e garantia da ordem existente, seu apelo ao acordo.
Enquanto conjunto das leis que regem a sociedade o direito é válido, observa
Marx, para situações já constituídas. Num processo revolucionário, não há de fato
qualquer direito – qualquer corpo jurídico – válido, pois a revolução se volta contra a
situação social que o velho direito expressava e garantia, portanto também contra ele, e
um novo direito ainda não se estabeleceu por não se ter produzido ou consolidado a
nova forma social. Durante a revolução, os direitos das partes em luta são gerados pela
força efetiva que demonstram: “o maior direito está do lado do maior poder. O poder se
comprova na luta. A luta se comprova na vitória. Ambos os poderes só podem fazer
valer seu direito pela vitória, seu não-direito só pela derrota” (Marx, 2010, p. 262).
Essa luta que resulta na vitória de uma das partes, que assim afirma seu poder e
seu direito, se realiza e se decide fora da esfera jurídica. O poder, portanto, não se
fundamenta no direito. Ao contrário, este se fundamenta naquele. E assim é porque as
partes em luta são classes sociais opostas, defensoras de sociedades distintas. Assim
como a coroa deve sua força e seu direito aos estamentos constitutivos da sociedade
feudal em desaparição, a autoridade da ANP, burguesa, e a força de que poderia dispor,
não emana de sua condição legal ou jurídica, mas de sua origem social revolucionária.
O mesmo raciocínio se revela na crítica à grita dos ministros e da direita pelo
“princípio constitucional” contra “o colapso cada dia mais iminente de todas as
instituições históricas tradicionais”. Uma vez que “ainda estamos sobre o terreno
revolucionário”, e não sobre o “terreno da constituinte, da monarquia constitucional
acabada”, ainda se lutava por transformações, ainda se travava a luta entre revolução e
contra-revolução. E o princípio constitucional “só pode ser salvo em uma situação
provisória com energia”, isto é, com uma “ditadura enérgica”, a fim de remover os
restos das velhas instituições, derrotando definitivamente o partido vencido e tornando
possível estabelecer novas relações sociais (Marx, 2010, p. 212-213).
Assim, direito e poder, direito e força não são elementos contrapostos, polos
que se opõem, de sorte que a prevalência de um envolva a ausência ou subordinação do
outro. Ao contrário, o direito é sempre expressão de uma dada formação social, portanto

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é sempre o direito de uma das partes em luta, que só pode se afirmar pela força exercida
contra outras partes, pela força que destrói uma ordem social e estabelece outra, ou que
garante a permanência da ordem existente contra as tentativas de a abolir.
O vínculo com a força expõe o direito como instituição própria das sociedades
de classes; são os interesses e necessidades de uma delas que se impõem pela força, seja
contra uma sociedade velha, no momento de nascimento da nova, seja no interior desta.
Marx reitera que “‘Quem tem o poder, tem o direito’. – Os representantes do direito
estão em toda parte do lado do poder” (Marx, 2010, p. 288), não meramente por
oportunismo ou arrivismo, mas graças à conexão objetiva existente entre as relações
sociais e o direito. O oportunismo e o arrivismo, se são mais do que exceções casuais,
participam das características daquelas relações.
Demonstra também que decretar uma lei não é suficiente para a fazer valer. Em
11/11/1848, a ANP adota a resolução, já antes defendida pela NGR, de recusar os
impostos como arma contra o ministério Brandenburg, contra-revolucionário, sucessor
de Hansemann, arma cuja eficácia dependia de o povo a empunhar efetivamente – isto
é, adotar uma posição revolucionária; como isso não ocorreu, a lei não se impõs; os
encarregados de a fazer valer não são desprovidos de ligações de classe, donde a
necessidade de os substituir ou se opor revolucionariamente a eles, quando se pretende
validar lei oposta aos interesses da classe a que se vinculam.
A análise do projeto de lei de abolição dos encargos feudais ilumina tanto a
ilusão burguesa de pretender deduzir suas reivindicações da velha legislação, para evitar
que o povo afirmasse suas próprias exigências sob forma revolucionária, quanto o elo
entre a esfera jurídica e as condições e interesses econômicos, evidenciando que os
direitos feudal e moderno expressam e regulam relações sociais diversas, o que
determina o fracasso da tentativa de justificar relações modernas apelando ao direito
medieval. A posição de classe assumida pelo legislador se manifesta pelos interesses
objetivamente defendidos; nesse caso, os interesses específicos de um dado tipo de
burguesia, de um dado caminho de objetivação do capitalismo.
A proposta apresentada pelo ministro da Agricultura sob o ministério
Hansemann envolvia revogar sem indenização obrigações feudais insignificantes, e
restabelecer a corveia. Entretanto, era preciso revestir essa proposta com “uma
aparência de fundamentação jurídica e econômica”. Para demonstrar que alguns
encargos podem ser abolidos sem indenização e outros não, o ministro afirma que os
primeiros não teriam fundamentos suficientes, e para prová-lo “mergulha nas regiões
mais sombrias do direito feudal”. Como é impossível “extrair, do direito feudal,
oráculos de direito civil moderno, /.../ introduz clandestinamente conceitos modernos
entre as disposições jurídicas feudais”, recorrendo a eles para tratar de alguns dos
encargos, mas não de todos, pois “certamente as corvéias passariam por maus bocados
diante da liberdade do indivíduo e da propriedade” (Marx, 2010, p. 179). A
inconsistência do argumento é clara como o dia, pois, pelo direito moderno, todos os
encargos feudais deveriam ser abolidos, e pelo direito feudal, nenhum.
O projeto se vale do princípio da teoria ententista: passar para o novo a partir
do velho. Nesse caso, passar para relações modernas, burguesas no campo por meio das
leis que expressavam as velhas relações feudais. Isto se evidencia ainda mais
nitidamente em face de outra reivindicação camponesa. Alguns dos encargos que, pelo
projeto do ministério, deveriam ser abolidos naquele momento haviam sido
anteriormente resgatados, num processo em que “os camponeses foram terrivelmente
prejudicados, em benefício da nobreza, por comissões corruptas. Eles reclamam agora a

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revisão de todos os contratos de resgate firmados sob o antigo governo, e têm toda
razão!” (Marx, 2010, p. 180) O ministro, entretanto, não o admite; sua argumentação é
uma defesa da propriedade fundiária, posta por ele como fundamento do estado, de sorte
que qualquer abalo dela seria calamitoso para este; naquela reivindicação, “vê um
atentado ao direito de propriedade que abalaria todos os princípios jurídicos”. O
ministro “ataca a propriedade – é inegável – mas não a propriedade moderna, burguesa,
e sim a feudal. Ele reforça a propriedade burguesa, que se ergue sobre as ruínas da
propriedade feudal, destruindo a propriedade feudal. E é somente por isso que não quer
revisar os contratos de resgate, porque, por meio destes contratos, as relações feudais de
propriedade são transformadas em relações burguesas, porque não pode, portanto,
revisá-los sem ao mesmo tempo violar formalmente a propriedade burguesa. E a
propriedade burguesa é naturalmente tão sagrada e inviolável quanto a propriedade
feudal é atacável.” (Marx, 2010, p. 181)
Ilumina-se o vínculo do direito com as relações materiais: o direito expressa,
regula e garante a propriedade, as relações de produção e intercâmbio existentes, mas
não é capaz de a produzir. O direito feudal e o burguês exprimem relações sociais
fundadas na propriedade privada; cada qual enuncia os interesses gerais da respectiva
sociedade, aqueles cuja manutenção é essencial para a sobrevivência dela.
A análise desse projeto de lei também expõe o princípio do direito moderno: “a
liberdade do indivíduo e da propriedade”, princípio que identifica a liberdade individual
com a condição de proprietário, e que está no centro do interesse geral contemporâneo.
Tal princípio, bem como sua oposição ao feudal, também se depreende do exame da
condição social do júri constituído para julgar alguns líderes dos trabalhadores3. De
acordo com as leis censitárias então vigentes, os jurados eram escolhidos no interior de
uma única classe, a dos privilegiados; a lista inicial estabelecida por esse critério
passava por três clivagens sucessivas dos “representantes judiciais do governo”, até
chegar aos doze componentes finais. Esses métodos, evidentemente, fazem do tribunal
do júri “uma instituição para a afirmação dos privilégios de alguns e de modo algum
para a garantia do direito de todos” (Marx, 2010, p. 347), e relacionam-se com a forma
existente do estado, a qual, como Marx insiste inúmeras vezes, responde a relações de
produção e intercâmbio determinadas. O “direito de todos” supõe a igualdade de todos e
a “liberdade do indivíduo e da propriedade”, enquanto o “privilégio de alguns” supõe
uma sociedade em que a desigualdade entre os homens é a base.
A compatibilidade entre a igualdade jurídica, a garantia do direito de todos, e a
existência das classes é outra faceta da relação entre o estado político pleno e a
sociedade civil plena, isto é, a sociedade burguesa. Já foi indicado que Marx entende o
estado como a coagulação de forças sociais seccionadas do conjunto dos indivíduos,
bem como que a especificidade da forma política assumida depende do patamar de
desenvolvimento alcançado pelas capacidades humanas, que determina o modo
particular daquela separação. Assim, a presença de forças produtivas modernas,
industriais, vincula-se à completa separação entre trabalho vivo e trabalho morto, entre
trabalhadores e meios de trabalho; portanto também à completa separação entre
indivíduo e gênero, entre “homem” e “cidadão”. É no âmbito dessas condições que o
“homem” é determinado como indivíduo livre e proprietário privado, contraposto aos
demais na sociedade civil, e o cidadão se reconhece como ser genérico também na
condição de livre, proprietário privado e, por isso, igual. De sorte que, como Marx já
3
Gottschalk, Anneke e Esser (líderes dos trabalhadores). Ver “O processo contra Gottschalk e
camaradas” (Marx, 2010, p. 347-352).

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mostrara em outras obras, as condições concretas e contraditórias da vida individual


restringem-se à sociedade civil, desaparecendo do estado – e do direito. A condição que,
abstratamente tomada, é comum a todos e assim sustenta a igualdade não é vácua; ao
contrário, é a determinação mais central da existência humana moderna.
Essa igualdade jurídica nucleada pela liberdade individual do proprietário
privado, princípio do direito burguês como expressão de uma forma particular de
propriedade, deve impor-se, tal como essa mesma forma, primeiro destruindo a anterior
e, depois, em sua qualidade de direito, isto é de regulação do interesse geral abstrato
separado dos interesses particulares, portanto em sua condição de expressão da ordem
de uma sociedade classista, deve impor-se pela força também no interior desta. O direito
feudal, ainda vigente na Alemanha, expressava, por seu turno, uma sociedade em que a
separação entre individualidade e generidade, entre trabalho e meios de trabalho, entre
vida privada e vida pública, ainda não se consumara, portanto também não a separação
entre sociedade civil e estado, de sorte que as condições concretas da vida individual
determinavam tanto a participação política quanto os direitos.
De outra parte, o pensamento e a ação dos indivíduos que, de uma ou outra
forma, participam da esfera jurídica são, como os de quaisquer outros homens,
socialmente determinados: “a consciência está interligada ao conhecimento e a todo o
modo de existência de um homem”, de modo que “A ‘consciência’ dos privilegiados é
justamente uma consciência privilegiada” (Marx, 2010, p. 347). Esta observação,
retomando a determinação da consciência pela vida, desvela a impossibilidade de um
indivíduo atuar, legislar ou julgar independentemente de seus próprios interesses, vale
dizer, a impossibilidade de distanciar a jurisdicidade das condições reais de vida, das
classes e da dominação de classes.
As posições dos juristas e magistrados renanos demonstram a validade dessas
considerações, e acrescentam mais uma pincelada ao retrato da burguesia alemã. Na
Assembleia Ententista, diz Marx, os juristas renanos demonstraram ao governo
prussiano “que sua antiga oposição tinha quase o mesmo sentido da oposição do
parlamento francês antes de 1789 –defesa obstinada e em aparência liberal de interesses
corporativos”, e que eles eram “os mais bravos entre os bravos no exército do
servilismo” (Marx, 2010, p. 357-358); após a dissolução da Assembleia, a corte renano-
prussiana excede a velho-prussiana em servilismo e “fanatismo político”. A
magistratura burguesa agiu de modo mais subserviente do que a ligada aos junkers,
embora o governo ao qual se submetera não fosse um governo burguês.
Reacionária, conciliadora e submissa, da burguesia alemã não poderia se
originar uma magistratura com características opostas, já que esta sempre se vincula a
uma classe determinada, assim como o conteúdo do direito cuja observação deve
garantir. Entretanto, também nesse âmbito a subordinação obstaculiza os interesses
burgueses: “Na Prússia, por sua covarde confiança no governo e sua traidora
desconfiança contra o povo, a burguesia vê ameaçada a indispensável garantia da
propriedade burguesa – a organização burguesa da justiça”. Pois, conclui Marx, diante
da subordinação da magistratura, “o próprio direito burguês dá lugar ao arbítrio dos
funcionários” (Marx, 2010, p. 361). Devendo garantir a propriedade, a forma específica
desta determina a do direito; a propriedade burguesa exige, na organização da justiça,
uma magistratura independente, ou seja, não diretamente submissa ao governo, a fim de
a proteger e, tomando-a como base e critério, proteger a todos enquanto proprietários. A
prevalência do arbítrio dos funcionários é adequada à forma feudal da propriedade, de
que faz parte a desigualdade não somente de fato, mas de direito, bem como a

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dependência ou subordinação pessoal. Relações sociais desembaraçadas das limitações


objetivas e subjetivas próprias da forma feudal, fundadas em indivíduos livres e
proprietários inter-relacionados pela troca – portanto, concorrenciais – exige um direito
simultaneamente mais universal e mais formal, bem como uma magistratura
suficientemente independente a fim de garantir o andamento da sociedade moderna, e
não exclusivamente interesses singulares. A universalidade própria do direito burguês
tem por critério a propriedade privada burguesa, abrangendo a todos enquanto
proprietários privados, expressando, portanto, a universalidade das relações burguesas.
Magistratura independente não significa, assim, imparcialidade de classe.
A magistratura também é alvo daquelas ilusões populares cuja perda Marx
considera ser “O fruto principal do movimento revolucionário de 1848” (nº 177), pois,
entre essas ilusões, “figura em primeiro lugar sua superstição na magistratura. O
prosaico vento norte da contra-revolução prussiana arrancou também esta flor da
fantasia popular, cuja verdadeira pátria-mãe é a Itália – a eterna Roma” (Marx, 2010, p.
357). A referida crendice diz respeito à suposta imparcialidade de classe da
magistratura, conexa à igualmente suposta imparcialidade do direito.
A referência a Roma como pátria dessa superstição é esclarecedora. Ela
remete, em primeiro lugar, ao amplo desenvolvimento alcançado na república romana
pelo direito fundado na propriedade privada, individual, com a correspondente
instituição de uma magistratura que o fazia valer e o garantia para todos os cidadãos.
Mas também remete a uma situação social específica, historicamente determinada e há
muito desaparecida: aquela em que a divisão social do trabalho estabelece já a oposição
de classes, sem que deixe de reger ainda a comunidade de base natural, na qual os
cidadãos abarcados pelo direito eram fundamentalmente membros dessa comunidade e
de uma mesma classe – a dominante – enquanto a classe dominada, na sua condição
escrava, era necessariamente excluída, já que seus membros eram instrumentos
pertencentes aos proprietários livres. A universalidade do direito fundado na
propriedade privada e a imparcialidade da magistratura assentavam-se, pois, na restrição
da parcela social para a qual o direito se aplicava e na identidade dos indivíduos dessa
parcela como proprietários privados livres. Na sociedade burguesa moderna, entretanto,
todos – dominantes e dominados – se igualam como proprietários privados sans phrase;
a distinção, e mais ainda a oposição de suas condições reais é excluída da esfera do
direito. A ilusão a que Marx se refere envolve a crença no caráter autônomo e
determinante dessa esfera e a desconsideração do critério específico que molda a
universalidade do direito e a independência da magistratura – a igualdade de todos
como proprietários privados –, confundindo, assim, a universalidade do capital com a
universalidade humana. No período de ascensão revolucionária da burguesia, a
república romana é vista por essa classe como ideal a alcançar. Os trabalhadores,
enquanto ainda se subordinam a ela, compartilham também essa ilusão. Perdê-la é dar
mais um passo para se desvencilhar daquela subordinação, passo que pôde ser dado
quando a realidade mesma expôs suas determinações. A perda das ilusões a respeito do
direito e da magistratura é parte da perda das ilusões a respeito da política.
É no interior desse raciocínio que Marx entende que “a Convenção francesa é e
permanece o farol de todas as épocas revolucionárias. Ela inaugurou a revolução
destituindo, por um decreto, todos os funcionários. Também os juízes nada mais são do
que funcionários”, o que “as ações e declarações” dos tribunais renanos “testemunharam
perante toda a Europa” (Marx, 2010, p. 357). Frise-se: a Convenção é um “farol” porque
seu primeiro ato é de desmontagem do poder existente; este ato de demolição, a

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destituição dos funcionários, entre eles os juízes, inaugura a revolução, ou seja, não é o
resultado de um processo, mas o primeiro passo dele, é tarefa a realizar no início da
revolução.
Reencontramos aqui a mesma posição já manifesta quando Marc criticara
Camphausen por ter mantido em seus postos todos os funcionários do estado, o que
redundou no reerguimento da contra-revolução. Os juízes são também funcionários de
um determinado estado, portanto parte do corpo real dele. Dado o elo do direito e da
magistratura com uma classe social determinada, bem como sua condição de
garantidores de uma forma específica de propriedade, a conservação dos magistrados
em seus postos transformou o Ministério Público em instrumento da contra-revolução, e
como tal interpreta e aplica de acordo com os interesses desta a legislação em vigor.
É o que ocorre no processo aberto contra a NGR, acusada de incitar à
sublevação4. Em seu discurso de defesa perante o tribunal do júri de Colônia, Marx
mostra que, de acordo com a própria lei, não caberia o enquadramento do jornal no
parágrafo do Code Pénal sobre o qual se fundava a acusação. Analisando-o, mostra que
mesmo a tradução do texto original francês para o alemão, e mais ainda a interpretação
dele, distorcem a letra e o espírito da lei. O Ministério Público ateve-se a esse parágrafo,
diz Marx, porque “é muito mais indeterminado e permite muito mais facilmente
granjear uma condenação /.../. A violação da ‘délicatesse et honneur’, da delicadeza e da
honra, esquiva-se a qualquer medida. /.../ Não resta qualquer outra medida além do noli
me tangere de uma imensa, incomparavelmente arrogante vaidade de funcionário”
(Marx, 2010, p. 435).
Mas o discurso marxiano não se restringe a demonstrar a impropriedade da
acusação vis-à-vis a lei; explicita também que o Code Pénal supõe condições ausentes
na Alemanha contra-revolucionária: “Finalmente, meus senhores jurados, os ‘citoyens’,
os cidadãos a cujo ódio ou desprezo me expõe a acusação de um fato para, de acordo
com o art. 367, ser uma calúnia, estes citoyens, estes cidadãos não existem
absolutamente mais nos assuntos políticos. Existem ainda apenas partidários. O que me
expõe ao ódio e ao desprezo dos membros de um partido, me expõe ao amor e à
admiração dos membros do outro partido” (Marx, 2010, p. 435). Marx entende ser
fundamental essa distinção, não exclusivamente para o julgamento da NGR, “mas sim
para todos os casos em que o Ministério Público pretenda aplicar o art. 367 a polêmicas
políticas” (Marx, 2010, p. 436). A importância do vínculo de classe dos funcionários
judiciários é gritante. Utilizando contra a imprensa esse artigo, os jurados vão aboliriam
a liberdade de imprensa pela legislação penal, pois aos jornais seria interditado
denunciar a arbitrariedade e a vileza oficiais. Relatando um conjunto de fatos
relacionados às prisões de que trata o artigo pelo qual a NGR estava sendo processada –
outras prisões, restrições diversas à liberdade de manifestação e expressão –, ilumina o
apoio explícito à traição do governo contra o povo pelo Parquet, que, assim, agia
partidariamente, e não imparcialmente. Procuradores, promotores, juízes
revolucionários certamente não interpretariam nem aplicariam a lei desse modo. É o que
Marx conclama os jurados a fazer: interpretar a lei no sentido das necessidades sociais
atuais, enquanto o legislador não a atualiza.
Exibem-se, assim, por vários ângulos, os vínculos da lei e da magistratura com
uma classe e com as relações sociais em geral, seja expondo a posição tomada pelo

4
A acusação à NGR baseia-se no artigo “Prisões” (nº 35), em que supostamente haveria uma ofensa ao
procurador-geral Zweiffel e uma calúnia contra os gendarmes que efetuaram a prisão de Gottschalk e
Anneke.

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Ministério Público – contra-revolucionária – e a interpretação distorcida que faz da lei


para servir a essa posição, seja mostrando que o conteúdo mesmo da lei expressa
determinadas relações sociais, de sorte que, havendo estas mudado, seria preciso alterar
a primeira; a lei se torna “preceito morto” se contradiz o “nível de desenvolvimento
social” presente. Ao conclamar os jurados a “se adiantarem ao legislador” (Marx, 2010,
p. 436), ilumina a obrigatória parcialidade deles, pois devem decidir, primeiro, se
aplicam ou não o art. 367 à imprensa, como propôs o Ministério Público, portanto se
abolem ou não a liberdade de imprensa, ou se o aplicam interpretando-o de acordo com
as necessidades sociais atuais, portanto reinterpretando à luz da liberdade de imprensa
uma lei produzida na ausência dela e que não foi pensada para ser aplicada a ela. A
posição tomada pelos jurados, qualquer que fosse, não seria imparcial.
O júri é, pois, chamado a defender não apenas um periódico, mas a liberdade
de associação e de imprensa, a qual, entretanto, seria totalmente aniquilada se a contra-
revolução prussiana não fosse quebrada rapidamente por uma revolução popular
prussiana, afirmando novamente que a lei e sua aplicação não são determinadas pela
vontade do legislador, não são autônomas nem determinantes.
Mas a condição determinada de uma esfera ou relação social não diminui sua
importância. Marx frisa a necessidade de lutar contra os gendarmes e o Parquet, apesar
de sua insignificância diante dos grandes confrontos em tela, pois a servidão se apóia
nos poderes políticos e sociais subordinados, mais próximos à vida privada do
indivíduo, não sendo possível combater apenas as relações gerais e os poderes mais
altos; lembra que a revolução de março fora vencida por deixar intocadas as bases do
cume político – a burocracia, o exército, os juízes etc. Estes são os meios efetivos do
poder, ou melhor, são estes que exercem de fato o poder. Mantê-los é conservar esse
poder, e fora graças a tal conservação que a revolução de março fracassara. Fica claro
que “a estrutura da servidão tem seu mais verdadeiro apoio nos poderes políticos e
sociais subordinados, que confrontam imediatamente a vida privada da pessoa, o
indivíduo vivendo”, de sorte que a derrubada do governo é impossível sem oposição
violenta contra seus funcionários. Não sendo o estado, pois, abstrato, “Não é suficiente
combater as relações sociais gerais e os poderes mais altos”, é preciso atingi-lo em sua
existência efetiva (Marx, 2010, p. 439).
A magistratura é parte integrante desse estado, da forma real de existência do
poder, da estrutura da servidão. É parte desse corpo real sem o qual não há de fato
poder, ou este não tem como se exercer. Ou seja, os juízes, junto com todo o direito,
cumprem tarefas específicas no interior de uma estrutura de poder.
Em outro discurso em defesa da NGR, processada com base nas leis de 6 e 8 de
abril de 18485 por ter defendido a recusa dos impostos, Marx aborda a posição do
governo diante da revolução. Em 5 de dezembro de 1848, este outorgora uma
constituição e impusera uma nova lei eleitoral; assim, depois de 5 de dezembro, o
governo não poderia usar as leis por ele mesmo derrubadas contra seus inimigos: “Em 5
de dezembro, o governo se colocou no terreno revolucionário, especificamente no
contra-revolucionário. Diante dele só há ainda revolucionários ou cúmplices”. Perdera
o terreno do direito. A revolução – ou contra-revolução – destrói uma situação legal; em

5
Como resultado da “conciliação do governo com a Dieta Unificada” (instituição da Prússia pré-março
de 1848), permitiu-se que aquele instituto estamental promulgasse as leis de 6 e 8 de abril,
regulamentando eleições indiretas para a ANP, convocada para a tarefa de passar “à nova Constituição a
partir da Constituição existente”. Ver “A declaração de Camphausen na sessão de 30 de maio” (Marx,
2010, p. 84-88).

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seu decorrer e no momento imediatamente posterior à vitória, pode-se matar ou expulsar


o inimigo vencido, mas não faz sentido julgá-lo pelas leis que acabam de ser
derrubadas. É o mesmo significado da observação, acima mencionada, de que o debate
político envolve posições partidárias opostas, nenhuma das quais poderia ser julgada
por um código legal que supõe uma universalidade inexistente nesse caso. Em
“situações ordinárias”, isto é, situações estabelecidas e contra as quais não há
questionamento, em que há leis igualmente estabelecidas, resta ao poder público sua
execução. Naquele momento, entretanto, a Alemanha não vivia uma “situação
ordinária”, mas sim uma luta entre dois poderes: a coroa e a Assembleia, luta que não
pertencia nem à esfera do direito privado nem à esfera do direito criminal. A questão
sobre quem está com a razão, a coroa ou a Assembleia Nacional, era uma questão
histórica, não jurídica. Foge à competência do direito e de seus executores decidir sobre
esta ou aquela forma social (entre a sociedade moderna e a feudal) porque o direito não
é matrizador, ao contrário, é expressão de uma sociedade dada e regula a vida nesta
forma dada. Marx evidencia que a contraposição ao poder não pode ser efetuada no
plano do direito, mas apenas no do próprio poder.
Estabelecida a insustentabilidade das acusações à NGR com base nas leis de 6 e
8 de abril, Marx ilumina a gênese social daquelas leis, resultantes da “entente do
governo com a Dieta Unificada” (Marx, 2010, p. 461). Retomando a história dessa
conciliação, mostra que, a fim de que a burguesia se apoderasse do poder, a revolução
deveria varrer os vários elementos que restavam do velho modo de produção e troca
feudal. É o que não ocorre. A Dieta Unificada foi convocada e deixou-se que ditasse leis
à nova sociedade, “Supostamente, para defender o terreno do direito”, isto é, para “a
defesa de leis de uma época social passada”. Marx entende que “Isso é uma ilusão
jurídica”, pois, de fato, a lei se apoia na sociedade, “deve ser expressão de seus
interesses e necessidades comuns, resultantes do modo de produção material atual,
contra o arbítrio do indivíduo isolado”. Nesse sentido, afirma que o Código
Napoleônico “não gerou a moderna sociedade burguesa”, mas esta “encontra no Code
apenas uma expressão legal” (Marx, 2010, p. 463). Vai na mesma direção a observação
de que “As evidentes reivindicações, necessidades e direitos da revolução naturalmente
não são sancionados por uma legislação cujos fundamentos foram pelos ares justamente
por meio dessa revolução” (Marx, 2010, p. 107).
É uma “ilusão jurídica” a de que as leis seriam geratrizes da sociedade, quando
somente expressam no plano legal as relações sociais já existentes. A defesa do terreno
do direito significava a defesa de determinadas leis – e não da legalidade em geral –,
nascidas das velhas condições de produção material. À medida que estas não mais
vigoram, a defesa daquelas leis “não passa, no fundo, da defesa hipócrita de interesses
particulares anacrônicos contra o interesse geral moderno”. Se as velhas leis não
afundam junto com a velha sociedade, obstaculizam o desenvolvimento da nova. Assim,
diz Marx, a tentativa de impor à sociedade “leis que foram condenadas pelas próprias
relações vitais dessa sociedade”, a defesa do terreno do direito, entra “em contradição
com as necessidades existentes, inibe a circulação, a indústria, ela prepara crises sociais,
que explodem em revoluções políticas” (Marx, 2010, p. 463).
As leis emergem das relações de produção e intercâmbio existentes, das classes
e da luta entre elas. As leis de 6 e 8 de abril de 1848 exprimiam interesses particulares
ligados a relações sociais ultrapassadas, contrapostos ao interesse geral moderno. Este
deve ser defendido por leis compatíveis com as necessidades e exigências atuais, contra
o arbítrio do indivíduo. Essa oposição e imposição do interesse geral ao arbítrio do

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indivíduo isolado é o reconhecimento da divergência entre interesse individual e


interesse comum, o reconhecimento de que o interesse comum não é o interesse de
todos os indivíduos, mas um interesse que se sobrepõe a todos; é a admissão do
confronto dos indivíduos entre si e com a sociedade. Desse modo, o direito moderno,
isto é, as leis adequadas às necessidades gerais da sociedade atual, é novamente
estabelecido como necessidade de uma sociedade contraditória, em que os indivíduos se
contrapõem uns aos outros e ao interesse comum, ou seja, à própria sociedade. Em
outros termos, o direito, enquanto expressão do interesse comum contra o arbítrio
individual, é necessário na medida em que os polos da individualidade e da generidade
se enfrentam como opostos, não como reciprocamente constitutivos. O direito expressa
a cisão entre indivíduo e gênero, aquele vivendo abstratamente no âmbito da vida
privada, este existindo de modo igualmente abstrato na esfera da vida pública, reduzida
à política.
Negando autonomia e capacidade geradora ao direito, a análise marxiana,
entretanto, não lhe recusa importância nem papel efetivo – se assim fosse, seria inócuo
bater-se contra determinadas leis e a favor de outras. No combate às leis de 6 e 8 de
abril, àquelas que restringem ou impedem a liberdade de imprensa, organização etc., e
ao projeto de lei penal, Marx mostra a importância da legislação, mas não a isola ou
autonomiza, nem alimenta a fantasia de que decorre da vontade imparcial do legislador,
ou de que possa por si alterar as relações sociais.
Instrumentos de regulação de uma dada formação social, as leis, se efetivas,
atuam facilitando, permitindo ou obstaculizando as atividades vitais, e nesse caso
gestando crises sociais que deságuam em revoluções, as quais, eclodindo contra aquelas
leis, são movimentos que visam adequar a esfera jurídica às relações materiais, e não
modificar estas últimas – por isso são revoluções políticas.
Como parte do corpo do estado, a jurisdicidade compartilha, assim, das
determinações deste: instrumento de uma sociedade fundada em relações materiais de
produção e intercâmbio específicas, nesse caso instrumento de regulação da vida de
indivíduos isolados de acordo com os interesses gerais dessa formação social. Da
existência de contradição, de interesses particulares que poderiam se chocar com aquele
interesse geral que a lei visa garantir, decorre que a lei não se auto-impõe, mas precisa
ser imposta, donde seu elo com o poder, a força. O direito está sempre do lado do poder,
seja por expressar e garantir os interesses dominantes, seja por carecer da força para se
fazer valer. Sendo necessário nas sociedades cindidas em classes sociais, esse elo entre
direito, poder e força não se apresenta, é óbvio, somente nas formas de estado mais
abertamente ditatoriais, mas também nas democráticas.

Referências Bibliográficas
CHASIN, J. Marx: Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica. São Paulo:
Boitempo, 2009.
__________ “Marx - A Determinação Ontonegativa da Politicidade”, in Ensaios Ad
Hominem 1 - Tomo III – Política. Santo André: Ad Hominem, 2000.
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COTRIM, L. Marx: Política e Emancipação Humana – 1848-1971. Tese de doutorado
– PPG em Ciências Sociais – PUC-SP, 2007.
ENGELS, F. Revolução e contra-revolução na Alemanha. Lisboa: Avante, 1981.
MARX, K. Contribuição para a Crítica da Economia Política, Lisboa, Estampa, 1973.

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

_________ “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução”. In Temas de


Ciências Humanas, nº 2. São Paulo: Grijalbo, 1977.
_________ Nova Gazeta Renana. São Paulo, Educ, 2010.

54
GT 1

Acumulação de capital, inovação tecnológica e


desigualdade

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INVESTIGAÇÕES SOBRE FUNDAMENTOS E ESPECIFICIDADES DA


CHAMADA "QUARTA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL"

Gabriela Rigueira Cavalcanti


Universidade Federal de Juiz de Fora
grc1306@gail.com

Resumo
O presente trabalho expõe resultados parciais de pesquisa exploratória a respeito dos
fundamentos e especificidades do recente fenômeno de desenvolvimento e difusão de
novas tecnologias na esfera produtiva, por muitos chamado de “4ª revolução industrial”.
Inicialmente pretende-se fixar como parâmetro comparativo os fundamentos e
especificidades da terceira revolução industrial, conforme assinalado por Ernest Mandel,
para então apresentar os elementos constitutivos e o “estado da arte” da chamada
“Indústria 4.0”, não só indicando as inovações tecnológicas (bem como os efeitos
esperados de sua difusão), mas as determinações do cenário econômico mundial em meio
ao qual desponta. Ao fim e ao cabo, pretende-se fornecer material para o debate acerca
da facticidade da “nova” revolução industrial a partir dos principais textos sobre o tema.
Palavras-chave: Indústria 4.0; Progresso Tecnológico; Acumulação.

INVESTIGATIONS ON THE FOUNDATIONS AND SPECIFICITIES OF THE


SO CALLED "FOURTH INDUSTRIAL REVOLUTION"

Abstract

These work presents results of exploratory research on the fundamentals and specificities
of the recent development of new technologies in the productive sphere, by many
denominated "4th industrial revolution". Initially we intend to compare the foundations
and specificities of the third industrial revolution, as pointed out by Ernest Mandel, to
present the constituent elements and state of the art of the so-called Industry 4.0, not only
pointing out as technological innovations as they expected them to be, but as
determinations of the world scenario. Thus, it is intended to provide material for debate
on the facticity of the new industrial revolution from the main texts about the subject.
Keywords: Industry 4.0; Technological progress; Capital Acumulation.

Introdução

Muito se tem falado sobre uma quarta revolução industrial. As tecnologias


principalmente relacionadas com a inteligência artificial, internet das coisas e big data,
tem sido apontadas como fatores determinantes de um novo patamar tecnológico. Uma
série de inovações como carros auto-pilotados e robôs que conseguem aprender sozinhos
tem tomado páginas de jornais e despertado a imaginação e curiosidade de entusiastas e
cientistas.
Não se pode, entretanto, permanecer na superfície desses fenômenos que
começam a despontar na realidade. É preciso investigar a sua facticidade. Para isso, é
preciso questionar em que medida essas novas mercadorias máquinas são realmente
inovadoras em comparação com o maquinário do padrão tecnológico anterior? Qual o
potencial destas para o aumento de produtividade e consequente retomada das taxas de
lucros? Estes produtos já estão disponíveis para introdução em larga escala? Se sim, em

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quais setores chave concentram sua aplicação? Quais evidências econômicas corroboram
a tese de um novo salto tecnológico?
Para realizar essa primeira aproximação na tentativa de buscar respostas para essas
perguntas, partimos primordialmente das conclusões a que Marx chega no cap. 8 de O
Capital vol. 1. Vamos tomar pressuposta a discussão sobre o desenvolvimento da
maquinaria e grande indústria nos termos do próprio Marx, avançando sobre a discussão
com foco no século XX, já na terceira revolução tecnológica, a partir da abordagem de
Mandel. Com esse aporte, tentaremos enfrentar as considerações que tem sido feitas a
respeito de uma mudança para um novo patamar tecnológico, bem como as causas e
consequências dessa função.
Assim, num primeiro momento, buscaremos sedimentar as especificidades da
terceira revolução tecnológica, sabidamente, a base técnica que se impõe a partir da
segunda metade do século XX e que se arrasta até o presente momento. O objetivo deste
percurso é, num segundo momento, procurar o ponto de inflexão, isto é, qual seria o fator
decisivo para constatar um avanço para uma nova base técnica.
Enfim, procuraremos indícios no cenário econômico que corroborem com as
condições necessárias para o surgimento de um salto deste tipo. Ao final, enfrentaremos
criticamente os principais textos que tem servido de base para sustentar a tese da quarta
revolução industrial.

A terceira revolução tecnológica: fundamentos e especificidades

No sexto capítulo de “O Capitalismo Tardio” de Ernest Mandel, a saber, “A


Natureza Específica da Terceira Revolução”, está um dos mais importantes tratados sobre
as razões e consequências do desenvolvimento tecnológico em meio ao avançar da
acumulação de capitais no século XX. Filiamo-nos em grande medida às conclusões desse
autor, pois, no decorrer dos anos, a realidade tem dado provas de seu acerto. Assim,
basearemos a maior parte desta seção no caminho já trilhado por Mandel.
Antes de abordar a terceira revolução tecnológica propriamente dita, é necessário
reconstituir o curso das forças sociais que historicamente confluíram para possibilitar a
sua gênese. Começamos pois, nossa reflexão remetendo brevemente à era do chamado
“capitalismo de livre concorrência”, período em que a principal fonte de reprodução
ampliada parece ter sido o que Mandel chama de “desenvolvimento desigual e combinado
de regiões no interior dos mais importantes países capitalistas” (Mandel, 1982, p. 129).
A empresa colonial encabeçava a marcha da acumulação. Já num momento histórico
posterior, ainda dentro desta “fase” da “livre concorrência”, a produção mecânica – antes
restrita, de forma significativa, apenas à indústria do ferro e do carvão – ingressa na esfera
das máquinas motrizes, dos motores a vapor. A partir daí a base artesanal ou
manufatureira de produção de máquinas motrizes observou uma nova fase, na qual
“máquinas produziam máquinas para construir outras máquinas” (idem), embora
continuasse a predominar a produção artesanal de matérias-primas.
De modo geral, durante as duas primeiras “fases” constitutivas do “capitalismo de
livre concorrência”, a grande indústria operada por maquinas predominou apenas na
indústria de bens de consumo, sobretudo na indústria têxtil. Até o primeiro século após a
Revolução Industrial, a composição orgânica do capital no Departamento II era maior do
que no Departamento I. De fato, no volume 1 d’O Capital, Marx dizia que a gênese do
capitalismo industrial podia ser efetivamente descrita como a “produção mecânico-
industrial de bens de consumo por meio de máquinas feitas artesanalmente”.
Essa configuração explica porque o mais importante sentido internacional da
penetração da produção mercantil capitalista em regiões não industrializadas assumiu a
forma de exportação de bens de consumo e também porque esta fase inicial do capitalismo
pode ser identificado como de livre concorrência, pois o volume reduzido do mínimo de
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capital necessário para ingressar no setor de bens de consumo freava o surgimento de


monopólios e oligopólios.
Mas é somente mais tarde, quando o Departamento I troca a produção mecânica
de motores a vapor pela produção mecânica de motores elétricos que se observa uma
grande transformação na composição orgânica deste subdepartamento produtor de capital
fixo. Entretanto, a elevação da composição orgânica do Departamento I também sofre
expansão em função do subdepartamento produtor de capital constante circulante
(matérias-primas), pois observa-se no período a transição da produção artesanal de
matérias primas para sua produção por métodos manufatureiros ou do início da indústria.
Trata-se do período imperialista, o qual, ressalta Mandel, resulta, dentre outros fatores,
de uma

alteração no impulso principal da tendência capitalista à expansão: a


exportação de bens de consumo para regiões pré-capitalistas deu lugar à
exportação de capitais” (e de artigos comprados com esses capitais,
especialmente vias férreas, locomotivas e instalações portuárias, isto é,
aparelhamento infra-estrutural para simplificar e baratear a exportação de
matérias primas produzidas com o capital metropolitano). (Mandel, 1982, p.
131)

A penetração maciça do capital no Departamento I criou locais de produção que,


conforme anotou Marx, deviam operar com instrumentos ciclópicos de produção e,
consequentemente volumes ciclópicos de capital. Este é o principal fator que impulsiona
o surgimento dos monopólios, uma vez que o mínimo de capital requerido para competir
neste setor tornou-se absurdo. Este período coincide com a segunda revolução
tecnológica, sobretudo com a tecnologia dos motores elétricos – o que o próprio Lênin
foi capaz de enfatizar como fator decisivo para o aviltamento da monopolização. Como
bem destaca Mandel,

Não é surpreendente que essa monopolização ocorresse mais rapidamente nos


“novos ramos industriais (aço, máquinas elétricas, petróleo) e nas “novas”
nações industriais (EUA, Alemanha) do que nos “velhos” ramos da indústria
(têxteis, carvão) e nos “velhos” países industriais (Inglaterra, França).
(Mandel, 1982, p. 132).

Aqui, temos um fator determinante para compreender a relação acumulação x


tecnologia: a acumulação acelerada do período imperialista gerada pela segunda
revolução tecnológica (1893-1914) foi sucedida por um longo período de acumulação
bloqueada e de relativa estagnação, pois o aumento considerável na composição orgânica
do capital resultante da generalização da energia elétrica culminou em uma queda
tendencial na média das taxas de lucro. A resposta matematicamente óbvia para contrapor
esta tendência seria o aumento correspondente da taxa de mais-valia, porém, como
explica Mandel, após a Primeira Guerra Mundial, as instabilidades sociais impediram a
expansão da taxa de exploração e, mesmo com uma breve ascensão econômica entre 1924
e 1929, a queda nas taxas de lucro conduziu à Grande Depressão de 1929 a 1932.
Em meio ao declínio das exportações de capital para as colônias e à
subacumulação nos países metropolitanos, a fração de capital excedente que não participa
na valorização imediata do capital viu-se aumentada lado a lado com a queda nas taxas
de lucro. Este capital, conforme explica Mandel, passou a ingressar no Departamento II.
Um novo setor foi criado: o dos bens de consumo duráveis, com a aplicação da segunda
revolução tecnológica aos bens de consumo (a produção automobilística e o início da
produção de aparelhos eletrodomésticos – aspiradores de pó, rádios, máquina de costura
elétrica, etc). Embora essa produção se restringisse inicialmente aos EUA, ela permitiu
um aumento considerável da composição orgânica do capital capitaneada pelo
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Departamento II, reduzindo inclusive a sua desvantagem com relação ao Departamento


I.
A pressão para elevar a lucratividade no Departamento I assumiu, segundo
Mandel, quatro formas: a) um aumento imediato na taxa de mais-valia (com o fascismo
e economia de guerra, principalmente); b) a valorização imediata do capital através do
rearmemento; c) penetração em escala maciça do capital na produção de matérias-primas
(minerais e agrícolas) agora com tecnologia industrial avançada e consequentemente apta
a reduzir o custo do capital constante fixo, também motivada pela pressão por diminuir o
tempo de rotação do capital; d) redução radical na participação dos custos salariais no
preço de custo das mercadorias, conjugada com a experimentação nos campos da semi-
automação e automação.
Assim que as taxas de lucro se elevaram, a expansão do capital pode encontrar as
condições necessárias para subir vertiginosamente com a utilização do capital acumulado
mas não valorizado no período das décadas de 1920 e 1930, abrindo caminho para o que
Mandel chama de “onda longa de tonalidade expansionista”, de 1940 a 1965 – os
chamados “anos dourados” do capitalismo.
No que toca à base técnica deste novo período, a que Mandel denomina
“capitalismo tardio”, tem-se como principal característica o fato de que paralelamente aos
bens de consumo industriais feitos por máquinas (surgidos com a Revolução Industrial
no início do século XIX) e das máquinas de fabricação mecânica (realidade do final do
século XIX, já apontando para a segunda revolução tecnológica), observa-se a partir desse
momento a produção de matérias primas e mesmo gêneros alimentícios produzidos por
máquinas. Todos os ramos da economia encontram-se plenamente industrializados e
inclusive a esfera da circulação enfrenta uma mecanização crescente.
A expansão generalizada da mecanização determinou, ao longo dos anos, um
nivelamento geral na produtividade média do trabalho nos dois Departamentos. Uma vez
possível aplicar o princípio dos processos totalmente automatizados à produção em
massa, eles se toram facilmente aplicáveis também à produção em massa de matérias-
primas e “bens leves” de consumo, assim como o são na produção de aparelhos
transistorizados ou fibras sintéticas. Assim, pode-se dizer, que o nivelamento da
composição orgânica média do capital é parte da essência mesma na automação. O
capitalismo tardio se defronta, por tanto, com uma crescente igualização da produtividade
média do trabalho.
Justamente em virtude dessa igualização, desenvolve-se uma pressão permanente
para acelerar a inovação tecnologia. Desta forma, a “renda tecnológica” se torna fonte
crucial de mais-valia. Segundo Mandel, “as rendas tecnológicas são superlucros
derivados da monopolização do progresso técnico” (Mandel, 1982, p. 135). Em outras
palavras, passou a assumir um papel ainda mais determinante a operação que implica em
descobertas e invenções tecnológicas capazes de baixar o preço de custo das mercadorias
sem contudo serem generalizadas em determinado ramo da produção, pois uma vez
aplicadas pelos capitalistas individuais concorrentes, haveria igualização da
produtividade média no setor, minando os superlucros.
Este é o ambiente do surgimento da terceira revolução tecnológica. As quatro
formas de pressão para retomada das taxas de lucro no Departamento I desenvolvidas nas
primeiras 4 décadas do século XX culminaram em um conjunto de fatores capazes de
desencadear este fenômeno. A possibilidade técnica da automação está ligada, por
exemplo, às necessidades técnicas correspondentes ao grau particular de desenvolvimento
alcançado pela economia armamentista no período (basta pensar no princípio genérico de
processos de produção contínuos e automáticos livre de contatos humanos aplicadas ao

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manejo da energia nuclear, bem como a derivação direta dos princípios cibernéticos
aplicados à orientação precisa de mísseis automáticos de defesa aérea1).
Mandel salienta que a aplicação desta tecnologia disponível principia pela
indústria química na década de 1950 e se difunde gradativamente por outras esferas com
o intuito de “redução radical dos custos salariais diretos – isto é, a eliminação do trabalho
vivo do processo de produção” (Madel, 1982, 1935). Em meados da década de 50, com o
início da utilização de máquinas de processamento de dados no setor privado da economia
dos EUA, franqueou-se ara diversos setores o campo da inovação tecnológica acelerada
e a busca incessante por superlucros tecnológicos, que é, afinal, o traço distintivo do
“capitalismo tardio”.
Destrinchando as determinações da terceira revolução tecnológica e seu sentido
econômico e social, Mandel destaca dez características principais: aceleração qualitativa
do aumento na composição orgânica do capital (isto é, o deslocamento do trabalho vivo
pelo trabalho morto); transferência de força de trabalho viva ainda ligada ao processo de
produção do tratamento efetivo das matérias-primas para funções relativas à preparação
e supervisão; mudança radical na proporção entre as duas funções da mercadoria força de
trabalho nas empresas automatizadas; mudança radical na proporção entre a criação de
mais-valia na própria empresa e a apropriação de mais-valia gerada em outras empresas
ou em ramos plenamente automatizados; mudança na proporção entre os custos de
produção e o gasto com a compra de novas máquinas na estrutura do capital fixo e,
consequentemente, também nos investimentos industriais; diminuição do período de
produção conseguida por meio da produção contínua e da aceleração radical do trabalho
de preparação e instalação; propensão para acelerar a inovação tecnológica e acentuado
aumento nos custos de pesquisa e desenvolvimento; vida útil mais curta do capital fixo
especialmente da maquinaria; aumento na participação do capital constante no valor
médio da mercadoria; tendência à intensificação de todas as contradições do modo de
produção capitalista.

Uma quarta revolução industrial? Especificidades anunciadas e evidências de um


novo salto tecnológico

Tendo em mente, ainda que de forma breve, as especificidades da terceira


revolução tecnológica, podemos então lançar às bases para um questionamento: qual seria
o ponto de inflexão da base técnica característica da 3ª RT para uma 4ª RT supostamente
em curso? Qual seria esse traço distintivo capaz de apontar essa transformação?
Mandel salienta que a proporção entre a automação parcial e automação total
constitui um problema decisivo da 3ª RT. Segundo o autor,

Se processos semi-automáticos de produção forem introduzidos em


determinados ramos da produção em escala maciça, isso simplesmente
reproduzirá em nível mais alto a tendência inerente ao capital de aumentar sua
composição orgânica, e não levantará nenhuma questão teórica de importância.
No entanto, na medida em que a semi-automação, particularmente nos setores
fabricantes de bens industriais leves, conduz a uma redução substancial no
valor de bens de consumo necessários para realizar os salários reais, ela pode
facilmente acarretar um aumento não menos substancial na produção de mais-
valia relativa. [...] No entanto, se processos de produção plenamente
automatizados forem introduzidos em escala maciça em certas esferas de
produção, todo o quadro se altera, Nessas esferas, a produção de mais-valia
absoluta ou relativa deixa de aumentar e toda a tendência subjacente ao
capitalismo se transforma em sua própria negação: nessas esferas a mais-valia
praticamente deixa de ser produzida. (Mandel, 1982, 1939)

1
Mandel cita POLLOCK. Frederich. Automation. Frankfurt. 1964.
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Dignos de roteiro cinematográfico, é tentador o exercício da futurologia pelos


descaminhos da imaginação sobre uma “nova fase” do capitalismo plenamente
automatizado. Aliás, não são poucos os livros e artigos que tem sido produzidos sobre
este tema confundindo ciência, apologia e ficção de uma forma preocupante, conforme
comentaremos. Mas não daremos foco a uma discussão teórica sobre a
possibilidade/impossibilidade da automação no interior de relações de produção
capitalistas. Buscaremos antes distinguir qual a particularidade da automação na terceira
revolução tecnológica e qual seria a grande ruptura característica da automação
proporcionada por uma nova e revolucionária base técnica decorrente de um novo salto
tecnológico que tem sido chamado de “4ª revolução industrial”. Não só demarcar qual
seria essa diferença específica mas também averiguar se esta se põe já na realidade na
esfera produtiva de forma significativa é uma de nossas preocupações.
Analogamente ao que Marx distinguiu como duas fases do desenvolvimento da
grande indústria, Mandel também aponta para uma lógica similar no que diz respeito à
automação dentro da 3ª RT no “capitalismo tardio”. Segundo ele:

Assim como na primeira fase da grande indústria de operação mecânica, as


grandes máquinas não eram produzidas mecanicamente mas de maneira
artesanal, na primeira fase da automação atualmente em processo, os conjuntos
de máquinas automáticas não são produzidos automaticamente mas na linha de
montagem. (Mandel, 1982, p. 145).

O que se pode perceber é, então, que até o momento em que escreve na década de
1970, Mandel afirma que a esfera de produção no capitalismo tardio é caracterizada por
uma unidade contraditória de empresas não automatizadas, semi-automatizadas e
plenamente automatizadas. Inclusive, o autor registra que a indústria produtora de meios
eletrônicos de produção era, à época, particularmente portadora de uma baixa composição
orgânica de capital.
Mandel, citando Rezler (1969), afirma que o campo da terceira revolução
industrial é delimitado por quatro formas de automação: a) transferência de partes entre
processos de produção sucessivos, baseada em dispositivos automatizados (como na
indústria automobilística de Detroit na década de 1970); b) processos em fluxo contínuo,
baseados no controle automático do fluxo e de sua qualidade (como na indústria química,
nas refinarias de petróleo e nos equipamentos de gás e eletricidade na década de 1970);
c) processos controlados por computação em qualquer unidade fabril; d) diferentes
combinações dos três sistemas mencionados. A extensão e a importância que a automação
(nestes moldes) assumiu no período estudado por Mandel pode ser melhor compreendida
com o seguinte dado:

Em 1963, esse levantamento [empreendido pela companhia McGraw-Hill]


indicou que cerca de 7 bilhões de dólares, ou 18% do investimento bruto na
indústria de transformação (e cerca de 1/3 do investimento em maquinaria)
estavam sendo gastos em equipamentos que os informantes consideravam
automatizados ou avançados. (Froomkin, 1968, p. 180)

Entretanto, ainda assim as empresas e ramos plenamente automatizados de


produção não passavam, até aquele momento, de uma “pequena minoria” (MANDEL,
1982, p. 1939), assim como as empresas e ramos semi-automatizados também se
mostravam incapazes de provocar uma redução significativa no número de homens-horas
trabalhados e, consequentemente, a quantidade de trabalho na indústria continuava a
aumentar. Nesse sentido, para Mandel, na vigência do que chamou de “primeira fase da
automação”, o capitalismo tardio permanecia sendo definido pela concorrência
intensificada entre grandes empresas e entre estas e os setores não monopolistas da
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indústria – processo que, em seu conjunto, não se distingue qualitativamente do


capitalismo monopolista “clássico” do momento do imperialismo.
O autor ressalta então que o salto para uma “segunda fase da automação”, em que
processos de produção plenamente automatizados fossem introduzidos em escala maciça
em certas esferas de produção, traria à tona uma situação completamente nova, pois a
produção de mais-valia absoluta ou relativa deixaria de aumentar de forma drástica,
causando uma série de contradições para as tendências subjacentes ao capitalismo.
Porém, mais importante do que arriscar antever os efeitos, é preciso estabelecer qual seria
a característica distintiva desta “segunda fase da automação”. Seguindo a lógica das
“fases” do desenvolvimento da grande indústria, Mandel assinala que

a produção automática de máquinas automáticas representaria um novo ponto


de inflexão, em termos qualitativos, igual em significado ao aparecimento da
produção mecânica de máquinas em meados do século XIX, enfatizada por
Marx. (Mandel, 1982, p. 145).

Temos então um traço fundamental a ser explorado como parâmetro para delimitar
a razoabilidade de qualquer afirmação que aponte para o surgimento de um novo salto
tecnológico significativo na dinâmica da acumulação. Devemos buscar pois, na realidade,
informações e dados capazes de demonstrar se de fato ocorreu ou está ocorrendo nos
últimos 40 anos, desde a publicação de “O capitalismo Tardio”, a introdução, em escala
maciça, de processos plenamente automatizados, especialmente no Departamento I (“a
produção automatizada de máquinas automáticas”).
Como, porém, nossa pesquisa sobre estes dados ainda se encontra em
desenvolvimento, restringiremos nosso objeto, focando a análise primeiro nas condições
sócio-econômicas das últimas décadas enquanto pano de fundo para uma nova revolução
tecnológica e, finalmente, nos dados apresentados pelos textos e pronunciamentos que
constituem as principais referências sobre a “4ª revolução industrial” até o momento, bem
como outras obras que consideramos importantes para compreender o problema,
ponderando a razoabilidade de seus argumentos e avaliando a pertinência dos dados e
informações exibidos.
Partimos de três textos chave, talvez os mais mencionados internacionalmente nas
pesquisas, artigos e reportagens a respeito do tema, sendo eles os trabalhos de Frey &
Osbourne (2013), Schwab (2016), McKinsey Global Institute - MGI (2013).

O contexto da acumulação

Um esforço preliminar nos levou à sistematização2 proposta por Schwab (2016, p.


19), diretor executivo do Fórum Econômico Mundial, segundo quem as “megatendências”
condutoras da 4ª RI podem ser organizadas em três grupos: as físicas (veículos autônomos,
manufatura aditiva, robótica avançada, novos materiais), as digitais (inteligência artificial,
internet das coisas, nuvens e plataformas digitais de serviços) e as biológicas
(sequenciamento genético). Quais destas tecnologias emergentes tem o maior potencial para
aumentar a produtividade de modo suficiente a atender os critérios estabelecidos por Mandel
para definir uma revolução tecnológica? A classificação do Instituto Global McKinsey (MGI,
na sigla em inglês) a respeito das “tecnologias disruptivas” (MGI, 2013) é bastante relevante
neste sentido. Elas são distinguíveis por seu o maior potencial para gerar impacto econômico

2
O relatório “Advanced Manufacturing – A snapshot of priority technology areas across the Federal
Governement” do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia dos EUA (NTSC, da sigla em inglês) tem
sido uma das principais fontes oficias para especificar quais são de fato as novas tecnologias que despontam
como centrais na chamada “indústria 4.0”. A sistematização de Schwab é bastante pertinente com o
relatório.
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substancial e uma ruptura na próxima década. A lista do MGI coloca os seguintes termos para
atingir esta classificação: o rápido avanço (por exemplo, a tecnologia de sequenciamento
genético); o amplo alcance (por exemplo, internet móvel); o potencial de criar impacto
econômico (por exemplo, robótica avançada) e o potencial de mudar o status quo (por
exemplo, tecnologia de armazenamento de energia). As estimavas do MGI apontam que o
impacto econômico destas tecnologias – baseado nas quedas em seus preços, na sua difusão
e no melhoramento de sua eficiência – movimentará entre 14 e 33 trilhões de dólares por ano
em 2025.
O peso real que os investimentos nessa empreitada tecnológica já exercem na
economia mundial é realmente impressionante. Só no ano de 2011, o governo alemão
disponibilizou mais de 200 milhões de dólares para criação da plataforma “Industrie 4.0”
(cf. Comissão Europeia, 2017). Os EUA, desde 2014, tem disponibilizado verba federal
que varia de 70 a 110 milhões de dólares por ano3 para o programa da manufatura
avançada. O Japão prometeu totalizar até 2020 investimentos governamentais na casa dos
700 milhões de dólares, conforme seu 5º Plano Básico de Ciência e Tecnologia aponta.
A China, sob o slogan do projeto “Made in China 2025”, direcionou incialmente 24
bilhões de dólares para fundos destinados à inovação (cf. Wübbeke et al. 2016). Esta é
apenas uma pequena amostra de dados4 sobre os países que foram pioneiros. Deve-se
levar em conta a potência dos investimentos privados5 e também as iniciativas de outros
países6 que vem a reboque desta que parece ser uma nova estratégia do capitalismo
globalmente para reverter o quadro econômico que vem se arrastando nas últimas
décadas.
Três fatores inter-relacionados são centrais para compreender as possíveis
consequências do implemento massivo destas novas tecnologias na produção industrial e
em outros setores: o potencial da automação (e a consequente substituição do trabalho
humano por robôs ou tecnologias capazes de supri-lo), o aumento do desemprego e a
queda nos níveis salariais em face do aumento do stock de força de trabalho disponível e
desocupada. Para ilustrar a relação automação x desemprego x queda nos níveis salariais,
não é preciso voltar muito no tempo. A Alemanha experimenta consequências delicadas
decorrentes desta equação. Estudos recentes (cf. Dauth et al., 2017) apontam que no país
que supera todas as regiões do planeta na utilização de robôs7 (atrás apenas da Ásia), o
setor manufatureiro - representante de uma das maiores parcelas de empregos industriais
do país (por volta de 25%) – observou uma perda de 275.000 postos de trabalho pois,

3
Dados disponibilizados pelo próprio site oficial do programa: https://www.manufacturing.gov/funding/
Acesso em 04/01/2018
4
Deve-se considerar a participação destes investimentos no PIB dos mencionados países e a evolução desta
participação em comparação com outros períodos de inovação. O levantamento destes dados é abrangido
pelos objetivos específicos deste projeto.
5
Exemplos como os da Apple - que anunciou investimento de 4 bilhões de dólares em contribuições diretas
para o fundo de manufatura avançada dos EUA (disponível em:
https://www.apple.com/newsroom/2018/01/apple-accelerates-us-investment-and-job-creation/) - e da
SoftBank (uma rede bancária japonesa) – que destinou 28 bilhões de dólares para o seu Vision Fund, um
fundo voltado para investimentos em alta tecnologia (disponível em:
http://money.cnn.com/2017/10/20/technology/softbank-masayoshi-son-vision-fund-
technology/index.html) devem ser considerados para um correto dimensionamento dos investimentos em
pesquisa e desenvolvimento.
6
O Brasil, por exemplo, através do Banco Nacional para Desenvolvimento Econômico, pretende
desembolsar 22 bilhões de reais até 2020 para projetos industriais de alta tecnologia (disponível em:
http://www.valor.com.br/brasil/5218217/bndes-busca-aplicar-r-22-bi-em-projetos-de-alta-inovacao-ate-
2020)
7
Dauth et al. (2017) apontam que desde 1994 a Alemanha apresenta uma utilização de robôs em maior
escala do que nos EUA e em todo o continente Europeu. Em 2014, a diferença nesta escala atingiu uma de
suas maiores marcas: 7.6 robôs para cada mil trabalhadores humanos na Alemanha contra 2.7 no restante
da Europa e 1.6 nos Estados Unidos.
63
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conforme detalham Dauth et. al. (2017), uma média de dois empregos humanos foram
substituídos a cada robô instalado na produção entre 1994 e 2014. Paralelamente, a maior
potência europeia enfrenta uma das maiores crises relativas ao desemprego e baixos
salários das últimas décadas. Em 2016, o programa conhecido por “Hartz IV”, do governo
federal, registrou a marca de 6 milhões de cidadãos8 em situação de vulnerabilidade social
(2,6 milhões oficialmente desempregados, 1,7 milhões empregados em subempregos e
1,6 milhões de filhos dos assistidos) beneficiários deste que é o atual modelo alemão para
gestão da pobreza, aprofundada ainda mais após a implementação da “Agenda 2010”,
cujo escopo foi a desregulamentação do mercado de trabalho. Dados do relatório do
Instituto de Ciências Econômicas e Sociais da Agência Federal do Trabalho da Alemanha
permitem mensurar os impactos desta regulamentação: os empregos temporários
passaram de 300 mil contratados em 2000 para aproximadamente 1 milhão em 2016,
aumentou de 18% para 22% a proporção de trabalhadores considerados pobres (com
pagamentos inferiores a 979 euros por mês) e, atualmente, 4,7 milhões de trabalhadores
ativos sobrevivem com empregos que pagam menos do que 450 euros por mês.
É preciso colocar a experiência alemã em perspectiva com outros dados
alarmantes. O relatório de riscos globais do Fórum Econômico Mundial sugere que até o
ano de 2020, a automação potencializada pelo novo salto tecnológico colocará em risco
de extinção 47% dos postos de trabalho só nos Estados Unidos (cf. Frey; Osbourne, 2013).
Outro documento produzido pela Oxford Martin School (2016) aponta que o risco da
automação para os empregos nos países em desenvolvimento está estimado em 55% a
85% dos postos de trabalho. Grandes economias emergentes estarão sob alto risco,
inclusive a China (77%) e a Índia (69%), proporções maiores do que o risco médio (57%)
dos países desenvolvidos integrantes da OCDE (Organização para cooperação e
desenvolvimento econômico).
É preocupante, por exemplo, que a própria Organização Internacional do Trabalho já
esteja apontando como possibilidade (e mesmo uma necessidade) em seu relatório “The
future of work we want: a global dialogue” (2017) as recomendações sobre uma “renda básica
cidadã”. Trata-se de uma revitalização de proposta antiga, a dos “serviços universais”
(também chamada de “programa da renda mínima” ou “dividendo social”), que consiste no
fornecimento universal pelo Estado de uma renda mínima para todos os seus cidadãos ou
para parcelas vulneráveis economicamente. A proposta é um tema da moda também entre
magnatas da tecnologia, além de ser seriamente debatida institucionalmente por governos de
vários países como resposta à desigualdade social9. A Renda Básica Universal (RBU)
constantemente tem sido associada como resposta ao implacável aumento do desemprego
que pode ser gerado nos próximos anos em função da automação. A princípio uma saída
interessante como garantia de direitos fundamentais para os trabalhadores ameaçados pelo
desemprego, é preciso ir além da aparência benevolente da RBU e analisar seus fundamentos
dentro de uma lógica que pressupões a compra e venda da força de trabalho, com a
apropriação privada dos lucros decorrentes de sua exploração – ou seja, reconhecendo

8
Cf. CYRAN, Olivier. L’enfer du miracle Allemand. Le Monde Diplomatique – setembro de 2017.
Disponível em: https://www.monde-diplomatique.fr/2017/09/CYRAN/57833 Acesso em 23/01/2018.
9
Sam Altman, presidente da Y Combinator (que possui ativos em importantes empreendimentos como
Airbnb, Reddit e Dropbox, por exemplo), financia, por meio de sua companhia, um projeto em Oakland,
na Califórnia que começou este ano distribuindo entre US$ 1 mil e US$ 2 mil mensais a cem participantes
e pretende expandir para mil este número. A cidade de Utrecht, na Holanda, colocou em prática em janeiro
de 2016 um programa que vai pagar 900 euros para adultos morando sozinhos e 1.300 euros para casais. A
Finlândia também anunciou um projeto piloto semelhante. O governo separou 20 milhões de euros para
financiar uma iniciativa de dois anos, de 2017 a 2019, que vai pagar uma quantia mensal entre 800 e 1000
euros - o valor ainda está em discussão. A ONG americana GiveDirectly que tem como principais doadores
companhias e empresários do Vale do Silício, dá diretamente aos moradores de vilarejos rurais pobres no
Quênia cerca de US$ 22 por mês para cada beneficiário. Atualmente com 100 beneficiários, a expectativa
da ONG é atingir até 16 mil pessoas no próximo ano.
64
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oficialmente o fato (a reprodução do pauperismo e da desigualdade no processo de


acumulação de capital), sem, contudo, solucionar a contradição central.
Outro fator que chama atenção quanto a um novo salto tecnológico diz respeito à
relação dos investimentos produtivos com uma alegada tendência de alargamento do
capital financeiro. Por isso, compreender os processos de financeirização da economia
mundial é determinante para uma correta caracterização do que pode significar uma nova
revolução tecnológica em gestação. É que a liberalização dos capitais financeiros,
intensificada a partir da década de 1970, tem sido apontada por muitos autores (cf.
Chesnais, 2005; Lapavitsas, 2009; Dumenil e Levy, 2014) como um importante
deslocamento na estratégia de acumulação capitalista, dirigindo para o setor financeiro as
tentativas de obtenção de lucro como forma de reação aos assombros da lei da queda
tendencial da taxa de lucro10. Kliman (200, p. 76) demonstrou essa queda nas companhias
dos EUA: entre 1950 (início dos “Anos Dourados” do capitalismo) e 2009 a taxa de lucro
despencou de 45% para menos de 25%, índice similar aos padrões de acumulação
anteriores de 1929. Segundo o economista, essa queda tem sido majoritariamente
provocada pelo aumento na composição de valor do capital, observado principalmente a
partir da década de 1970 (cf. Kliman, op. cit, p. 130), já que a taxa de exploração do
trabalho tem sofrido pouca alteração desde 194711. Roberts (2016, p. 60) chama a atenção
para o fato de que desde a segunda metade da década de 1960 a queda na taxa de lucro
começa a despencar, mormente devido aos largos investimentos em tecnologia de
produção (capital constante). Entretanto, os efeitos desta queda só começam a ser sentidos
em meados da década de 1970, quando a maior recessão mundial desde 1929 explode.
A grande questão reside em perceber quais alternativas restaram ao capital se nem
as estratégias da financeirização, nem a tímida recuperação proveniente das apostas
neoliberais da década de 1980 e nem o pequeno impulso provocado no início dos 2000
pelos investimentos em computação foram capazes de restaurar as taxas de lucro dos
“anos dourados”. É sob essa perspectiva que as promessas de uma quarta revolução
industrial precisam ser compreendidas. Isso porque, ao que tudo indica, sob o rótulo de
“indústria 4.0” abriga-se uma nova estratégia organizada pelo centro do capitalismo
mundial em busca do aumento da produtividade do trabalho através de investimentos em
capital constante para promover um escape relativo da lei da queda tendencial da taxa de
lucro ou mesmo para neutralizá-la. A questão passa, portanto, invariavelmente pela busca
de especificidades (não só em termos de inovação) para caracterizar um novo fenômeno
de inovação tecnológica verdadeiramente revolucionário (no sentido definido por Mandel
e não no sentido sensacionalista do termo). Enfrenta-se assim a necessidade de ponderar
se há de fato uma disruptura, para usar linguagem corrente, capaz de impor uma situação
completamente nova, algo fora dos padrões inaugurados pela incorporação e difusão da
microeletrônica e da informática na 3ª RI. Para isso, nos questionaremos sobre os pontos

10
Apesar de que economistas clássicos como Smith e Ricardo já tivessem sido capazes de perceber uma
tendência geral das taxas de lucro caírem a longo prazo, foi Marx quem concebeu a queda tendencial da
taxa de lucro como lei fundamental da economia política no capitalismo. Para entender essa “lei” é preciso
compreender a seguinte expressão l = m/c+v em que l = taxa de lucro, m = taxa de exploração (ou mais-
valor, a parcela do produto do trabalho apropriada pelo capitalista sem remuneração equivalente para o
trabalhador, onde o valor, segundo Marx, é criado na produção capitalista), c = capital constante (ativos
fixos, maquinário e equipamentos para a produção) e v = capital variável (valor referente a remuneração da
força de trabalho, salários). Com o implemento tecnológico, o valor do constante (c) tende a aumentar (pois,
como pressuposto do capitalismo, a produtividade do trabalho se coloca como objetivo permanente).
Mantida constante a taxa de mais-valor (m) e o valor do capital variável (v), pela expressão matemática, a
taxa de lucro (l) tende a cair. Ou seja, em termos gerais, a taxa de lucro desce na razão contrária dos
investimentos em capital constante. Cabe a menção de que o próprio Marx aponta contratendências, isto é,
outros fatores capazes de, sob certas circunstâncias, conter esta tendência. (Cf. Marx, 1986).
11
Segundo o autor, entre 1947 e 2007 a taxa de mais valia sofreu apenas uma pequena depreciação de 3.9%.
65
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que tem sido trazido pela literatura como inflexões suficientes para comprovar esse novo
salto tecnológico.

Klaus Schwab e as expectativas do Fórum Econômico Mundial

O diretor do Fórum Econômico Mundial (WEF na sigla em inglês) publicou em


2016 o seu “Fourth Industrial Revolution”. Por muitos citado, o livro se tornou um livro
de cabeceira para os entusiastas das novas tecnologias “disruptivas”. De fato, Schwab
aponta uma série de “maravilhas tecnológias” que podem se tornar realidade nos
próximos anos: de carros auto-pilotados a microchips implantados em forma de tatuagem
em seres humanos.
Schwab se arrisca por vários campos em sua análise: vai dos possíveis impactos
causados pela “quarta revolução industrial” no meio ambiente e nas relações de gênero
(homens e mulheres) aos dilemas éticos que podem ser desencadeados pela inteligência
artificial e nano robótica. Sem botar de lado a importância desses assuntos, não passam
de devaneios ou meras apostas emocionadas no contexto geral do livro pois, no que diz
respeito à consistência dos dados econômicos apresentados para sustentar a tese da 4ª RI,
Schwab não convence com seus números. Os dados apontados, no geral, não passam de
comparativos impactantes (vide dados sobre emprego no vale do silício e acesso à
internet) ou de previsões e estimativas.
Aquilo que deveria ser mais essencial na discussão sobre um novo patamar
tecnológico fica de fora. Não há nenhuma informação relevante sobre a implementação
dessas novas tecnologias na esfera da produção industrial, assim como não há sequer
comentários sobre a disponibilidade dessas tecnologias em formas de máquinas prontas
para serem introduzidas na indústria de bens de capital. Aliás, no que diz respeito às
categorias essenciais do setor produtivo (de bens de capital ou de consumo) não há senão
informações soltas dentro de “estimativas” para a próxima década, sendo as mais
relevantes aquelas relativas ao desemprego. Neste ponto, Schwab se firma no relatório de
Frey e Osbourne como argumento principal.
A seção do livro voltada para os impactos na produtividade é frustrante.
Fraseologia batida sem dados consistentes. Nesta seção não há, aliás, sequer previsões
futurologísticas como na parte sobre “tipping points” da tecnologia.
De modo geral, Schwab recai em um erro muito comum nos textos sobre o
assunto: o seu foco é a aplicação das novas tecnologias no setor dos bens de consumo.
Não só na produção desses bens (manufatura avançada), mas principalmente nos produtos
em si. Focaliza também a aplicação dessas tecnologias no setor de serviços e em áreas da
economia que só tem relação indireta com a produção (gestão e circulação).
Aparentemente, o contato com essas camadas mais evidentes e aparentes da realidade
(afinal, cotidianamente estamos em contato com celulares, computadores, aplicativos
modernos para serviços, etc) conduz não só Schwab, mas uma série de outros autores, a
acreditar que a aplicação de novas tecnologias para criar produtos com softwares
sofisticados e prestação de serviços de forma cada vez mais ágil, eficiente e portátil
constitui, na verdade, uma evolução no próprio modo de produção.
De fato, a aplicação das potencialidades da eletricidade na segunda revolução
tecnológica à produção de bens de consumo gerou grandes transformações na dinâmica
da acumulação, criando condições de possibilidade mesmo para uma “alavancada” no
departamento I na primeira metade do século XX, conforme demostramos. Mas isso não
implica, de modo algum, uma revolução na esfera da produção, o que é, em última
instância o parâmetro fundamental para aferição da base técnica de um determinado
período.
Em conclusão, Schwab não comprova que a 4ª RI é uma realidade nem enquanto
tendência. Sua análise se limita ao entusiasmo com novas bugigangas para entretenimento
66
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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

e avanços na área da saúde, transporte e informação. Talvez a única coisa valiosa de suas
expectativas seja o que republica de Frey e Osbourne no que diz respeito à potência da
automação para ampliação do desemprego – o que, conforme demonstramos, também não
constitui análise satisfatória.

Frey e Osbourne: atualização das estimativas keynesianas do desemprego


tecnológico

Para responder à pergunta “o quão suscetível à automação estão os postos de


trabalho?”, os autores da Oxford Martin School se baseiam na literatura existente sobre
as tecnologias do machine learning (ML) e mobile robotics (MR) para, através de uma
metodologia própria, delinear uma estimativa sobre como a computadorização implicará
na substituição dos trabalhadores por máquinas e sistemas computadorizados.
Pressupõe os autores a clássica previsão keynesiana, segundo a qual, em linhas
gerais, o desemprego tecnológico generalizado seria uma tendência em virtude do fato de
que o ritmo em que as descobertas de meios de economizar o uso da mão de obra
constantemente supera o ritmo em que se pode achar novas formas de se empregá-la. Essa
pressuposição marca inclusive a estrutura argumentativa do trabalho, principalmente a
parte 2 (“A history of technological revolutions and employement”). Não há uma
preocupação intensiva com a explicação dos fatores que levam ao desenvolvimento
tecnológico de forma crítica além da premissa keynesiana, aliás há uma influência do
pensamento de Schumpeter e a sua explicação sobre “destruição criativa” sobre os
autores. De modo geral, nesta parte do texto, há uma preocupação em demonstrar a
articulação de fatores como os níveis salariais, a introdução de novas tecnologias, a
alteração do perfil da força de trabalho (blue collar workers x white colar workers) e os
níveis de desemprego ao longo da história.
A forma como articulam essas categorias demonstra que a apreensão dos autores
não tangencia o problema da redução do tempo de trabalho necessário e do mais-valor,
ou seja, se limita a analisar decorrências de movimentos mais “superficiais” da realidade,
as camadas mais aparentes da produção e circulação de mercadorias. O problema da
superpopulação relativa surge não como dado estrutural, mas como contingência de um
dado patamar tecnológico que pode ou não estar acompanhado da realocação das massas
de trabalhadores em outros setores.
O ponto mais importante do trabalho de Frey e Osborne é, contudo, a sua
estimativa sobre a susceptibilidade dos empregos à automação. A metodologia
empregada e os achados podem ser sintetizados pelas próprias palavras dos autores:

We distinguish between high, medium and low risk occupations, depending on


their probability of computerisation. We make no attempt to estimate the
number of jobs that will actually be automated, and focus on potential job
automatability over some unspecified number of years. According to our
estimates around 47 percent of total us employment is in the high risk category.
We refer to these as jobs at risk – i.e. jobs we expect could be automated
relatively soon, perhaps over the next decade or two. Our model predicts that
most workers in transportation and logistics occupations, together with the
bulk of office and administrative support workers, and labour in production
occupations, are at risk. These findings are consistent with recent technological
developments documented in the literature. More surprisingly, we find that a
substantial share of employment in service occupations, where most us job
growth has occurred over the past decades (Autor and Dorn, 2013), are highly
susceptible to computerisation. Additional support for this finding is provided
by the recent growth in the market for service robots (MGI, 2013) and the
gradually diminishment of the comparative advantage of human labour in tasks
involving mobility and dexterity (Robotics-VO, 2013). (FREY, OSBORNE.
2013, p. 49).
67
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
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O que mais chama atenção ao longo das previsões sobre a informatização é o fato
de que se baseiam em estimativas como a do MGI (2013) que sugere que algoritmos
sofisticados poderiam substituir aproximadamente 140 milhões de trabalhadores do
conhecimento em tempo integral em todo o mundo. Poderiam, substituiriam, seriam.
Nenhum dado concreto sobre a implementação atual dessas tecnologias, a não ser
aumento de vendas no mercado de robôs de serviço e menções a protótipos de robôs e
outras tecnologias “disruptivas”, mas cuja difusão não é sequer mencionada, mas apenas
tem comentada o que poderiam fazer caso implementados.
Em síntese, o esforço de Frey e Osborne, embora deva ser valorizado, carece de
evidências concretas sobre essa tendência dos próximos anos de implementação de
serviços informatizados capazes de substituir massivamente a força de trabalho humana.
É talvez, justamente pelo caráter especulativo (embora não totalmente carente de
fundamentos) deste que tem sido o principal trabalho citado pelos comentadores da 4ª RI,
que a falta de dados convincentes sobre a atualidade seja um problema quase generalizado
nas obras sobre o assunto.

O relatório sobre “tecnologias disruptivas” do MGI

Neste relatório, o McKinsey Global Institute (MGI) avalia o potencial impacto


econômico e a ruptura de grandes áreas de tecnologia que tem avançado rapidamente. Na
pesquisa, classificam-se 12 áreas de tecnologia com potencial de impacto maciço sobre
as indústrias e economias, visando também quantificar o impacto econômico potencial de
cada tecnologia em um conjunto de “aplicações promissoras” até 2025.
Dos documentos comentados, este é o que traz dados mais interessantes
relacionados ao grau de implementação e difusão das novas tecnologias, conforme no
quadro a seguir.
Tabela 1 (MGI, 2013, p. 17)

68
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Ainda assim, uma leitura integral do documento demonstra que há também


elementos de alarmismo mesmo na conjugação destes dados. Aliás, há um levantamento
de informações cujos números parecem, a primeira vista, surpreendentes, mas articuladas,
não dão demonstrativo da alegada tendência à transformação radical da economia. Em
termos financeiros, a previsão é que essas 12 áreas passem saltem de um movimento anual
de US$ 13 trilhões por ano para US$ 33 trilhões em 2025 (MGI, 2013, p. 23). Entretanto,
mais uma vez, a metodologia e os dados trazidos para realização da estimativa deixam a
desejar. Não havendo evidências contundentes, trata-se de outro relatório que se baseia
em estimativas “otimistas”, mas cujas provas de seu realismo não se mostram
satisfatórias, o que reforça uma hipótese de que existe uma certa tônica “propagandista”
nos relatórios de órgãos internacionais a respeito da 4ª RI. Fica indicado como ponto a
ser investigado em estudos futuros, sobretudo levando-se em conta os números reais dos
investimentos nessas novas “tecnologias disruptivas”, se haveria alguma semelhança
entre as apostas na 4ª RI e a chamada “bolha da internet” do início dos anos 2000.
69
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Considerações Finais

Até o momento, os principais textos usados como aportes de dados para


fundamentar previsões sobre um novo salto tecnológico, a 4ª RI, tem se mostrado
insuficientes para comprovar os fenômenos que os próprios autores alegam estar em
processo de desenvolvimento. Parece haver um hiperdimensionamento da questão das
inovações tecnológicas, tomando a aplicação de novas tecnologias como inteligência
artificial, big data, etc, aos setores da circulação (transporte, logística) e serviços como
pressuposto suficiente para alegar a existência de um novo patamar tecnológico.
Ainda que existam elementos conjunturais, como a queda nas taxas de lucro,
capazes de motivar uma nova empreitada do capital em busca do aumento da
produtividade via desenvolvimento tecnológico, é preciso confrontar dados reais sobre
investimentos nas novas tecnologias “disruptivas” bem como a especificidade destas
mesmos enquanto maquinas plenamente automatizadas para poder afirmar sobre a
existência de indícios razoáveis sobre a chegada de um novo ponto de inflexão rumo a
uma fase superior da automação.
Por hora, a pesquisa precisa avançar na coleta de dados e realizar um escrutínio
mais aprofundado de novos trabalhos e relatórios atualizados sobre a situação da indústria
4.0 ao redor do mundo.

Referências

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

A CRÍTICA CLÁSSICA DA TÉCNICA NO DEBATE JURÍDICO

Alice Nogueira Monnerat


Universidade Federal de Juiz de Fora
alicenmonnerat@gmail.com
Resumo
O artigo tem como principal objetivo investigar a crítica clássica à técnica, mais
especificamente no âmbito jurídico, isto é, a discussão acerca da justiça e da técnica
realizada na ciência clássica burguesa. Para tanto, inicialmente, é feita uma retomada
acerca do desenvolvimento científico clássico da burguesia, com ênfase, de forma
breve, na crítica clássica à técnica. Posteriormente, trabalhamos com as obras A
decadência do ocidente de Oswald Spengler, The theory of business enterprise, de
Thorstein Veblen e Le Bourgeois - Deuxième Livre, de Werner Sombart, para assim
analisar as especificidades da crítica clássica à técnica dentro do debate jurídico.

Palavras-chave: técnica, direito, apologética, irracionalismo.

THE CLASSICAL CRITICAL OF THE TECHNIQUE IN THE LEGAL


DEBATE
Abstract
The main objective of the article is to investigate the classical critique of technique, more
specifically in the juridical sphere, that is, the discussion about justice and technique
carried out in classical bourgeoisie science. For this, initially, a return is made to the
classical scientific development of the bourgeoisie, with a brief emphasis on the classical
critique of technique. Subsequently, we work with the The Decline of the West of Oswald
Spengler, The theory of business enterprise of Thorstein Veblen and Le Bourgeois -
Deuxième Livre of Werner Sombart, in order to analyze the specificities of classical
criticism and technique within the legal debate.

Keywords: technique, law, apologetic, irrationalism.

1. INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo investigar a crítica clássica à técnica, mais
especificamente no âmbito jurídico, ou seja, a discussão que envolve direito e técnica na
ciência clássica burguesa. Para isso, em um primeiro momento, faremos uma breve
exposição acerca do desenvolvimento científico clássico da burguesia, retomando alguns
autores e criando assim a contextualização necessária para adentrar, de forma breve, no
âmbito da crítica clássica à técnica. No segundo momento, faremos a análise das obras de
alguns autores, buscando encontrar problematizações que façam à correlação entre a
crítica da técnica e o debate jurídico. Nesse artigo trabalhamos especificamente com as
obras A decadência do ocidente de Oswald Spengler, The theory of business enterprise,
de Thorstein Veblen e Le Bourgeois - Deuxième Livre, de Werner Sombart.

2. A CRÍTICA CLÁSSICA À TÉCNICA


Carlos Nelson Coutinho (2010) nos fala da divisão da história da filosofia
burguesa em duas fases, indo a primeira delas dos pensadores do Renascimento até Hegel,
e a segunda, caracterizada por uma ruptura ocorrida em meados de 1830 a 1848, seria o
período de decadência da filosofia burguesa: “[...] uma progressiva decadência, pelo

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abandono mais ou menos completo das conquistas do período anterior, algumas


definitivas para humanidade, como é o caso das categorias do humanismo, do
historicismo e da razão dialética” (COUTINHO, 2010, p. 21)
É em 1830 que se inicia o “processo de decomposição da filosofia burguesa
clássica”, processo esse que se encerra com a revolução de 1948, quando passa a
burguesia a cumprir o papel de defesa contra o proletariado, tendo terminado sua ofensiva
contra os resquícios do feudalismo (LUKÁCS, 1979, p. 32).
Lukács (1979, p. 38) coloca como a “camada social que se tornou depositária da
filosofia nova” passa a estudar cada vez menos a estrutura econômica social como
“problema filosófico”.
No que tange a divisão do trabalho no capitalismo, Lukács (1968, p. 63) aponta
como não apenas abarca toda a complexidade material e espiritual, como também se
“insinua profundamente na alma de cada um”, em um momento seguinte se mostrando
sob manifestações ideológicas. A aceitação, por parte dos pensadores do período da
decadência, de tais implicações da divisão do trabalho, de forma passiva, será um dos
atributos mais expressivos de tal período.
No campo ideológico, esta estreiteza encontra expressão no
contraste em moda nas concepções do mundo destas últimas
décadas: o contraste entre racionalismo e irracionalismo. A
incapacidade do pensamento burguês de superar este contraste
deriva, precisamente, do que ele tem raízes muito profundas na
vida do homem submetido à divisão capitalista do trabalho. [...]
O racionalismo é um direta capitulação, covarde e vergonhosa,
diante das necessidades objetivas da sociedade capitalista. O
irracionalismo é um protesto contra elas, mas igualmente
impotente e vergonhoso, igualmente vazio e pobre de
pensamento (LUKÁCS, 1968, p. 69).

O irracionalismo irá, portanto, se colocar como a ideologia do período de crise.


Sua característica mais marcante sendo a transformação da condição do ser humano
dentro do imperialismo na “condição humana geral e universal” (LUKÁCS, 1979, p. 57).
Nesse caso, o que é racional será inimigo da personalidade humana, sendo esta
naturalmente irracional. Assim, a crítica romântica irá proporcionar o desenvolvimento
de um apologética mais “complicada e pretensiosa”, que faz a defesa a partir da crítica
(LUKÁCS, 1968, p. 55), seus pensadores se afastando, consequentemente, de questões
econômicas, políticas e socais, sendo tal afastamento o respeito aos limites colocados pela
burguesia imperialista ao pensamento filosófico (LUKÁCS, 1979).
Acerca da crítica irracionalista clássica à técnica, Heidegger figura como um de
seus principais representantes:
[...] o âmbito em que Heidegger situa e critica a técnica não é
outro senão aquele em que, para Lukács, está o trabalho concreto
humano. E para o autor essa “determinação instrumental e
antropológica da técnica” deveria ser ultrapassada pela
fenomenologia – o mais importante não estaria na atitude ativa
do homem diante do mundo, o qual, por meio do trabalho, afasta
as barreiras naturais, tornando-se crescentemente socializado,
como ocorre em Marx e Lukács. O foco, antes, é um “deixar-
viger” que não se relacionaria à práxis transformadora da
“realidade objetiva”, mas à verdade alcançável pela filosofia.
Fins, meios, causalidade são também vistos de maneira

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essencialmente negativa pelo pensador de tal feita que as


relações propriamente materiais em que o homem atua
socialmente são vistas inelutavelmente como nefastas. A
técnica, pois, quando relacionada à produção, somente traria
mazelas, mazelas que alcançariam o “ocidente” (SARTORI,
2011, p. 78).

Sartori (2011, p. 79) atenta para o fato de Heidegger fazer a crítica a esfera
produtiva, porém, tal crítica não vem acompanhada de uma “análise histórica e social da
sociedade civil-burguesa”, sendo, a sociedade civil-burguesa, vista por Heidegger como
uma sociedade em decadente, onde o domina o chamado “homem vulgar” e a
“desenfreada técnica”.

3. O DEBATE JURÍDICO
3.1 Oswald Spengler
Adentrando ao debate jurídico, Spengler (1973, p. 440), em sua obra A decadência
do ocidente, traz a necessidade de uma concepção distinta de direito, que não tenha como
objetivo acumular riqueza, mas criar um “governo genuíno, distante dos proveitos
financeiros”. Aponta que o direito deve ir contra a democracia criada pelas potências
privadas da economia, dizendo que o confronto entre o “Dinheiro e o Direito” será uma
luta histórica, sendo o “Socialismo” o “desejo de criar, muito além de quaisquer interesses
de classe, uma poderosa organização político-econômica, um sistema de nobres cuidados
e deveres destinado a manter o conjunto ‘em forma’ para tal batalha”. O autor coloca a
“Máquina” como a “autêntica dona do nosso século”, estando próxima de “sucumbir a
uma potência mais forte”, o que levará ao término dos triunfos do “Dinheiro”.
Para Spengler (1973, p. 439), a “ditadura do Dinheiro” terá seu fim, pois, como
forma de pensamento, irá se extinguir quando pensar o mundo “até aos seus últimos
confins”. O autor (1973, p. 437) ressalta que a “nossa técnica, porém, há de deixar os
vestígios de sua presença, ainda quando todo o resto estiver desaparecido e olvidado”,
enquanto a “Política” arrastou povos e cidades e a “Economia humana” afetou os mundos
animal e vegetal, mas tão logo seus efeitos se apagaram.
Sua crítica irracionalista ao “Capitalismo” como “ditadura do Dinheiro” traz
portanto o “Direito” como salvação, um direito capaz de colocar ordem e de garantir a
vitória contra os “poderes do dinheiro” (SPENGLER, 1973, p. 440). Enquanto a técnica,
essa se coloca além das formas de pensamento, além da política e da economia, assim, na
visão de Spengler, a técnica permanece, e permanecerá (“sucumbirá”), às novas formas
de organização.

3.2 Thorstein Veblen


Veblen (1915, p. 271 e 272) traz a discussão acerca dos direitos naturais, e como
sua concepção partia de um ideal de igualdade entre os homens: direitos iguais a homens
iguais, estando os direitos de propriedade incluídos entre os direitos naturais. A liberdade
natural prescreve a liberdade de comprar e de vender, sendo apenas limitada pela
liberdade igual de outros para também comprar e vender. Veblen (1915, p. 274) ressalta
que a presunção é sempre de que o princípio do livre contrato deve ser deixado intacto
até onde for permitido pelas circunstâncias do caso, somente sendo possível que o cidadão
seja privado de vida, liberdade ou propriedade através do devido processo legal, sendo
que, mesmo o devido processo legal, parte da premissa de que são invioláveis os direitos
de propriedade.

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Para o autor, com a mudança gradual da situação econômica, o princípio de


liberdade contratual, não mitigável e inalienável, começa a se tornar obsoleto, não em lei,
mas na prática. Isso porque não se tornou um fato legal, na medida em que o
desenvolvimento econômico trouxe a padronização e restrição do sistema industrial,
padronização esta, imposta pela indústria de máquinas, que pode levar a possibilidade de
um indivíduo ou grupo de trabalhadores não ter um real poder de contratar livremente.
Assim, na vida prática, o trabalhador precisa aceitar um contrato específico para garantir
seu meio de vida. Porém, tal situação coercitiva não é vista como uma quebra de contrato,
não sendo condenável em vista dos princípios da liberdade natural (VEBLEN, 1915).
Veblen critica o conceito convencional de liberdade de escolha, associado aos
direitos naturais, que é sagrado e inalienável, dizendo que o interesse dos negócios pode
levar ao exercício dos direitos de propriedade de forma que desconsidere as necessidades
de um grupo ou classe, podendo inclusive atravessar as necessidades da comunidade no
geral.
Para Veblen (1915), as concepções de direitos naturais sob as quais a common
law repousa incorporam uma formulação que é reflexo das ilusões de um senso comum
inculcado pela disciplina da vida cotidiana do século XVII, assim, a disciplina da vida
cotidiana atual, de uma situação tecnológica e empresarial, inspira visões de senso comum
que estão, de certa forma, em desacordo com as noções de direitos naturais ainda
recebidas.
Veblen (1915) continua sua crítica nos dizendo que um governo constitucional é
um governo empresarial, em que o governo representativo apenas representa os interesses
empresariais, trabalhando no interesse dos chamados homens de negócios com
impressionante e consistente propósito.
Nas palavras do autor:
O governo tem, claro, muito mais a fazer além de administrar os
assuntos gerais da comunidade empresarial; mas na maior parte
do trabalho, mesmo naquilo que não é ostensivamente dirigido a
fins comerciais, está sob a vigilância dos interesses comerciais.
[..] A base do sentimento sobre a qual a aprovação popular de
um governo voltado para os negócios termina pode ser resumida
sob duas cabeças: patriotismo e propriedade. Ambos os termos
significam fatos institucionais que vêm do passado e que diferem
substancialmente da situação presente (VEBLEN, 1915, p. 286
e 287, tradução nossa).1

Completa Veblen (1915) dizendo que o caráter institucional da propriedade, sob


a disciplina moderna, premia a propriedade da propriedade em detrimento do operário
que a produziu. A situação moderna, para o autor, desde a revolução industrial, vai se
consolidando como uma situação de concorrência internacional nos negócios, o chamado
mercado mundial, em que, nessa competição internacional, a maquinaria e a política do
estado são levados ao serviço dos interesses maiores das empresas. Como consequência,
no comércio e na empresa industrial, homens de negócios de uma nação são colocados

1 No original: The government has, of course, much else to do besides administering the general affairs of
the business community; but in most of it work, even in what is not ostensibly directed to business ends, it
is under the surveillance of the business interests. [...] The ground of sentiment on which reata the popular
approval of a government for busineaa ends may be summed up under two heads : patriotism and property.
Both of these terms stand for institutional facts that have come down out of & past which differed
substantially from the present situation.

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contra os homens de negócios de outras nações e competem balançando com as forças do


Estado, sejam legislativas, diplomáticas e/ou militares, em um jogo em que vale a
vantagem pecuniária.
O autor aponta para a individualidade da empresa de negócios e da iniciativa
comercial. Ressalta como tal questão não é coletiva, pois não é da natureza do homem de
negócios individual, recuar quando enxerga uma possibilidade de ganho (1915).

3.3 Werner Sombart


Sombart (1928), em Le Bourgeois - Deuxième Livre, falará sobre a técnica em
um sentido mais estrito da palavra:
É impossível entender a natureza característica do homem
econômico moderno, sem levar em conta a orientação particular
da técnica, especialmente a de produção e transporte durante os
últimos cinco séculos. Por técnica, no sentido amplo da palavra,
quero dizer todos os processos que os homens usam para atingir
determinados objetivos, para atingir determinados fins. Mas
existe ainda uma técnica no sentido mais estrito da palavra, uma
técnica que eu chamaria voluntariamente instrumental, que
facilita ou torna possível o uso racional dos objetos concretos.
Esta é a única em que estamos interessados aqui. Quando a
instrumentalidade é usada para produzir bens, falamos da técnica
de produção; quando possibilita ou facilita o transporte de
pessoas, mercadorias ou notícias, estamos falando de tecnologia
de transporte. Em si, "técnica" não é uma "condição social", mas
um bem espiritual (SOMBART, 1928, p. 112, tradução nossa).2

Para o autor, a técnica não é simplesmente uma emanação do espírito capitalista,


afinal, diversas invenções surgem de forma inesperada. Sombart nos diz que os efeitos
produzidos pela técnica podem ser separados em dois grupos de acordo com o
favorecimento ou não da formação do espírito capitalista. Primeiramente, a técnica atuária
de forma direta ao despertar o espírito empreendedor, ampliando sua escala. Para
exemplificar, Sombart usa como exemplo as primeiras fases da evolução capitalista, antes
do ano 1484 - antes da invenção do astrolábio náutico -, era impossível para um navio se
orientar no mar, não sendo assim possível pensar em realizar expedições transoceânicas.
A invenção do astrolábio náutico foi o que tornou tais expedições possíveis, despertando
o espírito empreendedor dos homens daquela época (SOMBART, 1928).
Ou seja, na visão do referido autor, a técnica pode agir impulsionando o espírito
empreendedor ao colocar em voga possibilidades antes inexistentes:
E assim as coisas estão acontecendo, desde esses séculos
remotos até os dias atuais: qualquer invenção que tenha como

2 No original: Il est impossible de comprendre la nature caractéristique de l'homme économique moderne,


sans tenir compte de l'orientation particulière de la technique, surtout de la technique de la production et
des transports, au cours des cinq derniers siècles. Par technique, au sens large du mot, j'entends tous les
procédés dont les hommes se servent pour atteindre certains buts, pour réaliser certaines fins. Mais il existe
encore une technique au sens plus restreint du mot, une technique que je qualifierais volontiers
d'instrumentale, celle qui facilite ou rend possible l'utilisation rationnelle d'objets concrets. C'est cette
dernière quE seule, nous intéresse ici. Lorsque la technique instrumentale sert à produire des biens, nous
parlons de technique de la production; lorsqu'elle rend possible ou facilite le transport de personnes, de
biens ou de nouvelles, nous parlons de technique des transports. En elle-même, la « technique » n'est pas
une « condition sociale », mais un bien spirituel.

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objetivo dar ao processo de produção e transporte uma estrutura


mais ampla e o uso de meios mais intermediários, qualquer
invenção que tenha o efeito de estender o caminho da produção,
por assim dizer, age como estimulante para aqueles cujo gosto
por empreendimento ainda existe em estado latente: se a nova
forma de produção de bens, como que é determinada pela nova
técnica, possibilita a afirmação, a manifestação do espírito de
empreendimento, podemos dizer também que provoca essa
afirmação e essa manifestação (SOMBART, 1928, p. 114,
tradução nossa).3

Sombart (1928) afirma ser a indústria de meios de produção - indústria que produz
máquinas e máquinas para construção de máquinas - a indústria mais importante da época
em que escreve. Coloca como tais indústrias necessito da intervenção de empreendedores
competentes e possibilitam o florescimento amplo do espírito capitalista. Continua o autor
ressaltando os horizontes desconhecidos abertos pelo avanço técnico:
Desde que encontrou a possibilidade de fazer sem a ajuda da
natureza viva e organizando forças; desde que ela conseguiu usar
a energia que o sol acumulou por milhares de anos na terra;
desde que ela aprendeu a realizar seus fins com a ajuda de
substâncias mortas e forças "mecânicas", ela não conhece
limites, torna todos os dias possíveis coisas que a humanidade
sempre considerou impossíveis (SOMBART, 1928, p. 115,
tradução nossa).4

O autor nos diz para levar em conta a extensão do poder técnico de nossa
sociedade para compreender de forma plena a aspiração ao infinito e ao ilimitado que
caracteriza o espírito empreendedor. A forma como funciona a empresa capitalista
moderna reflete as possibilidades fornecidas pelo milagre tecnológico. Para Sombart, o
esforço que os homens de negócio fizeram para resolver os problemas trazidos pelo
progresso tecnológico impulsionou as almas dos grandes empreendedores, sendo uma das
principais características da tecnologia moderna o grande poder de transformação que
possui, trazendo constantemente novas invenções e assim criando novas possibilidades e
novas necessidades de organização técnica e econômica (SOMBART, 1928).
Sombart (1928), vem então apontar que a técnica, assim como traz forças às
manifestações dos sujeitos econômicos, também exerce uma grande influência no modo
de pensar do homem econômico, produzindo uma revolução intelectual, transformando o
pensamento, o tornando mais finalista, consciente e desperto, e favorecendo o
racionalismo. Racionalismo esse que, para o autor, constitui um elemento essencial do
3 No original: Et les choses se passent ainsi, depuis ces siècles reculés jusqu'à nos jours : toute invention
qui vise à donner au processus de la production et des transports un cadre plus vaste et comportant l'emploi
de moyens intermédiaires plus nombreux, toute invention qui a pour effet d'allonger pour ainsi dire le
chemin de la production, agissent comme des stimulants sur ceux dont le goût de l'entreprise n'existe encore
qu'à l'état latent : si le nouvelle forme de la production de biens, telle qu'elle est déterminée parla nouvelle
technique, rend possible l'affirmation, la manifestation de l'esprit d'entreprise, on peut dire aussi qu'elle
provoque cette affirmation et cette manifestation.
4 No original: Depuis qu'elle a trouvé la possibilité de se passer du concours de la nature vivante et de us

forces organisatrices; depuis qu'elle a réussi à utiliser l'énergie que le soleil a, depuis des milliers d'années,
accumulée au sein de la terre; depuis qu'elle a appris à réaliser ses fins à l'aide de substances mortes et de
forces « mécaniques », elle ne connaît plus de limites, rend tous les jours possibles des choses que
l'humanité avait de tout temps considérées comme impossibles, [...].

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espírito capitalista. Salienta como as inovações técnicas sempre tiveram papel importante
na formação do pensamento racional, principalmente no que diz respeito ao racionalismo
econômico, isso porque, o racionalismo econômico se diferencia das ciências do passado,
que eram puramente empíricas. A partir do século XVIII, a técnica começa a buscar a
redução da parcela de experiência pessoal e ampliar a utilização de dados de ciências
naturais:
A identidade da oposição que existe, por um lado, entre a velha
técnica e a tecnologia moderna e, por outro lado, entre a
mentalidade econômica do artesão e a do capitalista, é óbvia.
Agora, essas duas oposições são reduzidas à antinomia que
existe entre o empirismo e o racionalismo. Mas quando vemos a
mesma evolução, do empirismo ao racionalismo, sendo
realizada em dois campos de atividade tão próximos quanto a
tecnologia e a economia, podemos admitir, sem qualquer risco
de estarmos errados, que trata-se de uma relação de causa e
efeito, tendo o racionalismo técnico engendrado e promovido o
racionalismo econômico. Esta conclusão é, além do mais,
totalmente confirmada pelos fatos que nos mostram como o
racionalismo técnico molda a vida econômica e como a
tecnologia baseada na ciência favorece diretamente o
racionalismo econômico. No final, a organização da economia
privada na maioria dos ramos da indústria hoje está exatamente
de acordo com as demandas da tecnologia, e o chefe de uma
empresa não concebe seu sucesso de outra maneira além do que
de acordo com o grau de perfeição da técnica de produção
(SOMBART, 1928, p. 116)5.

O direcionamento calculista e preciso da economia foi possível graças a


progressiva melhora do aparato tecnológico, porém, Sombart (1928) sublinha, não se
pode esquecer que o pensamento científico da modernidade tende a reduzir às qualidades
à quantidades e é também fruto dos grandes avanços da técnica outra particularidade da
mentalidade moderna, que é o exagerado valor dado às coisas materiais.
Ficamos ricos rapidamente, a técnica se livrou do medo da peste
e da cólera; em um certo ponto, poderíamos até acreditar que
estávamos tocando a realização de uma paz perpétua: não é de
surpreender que, sob essas condições, os instintos inferiores do
homem, seu desejo de desfrutar sem impedimentos, seu amor
pelo conforto e bem-estar prevaleceu sobre suas aspirações

5 No original: L'identité de l'opposition qui existe, d'une part, entre la technique ancienne et la technique
moderne et, d'autre part, entre la mentalité économique de l'artisan et celle du capitaliste, saute aux yeux.
Or, ces deux oppositions se ramènent à l'antinomie qui existe entre l'empirisme et le rationalisme. Mais
lorsqu'on voit la même évolution, de l'empirisme au rationalisme, s'accomplir dans deux domaines d'activité
aussi proches que le sont la technique et l'économie, on peut admettre, sans risque de se tromper, qu'on se,
trouve en présence d'un rapport de cause à effet, le rationalisme technique ayant engendré et favorisé le
rationalisme économique.
Cette conclusion a priori se trouve d'ailleurs pleinement confirmée par les faits qui nous montrent à quel
point le rationalisme technique façonne la vie économique, et comment la technique à base scientifique
favorise directement le rationalisme économique. Au fond, l'organisation de l'économie privée, dans la
plupart de ses branches, se conforme aujourd'hui exactement aux exigences de la technique, et le chef d'une
entreprise ne conçoit pas son succès autrement qu'en fonction du degré de perfection de la technique de la
production.

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ideais. O rebanho pasta pacificamente nos pratos. A supremacia


que os interesses materiais adquiriram em nosso tempo só
poderia facilitar a orientação do empresário capitalista para uma
atividade puramente lucrativa, com o enriquecimento como
único propósito. A busca pelo dólar está longe de ser tão
imaginária quanto nos faria acreditar, do topo de suas torres de
ouro, alguns filósofos empreendedores. É o que constitui a
engrenagem mais importante no mecanismo da nossa economia
moderna, e o amor ao ganho, que o progresso da tecnologia
apenas exacerbou, constitui o principal elemento da organização
psíquica da economia. o homem econômico de nossos dias
(SOMBART, 1928, p. 118).6

Para Sombart (1928), a tendência de criar sem uma razão ou um propósito


definido é uma característica do homem econômico. Para o autor, tentou-se explicar tal
tendência através da psicologia, justificando-a como um tipo de alegria infantil diante do
novo, porém, ressalta, não se pode deixar de considerar que não modernidade essa alegria
é constante:
Agora, um século técnico como o nosso proporciona a esta
alegria um alimento constante, oportunidades ininterruptas, pode
vir à mente de um empresário que é vantajoso ou interessante
fazer tantas máquinas, aviões, etc. quanto possível, e que ele
encontrará alguma satisfação em realizar tal programa
(SOMBART, 1928, p. 119, tradução nossa).7

Na realidade, para o autor, a alegria infantil, é uma expressão das tendências gerais
da modernidade, havendo uma ligação direta entre o entusiasmo com o progresso, que
tanto empolga empresários, e a infantilidade otimista, uma mentalidade colonial, mas
também uma mentalidade de um homem que vive em um século técnico. A ideia de
progresso só faria sentido no século em que o poder técnico domina. Nas palavras do
autor:
Se a ideia de progresso, tão pouco justificada em geral,
tem algum significado, é apenas no domínio do poder
técnico. Embora não saibamos se a filosofia de Kant é
um "progresso" sobre as doutrinas de Platão, ou se as
doutrinas de Bentham estão "em progresso" sobre as de

6 No original: Nous nous sommes enrichis rapidement, la technique nous a débarrassés de la crainte de la
peste et du choléra; à un moment donné nous avions même pu croire que nous touchions à la réalisation
d'une paix perpétuelle : rien d'étonnant si, dans ces conditions, les instincts inférieurs de l'homme, son désir
de jouir sans entraves, son amour du confort et du bien-être l'ont emporté sur ses aspirations idéales. Le
troupeau paît paisiblement dans les grasses prairies.
La suprématie que les intérêts matériels ont acquise à notre époque n'a pu que faciliter l'orientation de
l'entrepreneur capitaliste vers une activité purement lucrative, ayant l'enrichissement pouf seul et unique
but. La chasse au dollar est loin d'être aussi imaginaire que voudraient nous le faire croire, du haut de leurs
tours dorées, certains entrepreneurs-philosophes. C'est eue qui constitue le rouage le plus important dans le
mécanisme de notre économie moderne, et l'amour du gain, que les progrès de la technique n'ont fait
qu'exaspérer, forme le principal élément de l'organisation psychique de l'homme économique de nos jours.
7 No original: Or, un siècle technique. comme le nôtre fournit à cette joie un aliment constant, des occasions

ininterrompues, Qu'il puisse venir à l'esprit d'un entrepreneur qu'il est avantageux ou intéressant de
fabriquer le plus possible de machines, d'avions, etc., et qu'il trouve une certaine satisfaction à réaliser un
pareil programme.

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Buda, sabemos, sem dúvida, que o modelo de 1913 está


em "progresso" em relação ao de Watt. Em conexão com
essa transmutação de valores está outra importante
manifestação da vida psíquica do homem econômico
moderno (e do homem moderno em geral); é a
transformação dos meios até o fim. Sem dúvida, o
dinheiro contribuiu muito para essa transmutação de
valores. Mas a técnica é uma grande parte disso
(SOMBART, 1928, p. 119, tradução nossa).8

Assim, a importância dos meios sobre os fins fica evidente, de forma que não se
pergunta mais a que fins servirão os meios desenvolvidos, se esquece qual meta a ser
atingida, os meios monopolizam os interesses.
Estamos entusiasmados em ver um avião subir no ar, sem pensar que este
dispositivo é usado apenas no momento para enriquecer um número
sensacional nosso programa de entretenimento e (no caso mais
favorável) para enriquecer alguns fabricantes. E assim por diante, em
todas as coisas. Temos aqui uma explicação, pelo menos parcial, do
absurdo de toda a nossa tabela de valores e de todas as aspirações
capitalistas de nossos dias, acrescentemos: o que caracteriza o espírito
burguês hoje em dia é sua total indiferença ao problema de qual é o
destino do homem. O homem é quase totalmente eliminado da mesa de
interesses econômicos e os valores dos campos econômicos: a única
coisa de interesse, no entanto, o processo, desde a produção ou o
transporte, ou formação de preços, etc (SOMBART, 1928, p. 119,
tradução nossa).9

A eliminação do homem, que deixa de ser o centro dos processos de produção,


com uma transformação radical na escala de valores humanos é produto da transformação
dos processos técnicos, são efeitos indiretos exercidos pela tecnologia sobre o
desenvolvimento do espírito capitalista (SOMBART, 1928).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

8
Si l'idée de progrès, si peu justifiée en général, a un sens quelconque, c'est uniquement dans le domaine
du pouvoir technique. Alors que nous ignorons si la philosophie de Kant constitue un « progrès » sur celle
de Platon ou si les doctrines de Bentham sont en « progrès » sur celles du Bouddha, nous savons, à n'en pas
douter, que la machine à vapeur du modèle de 1913 est en « progrès » sur celle de Watt. En rapport avec
cette transmutation des valeurs se trouve une autre manifestation importante de la vie psychique de l'homme
économique moderne (et de l'homme moderne en général); c'est la transformation du moyen en fin. Sans
doute, l'argent n'a pas peu contribué à cette transmutation des valeurs. Mais la technique y a une grande
part.

9 No original: Nous trépidons d'enthousiasme en voyant s'élever dans les airs un avion, sans penser que cet
appareil ne sert pour le moment qu'à enrichir d'un numéro sensationnel notre programme de distractions et
(dans le cas le plus favorable) à enrichir quelques fabricants. Et ainsi de suite, en toutes choses. Nous avons
là une explication, tout au moins partielle, de l'absurdité de toute notre table de valeurs et de toutes les
aspirations capitalistes de nos jours. Ajoutons encore ceci : ce qui caractérise l'esprit du bourgeois de nos
jours, c'est, nous l'avons vu, son indifférence complète pour le problème de la destinée de l'homme.
L'homme est à peu près totalement éliminé de la table des valeurs économiques et du champ des intérêts
économiques : la seule chose à laquelle on s'intéresse encore, c'est le processus, soit de la production, soit
des transports, soit de la formation desprix, etc.

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
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Os três autores analisados perpassam o campo do direito em sua análise da técnica


de diferentes formas. Podemos afirmar que as três abordagens têm como característica
comum traços ecléticos, menções quase honrosas metafísica e, fica claro que, os três
autores colocam suas concepções como soluções diferenciadas, como verdadeiras
“terceiras vias” ao capitalismo/socialismo. Spengler com seus ideais de criação de um
socialismo baseado no direito, Veblen com sua crítica ferrenha acerca da predominância
dos interesses empresariais dentro dos governos estatais, e Sombart com a ideia de
centralidade dos meios, perda de valores e eliminação do homem na sociedade
tecnológica. Spengler, Veblen e Sombart são autores irracionalistas, buscando em seus
trabalhos apontar um terceiro caminho possível, tendo como plano de fundo uma crítica
superficial aos problemas mais visíveis da sociedade capitalista. Dentro do debate da
técnica, suas visões se misturam em uma defesa apaixonada sobre o que o progresso
técnico pode proporcionar aliado a uma crítica às “aplicações” da técnica pelo “espírito”
do capitalismo.
A investigação feita no presente artigo tem como objetivo se aproximar da
compreensão da natureza da posição dominante sobre a técnica no debate jurídico
contemporâneo, sendo uma questão anterior e necessária, afinal, para que se chegue a
conclusões quanto às especificidades da contemporaneidade.
Uma visão ampla do debate clássico acerca do problema da técnica no âmbito
jurídico se faz essencial para que possamos realizar comparações e observações acerca
de possíveis modificações, auxiliando nossas análises futuras focadas mais
especificamente nas discussões contemporâneas a respeito da técnica dentro do meio
jurídico.

Referências
COUTINHO, C. N. O estruturalismo e a miséria da razão. São Paulo: Expressão
Popular, 2010.
LUKÁCS, G. Marx e o problema da decadência ideológica. In: Lukács, G. Marxismo e
teoria da literatura. São Paulo: Civilização Brasileira, 1968.
LUKÁCS, G. Existencialismo ou marxismo? São Paulo: Ciências Humanas, 1979.
SARTORI, V. Ontologia, técnica e alienação: para uma crítica ao direito. Tese
(Doutorado em Filosofia e Teoria Geral do Direito) - Faculdade de Direito, Universidade
de São Paulo. São Paulo, 2013.
SPENGLER, O. A decadência do ocidente. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.
SOMBART, W. Le Bourgeois, Deuxième Livre. Payot, 1928.
VEBLEN, T. The Theory of business enterprise. New York: Charles Scribner’s sons,
1915.

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A RELAÇÃO CONFLITUOSA ENTRE INOVAÇÃO TECNOLÓGICA E


EMPREGO: O PENSAMENTO DE MARX E RICARDO
Anna Paula Almeida Sales
Universidade Federal de Juiz de Fora
annapaulaasales@gmail.com

Resumo
A relação entre inovação tecnológica e emprego já preocupava no século XIX dois dos
maiores nomes da economia que existiram: David Ricardo e Karl Marx. Tendo como
pano de fundo a transição violenta da manufatura inglesa para a indústria e revolta dos
trabalhadores contra máquina, os referidos autores formaram seu pensamento no sentido
de afirmar que o emprego de maquinaria na produção seria responsável por demitir
centenas de trabalhadores ingleses, que ao não encontrarem novos empregos de forma
subsequente, acabavam sendo vítimas do chamado “desemprego tecnológico”. No
entanto, a partir da análise dos pensamentos desses autores, ficou demonstrado que a
relação entre tecnologia e emprego não é uma relação estática, mas sim extremamente
dinâmica.
Palavras-chave: tecnologia; emprego; Marx; Ricardo; teoria da compensação.

THE CONFLITUOUS RELATION BETWEEN TECHNOLOGICAL


INNOVATION AND EMPLOYMENT: THE THOUGHT OF MARX AND
RICARDO

Abstract
In the nineteenth century, the relation between technological innovation and
employment was already worrying two of the biggest names in the economy: David
Ricardo and Karl Marx. With the background of the violent transition from English
manufacture to industry and workers' revolt against machine, the authors formed their
thinking claiming that the use of machinery in production would be responsible for
laying off hundreds of English workers who, as they did not find new jobs
subsequently, ended up falling victim to the so-called "technological unemployment".
However, from the analysis of the thoughts of these authors, it was demonstrated that
the relation between technology and employment is not a static relationship, but
extremely dynamic.
Keywords: technology; employment; Marx; Ricardo; theory of compensation.

Introdução

Desde o início da Revolução Industrial no século XVIII até os dias atuais tem-
se debatido acerca dos reais efeitos da inovação tecnológica e sua aplicação à produção
de bens e serviços na economia e na sociedade, o que tem demonstrado a existência de
uma ampla gama de correntes de pensamento a respeito do progresso tecnológico.
Nesse sentido, uma das questões mais discutidas é aquela que envolve o avanço
tecnológico e os efeitos que ele gera no campo da força de trabalho, mais

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especificamente sobre a relação entre inovação tecnológica e emprego, que dentro do


sistema capitalista é uma relação que se dá de forma extremamente dinâmica, tendo em
vista que a introdução de novas tecnologias influenciam diretamente na criação e na
destruição de postos de trabalho.
O debate acerca da relação entre emprego e tecnologia sempre dividiu opiniões
de grandes estudiosos ao longo dos séculos, podendo ser rastreado até os economistas
pré-clássicos do século XVI: de um lado se colocavam aqueles que acreditavam que as
novas máquinas permitiriam aos trabalhadores trabalharem menos horas, tendo mais
tempo livre para se dedicarem à atividades que lhe fossem mais prazerosas, a introdução
de novas tecnologias na produção constituiria assim um benefício para o proletariado;
de outro lado se colocavam aqueles autores que possuíam uma visão menos otimista da
questão, acreditando que o progresso tecnológico na verdade não beneficiaria a classe
trabalhadora, liberando-a de algumas horas do trabalho, mas, pelo contrário, a
substituiria no processo produtivo. Dessa forma, a introdução de maquinaria moderna
destruiria alguns postos de trabalho, causando a demissão em massa de trabalhadores.
David Ricardo e Karl Marx são exemplos de autores clássicos que enxergaram
o problema do desemprego tecnológico e debateram sobre ele com clareza em sua obra,
expondo-o principalmente no capítulo XXXI de Princípios de Economia Política e
Tributação, de autoria de Ricardo, e no capítulo XIII do volume I de O Capital, de
autoria de Marx. Para ambos os autores, a introdução de novas tecnologias na produção
poderia causar desemprego e deslocamento de mão de obra humana, no entanto os
autores tinham opiniões distintas quanto à possibilidade de reabsorção do operariado
desempregado pelo mercado de trabalho.
A década de 1970 trouxe a crise econômica que se iniciou com o choque do
petróleo e uma mudança tecnológica da microeletrônica que impactou profundamente as
tecnologias da informática e da informação, afetando a natureza do trabalho nos mais
variados setores, tornando obsoletas algumas ocupações e criando outras novas que, por
sua vez, exigiam novas formações e qualificações do proletariado. Diante disso, nas
décadas que se seguiram, altos níveis de desemprego se abateram sobre diversos países
do globo, o que trouxe novo interesse e fôlego à discussão a respeito da relação entre
inovação tecnológica e o chamado “desemprego tecnológico”, aqui entendido enquanto
aquele desemprego que é caracterizado quando o trabalhador que é demitido pela
introdução de uma nova tecnologia na produção de determinado setor industrial não
encontra um novo emprego subsequentemente, permanecendo desempregado por um
período de tempo.
Dessa maneira, a relação entre o capital e emprego na esfera específica da
produção de novas tecnologias constitui uma questão fundamental de nosso tempo,
visto que o crescimento da produtividade do trabalho impulsionado pelo avanço
tecnológico e, por conseguinte, o aumento do tempo livre do trabalhador são essenciais
para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e com maior qualidade de
vida. Entretanto, o modo com que a ordem econômica capitalista tem se utilizado do
progresso tecnológico tem engendrado efeitos perversos aos conjuntos sociais, embora
também origine efeitos econômicos benéficos.
Ao assumirmos a perspectiva marxista, responsável por introduzir uma
consciência histórica na análise do modo de produção capitalista, e que tem como
pressuposto não a sobrevivência eterna do sistema, mas sim a possibilidade de sua
transformação, além do reconhecimento da existência de contraditoriedades inerentes a
este modo de produção, capazes de converter o potencial emancipador dos sujeitos em

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aprisionamento, o trabalho em questão objetiva fazer um breve traçado histórico do


pensamento de Marx e Ricardo a respeito da relação entre o desenvolvimento
tecnológico e a elevação na taxa de desemprego, tendo em vista que acreditamos ser
esse esforço histórico de recuperação dos economistas clássicos um importante passo
inicial para que seja possível entender as transformações que se deram a partir da
década de 1970. Frisa-se, portanto, que este trabalho é apenas um primeiro passo na
tentativa de compreensão da conjuntura atual, e que a partir dele surgiram muitos
questionamentos pertinentes.

2. O SÉCULO XIX E A REVOLTA DOS TRABALHADORES CONTRA AS


MÁQUINAS

Antes de adentrarmos nas opiniões de Ricardo e Marx propriamente ditas,


acreditamos ser importante fazer uma breve apresentação do contexto histórico que
serviu de pano de fundo para que os autores em questão tecessem suas considerações a
respeito da relação entre maquinaria e emprego. O desenvolvimento da grande indústria
na Europa não se deu de forma pacífica, tendo sido permeado por conflitos que se
davam principalmente entre o trabalhador e a máquina, visto que se de um lado a
maquinaria poupava trabalho e aumentava a produtividade, de outro ela demitia
diversos trabalhadores que se tornavam desnecessários para o trabalho que agora
poderia ser exercido pela máquina.
O século XVII presenciou a revolta dos trabalhadores em quase toda a Europa
contra uma máquina de tecer fitas e galões (chamada de Bandmühle) e contra uma
máquina de serrar movida por um moinho de vento. No século XVIII houve forte
resistência popular contra as máquinas hidráulicas de serrar, e cerca de 100 mil
trabalhadores desempregados pelo emprego da máquina de tosquear movida à água
colocaram fogo na mesma, além do fato de que 50 mil trabalhadores provocaram uma
petição ao parlamento inglês contra os moinhos de cardar lã (Scribbling Mills) e a
máquina de Arkwright (MARX, 2013, p. 610).
O denominado movimento ludita (ou ludismo) nasceu nos primeiros quinze
anos do século XIX na Inglaterra, e foi provocado principalmente pela utilização do tear
a vapor na produção (MARX, 2013, p. 610). Ned Ludd, precursor do movimento que
levava seu nome, invadiu uma fábrica e quebrou uma máquina de tricotear meias no
condado inglês de Leicestershire, entretanto naqueles locais onde as novas máquinas
não causaram desemprego não há registros de hostilidades praticadas contras elas
(HOBSBAWN apud COUTO et al, 2009, p. 06).
O movimento ludita tomou proporções maiores, atingindo o seu maior
momento, em abril de 1812, quando trabalhadores desempregados pela máquina de tear
a vapor invadiram e destruíram a fábrica de William Cartwright, no condado de York, na
Inglaterra (COUTO et al., 2009, p. 06). Nos anos seguintes, o movimento ludita se
abrandou, mas permaneceu existindo até que em 16 de agosto de 1819 uma multidão de
cerca de 60 mil pessoas se dirigiram ao parque de Saunt-Peter´s Field, em Manchester,
para exigirem melhores condições de trabalho, quando o exército inglês atirou contra a
população deixando vários mortos e feridos naquele que ficou conhecido como o
Massacre de Peterloo (COUTO et al., 2009, p. 06-07). A destruição massiva de
máquinas pelos trabalhadores do movimento ludita serviu de pretexto para a adoção de
medidas reacionárias de violência pelo governo inglês (MARX, 2013, p. 610).

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3. DAVID RICARDO E O DESEMPREGO TECNOLÓGICO


Ricardo tratou abertamente da questão relativa à tecnologia e ao emprego na
terceira edição de sua obra “Princípios de Economia Política e Tributação”. Importante
ressaltar que inicialmente o economista inglês acreditava que o emprego de novo
maquinário na produção traria benefícios ao proletariado, tendo em vista que a
maquinaria nunca seria causa de redução da demanda de trabalho, e, portanto, nunca
reduziria o preço do trabalho, mas, pelo contrário, causaria a sua elevação. A introdução
de novas tecnologias aumentaria a produtividade, o que, em contrapartida, geraria um
aumento de renda e, portanto, aumentaria a demanda e o emprego. Além disso, o
aumento de produtividade acarretaria uma diminuição nos preços das mercadorias,
porém antes desse barateamento e da banalização da nova tecnologia, os capitalistas
aufeririam um super lucro que constituiriam recursos para investimento em longo prazo,
recursos esses que se converteriam em mais empregos (MILLER, 2002, p. 75-76).
Conforme Ricardo:
Desde que, inicialmente, voltei minha atenção para as questões de
Economia Política, era da opinião que a introdução da maquinaria em
qualquer ramo da produção que tivesse por efeito poupar trabalho
constituía um benefício para todos, embora acarretasse alguns
inconvenientes que geralmente acompanham a maior parte das
transferências de capital e trabalho de uma atividade para outra.
Parecia-me que, se os proprietários de terras recebessem a mesma
renda em dinheiro, eles seriam beneficiados pela redução dos preços
de algumas mercadorias nas quais essa renda era gasta, e cuja redução
de preço não poderia deixar de ser conseqüência da utilização de
maquinaria. Eu julgava que o capitalista eventualmente seria
beneficiado da mesma maneira. Ele que, na realidade, descobrira a
máquina, ou que fora o primeiro a empregá-la utilmente, gozaria de
uma vantagem adicional, realizando grandes lucros durante algum
tempo. Mas, na medida em que a utilização da máquina fosse se
generalizando, o preço da mercadoria produzida baixaria até ao seu
custo de produção devido à concorrência, quando então o capitalista
obteria os mesmos lucros em dinheiro que antes; e ele somente
participaria das vantagens gerais como consumidor ao ser capaz, com
o mesmo rendimento em dinheiro, de adquirir uma quantidade
adicional de comodidades e satisfações. Eu julgava também que a
classe dos trabalhadores seria igualmente beneficiada pelo uso da
maquinaria, na medida em que dispusesse dos meios para comprar
mais mercadorias com o mesmo salário em dinheiro. Julgava ainda
que nenhuma redução de salários ocorreria, uma vez que o capitalista
teria o poder de demandar e de empregar a mesma quantidade de
trabalho que antes, embora tivesse necessidade de utilizá-lo na
produção de uma mercadoria nova ou, pelo menos, diferente. Se,
devido a um aperfeiçoamento da maquinaria, com o emprego da
mesma quantidade de trabalho, a quantidade de meias quadruplicasse
e a demanda de meias somente duplicasse, alguns trabalhadores
seriam necessariamente despedidos da indústria de meias. Mas, como
o capital que os empregava não havia deixado de existir, e como seria
do interesse de seus possuidores empregá-lo produtivamente, parecia-
me que ele seria empregado na produção de alguma outra mercadoria
útil à sociedade em relação à qual não poderia deixar de haver uma
demanda (...). Como naquela época parecia-me que existiria a mesma

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demanda de trabalho que antes, e que os salários não diminuiriam,


acreditava que a classe trabalhadora, assim como as demais classes,
participaria igualmente das vantagens do barateamento geral das
mercadorias decorrente do uso da maquinaria (RICARDO, 1996, p.
287-288).

Tendo em vista a repercussão do movimento ludita, em 1815, no seu “Ensaio


sobre a influência do baixo preço do trigo sobre os lucros do capital, mostrando a
inconveniência de restrições à importação”, Ricardo abordou a questão afirmando
apenas que a “maquinaria aperfeiçoada” tendia a elevar os “salários reais do trabalho”,
sendo benéfica para a classe trabalhadora, nada tendo registrado a respeito dos efeitos
dessa “maquinaria aperfeiçoada” em relação à demanda por trabalho (RICARDO apud
COUTO et al., 2009, p. 7). Entre 1815 e 1820, o economista inglês não acreditava que a
maquinaria pudesse prejudicar a classe trabalhadora, provocando uma diminuição no
número de empregos. O que ele acreditava era que um trabalhador demitido de uma
determinada empresa iria arrumar emprego em outro setor, mas isso só seria possível
através de novos investimentos que aumentassem a demanda por trabalhadores, pois do
contrário o trabalhador iria ficar desempregado, caracterizando o que entendemos por
“desemprego tecnológico”.
Ao ter contato com os trabalhos de John Barton e Ramsay McCulloch, Ricardo
mudou de opinião e publicou essa mudança na terceira e derradeira edição de sua obra
“Princípios de Economia Política e Tributação”, na qual adicionou um novo capítulo, o
capítulo XXXI, intitulado “Sobre a maquinaria” (COUTO et al., 2011, p. 305): “Essas
eram minhas opiniões, e elas seguem inalteradas no que diz respeito ao proprietário da
terra e ao capitalista. Mas estou convencido de que a substituição de trabalho humano
por maquinaria é freqüentemente muito prejudicial aos interesses da classe dos
trabalhadores” (RICARDO 1996, p. 288). O próprio Marx, ao comentar sobre o referido
capítulo em seus manuscritos que originaram a obra “Teorias da Mais-valia” dizia que
“este capítulo que Ricardo havia adicionado à sua terceira edição atestava sua boa-fé, o
que o distinguia tão essencialmente dos economistas vulgares” (MARX, 1980, p. 510).
Ricardo explicou sua mudança de opinião através dos conceitos de rendimento
bruto e rendimento líquido, concluindo que a maquinaria aperfeiçoada poderia
simultaneamente aumentar a produção de um país e diminuir a quantidade de trabalho
utilizada na mesma, gerando uma redução na demanda por trabalhadores, tornando uma
parte desses trabalhadores supérfluos:
O que desejo provar é que a descoberta e o uso da maquinaria podem
ser acompanhados por uma redução da produção bruta e, sempre que
isso acontecer, será prejudicial para a classe trabalhadora, pois uma
parte será desempregada e a população tornar-se-á excessiva em
comparação com os fundos disponíveis para empregá-la (RICARDO,
1996, p. 290).

Com a diminuição da demanda por trabalhadores em um determinado setor,


uma parte das mercadorias consumidas pelos trabalhadores também se tornaria
supérflua, o que acarretaria a diminuição da produção destas mercadorias, logo gerando
nova redução da demanda por trabalho nesse setor de produção (COUTO et al., 2011, p.
307). Ricardo afirmava ainda que “as máquinas e o trabalhador mantém-se em constante
competição, e as primeiras só podem ser utilizadas se o preço do trabalho se elevar”
(RICARDO, 1996, p. 293), pois do contrário não compensaria para o capitalista

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implantar a maquinaria, já que ela sairia mais cara que pagar os salários dos
trabalhadores.
No entanto, para o economista inglês, poderia haver o chamado efeito de
“compensação” tanto pelo aumento do emprego no setor de máquinas (MILLER, 2002,
p. 76), quanto por novos investimentos numa nova fábrica, por exemplo, na qual os
trabalhadores anteriormente demitidos poderiam ser empregados, o que evitaria o
desemprego tecnológico (COUTO et al., 2011, p. 307):
Se o aumento da produção, em conseqüência da utilização da
máquina, fosse tão grande que proporcionasse, sob a forma de
produção líquida, uma quantidade de alimentos e gêneros de primeira
necessidade tão grande quanto existia antes na forma de produto
bruto, a capacidade de empregar toda a população seria a mesma e,
portanto, não haveria necessariamente nenhuma população excedente
(RICARDO, 1996, p. 290)

Haveria ainda a possibilidade desses trabalhadores substituídos pela nova


maquinaria serem empregados como domésticos, pois conforme Ricardo, caso não
houvesse a compensação nem os novos investimentos, haveria um aumento no consumo
de luxo por parte dos proprietários de capital, gerando demanda de trabalho nesse setor
(RICARDO, 1996, p. 292).
Por fim, Ricardo acreditava que apesar da possibilidade de gerar desemprego,
jamais deveria deixar de se encorajar o progresso tecnológico num determinado país,
pois do contrário, o capital seria transferido ao exterior, o que seria mais prejudicial
para a demanda de trabalho do que a generalização mais completa do uso de máquinas,
vez que enquanto houver aplicação do capital no país, alguma demanda de trabalho
seria criada (RICARDO, 1996, p. 294).
A conclusão ricardiana, portanto, foi de que a introdução de novo maquinário
na produção poderia causar desemprego, prejudicando a classe trabalhadora. No entanto
esse desemprego, que posteriormente ficou conhecido como desemprego tecnológico ou
estrutural, seria transitório, já que dependendo dos novos investimentos feitos pelos
capitalistas em novas fábricas, o operariado dispensado poderia encontrar emprego em
outras empresas e setores. O que Ricardo reconheceu ao tratar da relação entre inovação
tecnológica - introdução de novo maquinário na produção - e emprego foi a
possibilidade de que esta gerasse desemprego ao substituir um trabalho que antes era
feito pela mão de obra humana, por um trabalho que agora seria feito pela máquina.
Conforme já afirmado, ele acreditava que novos investimentos seriam capazes de gerar
empregos em outros setores, não permitindo que o trabalhador ficasse durante muito
tempo desempregado.

4. MARX E O DESEMPREGO TECNOLÓGICO

Karl Marx falou explicitamente a respeito do desemprego tecnológico em pelo


menos duas de suas obras, nas quais a questão se encontra fartamente documentada: no
Livro I de “O Capital”, em seu capítulo XIII, intitulado “Maquinaria e grande
indústria”, e no Livro II de “Teorias da Mais-Valia”, no capítulo XVIII, intitulado
“Miscelânea Ricardiana. Final de Ricardo”. O autor alemão estudou detalhadamente os
economistas que o antecederam, e nestas obras Marx expõe seu pensamento e traça um
debate com as ideias de David Ricardo acerca da introdução de novas maquinarias na
produção e os efeitos que esta causava à classe trabalhadora.

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Marx, diferentemente de Ricardo, sempre teve convicção de que o emprego de


novas tecnologias na produção era responsável por causar a destruição de postos de
trabalho, ao substituir a mão de obra humana. Segundo o autor, “é só a partir da
introdução da maquinaria que o trabalhador luta contra o próprio meio de trabalho,
contra o modo material de existência do capital” (MARX, 2013, p. 609). Marx relata no
tópico “A luta entre o trabalhador e a máquina” do capítulo XIII do Livro I de “O
Capital” que o movimento ludita foi pretexto para a adoção das mais variadas formas de
violência reacionárias contra os trabalhadores: “Foi preciso tempo e experiência até que
o trabalhador distinguisse entre a maquinaria e sua aplicação capitalista e, com isso,
aprendesse a transferir seus ataques, antes dirigidos contra o próprio meio material de
produção, para a forma social de exploração desse meio” (MARX, 2013, p. 610). Para
Marx, portanto, não era a maquinaria em si mesma a responsável por desempregar
trabalhadores, mas o uso que o modo de produção fazia da maquinaria, do progresso
tecnológico.
É somente com a máquina que o meio de produção se converte em
“concorrente do próprio trabalhador” (MARX, 2013, p. 612). Quando o progresso
tecnológico permite que o manuseio da ferramenta seja transferido da mão humana para
a máquina, ele aniquila juntamente com o valor de uso, o valor de troca do trabalho
humano. “O trabalhador se torna invendável, como o papel-moeda tirado de circulação”
(MARX, 2013, p. 612). A maquinaria transforma uma parte do proletariado em
população supérflua, que abarrota o mercado de trabalho, aumentando a oferta de
trabalho, e, portanto, diminuindo o preço dos salários abaixo de seu valor (MARX,
2013, p. 613). Marx discorda que o efeito da maquinaria sobre o trabalhador seja algo
meramente “temporário”, “o efeito ‘temporário’ da maquinaria é permanente, porquanto
se apodera constantemente de novas áreas da produção” (MARX, 2013, p. 613). É dessa
forma que o “meio de trabalho liquida o trabalhador” (MARX, 2013, p. 614).
Mas há que se ressaltar que a maquinaria não exerce apenas o papel de um
concorrente direto à força de trabalho humano segundo Marx, mas ela também se torna
um meio de o capitalista repreender as greves e reivindicações do proletariado, se
tornando uma importante maneira de controlar a classe trabalhadora:
O capital, de maneira aberta e tendencial, proclama e maneja a
maquinaria como potência hostil ao trabalhador. Ela se converte na
arma mais poderosa para a repressão das periódicas revoltas operárias,
greves etc. contra a autocracia do capital. De acordo com Gaskell, a
máquina á vapor foi, desde o início, um antagonista da “força
humana”, o rival que permitiu aos capitalistas esmagar as crescentes
reivindicações dos trabalhadores, que ameaçavam conduzir crise o
incipiente sistema fabril (MARX, 2013, p. 618).

Em seguida, Marx também criticou a “teoria da compensação” defendida por


boa parte dos economistas clássicos, entre eles o próprio David Ricardo, conforme
citado acima. Na contramão daqueles que acreditavam que toda maquinaria que desloca
trabalhadores libera, simultânea e necessariamente, um capital para ocupar esses
mesmos trabalhadores, Marx afirmava que ao invés da liberação de capital, o que
ocorria era a transformação de capital variável (salários) em capital constante
(maquinaria, matéria-prima, insumos…), de modo que a cada aperfeiçoamento do
maquinário, ele ocuparia menos trabalho (MARX, 2013, p. 621). Seria absurdo dizer
que o capitalista investiria em salários o mesmo volume de capital que antes pois com o
aumento da produtividade alcançada através da implementação da nova tecnologia na

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

produção, o proprietário do capital vai investir em maquinaria, instrumentos e uma


grande parte em matéria-prima, já que agora produz mais mercadorias com menos
trabalhadores, e precisa, portanto de mais matéria-prima. Ocorre então uma diminuição
do capital variável em relação ao capital fixo, que, em contrapartida, tende a aumentar
mais rapidamente. Segundo Marx:
A demanda de trabalho aumentará em seu negócio com a acumulação
de seu capital, mas em grau muito menor do que aquele em que seu
capital se acumula, e seu capital já não será em absoluto a mesma
fonte de demanda de trabalho que antes. O resultado imediato é que
uma parte dos trabalhadores é lançada à rua. Mas, se dirá que,
indiretamente, seguirá sendo a mesma a demanda de trabalhadores,
pois a demanda de trabalho para a construção de maquinarias
aumentará. No entanto, o próprio Ricardo se encarregou de
demonstrar que a maquinaria nunca absorve tanto trabalho quanto o
que desloca. (...) O que (o capitalista) faz é simplesmente dar a seu
capital um investimento diferente, cujo resultado imediato será,
segundo a suposição de que parte, trabalhadores sendo despedidos e a
conversão de uma parte do capital variável em constante (MARX,
1980, p. 512-513, tradução nossa).

Portanto, no que tange a criação de novos empregos no setor de produção das


maquinarias, o autor alemão afirmava que “na melhor das hipóteses, sua fabricação
ocupa menos trabalhadores do que os números daqueles deslocados por sua utilização”
(MARX, 2013, p. 622), pois, do contrário, não seria lucrativo para o capitalista. As
demissões em massa geradas pela maquinaria introduzida em determinado setor,
aumentavam o número de trabalhadores disponíveis no mercado para a exploração
capitalista, engrossando assim o exército industrial de reserva. Com o aumento do
número de trabalhadores desempregados, havia uma diminuição na demanda de
produtos de subsistência, pois os trabalhadores sem dinheiro acabavam diminuindo o
consumo dessas mercadorias. Se não houver compensação da demanda por produtos de
subsistência pelo aumento da demanda em outro setor, o preço de mercado das
mercadorias cai, o que em longo prazo gera um novo deslocamento de trabalhadores e
de capitais antes ocupados na produção dessas mercadorias (MARX, 2013, p. 624).
Assim, uma nova onda de demissões, dessa vez no setor de produção de mercadorias de
subsistência é gerada. Conclui Marx (2013, p. 624): “a maquinaria põe trabalhadores na
rua, e não só no ramo da produção em que é introduzida, mas também nos ramos da
produção em que não é introduzida”.
É verdade que os operários expulsos de um ramo industrial poderiam encontrar
emprego em outro ramo, no entanto isso se efetivaria através de um capital novo, e não
por meio daquele capital anterior que havia se convertido em maquinaria (MARX,
2013, p. 625). Esse era o entendimento de Marx, que, portanto, contrariava a “teoria da
compensação” afirmada por alguns economistas clássicos, entre eles o próprio Ricardo.
É sempre importante ressaltar, entretanto, que para o autor alemão não é a
maquinaria responsável pelo suplício da classe trabalhadora. Não é a inovação
tecnológica que causa o aumento da taxa de desemprego, mas sim a utilização que o
capitalismo faz dessas inovações. As contradições e o antagonismo são inseparáveis da
utilização capitalista da maquinaria, pois não são inerentes à máquina em si, mas sim
decorrentes da utilização que o sistema capitalista faz dela (MARX, 2013, p. 626).

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Diante do exposto, podemos concluir que Marx sempre deixou claro em suas
obras que acreditava que a introdução de novas máquinas na produção ocasionava a
demissão de mão de obra humana, ou, pelo menos, o seu deslocamento para outro setor.
De acordo com Couto (et al., 2011, p. 312), Marx demonstrou que o aumento da taxa
desemprego era dependente de quatro variáveis: 1) avanço tecnológico; 2) crescimento
populacional; 3) taxa de acumulação de capital (ou novos investimentos) e 4) redução
da jornada de trabalho. O avanço tecnológico e o crescimento populacional aumentavam
a oferta de trabalho, já que aumentavam o número de trabalhadores disponíveis no
mercado seja pela demissão em massa, seja pelo aumento do número de pessoas
precisando trabalhar, impulsionando a taxa de desemprego; os novos investimentos e a
redução da jornada de trabalho por sua vez, aumentavam a demanda de trabalho, visto
que expandem os setores industriais e limitam o número de horas permitidas para
trabalho, fazendo com sejam necessários mais trabalhadores, reduzindo assim a taxa de
desemprego (COUTO et al., 2011, p. 312).

5. CONCLUSÃO

David Ricardo e Karl Marx foram dois economistas que escreveram


abertamente sobre a relação entre inovações tecnológicas e emprego já no início do
século XIX, trazendo importantes contribuições para o estudo da temática que podem
ajudar a esclarecer questionamentos que surgem na contemporaneidade. O presente
trabalho foi desenvolvido com o intuito de trazer as principais contribuições dos dois
autores a respeito do tema em questão, pois apesar de assumirmos a perspectiva
marxista, o próprio Marx dialoga bastante com Ricardo quanto à temática em questão,
concordando com ele em muitos aspectos e discordando em alguns outros. Ademais,
acreditamos também na importância da contribuição ricardiana, e principalmente na
trajetória do pensamento do referido autor, visto que ele possuía um pensamento antes,
que se modificou no decorrer de sua vida quando o autor foi tendo contato com outros
autores de opiniões diferentes e com o próprio movimento da realidade.
Tanto Ricardo quanto Marx acreditavam, portanto, que a introdução de nova
maquinaria na produção causava, pelo menos inicialmente, uma demissão de
trabalhadores. A realidade inglesa na época, permeada por movimentos de revolta dos
trabalhadores contra as máquinas como o movimento ludita, só respaldava o
entendimento de ambos os autores, tendo em vista a quantidade de trabalhadores que a
maquinaria colocou na rua, e que não encontraram outras ocupações, sendo obrigados a
enfrentar momentos de miséria e pobreza.
Entretanto, é importante destacar que existem pontos de divergência entre os
dois economistas. De um lado estava Ricardo, que acreditava que o tormento do
operariado desempregado pela maquinaria seria meramente temporário, pautando-se na
chamada “teoria da compensação”, a qual afirmava que novos empregos seriam criados
em outros ramos industriais a partir de novos investimentos feitos através daquele
mesmo capital que antes era gasto com salários dos trabalhadores, e que agora havia
sido “liberado” pela utilização da maquinaria; de outro estava Marx, para o qual o
sofrimento do trabalhador não era temporário, pois criticava fortemente a “teoria da
compensação”, afirmando que o emprego da maquinaria não só era capaz de gerar
desemprego no setor em que ela era empregada, como também poderia afetar outros
setores distintos, como o de produção de mercadorias de subsistência da classe operária.
Ademais, para o autor alemão, mesmo que o trabalhador expulso de um ramo da

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indústria pela máquina encontrasse emprego em outro ramo - o que de fato poderia
acontecer - isso ocorreria por intermédio de um novo capital que busca aplicação,
suplementar, e não por aquele capital que já existia e que foi convertido em maquinaria
(MARX, 2013, p. 625).
Há que se falar também do ponto de convergência entre o pensamento de
ambos os autores: as ideias de Ricardo e Marx confluiam no sentido de demonstrar que
a relação entre tecnologia e emprego não é algo que se dá de forma automática,
mecânica. A relação, portanto, não é estática e determinista, mas dinâmica, e seu
resultado a longo prazo nem sempre é o de um aumento na taxa de desemprego de um
país ou região, tendo em vista que existem muitas outras variáveis envolvidas como, por
exemplo, a velocidade de avanço da técnica e do crescimento da economia, associada à
velocidade do crescimento da população e da redução da jornada de trabalho.
Como já ressaltado no decorrer deste artigo, este é um trabalho inicial no
sentido de uma compreensão contemporânea da questão relativa ao “desemprego
tecnológico”. Diante disso alguns questionamentos surgiram, questionamentos esses
que achamos pertinentes colocar aqui e que podem vir a se tornar esforços de pesquisas
futuras e até mesmo de outras pessoas interessadas nesta temática. Sabemos que a taxa
de desemprego tanto no Brasil, quanto em outros países ao redor do globo, aumentou
nas décadas que seguiram a crise iniciada nos anos de 1970, tendo em vista que nem
todo desemprego é tecnológico, o desemprego que se configurou nas décadas de 80, 90
e até o dos anos 2000 poderia ser considerado um desemprego tecnológico? Como a
perspectiva marxista a respeito do desemprego tecnológico poderia contribuir para o
entendimento da questão no cenário atual? Após Ricardo e Marx, outros economistas de
outras escolas, como Schumpeter e os neo-schumpeterianos, teceram comentários sobre
o desemprego tecnológico, quais seriam, portanto, as semelhanças e as divergências
entre esses pensamentos? Marx reconheceu a honestidade intelectual de Ricardo e
afirmou que isso o diferenciava dos economistas vulgares do século XIX, aqueles que
Marx chamava de “apologetas” do sistema capitalista, tomando por base o pensamento
de economistas que vieram pós-Marx, como o já citado Schumpeter e os neo-
schumpeterianos, como esses pensamentos se configurariam diante de uma análise
marxista? Seriam eles também uma forma de apologia do capital ou não? Esses foram
alguns dos questionamentos que surgiram diante da confecção do presente trabalho e
que achamos importante registrar aqui com o intuito de impulsionarmos novas
pesquisas e contribuições.

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

A FUNÇÃO DAS FINANÇAS NO AVANÇO TÉCNICO BRASILEIRO


(2005-2014)1

Elcemir Paço Cunha


paco.cunha@facc.ufjf.br
Universidade Federal de Juiz de Fora

Leandro Theodoro Guedes


Universidade Federal de Juiz de Fora
ltheodoroguedes@yahoo.com
Resumo
O objetivo do artigo é determinar a função do sistema de crédito privado para o avanço
técnico no Brasil, considerando o período entre 2005 e 2014. Realizou-se o estudo por
meio de análise teórico-histórica e de dados primários sobretudo da economia brasileira
em comparação com Alemanha, Estados Unidos e Japão. O pressuposto fundamental é
que o avanço técnico é favorecido pela acumulação real que, por sua vez, foi possibilitada
historicamente pela acumulação crescente de capital monetário disponibilizado pelo
sistema de crédito. Na pesquisa verificou-se como o papel desempenhando pelo crédito
modificou-se ao longo da história do capitalismo, mas que foi mais decisivo à acumulação
de capital em países desenvolvidos do que na economia subordinada brasileira. Os
resultados sugerem que a funcionalidade do sistema de crédito foi alterada conforme se
desenvolveu a acumulação real, deixando de ser fonte de recursos para investimentos
produtivos nas economias centrais. Em paralelo, o sistema de crédito privado para
investimentos produtivos foi ausente no desenvolvimento do capitalismo no Brasil,
incluindo o período 2005-2014, e isso ajuda a explicar o baixo grau de acumulação e,
assim, o retardo tecnológico que marca a história do país.
Palavras-chave: Avanço técnico; sistema de crédito privado; acumulação; economia
brasileira.

THE FUNCTION OF FINANCE ON TECHNICAL ADVANCE OF BRAZIL


(2005-2014)

Abstract
The objective of this paper is to determine the function of the system of private credit for
the technical advance in Brazil, considering the period between 2005 and 2014. The study
was executed by means of historical-theoretical analysis and primary data mainly of
Brazilian economy in comparation with Japan, Germany, and United States. The
fundamental assumption is that technical advance is favored by the real accumulation,
which, by its turn, was made possible historically by the growing monetary capital
accumulation available by the credit system. In this research it was verified how the role
played by the credit has been changed throughout capitalism history, but it was rather
decisive to the capital accumulation in developed countries than in the subordinated
Brazilian economy. The results suggest that the functionality of the credit system has been
altered in accordance with the development of the real accumulation, ceasing to be source
of resources for productive investments in central economies. At the same time, the
private credit system for productive investments was absent in the development of
1
Agradecemos à FAPEMIG – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais pelo apoio à
pesquisa que gerou o presente artigo.

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

capitalism in Brazil, including the period between 2005-2014, and this helps to explain
the low grade of accumulation and, this way, the technological delay that marks country
history
Keywords: technical advance; credit system; accumulation; Brazilian economy.

Introdução
Este artigo tem por objetivo determinar a funcionalidade do sistema de crédito
bancário privado ao avanço técnico do setor não financeiro no Brasil. O foco recai sobre
os investimentos em inovação, especificamente de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D),
entendido este como um indicador mais direto da categoria em análise.
A problemática central se revela no pressuposto a ser questionado de que o sistema
de crédito privado tem funcionalidade universal para o avanço técnico. Nesse
pressuposto, desconsidera-se tanto as alterações históricas dessa funcionalidade quanto
as particularidades das economias nacionais, perdendo de vista as reciprocidades entre os
centros mais avançados e os tecnologicamente subordinados, como a economia brasileira.
É preciso dizer, no entanto, que o presente trabalho não se respalda nos cânones
da chamada Teoria Marxista da Dependência. O reconhecimento da subordinação
econômica não é exclusividade dessa específica linha da tradição marxista. Isto posto,
assume-se as reciprocidades entre as economias que formam o capitalismo global em uma
dinâmica de desenvolvimento desigual e combinado, constituindo um sistema
hierarquizado que tende a congelar e intensificar as “diferenças internacionais na
composição orgânica de capital” (Mandel, 1982:57), conforme retomado adiante. Disso
se depreende o impulso de determinação das formas particulares de desenvolvimento do
capitalismo e das modalidades de integração ao processo global de reprodução do capital
(Paço Cunha; Rezende, 2018). Não obstante a particularidade, reconhece-se o nexo entre
disponibilidade de capital monetário, acumulação real e avanço técnico como modo de
expressão da composição orgânica do capital.
Desse modo, a pesquisa foi realizada, por um lado, por meio de análise teórico-
histórica do desenvolvimento do capitalismo com o intuito de capturar as alterações da
função do sistema de crédito via bancos privados. A análise se respalda pelo movimento
da acumulação de capital que se expressa na formação e consolidação do capitalismo
centrado nas grandes corporações multinacionais. Por outro lado, a pesquisa se deu com
aproximação da realidade brasileira por meio de dados primários comparativos, quando
necessário e possível, às economias da Alemanha, Estados Unidos e Japão.
O período para esta última análise foi delimitado tendo em conta a disponibilidade
dos dados nacionais no Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicação e do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. A avaliação dos dados não será feita a partir
do uso de instrumentos estatísticos, pois mais que avaliar possíveis correlações entre o
cenário nacional e o internacional, procura-se mostrar o quadro geral do papel do sistema
de crédito no financiamento do investimento nacional em inovação, as tendências de
aproximação e distanciamento desse quadro com aquele dos países mais desenvolvidos e
que possuem um quantitativo maior desses investimentos. Nesse sentido, considera-se a
amplitude de elementos a se levar em conta quando o tema inovação é colocado em tela.
Assim, optou-se, nesta pesquisa, por se utilizar, primordialmente, os dados de P&D como
o indicador central de balizamento, tendo em conta o fato de ser possível encontrar nele
elementos mais diretos acerca da movimentação dos países em termos de produção de
processos inovativos.

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

Desse modo, as três seções que seguem apresentarão, respectivamente, uma breve
retomada teórico-histórica acerca da discussão sobre o papel do sistema de crédito na
acumulação de capital no modo de produção capitalista, e, logo em seguida, serão
apresentados os dados coletados que buscam responder aos problemas propostos. Por fim,
há as considerações finais que procuram colocar em evidência os principais achados,
limitações e indicação de futuras pesquisas.

Dinâmica histórica do sistema de crédito, acumulação e avanço técnico


O objetivo central desse tópico é estabelecer a relação histórica entre as finanças
e o avanço técnico para, no tópico seguinte, considerar a mesma relação tendo em vista
uma economia particular como a brasileira, sobretudo após 2005. Não se trata de esgotar
as sutilezas existentes, mas de explicitar os nexos mais fundamentais.
A determinação histórica das finanças mostra que o desenvolvimento do
capitalismo carrega consigo a reposição do antediluviano capital usurário na forma do
capital portador de juros desdobrado, assim, como sistema de crédito. Uma vez
estabelecido o modo de produção capitalista em suas bases adequadas, o capital industrial
subordina o capital portador de juros, seu pressuposto, agora posto como resultante
sistema de crédito (Marx, 1980-1985:1508-9).
Considerando esse sistema, inicialmente, como modalidades de empréstimo
privado de capital monetário (abstraindo, pois, dívida pública, capitalização e outras
“inovações financeiras posteriores”), é preciso despi-lo de sua autonomia para capturar
seu nexo oculto com a produção do mais-valor. De partida, é preciso reconhecer o ciclo
de metamorfose do próprio capital na produção capitalista (Marx, 2013). Como resultado
já de processos anteriores, a forma, por assim dizer, inicial é a do capital monetário. Esta
forma converte-se em capital produtivo por meio da aquisição e aplicação dos meios de
produção (capital constante) e força de trabalho (capital variável). Do processo de
produção do valor excedente, por meio da exploração econômica do trabalho, constitui-
se o capital-mercadoria que, tendo seu valor realizado na circulação das mercadorias,
converte-se novamente no capital monetário, possibilitando novos ciclos do capital agora
acrescido.
A fórmula sintética D-M-D’ procura expressar esse ciclo e o montante acrescido
(D’) como resultado do processo. Por isso, considerando que o capital monetário tenha
origem em empréstimos bancários, dada a focalização da presente investigação, vê-se que
o “valor de uso do dinheiro emprestado consiste em poder funcionar como capital e, como
tal, produzir, em circunstâncias usuais, o lucro médio” (Marx, 2017:399). Em outras
palavras, “seu valor de uso consiste em engendrar um lucro” (Marx, 2017:402). O juro
gerado assim, como pagamento ao empréstimo, “nada mais é que a parte do lucro (e este,
por sua vez, nada mais é que mais-valia [mais-valor], trabalho não pago), a qual o
capitalista industrial paga ao proprietário do capital de empréstimo” (Marx, 1980-
1985:1510-1511).
Assim, diz-se que empréstimos bancários para diferentes aplicações produtivas
(compra de materiais, fluxo de caixa, investimentos em aquisição de maquinaria etc.),
retornam à forma de capital monetário acrescido de juros. Na forma D-D’ está a diferença
específica dessa modalidade de capital por aparecer externamente ao processo de
valorização do próprio capital. Entretanto, esse modo de efetivamente aparecer dissociado
do capital industrial oculta o nexo fundamental como parte ou alíquota do mais-valor
engendrado na produção. Os juros surgem, assim, como título de propriedade sobre o
direito de se apropriar de uma parte do mais-valor produzido que, na própria forma do

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lucro, já surge mistificado por não revelar o processo de sua constituição efetiva por meio
da apropriação do trabalho excedente (Marx, 1980-1985:1495-96; 1516).
Para o caso em consideração (crédito via sistema bancário privado), é possível
identificar a existência de um processo de acumulação de dinheiro em frações especiais
das classes capitalistas. A propósito de indicar esse aspecto, reforça-se o nexo existente
entre essa acumulação especial e aquela chamada “acumulação real” e, portanto, entre o
juro e o lucro industrial, ambos como forma do mais-valor, sendo ainda o juro uma
alíquota desse mais-valor:

Naturalmente, a acumulação de todos os capitalistas que emprestam dinheiro opera-se sempre na


forma direta de dinheiro, em contraste com a verdadeira acumulação dos capitalistas industriais,
que em geral se efetua, como vimos, mediante o aumento dos elementos do próprio capital
reprodutivo. Por isso, o desenvolvimento do sistema de crédito e a enorme concentração do
negócio de empréstimo de dinheiro nas mãos dos grandes bancos tem de acelerar por si só a
acumulação do capital emprestável, como forma distinta da acumulação real. Esse rápido
desenvolvimento do capital de empréstimo é, assim, um resultado da acumulação real, pois deriva
do desenvolvimento do processo de reprodução, e o lucro, que forma a fonte de acumulação desses
capitalistas monetários, não é senão uma dedução do mais-valor extraído pelos capitalistas
reprodutivos (ao mesmo tempo que é a apropriação de uma parte dos juros obtidos sobre as
poupanças de outrem). O capital de empréstimo se acumula às expensas tanto dos capitalistas
industriais como dos capitalistas comerciais (Marx, 2017:559)

O sistema de crédito em desenvolvimento cumpre diferentes funções frente ao


próprio capital industrial – fazendo abstração de outras funcionalidades, como crédito ao
consumo. Este sistema possui, portanto, a determinação histórica de ser um produto do
desenvolvimento capitalista ao passo que se converte, igualmente, em condição desse
desenvolvimento. É nessa relação de pressuposto-resultado que se marca a funcionalidade
das “finanças” atreladas ao capital industrial.
Já se destacou antes a funcionalidade como valor de uso, isto é, engendrar um
lucro operando como capital. Interessam agora outros desdobramentos daí possibilitados.
Variados observadores identificaram um aspecto angular. Registou-se, por exemplo, que
“mais importante, (...), para o desenvolvimento industrial foi a segunda metade de sua
revolução: o surgimento do banco de investimento em ações” (Landes, 1979:206), cuja
“principal virtude (...) assenta-se em sua habilidade de canalizar riqueza para a indústria”
(Landes, 1979:207). Destaca-se, então, a funcionalidade de alavanca que o sistema de
crédito desempenha ao processo de acumulação de capitais (crescimento do capital total
empregado) e às consequências derivadas. Assim, diz-se que:

com a produção capitalista, constitui-se uma potência inteiramente nova: o sistema de crédito, que
em seus primórdios insinua-se sorrateiramente como modesto auxílio da acumulação e, por meio
de fios invisíveis, conduz às mãos de capitalistas individuais e associados recursos monetários que
se encontram dispersos pela superfície da sociedade em massas maiores ou menores, mas logo se
converte numa arma nova e temível na luta concorrencial e, por fim, num gigantesco mecanismo
social para a centralização dos capitais (Marx, 2013:702)

É preciso destacar, portanto, que o “sistema de crédito (...) concentra diante dos
capitalistas individuais a massa inorgânica do capital social disponível” (Marx,
2017:231), de modo que “emprestar e tomar dinheiro emprestado converte-se num
negócio específico” (Marx, 2017:454). Não obstante, é esse “sistema de crédito que
constitui a base fundamental para a transformação gradual das empresas capitalistas
privadas em sociedades capitalistas por ações” (Marx, 2017:498-499). É essa

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transformação resultante do sistema de crédito: a constituição de uma centralização e


concentração de capitais na forma monetária, permitindo lucros específicos nas operações
de crédito, mas igualmente centralização e concentração de capitais na forma industrial,
formando gigantescas corporações capitalistas. E “enquanto reforça e acelera desse modo
os efeitos da acumulação, a centralização amplia e acelera, ao mesmo tempo, as
revoluções na composição técnica do capital, que aumenta a parte constante deste último
à custa de sua parte variável” (Marx, 2013:703). Assim, estabelece-se um nexo importante
entre a disponibilidade de fluxo monetário e a acumulação real de capital produtivo na
forma de sua fração constante, isto é, expansão dos investimentos em maquinaria,
sobretudo, potencializando o avanço técnico.
Assim, considerando, como já antecipado, o capital constante como investimentos
em meios de produção (maquinaria, instrumentos de trabalho etc.), constata-se o maior
peso relativo das “condições técnicas do próprio processo de produção, a maquinaria, os
meios de transporte etc.” (Marx, 2013:707-8). É importante destacar que o que
efetivamente caracteriza o desenvolvimento da produção capitalista – e também em
considerável medida o desenvolvimento geral da sociedade – é o avanço do capital fixo,
isto é, da produção de máquinas por meio de máquinas, a constituição de um “sistema
automático da maquinaria” (Marx, 2011:580) como forma aperfeiçoada da base técnica,
um verdadeiro “sistema de máquinas” (Marx, 2013:495) em que prevalece o “princípio
da automação” (Marx, 2013:455), reduzindo tendencialmente o tempo socialmente
necessário à produção das mercadorias e tornando o trabalho, ainda que indispensável no
limite, subordinado à atividade científica como ponto mais avançado do sistema (Marx,
2011:581-9). Há implicações disso, mas é decisivo para a presente investigação reter a
funcionalidade do sistema de crédito ao desenvolvimento desse sistema intenso em
maquinaria (capital constante), possibilitando desse modo o avanço técnico nos limites
da produção capitalista que impõe a contradição de avançar e restringir o progresso das
forças produtivas (Santos, 1987). Mas este é outro assunto...
Não obstante, tudo indica, portanto, que o sistema de crédito desempenhou um
importante papel não apenas para a composição das sociedades por ações, mas para os
investimentos em capital fixo decorrentes, sobretudo, possibilitando os avanços técnicos
circunscritos no capital constante. Ainda que mudanças históricas tenham ocorrido no
peso relativo do sistema de crédito para investimentos produtivos (cf. Paço Cunha;
Guedes, 2018), é possível reforçar as possibilidades criadas aos processos inovativos pelo
fluxo de capital monetário.
Nesse sentido, Durand (2017) traz sínteses interessantes ao procurar combinar
certos fundamentos da crítica da economia política com incrementos apresentados por
Perez, representante de uma tradição neoshumpeteriana. Durand (2017:102) explica que
“instituições financeiras e mercados de ativos” contribuem para guiar fluxos de capital
em razão de realizar seleção entre setores com lucratividade decrescente e com
lucratividade promissora. Assim, esse “sistema de finanças” se divide entre a “lógica
predatória inerente à sua incapacidade de gerar valor por si mesmo e, por outro lado, seu
papel na organização da acumulação de capital, a qual favorece a inovação”.
Considerando esse ângulo, o autor estabelece que o quadro analítico de Perez:

mostra que, mesmo em seus momentos de excesso, a finança desempenha um papel cognitivo
essencial à reorganização econômica. Ao dar suporte aos esforços de escavar novas oportunidades
para o lucro, ela cria grande instabilidade, provoca depressões e aumenta as tensões
socioeconômicas. Mas, em última instância, ela contribui para a emergência de setor que traz um
novo dinamismo. Em contexto de declínio, a finança cria as condições para um desenvolvimento

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de novas forças produtivas. Entretanto, a realização desse potencial requer mudança institucional
de caráter sócio-político, cujo resultado é contingente (Durand, 2017:115)

De tal modo, esse quadro analítico destaca que a “mudança tecnológica está
inscrita em um movimento sistemático que se move ao passo da dinâmica do lucro”,
explica Durand (2017:117). Entretanto, a discussão da autora (cf. Perez, 2009) se limita
a destacar o financiamento via mercado de ações (capitalização) e não por meio do
sistema de crédito bancário privado.
O sistema de crédito teria perdido sua função histórica atrelado ao avanço técnico?
Com base em literatura marxista e não marxista (cf. Mandel, 1982; Minsky, 2008;
Paço Cunha; Guedes, 2018) – em que prevalecem, aos propósitos presentes, as categorias
da primeira –, é possível traçar uma linha geral das tendências de financiamento produtivo
em três fases que expressam o desenvolvimento do capitalismo monopolista. Encontra-
se síntese razoável das mudanças no relacionamento entre os bancos e o setor produtivo
nas economias centrais nas linhas que seguem:

A primeira fase clássica do capitalismo monopolista testemunha uma fusão entre o capital
produtivo e financeiro sob a dominância do segundo. A formação de capital fixo respondia ao
financiamento bancário por meio do crédito, pelo menos até um momento em que o crescimento
das corporações e dos lucros retidos diminuiu o grau de dependência com relação ao financiamento
bancário para ativos fixos. Alterações institucionais e na dinâmica econômica com os processos
de crise da primeira metade do século XX e de destruição de capitais durante os enfrentamentos
bélicos culminaram em uma segunda fase na qual se dá elevação das taxas médias de lucro,
sobretudo nas principais economias, criando condições para o autofinanciamento e consolidação
da tendência de diminuição da dependência do capital produtivo frente ao financeiro para aquele
período. A redução da taxa média de lucro do final dos anos de 1960 em diante, por decorrência
do aumento da composição orgânica do capital (Dobb) e sobre-acumulação (Mandel), forçou
alterações institucionais e nova liberalização de capitais financeiros na tentativa de reverter as
tendências gerais, implicando tendencialmente para baixo o autofinanciamento das grandes
corporações não financeiras, configurando assim a terceira fase do capitalismo monopolista.
Constitui-se uma fase em que os empréstimos realizados pelas grandes corporações não financiam,
no entanto, a formação de capital fixo, mas o crescimento do patrimônio financeiro das próprias
corporações não financeiras. (Paço Cunha; Guedes, 2018:7-8)

Os autores adicionam resultados da análise da continuidade do período pós-1970.


Uma conclusão principal é que o autofinanciamento é ainda predominante em relação a
empréstimos bancários para fins produtivos. A isso corresponde o fato de que o sistema
de crédito tem pouco peso sobre o avanço técnico se comparado com o investimento
próprio. Isso tem validade para as economias centrais em que o autofinanciamento
mostrou comportamento de alta a partir dos anos de 1970. A economia brasileira, ao
contrário, demonstrou tendência de queda no autofinanciamento no mesmo período.
Outra conclusão igualmente significativa:

há uma tendência geral de aumento do autofinanciamento nas economias centrais em condições


de queda da taxa média de lucro. Por um lado, é preciso ter em mente que o autofinanciamento
possui limites cíclicos e que o atual estágio, com tendência de alta, denota uma fase que não é
caracterizada pela predominância financeira sobre os investimentos produtivos, como na primeira
fase do capitalismo monopolista, nem pelos altos patamares de autofinanciamento da segunda fase.
Por outro lado, as taxas de lucros em queda são compensadas pelos lucros financeiros a ponto de
não derrubar drasticamente os investimentos internos ainda que os investimentos totais estejam
com tendência de queda (Paço Cunha; Guedes, 2018:17-18)

98
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

É possível dizer, a partir disso, que a fase atual não é de queda abrupta do
autofinanciamento, retrocedendo à primeira fase, nem de patamar superior que iguale à
segunda fase. Sendo algo intermediário entre a primeira e a segunda fases, sustenta-se a
constatação de que o sistema de crédito bancário em particular tem menor relevância para
o avanço técnico tanto nas economias centrais quanto na economia dependente brasileira.
O destaque, agora, que precisa ser feito em decorrência desse problema é para a
funcionalidade do sistema de crédito no processo de acumulação dos capitais nas
economias centrais. Uma vez que o grande capital pôde, por assim dizer, caminhar com
suas próprias pernas, o sistema de crédito perdeu a predominância inicial sobre o
investimento para o progresso técnico. Um dos principais efeitos do desenvolvimento do
grande capital foi uma diminuição da funcionalidade do sistema de crédito, embora essa
funcionalidade tenha sido crucial, como vimos, ao próprio processo de desenvolvimento
do capitalismo industrial e de sua fase monopolista centrada na grande empresa. A
história dos trusts (de um Rockfeller, de um JP Morgan etc.), combinando bancos e
indústrias nos Estados Unidos, é emblemática com respeito a essa funcionalidade em
particular (cf. Sklar, 1988; Chandler, 1978; 1998).
Em contraste, esse aspecto é decisivo para uma introdução ao problema do sistema
de crédito no processo de formação do capitalismo no Brasil. A título de registro histórico,
é possível identificar nos anos de 1930 certas necessidades colocadas como condição ao
avanço da produção nacional. Simonsen (1931:48), espelhando-se consideravelmente no
exemplo alemão, escreveu que o “nosso aparelhamento bancário não favorece tampouco
o financiamento da produção, como necessitamos”, acrescentando, em seguida, a
exigência de que fossem

criados aparelhos especiais que estabeleçam o financiamento da indústria. Estudando o nosso


meio, precisamos fomentar a criação de bancos industriais que cuidem não somente do
financiamento das indústrias para aquisição de matérias primas e expansão dos mercados como
também que sirvam de intermediários entre as indústrias e o público, procurando o
encaminhamento de nossas economias para o desenvolvimento do trabalho nacional (Simonsen,
1931:48-9).

Até aquela data, apenas o Banco do Brasil provinha fontes de crédito ainda que
em extrema carência, como o próprio autor relata (Simonsen, 1931). Anos depois,
entretanto, registrou Bastos a funcionalidade do crédito internacional. O autor fornece
indicações gerais do financiamento bancário da siderurgia no Brasil, responsável por
ampliação do estoque de capital fixo, a partir do final anos de 1930 (para não considerar
os empréstimos estrangeiros durante o período imperial). O Export-Import Bank dos
Estados Unidos e do Japão desempenharam, em momentos distintos, papel como fontes
de financiamento. Sobretudo um banco norte-americano, pois conta-se em “105 milhões
de dólares o financiamento do EXIMBANK à Volta Redonda, no período de 1941 a 1956”
(Bastos, 1959:270). Outras iniciativas posteriores também são contabilizadas, como a
COSIPA que recebeu aportes do também estrangeiro Pan-American Investment (Bastos,
1959:282). São elementos suficientes para ressaltar que as exigências feitas por Simonsen
não foram resolvidas, nas décadas imediatamente seguintes, pelo desenvolvimento de um
sistema bancário interno orientado para o financiamento produtivo.
Para o período entre 1963 e 1973, há registros dos percentuais de empréstimos ao
setor privado industrial no Brasil, tendo por fonte bancos comerciais. Uma análise
superficial mostra tendência regular com inclinação de baixa, variando entre 42.3, para
1963, e 36.5, para 1973. Há, entretanto, variação mais significativa entre 1972, com 38.4,

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

e 1980, com 50.5, mas com inclinação de alta (Minella, 1988:160). Há, no entanto,
carência de informações sobre a participação dos empréstimos de bancos privados, ainda
que se tenha notícia de que até a década de 1980 foram fundamentais, com maior força
do que os bancos públicos tangente o financiamento das indústrias, conforme sugerido
pelos percentuais de empréstimos à indústria acima.
Se o sistema de crédito privado interno só pôde exercer alguma funcionalidade
entre 1963 e 1973 no Brasil, os dados mais recentes, como comentado (cf. Paço Cunha;
Guedes, 2018), denotam baixa do financiamento via sistema de crédito privado e alta do
autofinanciamento ainda que com inclinação decrescente da série histórica. Por isso é
possível ter bastante claro que a função desempenhada pelo sistema de crédito privado
nas economias centrais, forjando o capitalismo da grande corporação, não teve a mesma
efetividade em território brasileiro. Num primeiro momento, como se viu antes, marca-se
a ausência completa de um sistema bancário (Simonsen). Em seguida, dominância do
crédito internacional para a siderurgia (Bastos), principalmente. Numa fase entre as
décadas de 60 e 70, alguma acentuação do sistema de crédito privado frente aos públicos
(Minella) para, em fase superior, marcar-se o autofinanciamento produtivo como
predominante para o setor industrial. Esse quadro geral e tardio, que será aprofundado no
tópico a seguir com dados para o período posterior a 2005, expressa que o sistema de
crédito no Brasil não desempenhou papel relevante na formação do capital fixo ou mesmo
em processos inovativos, haja visto a contínua dependência técnica do país frente às
economias centrais.
Dessa forma, em termos histórico-comparativos, nas economias centrais o
financiamento via sistema de crédito privado teve função decisiva para formação do
grande capital monopolista (processo de acumulação) e, logo, do avanço técnico que o
acompanha, embora a dinâmica posterior desse mesmo capital tenha tornado
relativamente (e talvez provisoriamente) obsoleto o sistema de crédito privado frente ao
autofinanciamento para o avanço técnico. Ao mesmo tempo, não se pode dizer que tenha
se tornado relativamente obsoleto para a economia brasileira uma vez que tal sistema
jamais teve aquela mesma função. Quando houve alguma sinalização de efetivo
desenvolvimento do sistema de crédito privado interno no transcorrer das décadas de
1960 e 1970, o capitalismo das grandes corporações internacionais já estava, por assim
dizer, consolidado e entrante em fase de crise, restando as limitadas e insuficientes
experiências desenvolvimentistas (se é que se pode assim denominá-las). Dessa maneira,
estabelece-se uma relação de reciprocidade internacional entre as economias centrais e as
dependentes de modo que o próprio desenvolvimento do sistema de crédito interno ficou
historicamente bloqueado, bem como as possibilidades de criação das grandes
corporações de capital nacional:

Quando a produção capitalista de mercadorias conquistou e unificou o mercado mundial, ela não
criou um sistema uniforme de preços de produção, mas um sistema diferenciado de preços de
produção nacionais variáveis e preços unificados no mercado mundial. Isso permitiu que o capital
dos países capitalistas mais desenvolvidos conseguisse superlucros, pois suas mercadorias podiam
ser vendidas acima de seu ‘próprio’ preço nacional de produção e, no entanto, abaixo do ‘preço
nacional de produção’ do país comprador. Em última análise, esse sistema internacionalmente
hierarquizado e diferenciado de valores diversificados de mercadorias é explicado por um sistema
internacionalmente hierarquizado e diferenciado de níveis variáveis de produtividade do trabalho.
O imperialismo, longe de nivelar a composição orgânica do capital em escala internacional – ou
de conduzir a uma equiparação internacional das taxas de lucro – congelou e intensificou as
diferenças internacionais na composição orgânica de capital e no nível das taxas de lucro (Mandel,
1982:57)

100
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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

Disso resulta que a composição orgânica do capital (a relação entre capital


constante e variável que expressa o grau de acumulação), nas economias subordinadas é
relativamente mais baixa, possibilitando extração de superlucros aos capitais
internacionais ali investidos. Isso, ao mesmo tempo, significa um investimento inferior
em avanço técnico nas próprias economias subordinadas e, assim, obstruindo
possibilidades inovativas de ordem produtiva em termos de maquinaria, principalmente.
E dado que tal composição se marca em nível inferior, as possibilidades de superlucros
advêm sobretudo de nível também inferior do preço da força de trabalho relativamente às
economias centrais. Assim, o desenvolvimento de maquinarias fica consideravelmente
limitado e mesmo sua difusão via importações é tardia e lenta, uma vez que baixos
salários não são estímulo para a substituição (ou substituição acelerada) da força de
trabalho por máquinas que ampliem a produtividade do capital uma vez que se pode
prolongar a extração de mais-valor sem recorrer a alterações significativas na base técnica
(Marx, 2013:466).
Assim se vê que o sistema de crédito em uma economia subordinada responde às
condições dessa subordinação econômica sem ter sido, até agora, alavanca de uma
ruptura. Igualmente se vê que uma análise da função das finanças na forma do sistema de
crédito obedece à dinâmica histórica e de reciprocidades entre economias particulares
numa unidade global. Vejamos em detalhes os dados que expressam mais correntemente
essas questões.

Avanço técnico e sistema de crédito restritos no Brasil


Para compreender a especificidade da função do crédito privado no financiamento
do avanço técnico no Brasil é preciso avaliar como tem se desenvolvido essas formas de
financiamento na realidade concreta através dos dados disponíveis com respeito à
inovação. O problema aqui não está integralmente coberto dada a ausência de alguns
dados específicos, mas, analisando aqueles disponíveis, pretende-se chegar a
aproximações razoáveis do problema.
Como informado na introdução, coletou-se dados entre 2005 e 2014 que
compreendem o período estabelecido como escopo da pesquisa. Em primeiro lugar, esse
período foi escolhido diante da disponibilidade da principal fonte de dados para este
estudo. No Brasil, recorreu-se à PINTEC (Pesquisa de Inovação) feita trienalmente em
indústrias brasileiras pelo IBGE. Outras fontes úteis ao balizamento desse estudo foram
o Centro de Estudos do IBMEC (CEMEC), o Ministério de Ciência, Tecnologia,
Inovações e Comunicações (MCTIT), e o Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES). E, como provedores de dados internacionais, a
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Bank for
International Settlements (BIS). Este período também contribui para o melhor
entendimento dos acontecimentos contemporâneos e fornece condições de apreensão da
dinâmica posterior ao período centralmente analisado no tópico anterior.
Em primeiro lugar, antes de adentrar no problema do financiamento em si, é
preciso destacar que o Brasil não ocupa uma posição privilegiada no que diz respeito aos
investimentos em P&D. No Gráfico 1, é possível ver que o nível de investimento do Brasil
é persistentemente mais baixo que o dos países mais desenvolvidos, embora se registre
um tímido crescimento. Isso denota uma condição de evolução restrita que mantém o país
subordinado a essas grandes economias na medida em que é incapaz de alcançar os níveis
de investimento ou mesmo de evolução de investimento dessas potências. Em parte, os

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investimentos em P&D nos países centrais correspondem ao não investimento no país


subordinado em tela.

Gráfico 1: Investimento em P&D 2005-14 (% PIB)

Fonte: adaptado de OCDE (2018)

Considerando a evolução de investimentos, percebe-se que no Brasil, em termos


de dispêndios, não há, de fato, uma diferença proporcional muito grande entre
investimentos públicos e empresariais. De acordo com o MCTIC (2017), no período em
debate, apenas em 2005 os investimentos empresariais foram superiores aos públicos
(52,3%). Nos outros anos, os gastos públicos predominaram. Em 2014, a proporção de
gastos públicos foi de 52,8%.
Embora sejam sutilmente inferiores, não podem ser deixados de lado os
investimentos empresariais. Inclusive é na origem desses investimentos onde se pode
buscar uma compreensão melhor acerca das fontes, especialmente o crédito.
Considerando pormenorizadamente os dados da pesquisa de inovação do IBGE, é
interessante observar o que mostram os dados das fontes de financiamento das empresas,
foco principal desse estudo. No caso do financiamento dos investimentos das empresas,
tem-se conforme a Tabela 1:

Tabela 1: Estrutura de financiamento de inovação das empresas 2005-2014


Estrutura do financiamento (%)
Das atividades de P&D Das demais atividades
Ano
De terceiros Próprios De terceiros
Próprios
Total Privado Público Exterior Total Privado Público
2005 89 11 4 7 - 81 19 11 9
2008 76 24 4 19 - 75 25 9 16
2011 87 13 0 11 2 78 22 5 17

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2014 84 16 1 14 1 85 15 3 12
Fonte: Adaptado de IBGE (2005; 2008; 2011; 2014)

No aspecto correspondente às fontes de financiamento, o levantamento do IBGE


apontou, em todos os anos, que, no mínimo 80% das atividades de P&D nas empresas
avaliadas eram financiadas com capital próprio, e os recursos públicos alcançaram, no
máximo 15%. E aqui não somente com P&D, mas também com as demais atividades
inovativas, o que denota uma participação quase insignificante do crédito, privado ou
público, na evolução tecnológica do país no setor empresarial. De modo geral, o
financiamento da inovação tecnológica do setor empresarial no Brasil depende em grande
monta do aporte das próprias empresas, sem que haja uma dependência mais clara frente
ao crédito sobretudo privado. Com isso se confirma, como adiantado na seção anterior, a
predominância, no contemporâneo, do autofinanciamento produtivo (Paço Cunha;
Guedes, 2018). E fica revelado, especificamente, a predominância do autofinanciamento
com relação aos aportes destinados ao avanço técnico. Em outros termos, o sistema de
crédito privado não desempenhou função positiva ao avanço técnico uma vez que mesmo
sua existência para esta finalidade no contexto atual é discutível, constituindo elemento
de continuidade de uma acumulação dependente em base técnica restritiva (Paço Cunha
et al., 2018).
Uma compreensão mais abrangente do problema pode ser vista com a análise dos
dados acerca das fontes de financiamento de P&D no levantamento da OCDE (Gráfico
2). A divisão é feita entre recursos governamentais e recursos empresariais. Em certa
medida, é inclusive possível questionar a importância global do crédito na medida em que
a classificação da própria OCDE para fontes empresariais de recursos para P&D se
constituem em empresas, pós-graduação, organizações não privadas e recursos
internacionais. Isto é, o crédito bancário não é sequer mencionado como uma fonte
importante de recursos para esses investimentos, especialmente. Seja como for, dado esse
espectro de possibilidades de financiamento, é interessante acompanhar como está
colocada a realidade brasileira em comparação com as principais economias, no que toca
a relação entre financiamento governamental e empresarial.

Gráfico 2: Recursos para P&D financiados pelas empresas 2005-14 (% PIB)

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Fonte: (UNESCO INSTITUTE FOR STATISTICS, 2018)

Como se vê, o financiamento empresarial é maior comumente nos países


desenvolvidos, isto é, ocupa uma posição mais importante, superior a 50%, não caindo
desse patamar mesmo em condições de oscilação, em particular, posteriormente à crise
de 2008. No Brasil, além de haver uma baixa participação deste tipo de financiamento,
ocorre um movimento mais claro de decréscimo. A despeito dessas tendências, é
importante salientar que o financiamento bancário pode estar contido nessa categoria
(fontes empresariais), que não isola somente os recursos próprios, mas contempla os
recursos empresariais em geral, podendo inclusive abranger os fundos de investimento
compostos por empresas de diversos setores2. Esta é uma limitação dos dados. É, todavia,
possível dizer, que o Brasil tem caminhado na direção contrária dos países desenvolvidos
quanto à participação do financiamento privado nos investimentos em P&D, e isto
implica, logicamente, o oposto quanto ao financiamento público. Vejamos os dados,
conforme Gráfico 3:

Gráfico 3: Recursos para P&D financiados pelo governo 2005-14 (% PIB)

Fonte: Adaptado de (UNESCO INSTITUTE FOR STATISTICS, 2018)

Novamente, o Brasil aparece destacado dos países desenvolvidos, na medida em


que apresenta uma condição de participação governamental no financiamento de P&D
maior que os países desenvolvidos. Ao mesmo tempo em que, no período, regrediram-se
os financiamentos empresariais, aumentaram os governamentais. A dependência do
aporte governamental é flagrante e cada vez mais acentuada para o período, na medida
em que a diferença em relação ao financiamento empresarial torna-se cada vez mais
elástica.

2
A título de exemplo, pode-se citar um aporte, anunciado em 2017, de 100 bilhões de dólares de um fundo
de investimentos liderado pelo SoftBank que engloba grandes empresas do setor de tecnologia como Apple,
recursos públicos da Arábia Saudita e fundo de investimentos dos Emirados Árabes, em tecnologia da
informação no Japão. (Jones, 2017).

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Existem ainda outras fontes importantes não governamentais consideradas pela


OCDE, mas por apresentarem valores pouco significantes não se faz necessário
apresenta-los nesta exposição. Ademais, os dados apontados denotam uma matriz de
investimento brasileira distante dos países desenvolvidos, mas mais do que isso, a
participação pouco importante, apesar de não muito clara, do crédito privado nesses
investimentos. A própria pouca especificação é em si mesma índice de uma condição do
caso concreto dos países analisados no conjunto, incluindo o caso brasileiro. O sistema
de crédito privado não parece servir de alavanca para o avanço técnico. Para o caso dos
países desenvolvidos, o resultado presente se deve a uma trajetória histórica em que o
crédito bancário criou condições de possibilidade de acumulação de capital produtivo. O
caso brasileiro é distinto, nesse aspecto, pois a ausência atual coincide com a própria
trajetória histórica.
De um outro prisma, tratando mais diretamente o problema do crédito bancário, é
possível ver também algumas diferenças entre o Brasil e os países desenvolvidos,
sobretudo no que diz respeito ao volume de crédito para o setor privado não financeiro,
conforme Gráfico 4:

Gráfico 4: Crédito bancário (público e privado) para o setor privado não


financeiro 2005-14 (% PIB)

Fonte: Elaborado a partir de BIS (2018)

Aqui é possível ver uma evolução do Brasil, mas que ainda o deixa aquém de
Japão e Alemanha. Há, contudo, um movimento progressivo, isto é, tem aumentado o
crédito bancário para os setores não financeiros ao contrário dos países desenvolvidos
que apresentam, no máximo, uma estagnação. É evidente que nesse aspecto, há uma série
de outros fatores envolvidos, como o endividamento das empresas e o impacto da crise
de 2008. Mas, no que diz respeito ao crédito para o setor produtivo, não é possível colocar
o Brasil num patamar claramente mais baixo do que os países desenvolvidos. Neste ponto,
ao contrário, há uma aproximação maior. Não é suficiente, não obstante, para afirmar a
existência de uma efetiva função do crédito bancário privado no financiamento do avanço
técnico uma vez que o volume não parece ser suficiente, ou não é empregado de fato para

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tal finalidade. Nos países desenvolvidos esse ponto chama mais a atenção, pois mesmo
havendo disponibilidade regular de crédito, o avanço técnico tem sido financiado com
recursos próprios. Mesmo uma compreensão das empresas que mais investem em P&D
segue, de certa forma, as indicações dadas pelos dados já apresentados. Um levantamento
da União Europeia de 2014, o Industrial R&D Investment Scoreboard que faz uma
radiografia dessas empresas, aponta que ao menos quarenta e cinco das cinquenta
empresas que mais investem, passaram por algum processo de fusão ou aquisição.
Segundo relatório divulgado, “em alguns casos grandes mudanças em P&D resultam de
fusões & aquisições (M&As) ou desfusões quando a companhia aprimora seu foco
vendendo ou multiplicando uma ou mais divisões” (EUROPEAN COMMISSION,
2014:32). Das 50 empresas que mais investem em P&D, a farmacêutica Pfizer negociou
49,23 bilhões de euros em fusões e aquisições entre 2007 e 2014. Por outro lado, a
farmacêutica Abbot
desfundiu sua divisão farmacêutica em uma companhia separada agora chamada AbbVie cujas
ações foram listadas em dezembro de 2012. A AbbVie agora tem uma capitalização de mercado
maior que a da Abbott, sua antiga proprietária. O resultado da cisão é que a AbbVie está no 52º
lugar no placar deste ano, enquanto a Abbott está no 95º lugar (no placar do ano passado, a Abbott
estava no 35º lugar) (EUROPEAN COMMISSION, 2014:32).

Isto indica como as fusões e desfusões podem ter influências no nível de


investimento dessas empresas em P&D. Embora isto possa indicar a influência da
negociação dessas empresas no mercado financeiro, não há, de fato, relação mais próxima
com o crédito bancário. Essas empresas que compõe a lista, estão localizadas
majoritariamente em países desenvolvidos (Estados Unidos, Japão e Alemanha). Não há
qualquer empresa brasileira no grupo, tratando-se assim de uma tendência mais das
principais economias.
Por esta razão, para ficar mais próximo ao problema aqui proposto, e ao caso
nacional, é possível indicar as categorias para as quais se destinam esses recursos do
crédito bancário no Brasil, conforme Tabela 2:

Tabela 2: Crédito doméstico para pessoas jurídicas em % do total


2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014
BNDES 27,0% 27,0% 33,2% 35,6% 35,3% 34,6% 35,1% 37,0%
Outras operações 15,8% 15,5% 14,9% 14,3% 14,8% 16,3% 18,4% 18,3%
Cheque especial + conta garantida 7,7% 6,7% 5,6% 5,0% 4,9% 4,2% 3,8% 3,5%
Aquisição e Leasing de bens 2,9% 2,8% 2,4% 2,0% 1,8% 1,7% 1,5% 1,4%
Financiamento imobiliário 1,1% 1,3% 1,9% 2,4% 2,9% 3,3% 3,7% 4,4%
Capital de giro 19,0% 24,2% 27,1% 28,2% 27,9% 28,3% 26,5% 24,6%
PJ recursos externos 12,8% 11,8% 6,0% 4,5% 4,9% 5,0% 4,9% 5,5%
Aquisição e leasing de veículos 4,2% 3,8% 3,4% 3,0% 2,9% 2,4% 1,9% 1,6%
Desconto cheques 9,6% 6,8% 5,5% 4,9% 4,5% 4,2% 4,2% 3,8%
Fonte: Elaborado a partir de CEMEC (2017)

Vê-se que o BNDES é o principal fornecedor de recursos, e sendo ele um banco


público, já se tem aí um indício de que as finanças privadas possuem um caráter restrito
no próprio conjunto de fornecimento de crédito bancário privado. Além de “outras
operações”, outra modalidade importante que aparece é o capital de giro, que também não

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diz respeito à inovação, mas à operacionalidade das empresas, incluindo aí a possibilidade


de ampliação do chamado patrimônio financeiro via compra de ações próprias ou de
terceiros. Das modalidades apresentadas, a única que pode estar mais próxima da
inovação em uma análise com menor critério é a compra ou leasing de bens ou veículos
que apresentam, ambos, números baixos se comparados a outras categorias. Ou seja,
tendo em conta o destino do crédito bancário no país, percebe-se que não há uma relação
muito próxima com a inovação. As finanças sob a forma do sistema de crédito privado
no Brasil não parecem se articular como um elemento fundamental para o
desenvolvimento do avanço técnico, confirmando as tendências históricas identificadas.
Fica assim sugerido que o sistema bancário privado pode exercer funcionalidade direta
não sobre o avanço técnico, mas sobre o capital de giro, possibilitando aquisições de
natureza financeira em lugar de produtivas, restando as últimas aos aportes próprios.
É certo que o Brasil não caminha na vanguarda no desenvolvimento tecnológico,
mas também não está estagnado. A grande maioria das empresas depende de capital
próprio para financiar seus investimentos em inovação, o que pode indicar, por outro lado,
baixo dinamismo histórico dos instrumentos de financiamento privados via sistema de
crédito. Nessa direção, não é possível encontrar, dentre os principais instrumentos de
créditos disponíveis para as empresas, nenhum diretamente ligado à inovação que seja
relevante. Vê-se, por exemplo, a importância do BNDES na cessão de crédito, mas ao
mesmo tempo dentre os indicadores de desembolso do banco, a inovação, embora tenha
evoluído de 2010 para 2014 (de 1,4 para 5,9%), ainda tem participação no total de
desembolsos do banco reduzida (BNDES, 2014). Em suma, ainda que tenha havido um
aumento no fornecimento de crédito bancário para o setor não financeiro, os dados têm
mostrado que esse crédito parece não desembocar no avanço técnico.
Por isso, não é possível afirmar que o sistema de crédito privado serve de alavanca
à inovação mesmo nos países mais desenvolvidos. O que se apresenta é justamente uma
matriz de financiamento diferente naqueles (impulsionada majoritariamente pelo setor
empresarial) e evidentemente, um volume de recursos maior empregado em inovação.
Para o caso brasileiro, como visto, tal sistema também não alimenta as possibilidades de
avanço técnico e isso como padrão histórico jamais modificado.

Considerações finais
O presente trabalho objetivou determinar a funcionalidade do sistema de crédito
ao avanço técnico por meio da análise teórico-histórica e de dados primários da economia
brasileira entre 2005 e 2014.
A maior limitação da pesquisa pode ser tributada aos dados. Não foi possível, por
exemplo, determinar o peso relativo do sistema de crédito privado para investimentos
produtivos na comparação entre as economias destacadas. Isso teria permitido
compreender melhor a dinâmica dessa modalidade de financiamento. Entretanto, os dados
são muito agregados quando não ausentes.
Ainda mediante a tais limitações, a análise dos dados sugere que o sistema de
crédito via bancos privados não desempenha função para o avanço técnico no Brasil,
repetindo o padrão histórico dessa economia subordinada. A acumulação de capital nos
países centrais bloqueou as possibilidades brasileiras, impedindo inclusive o
desenvolvimento de um sólido sistema de crédito bancário que desenvolvesse a
acumulação interna como pré-condição do avanço técnico.
O estudo histórico do sistema de crédito bancário permite compreender que a
funcionalidade desempenhada mesmo para as economias centrais foi alterada ao longo

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do desenvolvimento do capitalismo centrado nas grandes corporações multinacionais.


Determinado estágio de acumulação real do capital produtivo tornou relativamente (ou
talvez temporariamente) obsoleto o sistema de crédito bancário privado para o avanço
técnico. A apropriação de parte do mais-valor por via dos juros encontrou outros canais
de fluxo, como sugere-se adiante.
Não obstante, na economia brasileira, tal sistema não se tornou obsoleto em razão
de nunca ter, de fato, desempenhado tal finalidade, pois não houve alterações para o seu
padrão histórico. Ficou confirmado que o sistema de crédito privado no Brasil não serviu
e continua tendencialmente não servindo de alavanca para um aumento da composição
orgânica do capital e, daí, ao avanço técnico potencialmente atrelado dados os
investimentos em maquinaria (capital constante). Isso ficou evidenciado pelos
investimentos em inovação comparativamente a outros países. O crédito via bancos
privados parece financiar mais fluxo de caixa e outras operações enquanto investimentos
em P&D são feitos com recursos próprios e via BNDES.
Assim, as constatações aqui sugeridas não implicam que o sistema de crédito
bancário privado não tenha qualquer função. Tem, logicamente, para a circulação das
mercadorias como crédito ao consumo, aquisições de veículos, mobiliário etc. Tampouco
são eles pouco importantes, como sugerem os próprios dados de crédito bancário para o
setor não financeiro. Destaca-se o financiamento do fluxo de caixa que inclusive permite
aquisições financeiras, pressionando capitalização própria ou alheia como canal mais
propício para a apropriação de parte do mais-valor e, ao mesmo tempo,
consideravelmente mais aderente às modalidades de capital fictício e suas variantes
irracionais (Marx, 2017). Mas não parece mais cumprir a função do passado em
potencializar o avanço técnico via acumulação de capitais.
Há, portanto, uma alteração na função do sistema de crédito bancário privado para
as economias centrais, frente ao padrão anterior, e para a brasileira, frente a esse mesmo
padrão. Vê-se que, potencialmente, tal sistema se destina a financiar compra de ações,
conforme sugere parte da literatura sobre o assunto (Duménil; Lévy, 2014:72; 165).
É possível extrair questões que avancem a pesquisa sobre o tema. Primeiramente,
a semelhança em termos de fonte de investimento via autofinanciamento pode expressar
nada mais do que transferências das multinacionais por via dos investimentos diretos na
economia brasileira. Tais recursos provenientes das matrizes são potencialmente
direcionados mais à difusão da inovação, como compra de máquinas via importação, do
que investimento de risco em inovações radicais. Tais inovações radicais ficam a cargo
das matrizes nos países de origem ou da malha de pequenas firmas inovadoras
sumariamente adquiridas quando bem-sucedidas. Isso ajudaria a explicar o permanente
atraso tecnológico brasileiro sem sinais de ruptura do padrão de acumulação dependente
(cf. Paço Cunha et. al., 2018). O estudo, portanto, dos investimentos diretos podem ser
úteis para compreensão, inclusive, da maior ampliação do capital fixo no Brasil
comparativamente aos países de origem, isto é, a baixa tendencial dos investimentos em
capital constante nos próprios países de origem não se deve a uma “financeirização”, mas
ao esforço de obter superlucros nas economias subordinadas onde as taxas de lucro
tendem a ser superiores dada a baixa composição orgânica do capital (Durand; Gueuder,
2016; Durand, 2017).
Adicionalmente, é possível fazer abstração do sistema de crédito privado para o
problema da relação entre finanças e avanço técnico. Por um lado, há o papel da
capitalização potencialmente mais forte nesse aspecto, considerando também o venture
capital. Por outro, os pontos de concentração do capital nas bigtechs é um fator

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diferenciador se considerado que, outrora, foram os bancos os grandes centralizadores de


capital social. Além disso, os fundos que resultam da articulação de bancos, bigtechs e
fontes governamentais provenientes inclusive da exploração do petróleo são capazes de
direcionar maior fluxo de capital (cf. Jones, 2017). Esses são problemas a serem
investigados. É preciso igualmente saber o impacto do crescimento do patrimônio
financeiro sobre os investimentos produtivos de longo prazo nos quais se incluem o
avanço técnico. Considerando que as finanças impõem certo horizonte de curto prazo,
estaria o salto tecnológico limitado a tais expectativas? Se considerarmos que o sistema
de crédito financia fluxo de caixa e outras operações, estariam aí incluídos o patrimônio
financeiro. Mas isso tem impacto sobre os investimentos produtivos e de logo prazo como
P&D? Em termos mais diretos, há fuga de investimentos em direção ao crescimento do
patrimônio financeiro? O que esperar em condições de uma potencial alteração
tecnológica, como a que vem sendo chamada de quarta revolução industrial?

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CRÍTICA À RELAÇÃO ENTRE OS MICRO E PEQUENO NEGÓCIOS E O


GRANDE CAPITAL

Janaynna de Moura Ferraz


Universidade Federal do Oeste da Bahia
Universidade Federal de Minas Gerais
janaynna.ferraz@ ufob.edu.br

Bárbara Katherine Faris Biondini


Universidade Federal de Minas Gerais
barbarakfbiondini@gmail.com

Rossi Henrique Soares Chaves


Universidade Federal de Minas Gerais
rossichaves@hotmail.com

Resumo
O objetivo deste ensaio consiste em analisar a relação entre os micros e pequenos
empreendedores e o grande capital, seja pelo uso mediado pela tecnologia,
especialmente os apps para smartphones ou ainda por atuarem massivamente na esfera
da circulação. Foi realizada uma análise da produção científica brasileira que se
dedica/dedicou ao tema e também foram investigados os relatórios elaborados pelo
Global Entrepreneurship Management (GEM), pelo SEBRAE e pelo IBGE. A análise
consistiu em contrapor as justificativas desenvolvimentistas de empreendedorismo
como motor do crescimento econômico a partir da bipartição entre empreendedor por
necessidade versus por oportunidade. Percebemos que, no Brasil, ambos estão
relacionados muito mais com uma saída para o desemprego do que uma chance de criar
um negócio de alto impacto, não havendo, portanto, sustentação para o empreendedor
inovador schumpeteriano. Por fim, concluímos que há uma relação de dependência
entre grande e pequeno capital, o primeiro se vale do segundo para realizar o valor e/ou
rebaixar o capital variável, contudo, a troca é desigual, visto que o pequeno, como, em
geral, não produz mais-valor, é apenas remunerado pela realização, terminando não
conseguindo acumular.
Palavras-chave: Capital; empreendedorismo; crítica economia política; micro e
pequeno negócio.

CRITIQUE OF RELATIONSHIP BETWEEN MICRO AND SMALL BUSINESS


AND THE GREAT CAPITAL

Abstract
The purpose of this essay is to analyze the relationship between micro and small
entrepreneurs and great capital, either through the use mediated by technology,
especially smartphone apps or even to act massively in the sphere of circulation. An
analysis of the Brazilian scientific production dedicated to the topic was carried out and
the reports prepared by Global Entrepreneurship Management (GEM), SEBRAE and
IBGE were also investigated. The analysis consisted of opposing the developmental

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justifications of entrepreneurship as an engine of economic growth from the bipartition


between entrepreneur by necessity versus opportunity. We realize that in Brazil, both
are related much more to an exit to unemployment than a chance to create a high impact
business, and there is therefore no support for the innovative Schumpeterian
entrepreneur. Finally, we conclude that there is a relationship of dependence between
large and small capital, the former uses the latter to realize the value and / or lower
variable capital, however, the exchange is unequal, since the small, as in general, does
not produce more-value, is only remunerated for the achievement, ending up not being
able to accumulate.
Keywords: Capital; entrepreneurship; critical political economy; micro and small
business.

INTRODUÇÃO

— A aventura vai encaminhando os nossos negócios melhor do que o


soubemos desejar; porque, vês ali, amigo Sancho Pança, onde se descobrem
trinta ou mais desaforados gigantes, com quem penso fazer batalha, e tirar-
lhes a todos as vidas, e com cujos despojos começaremos a enriquecer; que
esta é boa guerra, e bom serviço faz a Deus quem tira tão má raça da face da
terra. — Quais gigantes? — disse Sancho Pança. [...] — Olhe bem Vossa
Mercê — disse o escudeiro — que aquilo não são gigantes, são moinhos de
vento [...] — Bem se vê — respondeu D. Quixote — que não andas corrente
nisto das aventuras; são gigantes, são; e, se tens medo, tira-te daí, e põe-te em
oração enquanto eu vou entrar com eles em fera e desigual batalha. (Miguel
de Cervantes em Dom Quixote, 2005, p. 52)

O tema empreendedorismo tem sido extensivamente discutido em diversos


meios sociais, seja na academia, nas livrarias, nos programas de televisão, nos podcasts
ou no streaming, nas escolas e principalmente nos pequenos estabelecimentos que se
alastram pelos arredores das cidades (COSTA; BARROS; CARVALHO, 2011,
HISRICH; PETERS; SHEPHERD, 2014). O crescimento das discussões acerca da
temática se deu de maneira sutil e contínua, de modo que chega mesmo a ser elogioso o
desígnio de empreendedor, a ponto de se suspeitar sobre a existência de um espírito
empreendedor (PAIVA JUNIOR; ALMEIDA; GUERRA, 2008; FILARDI; BARROS;
FISCHMANN, 2014) como se fosse uma atualização da tese weberiana do capitalismo
para nosso tempo.
Atualmente, estima-se que haja 48 milhões de empreendedores brasileiros (cf.
GEM, 2017) cuja atuação se dá num cenário de precária estrutura produtiva, de baixo
nível de escolaridade, de baixo nível de pesquisa e de tecnologia, e, por fim, de alta
competitividade. O corolário desse cenário é que a maior parte das pequenas empresas
não ultrapassa o segundo ano de atividade (SEBRAE, 2017) - e quando conseguem se
desenvolver, são pressionadas por condições de atuação severas ao mesmo tempo em
que são fortemente influenciadas pela ideologia do empreendedor como o indivíduo que
supera as dificuldades, que é motivado, que é resiliente e que se perseverar chegará ao
sucesso, isto é, que com esforço e preparação será um grande capitalista (DORNELAS,
2008; HISRICH, PETERS, SHEPHERD, 2014).
Não estamos afirmando que um ou outro negócio não consiga crescer e tornar-se
um grande negócio, ou seja, que um trabalhador possa vir a ser um capitalista, possível
é - pois é basilar manter o encanto – contudo, o que a realidade assoma é que tais casos

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são raros, sendo fruto, muito mais de uma série de venturas do que necessariamente,
uma estrada comum. Não por acaso, no Brasil, a maior parte dos negócios são micros e
pequenos, o que faz com que a área da pesquisa de empreendedorismo esteja
intrinsecamente relacionada com os micros e pequenos empreendedores (MPE)
(FILLION, 1999; BARROS; PEREIRA, 2008; WADHWANI, 2010).
Diante desse contexto, nosso objetivo neste ensaio consiste em analisar a relação
entre os micros e pequenos empreendedores e o grande capital, seja por meio da
tecnologia, especialmente os apps para smartphones ou ainda por atuarem
massivamente na esfera da circulação (MARX, 2014).
A mediação da tecnologia tem profunda relação com o que tem sido nominado
Indústria 4.01 ou Quarta Revolução Industrial ou ainda Smart Factory (DREHER, 2016;
COSTA, 2017) assim, o smartphone foi aludido por nós como um ícone desse novo
estágio produtivo, por ser o canal que liga trabalhador-capitalista-consumidor. De
acordo com Schwab (2016) as principais alterações provenientes dessa nova Revolução
Industrial consistem na alteração das expectativas dos clientes; produtos mais
inteligentes e produtivos; novas formas de colaboração e parcerias; uma transformação
do modelo operacional e conversão em modelo digital. Seus pilares são, assim, a
Internet das coisas e serviços (IoT e IoS) e o Big Data (COSTA, 2017). Esse futuro
“inteligente” se anuncia em contradição com a condições de vida e trabalho dos que só
tem a força de trabalho para vender. O processo de valorização do valor encontra seus
obstáculos diante das próprias contradições, e na luta diária contra si mesmo e para si
mesmo o capital se metamorfoseia para continuar vivo e devorando todo o trabalho que
conseguir (MARX, 2013). De maneira, ainda que a compreensão das coisas do mundo
seja post festum, aparentemente a Indústria 4.02 tem modificado e pretende continuar
transformando as relações capitalistas, sem mudar, obviamente, suas bases estruturais:
exploração do trabalhador livre pelos capitalistas e mediação do Estado.
Acerca da circulação, ao seu turno, destacamos que 69% dos micros e pequenos
negócios se destinam a "serviços orientados para o consumidor" (GEM, 2017), o que
nos leva a inquirir o papel do empreendedorismo na aceleração da rotação do capital por
meio da realização do valor executado pelos micros e pequenos negócios; as
possibilidades de extração de mais-valor sem a necessidade de adiantar capital em
decorrência da fragilização das relações capital-trabalho mediadas pelo Estado seja por
meio da terceirização, do teletrabalho, do trabalho temporário ou ainda diretamente
entre grande capital e trabalhador no que tem sido chamado de uberização do trabalho
(FRANCO, FERRAZ, 2017), mediado por dispositivos tecnológicos (especialmente
com os smartphones).
Desconfiamos que a questão possa ser um pouco mais complexa que categorizar
o grupo dos empreendedores como "pequena burguesia" ou "classe média", e embora tal
grupo não se configure numa classe em si – visto que, assim como demais classes
proletárias vivem da própria força de trabalho –, devem ser analisadas em sua
particularidade dentro do capitalismo dependente brasileiro, visto que também exploram
força de trabalho, por outro lado, seu (pequeno) capital da mesma forma é incorporado

1
Não teremos espaço para discutir neste trabalho, restando-nos apenas pontuar que é uma mediação
importante para compreender a complexidade da relação capital-trabalho no mundo hoje.
2
O termo foi cunhado na Alemanha e se refere "a visão do que será uma fábrica no futuro" ou Smart
Factory que "é uma fábrica que faz produtos inteligentes, em equipamentos inteligentes, em cadeias de
abastecimento inteligentes" cf. Costa (2017, p. 7).

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na dinâmica de valorização de valor, seja pela produção ou na composição de capital


(ampliado).
Neste ensaio nos valemos da crítica da economia política marxiana e primamos
pelo ser do objeto, em sua materialidade e historicidade, esperando, dessa maneira,
avançar na compreensão do papel de uma importante franja da classe trabalhadora que
ora encontra-se do lado errado da trincheira, se distanciando, portanto, de um horizonte
emancipatório. Analisamos relatórios elaborados pelo Global Entrepreneurship
Management, doravante GEM, pelo SEBRAE e pelo IBGE em busca de dados que
pudessem contribuir com a reprodução ideal do movimento do real do fenômeno.
Quanto à exposição, este trabalho está organizado da seguinte maneira, após esta
introdução apresentamos uma breve exposição da produção científica sobre o
empreendedorismo, visando apontar que o fato de importar a explicação dificulta a
percepção da conjuntura no Brasil. Na sequência, expomos a investigação de algumas
mediações que explicam o empreendedorismo por oportunidade e por necessidade, bem
como a justificativa desenvolvimentista para o empreendedorismo. No quarto e último
tópico apresentamos as considerações finais.

EMPREENDEDORISMO MADE IN USA NA PRODUÇÃO CIENTÍFICA


BRASILEIRA

Enquanto objeto de pesquisa, o empreendedorismo, no Brasil, data o início de


1990 (DORNELAS, 2008; ZEN; FRACASSO, 2008; BACELAR; TEIXEIRA, 2016;) e
tem ocupado progressivamente mais espaços em eventos da área da Administração,
tendo, inclusive, um evento especialmente voltado para os micros e pequenos negócios,
o EGEPE (Encontro de Estudos sobre Empreendedorismo e Gestão de Pequenas
Empresas), uma revista própria a REGEPE – Qualis B1 -, além de ser um tema que
atravessa diversas áreas temáticas do EnANPAD (Encontro da Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Administração). Apenas para pontuar a magnitude, os
estudos bibliométricos da área indicam que 871 artigos científicos foram publicados
entre 2008 e 2014, 51% deles em periódicos cujos Qualis Capes3 variam entre B2, B1 e
A2 (BACELAR; TEIXEIRA, 2016). Um número robusto diante de outras áreas de
investigação dentro da Administração.
Fortemente influenciada pela literatura estadunidense, a produção nacional
reproduz seus conceitos como se fosse possível explicar a colônia e o império da mesma
maneira, sendo esse um dos pontos que tornam a pesquisa nacional frágil. Ao
compararmos os estudos estrangeiros (FERREIRA; PINTO; MIRANDA, 2015) e os
estudos brasileiros (BACELAR; TEIXEIRA, 2016) podemos inferir que as temáticas
convergem e também os autores referenciados, como Schumpeter, Shane e
Ventrakaram, Potter e Fillion, por exemplo. Há, contudo, uma diferença importante
entre o entrepreneurship e empreendedorismo (para além da semântica). Enquanto os
estudos do exterior combinam esforços para mapear a gestão das firmas (o que equivale,
na literatura da Administração, ao ambiente interno) alinhados com competição,
economia, mercado (isto é, ambiente externo), no Brasil, o foco se dá, em maior

3
"o Sistema Qualis foi instituído com o propósito de avaliar a produção científica dos programas de pós-
graduação stricto sensu, utiliza escalas de pontos para avaliar conjuntamente diferentes critérios, tais
como: normalização, regularidade, projeto gráfico, circulação, visibilidade, origem institucional e
geográfica dos autores, gestão editorial, além da quantidade, proporção e qualidade percebida dos artigos
publicados." (BACELAR; TEIXEIRA, 2016, p. 9).

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medida, na gestão do negócio e no comportamento desses sujeitos “empreendedores”


(FERREIRA et al, 2011; FERREIRA; PINTO; MIRANDA, 2015; BACELAR;
TEIXEIRA, 2016). Assim, os conceitos são importados, mas apenas parcialmente, e,
ainda assim, os argumentos que legitimam o empreendedorismo tanto como política
pública, quanto como objeto de investigação científica são os mesmos: combate ao
desemprego (AUTIO; FU, 2014; VALE, 2014; GONDIM; ROSA; PIMENTA, 2017) e
crescimento econômico (BARROS; PEREIRA, 2008; ZEN; FRACASSO, 2008;
SOUZA; LOPEZ JUNIOR, 2011; ISLA, 2015; ALMEIDA; VALADARES;
SEDIYAMA, 2017).
A tese que sustentamos neste ensaio é a de que os micros e pequenos
empreendedores no Brasil cumprem um papel importante no atual estágio das forças
produtivas do capitalismo dependente brasileiro, atuando como mediação para a
ampliação da valorização do valor do grande capital. Contudo, tal atividade não se
resume ao que tem sido propagado pelos ideólogos do capital, de que seria o
empreendedor o agente econômico por excelência ao ser o impulsionador da inovação, e
embora haja nuances que possibilitam a distinção entre os empreendedores por
oportunidade e o empreendedores por necessidade (GEM, 2017), ambos, grosso modo,
são corolário do movimento do capital e não força motriz. Sustentamos que, no segundo
caso, embora a aparência do fenômeno se relacione de maneira menos mediada, a
ideologia do empreendedorismo é um obstáculo de relevo para a consciência de classe,
para além da (importante questão) precarização do trabalho, conforme Jesus (2016)
apontou. No primeiro caso, por sua vez, a complexidade da relação exige maior exame
visto sua possível participação na (re)produção do valor.
Mas há ainda outro argumento bastante difundido pelos pesquisadores
brasileiros, a do empreendedor inovador de Schumpeter (ZEN; FRACASSO, 2008;
BRASIL; NOGUEIRA; FORTE, 2011; COSTA; BARROS; CARVALHO, 2011;
SANTOS-SILVA; MARTINS; CARVALHO NETO, 2014; FERREIRA; REIS;
PINTO, 2017), que insistem na teoria do economista austríaco de uma "destruição
criativa", como podemos observar a partir da afirmação de Barros e Pereira (2008, p.
977) (baseados no pesquisador americano Michael Porter)
A contribuição do empreendedor ao desenvolvimento econômico ocorre
fundamentalmente pela inovação que introduz e pela concorrência no
mercado. A inovação de produtos e de processos de produção está no coração
da competitividade de um país, conforme destacou Porter (1992).

Tem sido aceita a hipótese que o trabalho de Schumpeter exerceu grande


influência para o contexto americano, mas serviria para explicar o Brasil? A atividade
empreendedora pode determinar e ser determinada pelo desenvolvimento econômico de
maneiras opostas em países ricos (oportunidade, inovação) e países pobres (combate ao
desemprego), então, como poderia a inovação ter um comportamento idêntico em
contextos socioeconômicos tão distintos? Embora Schumpeter seja um dos autores mais
citados no Brasil – como foi apontado nas revisões bibliométricas (Cf. Ferreira; Pinto e
Miranda, 2015 e Bacelar e Teixeira, 2016) – os pesquisadores não explicam como essa
relação (empreendedorismo – desenvolvimento econômico – inovação) efetivamente
funciona, seus nós e limites, aparentemente, tal lacuna sugere que haja uma distância
entre o que dizem os ideólogos do empreendedorismo e as condições materiais em que
os empreendedores, em suas tipologias, efetivamente atuam.
A negligência ao postulado schumpeteriano chega a tal situação a ponto de
desconsiderar (ignorar?) que na sua obra tardia, Schumpeter (1946) acredita na

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obsolescência do empreendedor, momento em que a inovação trocaria de lócus. É o


professor de Development Economics and Entrepreneurship da Maastricht School of
Management, Win Naudé (2011), quem demonstra e sustenta que o postulado
schumpeteriano pouco influenciou os estudos sobre o desenvolvimento econômico pós
Segunda Guerra Mundial, não obstante, dado o afastamento contínuo entre estudos cujo
enfoque era o empreendedor individual e os aspectos econômicos e sociais do negócio
(WADHWANI, 2010), o empreendedor inovador permaneceu sendo utilizado de forma
particularizada, sem considerar o contexto, ou seja, continuou sendo reproduzida nas
pesquisas do empreendedorismo, porém em parte, tão somente aquela que interessava
para a massificação da ideologia empreendedora.
O que o ocorreu é que foram retirados excertos dos principais trabalhos de
Schumpeter a despeito da realização de uma investigação concreta, tomando-se, dessa
maneira, definições descontextualizadas para avalizar a inovação como uma categoria
abstrata e independente do cenário de reprodução das forças produtivas, sendo os
conceitos mais recorrentes, pelo que pudemos apurar nos diversos trabalhos
investigados, a destruição criativa e o empreendedor como motor do desenvolvimento
econômico, que como as lacunas na produção científica nacional demonstram, não se
sustentam.

MICROS E PEQUENOS NEGÓCIOS PARA ALÉM DA NECESSIDADE E DA


OPORTUNIDADE

Desde a década de 1990 vem sendo ampliada a ideia de um espírito


empreendedor no Brasil, cuja intenção seria propagar a atitude empreendedora como
algo virtuoso e necessário. Nas mídias de negócio fala-se de um capitalismo
empreendedor; a ascensão econômica no livre mercado e o herói global, conforme
apontam Costa, Barros e Martins (2012) enquanto na academia justifica-se o
empreendedorismo como sendo o motor do desenvolvimento econômico
(FONTENELE, 2010; NAUDÉ, 2011; SARFATI, 2013).
A ideia da produção de um espírito empreendedor não está apartada do real,
contudo também não representa a essência da relação capital-trabalho desses indivíduos,
o espírito empreendedor apenas “maquia” o capitalismo de hoje, afinal, como Marx
(2008) e Mészáros (2016) nos explicam, a ideologia não se restringe a uma mentira ou
falsa consciência, tendo pois uma raiz material que possibilita que seja operada como
um meio para acessar as contradições, conhecer sua natureza e transformá-la. De
maneira que se faz importante compreender materialmente como o empreendedorismo
efetivamente participa do sistema produtivo.
Situando o debate que sustenta a necessidade de um crescimento e
desenvolvimento da economia, a série histórica do crescimento do PIB brasileiro que no
período de 1950-1980, marcou uma taxa média de crescimento de 7,4% a.a., estagnou
em 2,5% a.a., em média, entre 1980-2015. Após uma leve elevação de 4,44% a.a. entre
2004 a 2011, vem apresentando um recuo que soma em média -0,96% nos últimos 6
anos no PIB nacional. Para Prado (2017), embora a produção tenha aumentado, o baixo
crescimento da produtividade das empresas brasileiras (economia dependente,
capitalismo tardio), atrelada a uma breve recuperação do poder de compra da classe
trabalhadora (decorrente da política de salário mínimo indexadas à inflação)
convergiram para as transformações da relação capital-trabalho cujas reformas estão nos
últimos estágios. Ao mesmo tempo, o que tem sido difundido é que os micros e

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pequenos empreendedores têm uma grande contribuição para o PIB (SEBRAE, 2015),
que deveriam, portanto, ser estimuladas.
Marx (2013, 2014, 2017) expõe de maneira totalizante como a valorização do
valor é tanto uma relação social quanto um processo de produção da vida, que não se
limita à esfera da produção - embora tenha nela seu momento preponderante -, sendo
um todo unitário de produção, distribuição, circulação e consumo (MARX, 2011). Ora,
a Indústria 4.0 prevê novas formas de relacionar esses quatro momentos utilizando para
isso a tecnologia digital como meio de produção robusto, ou seja, encontrar caminhos
para ampliar a extração mais-valor, seja reduzindo o capital adiantado, acelerando o
ciclo produtivo ou a circulação, descobrindo novas formas de valores de uso, contudo,
no centro de todo esse movimento está a uberização do trabalho, que marca o novo
estágio da valorização do valor.
Nesse contexto, é importante que analisemos a continuidade (relação capitalista)
sem perder de vista as descontinuidades (Indústria 4.0) e é necessário, igualmente,
investigar a particularidade do capitalismo dependente brasileiro em relação ao cenário
internacional, especialmente os chamados “países centrais” que detém a posse desses
conhecimentos objetivados. Entretanto, o que se vê, como sinalizado no item anterior, é
que pesquisadores brasileiros importam os conceitos gestados nos “países centrais”
como se nos países dependentes a reprodução da vida ocorresse da mesma maneira.
À guisa de exemplo, um dos principais manuais de empreendedorismo utilizados
no ensino do empreendedorismo no Brasil provém de uma tradução dos estadunidenses
Hisrich, Peters e Shepherd (2014), como costuma ocorrer nestes casos, o modelo
estadunidense é adotado como se explicasse todo o continente, especificamente o
empreendedorismo brasileiro. Neste livro, os autores classificam em três os tipos de
iniciativas empreendedoras: 1) estilo de vida – equivalente aos nossos micro e pequenos
negócios; 2) empresa de fundação – equivalente aos nossos médios negócios e que
possuem alguma inovação; 3) alto potencial – as startups, são empresas de crescimento
rápido. Notemos que os autores adicionam mais uma tipologia além da classificação
amplamente aceita do GEM (2017) – oportunidade e necessidade –, façamos, além
disso, duas observações que podem passar despercebidas: i) grandes negócios (o grande
capital) não entra na classificação e ii) os pesquisadores americanos destacam o papel
das empresas de alto potencial, cujo quantitativo e o debate é insipiente no Brasil.
O empreendedorismo brasileiro se relaciona, em maior medida, como uma
opção, muitas vezes a única, para que um enorme contingente de trabalhadores possa se
sustentar e por outro lado, ameniza os embates no qual a mediação do Estado, sob a
justificativa de combate aos índices de desempregos, incentiva o empreendedorismo e
faz parecer que a produção econômica está sob controle. Se nos “países centrais” o
empreendedorismo se apresentou desde a implantação da política neoliberal como uma
possibilidade de baratear a inovação e um meio efeito de combater o desemprego
estrutural (WADHWANI, 2010), no Brasil, mesmo a segunda opção é operada em
circunstâncias perniciosas, o que se convencionou chamar de empreendedorismo
engloba basicamente dois diferentes contextos - um nos “países centrais” e outro nos
países de capitalismo dependente e periféricos - , não seria imprudente afirmar, no
entanto, que as "gradações de empreendedorismos" seriam ainda maiores.
No Brasil, estima-se que 21% da população adulta, 22 milhões de pessoas,
seriam "Trabalhadores por conta própria" (PNAD/IBGE, 2017), um número em
tendência de alta frente às contrarreformas em andamento. Vide tabela 1. Chama
atenção os 10 milhões de empregados sem registro (sem a chancela do Estado) e os 4

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milhões de “empregadores”, pois, esses três tipos (conta-própria, empregados sem


registro, empregadores) de ocupações da força de trabalho estão relacionados com o
empreendedorismo, e perfazem 35% do total.

Tabela 1: Força de trabalho, no Brasil, no 1o trimestre de 2017

Fonte: SEBRAE (2017, p. 19 apud PNAD Contínua IBGE)


Vamos dividir, para fins didáticos, os empreendedores em dois grandes grupos:
os conta-própria (pois não tem empregados) e que equivalem ao empreendedor por
necessidade do GEM (2017) e os empreendedores por oportunidade, que na nossa
análise, seriam aqueles que teriam empregados - sejam eles formalizados ou não.
Segundo o GEM (2017), no Brasil, apenas no ano de 2002 havia mais empreendedor
por necessidade que por oportunidade, um quadro que se inverteu e se manteve em
ascensão desde então, sendo achatado apenas recentemente - após a crise de 2008 -,
quando em 2015 a proporção fica mais equilibrada. Contudo, sumariamente, conforme
ressaltam Barros e Melo (2008), metade dos empreendedores brasileiros seriam por
oportunidade e metade por necessidade.
A motivação para empreender (para além da necessidade de subsistir a própria
existência) também é investigada pelo GEM (2017), que sem qualquer modéstia
apresenta “os sonhos da população brasileira entre 18 e 64 anos”, divididos entre
aqueles que já empreendem e aqueles que desejam fazê-lo. Foi possível que os
entrevistados apontassem mais de um “sonho”, um fato auspicioso, visto que dada suas
condições materiais, talvez, o “espírito empreendedor” se quer aparecesse, como pode
ser visto na Tabela 2.
Uma análise preliminar nos permite induzir que quase metade dos respondentes
não possui propriedades tidas como elementares para a classe média nacional, como
imóvel (47%) e veículo (38%), por exemplo, e se 34% acreditam que ter o próprio
negócio será um meio possível para a realização de tais sonhos, 29% não tem ensino
superior, delineando, ainda que superficialmente, o perfil da população empreendedora
brasileira. Basta mencionar que o sonho de 8% desses indivíduos é adquirir um
computador ou tablet ou smartphone, tamanha a limitação do poder de compra.

Tabela 2: Os sonhos da população brasileira entre 18 e 64 anos (em %)

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Fonte: GEM (2017, p. 84).


Partiremos das duas franjas de empreendedores, oportunidade e necessidade,
para analisá-las mais detidamente.

O conta-própria ou empreendedor por necessidade


De acordo com o GEM (2017, p. 6), os empreendedores por necessidade, são
aqueles que "teriam afirmado ter iniciado o negócio por não possuírem outra opção de
trabalho e renda". São os trabalhadores tratados nos relatórios governamentais e na
academia pelo nome de conta-própria, que para o IBGE (2018, s/p) é a “pessoa que
trabalhava explorando o seu próprio empreendimento, sozinha ou com sócio, sem ter
empregado e contando, ou não, com a ajuda de trabalhador não-remunerado”.
Boa parte dos "conta-própria" - apontados na Tabela 1 - não estão registrados
como pessoa jurídica, mesmo com ostensiva política do Microempreendedor Individual
(MEI), que visa a "inclusão" dos trabalhadores informais no contrato jurídico estatal,
mas que não haverá espaço neste breve ensaio para aprofundar. Nos resta apenas
pontuar que sua ação material consistiu, em maior medida, na legalização da
precarização do trabalho, sem a devida contrapartida do fundo público.
Em uma investigação com e sobre os trabalhadores conta-própria de São Paulo,
os famosos ambulantes da 25 de março, Jesus (2016, p. 12) percebeu que
esta nova tentativa do capital em reconceituar o trabalho informal e
“disponibilizar” aos trabalhadores maior liberdade e possibilidade de
propriedade, perspectivas permeadas pelo discurso do sucesso sob o
comportamento empreendedor, conduz a contradições complexas na
composição e no conteúdo do trabalho informal, ao criar mecanismos
políticos e econômicos (...) ao operar na desconstrução do sujeito que
trabalha e na criação dos indivíduos que empreendem, sem colocar em pauta
o contexto capitalista que exige novo comportamento e um novo
gerenciamento da força de trabalho, mas com o objetivo único de gerar mais-
valia e manter seguro o circuito de realização das mercadorias.

Historicamente, no Brasil, a informalidade nos postos de trabalho esteve sempre


pareada com os postos formais, isso ocorre desde o processo de industrialização
nacional iniciado nos anos 1930 e consiste mais numa maneira de rebaixar o preço da
força de trabalho abaixo do seu valor que uma política de criação de empregos
(OLIVEIRA, 2013), ou seja, a via Colonial (CHASIN, 2000; PAÇO-CUNHA;
REZENDE, 2018) em seu corolário, também teria sua parcela de culpa do que
hodiernamente se conhece por empreendedorismo. O grande número de desempregados
no país não possibilita muitas alternativas para este estrato da população que se vê
impelida a “empreender”. Um fato constatado por Barros e Pereira (2008) e ratificado

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por Nogami e Machado (2011), a partir de um estudo empírico, foi que nos municípios
onde há maior proporção de trabalhadores conta-própria, o índice de desemprego é
menor, mas que este tipo de empreendedorismo, quando comparado ao crescimento do
PIB no local, revela um impacto negativo. Por isso, eles alertam
Em primeiro lugar, o conjunto destes trabalhadores é muito heterogêneo tanto
na natureza das atividades que exercem, quanto na motivação para
empreender. Profissionais liberais misturam-se aos camelôs e artesãos;
empreendedores inovadores (schumpeterianos) a proprietários-gerentes.
Outra limitação é a medição do conjunto de negócios existentes e não do
fluxo de novos negócios. Apesar das limitações, o conceito de empreendedor
equivalente a trabalhador por conta-própria continua sendo muito utilizado na
investigação científica. (BARROS; PEREIRA, 2008, p. 981)

No que se refere ao combate ao desemprego, o que as pesquisas empíricas


conseguiram demonstrar (BARROS; PEREIRA, 2008; NOGAMI; MACHADO, 2011;
NAUDÉ, 2011; SOUZA; LOPEZ JR., 2011) foi que em países com IDH baixo, as taxas
de empreendedorismo são maiores, o que faz com que de modo geral, o
empreendedorismo combata o índice de desemprego, contudo, não há evidências de que
contribua com o crescimento econômico (BARROS; PEREIRA, 2008; NAUDÉ, 2011).
Mesmo assim, eles reforçam que as políticas públicas de fomento a esses sujeitos
deveriam ser mantidas, o que é esperado, pois elas cumprem um papel a serviço da
reprodução do capital e contra o trabalhador.
Essa relação entre desemprego e empreendedorismo não consiste em uma
novidade, o fato novo que estamos buscando ressaltar é que esse estímulo do
empreendedorismo e todo o seu arsenal ideológico não apenas precariza as condições de
trabalho e vida desses indivíduos, mas também cumpre um papel na conformação da
classe trabalhadora (JESUS, 2016) que entende que a culpa pelo desemprego é sua
(FERRAZ, 2016), e, sobretudo, é sua a responsabilidade por ter uma vida melhor, o que
contribui com a formação de uma subjetividade individualista, que isenta e rechaça o
Estado - isenta quando o exime da responsabilidade pela empregabilidade, visto que,
como já sinalizado, o índice de empreendedorismo pode ser inversamente proporcional
ao do desemprego, ainda que isso não signifique melhores condições de vida aos
indivíduos, e rechaça quando aponta que é o Estado que impede o crescimento dos
empreendimentos, devido à quantidade de impostos requeridos. Vemos que se vê nos
grandes empresários a ética destes tempos, ratificando o que Marx e Engels (2007)
explanaram, que as ideias da classe dominante são ideias da sociabilidade vigente.
Ademais, além da superexploração e da conformação diante da luta de classes, o
empreendedorismo por necessidade (ou conta-própria) atua na manutenção dos baixos
salários praticados no Brasil, conforme o movimento do exército de reserva explanados
por Marx (2013) ao explicar a Inglaterra do século XIX e também por Ferraz (2013;
2015) ao demonstrar que a lógica imanente do capital atua na particularidade brasileira
mantendo intactas as bases da valorização do valor e avançando sobre a exploração da
força de trabalho.
E se o mercado de trabalho formal do Brasil pode ser caracterizado por
atividades de baixa complexidade, cujo rendimento médio real, segundo o IBGE (2018),
não ultrapassa 3 salários mínimos - sendo importante ressaltar que o maior quantitativo
destes postos são oferecidos pelas Micro e Pequenas Empresas, que são responsáveis
por 27% do PIB no Brasil e 52% dos trabalhos com carteira assinada (SEBRAE, 2015),
ou seja, o quantitativo desses postos de trabalho é considerável -, não é difícil supor que
o cenário para a atividade informal é ainda mais penosa.

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Nessa rota, fica latente um dos papéis que o Estado cumpre na luta de classe,
pois um dos critérios para categorizar “formal ou informal” é o registro na carteira de
trabalho, que faz com que a atividade seja regida pela Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT), cuja proposição consiste em garantir proteção ao trabalhador, que seria
o lado “mais fraco”4 do contrato social mais emblemático do capitalismo: relação
capital-trabalho. Neste sentido, com o aumento do trabalho informal, o que podemos
observar é a crescente fragilidade das já limitadas garantias trabalhistas, o que empurra
os salários de médio para baixo, mas, contudo, retira a mediação do Estado, o que
poderia ser uma possibilidade de percepção da condição de exploração, se, por outro
lado, a extração do mais-valor não estivesse tão sofisticada como no caso dos motoristas
do Uber, por exemplo (além de diversos outros) que por não terem uma relação de
trabalho clássica (patrão, folha de ponto, colegas, etc.) desenvolve uma reprodução da
força de trabalho relativamente apartada da produção geral do mais-valor extraído pelo
capitalista.
Formal ou informal, assim, corresponde à forma como o contrato entre
capitalista e trabalhador é estabelecido, se a compra e a venda da força de trabalho
possuem um registro com fins legais para atender as normas jurídicas do país ele é
formal, se não, ele é informal. Não obstante, nem todo instrumento jurídico que medeia
a compra e a venda da força de trabalho garante acesso a todos os direitos trabalhistas.
Assim, na medida em que a informalidade é ensejada, a relação de troca mercantil da
força de trabalho permanece, contudo, o acesso aos direitos é diferente, assim, de um
modo geral, há perda de direitos de um grupo em relação ao outro, e neste caso
consolida-se a precarização das relações trabalhistas.
O entendimento dos limites da "formalidade" da venda da força de trabalho é
relevante na medida em que se apresenta por um lado, como uma necessidade
contingente da classe trabalhadora, em busca de melhores condições para reproduzir a
própria existência, bem como reduzir o mais-trabalho. Por outro lado, o direito (do
trabalho, inclusive) é forma ideológica de manutenção do modo de produção capitalista
(MASCARO, 2016; SARTORI, 2016) e como Marx (2010) argumenta, um aumento
geral de salário não seria útil aos trabalhadores [tomando a emancipação humana por
horizonte] e mesmo a atuação sindical é prejudicial, na medida em que a luta é por
conseguir meios mais amenos de exploração, e não por emancipação. Formal e
informal, portanto, se relaciona com condições de reprodução da existência e com a
organização e luta da classe trabalhadora.

O empreendedor por oportunidade

De acordo com o GEM (2017, p. 6), os empreendedores por oportunidade são


"aqueles que afirmaram ter iniciado o negócio, principalmente motivados pela
percepção de uma oportunidade no ambiente". Esses empreendedores, diferente dos
discutidos no tópico anterior, geralmente possuem trabalhadores – formalizados ou não
– embora os próprios empresários também atuem em seus negócios.

4
Ao classificar a classe trabalhadora como o lado mais fraco, que precisa da proteção do Estado, a
burocracia estatal cumpre seu papel de conformação na luta de classe, servindo como “juiz de paz”,
aquele que produz o valor – o trabalhador – vê-se impotente diante das leis, da ordem, da necessidade de
reprodução da própria existência, semelhante a situação apontada por Marx (2012) na França de Luís
Bonaparte.

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Dados do GEM (2017) apontam que nos empreendimentos em estágio


nascente, 1% atua apenas como pessoa jurídica (PJ) e 32% duplamente, como pessoa
física (PF) e PJ ao mesmo tempo, provavelmente a atuação sem registro é uma forma de
facilitar a evasão fiscal. Já os empreendedores estabelecidos buscam com o tempo
"formalizar" a atuação (provavelmente para buscar financiamento), 4,2% atuam
exclusivamente por meio da PJ, 22,6% alternando PF e PJ, mesmo assim, ainda são
73,2% atuando na "informalidade", isto é, como pessoa física.
No total, 6.700.828 empresas estão registradas no RAIS (Relação Anual de
Informações Sociais), 99% delas (6.634.119) cadastradas como micros e pequenas
empresas. Os critérios de classificação são os seguintes: MPE - até 49 empregados se o
ramo de atuação for comércio ou serviço e até 99 se for indústria ou construção; médias
empresas - entre 50 a 99 empregados, se comércio ou serviço, e de 100 a 499
empregados na indústria e construção. As grandes empresas, ao seu turno, são aquelas
com mais de 100 empregados no comércio ou serviço e se for indústria ou construção,
mais de 500 empregados. Ou seja, 99% das empresas, no Brasil, têm até 49
funcionários. A maior parte desses negócios está no setor de comércio (48,5%) e
serviços5 (38,3%), i.e., na esfera da circulação; quanto à força de trabalho que atua nas
MPE, 42,9% está no comércio; 32% em serviços e apenas 25,2% na indústria. E o
documento do SEBRAE (2015, p. 33) conclui que
Embora o capitalismo moderno se caracterize por forte tendência à
concentração em grandes empresas, o lugar de micro e pequenas empresas
está garantido em atividades como Serviços e Comércio, em que economias
de escala não sejam tão relevantes como ocorre nas atividades Industriais.
Para isso, as ações do SEBRAE se fazem cada vez mais necessárias.

A tendência à concentração (e a acumulação) relatada é imanente ao modo de


produção capitalista e não característica do estágio atual das forças produtivas, não
obstante, a menção ao "lugar garantido" das MPE que merece destaque, pois ao que nos
parece, se fossem atividades com potencial lucrativo estaria com o grande capital,
portanto, ao tomarmos por horizonte a totalidade do processo de valorização do valor, -
produção, circulação, distribuição e consumo - é possível perceber que os MPE estão
cumprindo uma tarefa no ciclo do capital.
Ora, no comércio, quem vende, vende um bem que foi produzido (certamente
por alguma grande indústria); no assim chamado "serviços", a atuação contribui para a
barateamento do preço da força de trabalho e também no consumo de produtos
produzidos pelas grandes, pensemos, por exemplo, num salão de beleza de um bairro
periférico especializado em cabelos crespos, a empreendedora foi demitida do salão
SPA Hair Studio da zona sul da cidade, investiu o FGTS nos equipamentos, contratou
cabeleireiras e manicures sem formalizar o contrato e que são remuneradas por
produção (seria financeiramente inviável assinar as carteiras de trabalhos), os produtos
utilizados são de uma poderosa indústria farmacêutica "engajada na luta contra o
preconceito", ou melhor, interessada em novos clientes.
Tentando muito brevemente sintetizar o fenômeno em sua complexidade: ao
considerar o movimento do capital que prescinde do capital adiantado para valorização
do valor (D-M-D’), tais empreendimentos encontram-se limitados na competição tanto
5
Serviços: "atividades de transportes, serviços auxiliares aos transportes e correios, serviços prestados
principalmente às famílias, serviços de informação e comunicação, atividades imobiliárias, serviços
profissionais, administrativos e complementares, serviços de manutenção e reparação, e outras atividades
de serviços" (SEBRAE, 2015, p. 8).

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por não dispor de capital suficiente para mobilizar a reprodução (ou por atuarem na
esfera circulação), como pela composição orgânica do seu (pequeno) capital, que se
destina ao pagamento do capital variável, embora a massa de extração de mais-trabalho
seja inferior aos níveis praticados pelos setores produtivos. Não sendo possível,
portanto, acumular mediante o ciclo do capital, pois não basta produzir, é preciso
reproduzir o capital para que a acumulação aconteça. Observemos no gráfico 1 que as
microempresas apresentam um índice de mortalidade substancialmente superior às dos
outros portes.

Gráfico 1: Taxa de mortalidade de empresas de anos por porte

Fonte: Sebrae (2016, p. 16).

Alguém pode questionar porque as MEI tem mortalidade inferior aos pequenos e
a causa principal, ao tomarmos o modo de produção capitalista, é que por trás do CNPJ
do MEI há um trabalhador desempregado ou informal que não tem outra alternativa
para subsistir é o caso do empreendedor por necessidade supra-abordado, isto é, não se
configura numa relação de D-M-D', trata-se, pois, da realização de alguma atividade de
baixa complexidade6 cujo rendimento vem do valor produzido pelo próprio trabalho e
vendido para outros trabalhadores; assim, quando encerram as atividades é porque não
conseguem sequer continuar desempenhando o trabalho que vinham fazendo. Nas
médias e grandes a perspectiva é outra, pois há capital investido, mas isso é outro
assunto. Marx, desde os Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, havia atinado
para a concorrência de forças desproporcionais entre pequenos e grandes que faz do
primeiro o equivalente a um trabalhador. Para ele
O pequeno capitalista, tem, portanto, a escolha: 1) ou consumir totalmente
(aufessen) o seu capital, posto que ele não pode mais viver dos juros;
portanto, deixar de ser capitalista; ou 2) montar ele próprio um negócio,
vender mais barato sua mercadoria e comprar mais caro do que o capitalista
mais rico e pagar um salário elevado; portanto, arruinar-se, dado que o preço
de mercado, mediante a pressuposta elevada concorrência, já está baixo
demais. Se, ao contrário, o grande capitalista quer derrubar o pequeno, tem
perante este último todas as vantagens que o capitalista, como capitalista, tem
perante o trabalhador. Os ganhos menores lhe são compensados através da

6
As 10 atividades com maiores registros no MEI são: Comércio de vestuário e acessórios; barbeiro,
cabeleireiro, manicure/pedicure; pedreiro; cozinheiro (marmitaria, salgados, doceria); lanchonete;
depilador, esteticista, maquiador; promotor de eventos; eletricista; vendedor ambulante de produtos
alimentícios (churrasqueiro, pipoqueiro, sorveteiro); panfleteiro, promotor de vendas. Conforme Central
do MEI disponível em https://centraldomei.com/top-10-cnaes-mais-utilizados-pelo-microempreendedor-
individual-mei/ Acesso em 21 jun. 2018.

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maior quantidade do seu capital7, e ele pode inclusive suportar prejuízos


momentâneos por um tempo, até que o pequeno capitalista esteja arruinado e
ele se veja livre dessa concorrência. Assim, ele acumula os ganhos do
pequeno capitalista. (MARX, 2004, p. 50).

Contudo, a explicação que os ideólogos do empreendedorismo fornecem para a


mortalidade desses negócios são outras. Segundo o GEM (2017, p. 89), as barreiras que
impedem essas empresas cresçam são: “políticas governamentais; apoio financeiro;
educação e capacitação; características da força de trabalho e normas culturais e
sociais”. Esses seriam os gigantes - numa analogia ao romance de Cervantes - pois é
aparência do confronto (que é real, por sua vez) entre os MPE e a reprodução da
existência deles na sociabilidade capitalista. Mas, e quem seriam os moinhos de vento?
Seriam os movimentos do capital personalizados nos capitalistas. Diante desse cenário,
de intensa concorrência com os grandes; o fato de ter pouco (ou nenhum) capital para
adiantar na forma de meios de produção, atrelada à baixa produtividade - que seria o
meio capaz de elevar a extração do mais-valor relativo - decorrente da precária inovação
existente no capitalismo dependente brasileiro, faz com que os pequenos negócios
sucumbam.
O maior vilão, segundo organizações como a Endeavor8, é o Estado, pois, "A
burocracia que o empreendedor vive todos os dias é um dos maiores obstáculos para o
crescimento no brasil", como aludem na campanha intitulada "Burocracia Para Tudo9".
Atribui-se, então, à burocracia estatal a culpa pelo "atraso" que a formalização faz ao
empreendedor e ao crescimento econômico, a despeito da existência de MPE (formais
ou não) e de não haver uma relação significativa entre este tipo de empreendedorismo e
o desenvolvimento econômico, pelo contrário.
Dentre os motivos combinados que culminam com a sobrevivência ou
mortalidade das empresas, são pontuados: a) situação antes da abertura, quanto à tipo de
ocupação do empresário, experiência no ramo, motivação para o negócio; b)
planejamento do negócio; gestão do negócio; c) capacitação dos donos em gestão
empresarial (SEBRAE, 2016). O que se vê aqui é que a literatura empreendedora atribui
ao próprio empreendedor a culpa pelo fracasso, tal como ocorre na produção acadêmica
nacional acerca da temática, que centra-se no nível do indivíduo e afasta a análise
ambiental, pois se assim o fizesse teria que apresentar que as condições para competir
no capitalismo dependente brasileiro não credenciam os indivíduos da classe
trabalhadora, sequer, a entrar na briga.
Em resumo, se a empresa não prosperar a culpa será, em primeiro lugar, do
Estado que tanto burocratiza a exploração quanto leva o lucro na forma de imposto, em
segundo lugar, do próprio empreendedor que não se preparou para a "batalha". Não
obstante, não conseguimos encontrar nenhum autor da temática que explique que a
concorrência entre grandes e pequenos é tão provável quanto ganhar em uma loteria.
Mencionamos anteriormente que o argumento de que o empreendedorismo seria
o motor do desenvolvimento econômico por meio da inovação também não se sustenta,

7
Em seus estudos mais desenvolvidos, em O Capital, especialmente no Livro II, Marx aponta que não a
vantagem do grande capitalista não é pela quantidade de capital, i.e., que não é uma questão de grandeza,
mas do ciclo de rotação que envolve tanto a produção quanto a circulação do valor.
8
“É uma organização global sem fins lucrativos com a missão de multiplicar o poder de transformação
dos empreendedores”. Seja lá o isso signifique.
9
Disponível em http://burocraciaparatudo.com.br/

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ademais, a maior parte da atividade produtiva desenvolvida pelos MPE brasileiros se


destina à atividades de baixa complexidade como alimentação, vestuários, comércio,
etc., que não possuem relação direta com inovação tecnológica. Dados do IBGE (2015
apud Sebrae, 2017, p. 15) demonstram que as chamadas empresas de alto crescimento10
representam apenas 0,7% das empresas ativas. O que vemos é que o indivíduo inovador
schumpeteriano não seria um habitante de terras brasileiras, em seu capitalismo
dependente.
Entretanto, ao mesmo tempo, esses micro e pequenos empreendedores não estão
isolados da Indústria 4.0, pois assim como ocorreu com o revolucionamento das forças
produtivas desde a consolidação da sociabilidade capitalista, nesta última não há algum
aspecto da (re)produção da relação capital-trabalho que não seja tocado. Tem sido
crescente o uso de tecnologia digital, principalmente por meio dos app dos smartphones
- que foram massificados no Brasil - pelos conta-própria e MPE, seja para comprar ou
mesmo para vender, pode ser o Whatsapp para negociar, ou usar o Uber para fazer
alguma entrega, ou receber o pagamento com uma maquininha de cartão de crédito sem
fio, quem sabe pagar o boleto do fornecedor pelo home banking, ou apenas passar
adiante o post ou a corrente com uma frase de efeito sobre a "resiliência do herói
empreendedor", tudo isso aparece como se fosse sem custo para o usuário, mas que
oculta o fato de os dados coletados estarem sendo enviados para algum lugar (BIG
DATA), que há um intermediário sem rosto (IoT) que está sendo comissionado sem
necessitar adiantar capital e que com o mercado da palma da mão, o ciclo de
metamorfose do capital pode ser acelerado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: GIGANTES OU MOINHOS DE VENTO?

Nosso objetivo neste ensaio consistiu em analisar a relação entre os micro e


pequenos empreendedores e o grande capital, seja pelo uso mediado pela tecnologia,
especialmente os apps para smartphones ou ainda por atuarem massivamente na esfera
da circulação. Concluímos, pois, que há uma relação de dependência entre grande e
pequeno capital, o primeiro se vale do segundo para realizar o valor e/ou rebaixar o
capital variável, contudo, a troca é desigual, visto que o pequeno, como em geral não
produz mais-valor, é apenas remunerado pela realização, terminando não conseguindo
acumular. Os conta-própria tiram os rendimentos do próprio trabalho enquanto os MPE
conseguem as taxas de lucro (que é diferente do mais-valor) por meio da exploração da
força de trabalho (maior parte dela informal) e o grande capital ganha em qualquer um
dos cenários, seja pelo rebaixamento do preço do capital variável, seja pela aceleração
do ciclo do capital, seja pelo reforço ideológico do "espírito empreendedor".
Todo esse processo se dá mediado pelo Estado, "juiz de paz" e senhor do formal
e informal. Porém não é o Estado (a formalização dos trabalhadores, os impostos, a
educação deficitária, etc.) a causa do fracasso dos MPE, é antes, o capital, por isso
dizemos que o que aparece como gigantes, são moinhos de vento. Onde os
empreendedores veem obstáculos para empreender, o que existe de fato é o movimento
do capital, em sua lógica destrutiva e alienante.
Agora, pois, começamos a perceber com mais nitidez as franjas de classe
representadas aqui pelo empreendedorismo, como explica Sarfati (2013, p. 27) "o
10
“Aquelas apresentam crescimento médio do pessoal ocupado assalariado de pelo menos 20% ao ano
por um período de três anos e tem 10 pessoas ou mais ocupadas assalariadas no ano inicial de
observação” (EUROSTAT-OECD..., 2007)

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trabalhador por conta própria ou o tradicional pequeno empresário (estilo de vida) não
pode ser confundido com o empreendedor de alto impacto”, pois, a grande diferença
estaria na capacidade que o segundo tem de contribuir com o crescimento econômico.
Contudo, fica a dúvida: crescimento econômico de quem? Desse capitalista individual
(0,7% das empresas nacionais) ou do país? Seria o primeiro, e mesmo que fosse
crescimento econômico nacional, não seria possível afirmar que representasse um ganho
no desenvolvimento econômico, especialmente pelo capitalismo dependente existente
no Brasil. Mas, e quem ganha com a produção dessas startups?
Considerando que as políticas públicas de fomento ao empreendedorismo no
Brasil, em geral, se direcionam aos micros e pequenos negócios; que parte expressiva
desses negócios estão às margens da legalização estatal mas que estas empresas geram o
maior quantitativo de postos de trabalho da força produtiva, embora não sejam,
necessariamente, os responsáveis pelo crescimento econômico, qual o papel efetivo dos
micros e pequenos empreendedores, considerando que eles por um lado, exploram
outros trabalhadores e por outro lado, precisam fazê-lo em condições de competição
global? Para além de todo imbróglio dessa complexa relação que envolve o pequeno
empreendedor, o Estado e o grande empresário, afirmamos que a concorrência entre os
capitalistas individuais obscurece o movimento geral do capital, o deus mercado se
mostra como justo: reconhecendo os melhores e punindo os despreparados, e nisso a
luta de classes é dissolvida pois aparentemente não há mais classes, todos seriam
capitalistas.
Por isso, assim como em Dom Quixote, a cegueira não o permitiu visualizar que
não eram gigantes, eram moinhos de vento. Os MPE ao tentarem enfrentar a
concorrência no mercado lutam com as armas (e a tática) errada, pois a cegueira - a
atitude empreendedora -, em sua peleja diária pela sobrevivência torna-se um obstáculo
para sua práxis emancipatória, até mesmo para realização de seus "sonhos", o que não
impede que a agressão ao herói seja real e violenta (fechamento das empresas, perda de
dinheiro, tempo de vida dedicado ao capital). Entretanto, se o nosso Quixote - os MPE -
soubesse que o inimigo é outro - o Capital, talvez a luta se desse de outra maneira...
como no conto, o amigo Sancho Pança tenta intervir, que façamos o mesmo.

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TOYOTISMO COMO IDEOLOGIA NA PARTICULARIDADE BRASILEIRA


(1980-2000)1

Leandro Theodoro Guedes


ltheodoroguedes@yahoo.com
Universidade Federal de Juiz de Fora

Elcemir Paço Cunha


paco.cunha@facc.ufjf.br
Universidade Federal de Juiz de Fora

René Campos Teixeira Monteiro Junior


rene.ctmj@gmail.com
Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo
Este texto tem por objetivo contribuir com o estudo histórico das teorias administrativas
no Brasil e sua caracterização como ideologia, atuando na resolução de conflitos.
Concentrou-se especificamente na concreção do toyotismo na indústria nacional,
sobretudo no setor metalomecânico, e suas ressonâncias nas décadas finais do século XX.
Desse modo, constatou-se que diferentemente de outros complexos do pensamento
administrativo nas décadas anteriores como o taylorismo e o humanismo, o toyotismo
atuou dirimindo conflitos na particularidade brasileira. Isto se deu fundamentalmente por
intermédio da reestruturação produtiva e dos Círculos de Controle de Qualidade (CCQ),
importantes para a regressão das pautas sindicais e enfraquecimento da luta sindical
evidenciada pela redução do número de greves num período que sucedeu o momento de
maior vulto do movimento sindical neste país, ao mesmo tempo em que outros elementos
como o direito (mais atuantes em outros momentos) diminuíram a participação nessa
resolução de conflitos.
Palavras-chave: Toyotismo, Materialismo, Ideologia, Sindicalismo

TOYOTISM AS IDEOLOGY IN THE BRAZILIAN PARTICULARITY (1980-


2000)

Abstract
This text aims at contributing to the historical study of administrative theories in Brazil
and its characterization as ideology, actuating in conflicts resolution. It was concentrated
especially on Toyotism concretion in national industry, mainly in the metalworking
sector, and its resonances on twentieth century final decades. Therefore, the research
showed that differently from other complexes of the administrative thought in past
decades, as Taylorism and Humanism, Toyotism did acted resolving conflicts in Brazilian
particularity. It happened, fundamentally, by means of productive restructuring and
Quality Control Circle (QCC), which were very important in the regression of union
agendas and in the weakening of union struggle emphasized by a decrease in number of

1
Agradecemos à FAPEMIG – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais pelo apoio à
pesquisa que gerou o presente artigo.

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strikes in a period that followed the most massive moment of union movement in this
country. At the same time other elements such as the law (important in other moments)
decreased its participation in this conflicts resolution.
Keywords: Toyotism, Materialism, Ideology, Unionism

Introdução
As recentes pesquisas acerca da atuação das teorias administrativas como
ideologia no Brasil, privilegiando as evidências históricas probantes de sua efetividade
(ou ausência delas) (cf. PAÇO CUNHA; GUEDES, 2015; PAÇO CUNHA; GUEDES,
2017; PAÇO CUNHA et. al., 2017), têm dado fôlego a este velho e sempre renovado
problema, continuando o importante debate iniciado pelos clássicos da crítica marxista
da administração (TRAGTENBERG, 2005; MOTTA, 1984; FARIA, 2004). Recuperar,
historicamente, o traçado dessas teorias é fundamental para situar sua disseminação e
influência no Brasil e articulá-las às determinações econômicas e sociais sem que se faça
necessariamente alguma generalização que distancie o problema das suas bases reais.
A questão candente é demonstrar, por meio da pesquisa concreto-histórica, a
efetividade ou não de tais teorias, particularmente sobre os conflitos sociais no Brasil.
Como veremos adiante, um conjunto de ideias se convertem em ideologia quando são
acionadas por classes sociais no esforço de dirimir e dirigir, por assim dizer, os conflitos
sociais provenientes das condições basilares da sociedade capitalista. A presente linha de
investigação não se realiza pela nomeação, num plano mais teórico, das teorias da
administração como ideologia pelo fato de serem ideias interessadas que distorcem a
realidade (Tragtenberg é o melhor exemplo desse tratamento, cf. Paço Cunha; Guedes,
2015), mas privilegia os elementos probantes da conversão de determinadas ideias em
força material capaz principalmente de dissuadir temporariamente, claro, o conflito que
emana dos antagonismos classistas fundamentais.
Especificamente na presente exposição, pretende-se inquirir se o assim chamado
toyotismo atuou, na realidade brasileira, como ideologia. Não somente guiando a prática
das empresas, portanto, mas sendo um importante instrumento para a resolução dos
conflitos sociais, especificamente entre capital e trabalho. Para isso, elegemos o período
das décadas de 1980 e 1990, que compreenderam a introdução e o amadurecimento desse
ideário administrativo nas indústrias do ABC paulista, como o escopo temporal da
pesquisa. Entende-se também o setor industrial como aquele em que o modelo toyotista
de organização do trabalho é mais permeável e pode atuar de maneira mais profunda e o
ABC como a região mais prolífica da industrialização brasileira, logo, um laboratório
prático da introdução dessas técnicas no período. Em se falando de conflitos sociais, é
possível analisar a efetivação prática do toyotismo em conjunto com o movimento das
lutas operárias que dão o tom dos conflitos e que se materializam através de suas
expressões mais claras: as greves. Portanto, falar-se-á do toyotismo enquanto ideologia
caso ele tenha atuado na contenção dessas greves por ser um critério mais objetivo ainda
que não inteiramente suficiente e, por isso, deve ser complementado com outros aspectos
do próprio período investigado. Dessa forma, o objetivo foi determinar em que medida o
toyotismo se efetivou como ideologia nas indústrias do ABC paulista entre 1980 e 1990,
utilizando como critério básico o comportamento quantitativo das greves para o mesmo
período.
Como importantes recursos metodológicos, foram elementares para a realização
do estudo a avaliação qualitativa de materiais que contenham elementos da história desses
movimentos e da prática das indústrias no período estudado, bem como aqueles que se

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debrucem sobre a própria atuação do toyotismo. Foi também importante a avaliação de


indicadores estatísticos acerca das movimentações operárias e dados macroeconômicos
que denotem marcas da atuação daquele “sistema de produção”. Ambos deram elementos
probantes para as argumentações, podendo indicar, inclusive, fatores concorrentes nessa
atuação como ideologia ou mesmo consequências da sua atuação. Evidentemente, muitos
elementos não serão cobertos. Chegar-se-á a aproximações possíveis que atenderão ao
problema aqui proposto, deixando as limitações, ao final comentadas, para serem sanadas
por outras pesquisas necessárias.
Com efeito, o presente artigo está dividido em três partes. Num primeiro
momento, será feita uma avaliação dos antecedentes do período em debate lançando olhar
sobre os aspectos importantes do “novo sindicalismo” e das técnicas administrativas que
incidiam à época. Em seguida, procurar-se-á levantar os elementos gerais do toyotismo
enquanto prática particular. Depois será avaliada a década de 1980 em que aparecerão os
primeiros traços do modelo japonês no Brasil e por fim, acompanhar-se-á sua concreção
definitiva na década seguinte e os elementos decorrentes.

Ideologia do toyotismo ou toyotismo como ideologia?


Neste tópico consideraremos a determinação material da ideologia que norteou a
pesquisa e também os aspectos centrais do toyotismo que o caracterizam em seu sentido
prático. Esse último aspecto é igualmente importante por ajudar a demarcar o critério
decisivo à delimitação da própria ideologia.
Tradicionalmente, identifica-se ideologia a ideia, a um conjunto mais ou menos
amplo de afirmações e posições. Ideologia, então, estaria associada ao plano das ideias.
Mas não ideias de qualquer qualidade. Por ideologia também se identifica as falsas ideias,
as que distorcem a realidade e, por isso, é bastante frequente a ligação entre ideologia e
ilusão, imaginário e termos mais ou menos correlatos. Essa posição é possível de ser
extraída de diferentes materiais clássicos e também de outros mais recentes (cf. PAÇO
CUNHA; GUEDES, 2015).
A despeito da grande difusão dessa posição, nossa análise no presente trabalho
caminha em direção bastante distinta, pois acentua-se a dupla não identidade pura entre
ideologia e ideia e entre ideologia e falsidade. Não significa também que ideias não
possam ser convertidas em ideologia ou que esta não possa ser falsa. Ocorre, entretanto,
que a determinação ontoprática da ideologia (Vaisman, 1996) a explicita como força
material, inclusive em sentido prático, independentemente de sua falsidade ou
veracidade. Pode-se dizer, seguindo Lukács (2013), que a ideologia se determina por sua
efetividade e duração. Enquanto a primeira denota os efeitos reais mais imediatos na
realidade posta, a segunda é atinente à profundidade de tais efeitos. Limitando-nos, no
presente trabalho, ao primeiro aspecto, é nesses termos que se diferencia a ontoprática de
uma compreensão epistemologizante. Quer dizer, podendo ser verdadeira ou falsa, o que
determina algo (um sistema de ideias, por exemplo) como ideologia é sua efetiva atuação
na realidade social:

(...) verdade ou falsidade ainda não fazem de um ponto de vista uma ideologia. Nem um
ponto de vista individualmente verdadeiro ou falso, nem uma hipótese, teoria etc., científica
verdadeira ou falsa constituem em si e por si só uma ideologia: eles podem vir a tornar‑se
uma ideologia, como vimos. Eles podem se converter em ideologia só depois que tiverem se
transformado em veículo teórico ou prático para enfrentar e resolver conflitos sociais, sejam
estes de maior ou menor amplitude, determinantes dos destinos do mundo ou episódicos. Não
é difícil perceber isso no plano histórico (LUKÁCS, 2013, p. 467).

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Destacam-se dois aspectos importantes. A realidade social, como se vê na


passagem, não é algo amorfo. A ideologia tem sua funcionalidade inscrita nos conflitos
sociais, de maior ou menor alcance, que moldam essa mesma realidade. Conforme
colocou Vaisman (2010, p. 50), “algo, portanto, transforma-se em ideologia, não nasce
necessariamente ideologia, e essa transformação depende de vir a desempenhar uma
função precisa junto às lutas sociais em qualquer nível destas”. Por outro lado, percebe-
se que há uma conversão de algo em ideologia, isto é, ideologia é meio teórico ou prático
de atuação nos conflitos sociais. Queremos destacar sobretudo esse sentido de “veículo
prático” porquanto nos aproxima mais da problemática que pretendemos enaltecer com
respeito ao toyotismo não como um conjunto de ideias, princípios e regras, ou expressão
autêntica ou mistificadora da realidade, mas na medida em que esses elementos
convergem de maneiras variadas por veículo prático, constituindo-se assim em força
material.
Por este motivo, parece ser possível avançar na discussão da ideologia do
toyotismo, que vá além da “a amplitude de valores e regras de organização da produção
que sustentam uma série de protocolos organizacionais” (cf. Alves, 2000, p. 3). O passo
adiante está em determinar de forma concreta a efetividade do toyotismo como veículo
prático que potencialmente direciona o rumo dos conflitos sociais.
Com isto em mente, entende-se que tal veículo prático, também enquanto prática
administrativa, está posicionado justamente no âmago do conflito social básico do modo
de produção capitalista, entre capital e trabalho, e por esta razão é sensível a este conflito.
Por decorrência, é esperado que as formas de consciência teóricas associadas a tal prática
administrativa reflitam igualmente marcas desse conflito. Há então uma potencialidade
de atuação, como ideologia, nas condições objetivas do processo de trabalho e para além
dele. Mas não é suficiente a constatação desse potencial se tal forma de consciência
teórica for desprovida de meios práticos, podendo haver formas de consciência teóricas
que jamais são convertidas em ideologia. Daí a importância de nosso destaque à
efetivação da ideologia como veículo prático, restando saber sobre as contingências
históricas em que a potencialidade típica das formações ideias, incluindo aí a “teoria do
toyotismo” – por assim dizer – se tornou efetividade.
Essa determinação, entretanto, não exime de uma explicitação dos aspectos
nucleares dessa “teoria do toyotismo”, pois nos fornece também certo critério para
identificar as especificidades daquilo que veio a ser posto na particularidade brasileira.
Em síntese, podemos dizer, com base em Gounet (1999), Lima (2002) e Alves (2000) que
os principais aspectos podem ser resumidos a: 1. Produção puxada e flexibilidade da base
produtiva e da organização do trabalho; 2. diminuição do número de trabalhadores,
seguindo a tendência imposta nos anos anteriores na economia japonesa; 3. Um
envolvimento, engajamento da força de trabalho polivalente por meio de distintos
expedientes; 4. Mecanismos de organização da produção: automação por meio da
robótica (ao menos em uma fase superior de desenvolvimento), kanban, andon, Círculos
de Controle e Qualidade (CCQ) etc. O CCQ, em particular, possui um sentido especial.
Têm por objetivo o envolvimento dos trabalhadores e do sindicato no projeto de empresa,
encorajando uma posição mais agressiva e ambiciosa, não apenas dentro do grupo, mas
como ganho no caráter de suas posições pessoais, como explicou Lima (2002). A mesma
autora argumenta que esse tipo de dominação não tem o objetivo de ser uma participação
democrática, mas sim uma ferramenta para suprimir sindicatos: “Essa processualidade
deslocou do cenário histórico a resistência organizada dos trabalhadores e a possibilidade

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da solidariedade de classe” (LIMA, 2002, p. 57). Assim os sindicatos combativos


perderam espaço para aqueles mais corporativos e isso teve importantes ressonâncias nos
conflitos de classe no Japão cujo objetivo é a defesa do projeto da empresa. O toyotismo
não apenas consolidou seu espaço em cima da derrota do sindicalismo combativo,
classista, mas garantiu as bases para o surgimento de um sindicato pautado pela
colaboração com os gestores, o que já se apresenta como índice importante da potência
para resolver conflitos. Ainda segundo a autora, esse vínculo do sindicato ao toyotismo
acontece não apenas nos momentos de inovação tecnológica, mas também na inserção de
novos trabalhadores e como uma forma de levar o operário a participar das contínuas
inovações tecnológicas.
Esses aspectos de especificidade gravitam acerca de o núcleo invariante de se
tratar de remodelagem do processo de trabalho, tal como as práticas anteriores do
taylorismo e fordismo. Mas enquanto estes estiveram limitados consideravelmente a um
estágio ainda no interior do que se pode nomear por manufatura moderna, o primeiro
guarda maior potencialidade de se acoplar às mudanças na base técnica, particularmente
por meio da automação centrada na robótica e microeletrônica (SARTELLI; KABAT,
2014), embora seja algo apreensível em fase superior de desenvolvimento (MORAES
NETO, 2003). Não obstante, o núcleo invariante aponta para a redução do tempo de
trabalho socialmente necessário, intensificando o processo de trabalho quando não se
combina à redução quantitativa dos postos de trabalho. Tanto os aspectos de
especificidade quanto o núcleo invariante, entretanto, estão submetidos às
particularidades históricas.
Assim, tendo evidenciado a exigência de uma investigação material para se chegar
às condições de possibilidade de efetivação de ideologia, é preciso considerar as
particularidades distintas que se estabelecem no desenvolver histórico do capitalismo. O
que mostra, por exemplo, que não se pode, peremptoriamente, aceitar a história das teorias
administrativas nos Estados Unidos refletida no Brasil (cf. PAÇO CUNHA; GUEDES,
2017). O caso brasileiro exige um exame dedicado, centrado nos enlaces decisivos de
suas determinações particulares, compreendendo que a particularidade resulta da unidade
entre os traços gerais que identificam tanto os sistemas econômicos quanto a circulação
das ideias nos diferentes países e os traços singulares, muito específicos de cada formação
social. Sendo a história brasileira o plano principal deste trabalho, é primaz, portanto,
considerar a função, neste caso, do toyotismo na particularidade brasileira. Deve-se
considerar a tessitura sócio-histórica que condiciona a elaboração de uma ideologia e dá
as condições de possibilidade para efetuar-se atendendo o objetivo para o qual está
direcionada. A função, nesse contexto, dá conta do efeito prático da ideologia. As
consequências da sua atuação na condução dos conflitos podem dar o grau dessa
efetividade. Este é o elemento que sentenciará, de fato, algo como ideologia.

Notas preambulares: o novo sindicalismo e o taylorismo à brasileira dos anos 1970


Vargas (1985) assevera ter havido, sucessivamente, desde a década de 1930,
tentativas de implementação do taylorismo no Brasil, que, após sucessos efêmeros,
acabaram por se desenvolver como uma forma particular e generalizada nos anos 1970.
Com o “humanismo”, introduzido no país por intelectuais europeus (por meio da
psicotécnica) com o objetivo de ministrar cursos para a formação de gestores, sequer
chegou a haver um desenvolvimento substancial. Já na década de 1950 era tido como
exiguamente desenvolvido, pouco pesquisado e sem qualquer efeito prático (CUNHA,
1957). E já se mostrou que esse “humanismo” não teve efetividade como ideologia no

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Brasil, ao menos não até 1960 (cf. PAÇO CUNHA; GUEDES, 2017). Considerando que
até os anos de 1960 as teorias administrativas não apresentavam presença significativa na
própria prática das empresas, e, decerto, não se efetivaram como ideologia, cabe agora
debruçar-se sobre a década seguinte (1970), mais precisamente sobre a sua metade final.
De modo geral, é interessante acompanhar a argumentação de Fleury (1979), a
despeito do esquematismo que impõe algum purismo. Ao realizar pesquisa em empresas
de vários setores da Grande São Paulo, com a intenção de verificar o grau de
racionalização do trabalho, pôde colocar de maneira bem sintética o estágio de
desenvolvimento da organização do trabalho ao final dos anos 1970. Os resultados
mostraram que a forma organizativa das empresas pesquisadas, em geral, não se
enquadrava em nenhum modelo estabelecido nas principais correntes teóricas do
pensamento administrativo naquele momento. Designa então a forma de organização
encontrada nas empresas brasileiras como “rotinização” que “não permite a formação de
grupos e separa o planejamento de execução da tarefa até um nível conveniente”.
Contudo, “não estabelece a maneira ótima de produzir; não procede ao selecionamento e
desenvolvimento cientifico do trabalhador; não usa recompensas monetárias como fator
motivacional para aumentar a produtividade” (FLEURY, 1979, p. 24). Depreende-se
assim que, era possível, a esse tempo, falar em uma “racionalização” no principal centro
industrial brasileiro, não obstante suas debilidades em relação ao “taylorismo clássico”
(ou conceitualmente puro).
Se por um lado não houve a atuação da administração para dirimir conflitos
sociais, por outro a repressão do Estado, historicamente, atuou diretamente sobre as
organizações sindicais. Está posto exatamente o contexto de apoio do Estado para lidar
com a eclosão de movimentações contestatórias, o que apresenta resultados úteis ao
empresariado (FARIA, 1980; WEINSTEIN, 2000). Restringindo a amplitude dos
conflitos, desobriga esta fração do capital a oferecer qualquer resposta, como utilizar
práticas oriundas das teorias administrativas, por exemplo, para conter os conflitos. Elas,
portanto, no começo dos anos 1970, permaneciam adormecidas como nos períodos
anteriores em termos de atuação nos conflitos postos.
Todavia, no fim da década de 1970, observou-se o recrudescimento do movimento
sindical, no que ficou conhecido como “novo sindicalismo”. Em 1978, após a deflagração
da greve dos operários nas primeiras indústrias metalúrgicas no ABC Paulista, fica claro
que as empresas se apoiavam deliberadamente no Estado, apostando na repressão do
movimento para a sua resolução, ou no próprio ordenamento jurídico, uma vez que greves
eram ilegais. Mas, como elemento decisivo, havia também a disposição dos sindicatos a
negociar, o que se sobrepunha à inclinação dos operários para a luta e arrefecia os
movimentos, como asseverou Moura (2015). Na verdade, seguindo o autor, o elemento
definitivo que finalizou a greve consistiu no acordo que previa o aumento salarial aos
operários. Então a articulação de fatores como a repressão do Estado com o atendimento
de demandas dos sindicatos selou o fim daquelas contendas. Um prosseguimento do que
já ocorria nos anos anteriores, com a exceção de que neste ano a greve reuniu mais
trabalhadores de mais indústrias, denotando um movimento mais contundente.
No que toca a atuação do Estado, seja pelo aparato jurídico ou repressão policial,
é preciso ressaltar que justamente no ano de 1978, pouco tempo após o término da
primeira grande greve do ABC, há a publicação de um decreto presidencial, não muito
específico, que permitia às empresas cujas “atividades eram essenciais de interesse da
segurança nacional” (BRASIL, 1978) sancionar deliberadamente seus trabalhadores que

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aderissem às greves2. E isso englobava as indústrias que preenchessem esse critério pouco
específico, definido segundo a vontade do Presidente da República. É prudente ressaltar
que este dispositivo não se confunde com a lei antigreve, que já estava em vigor desde a
década anterior. Nota-se que as sanções eram determinadas juridicamente, mas para
serem aplicadas pela própria empresa sem a atuação direta do Estado. Desse modo, o
direito atuava na resolução provisória dos conflitos não apenas nas contendas judiciais ou
pelos braços da polícia, mas também no âmbito interno das empresas. Inclusive, é
justamente em meio à greve de 1979 que se deu o desencadeamento de um grande
contingente de demissões nas indústrias do ABC após a trégua de quarenta e cinco dias,
como explicou Moura (2010), mesmo havendo o acordo de que não haveria demissões
durante a trégua. O desfecho de 1978, em verdade, também foi o que marcou a greve
geral de 1979, que, embora tivesse sido ainda maior, alcançando a mobilização nas ruas
e mais de 200 mil trabalhadores, significou, para estes, uma regressão na luta tendo em
conta seus resultados negativos como a obrigação que impeliu os trabalhadores a pagarem
pelos dias parados, como parte do acordo com o empresariado. Ainda segundo o autor, a
resposta repressiva despontava cada vez mais como uma força para conter os confrontos
o que culmina na própria prisão dos operários em greve e a proibição de manifestações
públicas por parte dos grevistas, como sublinhou o autor supracitado. Aqui também, o
ponto conciliatório se apresenta de maneira diferente, uma vez que comissões de fábrica
independentes conseguem se impor mais e rejeitar algumas propostas de encerramento da
greve colocadas pelos sindicatos, o que não evita o acordo ao final. Moura (2010) ainda
mostra que esse panorama se repete também nas movimentações de 1980, sendo assim o
aspecto mais marcante desse período de retomada da mobilização operária no país.
A repressão policial atuou por diversos momentos durante essas greves, e foi
capaz de frear muitas movimentações dos trabalhadores, inclusive atuando
preventivamente nas fábricas a pedido dos empresários. Além de, evidentemente, existir
essa atuação policial a pedido dos empresários, havia também, nas empresas, guardas
armadas e numerosas não necessariamente mantidas pelas empresas, mas por elas
utilizadas para, por exemplo, obrigar trabalhadores parados a retomar o trabalho. Essas
ações também se davam no entorno das empresas

A repressão atinge a empresa em todos os níveis, e a empresa vai montar esquemas de


segurança que impedem a locomoção do operário, obrigando-o a permanecer exclusivamente
em sua seção; na entrada da fábrica proliferam ações policialescas com revistas de suspeitos,
cujos nomes estão marcados na portar, enquanto no interior da organização, mais
propriamente na linha de produção, a4:iressão para o andamento do trabalho será agravada e
as comunicações entre os operários impedida (FARIA, 1980, p. 356)

O enfrentamento dos conflitos de classe insurgentes do triênio mais complexo do


novo sindicalismo foi, em linhas gerais, capitaneado pelo Estado mediante diversas ações,
agindo em aliança com o capital, sobretudo por intermédio do aparato jurídico-policial.
Isto se somou à orientação predominantemente conciliatória dos sindicatos.

2
As sanções, chegavam até a demissão, dando total liberdade para a empresa: Art. 3º Sem prejuízo das
sanções penais cabíveis, o empregado que participar de greve em serviço público ou atividade essencial
referida no artigo 1º incorrerá em falta grave, sujeitando-se às seguintes penalidades, aplicáveis individual
ou coletivamente, dentro do prazo de 30 (trinta) dias do reconhecimento do fato, independentemente de
inquérito: I - Advertência; II - Suspensão de até 30 (trinta) dias; III - Rescisão do contrato de trabalho, com
demissão, por justa causa (BRASIL, 1978).

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Elementos contidos em teorias administrativas, sobretudo a organização do


trabalho, estavam consolidados na prática cotidiana das empresas, muito embora ainda
não tivessem força similar ao direito para impetrar efeito prático nos conflitos. De
maneira oposta, alguns elementos caros às teorias administrativas para o bom
funcionamento da empresa são inclusive deixados de lado na medida em que se instaura
o clima beligerante entre capital e trabalho. Exemplos disso vê-se nas próprias práticas
de comunicação as quais, colocadas como fundamentais para a fluência da administração
nas empresas, são cerradas cedendo lugar a interrogatórios e pressões no momento das
greves (FARIA, 1980).
Esse movimento mostra como o desenvolvimento da realidade concreta pode
impor condições favoráveis ou não aos aspectos de um complexo que potencialmente
pode se materializar como ideologia, no caso, a administração de modo menos potente do
que a repressão direta ou por via jurídica. Para o exame do período proposto inicialmente
no Brasil, far-se-á, primeiramente, a seguir, uma breve elucidação acerca do toyotismo.

Inserção do toyotismo, mudanças políticas e crise econômica nos anos 1980


A entrada da década de 1980 representou o início da introdução das técnicas
toyotistas no Brasil. No panorama econômico, esta década foi consecutiva às crises do
petróleo e apresentou, na sua duração, a oscilação entre momentos de recuperação e de
decaída, sendo a taxa média real de crescimento do produto interno bruto 1,66%
(GIAMBIAGI, 2010). Para a indústria metalomecânica, a metade final da década, a
mesma em que o toyotismo desponta, foi a mais prolífica, mas também percebeu
momentos de instabilidade, como podemos acompanhar na Tabela 1 abaixo:

Tabela 1: Índices Anuais da Produção Industrial (base: 1991=100)


1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995
Metalúrgica 106,27 118,96 119,47 115,59 121,39 106,07 100,00 99,36 107,02 117,91 115,81
Mecânica 110,08 134,28 139,70 127,68 134,04 111,44 100,00 90,52 106,23 128,61 122,77
Fonte: Adaptado de IBGE (s/da)

No setor metalomecânico, percebe-se que a principal decaída ocorre somente no


início da década de 1990, muito por conta dos problemas de liquidez resultantes do Plano
Collor. Em contrapartida ao crescimento da produção, há a oscilação com tendência à
retração no número de trabalhadores ligados à produção como pode-se ver na Tabela 2:

Tabela 2: Índices anuais do pessoal ligado à produção industrial (base: ano


anterior=100)
1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995
Metalúrgico 102,51 112,79 103,47 97,08 99,02 95,12 88,10 92,18 99,05 97,99 102,16
Mecânico 108,69 112,79 101,28 94,55 99,04 94,32 86,98 95,41 96,08 103,91 97,65
Fonte: Adaptado de IBGE (s/db)

Aqui se vê um relativo acréscimo de trabalhadores no fim da década de 1980, mas,


nos anos seguintes, esse número decai, não retomando na década de 1990 os níveis da
década de 1980, o que mostra um acréscimo na pressão da produtividade por trabalhador.
Na mesma direção, como mostra a Tabela 3, as taxas de investimento em maquinário e

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equipamentos segue a mesma oscilação, e mesmo se recuperando ao fim da década de


1990, não atinge os níveis anteriores.

Tabela 3: Formação bruta de capital fixo (máquinas e equipamentos) como porcentagem


do PIB
1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000
5,34 5,24 5,95 7,41 7,07 6,87 5,67 4,97 5,05 6,03 6,45 5,28 5,33 4,97 4,83 5,26
Fonte: Adaptado de IBGE (s/dc)

É importante acentuar que o toyotismo entra no Brasil num momento de ligeira


retomada do crescimento da indústria, mas é também um momento em que este setor
passa a representar menor participação no produto interno, com o crescimento do setor
de serviços. Na década de 1980, a indústria representava 34,29%, percentual que cai para
29, 97% no decênio posterior (BONELLI, 2006). Ademais é fundamental lembrar que o
toyotismo é inserido pela iniciativa de grandes multinacionais estrangeiras do setor
automotivo.
As importantes movimentações operárias ocorridas no fim década de 1970
legaram um histórico que favoreceu à continuidade dos movimentos no decorrer da
década seguinte. Ao longo desta, percebeu-se com intensidade a deflagração de greves no
setor industrial, em outros setores privados e também em instituições públicas. Destaca-
se, por um lado, o aspecto quantitativo, que percebeu sensível crescimento até 1989
(Gráfico 1),

Gráfico 1: Quantitativo de greves no Brasil

Fonte: NORONHA, 2009, p. 130.

E também a expansão de greves para além do ABC paulista:

Em 1981, os operários e operárias da Ford decretam uma importante greve. Em 1983 tem-se
a primeira greve geral da década, a segunda greve geral é deflagrada em 1986, seguida por

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uma terceira em 1987 e por fim a quarta greve geral em 1989. Em 1988 tem-se uma
importante greve com ocupação e enfrentamento armado com o exército na Companhia
Siderúrgica Nacional. Esta greve é seguida pelas greves com ocupações da Belco-Mineira e
da Mannesmann em 1989 (MOURA, 2010, p. 12).

Mantinham-se as formas comuns com que se levava ao cabo aquelas


manifestações. Mas, desta vez, outros elementos adquirem importância, como a
progressiva aproximação dos sindicatos com a luta parlamentar num momento de
constituição de novos partidos e do ganho de fôlego das campanhas pela
redemocratização. A alta inflação e o nível de emprego instável também ajudavam a
reduzir a movimentação operária. Ou seja, vê-se aqui uma variedade maior de fatores
atuando na contenção dos conflitos sociais emergidos da indústria. Outras formas de
refreamento dos movimentos se mantêm, como um prosseguimento dos anos anteriores,
no exemplo da forte repressão representada pela aliança entre o capital e a esfera
governamental pela forma da força policial (MOURA, 2010; POGIBIN, 2009). Em suma,
a despeito do crescimento quantitativo das greves neste início de década como se viu no
Gráfico 1, não se vê mais a força de concentração dos movimentos como no fim dos anos
1970.
É na segunda metade da década de 1980 que alguns aspectos ligados ao toyotismo
passam a se fazer presentes mais decisivamente nas indústrias do ABC. No contexto de
remonta do movimento sindical, as indústrias no ABC (sobretudo aquelas multinacionais)
viram-se mergulhadas num momento de tensão que exigia alguma reação mais imediata
(SILVA, 2004). Assim, passou-se a implementar métodos já difundidos
internacionalmente com o objetivo de reduzir essas movimentações operárias. Colocou-
se em prática os Círculos de Controle de Qualidade (CCQ). Evidentemente, era clara a
intensão de estabelecer esses círculos e suplantar ou reduzir a força dos sindicatos, em
pleno vigor à época: “Se, de um lado, esses modelos admitiam como legítimas as
reivindicações dos trabalhadores; por outro, buscavam estabelecer outros canais de
comunicação com os trabalhadores fora da ação do sindicato”. (SILVA, 2004, p. 152).
Coincidentemente, este método foi, antes, implementado no Japão no mesmo contexto de
conter movimentações operárias (LIMA, 2002). Na década de 1970 era possível
compreender alargada institucionalização da chama cogestão na Alemanha, inclusive
ratificada por leis que impunham a participação dos operários à empresas que atendessem
a determinados critérios de tamanho e atividade (TRAGTENBERG, 1980; FARIA,
1982). É possível também chamar a atenção para elementos do empresariado nacional,
defendendo essas técnicas, munidos dessa influência europeia (FARIA, 1982).
Inicialmente, no início da década de 1980, estes círculos não puderam ser
colocados em prática de maneira completa. Segundo Freyssenet; Hirata (1985), entre os
motivos mais importantes para essa dificuldade inicial estão a forte resistência sindical,
as diferenças estruturais entre as empresas nacionais e as japonesas e a baixa permissão,
por parte dos gestores, à participação dos operários nos CCQs, além da sua aplicação sem
o acompanhamento de outras técnicas que compunham originalmente o modelo japonês
de gestão.
A primeira expressão mais clara da atuação das técnicas de gestão no Brasil como
ideologia, como conjunto de ideias e princípios convertidos em força material de
resolução de conflitos, acontece na metade final dos anos 1980, ao mesmo tempo em que
já se percebia menor combatividade por parte dos sindicatos. No ano de 1987, nota-se a
progressão do modelo japonês com a expressão de mais um aspecto: a reestruturação
produtiva – série de mudanças na produção que coincidiam com algumas técnicas

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toyotistas e visavam à redução do número de empregados, sem que a produtividade


abaixasse. Isto ocorreu primeiro na Autolatina (MOURA, 2010). Como consequência
dessa fusão, houve, neste ano, a demissão de mais de 10 mil funcionários nessas fábricas.
Dessa vez, esse fato não representou, contudo, uma movimentação mais contundente por
parte dos trabalhadores (SILVA, 2004). Na medida em que se percebia um
enfraquecimento da formulação de pautas de luta e a participação cada vez mais tímida
dos sindicatos, as comissões de fábrica, materializadas nos CCQs, ganhavam espaço.
Tratavam-se, entretanto, de instâncias menores e portadoras de reivindicações mais
restritas, senão conservadoras. Isto fica aparente pela análise dos acontecimentos que
revela uma manifestação menos crítica dos trabalhadores “ao processo de reestruturação
produtiva desde que apresente duas características: seja negociado com a comissão de
fábrica e possibilite uma melhoria nas condições de trabalho” (SLVA, 2004, p. 161). Fica
aparente também na forma de encarar as novas técnicas sem desenvolver uma resistência
mais organizada, pois “as comissões institucionalizam conflitos, permitindo a introdução
negociada da reestruturação produtiva” (SILVA, 2004, p. 164).
Como se viu no Gráfico 1, o fim da década de 1980 demarca o início da queda do
quantitativo anual de greves no Brasil, compreendendo-se o ABC paulista como parte
desse contexto. Assim, tanto a baixa resistência oferecida pelas comissões representadas
no CCQs, quanto os ecos futuros que coexistem com o avanço da implementação de
técnicas japonesas de gestão no Brasil, configuram o primeiro momento em que a
administração, pôde, de alguma forma, atuar diretamente nos conflitos entre capital e
trabalho, demarcando também o início da atuação do toyotismo nesse mesmo sentido.
É preciso ressaltar que o desenvolvimento dessas técnicas de gestão não se dava
isoladamente, coexistindo, até o fim dos anos 1980, com importantes pontos do aparato
jurídico como a lei antigreve e o decreto que permitia punições a grevistas, revogados
após a Constituição de 1988, conforme assinalado anteriormente. O fato de haver a
diminuição de greves no ano subsequente, sem a concorrência desses dispositivos
importantes, abre mais espaço para a atuação das técnicas do modelo japonês na resolução
dos conflitos. A baixa participação dos sindicatos nas lutas também é um fator
concorrente, tendo em vista sua adesão mais sistemática à conciliação com as empresas,
como se verá, bem como a persistência da força policial do Estado. Em verdade, isso não
sofreu grandes mudanças, bastando lembrar que mesmo fora do contexto do ABC, a
grande greve na Companhia Siderúrgica Nacional em 1987 foi fortemente reprimida pelo
exército (MOURA, 2010). O que se depreende do movimento aqui demarcado é
exatamente o início de uma inflexão que passa a colocar as teorias de gestão, finalmente,
como um elemento importante na resolução de conflitos.

A atuação do toyotismo como ideologia nos anos 1990


A claudicante economia brasileira gerou, para o grande capital, a necessidade da
reestruturação da economia e do Estado, além da necessidade de repensar no modo de
inserção no sistema mundial do capital (ALVES, 2002). O Governo Collor, logo no início
da gestão, buscou implementar medidas como “a reforma administrativa, as privatizações
e um conjunto de políticas liberalizantes, que abarcavam a quebra de monopólios, a
abertura econômica, a desregulamentação e o fim dos subsídios e incentivos”
(CONCEIÇÃO, 2006, p. 112). Por conseguinte, isso acaba “tornando o país mais atrativo
e lucrativo para o capital financeiro internacional e para as grandes corporações que
buscavam vantagens comparativas”. (SANTOS, 2015, p. 101). Como estratégia mais
imediata, o “Plano Collor” tinha por objetivo reduzir a inflação, através do aumento dos

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impostos e exclusão dos incentivos fiscais, redução dos gastos públicos, substituição da
indexação mensal de salários por um índice prefixado, uso de taxa de câmbio flutuante e
o confisco das aplicações financeiras (CONCEIÇÃO, 2006). Gerou-se, no entanto, uma
crise de liquidez que repercutiu negativamente sobre a atividade industrial, pois como
pôde ser visto nas Tabelas 1, 2 e 3, nos primeiros anos da década de 1990 há
simultaneamente a depressão nos níveis de produtividade e emprego, além da maior baixa
na taxa de investimento em capital fixo.
As medidas econômicas de principal relevância nessa transição de década são os
planos de desenvolvimento estratégico das indústrias, em especial o Programa Brasileiro
de Qualidade e Produtividade (PBQP) (SANTOS, 2015). Este tinha, entre seus objetivos,
não apenas a simples transposição das técnicas passadas à técnica japonesa, mas
modificar a relação de confronto entre trabalhadores e capital, para uma relação de
pretensa cooperação. Ademais, os próprios sindicatos demonstravam sensível
potencialidade para a negociação com sua adesão às câmaras setoriais. Essas câmaras
eram instâncias de debates que envolviam governo, capital e trabalho, buscando soluções
para os problemas enfrentados pelo empresariado nacional com a liberalização da
economia e o acirramento da competitividade, durando até 1995 (ANDERSON, 1999).
Entendidos esses, obviamente, como problemas que, quando resolvidos, favoreceriam
não só ao capital, mas a todos os envolvidos. Por conseguinte, na prática, evidentemente,
a igualdade formal nessas instâncias se desfazia. Nos acordos firmados nas câmaras do
setor automotivo, por exemplo, a grande maioria dizia respeito às pautas importantes para
o empresariado como a queda de impostos, o incentivo ao consumo dos automóveis
produzidos em território nacional e financiamento da produção por bancos públicos
(ANDERSON, 1999). Pautas de trabalhadores eram minoritárias e apareciam em
demandas protocolares de aumento de salários. De forma precisa, podemos acompanhar
que “Pode-se, ainda, questionar o potencial democrático desse tipo de instrumento
analisando-se a capacidade de intervenção dos sindicatos na elaboração de políticas
públicas, já que grande parte das questões de interesse dos trabalhadores (vale dizer, as
propostas de longo prazo) não foi resolvida” (GALVÃO, 1998, p. 91. Há também um
importante sinal da fragmentação das lutas, pois as câmaras eram divididas em setores da
metalurgia. No entanto, aqueles firmados no setor automotivo foram expandidos aos
outros inadvertidamente, sem necessariamente se considerar suas especificidades. E isto
aconteceu com o aval do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, que não se
movimentou em relação aos setores excluídos:

as empresas tentavam reajustar os salários e dar o aumento real apenas para os trabalhadores
dos grupos contemplados na câmara setorial, montadoras e autopeças, excluindo outros,
como máquinas e eletroeletrônicos. Embora tenham cedido reajustes até outubro de 1992,
somente trabalhadores das montadoras e da indústria metal-mecânica obtiveram o aumento
real. Coube ao SMABC apenas sugerir que os operários das outras indústrias mantivessem a
mobilização, para conseguirem semelhantes benefícios (SANTOS, 2015, p. 94-5).

Ao tomar uma maior participação como mediador de conflitos nessa nova


configuração instaurada, os sindicatos influíam diretamente no interior dos conflitos
sociais, servindo aos empresários como aliados sem promover maiores movimentações
contestatórias. É sensível esta mudança de posicionamento do movimento operário que
abandona uma posição contestadora e bastante atuante, exacerbando a mera atuação
sindical por meio de comissões de fábrica atuantes, por exemplo, para uma posição

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apassivadora e que não encontra solução para a fragmentação das lutas, seguindo, na
verdade, um movimento contrário, de aliança desvelada com o próprio capital.
Para superar os efeitos da recessão profunda, durante a década, houve o incentivo
para as empresas implementarem novas medidas de administração, de reestruturação
produtiva sendo a indústria automotiva o principal objetivo dos entes federativos.

os programas que visavam subsidiar a modernização das indústrias tinham como objetivo dar
as condições institucionais para que as empresas adotassem o novo modelo de produção,
espelhado nas novas formas de gestão da produção japonesa, que se difundira para os países
centrais, sendo responsável pela redução dos custos de produção e considerável aumento da
produtividade (SANTOS, 2015, p. 87).

Vê-se, portanto, como a implementação do toyotismo em território nacional, se


alinhava à política econômica, e foi, por esse motivo, também incentivada pela esfera
governamental, de tal forma que passa a acontecer a pulverização de polos industriais por
conta de guerras fiscais, havendo, por esse motivo, certa desconcentração no ABC
Paulista. As unidades que se espalham pelo Brasil, já munidas do caráter toyotista, passam
a ser modernas e, em termos de competitividade, atingem altos níveis de produtividade já
com custos de mão de obra mais reduzidos. Este processo se desencadeara no ABC em
um ritmo mais lento, tendo em vista a necessidade de adequação frente ao histórico.

enquanto as fábricas de produção de automóveis da Volkswagen e da General Motors,


situadas em São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul, respectivamente, possuíam,
naquele ano, produtividade de 14,5 e 13,1 veículos por trabalhador ao ano, as novas unidades
industriais da Mercedes- Benz (em Juiz de Fora, MG) e da Renault (em São José dos Pinhais,
PR) - também montadoras de automóveis - teriam produtividade de 46 e 48 veículos por
trabalhador ao ano (CONCEIÇÃO, 2006, p. 132-3).

As diferenças ficam mais nítidas quando se coloca em tela a comparação de novas


unidades de fábricas em outras regiões com as fábricas da ABC Paulista, como podemos
observar na tabela 4, que demonstra como no ABC, ainda que com todo o refluxo do
movimento sindical, os salários ainda eram mais elevados que em outras regiões do país.

Tabela 4 - Comparação do custo anual da mão-de-obra na indústria de autopeças: S.B.


Campo, interior de SP e Sul de Minas Gerais, 1998, em R$
S.B Campo Interior Sul de
SP MG
Subtotal Salários (1) 10.666,67 6.000,00 4.933,33
Subtotal Encargos Sociais (2) 4.160,00 2.340,00 1924
Subtotal Benefícios (3) 3.304,80 2.260,00 2.200,80
Total Geral (1+2+3) 18.131,47 10.600,80 9.058,13
Índice Comparativo 200,17% 117,03% 100,00%
Fonte: CONCEIÇÃO, 2006, p. 136.

De acordo com a Tabela 4, o custo anual de mão de obra em São Bernardo do


Campo é mais que duas vezes aquele encontrado no sul de Minas Gerais, por exemplo.
Como observamos anteriormente, um dos pilares da mudança estrutural do modelo
toyotista é reduzir o custo final da produção e isso é causado por diversos fatores como a
redução do custo de mão de obra, seja pela redução do custo com salários ou pela

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manutenção a fábrica com menor corpo efetivo de operários. Nesse sentido, Lima (2002)
destaca que havia, inclusive nas fábricas da Toyota no Brasil, importantes disparidades
salariais entre as unidades de Indaiatuba (região de Campinas) e São Bernardo do Campo.
Depreende-se assim que o toyotismo entrou no Brasil por intermédio de sua atuação em
empresas do ABC, mas se consolidou efetivamente com o impulso governamental fora
dele, nas unidades fabris que se instalavam no decorrer dos anos 1990, tendo o ABC
absorvido seus impactos mais tardiamente.
Isto, contudo, não significa que o ABC passou ileso à consolidação toyotista no
Brasil. O que pode ser acompanhado, por exemplo, na Tabela 5, que representa esse
processo ao demonstrar, através dos anos, como a consolidação de um novo modelo de
produção pressiona os custos com mão de obra aliada às políticas governamentais (como
a aceleração da abertura as importações, as medidas fiscais e monetárias restritivas)
influenciaram diretamente no aumento do desemprego. Principalmente, pela redução de
postos de trabalho na região do ABC paulista, como podemos observar a seguir:.

Tabela 5. Indústria automobilística no ABC

Nível de
Massa salarial
Produção anual (em emprego
versus receita
unidades) líquida em (%)
Por
Ano Total empregado (média anual)
1980 1.179.419 8,80 133.641 18,60
1981 780.883 6,60 118.776 19,60
1982 859.295 7,80 109.780 18,40
1983 896.469 8,30 107.493 16,10
1984 864.654 8,10 106.618 13,00
1985 966.708 8,10 119.357 13,60
1986 1.056.332 8,30 127.133 17,30
1987 920.071 7,70 120.121 12,30
1988 1.068.756 9,40 114.019 10,10
1989 1.013.252 8,80 114.955 10,10
1990 914.466 7,70 118.183 11,00
1991 960.219 8,70 110.954 12,50
1992 1.073.861 10,00 107.682 10,40
1993 1.391.435 13,10 106.227 8,80
1994 1.581.389 14,80 106.613 12,90
1995 1.629.008 15,10 107.874 10,20
1996 1.804.328 17,40 103.545 9,40
1997 2.069.703 19,60 105.641 8,50
1998 1.573.106 16,10 97.452 8,70
1999 1.345.515 15,9 84.632 8
Fonte: RODRIGUES, 2002, p. 145

Há aqui a exata medida de intensificação da exploração econômica do trabalho na


medida em que o decréscimo no número de trabalhadores contrasta com relativo aumento

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da produção de veículos, ao menos até 1997, ao mesmo tempo em que há a diminuição


da representação dos salários se comparados à receita. Ou seja, há a diminuição de custos
com a redução de operários e com a menor participação dos salários na receita das
empresas. Mesmo havendo, ainda em 1998, outros centros industriais menos custosos, o
ABC paulista já se encontrava completamente submergido no assim chamado processo
de flexibilização do trabalho. Também se salienta que há o aumento dos empregados no
setor de serviços, como um reflexo do movimento da economia nacional. Processo que
se dá principalmente pela “desverticalização” da grande indústria, encontrando, nas
empresas que prestam serviço terceirizado, mão de obra para suprir as necessidades da
grande indústria (CONCEIÇÃO, 2006).
Entendendo-se que este processo sucede e é contemporâneo de um período de
estagnação econômica, com momentos de recessão, o emprego do toyotismo no Brasil
acaba se dando de forma inteiramente diferente do que ocorreu no Japão: “Naquele país,
as modificações compuseram um quadro de melhoria competitiva; no Brasil as melhorias
são defensivas, visam a permanência e não a conquista de novas fatias de mercado”
(LIMA, 2002, p. 222). Certamente, este é o momento em que a organização do trabalho
se articula da forma mais concreta possível no Brasil. A forma acelerada com que esse
processo se deu foi inclusive contrastante com o taylorismo, que sequer chegou a um
nível tão universal mesmo nos anos 1970.
Na região de Campinas, que se transformou também num importante polo
industrial nos anos 1990, há uma situação similar à do Grande ABC Paulista. E um dado
fundamental, que também indica as consequências da flexibilização do trabalho para os
trabalhadores, indica que, em Campinas a partir da década de 1990, a rotatividade passou
a ser maior dentre os trabalhadores mais longevos nas empresas. Santos (2015) mostra
como esse ponto interfere diretamente na vida dos trabalhadores seguindo o contexto
vigente àquele tempo

Do ponto de vista político, agora sob o processo de transformações técnicas e


organizacionais, os números da rotatividade sugerem que, sem abrir mão de uma força de
trabalho experiente no processo produtivo, as empresas passam a tornar vulnerável a
permanência desse perfil de trabalhador, deslocando-os entre o conjunto de plantas da
Região, aumentando a sensação de insegurança nessa parcela da categoria. Insegurança
reforçada pelo enorme número de demissões, como vimos, e pela terceirização (SANTOS,
2015, p. 174-5).

A semelhança nos indicadores quantitativos também se articula nas relações de


trabalho. Sabe-se que as grandes empresas de Campinas, em especial a unidade da
Toyota, aderiram em grande parte (após a década de 1990) ao modelo japonês. Isso
matrizava grandemente os processos seletivos, que além de serem voltados aos ditames
da flexibilização, consideravam também o histórico recente de lutas operárias no Brasil.

A Toyota de Indaiatuba tomou cuidado de recrutar preferencialmente trabalhadores mais


jovens e, portanto, pretensamente mais propensos a aceitar as regras e os ritmos impostos
diante da oportunidade de ingressar em uma multinacional meio à crise de desemprego. Além
disso, os jovens não trazem o acúmulo de lutas sindicais passadas, não tem conhecimentos
de seus direitos, tem mais vigor físico, acumulam informações em fragmentos que os ajudam
a se tornar generalista (SANTOS, 2015, p. 186).

Os empresários passaram a mudar as formas de abordagem a seus funcionários,


passando uma imagem pretensamente amigável e/ou democrática, eliminando desse

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modo a noção de hierarquia, como os próprios CCQs objetivavam. O trabalhador por sua
vez, temendo os altos índices de desemprego, opta pela colaboração dentro da fábrica e
recusa envolvimentos com sindicatos, levando em consideração, como mostrou Santos
(2015), o risco de se juntar a uma instituição ineficiente em termos de movimento
combativo, se submetendo assim as mazelas geradas pelo modelo enxuto de produção.
A queda no quantitativo de greves é um aspecto importante que mostra um refluxo
do movimento operário no ABC na década de 1990. Mas é ainda mais notória a redução
das pautas defendidas pelos sindicatos, que se voltaram às questões mais específicas, e
certamente mais restritas, do cotidiano laboral. A agenda sindical

se voltou para o interior da empresa, discutindo mais diretamente temas relacionados à


problemática do trabalho, sejam vinculados à organização e gestão do trabalho, sejam aquelas
questões relacionadas à remuneração variável, como a participação nos lucros e resultados
(PLR) ou, ainda, as que dizem respeito à flexibilização da jornada de trabalho como o banco
de horas, entre outras (RODRIGUES, 2002, p. 142).

A especificidade dessas pautas dificultava, por exemplo, a tentativa de união entre


trabalhadores de diferentes empresas, por haver uma articulação diferente em cada uma.
Um reflexo disso são as negociações feitas, em grande monta, separadamente, o que
ocorre também na justiça do trabalho (ALVES, 2002). Aliam-se a isto os aspectos
conjunturais preponderantes da década que apontaram para uma diminuição dos postos
de emprego na indústria – o que ocorre progressivamente desde a década de 1980 – e o
aumento da produtividade por trabalhador. Uma pesquisa feita por Rodrigues (2002)
acerca das negociações entre sindicatos em empresas no ABC durante a década de 1990
aponta que majoritariamente os temas mais envolvidos eram a participação nos lucros
(que não se confunde com salários) e a jornada de trabalho, ambos pontos nodais da nova
forma de organização do trabalho como consequência de uma atuação mais consistente
do toyotismo. Outras pautas como as condições de trabalho e a própria organização
sindical, tão importantes em outros tempos, passaram para um segundo plano.
Mais precisamente, chegou-se inclusive à deflagração de greves por questões
salariais e de tempo de trabalho. Tais greves incluíram a união entre os sindicatos de São
Bernardo e Campinas, que compreendiam as fábricas da Toyota e foram greves encaradas
pela empresa com intimidações e ameaças incisivas. Houve uma vitória aparente, mas a
empresa respondeu com demissões e promoções de alguns operários arrefecendo o
movimento nos anos seguintes (LIMA, 2002). Seja como for, este é um movimento único
em toda a década. Mas aqui se repete uma situação vista também em momentos de maior
volume do movimento operário: a não utilização de um preceito administrativo teórico,
específico, para lidar com as greves. Ou seja, nesse caso, as técnicas toyotistas podem
atuar arrefecendo movimentos operários preventivamente, atuando sobre a mobilização
sindical, ou mesmo diretamente sobre os operários que abandonavam as mobilizações por
conta do próprio cansaço, mas não tem acontecido o mesmo no enfrentamento das greves
deflagradas, sendo usadas, nesse ponto, medidas mais drásticas (como as intimidações).
Isto pode apontar para uma particularidade da administração nessa atuação sobre os
conflitos: uma força mais preventiva do que reativa à eclosão de conflitos. E nesse
particular, cabe menção à forma específica de entificação do toyotismo no Brasil. É
possível identificar que uma particularidade muito forte da sua generalização na indústria
automobilística foi relativo desenvolvimento produtivo, que incidiu sobre uma base
técnica em transição para a automação, mas restrito em níveis mundiais, diferentemente
do Japão. E que, por outro lado, ocasionou a diminuição de salários e redução de postos

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de trabalho, ao contrário de países desenvolvidos como os Estados Unidos. Assim no


Brasil a atuação do toyotismo foi muito mais sensível à classe trabalhadora no setor
automobilístico (GUEDES; MONTEIRO JÚNIOR, 2018).
Fica, particularmente, configurada a importância dos CCQs nas relações entre
capital e trabalho também, como um fator de redução das querelas que contribuía com a
inibição do espaço dos sindicatos, que por sua vez já não ofereciam resistência. A
formação de grupos reduzia a abrangência das pautas e diminuía a força dos trabalhadores
que estavam divididos (FERRO; GRANDE, 1997). Uma pesquisa de 1994 feita em uma
série de indústrias do setor metalomecânico de São Paulo mostrou que, não somente essa
técnica sobreviveu aos percalços iniciais da década anterior, mas evoluiu e, fazendo
ajustes em relação ao modelo japonês, se expandiu para grupos com objetivos
operacionais similares, mas que se formavam em situações mais contingenciais sob a
forma de “força-tarefa, times da qualidade, equipes de projetos etc.” (FERRO; GRANDE,
1997, p. 84). Essa expansão se dá num momento de plena escalada da reestruturação
produtiva no país e passa ilesa a questionamentos dos sindicatos a ponto de haver uma
postura categoricamente acrítica dos sindicatos a seu respeito:

A resistência dos sindicatos, apontada como um dos fatores que mais afetou o
desenvolvimento dos Círculos nas organizações brasileiras na década passada, não foi
considerada uma oposição relevante nos casos estudados. Mesmo outros fatores, como a crise
econômica e as demissões, citados na literatura como um impedimento à consolidação do
CCQ nas empresas durante a década de 80, parecem não se ter constituído em obstáculo ao
seu desenvolvimento na visão das empresas (FERRO; GRANDE, 1997, p. 84).

Todo esse processo coincide com a diminuição da força do movimento operário


num momento em que este já estava tomado pelas “lutas diminutas”, ou seja, os embates
cotidianos no interior das fábricas. Os aspectos do toyotismo que se destacam atuando
como ideologia no Brasil se evidenciam muito claramente neste final do século XX
contribuindo juntamente com fatores que já estavam presentes anteriormente como o
direito, mas de uma forma mais direta, uma vez que a década de 1990 é marcada pela
diminuição da repressão tão presente em tempos anteriores. A diminuição das greves tem
menor participação do direito, ainda que ele continue atuando na resolução de
negociações individuais dos trabalhadores. A atuação do toyotismo adquire assim uma
posição sem precedentes inclusive na história da prática administrativa no país.

Considerações finais
A década de 1990 é o período em que, de fato, “medidas toyotistas” (não puras)
encontram condições materiais amplamente favoráveis para penetrar profundamente as
raízes da indústria e do capital brasileiros. Os indicadores econômicos apontavam a
tendência para a acentuação da exploração do trabalhador, ainda que não necessariamente
concorrente com o aumento da taxa de investimento que se manteve oscilante,
sublinhando o caráter defensivo do toyotismo pelo capital produtivo nacional. Os
sindicatos e o movimento operário em geral perdem a força, principalmente pela
fragmentação das lutas, com as unidades fabris sendo pulverizadas, a produção
horizontalizada, desconcentrando a localização dos trabalhadores e ocorrendo a própria
diminuição do quantitativo de operários. Há também a opção de luta através de instâncias
de debates, evidentemente conservadoras e que permitem menor participação aos
trabalhadores. Esses pontos relacionados aos sindicatos configuram uma atuação do
toyotismo como ideologia, primeiramente por serem produto da atuação da reestruturação

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produtiva no plano macroeconômico, que pressiona a força dos sindicatos, com a


diminuição do número de trabalhadores e influenciam na formação das câmaras setoriais,
também notadamente, há a difusão e atuação direta dos CCQs. Eles passam a ser o espaço
de participação dos trabalhadores para colocarem seus problemas em pauta, mas são
evidentemente um espaço aberto na empresa, com a participação de gestores e que
abrange problemas eminentemente operacionais que que dizem respeito aos problemas
da indústria. Restringem as querelas e enfraquecem a combatividade.
A redução de salários, diminuição de postos de trabalho, aumento da taxa de
desemprego, desorganização de sindicatos e trabalhadores, acentuação da exploração do
trabalho, elementos macroeconômicos tendentes eram diretamente impactados pelas
técnicas toyotistas. O toyotismo agiu diretamente nesses aspectos, como uma expressão
prática e organizacional sobre o processo de trabalho que viabilizava essas tendências e
isto o coloca em posição mais preponderante do que o “humanismo”, por exemplo, já que
este não toca nessas questões técnicas diretamente. O toyotismo age como ideologia
definitivamente atuando em aspectos fundamentais para a redução das lutas dos
trabalhadores de um modo geral. É assim que atua nos conflitos. Mas essa mesma força
não pode ser vista na contenção dos conflitos em disputa: no caso da greve da Toyota em
Indaiatuba, as ameaças, demissões e outras estratégias advindas da direção não são
exatamente técnicas desse modelo de gestão e isso pode ser fundamental para determinar
as possibilidades de efetivação como ideologia, isto é, tem um potencial maior na
prevenção dos movimentos, haja visto os dados probantes do arrefecimento das lutas, do
que na reação a eles como se vê nas análises específicas das greves.
É preciso ponderar, por fim, que o que se viu aqui não é definitivo e a questão dos
conflitos pode ter vista o surgimento de outras forças de combate. Demarcou-se a
aproximação do que podem ser os limites da atuação da administração na história do
capitalismo brasileiro, esforço que deve ser continuado com a reunião de mais dados
decisivos e a compreensão de períodos outros, sobretudo os mais recentes.

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151
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

Os perigos da sedução romântica ao marxismo

Lucas Parreira Álvares


Universidade Federal de Minas Gerais
lucasparreira1@gmail.com

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo, dentro de seus limites, compreender a
relação existente entre o pensamento de Karl Marx e a tradição romântica. Para tanto,
utilizará dos debates do velho mouro sobre a situação das comunas rurais na Rússia e da
interpretação que o sociólogo brasileiro/francês Michael Lowy faz desses escritos de
Marx associando-os a uma espécie de “romantismo revolucionário”. No plano de fundo
desse objetivo central, o presente trabalho compreende também o desenvolvimento do
interesse de Marx tanto pela literatura sobre as comunas rurais russas quanto pelos
aspectos sociais daquele país.
Palavras Chave: Marxismo; Romantismo; Pré-Capitalismo; Via Russa

The dangers of romantic seduction to Marxism

Abstract: This work has as its objective, within its limits, to understand the relation
existing between the thought of Karl Marx and the romantic tradition. To do so, he will
use Marx's debates about the situation of rural communes in Russia and the interpretation
that the Brazilian/French sociologist Michael Lowy makes of these writings of Marx
associating them with a kind of "revolutionary romanticism." In the background of this
central objective, the present work also includes the development of Marx's interest in the
literature on Russian rural communes and also on the social aspects of that country.
Keywords: Marxism, Romantism, Pré-capitalism, Russian Road

1. A sedução romântica ao marxismo

A publicação da obra Lutas de classes na Rússia pela Editora Boitempo,


organizada por Michael Löwy, contém alguns dos textos mais importantes dos últimos
anos de vida de Marx1, a saber, os rascunhos elaborados para confecção de uma carta em
resposta a questionamentos da revolucionária russa Vera Ivanovna Zasulitch2. Adiante,
voltaremos nossa atenção tanto para a carta de Vera Zasulitch, quanto para os rascunhos
e a resposta de Marx. No momento, porém, analisaremos uma passagem da introdução de

1
A primeira publicação dos rascunhos e das cartas está na obra Dilemas do Socialismo: Marx, Engels e os
Populistas Russos, de 1982 sob organização de Rubem César Fernandes pela editora Paz e Terra.
Recentemente, foi publicada também na recém publicada Marx e a via Russa, de Teodor Shanin, que
contém, dentre outros textos, os rascunhos e cartas de Marx a Zasulitch.
2
“Podemos dividir a organização da obra Lutas de Classes na Rússia em três partes: a primeira com a
Literatura de Refugiados V, que reúne textos de Engels publicados em 1875 (...) A segunda parte da obra
podemos atribuir à Carta à redação da Otechestvenye Zapiski – relevante revista de São Petersburgo
alinhada aos populistas russos – de autoria de Karl Marx, com a intenção de ser enviada à redação da revista.
(...) A terceira parte de Lutas de Classe na Rússia diz respeito ao debate de Marx com a revolucionária Vera
Ivanovna Zasulitch, integrante do grupo revolucionário russo “Emancipação do Trabalho”. Na edição, o
texto que antecede a discussão entre os revolucionários é uma introdução produzida por David Riazanov2
com o título “Vera Zasulitch e Karl Marx” (ÁLVARES, 2015).

152
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais
Michael Löwy – cujo título é Dialética revolucionária contra a ideologia burguesa de
“Progresso” [marcação do autor] – à obra Luta de Classes na Rússia. Para Löwy, a partir
dos textos de Marx sobre a Rússia é possível encontrar

“uma dialética tipicamente romântico-revolucionária entre o passado e o


futuro, inspirada pelos trabalhos sobre o comunismo primitivo de historiadores
e antropólogos (românticos) como Georg Maurer e Lewis Morgan,
frequentemente citados por Marx e Engels.” (LÖWY; 2015, p.13)

Löwy desliza em cada elemento dessa passagem: nem se trata de uma “dialética
tipicamente romântico-revolucionária entre o passado e o futuro”, nem esses autores
produziram “trabalhos sobre o comunismo primitivo”, nem Maurer e Morgan eram
“românticos” e tampouco esses dois aurores foram “frequentemente” citados por Marx e
Engels. O desenvolvimento desse trabalho apresentará contraposições a cada elemento
dessa passagem de Löwy. Mas, para isso, é necessário compreender o que Lowy entende
enquanto “romantismo-revolucionário”.
No ano de 1992 veio a público a obra Révolte et Mélancolie: le romantisme à
contre-courant de la modernité, de autoria do sociólogo aqui em questão, Michael Löwy,
juntamente com o linguista Robert Sayre3. Tal obra propõe uma interpretação mais
abrangente do romantismo não o reduzindo meramente a uma corrente literária-artística
– o que já não seria pouco – como também o apresentando como um movimento de
resistência e reação ao modo de vida na sociedade capitalista moderna (LOWY; SAYRE,
2015, p.38). Lowy e Sayre elaboraram uma extensa tipologia desse movimento, “variando
da direita para a esquerda do espectro político” (LOWY; SAYRE, 2015, p.85-86),
distinguindo-o entre: 1) Restitucionista; 2) Conservador; 3) Fascista; 4) Resignado; 5)
Reformador; 6) Revolucionário e/ou Utópico4.
A peculiaridade dessa tipologia, “foi também estabelecer, no interior do
romantismo “Revolucionário e/ou Utópico”, suas diversas tendências: a) Jacobino-
democrática; b) Populista; c) Socialista utópico-humanista; d) Libertária; e) Marxista5.
Para Löwy (2015, p.112-113) – e Sayre, embora certamente essa é uma
abordagem do sociólogo, afinal está presente em outras de suas obras – o que distingue o
romantismo-revolucionário-marxista de outras correntes com sensibilidade romântica é a
preocupação central com alguns problemas essenciais do marxismo, a saber: “a luta de
classes, o papel do proletariado como classe universal emancipadora, a possibilidade de
utilizar as forças produtivas modernas em uma economia socialista”, entre outros
aspectos. E assim, cita alguns autores que, pela visão dos autores, compartilhariam dessa
abordagem romântica-revolucionária-marxista, dentre eles: E. P. Thompson, Raymond
Williams, György Lukács, Ernest Bloch, Walter Benjamin, Marcuse, Lefebvre, e William
Morris (esse que seria seu exemplo mais autêntico). Mas para além desses intelectuais,
Löwy e Sayre dedicam todo um capítulo de Revolta e Melancolia ao suposto romantismo
de Marx.

3
As edições brasileiras são duas: em 1995 pela Paz e Terra; e em 2015 uma reimpressão pela Editora
Boitempo.
4
Com exceção do tipo “Revolucionário e/ou Utópico”, o presente artigo não se aprofundará nas demais
tendências, afinal, a análise do romantismo como um todo não é o objeto desse artigo. Para mais, vide:
LOWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e Melancolia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015, p.85-112.
5
Com exceção do tipo “Revolucionário e/ou Utópico”, o presente trabalho não pretende se aprofundar nas
demais tendências do romantismo de Löwy e Sayre, afinal, a análise desse movimento como um todo não
é o objeto desse trabalho. Para mais, vide: LOWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e Melancolia. São
Paulo: Boitempo Editorial, 2015, p.85-112.

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais
Para fins de compreensão, consideremos que exista um amálgama no que se
refere às assim chamadas “fontes do marxismo”. A literatura marxista, a partir de Engels,
atribuiu a três as fontes importantes que influenciaram o pensamento de Marx: o
Idealismo Alemão, o Socialismo Utópico Francês e a Economia Política Inglesa. Para
Michael Löwy, existe uma quarta fonte que influencia o pensamento de Marx, o
Romantismo6. Essa influência do pensamento romântico no trabalho de Marx teria
ocorrido desde os primeiros trabalhos do velho mouro, embora Löwy admita que “após
converter-se à dialética hegeliana, ao materialismo e à filosofia da práxis (1840-1845),
Marx rompe com esse primeiro romantismo juvenil” (2015, p.120). Até mesmo Löwy
sabe muito bem que “no Manifesto Comunista (1848), Marx taxa de “reacionário”
qualquer sonho de voltar ao artesanato ou a outros modos pré-capitalistas de produção”
(p.120). Entretanto, independentemente dessa análise dos primeiros anos de produção
teórica de Marx, Löwy ainda admite uma influência do pensamento romântico em Marx:

“Numa atitude tipicamente dialética, [Marx] vê o capitalismo como um sistema


que transforma todo o progresso econômico em uma calamidade pública. É na
análise das devastações sociais provocadas pela civilização capitalista – bem
como em seu interesse pelas comunidades pré-capitalistas – que ele se junta,
pelo menos em certa medida, à tradição romântica” (LOWY, 2015, p.120)

Seguindo a exposição do autor, Löwy apresenta alguns “críticos românticos” que


teriam influenciado a obra de Marx, como por exemplo: o economista Sismondi; o
populista russo Danielson; escritores como Dickens e Balzac; filósofos como Carlyle; e
claro, não poderiam faltar os historiadores e antropólogos “românticos” – sob o olhar de
Löwy - como os já supracitados George Maurer e Lewis Morgan. Mas o ponto central
aqui, é que em sua introdução à Lutas de Classes na Rússia, o que Löwy associa àqueles
escritos de Marx ao tratar da comuna rural russa com o pensamento romântico é
exatamente o “seu interesse pelas comunidades pré-capitalistas”. Proponho então
analisarmos o desenvolvimento do interesse e dos estudos de Marx sobre a Rússia afim
de que possamos compreender o sentido em que essas investigações foram realizadas. E,
por fim, se é correto ou não atribuir a característica de romântico ao interesse de Marx
pelas comunidades “pré-capitalistas”.

2. Os perigos da sedução romântica ao marxismo

A seção IV do Manifesto Comunista é dedicada à “posição dos comunistas diante


dos diversos partidos de oposição”. Naquele momento, os comunistas lutavam “pelos
interesses e objetivos imediatos da classe operária”, mas, ao mesmo tempo, defendiam e
representavam “no movimento atual, o futuro do movimento” (MARX; ENGELS, 2010,
p.68). Assim, através do Manifesto, os comunistas se posicionaram de acordo com o
contexto de alguns países da Europa, que se conformava como “um campo limitado do
movimento proletário” (p.72) da época: na França se aliaram ao partido social-democrata;
na Suíça apoiaram os radicais; na Polônia os democratas revolucionários; e na Alemanha

6
Em Revolta e Melancolia, Löwy afirma que “o romantismo é uma das fontes esquecidas de Marx e Engels,
uma fonte que talvez seja tão importante para o trabalho deles quanto o neo-hegelianismo alemão ou o
materialismo francês” (2015, p.120-121). Além dessa passagem, Löwy afirma categoricamente em um
vídeo que considera o Romantismo como a quarta fonte de Marx, Engels e do pensamento marxista. Vide:
https://www.youtube.com/watch?v=oIT1Oho1srk. Teodor Shanin também não escapa desse “amálgama”
em apontar que, em sua visão, existe também uma quarta influência ao pensamento de Marx, mas, diferente
de Lowy, Shanin se refere ao populismo russo (SHANIN, 2017, p.52)

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais
o partido comunista (p.68-69). Percebam que a Rússia sequer foi mencionada nessa seção.
Existe, entretanto, um motivo.
O prefácio à edição russa do Manifesto Comunista de 1882, assinado por Marx
e Engels, é um documento especialmente interessante. Esse trabalho, de apenas seis
parágrafos, constitui, para Kevin Anderson (2010, p.197), como a única publicação de
Marx que estava em consonância com os trabalhos que o velho mouro vinha
desenvolvendo no decorrer da década de 70 e início da década de 80 do Século XIX até
sua morte, sobre sociedades pré-capitalistas para além da Europa ocidental7. A Rússia
passou por transformações significativas desde a publicação do Manifesto em 1848 até o
prefácio à edição russa do Manifesto, já em 18828. E essas transformações foram
ressaltadas pelo prefácio, que exprimia o fato de que, na época da publicação original do
Manifesto, “a Rússia se constituía na última grande reserva da reação europeia”; era a
Rússia um dos países que “proviam a Europa de matérias-primas, sendo ao mesmo tempo
mercado para venda de seus produtos industriais” e, de uma maneira ou de outra, era pilar
da ordem europeia vigente (MARX; ENGELS, 2010, p.73). Mas foi após a publicação do
Tomo I de O Capital que a Rússia figurou como um elemento determinante na vida de
Marx, não apenas pelo interesse teórico que aquele país de dimensões continentais
possuía, como também um interesse político, afinal, Marx era o responsável dentro do
Comitê Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores de estabelecer relações com
a Rússia.
Teodor Shanin aponta para quatro eventos que aparecem como marcos na
experiência política e intelectual para o pensamento de Marx no período pós publicação
de O Capital (ou seja, após 1867): O primeiro, a Comuna de Paris, de 1871, que ofereceu
uma lição dramática e um tipo de poder revolucionário nunca visto antes; segundo um
grande avanço no campo da produção de conhecimento, que foi a descoberta da “pré-
história”, que trouxe as sociedades “primitivas” para dentro de um espaço de estudos
históricos e etnológicos; terceiro a ampliação do conhecimento das sociedades rurais não
capitalistas inseridas em um mundo capitalista; e quarto a Rússia e os russos deram a
Marx uma potente combinação: a rica evidência sobre as comunidades rurais e a
experiência revolucionária direta, tudo isso junto com a teoria e a prática do populismo
revolucionário russo (SHANIN, 2017, p.31).
O desenvolvimento dos estudos de Marx sobre a Rússia se deu,
concomitantemente, ao desenvolvimento do capitalismo naquele país.
Naquela época, ao passo em que Marx desenvolvia suas investigações, por volta
de 3/5 das terras cultiváveis da Rússia europeia estavam nas mãos das comunas
camponesas. O modo de funcionamento da divisão da propriedade nessas comunas se

7
Mesmo assim, com uma peculiaridade que não pode deixar de ser notada, como demonstra a japonesa
Haruki Wada: “o manuscrito do prefácio, marcado ‘Londres, 21 de fevereiro de 1881, foi rascunhado por
Engels; Marx fez apenas uma correção mínima e colocou sua assinatura. Diante do fato de que o manuscrito
que temos hoje tem uma passagem no fim que foi escrita uma vez, rasurada, e não reescrita, é possível vê-
lo como uma cópia limpa que Engels transcreveu ainda de outro manuscrito. Todos esses fatores nos levam
a concluir que Marx, que estava desanimado na época, pediu a Engels para fazer um rascunho e o assinou.
Que Marx não ficou totalmente satisfeito com o resultado pode ser deduzido da carta que ele mandou a
Lavrov com o manuscrito: ‘se esta peça, que é para a tradução do russo, for para ser publicada como está,
em alemão, ainda precisa de toques finais em seu estilo’” (2017, p.116). Mesmo o único texto produzido
por Marx como resultado das investigações finais de sua vida é dotado de uma complexidade quanto à sua
produção.
8
Interessante adensar a esse ponto, o fato de que os estudos russos que Marx avançou até ali, “foram
interrompidos por um tempo considerável pela Comuna de Paris e, depois da derrota, pela luta interna
dentro da internacional. Foi só depois do congresso de Haia de setembro de 1872 que ele voltou à teoria e
à questão russa” (WADA, 2017, p.84)

155
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais
conformava da seguinte maneira: cada família detinha apenas um pequeno pedaço de
terra, que concernia a uma casa e um jardim, além de seus animais e equipamentos. O uso
da terra cultivável era atribuído para uma família pela comuna em termos de longo prazo,
os prados eram redefinidos todo ano e com frequência eram trabalhados coletivamente.
Já os pastos e florestas eram de uso comum. Muitos serviços vitais eram realizados
coletivamente: o pastoreio da aldeia, as guardas locais, o cuidado com os órfãos, entre
tantos outros. A divisão dos cargos eram decididas através de uma assembleia dos chefes
de família. Em grande parte dessas comunas, essa assembleia era também responsável
por dividir, periodicamente, as terras cultiváveis entre as famílias. (SHANIN, p.38-39)
Durante toda a extensão da década de 70, bem como do início da década de 80
do Século XIX até sua morte, Marx investigou extensamente a literatura russa - sobretudo
no que concernia à questão da propriedade comunal da terra. O próprio Marx relatou que
em sua biblioteca continha aproximadamente 200 livros no idioma russo9, o que é
impressionante considerando o fato de que no início do ano de 1870 Marx sequer tinha
domínio sob tal idioma. O ponto de partida para que Marx aprendesse o idioma russo se
deu devido ao fato de que seu amigo Nicolai Danielson (1844-1918), importante populista
russo e um dos principais expoentes do marxismo naquele país, presenteou Marx com a
obra A situação da classe operária na Rússia, de autoria de Flerovsky, em outubro de
1869. Relatos datam que em fevereiro do ano seguinte Marx já iniciara suas investigações
sobre o livro russo. Em carta a Engels no dia 10 de fevereiro de 1870, Marx afirma que
“em qualquer circunstância, esse é o livro mais importante que apareceu desde o seu A
situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, em referência ao livro de Engels de 1844
(SAYER, 2017, p.211-212). Também em uma carta a Engels, nessa mesma época, a
esposa de Marx mencionou que “ele começou a estudar russo como se fosse uma questão
de vida ou morte”, e, assim, aliando “o útil ao agradável”, o modo pelo qual se deu o
aprimoramento de Marx junto ao idioma foi através de leituras de autores que debatiam
tais temas, como Herzen e principalmente Tchernichevski.
Na edição francesa de O Capital algumas modificações ocorreram na exposição
final da obra, provavelmente em função dessas novas leituras. Foi retirado, por exemplo,
o “assim chamado” do título do capítulo 24 de O Capital, constando apenas o Acumulação
Primitiva. Além disso, foi suprimida uma nota na qual Marx criticava Herzen, autor russo
que se alinhava com as perspectivas do conhecido grupo Populistas Russos. Também,
uma das passagens clássicas do capítulo 24 foi substituída. Onde se lia que:

“A expropriação da terra que antes pertencia ao produtor rural, ao camponês,


constitui a base de todo o processo. Sua história assume tonalidades distintas
nos diversos países e percorre as várias fases em sucessão diversa e em
diferentes épocas históricas. Apenas na Inglaterra, e por isso tomamos esse
país como exemplo, tal expropriação se apresenta em sua forma clássica”
(MARX, 2013a, p.963)

Passou-se a ler:

“No cerne do sistema capitalista está, portanto, a separação radical do produtor


e dos seus meios de produção (...) A base de toda essa evolução é a
expropriação dos camponeses. Isso só se realizou até sua forma final na
Inglaterra (...), mas todos os outros países na europa ocidental estão seguindo
o mesmo movimento” (MARX, 1872-1875; p.315).

9
“[após Marx retornar a] Londres, compila a lista dos ‘livros russos em minha estante’ – perto de 200
títulos” (SAYER, 2017, p.241).

156
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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais
Uma implicação óbvia dessa correção é que a forma inglesa de expropriação dos
camponeses é aplicável apenas à Europa ocidental, ou seja, a Europa oriental e a Rússia
poderiam ter um desenvolvimento diferente (WADA, 2017, p.88). No ano de 1877 veio
a acontecer a guerra russo-turca, o que deu aos socialistas a esperança de desencadear
uma revolução na Rússia. Essa expectativa pode ser notada, por exemplo, em uma carta
que Marx enviou a Sorge, no dia 27 de setembro daquele ano, dizendo:

“Essa crise é um novo momento decisivo na história da europa. A Rússia – eu


estudei a situação desse país com base em fontes oficiais e não oficiais em
russo – esteve por um longo período à beira da revolução. Todos os fatores
para isso já estavam presentes (...) Se a mãe natureza não for
extraordinariamente dura conosco, talvez nós possamos viver o suficiente para
ver o dia maravilhoso da cerimônia. A revolução, neste tempo, começa do
Leste, esse mesmo Leste que nós por tanto tempo consideramos como o apoio
invencível da contrarrevolução” (MARX, apud WADA, 2017, p.96).

Em fevereiro de 1881, Vera Zasulitch, populista russa ligada à ramificação


Repartição Negra envia a Marx uma carta cujo o interesse estava em acordo com o
desenvolvimento das pesquisas que o velho mouro desenvolvia. Vera queria saber sobre
o destino da comuna rural russa e sobre “a teoria da necessidade histórica de que todos os
países do mundo passem por todas as fases de produção capitalista” (ZASULITCH, 2013,
p. 80). Marx, naquele mesmo mês, elaborou alguns extensos rascunhos como respostas a
serem enviadas à Vera. Mas sua resposta, em contrapartida, deu-se através de uma
pequena carta, que tinha como cerne a noção de que a assim chamada “fatalidade
histórica” desse processo “estava restrita aos países da Europa ocidental” e que os estudos
que desenvolveu o convenceram de que “essa comuna é a alavanca da regeneração social
na Rússia” (MARX, 2013b, p.114-115).
O entusiasmo de Löwy junto a essa carta, bem como os rascunhos que a
antecederam, reside no fato de que, para o sociólogo brasileiro/francês, esses escritos,
“significam uma ruptura profunda com qualquer interpretação unilinear, evolucionista,
“etapista” e eurocêntrica do materialismo histórico” (LÖWY, 2013, p.9). Löwy continua:
“a partir de 1877, eles sugerem, ainda que não de forma desenvolvida, uma perspectiva
dialética, policêntrica, que admite uma multiplicidade de formas de transformação
histórica, e, sobretudo, a possibilidade que as revoluções sociais modernas comecem na
periferia do sistema capitalista e não, como afirmavam alguns de seus escritos anteriores,
no centro”. E termina: “trata-se de uma verdadeira “virada” metodológica, política e
estratégica” (p.9). Ao tratar de Marx, parece-me correto afirmar que esses textos estão em
desacordo com uma interpretação “unilinear, evolucionista, etapista e eurocêntrica” do
assim chamado materialismo histórico. Entretanto, isso não se configura como uma
novidade no pensamento do velho mouro. Já em 1857, cerca de 20 anos antes, o capítulo
dos Grundrisse intitulado Formas que precederam a produção capitalista já deixava essa
abordagem implícita, e no capítulo A assim chamada acumulação primitiva, na citação
que mencionamos a pouco, essa perspectiva aparece de maneira explícita.
Parece-me que a proximidade com que Löwy associa o interesse de Marx junto
as formas pré-capitalistas e o pensamento romântico se dá através de um desarranjo que
não se configura no desenvolvimento do pensamento de Marx. Esse “desarranjo”, que se
constitui enquanto ponto central desse trabalho, se conforma da seguinte maneira: Löwy
associa a “romantismo” o que Marx tratou enquanto “regeneração”. Marx afirma que essa
“regeneração” que levaria a Rússia ao “novo sistema para o qual tende a sociedade
moderna, será uma reinvenção, em uma forma superior, de um tipo social arcaico”
(MARXb, 2013, p.91). A citação é clara, mas percebam como que Marx não propõe um
retorno ao modo arcaico, mas sim, uma reinvenção desse modo, principalmente no que

157
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concernia às suas características coletivas. Se não houvesse uma reinvenção desse modo,
não se trataria de uma perspectiva revolucionária, afinal, como o próprio Marx menciona,
“não é do passado, mas unicamente do futuro, que a revolução social do Século XIX pode
colher a sua poesia” (MARX, 2011, p.28). Ao tempo em que a perspectiva de Löwy do
anticapitalismo romântico busque um retorno às formas que precederam o capitalismo,
uma dura conclusão aqui já nos é inevitável, a saber: “romantismo-revolucionário” nada
mais é do que um oximoro.
A compreensão do romantismo em Löwy não parte do modo pelo qual esse
movimento se conforma na realidade, mas sim de uma suposição ideal do que o autor
acredita que esse movimento é. O movimento romântico, em Löwy, aparece como um
modelo acabado na medida em que, a partir desse modelo, são incluídos, ou não, autores
que estudam determinados assuntos ou que, em seus textos, apresentam determinadas
influências que se aproximam da sua perspectiva romântica. É importante mencionar,
nesse aspecto, como já salientava Marx e Engels (2010, p.119), que “o método
materialista se converte em sua antítese quando é utilizado não como fio condutor na
investigação histórica, mas como um modelo acabado a que há que adaptar os fatos
históricos”. Dessa forma, ao considerar o mero interesse de investigação em formas pré-
capitalistas como uma prática romântica, Löwy abre o precedente para considerarmos não
só que existe uma vertente romântica no pensamento de Marx como também que, a
antropologia, em si, seria um campo de conhecimento essencialmente romântico. A
história, consequentemente, também seria. O marxismo, que em grande medida busca a
gêsese do objeto ao rastrear o seu nexo interno, também teria sua vertente romântica. Esse
que vos fala, mesmo ao criticar o romantismo como intuito desse texto, seria um
romântico por estar interessado em investigar as formas pré-capitalistas no pensamento
de Marx. Cairíamos portanto em um círculo vicioso ao caracterizarmos tudo como
romântico, exceto o que não é. Quando Löwy caracteriza toda a extensão dos movimentos
que se opõem à modernidade como “românticos”, ele se assemelha à ironia que Jorge
Luis Borges (2000, p.76) traz ao mencionar a enciclopédia chinesa do doutor Franz
Kuhn, um modo curioso de classificação dos animais que se dividiriam em categorias,
dentre elas, “os que estão incluídos nessa classificação” e os “etcétera” (os que pertencem
ao imperador, e os que de longe parecem moscas).
Por isso que, embora Marx constate que Sismondi – o mais renomado dos
economistas românticos clássicos – tenha identificado contradições no modo de produção
capitalista, essa constatação não impossibilitou que, no Manifesto Comunista, Marx
critique especificamente o chamado “socialismo pequeno-burguês”, principalmente
através da figura de Sismondi. É interessante notar que na seção “literatura socialista e
comunista” do Manifesto, o tópico que mais se assemelha à crítica romântica é esse
mencionado, o “socialismo pequeno-burguês” – mesmo porquê é o tópico em que o nome
de Sismondi é citado. Porém a abrangência que Löwy deu a sua concepção de
Romantismo faz com que o assim chamado “socialismo feudal”, também criticado por
Marx, esteja incluído nas concepções de romantismo revolucionário do sociólogo
brasileiro/francês, afinal, a partir da “velha fraseologia da restauração”, Marx e Engels
(2010, p.59-60) apresentam que o surgimento do socialismo feudal se deu “em parte
lamento, em parte pasquim; em parte ecos do passado, em parte ameaças ao futuro” e “se
por vezes a sua crítica amarga, mordaz e espirituosa feriu a burguesia no coração, sua
impotência absoluta em compreender a marcha da história moderna terminou sempre
produzindo um efeito cômico”. Ao tempo em que Löwy agrega o socialismo pequeno-
burguês junto do socialismo feudal como se ambos fizessem parte do assim chamado
“romantismo revolucionário”, Marx e Engels, em uma seção do Manifesto na qual o

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intuito era exatamente criticar a literatura socialista, atribuiu a essas duas formas a
alcunha de “socialismo reacionário”.
Marx produziu intermináveis passagens críticas ao romantismo. Nos Grundrisse,
em uma passagem que é importante a Lukács para sua crítica ao anticapitalismo
romântico, Marx diz que:

“A conexão é um produto dos indivíduos. É um produto histórico. Faz parte de


uma determinada fase de seu desenvolvimento. (...) O grau e a universalidade
do desenvolvimento das capacidades em que essa individualidade se torna
possível pressupõem justamente a produção sobre a base dos valores de troca,
que, com a universalidade do estranhamento do indivíduo de si e dos outros,
primeiro produz a universalidade e multilateralidade de suas relações e
habilidades. Em estágios anteriores de desenvolvimento, o indivíduo singular
aparece mais completo precisamente porque não elaborou ainda a plenitude de
suas relações e não as pôs diante de si como poderes e relações sociais
independentes dele. É tão ridículo ter nostalgia daquela plenitude original: da
mesma forma, é ridícula a crença de que é preciso permanecer naquele
completo esvaziamento. O ponto de vista burguês jamais foi além da oposição
a tal visão romântica e, por isso, como legítima antítese, a visão romântica o
acompanhará até seu bem-aventurado fim. (2011, p.164-165)”

Já em O Capital, Marx faz duras críticas aos românticos Adam Müller – o chama
de “romântico sicofanta” (MARX, 2013a, p.1158) - e Edmund Burke – novamente, “esse
sicofanta, que a soldo da oligarquia inglesa desempenhou o papel de romântico contra a
revolução francesa” (p.1482). E mesmo se considerarmos o ponto de vista – equivocado
– de Löwy de que Lewis Morgan seja um pensador romântico, Marx, inclusive nos
próprios rascunhos à Vera Zasulitch, remete a Morgan como “um autor norte-americano
nem um pouco suspeito de tendências revolucionárias e que em seus trabalhos contou
com o apoio do governo de Washington” (MARX, 2013b, 2013, p.91). As críticas de
Marx ao romantismo é um trabalho ainda a ser feito. E será árduo a quem o realizar,
afinal, suas considerações críticas partem desde um texto de juventude como O manifesto
filosófico da escola histórica de direito, de 1842, até as formulações críticas que podem
ser extraídas em suas últimas investigações. Mas, por hora, algumas observações já
podem ser obtidas até então.

Considerações finais

A Rússia esteve presente em três aspectos do vida final do pensamento de Marx:


a primeira como fruto de investigações teóricas; a segunda como uma localidade na qual
Marx era responsável por se corresponder dentro da Associação Internacional do
Trabalho; e a terceira através da preocupação que Marx tinha com o modo pelo qual seus
textos repercutiriam na Rússia. Esse último aspecto é importante na medida em que na
última carta em que Marx trata da Rússia, em dezembro de 1882, ou seja, meses antes de
sua morte, ele diz a sua filha Laura Lafargue: “algumas publicações russas recentes (...)
mostram o grande avanço de minhas teorias nesse país. Em nenhum lugar meu Êxito é
mais agradável. Me dá satisfação saber que eu prejudico um poder que é, ao lado da
Inglaterra, o verdadeiro baluarte da antiga sociedade” (MARX apud WADA, 2017,
p.117).
O seu interesse pela Rússia, embora não esteja trabalhando conceitualmente com
essa questão, nos oferece provas de sua relação com o pensamento romântico. A
conclusão, nessa altura, já é evidente – e com ela, encerro minha exposição: ao ponto em
que Löwy buscou aproximar a perspectiva romântica da obra de Marx, esse, em

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contrapartida, procurou se distanciar, em toda a extensão de sua obra, dessa perspectiva.
E nesse aspecto, nenhuma outra evidência no que diz respeito à diferença de abordagem
desses autores, fica tão bem expressa quanto nos textos em que Marx tratou da Rússia, e
na interpretação que Michael Löwy faz desses textos de Marx.

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

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Tardio e a Via Russa: Marx e as periferias do capitalismo. São Paulo: Expressão
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ACUMULAÇÃO ATRÓFICA DE CAPITAL E ORGANIZAÇÃO DO


TRABALHO NA INDÚSTRIA TÊXTIL BRASILEIRA (1900-1950)1

Elcemir Paço Cunha


Universidade Federal de Juiz de Fora
paco.cunha@facc.ufjf.br

Resumo
O objetivo do artigo é demonstrar que o processo de acumulação atrófica no Brasil
tornou-se impeditiva, pelo menos até 1950, de formas de organização do trabalho no setor
têxtil orientadas para a intensificação do trabalho por meio de expedientes como o
taylorismo e o fordismo. Ao analisar os indicadores da acumulação de capital para o setor
têxtil, verifica-se simultaneamente crescimento da composição técnica do capital embora
queda na produtividade do capital e da força de trabalho.
Palavras-chave: acumulação; setor têxtil; organização do trabalho.

ATROFIC CAPITAL ACCUMULATION AND ORGANISATION OF LABOUR


IN BRAZILIAN TEXTILE INDUSTRY (1900-1950)

Abstract
The objective of this paper is to show that an atrophic accumulation process in Brazil
become restrictive, at least until 1950, to forms of organization of labor based on labor
intensification through means as Taylorism and Fordism. Analyzing some capital
accumulation data of textile sector, we can see simultaneously a technical composition of
capital growth despite of a downgrade of capital and labor productivity.
Keywords: accumulation; textile sector; organization of labor.

1. Introdução
O presente trabalho apresenta um estudo acerca da acumulação de capital no
Brasil, particularmente no setor têxtil, procurando contribuir para o debate acerca da
organização do trabalho.
Conforme mostraremos na próxima sessão, o debate a respeito das influências do
taylorismo e do fordismo na primeira metade do século XX esbarra na dificuldade de
acesso direto às modalidades de organização do trabalho e, por isso, limita-se no mais das
vezes ao discurso do empresariado daquele período.
A contribuição principal do artigo é explorar a unidade entre, de um lado, a base
técnica e a organização do trabalho e, de outro, o processo de acumulação ao fundo. Uma
vez que o acesso a dados diretos é impedido concretamente, propõem-se uma inversão,
investigando o estágio da acumulação de capital como condição de possibilidade para
mudanças técnicas que, por sua vez, condiciona a organização do trabalho. O argumento
principal está baseado nessa relação de modo que a investigação do estágio de
acumulação tem muito a dizer sobre as possibilidades das condições técnicas e do
trabalho. Nesse sentido, a pesquisa é precipuamente baseada em dados da economia
brasileira extraídos do IBGE e de fontes secundárias como pesquisas já realizadas.
Para levar o objetivo adiante, dividiu-se a exposição em quatro partes além desta
curta introdução. Na primeira está contida uma problematização dos elementos aqui
1
Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais – FAPEMIG pelo apoio
financeiro ao projeto que gerou o presente artigo.

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apenas aludidos. Na segunda, explora-se a relação entre acumulação, base técnica e


organização do trabalho recorrendo às categorias de manufatura, manufatura moderna e
grande indústria conforme legado por Marx. Em seguida, apresentamos os dados da
economia brasileira e particularmente do setor têxtil para o período entre 1900 a 1950.
Por fim, encontram-se as considerações finais do trabalho.

2. Problematização
Qual foi a medida da conversão das teorias da administração em força material no
Brasil? Essa é uma questão que permeia, direta ou indiretamente, considerável volume de
estudos que circulam entre as áreas da administração e da história, com diferentes
inclinações e graus de investida sobre a realidade concreta.
A começar pela literatura atinente à história, pode-se destacar pelo menos duas
tendências.
Uma primeira tendência é o estudo historiográfico realizado por diferentes
pesquisadores interessados, em geral, pelo assim chamado processo de “racionalização”
levado adiante no Brasil a partir dos anos de 1920. É o caso de Antonacci (1993) e Rago
(1985), por exemplo, que, ao investigarem o ideário do empresariado no período,
identificaram ampla disseminação de aspectos do taylorismo. A limitação está no próprio
objeto analisado, pois o fato da disseminação no ideário do empresariado, embora seja
uma pista, não significa que a realidade se conformasse a ele. Uma segunda tendência
enfatiza o esforço do empresariado em estabelecer um fordismo no Brasil (cf. Vianna,
1978). No geral, possui uma tentativa ainda limitada ao plano do ideário do empresariado,
mas, ao contrário da primeira tendência, encontra poucos elementos e precisa concluir
que não houve modificações convincentes na organização do trabalho no sentido de um
taylorismo ou fordismo no Brasil daquele período. Zanetti e Vargas (2007) sustentam
que, aquilo que se assemelhava aos enunciados teóricos de Ford, por exemplo, não passou
de palavreado do empresariado dos anos de 1930 em defesa de seus interesses com
respeito às leis trabalhistas e protecionismo governamental, como nos casos de Pupo
Nogueira e Roberto Simonsen, respectivamente. Não propuseram, porém, boas razões
explicativas para o fato identificado de não haver se desenvolvido um taylorismo ou
fordismo no Brasil. Adicionalmente, Vargas (1985) contrastou as práticas gerenciais no
Brasil com a pureza da descrição original do taylorismo pelo próprio Taylor. Assumiu,
assim, que quando foi possível falar sobre um taylorismo no Brasil, dava-se já em um
contexto de sua ultrapassagem pelo toyotismo a partir da década de 1970. Em mesmo
sentido de uma pureza conceitual, Fleury (1983) argumenta haver no Brasil do início da
década de 1980 não mais do que uma “rotinização” do trabalho em contraste com as
especificações gerais do taylorismo tal como prescrito por seu autor original.
Não obstante as importantes contribuições, prevalece o fato de que “ainda há
muito para ser pesquisado no que concerne ao processo de trabalho tal como se dava nos
estabelecimentos fabris daquele período” (Zanetti; Vargas, 2007:134).
Sobre a literatura mais ligada à administração, considerou-se as teorias da
administração como ideologias e, em grande medida, manteve-se a investida em um plano
mais lógico, procurando indicar o ímpeto de tais teorias em distorcer a realidade. Esse é
o caso dos proeminentes críticos das teorias da administração como ideologia, e esta,
como falsidade (cf. Paço Cunha, Guedes, 2015, para um tratamento mais longo sobre o
problema). Se, por um lado, a contribuição principal está em certa explicitação do caráter
apologético de tais teorias (com a ressalva de procurarem proteger certas tendências mais
sociológicas), por outro lado, o limite ao plano lógico, nunca elevando-se ao concreto-

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histórico, impediu a investida na realidade brasileira para se extrair desta a efetividade


daquelas.
Ainda ligada à essa literatura, Paço Cunha e Guedes (2016) fizeram esforço de
apreensão da problemática no caso concreto brasileiro, considerando ideologia não como
falsidade senão em seu sentido “ontoprático”, isto é, o determinante na ideologia não é
sua potência de verdade ou falsidade, mas sua efetividade nos conflitos sociais, dando-
lhes direção (cf. Paço Cunha; Guedes, 2015). Não obstante o esforço de avaliação do
ideário do empresariado, notícias em jornais e pesquisas de sociólogos em largo período
histórico (até 1960 aproximadamente) (cf. Paço Cunha; Guedes, 2016), esbarrou-se nos
mesmos limites da literatura na área da história em sua segunda tendência aludida. A
despeito de os autores assumirem conclusões semelhantes com respeito à baixa
generalidade de um taylorismo e de um “humanismo” no Brasil ao longo de toda primeira
metade do século XX, possuem elementos explicativos ligados tanto à materialidade do
contexto brasileiro daquele período quando intuem propriedades específicas de certas
teorias administrativas e seus potenciais de efetivação comparativamente a outras
expressões teóricas. A explicação ligada ao contexto nacional sugere que “um capitalismo
hipertardio (...) não cria as condições objetivas” (Paço Cunha; Guedes, 2016:1002)
adequadas, isto é, “condições de possibilidades reais que tornam tais ideologias
necessárias e possíveis” (ibdem:1005). Por outro lado, a explicação ligada a determinadas
propriedades assevera que:

As teorias que expressam mais nitidamente os problemas práticos de determinado momento nos
ciclos de acumulação possuem mais potencial de funcionar como ideologias, pois precisam
acomodar uma nova e às vezes drástica modificação na organização do trabalho como resposta às
alterações nos padrões de acumulação. Como esses padrões tendem a dominar amplos setores
produtivos por efeito da concorrência entre os capitais individuais, movimentam massas humanas,
implicam inúmeros efeitos e acionam reciprocidades dos aparelhos estatais como resposta às novas
condições produtivas. Os conflitos provenientes dessas modificações alcançam níveis para além
de casos singulares, demandando uma resposta num plano mais elevado de cobertura. Entram
nessa equação não apenas teorias da administração, mas também a política, o direito etc.
(ibdem:1003)
o nexo causal entre a efetivação desses ideários [“humanismo”] e as condutas humanas por eles
esperados é muito mais suscetível a resistências passiva e ativa, e ao acaso, do que modificações
objetivas na organização técnica do trabalho (taylorismo, fordismo...) como resposta a um estágio
específico dos padrões de acumulação (ibdem:1004)

As intuições apresentadas são importantes embora tenham limites que precisam


ser corrigidos. Ao retirar as conclusões a partir da inspeção de indicações históricas, os
autores não ultrapassam os mesmos limites das tendências da área da história e
permanecem no campo irresolutivo. Por outro lado, mantêm uma má-compreensão de o
taylorismo e fordismo constituírem em si “modificação drástica” ou, mais precisamente,
“modificações objetivas na organização técnica do trabalho”, embora apresentem retidão
ao indicar os padrões de acumulação como elemento incontornável ao fundo. É uma
marca semelhante à encontrada em outro material interessado na gênese do taylorismo
nas condições de desenvolvimento do capitalismo nos Estados Unidos (cf. Paço Cunha
et. al., 2017), pois mantém certa identificação entre organização do trabalho e taylorismo
apesar de dar o mesmo passo adiante na análise do processo de acumulação ao fundo
como explicativo do desenvolvimento de determinados ideários.
Centralmente, permanece uma dificuldade peculiar. O passo adiante apresentou
ainda limites com respeito a dados e informações que permitam o acesso direto à
organização do trabalho que possa dar a medida da modificação do processo de trabalho

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na particularidade brasileira, denotando, assim, a efetividade de um taylorismo ou


fordismo nas condições da primeira metade do século XX. Sem esses elementos não se
ultrapassa o limite da intuição ainda que relativamente referendada numa análise de
realidade.
A primeira medida necessária, para encaminhar a questão, é dissociar taylorismo
e fordismo da organização do trabalho, situando os primeiros como métodos de
intensificação do processo de trabalho no interior de uma modalidade posta de
organização do trabalho. Assim, considera-se a última como modalidade de divisão e
combinação do trabalho sobre uma base técnica determinada, isto é, base técnica como
estágio de desenvolvimento dos meios de produção. Assim, um baixo nível de
desenvolvimento dos meios de produção mantém a divisão do trabalho como elemento
decisivo e um alto desenvolvimento, como veremos adiante, supera a divisão e estabelece
os meios de produção como aspecto mais importante.
A segunda medida relevante e crucial – e neste ponto está o passo adiante já
realizado pela literatura ligada à área da administração – vemos na conexão entre
organização do trabalho e base técnica da produção. Esta unidade de determinações
recíprocas aparece, e esta é a terceira medida, como função do estágio de acumulação do
capital ao fundo. Dessa maneira, um modo especial de resolver o problema é, como
anunciado na introdução, trilhar outro caminho além daquele representado pelo ideário
do empresariado, e outros correlatos, inspecionando o processo de acumulação de capital
como elemento explicativo fundamental. É esse processo que dá a medida do avanço da
base técnica em conexão com modalidades de organização do trabalho e, no interior desta,
expedientes como o taylorismo e fordismo.
Para tanto, outras medidas são requeridas. É particularmente proveitoso inquirir
tal processo de acumulação no Brasil, especificando determinado setor da economia.
Àquele tempo (ao menos antes de 1946), os maiores aportes de capital industrial estavam
direcionados para setores como alimentos e têxtil. Particularmente este último, pode ser
considerado o setor mais avançado em termos técnicos do Brasil daquele período
(Ribeiro, 1988). Uma análise de suas especificidades e do processo de acumulação ali
desenvolvido pode dar uma medida mais aproximada da realidade e mesmo ajudar a
explicar as circunstâncias de outros setores. Se houve “modificações drásticas” na
organização do trabalho na economia brasileira de então, há grandes chances de que
tenham ocorrido no setor mais desenvolvimento tecnologicamente daquele tempo. Ao
mesmo tempo, esta medida pode ser completada pela delimitação mais ou menos restrita
dos dados nacionais à economia paulista, uma vez que já na década de 1930 comportava
o maior desenvolvimento industrial do país.
Antes, porém, de imergir na realidade brasileira e do setor têxtil paulista, é
necessário considerar a unidade refletida abaixo, como meio resolutivo da problemática
antes posta.

3. Acumulação, base técnica e organização do trabalho


Uma vez estabelecido o caminho básico de se determinar as possibilidades de
modificações tais no processo de trabalho, particularmente no setor têxtil da primeira
metade do século XX, torna-se incontornável o quadro concreto da diferenciação, no
interior do desenvolvimento histórico, entre manufatura e grande indústria.
Para tanto, é preciso considerar que tais modalidades gerais de configuração da
produção capitalista estão assentadas sobre a exploração econômica do trabalho.
Manufatura ou grande indústria, e seus pontos intermediários de desenvolvimento, são

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métodos de extração de mais-valor por meio de diferentes expedientes, a exemplo do


prolongamento da jornada de trabalho e da intensificação do processo de trabalho.
Aumentando o tempo total da jornada de trabalho ou diminuindo o tempo socialmente
necessário à produção das mercadorias, a diferença entre manufatura e grande indústria
não se encontra em sua funcionalidade senão em seus princípios fundamentais.
Em termos bastante sintéticos, enquanto a manufatura tem, por aspecto elementar,
a força de trabalho e suas ferramentas sustentadas na divisão do trabalho vivo e nas
potencialidades desse trabalho em cooperação sem eliminar integralmente certas
habilidades dos trabalhadores individuais parciais combinados (existentes custos de
aprendizagem), o princípio da grande indústria é a automação que se arqueia pelo
desenvolvimento do capital fixo, isto é, maquinaria e pela combinação dela como um
sistema. Permanece na manufatura uma base técnica estreita que exclui uma “análise
verdadeiramente científica” (Marx, 2013:413), uma vez que a combinação do trabalho é
natural-espontânea e cuja divisão ocorre segundo necessidade técnica percebida com a
experiência prática. Mantém-se nela o princípio subjetivo de adequação do processo de
trabalho ao trabalhador dado que seu pedestal segue sendo em grande medida o trabalho
artesanal. Assim, o desenvolvimento dos instrumentos e ferramentas é relativamente
limitado pelo próprio princípio da manufatura, ainda que ela mesma tenha desenvolvido
“os primeiros elementos científicos e técnicos da grande indústria” (Marx, 2013:451).
É a própria manufatura que faz avançar tais instrumentos e ferramentas a
determinado estágio em que suas limitações precisam ser ultrapassadas, pois desenvolve
uma base técnica cujo progressivo avanço passa a ser limitado por seus próprios aspectos
elementares. Esse estágio mais avançado da manufatura pode ser denominado de
manufatura moderna, isto é, pontos mais desenvolvidos em que se estrangulam as
limitações da própria manufatura em razão de acréscimos substanciais no
desenvolvimento técnico como a “oficina para a produção dos próprios instrumentos de
trabalho – e especialmente dos aparelhos mecânicos mais complexos” (Marx, 2013:442).
A base técnica da manufatura fica assim revelada: força de trabalho combinada e dividida
segundo funções desenvolvidas pela prática e que manipula instrumentos e ferramentas
de trabalho. As possibilidades reais da organização do trabalho manufatureiro são
limitadas por sua estreita base técnica cujo maior desenvolvimento é restringido, por sua
vez, pela organização real do trabalho deste tipo.
Processo de mudança na manufatura e dela para a maquinaria possui pontos de
inflexão difíceis de determinar. Por isso registram-se os grandes traços.
O aspecto elementar da grande indústria é o meio de trabalho que se dá pela
transformação da ferramenta em máquina. O que caracteriza o capitalismo em sua
autenticidade não é a manufatura ou a manufatura moderna senão a grande indústria
baseada no desenvolvimento da maquinaria. A continuidade desse desenvolvimento
encontra expressão na “produção de máquinas por meio de máquinas” (Marx, 2013:458)
como ponto mais avançado do sistema da grande indústria, isto é, setores de maior
desenvolvimento do capital fixo como medida das forças produtivas (Marx, 2011:582).
A tarefa precípua, alimentada pelo princípio da automação, torna-se a análise do
“processo de produção em suas fases constitutivas e (a resolução dos) problemas assim
dados por meio da aplicação da mecânica, da química, etc., em suma, das ciências
naturais” (Marx, 2013:532-3), dissolvendo “cada processo de produção (...) em seus
elementos constitutivos e, antes de tudo, fazê-lo sem nenhuma consideração para com a
mão humana, (criando) a mais moderna ciência da tecnologia” (Marx, 2013:556). Aqui o
trabalho perde o caráter elementar que mantinha na manufatura e surge agora em lugar

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secundarizado, embora não eliminado, no sistema desenvolvido de maquinaria. De tal


forma, a modificação da base técnica cria as condições para outra modalidade de processo
de produção em que a organização do trabalho revela uma atividade produtiva reduzida
a um tempo cada vez menor (enquanto cresce o volume de capital empregado em
maquinaria) e, simultaneamente, ganha contornos de vigilância e supervisão da
maquinaria. Nessas condições, a “divisão do trabalho (...) na fábrica automática consiste,
antes de mais nada, na distribuição dos trabalhadores entre as máquinas especializadas”
(Marx, 2013:492), pois no “sistema da maquinaria, a grande indústria é dotada de um
organismo de produção inteiramente objetivo, que o trabalhador encontra já dado como
condição material da produção” (Marx, 2013:459). A base técnica, agora, não se revela
como divisão do trabalho e ferramentas, mas máquinas operantes de modo combinado às
quais o trabalho é acoplado; é uma divisão do trabalho na medida que é, antes, sistema de
máquinas.
Assim, aquele princípio subjetivo da manufatura, e persistente na manufatura
moderna, é eliminado. A produção de máquinas por meio de máquinas como ponto mais
avançado do sistema anuncia o que aqui podemos chamar de tendência intrínseca da
grande indústria e que encontra, de maneira entrevista, na grande indústria moderna,
condições adequadas de avanço, pois a grande “indústria moderna jamais considera nem
trata como definitiva a forma existente de um processo de produção. Sua base técnica é,
por isso, revolucionária. (...) ela revoluciona continuamente, com a base técnica da
produção, as funções dos trabalhadores e as combinações sociais do processo de trabalho”
(Marx, 2013:557). O que era possível de ser entrevista no século XIX era a tendência de
revolucionamento constante dos meios de produção, ratificando o princípio da
automação. O extravasamento da grande indústria moderna como etapa superior da
automação somente encontra forma mais depurada com a robótica, a microeletrônica e,
daí em diante, nas tendências de implementação da computação e integração dos sistemas
produtivos com o desenvolvimento da tecnologia da informação, inteligência artificial e
internet das coisas, como veem testemunhando as quatro últimas décadas. Trata-se, no
entanto, de outro assunto...
Não obstante, o desenvolvimento do sistema de máquinas convive com as
pressões para o prolongamento da jornada de trabalho e para a intensificação do trabalho,
mas tratam-se de expedientes já conhecidos no período manufatureiro e que, não por
acaso, aparecem novamente sob a rubrica do taylorismo e do fordismo. O esforço de
estender o tempo de trabalho excedente e diminuir o trabalho socialmente necessário não
é privilégio das modalidades manufatureira ou industrial de extração do mais-valor;
ganham contornos mais ou menos diferenciados em termos de preponderância a depender
das condições das lutas sociais e dos regimes jurídicos contingentes. Em condições de
restrição ao aumento da jornada de trabalho, tende a preponderar a extração de uma maior
massa de trabalho em termos de grandeza intensiva. Para isso, o “método de pagamento”,
principalmente o salário por peça, faz com que o “trabalhador efetivamente movimente
mais força de trabalho” (Marx, 2013:483); é um expediente amplamente conhecido e
implementado por Taylor e Ford já no século XX, para citar as experiências mais
difundidas. Por outro lado, a mera redução da jornada de trabalho durante o período
manufatureiro provocou um “aumento da regularidade, uniformidade, ordem,
continuidade e energia do trabalho” (Marx, 2013:483). Tão logo a redução da jornada de
trabalho tenha se generalizado por força da lei, na Inglaterra primariamente, o
desenvolvimento da maquinaria que assim se estimulou, converte-se pouco a pouco no
meio de extrair cada vez mais trabalho em menor tempo “pela aceleração da velocidade

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das máquinas e pela ampliação da escala da maquinaria que deve ser supervisionada pelo
mesmo operário, ou do campo de trabalho deste último” (Marx, 2013:484). Certamente,
o chamado “estudo dos tempos e movimentos” está associado à aceleração do ritmo de
trabalho, reduzindo os movimentos desnecessários, assim como a aceleração da linha de
montagem fordista. Mas ambos os casos, entretanto, não constituem elementos de
intensificação no interior do sistema de máquinas tendo em vista que o trabalho, sob tais
regimes de intensificação, permanece ainda a força que manipula os instrumentos e
ferramentas, seja nas tarefas muito simples sobre as quais se dedicou Taylor, seja sobre a
montagem do automóvel que fez época sob a direção de Ford (cf. Sartelli; Kabat, 2014).
Tais formas de intensificação são relativamente dispensáveis uma vez que se estabelece
o sistema de máquinas ao qual a força de trabalho é adaptada, ou seja, essas formas são
típicas da manufatura moderna e não da grande indústria (Moraes Neto, 2003).
Da mesma forma que os pontos de inflexão são difíceis de determinar com
exatidão, também se diz que as modalidades aludidas (manufatura, manufatura moderna,
grande indústria, grande indústria moderna) coexistem e desempenham funções
particulares no conjunto articulado do modo de produção capitalista.
Devemos reter, entretanto, que a unidade entre base técnica e a organização do
trabalho (como o processo de trabalho se efetiva por divisão e combinação das funções
do trabalhador coletivo, seja como aspecto elementar ou como secundário), reflete e
repousa sobre o processo de acumulação de capital que condiciona e resulta do próprio
avanço técnico. Também em termos sintéticos – e limitado ao aspecto técnico da
composição do capital e fazendo abstração das taxas de sua rotação –, a acumulação é
resultado da tendência imanente ao processo capitalista de maior expansão possível do
valor. Para tanto, são necessários investimentos de parte do mais-valor extraído na
continuidade ampliada da produção. Seguindo de perto as determinações apreendidas por
Marx (2013:656), “para acumular é necessário transformar uma parte do mais produto
em capital”, isto é, converter o resultado de um ciclo de rotação do capital em condição
para um ciclo ampliado refletido no crescimento da massa de capital constante (meios de
produção) e variável (força de trabalho) invertido na produção. O crescimento dessa
massa, dada a necessária apropriação da maior quantidade possível de mais-valor, não é
proporcionalmente distribuído entre meios de produção e força de trabalho. A diminuição
do tempo socialmente necessário de produção precisa ser refletida em um crescimento
maior do componente constante do capital, sendo este um resultado igual à maior
produtividade do trabalho social, ou seja, o movimento de uma maior massa de meios de
produção por um quantum menor de força de trabalho barateada nesse processo. A
produtividade do trabalho social surge, assim, como poderosa alavanca do processo de
acumulação e essa produtividade pode ser conseguida em grande medida pelo avanço
técnico correspondente aos meios de produção que, por sua vez, reflete o estágio da
acumulação de capital.
Sob a transição entre a manufatura e a grande indústria, e depois sobretudo nesta
última, se dá o processo de acumulação. O crescimento da massa de capital disponível
para novos investimentos se reflete na aceleração progressiva das modificações técnicas.
Na grande indústria esse processo fica inteiramente revelado pelo grau de importância
que os meios de produção assumem como aspecto elementar em contraste com a força de
trabalho para a manufatura. É possível dizer que a grande indústria é, em si mesma, um
determinado estágio de acumulação do capital. Determinado estágio da acumulação pode
revelar, portanto, a unidade entre a base técnica e a organização do trabalho mais ou
menos correspondente.

168
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

Nesses termos, a acumulação pode ser estabelecida por meio de determinados


indicadores, por assim dizer. O estoque de capitais, o tamanho das empresas em termos
de força de trabalho, a produtividade do trabalho, a concentração do capital e da força de
trabalho constituem elementos de aproximação do problema, conforme estudado adiante.
A limitação a essas indicações, abrindo mão de análises mais sofisticadas (cf. Marquetti;
Porsse, 2014), deve-se sobretudo à restrita disponibilidade de dados referentes à
economia brasileira na primeira metade do século XX.
O setor têxtil, como veremos, possui peculiaridades que permitem que se o
compreenda como o primeiro ramo a constituir a grande indústria. Já podemos descartar
qualquer impulso de taylorismo e fordismo porquanto estes sejam típicos da manufatura
moderna e não da grande indústria? Talvez possamos dar mais atenção ao taylorismo e
sua generalidade extensiva se comparada à especificidade do fordismo para determinados
setores e não todos. A razão disso, inclusive, são registros de desenvolvimento do
taylorismo do setor têxtil no Brasil. Nogueira Filho (1965:124) afirmou que, em 1923 na
Fábrica Santa Bárbara no interior paulista, pôs “em prática algumas normas tayloristas”,
adotava o “sistema Rowan de salário progressivo, racionalizava a distribuição das
matérias-primas, especializava as atividades dos mestres e contramestres e dava
providências visando suprir desperdícios, elevar a qualidade do trabalho e facilitar a
execução das tarefas”. Adicionalmente, tem-se o registro de que a implementação do
taylorismo numa fábrica no interior do estado de Minas Gerais “iniciou-se em meados da
década de 50, quando da reorganização da empresa com a criação de setores diversos de
produção e manutenção, a substituição do sistema de mestres e contramestres e a adoção
de meios racionais de controle de tempo e movimento nas operações de produção”
(Loyola, 1974, 23)2.
Insinua-se que, no caso da indústria têxtil, ao menos o taylorismo não é
impossibilitado pelo fato objetivo de este setor ser mais dominado pela maquinaria e,
logo, constituir-se em grande indústria. Se não é impossibilitado, qual a razão de sua não
generalização? Há algo mais além de sua correspondência mais forte à manufatura.
Devemos observar o problema do estágio da acumulação.

4. Acumulação no setor têxtil brasileiro


Como dito, o estudo da economia nacional na primeira década do século XX
apresenta consideráveis restrições com respeito a dados. Alguns disponíveis pelo IBGE e
outras pesquisas anteriores permitem uma aproximação razoável do problema ainda que
não inteiramente resolutiva.
É possível demarcar, de partida, que o processo industrializante nacional somente
ganha vigor efetivo na década de 1940 (Gráfico 1). Enquanto outras nações já dispunham
de uma dinâmica industrial estabelecida, como Inglaterra e Estados Unidos, outros mais
tardios, como Alemanha e Japão, desafiavam a repartição imperialista mundial. Quando
a dinâmica do capitalismo no Brasil esboça um comportamento para além da produção
agroindustrial orientada para a exportação, as condições de repartição estão praticamente
estabelecidas, restando internas as possibilidades de crescimento uma vez que o mercado
europeu passa a ser inteiramente dominado por capital estadunidense, valendo isso para
variados setores, inclusive o têxtil.

Gráfico 1: Índices anuais de produção industrial (1939=100)


2
Fora do Brasil, há também estudos que indicam essa aplicação do taylorismo no setor têxtil (Wright, 1993;
Tsutsui, 1998; Voos et al., 2010)

169
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250.0

200.0

150.0

100.0

50.0

0.0

Fonte: Gerado a partir dos dados do IBGE (1990)

Gráfico 2: Estoque de capital fixo (valores em reais de 1999)


9,000.00
8,000.00
7,000.00
6,000.00
5,000.00
4,000.00
3,000.00
2,000.00
1,000.00
0.00
1908
1910
1912
1914
1916
1918
1920
1922
1924
1926
1928
1930
1932
1934
1936
1938
1940
1942
1944
1946
1948
1950
1952
1954

Fonte: Gerado a partir dos dados do IBGE (2017)

No Gráfico 2 ficam confirmadas algumas questões para o plano geral da indústria


nacional do período. O estoque de capitais mede o volume em termos de preços dos seus
componentes fixos, como maquinaria, prédios, instrumentos e ferramentas. É um
indicador que proporciona a medida do investimento na indústria e, especificamente,
demonstra o potencial de crescimento da acumulação de capitais em seu componente
constante. Observamos uma tendência bastante regular entre o início da série e 1945, ano
que marca o término do conflito bélico internacional. De 1945 em diante, o estoque de
capital aumenta consideravelmente em razão dos investimentos na siderurgia nacional
(cf. Bastos, 1959). Ainda assim é discutível que até 1955 tenha se desenhado inteiramente
uma completa ruptura com os níveis anteriores dado que a diferença entre as médias da
produção para os períodos 1908-1944 e 1945-1955 é de aproximadamente 3,55 e o
crescimento percentual para todo o período é de 3,46. Embora significativo, não é
comparável ao patamar posterior a 1960 no Brasil. Esses elementos sugerem que a
acumulação para a economia brasileira é consideravelmente restritiva ao avanço técnico
e, por este motivo, também a modificações significativas na organização do trabalho.

170
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Essas questões são aprofundadas com dados de produtividade industrial,


sobretudo para o estado de São Paulo. No Quadro 1 é possível avaliar o crescimento tanto
do valor acrescentado (medido em preço) à produção quanto da força de trabalho
empregada. Considere, entretanto, que o crescimento do valor adicionado por trabalhador
registrou 2,09 no comparativo entre os anos de 1920 e 1940. É discutível se esse
crescimento é expressivo de um avanço na base técnica.

Quadro 1: Produtividade do trabalho nas firmas industriais (São Paulo, 1920x1940)

Valor acrescentado Força de


(contos) (a) trabalho (b) (a)/(b) (mil-réis)
1920 440366 83998 5240
1940 2988920 272865 10950
6.79 3.25 2.09
Fonte: Adaptado de Dean (1971:118)

O Quadro 2 mostra um comparativo entre as firmas individuais e as sociedades


anônimas. A acumulação de capital e o avanço técnico que o acompanha é muito mais
correspondente às grandes empresas do que às pequenas. As sociedades anônimas
conseguiriam, em suposição, uma maior capitalização necessária aos grandes
investimentos em maquinaria, por exemplo. Então, é nesse tipo de empresa que
encontraríamos melhores indícios de avanço técnico e de modificação da organização do
trabalho.

Quadro 2: Produtividade do trabalho nas firmas industriais (São Paulo, 1940)


(d) Valor
(a) (b) Força de acrescentado (e) = (d)/(b)
Número Trabalho (c) = (b)/(a) (contos) (mil-réis)
Firmas
individuais 7721 52808 6 447355 8460
Sociedades
anônimas 1255 170526 135 2076126 12760
3.23 1.51
Fonte: Adaptado de Dean (1971:129)

As diferenças são, como esperado, demarcadas em termos do quantitativo de


empresas, da força de trabalho que emprega e valor acrescentado (medido em preço da
produção). As grandes empresas apresentam, certamente, uma maior acumulação de
capital, inclusive em sua expressão variável (força de trabalho). Contudo, embora
empregue 3,23 mais força de trabalho do que as pequenas empresas, a produtividade dessa
força de trabalho é apenas 1.51 vezes maior do que o conjunto das empresas individuais.
Isso sinaliza uma baixa produtividade do trabalho mesmo nas grandes empresas o que,
por sua vez, possivelmente resulta de um baixo desenvolvimento técnico da produção e
mesmo a ausência, em 1940, de expedientes de intensificação do trabalho, como
taylorismo e fordismo.
Os dados específicos para a indústria têxtil também são tão ou mais difíceis de
acessar uma vez que em geral as informações econômicas para a primeira metade do
século XX são agregadas para toda a indústria nacional.

171
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
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Para uma análise geral, é possível identificar no Gráfico 3 o comportamento da


produção de tecidos de algodão que, no geral, repete as tendências dominantes para a
produção industrial nacional como um todo para o mesmo período como visto antes.

Gráfico 3: A produção de Tecidos de Algodão no Brasil, 1911-1948 (1000 metros)


1600000

1400000

1200000

1000000

800000

600000

400000

200000

0
1905 1910 1915 1920 1925 1930 1935 1940 1945 1950

Fonte: Gerado a partir dos dados de Stein (1979, Apêndice II)

A tendência de crescimento até as vésperas da crise de 1929 e, depois da queda


acentuada, uma retomada do crescimento que, a partir da década de 1940, rompe os
maiores patamares anteriores, em nada contradiz o comportamento da produção na
indústria nacional em geral. Ainda que a produção em geral aumente, não é suficiente
para que o diagnóstico da acumulação de capital reverta as restrições que identificamos
para a indústria brasileira no período. Antes de aprofundar essa questão especificamente
para o setor em tela, vejamos a importação de máquinas para o período entre 1913-1950
conforme Gráfico 4.

Gráfico 4: Máquinas Têxteis Importadas pelo Brasil, 1913-1950 (quilos)


30000000

25000000

20000000

15000000

10000000

5000000

0
1910 1915 1920 1925 1930 1935 1940 1945 1950 1955

Fonte: Gerado a partir dos dados de Stein (1979, Apêndice V))

Apesar da incompletude dos dados para alguns anos e da medida em quilos (uma
vez que faltavam registros alfandegários sobre preço à época), é possível identificar um
comportamento mais restrito das importações, sobretudo das máquinas produzidas nos

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Estados Unidos e na Inglaterra. É dispensável dizer que no Brasil qualquer produção


sistemática de máquinas está ausentada no período. Os picos de importação, considerando
1925, 1937-38, 1945, 1948-49, acompanham em certa medida o comportamento da
produção industrial do setor e refletem também até certo ponto a formação de capital fixo
para a indústria nacional. Ainda assim, é igualmente discutível os patamares de aplicação
de nova maquinaria embora fique sinalizado o movimento de renovação do maquinário
em pontos distintos no período. Voltaremos a essa consideração adiante. Observemos por
agora que o Gráfico 3 mostra um crescimento da produção têxtil com um pico acentuado
em 1923. O Gráfico 4 demonstra que esse crescimento refletiu na importação de
maquinaria que, por sua vez, expressa certa expectativa de continuidade das tendências
de crescimento embora seriam frustradas poucos anos depois. Isso registra que a década
de 1920, pelo menos até à crise de 1929, demonstrou-se ser frutífera para o setor têxtil. O
Quadro 3 ajuda a considerar uma avaliação comparada entre 1907 e 1920 para o setor
têxtil no estado de São Paulo.

Quadro 3: Estado de São Paulo - Indústria Têxtil Algodoeira - 1907 x 1920


Classificação por
Número de Número de
tamanho %
estabelecimentos operários b/a
(número de operários
(a) (b)
operários)
1907 Até 99 operários 2 85 1.23 42.50 -
de 100 a 499
11 2880 41.68 261.82
operários
de 500 a +
6 3944 57.08 657.33
operários
Total 19 6909 100.00 363.63
Classificação por Estabelecimentos, Operários,
Número de Número de
tamanho % crescimento crescimento
estabelecimentos operários b/a
(número de operários percentual 1907 x percentual
(a) (b)
operários) 1920 1907 x 1920
1920
até 99 186 2722 7.82 14.63 92.00 31.02
100 a 499 37 8399 24.12 227.00 2.36 1.92
de 500 a + 24 23704 68.07 987.67 3.00 5.01
Total 247 34825 100.00 140.99 12.00 4.04
Fonte: Adaptado de Ribeiro (1988:53-59)

Independente dos anos em consideração, vê-se que o setor têxtil é relativamente


concentrado, apresentando uma grande quantidade de força de trabalho em poucas
unidades fabris maiores, ao menos no maior parque industrial brasileiro para os anos
considerados. Em 1920, particularmente, empregava 68,07% da força de trabalho do
setor. O crescimento percentual do número de operários também é significativo para as
maiores empresas (5,01). Entretanto, os maiores crescimentos percentuais em número de
estabelecimentos (92,00) e número de operários (31,02) registram os pequenos
estabelecimentos com até 99 empregados. A despeito de ser o setor com maior
concentração de capital no país (Ribeiro, 1988), os dados sugerem uma predominância
de pequenas unidades produtivas, com poucos exemplos de firmas com mais de 500
operários. Stein (1979), que possui a melhor compilação de dados para o período, explica
que o crescimento do capital dos grandes industrialistas do setor não significou ampliação
dos negócios, mas a diversificação de investimentos em negócios com baixa articulação,

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impedindo qualquer processo de trustificação a despeito da concentração de capitais no


setor. Não apenas um número muito pequeno de firmas eram corporações, mas registra-
se o uso da forma jurídica de corporação apenas para obter vantagens legais (Dean, 1971;
Mello, 1991).
Mas a concentração da força de trabalho não é por si mesma um indicador
expressivo do problema da acumulação. Como vimos, a acumulação se reflete mais pelo
crescimento do capital constante, possibilitando uma maior produtividade do trabalho. Há
dados adicionais para uma comparação entre os anos de 1928 e 1950 nesse sentido. O
Quadro 4 traz elementos decisivos.

Quadro 4: Índices de produtividade, de concentração e composição orgânica3 (sic) do


capital da indústria têxtil paulista (1928 e 1950)
Indústria têxtil
Geral (Algodão,
Juta, Lã, Malha, Crescimento
-
Sedas) percentual
1928 1950
Capital/Fábrica = concentração 1.783 3.248 0.82
Trabalho/Fábrica = trabalho por fábrica 257 92 -0.64
Capital/Trabalho = composição técnica do capital 7 35 4.00
Capital/Produto = produtividade do capital 0.57 0.43 -0.25
Trabalho/Produto = produtividade do trabalho 0.08 0.01 -0.88
Fonte: Adaptado de Loureiro (2006:236)

Observando os dados, registra-se um crescimento da concentração do capital na


indústria têxtil paulista, ainda que o patamar atingido seja discutível (3,248) com um
crescimento percentual de 0,82. Os dados de força de trabalho por fábrica e de
composição técnica do capital são importantes por indicarem uma tendência de queda na
força de trabalho empregada por unidade fabril (de 257 para 92), podendo ser expressão
do crescimento da composição técnica, com crescimento percentual expressivo (4,00).
Particularmente a composição técnica dá a medida aproximada da acumulação de capital
uma vez que um número menor de trabalhadores empregados por fábrica (92, no ano de
1950), movimentam uma massa maior de capital (de 7 para 35). Esses elementos, porém,
são contraditos pela produtividade do capital e do trabalho, ambos com tendência de
queda, de 0,57 para 0,43 (-0,25) e 0,08 para 0,01 (-0,88), respectivamente. Fica evidente
que o aumento da composição técnica e a diminuição da força de trabalho por fábrica não
teve efeito na produtividade do capital empregado ou da força de trabalho.
Isso também sugere que não havia expedientes generalizados, como taylorismo,
para intensificação do processo de trabalho que refletisse em crescimento da
produtividade, mesmo já no ano de 1950. Não há notícias de níveis gerenciais que se
dedicassem ao estudo da produção e aplicação de tais expedientes, com exceção de casos
isolados para a indústria têxtil (cf. Nogueira Filho, 1965). As unidades fabris

3
O autor denominou de composição orgânica aquilo que é composição técnica. Enquanto esta expressa a
relação meramente quantitativa entre meios de produção e número de trabalhadores, composição orgânica
expressa a relação de valor entre capital constante e variável. Como o autor não apresenta a relação em
termos de valor, mas em termos quantitativos, fizemos essa correção que em nada obscurece sua
contribuição. Mesmo porque, a determinação da relação de valor certamente esbarra em grandes
dificuldades adicionais.

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apresentavam, quando muito, a direção dos proprietários, os operários propriamente ditos


e os chamados “condutores de trabalho”, isto é, supervisores mais diretos da produção.
Ribeiro (1988) comenta que a organização do trabalho era “espontaneamente”
desenvolvida com as mudanças na base técnica via incorporação de novas máquinas, ou
seja, a organização do trabalho e o processo de produção em si mesmos não foram
convertidos em objetos de investigação e sistematização generalizadas com vistas à
intensificação do trabalho no Brasil no período considerado.
Adicionalmente, ausência de níveis gerenciais também se manifesta na
informação de Stein (1979). Segundo o autor, havia um sistema de custos muito precário
mesmo nas maiores unidades fabris. Em outras palavras, não se tinha consciência dos
custos reais de produção como condição para qualquer investida na direção de diminuí-
lo via ampliação da produtividade do trabalho. Mas devemos recusar a tendência de
atribuir a um estado psicológico ou cultural a explicação para essa ausência de
conhecimento. Marx (2013:484) sugeriu que a limitação da jornada de trabalho na
Inglaterra obrigou o capitalista a exercer o mais rigoroso controle sobre os custos de
produção. A lei trabalhista no Brasil, que limitou a jornada de trabalho em 8 horas, foi
aprovada em 1932, mas sua aplicação somente teve efeito mais de uma década depois.
Isso explica porque, no avançar da década de 1940, não se tinha apreendido o controle
sobre os custos de produção no setor têxtil. E potencialmente ajuda a explicar também as
restrições identificadas até pelo menos a década de 1950.

5. Considerações finais
O objetivo do presente trabalho foi estudar a acumulação de capital no setor têxtil
brasileiro como fator explicativo do baixo desenvolvimento técnico e, por isso, de uma
organização do trabalho em que o processo de trabalho não foi intensificado por
expedientes como o taylorismo.
Há aqui uma série de questões que podem ser retomadas em futuras pesquisas. A
primeira delas é o aprofundamento da discussão sobre grande indústria não ser um
território propício para esse tipo de expediente. Uma segunda questão se manifesta na
baixa tendência do setor têxtil de constituir verdadeiros trusts (Schumpeter, 1997:89, nota
84), limitando ainda mais a expansão continuada de expedientes como esses. Mas há
outras questões de impasses. Se o empresariado não precisava de intensificação do
trabalho, possivelmente seus lucros tinham outra base. É possível se perguntar pela
extensão da jornada de trabalho nesse setor. É ainda mais possível perguntar pelos níveis
salariais, uma vez que uma remuneração restrita pode compensar os baixos ganhos em
termos de produtividade do capital e do trabalho, garantindo taxas satisfatórias de
exploração econômica do trabalho.
Não obstante, a estratégia indireta de pesquisa levada a cabo neste trabalho
mostrou-se bastante promissora em seu sentido explicativo, pois na linha do
desenvolvimento histórico o grau de acumulação de capital implica necessariamente a
alteração da organização do trabalho (cf. Albuquerque, 1990; Marx, 2013) em que, se
fosse esta a chave explicativa, teríamos a dificuldade de saber por que razão a mudança
na organização do trabalho seria levada adiante a despeito da acumulação de capital. Por
outro lado, se não pudéssemos encontrar no setor industrial mais desenvolvido elementos
da organização do trabalho naquele período, restaria apenas algumas poucas
multinacionais a serem investigadas e, por isso, não teríamos sentido explicativo a não
ser desses casos isolados. Ou seja, estaríamos sempre aquém de poder determinar o grau

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de generalização da organização do trabalho em seu sentido “racionalizado”, por assim


dizer.
Em suma, o setor privado apresenta dados que mostram uma condição que
poderíamos nomear de padrão de acumulação atrófica, inspirados em Chasin (2000), ou,
como prefere Mello (1991), industrialização restrita. Assim, a acumulação atrófica de
capital para todo o período aqui analisado é forte fator explicativo das consequentes
limitações identificadas na base técnica e na organização do trabalho.

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

FORMAS ESTATAIS E REGIMES DE ACUMULAÇÃO DE CAPITAL

Matheus Almeida
Universidade Federal de Minas Gerais
matheus.da.almeida@gmail.com

Resumo
O presente artigo promove um debate a respeito do Estado e das formas que ele
historicamente assume, relacionando-as com os regimes da acumulação capitalista,
buscando demonstrar quais são as determinações que esses regimes geram naquelas
formas. Para cumprir tal intento, partimos da análise marxista – expressa no uso do
materialismo histórico-dialético e do universo teórico desta perspectiva – a respeito do
Estado e de sua conceituação, procedendo com a investigação acerca da teoria dos
regimes de acumulação, para, por fim, verificar como o Estado se manifesta em cada
fase do desenvolvimento capitalista. Concluímos com esta pesquisa que os regimes de
acumulação são a determinação fundamental das formas estatais no capitalismo.

Palavras-chave: Estado; regimes de acumulação de capital; formas estatais.

STATE FORMS AND CAPITAL ACCUMULATION REGIMES

Abstract
This paper aims to discuss State and its different forms throughout the different capital
accumulation regimes, in order to demonstrate which are the determinations that those
regimes generate in those forms. To do so, we shall begin at the marxist analysis -
expressed by historical dialectical materialism and the theoretical universe of this
perspective - about State and it’s concept, proceeding with the investigation around
capital accumulation regimes theory, so, at last, we may verify how the State manifests
itself in each period of capitalist development. We conclude with this research that
capital accumulation regimes are the fundamental determination of State forms in
capitalism.

Keywords: State; capital regime of accumulation; State forms.

Introdução

O debate sobre o Estado é um dos mais realizados na modernidade, sob as mais


distintas perspectivas. No campo do marxismo, este é um tema recorrente e inesgotável
de mais de um século e meio de trajetória. Neste sentido, há uma longa tradição
marxista de discussão a respeito do Estado que se faz necessária ser retomada em cada
nova reflexão sobre a temática, mas mais importante ainda, é preciso resgatar o modo
como este debate é conduzido na perspectiva marxista: a partir da categoria de
totalidade.
O presente trabalho, portanto, parte de uma concepção de Estado fundamentada
na categoria marxista de totalidade, isto é, busca analisar o fenômeno entendendo-o
como síntese de múltiplas determinações que interagem entre si, e dentre elas, de uma
determinação fundamental. Este fundamento necessário para a compreensão do Estado é
o próprio capital. Por isto, realiza-se simultaneamente o debate sobre o Estado e a sua

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

relação indissociável com o capitalismo, de modo a desvelar o que vem a ser este
fenômeno analisado.
Partindo desta mirada, veremos quais formas o Estado assume historicamente
no capitalismo, conhecendo as suas características e as suas relações com as lutas de
classes de modo geral. Será traçado o seguinte percurso expositivo: discutir brevemente
o conceito de Estado partindo da perspectiva marxista, não sem antes mencionar
diferentes concepções sobre o Estado que se distinguem daquela defendida por Marx;
apresentar, de forma igualmente breve, os elementos gerais sobre a questão da
acumulação de capital e da teoria dos regimes de acumulação de capital; e, por fim,
relacionar as mudanças no Estado de acordo com as mutações de regimes de
acumulação, o que gera transformação nas formas estatais.
Com isto, veremos o resultado daquilo que se objetiva neste trabalho: conhecer
cada uma das principais formas estatais existentes na história do capitalismo,
relacionando-as com os regimes de acumulação existentes em suas respectivas épocas,
além de verificar algumas das produções intelectuais a respeito do Estado que emergem
em cada um destes períodos.

O conceito marxista de Estado

Este trabalho não pretende remontar a todas as interpretações que se


produziram no que, lato sensu, foi chamado de marxismo. Faremos, inicialmente,
apenas uma retomada dos elementos gerais que caracterizaram a análise marxista do
Estado, sem entrar nos meandros e especificidades da obra de Marx, o que já foi feito
em outra ocasião1. Anteriormente, realizaremos também uma breve distinção com
algumas interpretações supostamente marxistas ou associadas ao marxismo a respeito
do Estado, esclarecendo qual é a abordagem aqui adotada.
Antes de vermos qual é a concepção marxista a respeito do Estado, podemos
utilizar de um exercício que ajuda à sua melhor compreensão, qual seja: verificarmos
algumas das principais concepções não-marxistas e equivocadas sobre o Estado.
Vejamos, portanto, quais são estas interpretações.
a) O Estado-instrumento: Notabilizando-se por ser a ideologia mais
equivocadamente associada ao marxismo quanto à interpretação do Estado, esta
concepção compreende o Estado como algo, um objeto de caráter vazio, que é
“preenchido” pela classe que se encontra ao seu leme. Neste sentido, ele poderia ser
visto como um “instrumento”, supostamente neutro, que só adquire intencionalidade a
partir dos seus dirigentes2, como uma ferramenta qualquer que executa a vontade de seu
manuseador. Esta lógica pressupõe que o Estado capitalista é burguês porque a
burguesia governa o instrumento estatal, utilizando-o para os seus fins.
Ou seja, o que definiria a natureza do Estado não seria ele mesmo, mas sim
seus dirigentes. Tal concepção nada mais é do que uma forma de fetichismo da direção,
onde o Estado (e mesmo qualquer outra organização) é definido pelos seus dirigentes. A
socialdemocracia e o bolchevismo (sobretudo os trotskistas e stalinistas) são as
principais correntes que reforçam esta compreensão, que distorce a concepção de Marx,
por nega-la enquanto afirma desenvolvê-la.
b) O Estado-função: Semelhante à anterior, nesta visão o Estado passa a ser
definido pela função que ele exerce, seja ela repressiva (Weber, Lênin), ideológica

1
Cf. ALMEIDA, 2017.
2
O que faria concluir, como na tese trotskista, que os problemas existentes são “problemas de direção”,
bastando alterar o dirigente estatal para que o Estado seja burguês ou “proletário”.

180
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(Althusser), ou qualquer outra. Em outras palavras, o Estado é definido por aquilo que
ele faz (na realidade, pela parte das suas ações que o analista escolhe considerar), e não
por aquilo que ele é, por sua essência. Bourdieu critica, associando equivocadamente
esta concepção ao marxismo, a substituição da definição do Estado a partir do seu ser
pela consideração isolada de suas funções como uma abordagem funcionalista
(BOURDIEU, 2014).
Em verdade, tal concepção se encontra mais precisamente nas obras de Engels
e Lênin do que em Marx, não podendo ser confundidas com as ideias deste autor
(ALMEIDA, 2017; WRIGHT, 2015). No fundo, considerar o Estado a partir de sua
função, além de uma abordagem funcionalista ou semelhante ou funcionalismo,
representa um fetichismo da prática, em que por “prática” se entende uma determinada
ação, em contraposição a um determinado discurso. Assim, o Estado seria repressivo
porque ele age com repressão, mas, ao mesmo tempo, poderia se tornar pacífico se
agisse de forma pacifista, etc. Tal concepção se limita ao nível da aparência das ações, e
neste sentido, é profundamente distinta do marxismo.
c) O Estado-etéreo: Presente geralmente nas ideologias liberais e
neoliberais, conservadoras ou progressistas, mas também em algumas tendências
reformistas, esta visão representa o Estado como algo acima da sociedade em que ele
governa, como que pairando no ar, sem materialidade. Esta concepção parte e manifesta
nada mais do que uma forma de fetichismo do Estado, transformando o aparato estatal
em algo que possui vontade própria, como uma espécie de autômato. Trata-se de uma
concepção burguesa sobre o Estado burguês, que o legitima como gestor da sociedade
capitalista, uma vez que estaria além dos conflitos sociais.
d) O Estado-indelimitável: Tentando não cair em uma percepção que define
o Estado como algo monolítico, demarcado apenas nas suas instituições centrais
(geralmente somente os poderes legislativos, executivos e judiciários) ou nos indivíduos
que são imediatamente identificados como representantes estatais, esta ideologia
compreende o Estado como algo presente em todas as relações sociais em uma
sociedade de classes. O Estado, neste olhar, seria constituído tanto de seu “centro”
quanto de suas “margens” (DAS e POOLE, 2008), isto é, todo e qualquer indivíduo ou
organização que estabeleça relações positivas ou negativas com o Estado.
Tal concepção transforma o Estado em algo indelimitável, impensável e, no
limite, até mesmo incognoscível, já que se algo é tudo é também nada, tornando-se
impossível de ser pensado, classificado e conceituado. Esta abordagem é
frequentemente utilizada por autores pós-colonialistas e pós-estruturalistas, e expressa
outra forma de fetichismo do Estado, tornando-o algo ininteligível de forma rigorosa, e
confundido Estado com sociedade, ou seja, as relações sociais que compreendem o
Estado com o conjunto das relações sociais.

Ao contrário de todas estas ideologias3, para o marxismo o Estado não é algo,


uma coisa, tão pouco um instrumento. Também não se define o Estado por sua função,
nem o compreende como acima da sociedade ou sendo conceitualmente indelimitável.
O marxismo não interpreta o Estado a partir do próprio Estado, mas de sua relação com

3
Marx entende por ideologia uma falsa consciência sistematizada, ou uma consciência complexa que
inverte a realidade (MARX e ENGELS, 2007).

181
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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

a dinâmica da sociedade capitalista, e sobretudo de sua relação com o motor do


capitalismo, que é a acumulação de capital4.
A forma mercadoria é a forma social fundante das demais formas sociais na
sociedade capitalista. A partir dela, se desenvolve determinadas formas políticas e
formas jurídicas a ela equivalentes. O Estado moderno deriva da revolução burguesa,
que adquiriu não somente o poder econômico, como também o político. O Estado,
assim, se torna um ser propriamente burguês, na medida em que se origina nesta
sociedade e em sua dinâmica social, de acordo com a sua divisão social do trabalho e
com a dominação burguesa.
Por isso, em realidade e do ponto de vista marxista, o Estado não é uma meta-
categoria, uma abstração a-histórica ou uma coisa qualquer, mas sim uma relação
social. Ele é uma relação social de classe, e mais especificamente, o Estado capitalista
“é uma relação de dominação de classe (no qual a burguesia domina as demais classes
sociais) mediada pela burocracia para manter e reproduzir as relações de produção
capitalistas” (VIANA, 2015, p. 55).
O modo de produção capitalista (a “infraestrutura” da sociedade) gera
determinadas formas de regularização das relações sociais (ou “formas sociais”, a
“superestrutura” da sociedade) que lhe são correspondentes. O Estado é a principal
forma de regularização das relações sociais na sociedade capitalista (VIANA, 2009). A
relação entre Estado e capital, nesta medida, é essencial, inexorável e indissociável. O
Estado se manifesta através dos seus aparatos (jurídico, educacional, sanitário,
repressivo, legislativo etc.) e de seus representantes, que expressam a materialidade
desta relação social.
O Estado capitalista, como relação social, é um aparato do poder burguês.
Assim, “em termos gerais, o Estado é um aparato do capital que, por sua vez, gera
diversos outros aparatos (jurídico, repressivo, educacional, comunicacional, cultural,
etc.)” (VIANA, 2017, p. 48). Portanto, o Estado do capital existe através de seus
aparatos. Ou seja, o Estado capitalista não é capitalista porque a burguesia acha-se
diretamente ao leme do Estado (pois, na verdade, é a burocracia estatal que se encontra
nele), e assim preenche o seu “conteúdo vazio”, nem porque ele é uma “ferramenta” da
classe burguesa, mas sim porque ele é uma relação social imbuída das contradições da
dinâmica do capital, derivada do modo de produção capitalista, e que regulariza as
relações sociais da sociedade burguesa através de seus diversos aparatos estatais.

Os regimes de acumulação de capital

A acumulação de capital

A mercadoria e a propriedade privada são categorias básicas para as relações


de produção capitalistas. Porém, só é possível compreendermos o modo de produção
capitalista quando observamos também o dinheiro e o mais-valor, que são os
pressupostos do capital. Marx afirma que “a riqueza das sociedades onde reina o modo
de produção capitalista aparece [erscheint] como uma ‘enorme coleção de
mercadorias’” (MARX, 2017, p. 113). Isto é, a mercadoria (ou melhor, a sua coleção) é
a aparência da riqueza.

4
Os autores associados à teoria da derivação, neste sentido, promovem um resgate e desenvolvimento da
concepção de Marx “segundo o qual as formas políticas poderiam ser entendidas apenas por meio da
anatomia da sociedade civil” (CALDAS, 2015, p. 86).

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O caráter aparente da riqueza na mercadoria é desvelado quando vemos que


por trás da mercadoria se encontra o valor de uso, que a constitui enquanto quantum de
riqueza. O valor de uso da mercadoria só pode ser medido de forma relacional, ou seja,
na relação entre mercadorias, que passam a ser trocáveis e medidas por um equivalente
comum, que é o dinheiro. O dinheiro, portanto, nada mais é do que o símbolo do valor
de troca.
Se a mercadoria é a aparência da riqueza e o valor de troca (e,
consequentemente, o dinheiro que lhe corresponde) é riqueza, nem um nem outro geram
riqueza. O que gera riqueza é uma potência viva que no capitalismo também é
transformada em mercadoria, mas permanece sendo uma mercadoria singular, sui
generis, que é a força de trabalho. A força de trabalho é singela porque é a única
mercadoria que não só repassa o seu valor de troca quando inserido em uma relação de
troca, mas também produz um novo valor, um mais-valor, em uma data mercadoria
produzida.
Este mais-valor é um valor a mais na mercadoria que é produzida pelo
trabalho, valor este que excede o simples repasse dos valores das mercadorias que
antecedem e originam a criação desta nova mercadoria (as matérias primas, instalações
físicas, equipamentos, ferramentas, força de trabalho utilizadas na produção da
mercadoria). A força de trabalho, o trabalho vivo, é a única produtora de riquezas, de
valor e mais-valor (que é o excedente do valor, produzido pelo operário e apropriado
pelo capitalista).
Deste modo, a exploração do trabalho produtivo de mais-valor, efetuado pela
classe proletária, é a chave da riqueza capitalista, e é a partir dela que é possível a
produção de capital e acumulação de capital. O processo produtivo no capitalismo se dá
em uma cadeia em que “o dinheiro é transformado em capital, (...) por meio do capital é
produzido mais-valor e do mais-valor se obtém mais capital” (MARX, 2017, p. 785),
repetindo-se esta relação ciclicamente.
Como se vê, o dinheiro se encontra no início deste processo de produção de
capital. Mas o dinheiro nada mais é do que expressão da produção capitalista, mais
especificamente, da produção das mercadorias e do seu valor de troca. Se o dinheiro é o
símbolo destas coisas (as mercadorias), são as mercadorias que se encontram na base
produtiva capitalista. A mercantilização de tudo, portanto, se coloca como o primeiro
passo da acumulação capitalista. A mercadoria coloca em relação proprietários e não-
proprietários, na medida em que constrange seus possuidores a vendê-la, e os não
possuidores a comprá-la, inserindo como mediador desta relação de troca o dinheiro.
A riqueza no modo de produção capitalista aparece como uma enorme coleção
de mercadorias, mas esta coleção só se coloca inicialmente para os que detêm os meios
de produção, que são proprietários não produtores. Os produtores, por sua vez, não
proprietários, são expropriados de suas terras e necessitam entrar nas relações de
produção capitalista sendo possuidores de uma única mercadoria que podem dispor para
a venda: sua força de trabalho.
É justamente este processo inicial de expropriação e mercantilização (da força
de trabalho, dos meios produtivos etc.) que constitui a acumulação originária de capital,
que gera dinheiro, mais mercadorias, mais-valor e mais acumulação de capital,
reforçando o ciclo produtivo (dinheiro-capital-mais-valor-capital) mencionado
anteriormente. Marx explica este processo da seguinte forma:
a acumulação do capital pressupõe o mais-valor, o mais-valor, a produção
capitalista, e esta, por sua vez, a existência de massas relativamente grandes
de capital e de força de trabalho nas mãos de produtores de mercadorias.
Todo esse movimento parece, portanto, girar num círculo vicioso, do qual só
podemos escapar supondo uma acumulação “primitiva” (“previous

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

accumulation”, em Adam Smith), prévia à acumulação capitalista, uma


acumulação que não é resultado do modo de produção capitalista, mas seu
ponto de partida (MARX, 2017, p. 785).
Acumular capital significaria, em um primeiro momento, por um lado,
transformar em capital “os meios sociais de subsistência e de produção”, e, por outro,
“converter os produtores diretos em trabalhadores assalariados” (MARX, 2017, p. 786).
Esta acumulação originária é o pressuposto do capitalismo, e “ela aparece como
‘primitiva’ porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção que lhe
corresponde” (MARX, 2017, p. 786).
Em um segundo momento, a riqueza produzida pelo trabalho dos trabalhadores
assalariados e apropriada pela burguesia seria parcialmente reinvestida na produção,
tornando-se capital, no ciclo de transformação do dinheiro-capital-mais-valor-capital
que Marx já apontava. A produção de capital é necessariamente cumulativa, uma vez
que busca se expandir, enquanto é concentrada e centralizada ao longo do tempo.
Esta nova acumulação, já não mais primitiva, vai assumindo novas formas que
se cristalizam ao longo de determinada época. Estas formas são essencialmente formas
que o capital assume para realizar a valorização do valor, isto é, aumentar o quantum de
mais-valor, e derivado disso, emerge um conjunto de outras formações sociais
adequadas a esta forma de valorização.
A organização do trabalho, o Estado capitalista e as relações internacionais
entre os países capitalistas, entre outras questões, são determinados pela formação do
capital em seu processo de acumulação na valorização do valor, isto é, pelo regime de
acumulação de capital. Quer dizer, o Estado deriva da acumulação capitalista5. Uma vez
derivado, esta acumulação constitui a essência do Estado, e este passa a reforçar a
acumulação de capital.
Isto nos remete para a seguinte questão: para compreendermos a constituição
do Estado e de suas formas, é necessário compreendermos primeiramente a acumulação
capitalista e os regimes de acumulação de capital. Como já sabemos quais os elementos
centrais que Marx nos fornece para entendermos a acumulação de capital, faz-se ainda
necessário verificarmos: o que é um regime de acumulação?

O que é regime de acumulação de capital?

Pensar a história do desenvolvimento do capitalismo significa pensar a história


da sucessão dos regimes de acumulação de capital. O primeiro passo nesta direção foi
dado por Karl Marx, quando este analisa o processo de transformação da sociedade
feudal em burguesa (MARX, 2011; MARX e ENGELS, 2006). No capítulo 24 do livro
um de O Capital, dedicado a discutir a “assim chamada acumulação primitiva de
capital”, Marx demonstra o percurso histórico de transição do feudalismo para a
sociedade capitalista e sua consolidação, que, em seguida, gerou a formação do primeiro
regime de acumulação propriamente capitalista.
Marx não realizou uma periodização do capitalismo, devido à sua vida ter se
limitado apenas durante ao primeiro século do capital consolidado, e por isto, ele
5
Gilberto Mathias e Pierre Salama chamam atenção para o fato de que, nos países subdesenvolvidos, o
Estado não seria derivado do capital, tal como ocorreu na Europa, isto é, produto do desenvolvimento das
contradições internas destes países (que gerou o capital, e consequentemente, o Estado). Na realidade dos
países subdesenvolvidos, o Estado seria resultado de um modo de produção que “não emergiu das
entranhas da sociedade [destes países], mas foi de certo modo trazido do exterior: e foi precisamente isso
que criou o subdesenvolvimento” (MATHIAS e SALAMA, 1983, p. 29). Ou seja, estes contextos seriam
marcados por uma relação de difusão mercantil incompleta e específica, que teria o subdesenvolvimento
como fenômeno central de origem do Estado local.

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somente chegou a pensar o desenvolvimento do capital até o seu tempo. Porém, se Marx
não pôde analisar o capitalismo depois dele, ele nos forneceu importantes elementos de
suas tendências. Assim, a história da humanidade, para a perspectiva marxista, é a
história do desenvolvimento e sucessão de diferentes modos de produção. A história do
capitalismo, como já colocado anteriormente, é a história da sucessão de regimes de
acumulação.
Enquanto a sucessão de modos de produção significa a transformação radical
de uma forma de sociedade em outra, o desenvolvimento dos regimes de acumulação
significa apenas uma mutação no interior de uma permanência, pois diversos elementos
da sociedade capitalista se alteram, mas o seu essencial permanece inalterado. A
alteração de regimes de acumulação gera transformações no interior da sociedade
capitalista, o que implica na manutenção da sociedade capitalista sob determinadas
formas renovadas.
Deste modo, partimos da teoria dos regimes de acumulação, tal como
elaborada por Viana (2009, 2015), em diálogo crítico com autores como David Harvey,
Rostow, Sweezy, Gunder Frank, Samir Amin, Rabah Benakouche, Lipietz, etc. Segundo
Viana, “um regime de acumulação é um determinado estágio do desenvolvimento
capitalista, marcado por determinada forma de organização do trabalho (processo de
valorização), determinada forma estatal e determinada forma de exploração
internacional” (VIANA, 2009, p. 29-30). Sendo assim, o regime de acumulação é, em
síntese, um determinado estágio da luta de classes (VIANA, 2009).
Em outras palavras, “o regime de acumulação (...) é a forma que o capitalismo
assume durante o seu desenvolvimento” (VIANA, 2009, p. 31). A teoria dos regimes de
acumulação, portanto, permite compreendermos as continuidades e descontinuidades do
capitalismo, desde o seu processo de gênese até os dias atuais. O mesmo pode ser dito
sobre o Estado capitalista, que tem sua dinâmica fundamentalmente determinada por
tais mutações dos regimes de acumulação. Isto porque cada regime de acumulação gera
formas de regularização que lhes são correspondentes, e o Estado capitalista é a
principal instituição regularizadora da sociedade capitalista (VIANA, 2009).
Se um regime de acumulação se constitui pela tríade relacional entre
organização do trabalho, forma estatal e relações internacionais, é preciso conhecermos
quais são os regimes de acumulação e como estes três elementos se manifestam em cada
regime, antes de adentrarmos propriamente no debate específico sobre cada forma
estatal.

Relação entre formas estatais e regimes de acumulação de capital

Avançando além do que colocou a teoria da derivação, entendemos que tal


como o Estado deriva da acumulação de capital, as formas estatais derivam dos regimes
de acumulação. Isto é dizer que não foi apenas o Estado capitalista derivou
originalmente do modo de produção capitalista, mas que cada forma estatal em
determinada época deriva do regime de acumulação que marca esta respectiva época.
Neste sentido, as formas estatais não são tipologias, criadas a priori e de forma
ideal por um pensador, como modelos que são em seguida aplicados esquematicamente
à realidade, encaixando a realidade aos modelos. Em verdade, as formas estatais são
conceitos que expressam as formações sociais que o Estado assume em determinado
momento histórico, em determinado país.
É preciso notar que uma mesma forma estatal pode conter uma diversidade
interna de manifestações concretas, que varia segundo a realidade nacional, o governo,
as relações internacionais, entre outras razões, em síntese, segundo as lutas de classes.

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Este é o caso do Estado neoliberal, que pode apresentar diversas formas de


neoliberalismo: progressista6, discricionário7, neopopulista8, conservador9 etc. Com isto,
uma forma estatal preserva uma unidade na diversidade, possuindo distinções internas,
mas também um núcleo em comum que se manifesta em meio à sua multiplicidade.
Na relação indissociável entre o Estado e sua natureza capitalista, é possível
pensarmos que as mudanças das formas que assumem o capital (os regimes de
acumulação) geram também mudanças nas formas do Estado. Por isto, para a
compreensão das formas estatais historicamente constituídas na sociedade capitalista é
preciso partirmos de uma teoria dos regimes de acumulação de capital, já que a
manutenção do Estado capitalista só é possível com a manutenção da acumulação
capitalista. Como já vimos os aspectos fundamentais da teoria dos regimes de
acumulação, faz-se indispensável analisarmos cada regime de acumulação em
específico.
Entendemos que o capitalismo moderno e consolidado possui quatro principais,
mas não únicos10, regimes de acumulação em sua história até os dias atuais. O primeiro
regime de acumulação propriamente capitalista é o Extensivo, que surge após as
revoluções industriais e se estende até o final do século 19. O segundo regime de
acumulação é o Intensivo, surgido em finais do século 19 e vigente até a Segunda
Guerra Mundial. O terceiro regime de acumulação é o Conjugado, que se origina no
pós-Guerra e dura até os anos 1970. Em princípios dos anos 1980, origina-se o quarto e
atual regime de acumulação, o Integral. Assim, o desafio que se coloca agora é
compreendermos as diferentes formas estatais com base nestes distintos regimes de
acumulação.

As formas estatais

O Estado Absolutista

Se dissemos anteriormente que, assim como o Estado deriva do capital, as


formas estatais derivam dos regimes de acumulação, logo, a consequência lógica é que
não há forma estatal que precede ao primeiro regime de acumulação propriamente
capitalista, denominado de Extensivo. No entanto, o capitalismo é uma sociedade que
tem o seu modo de produção originado na sociedade que lhe é precedente, o feudalismo.
Esta transição entre os modos de produção feudal e capitalista se deu em uma forma
originária de acumulação de capital, a “assim chamada acumulação primitiva”.

6
Nancy Fraser (2017) identifica o neoliberalismo progressista nos EUA a governos como os de Bill
Clinton (1993-2001) e Barack Obama (2009-2017).
7
C. J. Polychroniou (2013) descreve a forma do neoliberalismo discricionário na realidade da Grécia
pós-crise de 2008, enquanto Nildo Viana (2016) entende que esta foi a forma que o neoliberalismo
brasileiro assumiu com o governo de Michel Temer.
8
Os governos petistas de Lula e Dilma se constituíram por uma combinação entre neoliberalismo e
neopopulismo (ALMEIDA, 2018).
9
O neoliberalismo conservador se manifesta na maioria dos governos neoliberais, como o de Thatcher no
Reino Unido e de Trump nos EUA.
10
Viana (2015) menciona a existência de outros regimes de acumulação não hegemônicos no capitalismo
mundial, como o regime de acumulação bélico (vigente durante o período do nazi-fascismo nos países
sob este regime), o regime de acumulação estatal (existente nos países de capitalismo de Estado,
equivocadamente identificados como socialistas, como URSS, Cuba, Coréia do Norte, Iugoslávia etc.), e
os regimes de acumulação subordinados (vigentes nos países de capitalismo subordinado, como os da
América Latina).

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Esta acumulação primitiva, como pontuava Marx, é prévia à acumulação


capitalista, sendo uma acumulação que não é resultado do modo de produção capitalista,
mas justamente o seu ponto de partida. Esta acumulação corresponde ao
desenvolvimento de um capitalismo ainda em formação, portanto, não consolidado, no
interior da sociedade feudal em declínio.
Ainda que não consolidadamente capitalista, a acumulação primitiva também
apresenta os três pilares de um regime de acumulação de capital: uma forma estatal,
relações internacionais e modo de organização do trabalho. A acumulação primitiva
representou um processo consecutivo de expropriação de terras, que se inicia na Europa
Ocidental, local onde o capitalismo se originou. A passagem de imensos contingentes
do campo para as cidades formava não só os centros urbanos modernos, como também a
divisão social do trabalho capitalista.
As classes fundamentais oriundas desta divisão foram os expropriados,
produtores não-proprietários, a classe operária, e os expropriadores, proprietários não-
produtores, os burgueses, sobretudo na sua fração de burguesia comercial e, em seguida,
industrial. Formou-se também um enorme exército industrial de reserva, isto é, uma
imensa massa de desempregados, que compõem o lumpemproletariado. A expropriação
– separação dos produtores dos meios de produção – era seguida da mercantilização, ou
seja, da transformação em mercadoria de todas as condições de vida dos trabalhadores,
que eram despojados delas e eram constrangidos a vender sua única mercadoria
remanescente: a força de trabalho, tornando-se trabalhadores assalariados.
Esta transformação das coisas e potências em mercadorias gerava uma grande
produção e circulação de mercadorias, que passava a assumir a forma de um
mercantilismo europeu. A imensa concentração inicial da riqueza, expressa nas
mercadorias, só foi possível com o deslocamento de matérias-primas oriundas de fora
do continente europeu, que eram a base substancial do capital manufatureiro desta
acumulação primitiva. Este processo representou o saqueamento das Américas, da
África e da Ásia, em uma forma de relação internacional denominada colonialismo.
Neste momento, o capital comercial produzia uma concentração de fortuna monetária,
que foi a condição para o desenvolvimento do capital industrial.
A formação dos Estados-nações é concomitante com este processo, na medida
em que o capital adquire maior circulação e as fronteiras territoriais passam a ser uma
necessidade de unificação nacional. Estas nações são governadas por uma forma estatal
própria da acumulação primitiva, que era o Estado Absolutista. Neste sentido, “o estado
absolutista, em termos de classes, se constituía como uma aliança entre nobreza e
burguesia mediada pela burocracia monárquica” (VIANA, 2015, p. 45).
O monarca, que encarna a ideia de poder absoluto do governante, pode ou não
estar vinculado à ideia de “direito divino dos reis”. Nascida no século 17, mais
especificamente a partir do governo de Luís XIV de França11, o Estado Absolutista era
uma tentativa de reação feudal à deterioração do poder feudalista, e que se aliava com a
nascente burguesia e a nobreza porque via que o poder político e financeiro dos
monarcas era insuficiente para governar isoladamente a sociedade em suas constantes
transformações12.

11
Refiro-me exclusivamente ao monarquismo absolutista, específico do Estado Absolutista, e não a
outras formas de governos monarquistas anteriores ou posteriores.
12
Não custa lembrar que a acumulação primitiva se inicia no século 16, portanto um século antes do
Estado Absolutista, com o colonialismo e a expropriação e cercamento (enclosures) de terras na
Inglaterra.

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O monarquismo e o absolutismo foram questões discutidas por filósofos


durante os vários séculos da transformação da sociedade feudalista em capitalista.
Nicolau Maquiavel (1469-1527), um pensador da fase final do renascentismo (e anterior
à acumulação primitiva de capital) já via o Estado como um fim em si mesmo, e
acreditava que um bom Estado dependia de um bom governante. Este autor rompe com
uma leitura medieval teológica acerca do Estado, e até mesmo com um determinado
elemento recorrente do renascentismo de defesa de um Estado ideal próximo à
perfeição.
Durante a acumulação primitiva, no século 17, diversos intelectuais trataram a
questão do Estado, principalmente os filósofos ingleses, em meio às transformações
econômicas na Inglaterra deste período. Tais autores abordam esta temática em meio a
um debate sobre processos civilizatórios e a relação indivíduo-Estado. Hobbes (1588-
1679) defendia um Estado absolutista, que teria um núcleo comum com a Igreja, e que
deveria impedir o homem de manifestar a sua própria natureza perversa. Locke (1632-
1704) defendia um Estado formado a partir da defesa da propriedade privada, e
apontava a necessidade de um contrato social.
Estes autores, porém, ainda carregavam as marcadas das contradições da
sociedade feudalista em que viviam, e por isto reproduziam parcialmente elementos
desta sociedade. Foram os intelectuais iluministas que passaram a radicalizar a sua
crítica ao Estado Absolutista e pautar a necessidade de um Estado Liberal. Estes autores
eram opostos a ideia de poder absoluto, defensores de um contrato social racional e da
passagem de um “estado de natureza” para um “estado civil”.
Rousseau (1712-1778) defendia a possibilidade não só de governos
monárquicos, como também aristocráticos e mesmo democráticos. Para ele, era
fundamental o estabelecimento de um “Estado Civil” que garantisse o “contrato social”
dos direitos dos cidadãos e de suas liberdades individuais. Do mesmo modo, Voltaire
(1694-1778), David Hume (1711-1776) e Immanuel Kant (1724-1804) interpretavam o
Estado a partir de suas aspirações burguesas, que representava a correlação de forças
materiais e ideológicas que a burguesia acumulava durante este século 18, que
culminaram na Revolução Francesa.

O Estado Liberal

As revoluções burguesas, e dentre elas, a mais decisiva e influente, a


Revolução Francesa (1789-1799), representaram a derrocada final do feudalismo e
consagração da burguesia como classe dominante, agora não apenas economicamente,
mas também politicamente. A acumulação primitiva de capital vinha reduzindo
gradativamente, na mesma medida em que a acumulação extensiva de capital crescia. O
Estado Absolutista é derrubado nestas revoluções burguesas, e em seu lugar surge a
primeira forma estatal propriamente capitalista: o Estado Liberal.
Esta forma estatal era correspondente ao primeiro regime de acumulação
definitivamente capitalista: o Extensivo. O regime extensivo se caracterizava pela
organização do trabalho na forma de extensividade (constituído fundamentalmente na
extração de mais-valor absoluto), pelas relações internacionais expressas no
neocolonialismo e pela forma estatal do Estado Liberal.
Com a internacionalização do capitalismo, há uma tendência crescente de
transformação dos modos de produção pré-capitalistas e não capitalistas em modo de
produção capitalista. Isto se dá pela necessidade de ampliação da produção, circulação e
consumo das mercadorias a nível mundial – o que demandava, por exemplo, a
transformação da força de trabalho escrava em assalariada. Por isto, a antiga relação

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colonial é consequentemente substituída pelo neocolonialismo, que passava a exportar


mercadorias e importar matérias-primas dos países subordinados, contribuindo com o
desenvolvimento do capitalismo nesses países.
Na própria Europa, o trabalho operário era organizado sob a brutalidade da
exploração ininterrupta capitalista, caracterizada por longas jornadas de trabalho,
chegando até a 16 horas, utilização da força de trabalho de crianças, jovens e mulheres,
pagamento de salários extremamente reduzidos, enfim, com a degradação das condições
de vida dos trabalhadores, que em muitos casos eram obrigados a viverem nos arredores
das fábricas. Com isto, a burguesia extraia uma imensa quantidade de mais-valor
absoluto, através principalmente da elevação do tempo de trabalho da jornada produtiva.
O Estado Liberal era coberto pelo manto ideológico da igualdade (jurídica) dos
cidadãos, das liberdades individuais e dos direitos com relação à propriedade, que
representavam uma “cidadania civil” da sociedade burguesa. A democracia passou a ser
cultivada como uma espécie de valor universal, e nada mais era do que uma forma de
dominação da burguesia, criada como uma arma da classe burguesa para unificar a
população em sua antiga luta contra o feudalismo (PANNEKOEK, 2010).
Mas mesmo esta democracia era restrita neste momento, pois as instituições
capitalistas ainda não eram tão desenvolvidas quanto viriam a se tornar depois, e a
classe dominante restringia a possibilidade de representação eleitoral aos homens das
classes privilegiadas, sendo esta uma democracia censitária. O Estado Liberal era um
Estado de Direito, e previa a existência dos poderes constitucionais, como os
Parlamentos, e representava um Estado laico, que era separado do domínio da Igreja,
No que se refere às produções ideológicas a respeito do Estado, o período pós-
Revolução Francesa foi marcado pela substituição do Iluminismo pelo Romantismo,
que teve vigência do final do século 18 ao 19, que é justamente a época do regime de
acumulação extensivo. O desenvolvimento do capital neste momento histórico, e mais
ainda, as lutas de classes em curso neste período, são fundamentais para
compreendermos a produção ideológica quanto ao Estado.
Hegel (1770-1831), talvez mais do que qualquer outro pensador de sua época,
foi aquele que melhor expressou em seu pensamento – acriticamente, é importante dizer
– as profundas transformações burguesas que marcaram o período transitório entre a
burguesia como classe revolucionária (antes da Revolução Francesa) e dela como classe
conservadora e dominante (após a Queda da Bastilha).
Hegel apresenta uma concepção teleológica e evolutiva da história, que teria
desembocado no Estado racionalista, o que representava uma defesa do Estado burguês
vitorioso após o fim do absolutismo. É neste sentido que ganha força a ideia do “Estado
constitucional dos cidadãos livres”, que por “liberdade” nada mais era do que a
liberdade com relação à terra e aos senhores, a liberdade de venda da força de trabalho,
assim como a igualdade jurídica e o direito à propriedade privada.
Se Hegel expressa justamente a ideologia dominante da época transitória entre
o Estado Absolutista e o Estado Liberal, os hegelianos foram alguns dos principais
responsáveis pelas representações ideológicas sobre o novo Estado capitalista. De um
lado, temos os “jovens hegelianos”, ou hegelianos de esquerda, como Ludwig
Feuerbach, Bruno Bauer e Max Stirner etc., e de outro, os hegelianos de direita, como
Heinrich Leo, Karl Daub e Hermann Friedrich Wilhelm Hinrichs, que possuíam entre si
afinidades e divergências.
Ambos os lados colocavam, no mais das vezes de forma apologética, que “o
Estado é Deus”, isto é, algo todo poderoso, o que manifestava uma compreensão de que
o poder do Estado burguês estaria além da ação humana, tal como a própria ideia de

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Deus13. Dentre os jovens hegelianos, Ferdinand Lassalle (1825-1864) foi um dos mais
influentes no que se refere à consagração de uma determinada interpretação a respeito
do Estado. Lassalle foi o formulador da ideia de “socialismo de Estado”, concepção
estatista que foi historicamente confundido com a proposta de abolição do Estado de
Marx14.
Marx e Engels nos anos 1840 já haviam rompido com o hegelianismo, e
afirmam no Manifesto Comunista que o Estado nada mais é que um “comitê para gerir
os negócios comuns de toda a classe burguesa” (MARX e ENGELS, 2006, p. 86), ou,
como diria Engels mais tarde em Do socialismo utópico ao socialismo científico, um
"capitalista coletivo ideal" (ENGELS, 1999, p. 117).
Em 1875 é fundado em um Congresso realizado na cidade de Gotha “o Partido
Socialista dos Trabalhadores da Alemanha (SAPD, da sigla em alemão), que em 1890
teve seu programa e nome alterado para Partido Social-Democrata da Alemanha (o
SPD, da sigla alemã)” (ALMEIDA, 2017). A socialdemocracia alemã, de forte
influência lassalliana, passou a assumir a hegemonia do movimento socialista
internacional, e com isto, direcionou a luta dos trabalhadores com relação ao sufrágio
universal.
A luta operária, no entanto, que desde as revoluções de 1848 se encontrava em
refluxo na Europa, viveu uma efervescência com a Comuna de Paris de 1871, que
representou a primeira tentativa de revolução proletária na história do capitalismo, e
após isso voltou a cair em refluxo, período este em que SAPD e o SPD se originaram.
Neste momento, o regime de acumulação Extensivo já estava em declínio,
juntamente com o Estado Liberal, devido às crises provocadas pela queda da taxa de
lucro dos anos 1870 e pela ascensão das lutas operárias que culminou na Comuna de
Paris. Os trabalhadores há anos batalhavam pela redução da jornada de trabalho, por
melhores condições de trabalho e contra a exploração do trabalho infantil e feminino,
assim como pelo reconhecimento das suas organizações de classe (partidos e
sindicatos).
Com o fortalecimento da socialdemocracia, a luta pela inserção dos
representantes dos trabalhadores na democracia eleitoral (sufrágio universal) também
veio à tona, o que gerava dificuldades para os capitalistas reproduzir a acumulação de
capital, devido ao conjunto destas lutas de classes dentro e fora da esfera produtiva. É aí
que um novo regime de acumulação, e com ele, uma nova forma estatal, é desenvolvido
pelo capital.

O Estado Liberal-Democrático

As transformações de regimes de acumulação são sempre reações capitalistas a


derrotas que a burguesia sofre em determinadas épocas. No caso do regime de
acumulação Intensivo, que emerge após a queda do regime Extensivo, não foi diferente.
A classe operária conseguiu reduzir a jornada de trabalho para 12 horas e 10 horas em
alguns países. As organizações dos trabalhadores obtiveram amplo apoio popular e
tiveram uma grande difusão, o que obrigou o Estado a reconhecer a sua existência e

13
É neste sentido que Marx parte, na Introdução da Crítica da filosofia do direito de Hegel, da crítica da
religião como pressuposto para a crítica da política, da economia, da filosofia etc. (MARX, 2010).
14
Para uma discussão sobre as razões pelas quais a concepção de Estado de Marx foi confundida com a
de Lassalle, assim como com outras concepções distintas que passaram a ser associadas ao marxismo e
deforma-lo, cf. ALMEIDA, 2017.

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alguns direitos mínimos do proletariado. O movimento socialista internacional ganhava


corpo cada vez mais, a partir de fins do século 19.
Contudo, com a emergência do regime de acumulação Intensivo, o capitalismo
se reconfigura e reestabiliza cada aspecto ameaçado de seu domínio. O capital toma a
obra de Taylor para promover uma “administração científica do trabalho”, pois, na
medida em que a jornada de trabalho foi reduzida, a burguesia pôde aumentar a
produtividade durante um mesmo tempo de trabalho, o que amplia a extração de mais-
valor relativo. Deste modo, o taylorismo é a forma como o regime Intensivo organiza o
trabalho, aumentando-se a produtividade com a organização do processo do trabalho,
através de mecanismos como a disciplina, a supervisão, o controle do tempo, a
padronização etc.
Do ponto de vista das relações internacionais, o neocolonialismo dava lugar ao
imperialismo financeiro, que, devido à centralização e concentração de capital oriundas
do período anterior, “proporcionou a formação dos oligopólios e a dinâmica do
capitalismo oligopolista passou a ser centrada na acumulação intensiva” (VIANA, 2015,
p. 125). Ou seja, há um aumento exponencial da extração de mais-valor relativo nos
países de capitalismo imperialista, e um deslocamento gradativo da forma de trabalho
extensiva (baseado em longas jornadas de trabalho) da Europa para os países de
capitalismo subordinado.
Com isto, inicia-se a tendência, que será intensificada no momento histórico
posterior, de parte do mais-valor absoluto explorado dos operários destes países ser
transferido para as nações imperialistas de origem dos oligopólios sob a forma de
capital-dinheiro (BENAKOUCHE, 1980 apud VIANA, 2015). Era necessário expandir
estes oligopólios para novas regiões do planeta, e é neste contexto que se dá a
Conferência de Berlim de 1884-1885 que tratou de promover a Partilha da África entre
as nações imperialistas (em sua maioria, europeias).
Neste regime Intensivo, que teve vigência entre os anos 1870 e 1940, o Estado
Liberal também foi substituído por uma nova forma estatal: o Estado Liberal-
Democrático. Este Estado promoveu um processo de ampliação da cidadania,
abrangendo os direitos políticos (cidadania política), o que representava a extensão do
direito ao voto (sufrágio universal) inicialmente aos homens das classes
desprivilegiadas e, posteriormente, às mulheres
Com isto, houve também a legalização das organizações operárias (partidos e
sindicatos) e do direito à greve, o que tratou de arregimentar estas organizações e
formas de luta. Ocorre a legalização da classe operária (EDELMAN, 2016), uma forma
encontrada pelo capital de conter na sua dinâmica institucional qualquer insatisfação
dos trabalhadores, erradicando as possíveis aspirações insurrecionais e revolucionárias
do proletariado. A transformação da democracia censitária em democracia partidária
significava uma institucionalização da luta de classes pela democracia burguesa.
Com a institucionalização das organizações operárias, dando a elas um caráter
jurídico, legal e eleitoral, o capital promove uma onda de burocratização da sociedade
civil, criando a sociedade civil organizada (VIANA, 2015). O Estado Liberal-
Democrático, nesta medida, reforçava um imaginário comum na crença de sua suposta
superioridade diante dos conflitos de classe, buscando integrar em sua lógica
reprodutiva as classes desprivilegiadas.
O regime de acumulação Intensivo corresponde ao período de consolidação da
socialdemocracia, no final do século 19, e das suas rupturas, dando origem a correntes
como o bolchevismo (que adquiriu a hegemonia no interior do movimento socialista
internacional a partir de 1917, quando da tomada do poder na Rússia por Lênin) e o
comunismo de conselhos (que emerge a partir da radicalização teórica das experiências

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revolucionárias dos sovietes e dos Conselhos Operários durante, principalmente, a


Revolução Alemã, Húngara e Italiana dos anos 1910 e 1920)15.
Tanto na concepção socialdemocrata – seja em sua origem (com forte
contribuição de Engels), seja na sua fissura (já sob grande influência de Kautsky) –
quanto na concepção bolchevique (em Lênin, Trotsky ou Stálin), os construtos do
“Estado-instrumento” e do “Estado-função” foram largamente utilizados para interpretar
o Estado sob o manto do socialismo.
A diferença entre ambos era não tanto a respeito do Estado, quanto do regime
político. Enquanto os socialdemocratas aderiram às ilusões da democracia burguesa e
não almejavam romper com ela, os bolcheviques consideravam a democracia eleitoral
um engodo, mas, assim como os socialdemocratas, desejavam o poder do Estado,
substituindo apenas seu governo (o que, para os bolcheviques, já seria a ascensão ao
socialismo).
A crítica radical no campo do marxismo que se faz ao Estado nesta época era
aquela efetuada pelos comunistas conselhistas (que se opunham aos “comunistas de
partido”, socialdemocratas e bolcheviques), que viam a democracia como a via suave e
a ditadura como a via dura da exploração capitalista (PANNEKOEK, 2010), e
propunham a abolição do Estado simultaneamente à do capital, pois entendiam que
ambos nasceram juntos e só poderiam ser derrocadas conjuntamente também.
O Estado, na perspectiva conselhista, deveria ser abolido e em seu lugar era
necessário ser edificado a Comuna e os Conselhos Operários, formas de auto-
organização autogeridas pelos produtores livremente associados, tal como Marx já
propunha em sua análise diante da Comuna de Paris (MARX, 2011). Os conselhistas
combatiam, portanto, tanto a dominação burguesa quanto a burocrática, e recusavam
todas as ideologias e organizações que almejavam tomar o Estado, e não destruí-lo.
Como se vê, a primeira metade do século 20 foi marcada por diversas
tentativas de revoluções proletárias, o que estremeceu o capital, sobretudo porque a
queda da taxa de lucro já era uma realidade desde os anos 1920, o que representava uma
crise para o capital que demandava por um novo regime de acumulação.

O Estado Integracionista

A Segunda Guerra Mundial gerou uma enorme destruição de forças produtivas,


o que possibilitou uma ampliação e generalização da acumulação de capital sob novo
regime, sobretudo devido ao desenvolvimento tecnológico existente (VIANA, 2015).
Deste modo, o capital se reorganiza formulando o regime de acumulação Conjugado,
que tinha como tripé o fordismo como modo de organização do trabalho, o
imperialismo transnacional como forma de relações internacionais, e o Estado
Integracionista como forma estatal.
Com a intensificação da acumulação de capital, abria-se também a
possibilidade de buscar conter a luta operária. O fordismo aprimorava a organização do
trabalho taylorista, e se utilizava de uma ampla quantidade de tecnologias para acentuar
a extração do mais-valor relativo, pela via do aumento do ritmo e intensidade da

15
Várias outras correntes existiam no movimento socialista internacional. As mais radicais no interior do
marxismo ficaram conhecidos pela terminologia “esquerdista” dada por Lênin contra seus adversários, em
sua famigerada obra Esquerdismo, doença infantil do comunismo. Sob esta classificação se encontravam
tanto Comunistas Conselhistas (Karl Korsch, Paul Mattick, Anton Pannekoek, Herman Gorter, Otto
Rühle etc.), a Liga Spartacus (Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht, Clara Zetkin, Franz Mehring etc.) a
Esquerda Extraparlamentar Inglesa (Sylvia Pankhurst, Guy Aldred etc.), a Esquerda Comunista Italiana
(Amadeo Bordiga etc.), entre outros.

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atividade produtiva. O aumento da riqueza capitalista foi proporcionado nesta nova


onda de acumulação, que se expressava tanto na reconstrução dos territórios destruídos
durante a Guerra, quanto pelo aumento da extração e transferência do mais-valor
(relativo e absoluto) dos países de capitalismo subordinado para as nações imperialistas.
No regime de acumulação Conjugado, o imperialismo oligopolista assume a
forma transnacional, em que há um significativo deslocamento de empresas
(especialmente estadunidenses, francesas e japonesas) de seus países de origem para o
capitalismo subordinado. Este é o caso das montadoras de automóveis, que aumentam a
sua produção industrial em larga escala sob regime fordista. Com o aumento da
tecnologia, aumenta-se não apenas a produção, mas também o consumo de mercadorias.
O Estado Liberal-Democrático dá lugar ao Estado Integracionista, também
chamado de Keynesiano, “Estado de bem estar social” ou Welfare State. Esta forma
estatal buscava “integrar” a classe operária ao capitalismo através principalmente do
consumo de mercadorias, com reprodução ampliada do mercado consumidor, mas
também aumentando os níveis de renda, os direitos e benefícios sociais. A cidadania é
expandida para cidadania social, em que o Estado assegurava ao conjunto da população
direitos como saúde, segurança e educação de qualidade, além de benefícios como
aposentadoria, seguridade social, etc. Por isto este período ficou conhecido como “os
anos de ouro” da Europa.
Porém, esta integração da classe operária nunca se deu de forma plena, e este
Estado de bem estar social só teve existência nas nações imperialistas da Europa
Ocidental e EUA, e tão somente porque encontravam a fonte de manutenção desta
riqueza na transferência de mais valor dos países de capitalismo subordinado para os
tais nações imperialistas. Integrar a classe operária era um objetivo para o Estado e para
o capital tanto para evitar que ela se sublevasse, quanto se aliasse ao capitalismo de
Estado da União Soviética, então chamado de “comunismo”.
Como há um aumento expressivo da exploração nos países de capitalismo
subordinado para sustentar a riqueza usufruída nos países imperialistas, há também um
aumento da reação das classes trabalhadoras, que leva ao acirramento da luta de classes.
Como resposta, o Estado nestes lugares amplia o seu grau de repressão, adotando a
forma ditatorial, como ocorreu em diversos países da América Latina nos anos 1960-
1980. Tais ditaduras são respostas do Estado no capitalismo subordinado diante do
aumento da resistência dos trabalhadores. E este cenário é o resultado do deslocamento
dos conflitos sociais das nações imperialistas para as subordinadas, pela via da
transferência e aumento da exploração.
O Estado intervencionista e integracionista foi alvo de inúmeras reflexões pelos
pensadores contemporâneos ao regime de acumulação conjugado. Quatro distintas
concepções gerais sobre este fenômeno são aqui interessantes de serem retomadas. A
primeira, a perspectiva dominante do “marxismo” do leste europeu, a soviética, que
partia da ideia de “Estado-instrumento” engelsiana e era reforçada pela ideologia
stalinista. Esta ideologia afirmava que bastava mudar a classe dominante (burguesia por
proletariado) para que o Estado se tornasse um instrumento adequado para o
“socialismo” (isto é, para realizar a metamorfose jurídica da propriedade privada para o
Estado, sem alterar em nada a valorização do valor e a exploração do mais-valor). Este
era o “marxismo oficial” dos Partidos Comunistas de quase todo o mundo.
A segunda, a concepção crítica de autores conservadores e reacionários, como
Hayek, Milton Friedman e Von Mises, que não encontravam maior ressonância naquela
época, e se opunham ao Estado Integracionista, defendendo um Estado Liberal ou
Neoliberal. As ideias destes autores só ganharam força décadas depois, quando o regime

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de acumulação conjugado já não mais satisfazia ao capitalismo em razão de suas novas


crises.
A terceira é de autores com pensamentos distintos entre si, mas que
partilhavam de uma determinada concepção sobre o Estado a partir da ideia de
“autonomia do político”. Autores estes como Poulantzas e Miliband, que defendiam
uma autonomia relativa do político frente ao econômico, e entendiam que o político
deveria ser estudado a partir de suas próprias categorias. Estes autores caíam em erro
semelhante ao de inúmeros juristas e liberais, que definem o jurídico e o Estado a partir
de si próprios.
A crítica a esta primeira e terceira concepção era feita justamente pela quarta
perspectiva a respeito do Estado neste momento que aqui nos interessa, que é a chamada
Teoria Derivacionista. O debate derivacionista, que se dá mais fortemente nos anos
1970 na Alemanha e 1980 na Inglaterra partia da necessidade de retomada de Marx para
realizar a análise da forma estatal daquela época.
Neste sentido, e diferente de Poulantzas e Miliband, os derivacionistas
consideravam que as categorias econômicas marxistas (mercadoria, mais-valor,
acumulação de capital etc.) eram fundamentais para compreender não apenas a
dimensão econômica, como também a política da sociedade capitalista.
E estes autores consideravam isto mesmo concordando que havia uma
autonomia relativa do político frente ao econômico (ou do Estado diante do modo de
produção). Os derivacionistas surgem justamente com a queda das ilusões a respeito do
Estado de bem estar social que houve na Europa Ocidental no final dos anos 197016, em
um momento já de crise do regime de acumulação conjugado.
No final dos anos 1960 se inicia mais uma vez a queda da taxa de lucro, que
vai se intensificando ao longo dos anos 1970. Concomitantemente, há uma retomada
das lutas operárias radicalizadas, e das lutas sociais de forma mais ampla, no final dos
anos 1960, expressas sobretudo pelo Maio de 1968, que manchou o véu ideológico da
integração da classe operária no centro do capitalismo mundial.
A retomada da radicalidade das lutas acompanha uma retomada das ideias
revolucionárias radicais, como o anarquismo, o autonomismo e o conselhismo. Mais
que isto, há uma retomada das teses de autoemancipação formuladas por Marx frente à
Comuna de Paris, que após o Maio de 1968 francês servem de base para a assimilação e
formulação do marxismo autogestionário (GUILLERM e BOURDET, 1976).

O Estado Neoliberal

Diante das dificuldades encontradas pelo capital em se reproduzir nos anos


1970, são resgatadas e desenvolvidas ideias antigas de autores conservadores e de
projetos burgueses que passaram a encontrar eco nesta nova conjuntura do capital. Nos
últimos anos desta década, e de forma mais consolidada nos anos 1980, forma-se o
regime de acumulação Integral que readequou as bases materiais e ideológicas do
capitalismo.
O trabalho passou a ser organizado através do toyotismo, que gerava uma
acentuação da organização do trabalho e do uso da tecnologia visando o aumento da
extração de mais-valor absoluto e relativo combinados. Esta mudança, denominada de
“reestruturação produtiva”, desenvolve todas as demais formas de exploração
capitalistas do trabalho, acrescentando novos elementos, como o método kan-ban, o

16
Não por coincidência, o texto inaugural do debate derivacionista se chama Die Sozialstaatsillusion (“A
ilusão do Estado Social”), de Rudolf Wolfgang Müller e Christel Neusüβ (CALDAS, 2015).

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trabalho em equipe, etc. Realiza-se a precarização das condições de trabalho com as


privatizações e terceirizações, aumenta-se o uso de métodos secundários de exploração
(como o pico em demanda, recompensa à produtividade, trabalho temporário etc.),
promove-se a desregulamentação das relações de trabalho, o que gera a desvalorização
da força de trabalho e acentua o processo da lumpemproletarização (VIANA, 2015).
Como há uma redução do nível de renda dos trabalhadores, reduz-se o
consumo e com isto a reprodução ampliada do mercado consumidor. Isto impacta na
esfera da produção, que tem que
desacelerar a produção de bens de consumo, seja através da transformação de
capital produtivo em capital improdutivo (capital financeiro), seja através de
guerras, o que permite um fortalecimento do capital bélico e a destruição das
forças produtivas nacionais que, no pós-guerra, tornam-se um mercado
consumidor subordinado (VIANA, 2015, p. 134)
Deste modo, desenvolve-se uma relação internacional pautada no
Hiperimperialismo, que promove uma constante destruição de forças produtivas e
aumento da transferência de mais valor para as nações de imperialismo avançado. A
combinação de extração de mais valor relativo e absoluto se dá com tanto o aumento da
produtividade quanto do tempo de trabalho, ainda que em jornadas de trabalho não
necessariamente contínuas.
Por consequência, o Estado Integracionista se torna uma impossibilidade neste
novo regime de acumulação, já que os gastos sociais são insustentáveis para esta nova
lógica do capital. O neoliberalismo, que era um conjunto de velhas ideias abandonadas
produzidas após a Segunda Guerra Mundial, torna-se um interesse do capitalismo e
adquire materialidade com a eleição dos primeiros governos neoliberais, que demarcam
a emergência do Estado Neoliberal.
Esta forma estatal foi pioneiramente iniciada com a eleição dos governos de
Margaret Thatcher no Reino Unido em 1979, Ronald Regan nos EUA em 1981, e
Helmut Kohl na Alemanha em 1982. Além destas nações imperialistas, o Chile pode ser
considerado como o laboratório do neoliberalismo, quando as teses neoliberais foram
aplicadas durante o governo do ditador Pinochet, de acordo com a política econômica
elaborada pelos Chicago Boys, quase dez anos antes daqueles países.
O Estado Neoliberal retoma a tese Liberal de não intervenção estatal na
econômica (o que é apenas uma retórica discursiva utilizada pela burguesia e seus
representantes intelectuais), reduzindo o Estado apenas à prestação de serviços básicos,
quando não somente ao seu caráter repressivo. Assim, todos os direitos sociais, políticas
de seguridade e benefícios aos trabalhadores são progressivamente reduzidos ou mesmo
eliminados.
No mais das vezes, o Estado Neoliberal se caracteriza tão somente como um
Estado Penal (WACQUANT, 2001), em que se acirra as práticas do encarceramento em
massa, da criminalização dos pobres e dos movimentos sociais, das formas punitivas e
do pan-penalismo, da militarização da vida cotidiana em comunidades e favelas, do
genocídio negro nas periferias, da vigilância e controle generalizados etc.
As políticas sociais universais são substituídas por políticas segmentares, e as
reformas estruturais são dispensadas em função de microrreformas. O Estado Neoliberal
é regido para ser mínimo e forte. Mínimo nos benefícios sociais para a população
(obviamente que com exceção da burguesia e dos altos extratos da burocracia e
intelectualidade), e forte em seu aparato repressivo, que juntamente com o aparato
judiciário tendem a ser os que mais recebem recursos e poder no Estado Neoliberal.
Certamente o Estado Neoliberal possui uma diversidade de formas de
manifestação, que dependem da realidade de cada país e época, em que estas tendências

195
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

gerais podem sofrer variações, que não chegam a ser significativas17. No regime de
acumulação integral, a produção mercantil atinge novos patamares, não somente com os
produtores descartáveis, a obsolescência planejada, produtos digitais e as mercadorias
para mercadorias (capa para celular, roupa para pets etc.), mas a cultura e as ideias se
tornam cada vez mais mercantilizadas. Um mercado de ideologias é produzido e
reproduzido sem cessar.
É neste momento, por exemplo, que surgem ideologias como a do “fim da
história”, de Fukuyama, e do “Estado impensável” dos pós-estruturalistas. A defesa de
revoluções totais é abandonada em lugar das revoluções segmentares. A compreensão
de um poder central (como o Estado e o capitalismo) é dissipada em função do poder
microfísico. O regime de acumulação integral produz, na dimensão cultural, o
paradigma hegemônico do pós-vanguardismo nas artes e do pós-estruturalismo nas
ciências (VIANA, 2015). Surge, com isto, uma “nova gramática da dominação”
(BOURDIEU e WACQUANT, 2002).

Considerações Finais

O presente trabalho buscou debater qual era a relação entre as formas


assumidas pelo Estado e a etapa de desenvolvimento do capitalismo em suas respectivas
épocas, isto é, os regimes de acumulação de capital. Para isto, vimos inicialmente uma
breve exposição a respeito do conceito marxista de Estado, destacando e diferenciando
outras compreensões que não a marxista.
Em seguida, retomamos os elementos gerais da teoria de Marx acerca da
acumulação de capital e das categorias basilares do modo de produção capitalista, para
chegarmos à compreensão da teoria dos regimes de acumulação de capital. E, por fim,
observamos cada uma das principais formas estatais, relacionando-as com seus
respectivos regimes de acumulação de capital.
Diante desta trajetória, verificamos que o objetivo deste artigo foi concluído,
uma vez que pudemos conhecer o modo como o modo de produção capitalista se
caracteriza como determinação fundamental do Estado, tal como os regimes de
acumulação se constituem como determinações fundamentais das formas estatais.
Com isto, concluímos que a análise marxista, autêntica e não deformada,
através do materialismo histórico-dialético (em especial, pela categoria de totalidade), é
uma ferramenta heurística intelectual de inestimável importância para o desvelamento
das múltiplas determinações do real, e para a contínua atualização do marxismo na
interpretação e crítica da sociedade capitalista e da realidade.

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Revista Enfrentamento, ano 12, nº 21, jan./jun. 2017, p. 13-47.

17
Para conhecer, por exemplo, a especificidade do neoliberalismo brasileiro durante os governos do PT,
cf. ALMEIDA, 2018.

196
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
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<http://informecritica.blogspot.com/2016/11/a-pec-24155-e-as-politicas-de_29.html>.
Acesso em 10 de julho de 2018.

18
Há uma tradução deste artigo em português em: POLYCHRONIOU, C. J. A tragédia da Grécia: Uma
acusação à teoria económica neoliberal, à elite política interna e ao duo UE/FMI. Disponível em
<http://resistir.info/grecia/polychroniou_mar13.html#asterisco>. Acesso em 10 de julho de 2018.

197
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

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TECNOLOGIA, INFORMAÇÃO E MERCADORIA NO CAPITALISMO


Julio Cesar Pereira Monerat
IF Sudeste MG – Campus Muriaé
julio.monerat@ifsudestemg.edu.br

Rubens Ahyrton Ragone Martins


IFMG - Campus Congonhas
rubens.ragone@ifmg.edu.br

Resumo
O artigo objetiva estabelecer a relação entre desenvolvimento tecnológico, informação e
capitalismo. Parte do entendimento sobre o trabalho humano para chegar ao conceito de
modo de produção e sua relação dialética de mútua determinação com a tecnologia.
Discute-se criticamente o fetichismo tecnológico e a transformação da informação em
mercadoria decorrente de sua privatização e monopolização. A contradição entre o
caráter social e compartilhável da informação frente a sua mercantilização pelo capital
revela que o capitalismo coloca-se como obstáculo ao livre fluxo do conhecimento e,
consequentemente, do desenvolvimento das forças produtivas condizentes com relações
sociais fundadas na cooperação e no compartilhamento, apontando, enfim, para a
necessidade de sua superação. Por fim, verifica-se o fetichismo tecnológico e
informacional como decorrente do fetichismo da mercadoria.

Palavras-chave: tecnologia, informação, mercadoria, capital, fetichismo.

TECHNOLOGY, INFORMATION AND MERCHANDISE IN CAPITALISM

Abstract
The article aims to establish the relationship between technological development,
information and capitalism. Part of the understanding about human work to arrive at the
concept of mode of production and its dialectical relation of mutual determination with
technology. Critical discussion of technological fetishism and the transformation of
information into merchandise stemming from its privatization and monopolization. The
contradiction between the social and shareable character of information and its
commodification by capital reveals that capitalism poses itself as an obstacle to the free
flow of knowledge and, consequently, to the development of the productive forces that
are in harmony with social relations founded on cooperation and sharing, pointing,
finally, to the need for its overcoming. Finally, there is technological and informational
fetishism as a result of the commodity fetishism.

Keywords: technology, information, commodity, capital, fetishism.

Introdução
A transformações propiciadas pelo desenvolvimento tecnológico ocorrido a
partir da segunda metade do século XX como resultado da confluência entre
telecomunicações e informática – o que inclui revoluções na microeletrônica, nos

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 22 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

computadores, nas telecomunicações e na constituição de redes informacionais (KATZ,


1996) – acarretaram a criação de dois modelos básicos de expectativas com relação a
seus resultados: os que viam de maneira positiva essas mudanças e outros que focavam
em sua potencialidade negativa – paradisíacos e apocalípticos, respectivamente.
Hipóteses como o fim do trabalho, sociedade do conhecimento, dentre outras foram
aventadas principalmente por aqueles que viam de uma maneira promissora para a
humanidade as transformações em curso, às quais se contrapunham autores críticos que
apontavam para as consequências das mudanças em curso para a classe trabalhadora:
desemprego estrutural, precarização, flexibilização do trabalho. Apesar das diferenças,
ambas perspectivas tinham em comum a atribuição de um papel subjetivamente
autônomo à tecnologia com diferentes gradações. Ou seja, a transformação tecnológica
apresentava-se como automovida, e mais, com capacidade por si só de operar mudanças
sociais, enfim, como um fetichismo tecnológico.
Tendo em vista esse cenário, o que se pretende nesse trabalho é buscar as
raízes desse fetichismo tecnológico na própria mercadoria, bem como indicar que sua
superação requer não o mero reconhecimento do fetiche, mas justamente a superação da
forma mercantil. Para isso, em nosso itinerário investigativo, retomaremos autores como
Claudio Katz que, já nos anos 1990 denunciavam o fetichismo de que eram portadoras
as visões acima indicadas. Na verdade, Katz resume bem as contradições relacionadas
às transformações da tecnologia em um contexto capitalista naquilo que ele identifica
como os sete postulados do impacto econômico e social das mudanças tecnológicas:
1) Atravessamos, na atualidade, a fase inicial de uma revolução tecnológica
baseada na aplicação das novas tecnologias da informação;
2) A principal limitação deste processo é a continuidade de uma crise
econômica capitalista de longo prazo;
3) Enquanto subsistir esta etapa globalmente depressiva, os efeitos
destrutivos das inovações terão ampla primazia;
4) Existe uma contradição entre o explosivo crescimento das tecnologias da
informação e a perdurabilidade da crise que, se não virar uma reativação
econômica geral, freará o desenvolvimento destas tecnologias;
5) Em qualquer alternativa, a informática será um dos principais cenários dos
confrontos entre os monopólios em curso;
6) Existem diversas expressões de um desenvolvimento potencialmente
alternativo, cooperativo, democrático e não comercial das novas tecnologias;
7) Esta utilização constitui a plataforma de uma aplicação socialmente
proveitosa e emancipadora das inovações (KATZ, 1996, p. 71).

Se as considerações desse autor já perscrutavam o cenário porvir, é preciso


atualizar algumas de suas conclusões não porque se tenham verificado equivocadas, mas
por conta do aprofundamento das contradições que se agudizam nos tempos presentes
em que a monopolização da natureza, dos saberes e das informações contrasta-se de
uma maneira cada vez mais explícita e, contraditoriamente, obscura com as
possibilidades emancipatórias do compartilhamento dos conhecimento em suas
múltiplas formas. Ou seja, atualizam-se as possibilidades e a necessidade (não no
sentido de uma inexorabilidade, mas de uma realização que se mostra urgente) de uma
revolução que supere o metabolismo da forma mercadoria.
Dentre os elementos que comprovam essa urgência, enfatizamos aqui o caráter
contraditório do metabolismo do capital que é revelado pela transformação da
informação em mercadoria. Assim, crescimento de recursos extraeconômicos – tal como
as patentes e as demais formas de registros de propriedade intelectual – pelo capital para
impedir o livre fluxo da informação revela mais um elemento da senilidade do modo de

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produção capitalista. Entendendo a informação como resultado do trabalho humano cujo


uso não implica em desgaste ou perecimento e que, por isso, é potencialmente
compartilhável de maneira ilimitada, verificamos que sua privatização e monopolização
pelo capital são provas contundentes de que o capital coloca-se como obstáculo ao
desenvolvimento das forças produtivas condizentes com relações sociais fundadas na
cooperação e no compartilhamento.
Contraditoriamente, porém, mesmo diante dessa explicitação dos obstáculos que
o capital representa ao desenvolvimento da tecnologia, a superação do capitalismo,
ainda que urgente, continua obscurecida. Para isso contribui de maneira fundamental o
próprio fetichismo da mercadoria cuja prevalência mantém como obscuras as relações
sociais que poderiam avançar para uma sociabilidade em que os seres humanos se
relacionariam entre si de forma mais transparente. Daí a necessidade de buscar entender
essa dupla dinâmica que incorpora fatores econômicos, e extraeconômicos, bem como
coerção e fetiche para a reprodução de relações sociais capitalistas.
No desenvolvimento das reflexões aqui apresentadas, após percorrermos o
debate sobre desenvolvimento tecnológico e informação, seremos conduzidos aos
apontamentos marxianos sobre o fetichismo e a desmedida do valor como indicador dos
limites colocados pelo capital ao desenvolvimento do indivíduo social e,
consequentemente, de uma tecnologia que seja coerente com esse desenvolvimento.
Nosso foco será a verificação dessas dinâmicas a partir das Novas Tecnologias
Informacionais (NTI) ou, dito de outra maneira, como as contradições entre a
apropriação privada e o compartilhamento de informações é capaz de nos revelar tanto
os limites da sociabilidade fundada no capital quanto as potencialidades emancipatórias
daí decorrentes.
Comecemos, pois, com um entendimento da relação entre capitalismo e
tecnologia. Na sequência desenvolveremos as reflexões mais diretamente relacionadas
às NTI e à informação em geral. Ao final, debatermos a relação entre tecnologia,
informação e fetichismo para concluirmos refletindo sobre as contradições dessa relação
no capitalismo.

Capitalismo e mudança tecnológica


Lojkine (2002) é um dos autores que, em A Revolução Informacional, nos
proporciona uma visão dos efeitos e da importância das Novas Tecnologias
Informacionais (NTI) nos meios produtivos. No entanto, é um autor que deixa de
considerar aquele elemento que para nós é fundamental: é que a chamada Revolução
Informacional se dá em meio a uma sociedade capitalista que se defronta
permanentemente com as dinâmicas que colocam a necessidade de valorização do
capital contraditoriamente frente à imanência de crises de superprodução. Assim sendo,
não há uma revolução informacional apartada de uma materialidade histórica que, no
caso, é fundada no processo de valorização de capital. O que implica em dizer que não
há uma autonomia absoluta do desenvolvimento tecnológico, como tampouco há uma
identificação automática entre capitalismo e inovação. Portanto, é preciso contextualizar
o desenvolvimento da tecnologia para que não se faça um entendimento linear da
consideração marxiana do permanente avanço das forças produtivas.
É essa contextualização que nos franqueia verificar que contraditoriamente o
capital é sim capaz de desenvolver as forças produtivas, mas também pode bloquear
esse avanço em conformidade com a reprodução das relações de produção capitalistas.
Em determinadas situações o capital chega mesmo ao ponto de tornar-se propulsor não

201
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 22 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

de forças produtivas, mas de forças destrutivas, desde que com isso exista a
possibilidade de manutenção ou renovação dos processos de reprodução ampliada do
capital. Que o digam as guerras, a mercantilização de uma natureza tornada escassa e o
processo que nos interessa diretamente no presente artigo: o monopólio da informação.
Para o entendimento contextualizado do desenvolvimento tecnológico que
pretendemos desenvolver nesse texto, no entanto, recorreremos a uma abordagem
inicialmente abstrata sobre o trabalho que, por sua vez, nos levará ao debate sobre os
modos de produção e, por fim, à contextualização mais concreta das mudanças
tecnológicas. Municiados desse entendimento, avançaremos para a compreensão do
desenvolvimento tecnológico e da informação num contesto capitalista.
Iniciamos chamando a atenção para aquilo que Foladori (2001) distingue como
conteúdo e forma do metabolismo social. É que o atendimento das necessidades
humanas é realizado por meio do trabalho, entendido como uma atividade
teleologicamente orientada, segundo uma prévia ideação, que se utiliza de mediações
para sua consecução. Essa dinâmica constitui-se, então, o conteúdo do metabolismo
social, que se desenrola historicamente por meio de diferentes articulações entre as
mediações que os seres humanos estabelecem com a natureza e entre os demais seres
humanos, o que, por sua vez, é identificado como as formas em que acontece
concretamente o metabolismo social. Em síntese:
O trabalho humano inter-relaciona uma atividade física com um meio
ambiente externo e com os meios de trabalho transmitidos por processos de
trabalho anteriores. (...) Assim a produção pode ser desagregada em sua
forma e seu conteúdo. O conteúdo é a relação do trabalhador com os meios
de produção e o ambiente; seria uma relação genérica, aistórica. Esse
conteúdo toma corpo em cada atividade específica como uma relação técnica
na qual o que importa é o conhecimento do processo de trabalho. Assim
considerados, conteúdo e relação técnica são sinônimos. Entretanto, a forma
é a maneira como os diferentes indivíduos se relacionam entre si para
produzir. Inclui as relações de propriedade e/ou apropriação dos meios de
produção e da natureza externa e determina notavelmente o processo de
produção (Foladori, 2001, p. 104).

Ainda nas palavras de Foladori, “essas diferenças na forma social da produção


são decisivas na determinação de que materiais utilizar, do ritmo em que são usados e
do relacionamento com o meio ambiente” (Foladori, 2001, p. 105), além, é claro, do
mais importante que é o estabelecimento da distribuição dos meios de produção entre os
indivíduos e classes sociais. Mas é o próprio Foladori quem rejeita uma visão linear da
relação entre forma e conteúdo ao enfatizar que há uma interconexão entra ambas. As
formas que representam as relações sociais de produção relacionam-se dialeticamente
com os conteúdos das relações técnicas:
Por sua vez, essa interconexão entre relações sociais de produção e relações
técnicas é dialética; tanto as relações sociais influenciam as relações técnicas,
interpondo-se no seu desenvolvimento ou agudizando-o, como essas últimas
colocam determinados limites ao tipo de relação social (Foladori, 2001, 86).

Com essa análise também concorda Romero (2005) que se coloca criticamente
contra a “concepção de neutralidade das forças produtivas em relação às relações de
produção” e, consequentemente crítico “da ideia de um hipotético desenvolvimento
autônomo das forças produtivas frente às relações sociais de produção” (Romero, 2005,
p. 21).
Ao desenvolvimento tecnológico não será possível, portanto, furtar-se às

202
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determinações da relação dialética entre forma e conteúdo. No capitalismo, a forma das


relações mantidas entre proprietários dos meios de produção e proletários que não
possuem tais meios estará coerentemente reproduzindo as relações que preservem a
propriedade daquelas referidas mediações e a apropriação dos resultados da produção.
Posto que é justamente a propriedade privada capitalista dos meios de produção que
garante que os proprietários apropriem-se do trabalho excedente daqueles não-
proprietários na forma de mais-valor1, que irá constituir-se na fonte do lucro capitalista.
Verificamos estar diante de uma contradição fundante do modo de produção capitalista
que contrapõe duas classes sociais: proprietários e não-proprietários dos meios de
produção. Mas essa contradição entre classes produtoras e não produtoras, que não é
exclusividade do capitalismo, revela-se mais profunda nesse modo de produção do que
se pode verificar imediatamente, tendo implicações importantes para o desenvolvimento
tecnológico.
É que a essa contradição junta-se a concorrência capitalista que, ao fim e ao
cabo, será a responsável por determinar quais os capitais individuais estarão
conseguindo realizar o mais-valor anteriormente produzido. Isso leva a uma permanente
busca pelo aumento da produtividade da força de trabalho e, consequentemente, a uma
elevação na composição orgânica do capital, que representa aquela proporção entre
meios de produção – o trabalho morto já acumulado – e força de trabalho – o trabalho
vivo. Dito de outra forma, o aumento da produtividade decorre, com o desenvolvimento
capitalista, do incremento da produtividade que, por sua vez, implica em um maior
dispêndio de capital em meios de produção, onde entra, sem dúvida, a inovação.
Na dinâmica concorrencial, em um primeiro momento, a mudança tecnológica
valoriza o capital e redistribui os lucros aos capitais que se tornaram mais produtivos, o
que significa vantagens às empresas que tenham se mostrado mais inovadoras. Isso
porque, em decorrência da transformação dos valores em preços de produção, cada
capital individual exige ser remunerado não em proporção ao mais-valor produzido pela
força de trabalho que ele emprega, mas sim tendo por referência o capital total
adiantado em meios de produção e força de trabalho (Carcanholo, 2011). É essa
determinação que garante que haja uma transferência de riqueza dos setores em que há
uma menor composição orgânica de capital para aqueles em que ela é maior.
Explicando melhor: os capitais mais produtivos foram aqueles que reduziram
as proporções de trabalho vivo em suas produções totais, portanto, tiveram o valor de
suas mercadorias reduzidos. No entanto, o preço geral das mercadorias não reflete
imediatamente essa redução de valor, sendo resultado do estabelecimento de um lucro
médio. Assim sendo, os capitais mais produtivos são aqueles que reduziram o valor de
suas mercadorias individuais em relação aos demais capitais, mas que, por conta da
transformação dos valores em preços, estarão recebendo parte do mais-valor total
produzido pelos ramos que, por não serem tão produtivos quanto eles, transferem-lhes
riqueza, em conformidade com a já referida exigência de os capitais remunerarem-se
com base nos capitais totais – meios de produção e força de trabalho – empregados2.

1
Seguimos orientação de Duayer (2011) que, em tradução recente dos Grundrisse de Marx,
justificou o uso da expressão “mais-valor” em lugar daquela mais até então mais usual, qual seja: mais-
valia. No intuito de uniformizar esse uso no decorrer do texto, tomamos a liberdade de também
“atualizar” a grafia em autores que haviam originalmente utilizado a expressão mais-valia.
2
Na impossibilidade de reproduzir aqui a dinâmica de transformação de valores em preços de

203
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 22 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

Portanto, num primeiro momento a inovação que impacta positivamente a


produtividade da força de trabalho mostra-se vantajosa para as empresas inovadoras por
possibilitarem auferir um maior lucro que as demais. Em segundo momento, porém,
quando a inovação já está disseminada entre os diferentes concorrentes capitalistas, o
sobrelucro deixa de existir já que a todos os capitais produzem com as mesmas
condições. Com o tempo, a evolução dessa dinâmica acaba abrindo mesmo a
possibilidade de uma crise que se manifesta como uma queda geral na taxa de lucro,
freando a reprodução. Como salienta Katz:
Por meio da mudança tecnológica, as empresas que reduzem com maior
rapidez o tempo socialmente necessário para a fabricação de produtos,
barateiam a produção e obtêm um lucro excedente sobre os seus concorrentes
enquanto não se generaliza a inovação. Esta dinâmica coloca a mudança
tecnológica como instrumento da lei do valor-trabalho, ao induzir a maneira
pela qual será distribuído o trabalho social nas diferentes empresas, ramos e
negócios de acordo com os parâmetros de custo e benefício. A inovação é um
processo imprevisível, dada a sua dependência à lei do valor que acompanha
a forma anárquica da relação dos capitalistas do mercado.” (Katz, 1996, p.
11).

Assim sendo, a contradição fundamental entre trabalho vivo e trabalho morto


no capitalismo mostra-se por inteiro, já que o aumento da produtividade acaba por
eliminar progressivamente do processo produtivo justamente aquele elemento que
produz o valor: a força de trabalho. Quando esse aumento da produtividade generaliza-
se encontramo-nos diante de uma desmedida da reprodução capitalista: há capital em
abundância, ou seja, superprodução de capital. Para retomar a reprodução das formas
capitalistas de produção, o capital pode mostrar sua faceta destrutiva das forças
produtivas. Se a guerra é uma das mais claras evidências do caráter destrutivo do
capitalismo, algumas “inovações” podem mostrar-se também destrutivas: agrotóxicos –
cuja produção massificada relaciona-se com as guerras químicas -, patentes – que vão
das sementes à saúde -, mercantilização da natureza – incluindo créditos de carbono e
privatização da água -, monopólio de informações, fuga para a esfera financeira, dentre
outras modalidades em que a valorização do capital, se não se mostra claramente
destrutiva, constitui-se como bloqueio ao desenvolvimento de forças autenticamente
produtivas.
Como ressalta Claudio Katz, no capitalismo, “a mudança tecnológica é
guiada pelas mesmas forças que arbitram o trabalho assalariado, a troca de mercadorias,
a concorrência entre produtores privados, a acumulação de capital ou a extração de
mais-valor” (Katz, 1996, p. 10). Ressalte-se, entretanto, que não há uma identificação
linear entre avanço tecnológico e capitalismo, principalmente tendo em vista que a
mudança tecnológica relaciona-se diretamente com a possibilidade de crise. Assim
sendo, o capital “impulsiona inovações que reduzem custos da força de trabalho; [mas]
bloqueia transformações tecnicamente factíveis que acentuariam a queda da taxa de
lucro ou agravariam a saturação dos mercados”3 (Katz, 1996, p. 79).

produção, remetemos ao Livro III de O Capital, bem como a introdução ao tema apresentada por
Carcanholo (2011).
3
Lembrando que o entendimento da força de trabalho como “custo” é inerente à lógica do
capital que, de maneira fetichista, incorpora-a ao capital total na forma de capital variável, velando-a
como produtora do valor.

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Ou seja, contraditoriamente, a concorrência capitalista é um incentivo à


inovação por possibilitar um lucro excepcional aos capitalistas que se antecipam na
corrida tecnológica, mas, ao mesmo tempo, as mesmas relações capitalistas constituem-
se num obstáculo ao avanço tecnológico por esbarrarem na perigosa elevação da
composição orgânica do capital, o que impacta a taxa de lucro. Daí que em
determinados momentos o capital acabe por frear o avanço tecnológico. Essa dinâmica,
porém, ainda que necessária, não tem um desenlace previamente estabelecido, tendo em
vista que a crise é uma imanência do metabolismo do capital da mesma forma que o são
as contratendências que objetivam impedir a crise.
Observando o desenvolvimento tecnológico pela ótica daqueles que o
classificam apocalipticamente, um tema que ganha relevância é o do chamado
desemprego tecnológico. Katz é enfaticamente crítico ao identificar também nessa
compreensão a atribuição de um papel autônomo à tecnologia. Para ele, “a própria
noção de desemprego tecnológico é incorreta, porque supõe que a paralisação é uma
função direta de certo tipo ou quantidade de maquinaria, omitindo a intermediação
central das leis de acumulação entre um e outro fenômeno” (Katz, 1996, p. 85).
Contextualizando, Katz complementa:
O atual desemprego é um processo social, não tecnológico. Vem estimulado
pela necessidade capitalista de gerar reservas de desempregados, pressionar
em direção do barateamento dos salários, aumentar a taxa de mais-valor e
assim restabelecer uma taxa de benefício ascendente de longo prazo. A nova
população flutuante, latente e estacionária de homens sem trabalho não é
requisito da informática, mas do capital (Katz, 1996, p. 86).

Enfim, as colocações até agora feitas reforçam o distanciamento das visões –


sejam paradisíacas ou apocalípticas – que descontextualizam o desenvolvimento
tecnológico da dinâmica capitalista, que é a forma de metabolismo social vigente. Mais
importante: o desenvolvimento tecnológico, bem como seu travamento, relacionam-se à
produção de mercadorias, o que nos leva a uma primeira conclusão que o fetichismo
tecnológico que atribui um papel autônomo à tecnologia tem suas raízes no fetichismo
da forma mercantil, conclusão essa que retomaremos ao final do artigo.
Avançaremos para o estudo da relação entre capitalismo e informação (NTI) no
sentido de contribuir um pouco mais para o desvelamento das relações alienantes que
perpassam a produção de mercadorias.

Capitalismo e informação
Marx já considerava a transmissão de informações como parte do processo de
produção:
Existem, porém, ramos autônomos da indústria, nos quais o processo de
produção não é um novo produto material, não é uma mercadoria. Entre eles,
economicamente importante é apenas a indústria da comunicação, seja ela
indústria de transporte de mercadorias e pessoas propriamente dita, seja ela
apenas de transmissão de informações, envio de cartas, telegramas, etc.
(Marx, 1983, p. 43).

Através dessas inovações o capital vai executando a reorganização e


redistribuição espacial do processo produtivo e do trabalho. Com as novas tecnologias
da informação não há mais a necessidade de concentrar o trabalho em espaços
próximos. Grande parte das atividades que ocupavam tempos redundantes relativamente
prolongados de trabalho vivo pôde se transferir para o trabalho morto e ser realizado

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quase que instantaneamente.


A produção de uma mercadoria pode, hoje, estar distribuída por dezenas de
países. Essa distribuição vai de acordo com os interesses acumulativos do capitalismo.
As unidades de concepção, produção e comercialização serão estrategicamente
escolhidas de acordo com os critérios do lucro. Uma indústria pode, então, criar seu
produto no país matriz, produzi-lo em países com matéria prima e mão de obra baratas e
comercializá-los em várias partes do mundo. Nesta mundialização do ciclo de produção
está a qualidade central do padrão de acumulação típico do capitalismo informacional.
As NTI passam a evidenciar o assombroso grau de internacionalização da
economia na atualidade. Segundo Cláudio Katz (1996), a informática sendo utilizada
nos moldes do capitalismo possibilita uma polarização acentuada entre tarefas
qualificadas de concepção em economias avançadas de um lado e, do outro, degradação
do trabalho nos países atrasados. Com a introdução da automatização, o capitalismo viu
a oportunidade para destruir, em zonas de baixos salários e de reduzida proteção social,
as relações contratuais e os meios conquistados pelos operários para resistir a
exploração no local de trabalho.
Essas dinâmicas contraditórias entre locais avançados e atrasados, por sua vez,
tem nuances que precisam ser enfatizadas. No que se refere à força de trabalho verifica-
se que “junto à qualificação dos trabalhadores dirigidos às tarefas mais complexas,
aumenta dia a dia a massa de operários empurrados para atividades degradantes” (Katz,
1996, p. 87). Ou seja, uma dinâmica que pode ocorrer na relação entre países
desenvolvidos e atrasados, ou simplesmente no interior dos países. Esse
desenvolvimento desigual e combinado entre países e no interior de um determinado
país revela mais uma contradição do desenvolvimento tecnológico restringido pelas
relações de produção capitalistas: “a informatização requer uma melhora qualitativa das
condições de trabalho. Porém, esse progresso está em conflito direto com a meta
patronal de elevação dos lucros” (Katz, 1996, p. 87), o que impede a generalização de
trabalhos menos embrutecedores. O capital segue lucrando com os trabalhadores
espacialmente distribuídos de modo desigual e combinado conforme as determinações
do próprio capital: aqueles que desenvolvem as NTI e aqueles que se consolidam cada
vez mais como meros apêndices dos equipamentos.
Marcos Dantas (1996) defende que o ordenamento institucional passa por
profundas reformas que objetivam possibilitar a apropriação do valor da informação, ou
seja, privatizar a informação e retirar-lhe seu caráter social. Para ele, a informação tem
desempenhado um papel cada vez mais importante nos processos atuais de produção,
automatizado o conhecimento que um dia pertenceu aos trabalhadores, transferindo-o às
máquinas em forma de informação cristalizada. Com a utilização crescente das
máquinas nos meios produtivos, o processo de produção não é mais um processo de
trabalho no sentido de ser controlado pelo próprio trabalho como sua unidade
dominante e sim que o produto deixa de ser um produto do trabalho imediato (Marx,
1993). O trabalho humano que ainda resta tem como função dar assistência à máquina
(Dantas, 1996). A esse respeito convém ouvir Marx nos Grundrisse:
O saber aparece na maquinaria como algo estranho, externo ao trabalhador; e
o trabalho vivo é subsumido ao trabalho objetivado que atua autonomamente.
O trabalhador aparece como supérfluo desde que sua ação não seja
condicionada pelas necessidades [do capital] MARX, 2011, p. 580).

É importante relacionar a informação às diferentes formas de saber, em


especial o saber científico, tendo em vista a importância do uso produtivo das

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informações decorrentes da pesquisa cientifica:


No entanto, à medida que a grande indústria se desenvolve, a criação da
riqueza efetiva passa a depender menos do tempo de trabalho e do quantum
de trabalho empregado que do poder dos agentes postos em movimento
durante o tempo de trabalho, poder que – sua poderosa efetividade –, por sua
vez, não tem nenhuma relação com o tempo de trabalho imediato que custa
sua produção, mas que depende, ao contrário, do nível geral da ciência e do
progresso da tecnologia, ou da aplicação dessa ciência à produção. (Por seu
lado, o próprio desenvolvimento dessa ciência, especialmente da ciência
natural e, com esta, todas as demais, está relacionado ao desenvolvimento da
produção material.) (MARX, 2011, p. 585; grifos nossos).

O desenvolvimento tecnológico, ao condensar-se enquanto informação científica


acumulada no trabalho morto, condiciona que a produção de valor deixe de poder ser
verificada diretamente pelo quantum de trabalho socialmente despendido, passando a
depender justamente daquele desenvolvimento científico-tecnológico. Ou seja, o
desenvolvimento tecnológico apresenta-se como elemento central da desmedida do
valor e, portanto, elemento constituinte da crise do capital.
Vejamos esse raciocínio com mais cautela: o valor, enquanto trabalho
socialmente necessário para a produção da mercadoria, perde a capacidade de ser essa
medida devido ao desenvolvimento do nível geral da ciência e da tecnologia e sua
aplicação à produção. Isso porque o capital, na busca do aumento da produtividade,
expulsa progressivamente do processo produtivo o elemento que produz o valor: a força
de trabalho – que dispende o trabalho socialmente necessário, medida do valor. Essa
contradição mostra-se como desmedida, tendo em vista que “o próprio capital é a
contradição em processo, [pelo fato] de que procura reduzir o tempo de trabalho a um
mínimo, ao mesmo tempo que, por outro lado, põe o tempo de trabalho como única
medida e fonte da riqueza” (MARX, 2011, p. 583).
A possibilidade de crise aberta por essa desmedida acarretará a adoção de um
comportamento esquizofrênico pelo capital. É preciso, portanto, que o capital coloque-
se não mais como impulsionador do desenvolvimento das forças produtivas, mas
justamente seu contrário: seu obstáculo. Para isso, o capital deve necessariamente
assumir dois tipos de posturas para controlar aquele avanço: não meramente econômicas
e econômicas.
Isso fica claro no caso da informática quando se verificam os limites que lhe são
postos e suas potencialidades. Se na década de 1970 as pequenas empresas de
computação estavam “muito integradas às sociedades de aficionados, que pretendiam
obter, por meio da informática, uma democratização da vida política estadunidense”
(Katz, 1996, p. 102). As patentes representaram, a partir da década seguinte, uma
modalidade de contenção desse uso democrático da informática. Contudo, conforme
indica Bensaïd, “as patentes de software explodiram na década de 1990 nos Estados
Unidos, ultrapassando as 100 mil”. As patentes eram ainda um meio de tentar impedir o
avanço da pirataria, haja vista que “tornou-se difícil, se não impossível, lançar um
software que não fosse passível de pirataria. [...] Desse modo, a patente veio fortalecer o
sigilo industrial e frear a inovação” (Bensaïd, 2017, p. 57).
Conforme aponta Katz ressaltando a importância das patentes e dos lucros como
forças coatoras desse controle:
Nenhuma tentativa de inovar à margem das patentes e das leis do lucro pode
alcançar um desenvolvimento ulterior dentro do sistema capitalista. Por isso
existe um conflito entre a inovação e sua utilização mercantil, representativo
da contradição entre a mudança tecnológica e o modo de produção dominante

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(Katz, 1996, p. 103).

A utilização de meios extraeconômicos – como o recurso jurídico às patentes –


tem, portanto, um caráter impositivo, mas que é coerente com o sentido econômico
decorrente da hegemonia das relações mercantis. Porém, a imposição de medidas
jurídicas para garantir a permanência de relações econômicas privatistas demostra sua
inadequação aos potenciais de socialização da informática:
Desenvolvimento objetivo da informática gera utilizações cooperativas e não
comerciais, contraditórias com a norma capitalista prevalecente. São apenas
tentativas e possibilidades sufocadas (ou absorvidas) pelo processo de
acumulação dominante. Ilustram, porém, como como a informática
corresponde a um determinado grau de socialização da produção, oposta à
apropriação privada (Katz, 1996, p. 102).

Enfatizamos, assim, a expressão entre parênteses na citação: “ou absolvidas”,


tendo em vista que, em seus anos iniciais, a informática era portadora de ideais
cooperativos em favor de sua universalização que foram confrontados de uma forma
coercitiva com as patentes e de uma forma econômica pela hegemonia da forma
mercantil. Ainda que se considere a atualização permanente desse conflito no caso dos
softwares livres cujo “caráter fortemente cooperativo do trabalho intelectual que se
cristaliza nele (Bensaïd, 2017, p. 59), não se pode desconsiderar a força decorrente do
predomínio de ralações mediadas pela mercadoria e seus impactos. Ampliando esse
debate para a questão das redes, é Bensaïd quem reforça que “o mercado, porém,
continua esbanjando saúde. Só precisou domesticar a rede, tornando-se um mercado
reticular. Mas ele não foi sempre assim? Quanto ao ‘acesso’, ele não tomou o lugar da
propriedade. Como todo pedágio, ele é apenas um direito de entrada” (Bensaïd, 2017, p.
67).
Essa última colocação nos recorda da importância da forma social tal como
apontada por Foladori na determinação dos usos das mediações das relações humanas
de trabalho. Ou seja, o potencial original politicamente emancipador da informática
sendo obstaculizado juridicamente pelas patentes e economicamente pela forma
mercadoria. Enfatizemos o debate sobre as NTI torna flagrante a artificialidade do
travamento do desenvolvimento das forças produtivas pelo capital. Como salienta Katz:

Tendência à gratuidade da mercadoria informação como uma característica


associada à natureza específica de um bem imaterial, que não se destrói ao
ser consumido e é incomensurável em unidades correntes. Mas, se os custos
da reprodução da informação tendem a zero, sua mercantilização tornou-se
artificial e empobrecedora das qualidades potenciais oferecidas por seu
aproveitamento numa sociedade socialista (Katz, 1996, p. 111).

Essa artificialidade fica mais clara nos embates sobre as patentes que são
travados no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). Bensaïd faz esse
alerta ao indicar que
A privatização não visa mais apenas os recursos naturais ou os produtos do
trabalho. Ela cobiça cada vez mais os conhecimentos e os saberes. É isso que
está em jogo nas negociações e nos debates realizados na Organização
Mundial do Comércio sobre os serviços, a propriedade intelectual e a
patenteabilidade (Bensaïd, 2017, p. 50).

As patentes constituindo-se como obstáculo ao desenvolvimento, tendo em vista


que

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A privatização da pesquisa e dos conhecimentos resultantes, o sequestro


desses conhecimentos em prejuízo dos concorrentes, a cultura do sigilo e da
busca do monopólio, freiam a difusão dos saberes socializados que poderiam
beneficiar a maioria da população (Bensaïd, 2017, p. 51).

Situação essa que leva Bensaïd a considerar que estejamos vivenciando um novo
período de cercamentos (enclosures) tal qual aquele relacionado aos primórdios do
modo de produção capitalista. Agora não somente as terras, mas os conhecimentos, as
informações, revelando que “A lei do valor não consegue mais medir a desmesura do
mundo senão por desatinos e violências globais cada vez maiores” (Bensaïd, 2017, p.
54), o que, no caso da informação, é feito pelo patenteamento e pela censura, pelas
cláusulas de confidencialidade, enfim, por seu monopólio. E essa lógica revela rompe
até mesmo com princípios liberais de propriedade relacionados ao trabalho:
Podemos privatizar uma ideia, apesar de um software não ser nada mais que
um elemento da lógica aplicada ou, em outros termos, uma parcela de
“trabalho morto”, isto é, trabalho intelectual acumulado? Seguindo a lógica
da apropriação privativa, chegaríamos ao ponto de patentear fórmulas
matemáticas para submetê-las ao direito de propriedade? A socialização do
trabalho intelectual começa com a prática da linguagem que, evidentemente,
constitui um bem social comum inapropriável da humanidade. Os conflito em
torno do direito de propriedade intelectual tendem a desmontar o direito
liberal clássico e sua legitimação da propriedade pelo trabalho (Bensaïd,
2017, p. 56).

O crescimento recente das patentes preventivas, cujo caráter explícito de


obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas não poderia ser menos evidente, é
mais um dos elementos extraeconômicos utilizados pelo capital, tendo em vista que “as
empresas podem pedir patentes de inovações que ficam sem uso apenas para evitar que
sejam utilizadas por empresas concorrentes” (Bensaïd, 2017, p. 58-9).
Contraditoriamente, contudo, a desmedida do valor já apontada como decorrente
das “contradições entre, de um lado, a socialização crescente do trabalho intelectual e,
de outro, entre o trabalho abstrato que sustenta a medida mercantil, e o trabalho
concreto dificilmente quantificável” (Bensaïd, 2017, p. 56), abre possibilidades
emancipatórias que devem ser consideradas. Se manutenção da forma mercantil e das
patentes representam a forma de manutenção de relações capitalistas de produção que se
mostram arcaicas frente às possibilidades de desenvolvimento das forças produtivas, é
preciso reconhecer, porém, que, contraditoriamente, ela abre à urgência de sua
superação:
Todavia, a produção capitalista produz, com a mesma necessidade de um
processo natural, sua própria negação. É a negação da negação. Ela não
restabelece a propriedade privada, mas a propriedade individual sobre a base
daquilo que foi conquistado na era capitalista, isto é, sobre a base da
cooperação e da posse comum da terra e dos meios de produção produzidos
pelo próprio trabalho (Marx, 2013, p. 832).

Esse superação, por suas peculiaridades, tem hoje não a perspectiva do


restabelecimento de um passado, mas aponta para a importância dos bens comuns,
sejam eles as informações e/ou meio ambiente – coincidentemente ambos objetos de
privatização agudizada nos tempos presentes. Bensaïd retoma o jovem Marx para
estabelecer os necessários confrontos:
Pelo debate sobre o furto da madeira, Marx enveredava em 1842 no caminho
escarpado da “crítica da economia política”, que iria conduzi-lo ao centro dos

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mistérios e dos prodígios do capital. Do direito consuetudinário dos pobres


aos bens comuns da humanidade, passando pelo princípio de um “domínio
público”, o material mudou, mas a pergunta permanece: cálculo egoísta ou
solidariedade e interesse comum, propriedade ou direito oponível à
existência, quem vencerá? Nossa vida vale mais que o lucro. “De pé,
despossuídos do mundo!” (Bensaïd, 2017, p. 73).

Um confronto que está em aberto, mas que requer desdobramentos prático-


revolucionários para que tenha uma resolução que permita o destravamento dos
obstáculos econômicos e extraeconômicos ao desenvolvimento das forças produtivas.
Para entendermos tanto a potencialidade desses desdobramentos virem a ocorrer quanto
a sua não efetivação é preciso que avancemos um pouco mais no entendimento da
mercantilização que perpassa as tecnologias e a informação.

Tecnologia, informação e mercadoria


Enfim, o caráter contraditório do capital pôde ser verificado até aqui tendo por
referência o desenvolvimento tecnológico e a informação. Justamente é esse caráter
contraditório que nos coloca frente à possibilidade de negação da negação, ou seja, de
superação dessa presente forma das relações sociais que acabam por obstaculizar o
desenvolvimento das relações técnicas. Mas, se há essa possibilidade, é preciso indagar:
por que a superação da forma mercantil não se realiza?
Na busca de resposta a essa indagação já apontamos dois elementos centrais ao
discutirmos sobre tecnologia e informação. Em síntese afirmamos que:
1- Com relação à tecnologia existe uma tendência a seu desenvolvimento
permanente que é traduzido em termos marxianos como desenvolvimento
permanente das forças produtivas. Desenvolvimento este que é comum aos
demais modos de produção e que, no modo de produção capitalista, tem seu
caráter contraditório explicitado. Isso porque no capitalismo, cada capital
individual, com o objetivo de realizar o mais-valor produzido, deve superar os
demais capitais na disputa concorrencial, o que é feito por meio do aumento da
produtividade e, consequentemente, do revolucionamento permanente das forças
produtivas. A contradição mostra-se quando, para atingir esse objetivo, o capital
aumenta a proporção de trabalho morto na forma de meios de produção em
detrimento do trabalho vivo, que é justamente o elemento que produz o valor. Se
isso significa uma vantagem inicial para capitais inovadores, quando essa
dinâmica se generaliza por toda a produção, o que ocorre é uma queda do valor
total produzido, o que se refletirá na tendência de queda geral da taxa de lucro e,
consequentemente, na possibilidade das crises de superprodução de capital.
Para tentar contornar essa contradição o capitalismo mostra mais uma
contradição: ao invés do permanente revolucionamento das forças produtivas, o
capital é capaz de criar obstáculos ao desenvolvimento tecnológico. Esses
obstáculos podem ser econômicos – tal como o risco de falência daqueles
capitais cujas inovações não tiveram o retorno esperado – ou extraeconômicos –
tais como a obsolescência programada, as patentes preventivas, dentre outros.
2- No caso da informação também se verificam as mesmas contradições
relacionadas ao desenvolvimento tecnológico, porém, com um agravante: a
informação, como o conhecimento, em geral, tem uma peculiaridade de não ser
destruída por seu uso. Ou seja, ela pode ser usada de forma compartilhada sem
que com isso se extinga enquanto tal. Assim sendo, as contradições decorrentes

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de sua monopolização pelo capital são ainda mais evidentes quando se verificam
os controles econômicos – mercantilização - e extraeconômicos – pagamento por
acesso, patenteamento etc. - que lhe impedem o livre fluxo.
Feitas essa consideração sobre as contradições relativas à tecnologia e à informação,
é preciso reconhecer que ainda não respondemos à indagação central desse tópico.
Vamos reformulá-la de modo mais específico à nossa temática: tendo em vista a
radicalidade das contradições postas pelo capital no que tange à tecnologia e à
informação, por que a superação da forma mercantil não se realiza? Para buscarmos
responder à questão formulada é preciso primeiramente enfatizar o que já
desenvolvemos acima, ou seja, que tanto a tecnologia quanto a informação tornaram-se
mercadoria no modo de produção capitalista, o que, por sua vez, leva- nos à
necessidade de buscar a resposta não em uma generalidade da tecnologia ou da
informação, mas tão somente na própria forma mercadoria. É isso que faremos
brevemente a seguir.

Marx alerta-nos sobre a trivial fantasmagoria da mercadoria:


O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente
no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio
trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como
propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete
também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma
relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores. É por
meio desse quiproquó que os produtos do trabalho se tornam mercadorias,
coisas sensíveis-suprassensíveis ou sociais (MARX, 2013, p. 142).

Ou seja, as mercadorias irão refletir aos homens o caráter social de seus próprios
– dos homens - trabalhos. Porém, elas o fazem como se esse caráter social fosse uma
propriedade natural dessas coisas-mercadorias ao relacionarem-se como coisas-
mercadorias entre si. O que era uma relação entre produtores de mercadorias assume a
forma de uma relação entre as próprias mercadorias que, por serem coisas e não seres
humanos, coloca-nos diante do fetichismo da mercadoria: “Assim se apresentam, no
mundo das mercadorias, os produtos da mão humana. A isso eu chamo de fetichismo,
que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como mercadorias e
que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias” (MARX, 2013, p. 143). Ou,
ainda nas palavras de Marx: “É apenas uma relação social determinada entre os próprios
homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre
coisas” (MARX, 2013, p. 142-3). Nessa processualidade em que as coisas apresentam-
se como sujeitos das relações sociais, aos homens resta, em contrapartida, tão somente
relacionarem-se como coisas: estamos diante da reificação.
Salientemos, contudo, que não estamos diante de um equívoco por parte de dos
produtores de mercadoria quando não se percebem relacionando-se entre si quando
levam suas mercadorias a serem trocadas no mercado. A determinação do valor é feita
justamente a posteriori no mercado quando os tempos individuais de trabalho tornam-se
tempos sociais de trabalho necessário, uma operação que escapa ao produtor mercantil.
E mais, uma relação da qual o produtor torna-se dependente para ter validado seu
trabalho individual naquela forma de trabalho socialmente necessário. Ou seja, não
estamos diante de um desvio de percepção, mas tão somente da aparência efetiva das
relações sociais sobre a forma mercantil. Marx pode nos esclarecer mais uma vez:
Os objetos de uso só se tornam mercadorias porque são produtos de trabalhos
privados realizados independentemente uns dos outros. O conjunto desses

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trabalhos privados constitui o trabalho social total. Como os produtores só


travam contato social mediante a troca de seus produtos do trabalho, os
caracteres especificamente sociais de seus trabalhos privados aparecem
apenas no âmbito dessa troca. Ou, dito de outro modo, os trabalhos privados
só atuam efetivamente como elos do trabalho social total por meio das
relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por meio
destes, também entre os produtores. A estes últimos, as relações sociais entre
seus trabalhos privados aparecem como aquilo que elas são, isto é, não como
relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, mas
como relações reificadas entre pessoas e relações sociais entre coisas
(MARX, 2013, p. 143; grifos nossos).

Chamemos a atenção para o trecho que grifamos: “aparecem como aquilo que
elas são”, em que Marx nos oferece da dialética entre ser e parecer, que também pode
ser identificada como a relação entre essência e aparência. Por ser uma lógica dialética é
preciso que abandonemos a linearidade do princípio da não-contradição. Pelo contrário,
aqui ser e parecer andam simultaneamente juntos e separados. Isso é que nos permite
verificar que a mercadoria é uma relação social e, ao mesmo tempo, é uma relação entre
coisas. Afinal, ainda que fruto da divisão social do trabalho humano, as mercadorias só
se colocam frente a si quando levadas pelos produtores ao mercado para confrontarem-
se como coisas. Assim sendo, ela não deixa de ser resultado do trabalho humano, mas
essa sua condição de trabalho humano é revelada quando se comparam os valores dos
diferentes trabalhos privados no mercado e simultaneamente velada quando esses
trabalho aparecem como características inerentes ás próprias mercadorias. Portanto, a
relação mercantil faz com que a aparência da relação entre as mercadorias seja
determinante, o que leva Marx à afirmação destacada: “aparecem como aquilo que elas
são. É a troca mercantil que faz com que assim seja.
Tendo feito esse percurso, podemos retornar a nosso tema para verificar a
presença do fetichismo no desenvolvimento tecnológico e na informação. Assim sendo,
podemos concluir:
1- Que os autores e os sujeitos sociais que sucumbem ao fetichismo do
desenvolvimento tecnológico e da informação estão tão somente reproduzindo
em seus âmbitos específicos o fetichismo da mercadoria em geral. Ou seja, já
que tecnologia e informação são tornados mercadorias pelo capital, seria
impossível que não reproduzissem o caráter fetichista próprio da forma
mercantil. Afinal, o fetichismo, tal como já indicamos a partir de Marx: “é
inseparável da produção de mercadorias” (MARX, 2013, p. 143).
2- O fetichismo continua mostrando-se eficaz no velamento que permite a
manutenção da tecnologia e da informação sob o controle do capital na condição
de mercadoria e, portanto, pelos quais se deve pagar um preço. Explicando de
outra maneira: tecnologia e informação ao dirigirem-se ao mercado na condição
de mercadoria cumprem o papel fetichista que contribui fundamentalmente para
a reprodução das relações sociais capitalistas.
3- No entanto, o crescimento das formas extraeconômicas de controle do
desenvolvimento tecnológico e da informação explicita a contradição entre, de
um lado, a privatização e o monopólio e, do outro, as potencialidades
cooperativas e compartilháveis de ambos. Contradições essas que revelam a
caducidade do modo de produção capitalista e a necessidade de sua superação
por uma forma social superior. Ou seja, a manutenção cada vez mais violenta da
tecnologia e da informação na condição de mercadoria têm se mostrado um

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obstáculo tanto ao desenvolvimento tecnológico quanto ao compartilhamento


das informações. E mais: são graves as consequências para a humanidade e a
natureza dessa dinâmica claramente destrutiva do capital.
4- A mera identificação do fetichismo não é condição para sua efetiva superação.
Ou seja, não basta uma simples “tomada de consciência”, mas sim implica na
necessidade de constituição de uma sociabilidade que não seja mediada pela
mercadoria. Só assim é possível que coisas deixem de relacionar-se entre si ao
invés de seus respectivos produtores. Só assim serão estabelecidas relações
transparentes entre os produtores livremente associados.
5- Por fim, se a possibilidade de superação do capitalismo, que se mostra em sua
senilidade, apresenta-se como uma urgência nos tempos presentes, não devemos
desconsiderar a capacidade de o capital renovar-se ainda que cada vez mais
destrutivamente. Constatação essa que ao mesmo tempo que nos redime de uma
visão teleológica da história, coloca-nos tarefas urgentes de serem realizadas.
Que estejamos à altura desses desafios.

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Referências

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O DIREITO À MORADIA E A QUESTÃO TRABALHISTA NO BRASIL

Thaís de Souza Corrêa Netto


Universidade Federal de Juiz de Fora
thaisscnetto@hotmail.com

Resumo

Este artigo analisa o processo de acumulação capitalista, mediado pelas inovações


tecnológicas e pela organização do trabalho, bem como, os desdobramentos
relacionados com o direito à moradia e a questão trabalhista no Brasil. Para
compreender a correlação entre a questão trabalhista e a habitação, faz-se necessário
estudar os aspectos econômicos, os aspectos jurídicos e os processos históricos conexos.
Defende-se a hipótese de que a moradia serviu de instrumento de troca e de controle de
classes pelo Estado, que buscava apoio. Portanto, a “política habitacional” de 1946 era
vista como clientelista e populista. Apesar de em 1964, a “moradia” ter passado por um
processo de transformação, não deixou de ser uma forma de cooptação e de controle por
parte do governo. A investigação da pesquisadora compreende o período entre 1930 e
1970.

Palavras-chave: Questão trabalhista; Marxismo; Direito à moradia; Lógica do Capital.

THE RIGHT TO DWELLING AND THE LABOR ISSUE IN BRAZIL

Abstract

This article analyzes the process of capitalist accumulation mediated by technology


innovations and by the work organization as well as the related consequences with the
right to dwelling and the labor issue in Brazil. To understand the correlation between
the labor issue and the dwelling, it is necessary to study the economic aspects, the legal
aspects and the associated historical processes. It is argued the hypothesis that the
dwelling has been a tool for the exchange and classes control by the State that was
seeking support. Therefore, the Housing Policy of 1946 was seen clientelist and
populist. Although that in 1964, the dwelling have gone through a process of
transformation, it was still a form of cooptation and control by government. The
researcher`s research comprises the period between 1930 and 1970.

Keywords: Labor Issue; Marxism; Right to dwelling; Logic of capital.

INTRODUÇÃO

Objetiva-se com este trabalho iniciar um estudo sobre a conexão envolvida


entre o direito à moradia e a questão trabalhista no Brasil. Para tanto, será importante
compreender a lógica do capital - o modo de produção e o processo de acumulação

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capitalista. Destarte, para entender o contemporâneo, torna-se essencial a


fundamentação do artigo nas obras dos clássicos Karl Marx e Friedrich Engels.
Conforme exposto por Marx (2013), juntamente com a acumulação do capital
ocorria a concentração e a centralização, que eram distintas entre si. Com a acumulação
desenvolvia-se o modo de produção capitalista, cada acumulação era um meio para uma
nova acumulação. À medida que se desenvolvia a acumulação e a produção ampliavam-
se a concorrência e o crédito, alavancas poderosas da centralização, que complementava
toda a obra da acumulação. A concentração estava relacionada com a integralização de
capitais já formados e com a transformação de pequenos capitais em grandes capitais.
Salienta-se que quanto mais rápida era a acumulação de capital numa cidade,
mais rápida era a exploração do ser humano e, por sua vez, mais miseráveis eram as
moradias improvisadas dos trabalhadores (Marx, 2013). Além disso, segundo Marx
(2013) o resultado dessa acumulação capitalista era a fome que atingia as camadas
operárias mais trabalhadoras e o consumo refinado que atingia os mais ricos.
Assim, Melo (2015) afirma que com o sistema capitalista de produção, ocorre o
fenômeno do pauperismo, ou seja, a riqueza e a pobreza passam a ser produzidas
socialmente com a produção de mais-valor. A mesma sociedade que assiste a ampliação
da riqueza convive com o crescimento da miséria.
Friedrich Engels, em “Sobre a questão da moradia” assim como Marx também
relatou a Europa ao longo do século XIX, demonstrando aspectos que poderiam
enquadrar o Brasil do século XXI. De acordo com Engels (2015) a escassez de moradia
é o agravamento das más condições de moradia dos trabalhadores, é o aumento do preço
dos alugueis, é a aglomeração dos trabalhadores em casas particulares, e, para alguns, é
a total impossibilidade de encontrar alojamento.
No Brasil, conforme nota técnica divulgada pelo Instituto de Política
Econômica Aplicada – Ipea, o déficit habitacional no período de 2007 a 2012 cresceu
para a população de baixa renda, de até três salários mínimos. A problemática
envolvendo a habitação não é recente. O primeiro “esforço” do Estado em tratar da
referida questão foi a instituição da Fundação da Casa Popular em 01 de maio de 1946
pela Lei n. 9.218, pelo Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio do governo.
Segundo Bonduki (1994), o estado toma iniciativas desarticuladas, emanadas
de diferentes órgãos e com interesse político, porém, não se pode deixar de considerar
que o Estado brasileiro “assume” o problema da habitação. Além disso, é de práxis dos
governos de caráter populista a atuação em questões com grande repercussão na vida do
trabalhador, como o peso do aluguel, a visibilidade pública e o apelo à construção de
conjuntos habitacionais.
Outro ponto importante foi o Decreto-lei do Inquilinato de 1946, que se tratou
de uma medida de grande “repercussão social e econômica”. Não se sabe ao certo se a
respectiva medida fazia parte da política econômica ou se era uma decisão útil para
ampliar as bases de apoio do poder (BONDUKI, 1994).
Com a Lei n. 4.380 de 1964 foi dado o passo inicial para uma “nova política
habitacional”. O Plano Nacional de Habitação surge em um contexto em que era crucial
para o novo regime dar provas de que era capaz de atacar os problemas sociais
(AZEVEDO; ANDRADE, 2011). O Banco Nacional de Habitação representava uma
inovação sob três aspectos: era constituído por um Banco, diferentemente, da Fundação
da Casa Popular e nas caixas de pecúlio e órgãos previdenciários; os financiamentos
previam um mecanismo de compensação inflacionária – a correção monetária; por fim,

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um sistema que se busca articular o setor público com o privado (AZEVEDO;


ANDRADE, 2011).
Conforme exposto por Gomes (apud PAÇO CUNHA, 2017), no caso brasileiro
o pauperismo e a questão trabalhista eram irmãos siameses de modo que as
reivindicações trabalhistas apareciam como um problema de carestia. Para Paço Cunha
(2017) a finalidade da criação do Ministério da Ordem representava disciplinação e
habituação a determinado regime de funcionamento. Era uma resposta administrativa,
que não visava abolir as contradições que constituíam o fundamento para o problema
social.
Paralelo esse que pode ser traçado com relação às soluções dadas pelo governo,
para o problema da moradia, que não visavam de fato solucionar o problema, apenas
conseguir o apoio. Durante o BNH a classe média foi a mais beneficiada.

A LÓGICA DO CAPITAL: O MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E O


PROCESSO DE ACUMULAÇÃO

Os indivíduos produzem em sociedade, dessa forma, o ponto de partida para se


compreender a produção material é analisar a produção dos indivíduos socialmente
determinada (MARX, 2011). O indivíduo ao longo da história aparece sempre
produzindo em coletivo, seja como dependente ou como membro de um todo maior, no
início, na família, que posteriormente se amplia em tribo e mais tarde nas comunidades
resultantes da fusão das tribos. Isso ocorre tendo em vista que o ser humano é um
animal social, que somente pode isolar-se em sociedade (MARX, 2011).
A sociedade possui um papel importante na produção, tendo em vista que é
mediadora do processo de apropriação da natureza pelo indivíduo, processo este, que
ocorre em seu interior. O modo de produção, por sua vez, conforme exposto por Marx, é
definido pela maneira como se organiza a produção – a relação entre os produtores
diretos e a classe exploradora. O elemento fundamental para definir o modo de
produção são as relações sociais de produção que ligam o produtor ao explorador
(BOTTORMORE, 2013).
Segundo Marx (2013), o processo que cria a relação capitalista é o processo de
separação entre o trabalhador e a propriedade das condições de relação do seu trabalho.
Tal processo transforma em capital os meios sociais de subsistência e de produção e
converte os produtores diretos em trabalhadores assalariados. Dessa forma, a
acumulação primitiva constitui a pré-história do capital e do modo de produção que o
constitui.
A partir do modo de produção capitalista tem-se o modo de apropriação
capitalista. A propriedade privada capitalista é a primeira negação da propriedade
fundada no trabalho individual. Conforme delimitado por Marx (2013), a produção
capitalista produz a sua própria negação. Assim, a produção capitalista restabelece a
propriedade individual sobre o que foi conquistado na era capitalista – sobre a base de
cooperação e de posse comum da terra e dos meios de produção produzidos pelo próprio
trabalho.
Salienta-se que a transformação da propriedade privada fundamentada no
trabalho dos indivíduos, em propriedade capitalista é um processo mais longo e
dificultoso do que a transformação da propriedade capitalista na organização social da
produção – propriedade social. Na primeira tratava-se da expropriação da massa do
povo por poucos usurpadores e na segunda trata-se da expropriação de poucos pela

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massa do povo (MARX, 2013). Para Marx (2013) o modo de produção capitalista, a
acumulação e a propriedade privada, exigem o aniquilamento da propriedade fundada
no trabalho próprio.
Com relação à Lei geral da acumulação capitalista importa destacar que o
aumento do capital exerce influência sobre o destino da classe trabalhadora, tendo em
vista que a composição do capital sofre diversas alterações durante o processo de
acumulação capitalista. A referida composição do capital pode ser analisada sobre dois
aspectos: o do valor e o da matéria.
Marx (2013) entende que a composição do capital de valor ocorre sob o
aspecto do valor e se determina pela proporção em que o capital se reparte em capital
constante e em capital variável. Com relação ao aspecto da matéria todo capital se
divide em meios de produção e força viva de trabalho, tem-se então a composição
técnica.
A acumulação de capital é vista como a multiplicação do proletariado, já que a
acumulação reproduz de um lado a relação capitalista em escala ampliada – mais
capitalistas – e de outro, mais assalariados. Segundo John Bellers (1696) apud Marx
(2013), o trabalho dos pobres é a mina dos ricos. Isso ocorre uma vez que os pobres
realizam o trabalho que tornam os ricos cada vez mais ricos, em virtude da exploração
dos trabalhadores.
O aumento do preço do trabalho decorre da acumulação do capital. A força de
trabalho é comprada para satisfazer às necessidades pessoais do comprador. O objetivo
perseguido pelo comprador é a valorização do capital, em que são produzidas
mercadorias que contém mais trabalho do que ele paga. A referida produção de mais
valor - excedente – é a lei absoluta desse modo de produção (MARX, 2013).
Com a acumulação do capital desenvolve-se o modo de produção capitalista e
aumenta, consequentemente, o número de capitalistas. Cada capital individual é uma
concentração maior ou menor dos meios de produção e possui comando sobre um
exército maior ou menor de trabalhadores. Cada acumulação é um meio para uma nova
acumulação. Juntamente com a acumulação como já dito anteriormente desenvolve-se a
concorrência e o crédito que são fundamentais para o processo de centralização. A
centralização e a concentração se distinguem (MARX, 2013). A concentração de capital
é um processo crescente de concentração por intermédio da acumulação.
Segundo Marx (2013), a centralização de capital é um processo que ocorre pela
alteração na distribuição de capitais já existentes e pela modificação do agrupamento
quantitativo dos componentes do capital social, que é o valor a integralizar ou a ser
integralizado. Pode-se dizer que a centralização complementa o processo de
acumulação, pois possibilita aos capitalistas industriais ampliar a escala de suas
operações.
Ao comparar a centralização com a acumulação verifica-se que a acumulação é
um processo mais lento. A centralização precisa alterar apenas o agrupamento
quantitativo dos componentes do capital social. Assim, salienta-se que a centralização
possibilita mais avanços em curto espaço de tempo.
Diante do exposto, resta claro que a concentração dos meios de produção, a
centralização de capital e a acumulação capitalista provocaram diversas mudanças na
vida das camadas operárias. Tais mudanças ultrapassaram o trabalho desempenhado
pelos operários nas fábricas e atingiram a saúde, a moradia e a alimentação dos mesmos,
além de modificarem a relação afetiva entre os indivíduos, pontos estes que serão
abordados de forma mais detalhada no decorrer deste artigo.

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ASPECTOS SOBRE A QUESTÃO TRABALHISTA E A MORADIA NA


EUROPA

Em O Capital, Marx (2013), ilustra a Lei geral de acumulação capitalista,


analisando o crescimento da população na Inglaterra entre 1846 e 1866, o crescimento
da riqueza e a repartição dos rendimentos, dando destaque para a situação da maioria da
classe trabalhadora – a mais mal remunerada. Enfatizando ainda, a importância de se
analisar não somente a situação dentro das oficinas, como também as condições de
alimentação e de moradia. Não deixou de mencionar, inclusive, o crescimento da
população que perdeu sua condição de “existência”, os indigentes, que não podendo
mais vender sua força de trabalho vegetavam nas ruas graças a esmolas.
Outrossim, cabe abordar a obra de Engels A situação da classe trabalhadora
na Inglaterra, que compreende um estudo sobre o panorama de 1160 a 1180 e de 18^0 a
1845, anterior ao estudo descrito acima feito por Marx em O Capital. Para Engels
(2010), o proletariado nasce com a introdução das máquinas. Com a expansão da
indústria aumentou a demanda de mais trabalhadores, os salários aumentaram e, em
consequência disso, um grande número de trabalhadores de regiões agrícolas emigraram
para as cidades, o que provocou o crescimento da população urbana – em destaque para
a classe dos proletários.
Dessa forma, pode-se dizer que:

Adquirindo importância ao converter instrumentos em máquinas e oficinas


em fábricas, a nova indústria transformou a classe média trabalhadora em
proletariado e os grandes negociantes em industriais; assim como a pequena
classe média foi eliminada e a população foi reduzida à contraposição entre
operários e capitalistas, o mesmo ocorreu fora do setor industrial em sentido
estrito, no artesanato e no comércio: aos antigos mestres e companheiros
sucederam os grandes capitalistas e operários, os quais não tem perspectiva
de se elevarem acima de sua classe; o artesanato industrializou-se, a divisão
do trabalho foi introduzida rigidamente e os pequenos artesãos que não
podiam concorrer com os grandes estabelecimentos industriais foram
lançados às fileiras da classe dos proletários (ENGELS, 2010, p. 60).

Como se pode perceber houve uma transformação na questão trabalhista. A


nova indústria com a conversão dos instrumentos em máquinas e das oficinas em
fábricas transformou a classe média trabalhadora em proletariado, os grandes
negociantes em industriais e a pequena classe média foi eliminada, ocasionando a
divisão da população entre operários e capitalistas. A referida mudança na divisão do
trabalho gerou uma série de consequências para as cidades e para os seus habitantes.
A indústria centraliza a propriedade em poucas mãos e exige enormes capitais.
A partir de tais capitais cria gigantescos estabelecimentos, arruína a pequena burguesia
artesã e expulsa do mercado os trabalhadores manuais isolados. Pode-se dizer que as
três grandes alavancas que possibilitaram o avanço da indústria no mundo foram: a
divisão do trabalho, a utilização da força hidráulica, especialmente, do vapor e a
maquinaria. Com a pequena indústria foi criada a classe média e, por sua vez, com a
grande indústria a classe operária. A numerosa burguesia dos “bons e velhos tempos”
foi destruída pela indústria e decomposta em ricos capitalistas e em pobres operários
(ENGELS, 2010, p. 64).

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Engels (2010) acrescenta a este fato que a população se torna centralizada


como o capital – o que é visto como natural, tendo em vista, que na indústria, o homem,
o operário, não é considerado mais que uma fração do capital colocada à disposição do
industrial, que paga um juro, sob o nome de salário por seu trabalho.
Destaca-se que a centralização da propriedade atinge o seu mais alto grau nas
grandes cidades, pois é nelas que a indústria e que o comércio se desenvolvem de modo
mais completo e por isso, é nelas que emergem de forma mais clara as consequências do
desenvolvimento sobre o proletariado, como o desaparecimento dos costumes e as
condições dos “bons e velhos tempos” e a separação entre a classe rica e a classe pobre.
A imensa maioria das cidades é constituída por proletários que exercem grande
influência sobre a grande cidade (ENGELS, 2010).
Contudo, para realizar todos os milagres da civilização de que a grande cidade
– metrópole – esbanja, foi necessário uma série de sacrifícios. O que se percebe nas
cidades é um crescimento de indiferença brutal e de insensível isolamento entre os
indivíduos, cada um no terreno de seu interesse pessoal. O isolamento do individuo e o
mesquinho egoísmo, constituem em toda parte o princípio fundamental da sociedade
moderna – que se manifesta de forma nítida na grande cidade. A humanidade é
desagregada em mônadas e cada qual possui seu objetivo igualmente particular, o
mundo é atomizado e isso traz extremas consequências (ENGELS, 2010).
Segundo Marx (2011), o caráter social da atividade – a forma social do produto
e a participação do indivíduo na produção – aparecia como algo estranho e com caráter
de coisa frente aos indivíduos, que se encontravam subordinados às relações que
subsistiam independente deles e que nasciam do choque de indivíduos reciprocamente
diferentes.
Desse modo, a partir de Marx e Engels, fica demonstrada a indiferença, o
isolamento e a indistinção do indivíduo na sociedade capitalista. O capital e o valor de
troca passam a intermediar as relações entre os indivíduos, anulando suas diversidades e
provocando o individualismo e a indiferença brutal entre os mesmos. Nesse tipo de
sistema, o trabalho, a moradia e as relações entre os indivíduos acabaram perdendo o
seu “real valor”, se anularam e se tornaram mercadorias.
Conforme exposto por Engels (2010), ocorre a declaração de uma guerra de
todos contra todos. Os homens só se consideram como objetos utilizáveis. Cada
indivíduo explora o outro e o resultado disso, é que o mais forte pisa cada vez mais no
mais fraco e os poucos fortes – capitalistas – se apropriam de tudo, restando aos muito
fracos - pobres – apenas a vida.
Os indivíduos se tornam cada vez mais isolados e ninguém se preocupa com os
pobres que muitas vezes morre de fome. Engels ao analisar de forma mais detalhada as
condições da guerra social, observa a habitação, o vestuário e a alimentação (ENGELS,
2010).
Assim, foi exposta a concentração da classe operária nos “bairros de má fama”,
em que se situam uma massa de casas dispostas de maneira irregular e com porões
habitados. Nesses lugares as ruas não são planas nem as calçadas, além de serem sujas,
tomadas por detritos vegetais e animais, sem esgotos ou canais de escoamento, cheias
de charcos estagnados. A ventilação é precária e em virtude da aglomeração de pessoas
há baixa qualidade do ar (ENGELS, 2010).

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De acordo com Engels (2010) as casas eram inabitáveis e as ruas cheiravam


mal. Segundo os relatos dos inspetores das Casas de Trabalho1 os pobres viviam em
locais apertados, como em 52 casas, com 390 quartos, da Barrack Street, viviam 1.318
pessoas e em 71 casas, com 393 quartos, na Church Street, viviam outras 1.997 e que
nesse bairro e no vizinho havia becos e pátios tomados por um “miasma nauseabundo”,
muitos porões só recebiam luz do dia pela porta e muitos indivíduos dormiam no chão.
A situação foi descrita por Marx em O Capital, ao tratar das reformas
realizadas nas cidades, como a construção de estradas de ferro, o alargamento das ruas,
entre outros, que eram consideradas como “melhorias”. As respectivas melhorias
somente eram possíveis com a expulsão dos trabalhadores de suas antigas casas.
Segundo Marx (2013), o único paradeiro dessas famílias expulsas seria as workhouses,
que já se encontravam superlotadas. As “melhorias” já aprovadas estavam apenas no
começo de sua execução. Os trabalhadores expulsos de suas antigas casas, não
abandonavam a região em que viviam, procuravam se instalar próximos a sua paróquia
ou na paróquia mais próxima.
Foi demonstrado ainda, por Marx em O Capital (2013), o resultado dessas
reformas nas cidades, que foi o amontoamento dos seres humanos em locais cada vez
menores. Com o alto preço dos alugueis além deles não conseguirem alugar uma
quantidade adequada de quartos para a família, acabavam muitas vezes alugando
moradias piores do que as que residiam anteriormente e em muitos casos distantes do
seu local de trabalho. Sem contar a propagação de doenças por conta desse
amontoamento dos seres humanos e da falta de higiene da população.
Para Engels (2015), estava claro que o Estado era a totalidade do poder
organizado das classes possuidoras, dos proprietários de terras e dos capitalistas em
confronto com as classes espoliadas, os agricultores e os trabalhadores.
Percebe-se que a Inglaterra tanto no ambiente urbano como no rural era
marcada por grandes disparidades, de um lado encontrava-se os proprietários de terras e
os capitalistas detentores dos instrumentos de produção e do outro as classes que apenas
possuíam sua força de trabalho para vender, os agricultores e os trabalhadores, que eram
duramente explorados.

A MORADIA E A QUESTÃO TRABALHISTA NO BRASIL

Diante da relação entre a questão trabalhista e a moradia no Brasil ser o objeto


de estudo desse artigo foi fundamental analisar as condições de habitabilidade dos
operários na Inglaterra, que é fruto da moderna sociedade industrial, berço do
capitalismo. Após a referida análise, é importante partir para o estudo, ainda que breve,
do capitalismo tardio no Brasil e suas particularidades, mais precisamente, do
nascimento e da consolidação do Capitalismo Industrial, que será norteado pelo livro de
João Manuel Cardoso de Mello.
Segundo Mello (1991), o movimento da economia brasileira entre 1888 e 1932
é imprimido, em última instância, pela acumulação cafeeira, em virtude da hegemonia

1
As Casas de Trabalho foram estabelecidas na Inglaterra no século XVII. Segundo a Lei dos Pobres
(1834), só era admitida uma forma de ajuda aos pobres: o alojamento em casas de trabalho com um
regime prisional; os operários realizavam trabalhos improdutivos, monótonos e extenuantes; as casas de
trabalho foram designadas pelo povo de “bastilhas dos pobres”. Disponível em: <
https://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/w/workhouses.htm>. Acesso em: 07 abr. 2018.

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do capital cafeeiro. Para o autor, as condições de acumulação foram extremamente


favoráveis, como a ampla disponibilidade de terras, “produzida” pela extensão das
estradas de ferro e a oferta de força de trabalho superabundante, gerada pela maciça
imigração, que permitiu atender as necessidades de mão-de-obra, tanto no núcleo
produtivo quanto no segmento urbano.
Outrossim, é válido destacar o fluxo imigratório, que deslocou para o Brasil,
entre 1888 e 1900 cerca de 1.400.000 pessoas, das quais 890.000 se fixaram em São
Paulo. O referido fluxo imigratório foi decorrente das transformações que sacudiram a
Europa nas duas últimas décadas do século XIX, que funcionaram como fatores de
expulsão, que provocaram a formação de grandes contingentes de homens livres e sem
trabalho, dispostos a emigrar – mercado internacional do trabalho (MELLO, 1991).
Pode-se dizer que o capital cafeeiro é, ao mesmo tempo, agrário, industrial e
mercantil. O complexo exportador cafeeiro é integrado por um núcleo produtivo, que
inclui a atividade de beneficiamento, segmento urbano que acolhe os serviços de
transportes – estradas de ferro, portos -, atividades comerciais – casas importadoras e
exportadoras – e financeiras – bancos (MELLO, 1991).
Assim, conforme exposto por Mello (1991), a acumulação cafeeira é, a
acumulação urbana, que absorveu grande parte da força de trabalho imigrante e exigiu a
importação de meios de produção, quais sejam, os trilhos, os materiais de construção, os
equipamentos ferroviário e portuário. A reprodução da força de trabalho tanto no núcleo
produtivo como no segmento urbano foi, em parte considerável dependente das
importações de alimentos e de bens manufaturados de consumo.
Além disso, segundo Mello (1991) o capital industrial não nasceu em momento
de crise, despontou no auge exportador cafeeiro, em que a taxa de rentabilidade
alcançou níveis consideráveis. A acumulação financeira ultrapassava as possibilidades
da acumulação produtiva, em virtude do “vazamento” de capital monetário do complexo
exportador cafeeiro. Para que os projetos industriais se transformassem em decisões de
investir bastava que os projetos industriais garantissem rentabilidade positiva. O
movimento do capital cafeeiro ao capital industrial foi amplamente facilitado pelas
condições de financiamento, pois o Estado prestava auxílio aos agricultores “para lhes
facilitar a passagem do trabalho escravo para o assalariado”.
Posteriormente à exposição sobre a situação da economia brasileira durante a
República Velha, período compreendido entre 1889 até 1930, cumpre discorrer sobre as
ações realizadas pelo governo no que se refere à habitação, seja para a produção ou para
a regulamentação do mercado de locação de residências que eram praticamente nulas.
Outrossim, apesar de não ser o foco deste trabalho, merece destaque a
proposição de Costa e Azevedo (2016) sobre os reflexos da abolição da escravidão no
Brasil, tendo em vista que os ex-escravos eram um dos segmentos, que não possuía
local adequado para morar e por isso, precisou ocupar outros espaços. A abolição da
escravidão foi considerada pelas autoras já citadas como incompleta, pois não rompeu
com as heranças escravocratas e obrigou a população negra no país a continuar morando
em espaços multifamiliares, onde não havia qualidade de água, de luz e de higiene. Os
milhares de negros e de negras ex-escravizados (as) que moravam no país foram
obrigados a ocuparem espaços impróprios para moradia, como encostas de morro e
margens de rios e de lagoas.
Segundo Rolnik (apud Bonduki, 1994), o Estado durante a República Velha
estava atrelado ao liberalismo, privilegiava a produção privada e se recusava a
intervenção direta na construção de casas para os trabalhadores. A atuação estatal

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restringia-se à repressão e às situações mais graves de insalubridade, via legislação


sanitária e a concessão de isenções fiscais, que beneficiavam basicamente os
proprietários de casas de locação.
Nessa época, a estrutura da economia brasileira estava centrada nas atividades
agroexportadoras, nas cidades predominava o comércio sobre a produção e a indústria
ocupava um papel subordinado e secundário. As casas de aluguel eram uma forma
segura e excelente de rentabilizar poupanças e recursos disponíveis na economia urbana,
aquecida pela atividade agrário-exportadora, já que a indústria possuía pouca
capacidade de absorver os novos e crescentes investimentos (BONDUKI, 1994).
Outrossim, pode-se dizer que existia o debate em diversas localidades sobre a
atuação do poder público de prover moradias para os trabalhadores. Contudo, concluía-
se, na maioria dos casos, que não era papel do poder público, pois, tal atitude estaria
desestimulando a iniciativa privada. Indo além, argumentavam, inclusive, que isso
poderia agravar a crise da época.
A visão que predominava durante a República Velha era a de concessão de
favores à iniciativa privada, para que a mesma produzisse moradias mais baratas e, com
isso alugueis mais baratos. A solução ideal era a promoção de vilas operárias pelos
industriais para servirem de moradias aos empregados (BONDUKI, 1994).
As vilas operárias foram consideradas como os primeiros empreendimentos
habitacionais de grande porte construídos no país e estavam vinculadas à emergência do
trabalho livre e da necessidade das empresas fixarem seus operários nas imediações de
suas instalações, mantendo tais trabalhadores sob controle político, ideológico e criando
um mercado de trabalho cativo (BLAY apud BONDUKI, 1994).
Como se pode perceber, durante a República Velha, a moradia já era utilizada
como forma de dominação, cooptação e controle dos operários. Os trabalhadores eram
indispensáveis à manutenção das máquinas, dessa forma, era importante mantê-los sob
controle evitando greves ou até mesmo paralisações, pois a perda do emprego implicava
em perda da casa. Portanto, a criação das vilas operárias, que muitas vezes,
localizavam-se próximas as fábricas e contavam com escolas, creches, igrejas e
armazéns, representavam um controle absoluto da vida dos operários e do seu tempo
livre.
A Revolução de 1930 representou um marco importante de ruptura na forma de
intervenção do Estado na Economia e na regulamentação das relações de capital e
trabalho. Vargas necessitava legitimar o poder político, que passou a deter pós
Revolução de 1930 e por isso, precisava firmar um compromisso com as massas
populares, bem como, montar uma estratégia de desenvolvimento econômico baseado
na indústria e requerer intervenções no campo trabalhista (BONDUKI, 1994).
Dessa forma, em 26 de novembro de 1930 foi criado o Ministério do Trabalho,
Indústria e Comércio, que contava com a seguinte estrutura: Secretário de Estado,
Departamento Nacional do Trabalho; Departamento Nacional do Comércio;
Departamento Nacional de Povoamento e Departamento Nacional de Estatística. O
respectivo projeto surgiu com o intuito de interferir sistematicamente no conflito entre
capital e trabalho.
Em 1942, foi instituído o Decreto-lei do Inquilinato, com o intuito de congelar
os alugueis e suas sucessivas renovações, tendo em vista que a grande maioria dos
trabalhadores e da classe média pagava aluguel e com isso, comprometia grande parte
do seu salário. Contudo, de acordo com Bonduki (1994), a Lei do Inquilinato gerou
escassez para o processo de produção habitacional. A iniciativa privada, principalmente,

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21 e 22 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

os grandes investidores reduziram drasticamente a construção de casas de aluguel,


aumentando de forma dramática a carência de habitações nas grandes cidades
brasileiras. Com isso, os despejos se intensificaram e paralelamente a essa situação tem-
se a especulação imobiliária e a elevação no preço dos imóveis, sobretudo nas áreas
centrais, o que agrava ainda mais a situação.
Em 01 de maio de 1943 foi unificada toda a legislação trabalhista existente no
país: a Consolidação das Leis Trabalhistas - CLT. A CLT regulamentava o trabalho
urbano – industrial e comercial - e deixava de lado expressamente outros tipos de
trabalho, dentre eles o realizado por trabalhadores rurais, que exerciam funções ligadas
à agricultura e à pecuária, conforme o artigo 7º, b) do referido Decreto-lei.
Em 01 de maio de 1946 foi instituída a Fundação da Casa Popular – FCP, pelo
Decreto – lei n. 9.218, durante o governo de Dutra. Antes da FCP, os Institutos e Caixas
de Aposentadorias e Pensões atuavam na questão habitacional de maneira fragmentada,
por carteiras prediais, atendendo apenas os associados.
Para Azevedo e Andrade (2011) diversas considerações de ordem política
parecem ter motivado a ideia de criação da FCP. Nessa mesma época, o Partido
Comunista encontrava-se em ascensão, com forte penetração junto às populações
operárias das grandes cidades. Os candidatos comunistas à Assembleia Constituinte
foram muito votados, formavam uma bancada composta por 14 deputados e um
senador, perfazendo 9% do eleitorado. Acrescido a este fato, tem-se a candidatura de
Fiúza a presidência – quase desconhecido – lançado pelo partido comunista e que
alcançou 600 mil votos.
Assim, diante da referida incerteza política, o governo empregou duas
estratégias, sendo elas: a declaração de ilegalidade do Partido Comunista e as ações de
cunho social. A própria escolha da data para a promulgação do Decreto-lei, que criou a
FCP é reveladora do alcance político que se pretendeu alcançar com essa iniciativa
(AZEVEDO; ANDRADE, 2011).
Acredita-se que a FCP foi instituída no dia do trabalhador, em virtude da
necessidade de apoio das massas populares, já que a habitação conforme exposto por
Bonduki (1994, p.717) “sempre representou um grande ônus e um problema dos mais
graves a ser resolvido pela classe trabalhadora urbana, visto o aluguel da moradia
consumir uma parcela considerável do salário”.
Com esse decreto, a FCP, passaria a ter oportunidade de atuar em áreas
complementares que fariam dela um verdadeiro órgão de política urbana lato sensu.
Cabia a FCP financiar obras urbanísticas de abastecimento d’água, esgotos, assistência
social, entre outras, que melhorassem a qualidade de vida da classe trabalhadora;
financiar as indústrias de material de construção, nos casos, em que por deficiência do
produto de mercado, se tornasse indispensável o estímulo ao crédito; financiar
construções de iniciativa ou sob responsabilidade de prefeituras municipais, destinadas
à venda a baixo custo ou a locação a trabalhadores, sem objetivo de lucro e, por fim,
estudar e classificar os tipos de habitações populares. Foi introduzida a habitação rural
“nos aspectos de construção, de reparação e melhoramento”, como nova meta
institucional (AZEVEDO; ANDRADE, 2011, p. 3).
Para Bonduki (1994), a proposta da FCP revelava objetivos amplos, tendo em
vista que se propunha financiar além da moradia, a infraestrutura, o saneamento básico,
a indústria de material de construção, a pesquisa habitacional e, inclusive, a formação de
técnicos no município. Contudo, identificava na proposta algumas fragilidades, como a

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 22 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

carência de recursos, a desarticulação no âmbito do aparato estatal e a ausência de ação


coordenada para enfrentar o problema de modo global.
Pode-se dizer que Bonduki (1994) considerou a intervenção dos governos do
período como pulverizada e atomizada e por isso, não pôde ser considerada
efetivamente uma política. No entanto, reconhece que nesse período é desenvolvido
certo consenso da sociedade de que a questão da habitação dos trabalhadores não
poderia ser enfrentada pelo livre jogo do mercado, seria indispensável uma intervenção
do Estado.
Conforme delimitado no decreto, a população que faria jus ao financiamento
eram: os brasileiros e os estrangeiros com mais de dez anos de residência no país, ou
com filhos de brasileiros que não tivessem habitação própria. A preferência para a
construção ou aquisição seguia a respectiva proporção: trabalhadores em atividades
particulares 3, servidores públicos ou de autarquias 1 e outras pessoas 1. Mais tarde tais
critérios seriam incorporados a outros, quais sejam, a renda e o tamanho da família.
Somente poderiam pleitear tal financiamento os indivíduos com renda familiar líquida
não excedente a 60 mil cruzeiros anuais e que tivessem sob sua dependência econômica
um mínimo de cinco pessoas (AZEVEDO; ANDRADE, 2011).
Pode-se dizer que por não exigir renda mínima, a medida foi considerada de
cunho eminentemente social. Contudo, permitia que os setores que possuíssem mais
renda também disputassem as almejadas casas populares, mas isso não aconteceu em
grande escala por exclusão voluntária dos setores médios. Salienta-se, ainda, o número
de dependentes era o fator determinante na classificação e na escolha dos candidatos
(AZEVEDO; ANDRADE, 2011).
Em virtude das pressões políticas e clientelísticas da época, sob a forma de
“reserva técnica”2, de difícil superação, e sem dispor de fonte estável de recursos que
lhe permitisse fazer frente às conjunturas desfavoráveis, não foi capaz de alcançar
maturidade institucional (AZEVEDO; ANDRADE, 2011).
Outra questão importante é que se enxergava na FCP, um paternalismo
autoritário na administração dos conjuntos, uma vez que se partia do pressuposto de que
as classes populares não estavam preparadas para a vida em comunidade. Precisavam
ser guiadas para utilizar e conservar as instalações da casa, daí as visitas de inspeção nos
primeiros anos (AZEVEDO; ANDRADE, 2011).
Em 1964 foi criado o Banco Nacional de Habitação - BNH, o primeiro órgão
de alcance nacional, que tinha como base o Sistema Financeiro Habitacional – SFH. As
fontes principais desse sistema eram o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS
e o Sistema Brasileiro Poupança e Empréstimo3. O objetivo do BNH era financiar a
aquisição da casa própria para as populações de baixa renda. Com a referida política o
governo pretendia responder e controlar as pressões populares por moradia, em virtude
do grande déficit habitacional daquela época que crescia com o processo de urbanização
acelerado.

2
A “reserva técnica” era constituída de pequeno número de unidades em cada conjunto, que não eram
sujeitas aos critérios formais de distribuição, medida que se apresentavam candidatos com “cartucho
político”, a Fundação fazia uso de tal estoque (AZEVEDO, 2011, p.12).

3 FGTS, um tipo de poupança compulsória constituída por depósitos correspondentes a 8% dos salários
dos trabalhadores formalizados para financiar moradias destinadas à população de baixa renda. SBPE,
fundo de poupança voluntária, para financiar o setor de classes média e alta (Arretche, 1990; Azevedo e
Andrade, 1982, p. 113).

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 22 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

Segundo Maricato (1987) o SFH possibilitou a capitalização de empresas


ligadas ao provimento de habitações, permitiu a estruturação de agentes financeiros
privados, permitiu o financiamento à produção e do consumo. Nessa época houve
também uma política de concentração de renda que possibilitou a ampliação do mercado
imobiliário para provimento de moradias do tipo capitalista. A hipoteca para o
financiamento passou a ser o futuro edifício e não mais o terreno, o que fez com o que
mercado de terras ficasse cada vez mais atrelado ao setor produtivo imobiliário. A
mercadoria – a casa própria – além dos aspectos econômicos cumpria importante papel
ideológico. Os setores da população que foram beneficiados por essa política foram os
sustentáculos do governo ditatorial.
Ponto este que vai ao encontro da exposição de Guerra e Loureiro (2014) que
observaram que o BNH fracassou nos objetivos sociais de promover a moradia para a
população de baixa renda, uma vez que acabou sendo atrelado à orientação econômica
de ativar o mercado interno por meio da construção civil e a lógica empresarial voltada
para o financiamento dos segmentos de média e alta renda.
Guerra e Loureiro (2014) expõe ainda, que em 1975 dez anos depois de seu
lançamento foi observado que só destinava 3% dos seus recursos para família abaixo de
cinco salários mínimos, os grandes beneficiários foram mutuários com rendimentos
superiores a vinte salários mínimos. Assim, do ponto de vista institucional o modelo
BNH, forjado no contexto autoritário, foi marcado por arenas centralizadas.
Por fim, conforme exposto por Maricato (1987, p. 28) “o campo das lutas em
torno da habitação e das condições de vida urbana em geral, ao mesmo tempo, que é um
espaço da luta de classes, é também espaço privilegiado da cooptação e do exercício da
hegemonia burguesa”.

CONCLUSÃO

Objetivou-se com este artigo iniciar um estudo sobre a conexão envolvida entre
o direito à moradia e a questão trabalhista no Brasil. Defendeu-se a hipótese de que a
moradia serviu de instrumento de troca e de controle de classes pelo Estado que buscava
apoio, tanto durante o governo de 1946 quanto durante 1964.
Assim, para demonstrar a veracidade da hipótese, partiu-se inicialmente, para
uma análise do modo de produção capitalista, do processo de acumulação de capital, de
centralização e de concentração de capital na Inglaterra e dos reflexos desse sistema
capitalista na vida das pessoas, abarcando desde a relação de trabalho, a alimentação, o
vestuário, a moradia e os relacionamentos, em virtude das transformações tecnológicas.
Como fora demonstrado ao longo do artigo, a industrialização trouxe uma série
de avanços, mas a modernidade separou o indivíduo, produzindo isolamento,
competitividade, provocando exploração de trabalho nas fábricas e a precariedade das
moradias, do vestuário, da alimentação e de higiene.
Foi necessária a análise da Europa, em especial, da Inglaterra, berço do
capitalismo, para compreender a lógica do capital e em seguida, analisar as
particularidades brasileiras. Apesar do foco da investigação ter sido indicado como entre
1930 e 1970, traçou-se um breve estudo sobre a República Velha, englobando o
nascimento e a consolidação do capitalismo industrial no Brasil, para compreender o
trabalho e assim, a dominação que era exercida sobre os trabalhadores.
Observa-se que a dominação exercida sobre os trabalhadores assalariados, no
que se refere à ideologia, a política e a vida acontece desde as vilas operárias. Foram

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apontados ao longo do artigo aspectos cruciais sobre a relação entre moradia e trabalho
e, mais precisamente, sobre a sua utilização como instrumento de troca e de controle.
Desde as vilas operárias identifica-se tal postura, nas medidas adotadas por
Vargas durante o seu governo também, como a criação MTIC, Lei do Inquilinato e CLT
– verifica-se o cunho eminentemente populista; na FCP não foi diferente, a “Política
Habitacional” apresentou uma serie de problemas, acontecia a “reserva técnica”, que
nada mais era do que uma forma de cooptar voto e apoio político e o BNH, também não
alcançou o que se propôs com relação à aquisição de moradias pela população de baixa
renda, uma vez que a classe média e a classe alta foram as mais beneficiadas com a
referida política.
Acredita-se que cabem estudos mais aprofundados sobre os aspectos jurídicos,
econômicos e políticos conexos com a moradia e o trabalho. Em apenas um artigo seria
impossível analisar, de forma pormenorizada, todos os pontos cruciais que foram
indicados. Além disso, pontos importantes, que embora não seja objeto de estudo
diretamente, mas que se relacionam com a formação do capitalismo tardio no Brasil,
infelizmente precisaram ser deixados de lado.

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228
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 a 23 de maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

PROPRIEDADE INTELECTUAL E RENDA NO CAPITALISMO


INFORMACIONAL

Larissa Ormay
Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia
Universidade Federal do Rio de Janeiro
lrssa@protonmail.com

Resumo
Este artigo resume a tese de doutorado de mesma autoria, que propõe a analogia entre a
renda da terra descrita por Karl Marx e a “renda informacional” obtida a partir de direitos
de propriedade intelectual. Em primeiro lugar, expõe-se o desenvolvimento teórico
realizado na pesquisa para, em seguida, analisar-se sua aplicação a um caso concreto
sobre o conflito entre o acesso e a apropriação privada do conhecimento científico
envolvido na criação de tecnologias quânticas. Por fim, conclui-se que o trabalho
científico é subsumido ao capital em um processo de acumulação marcado pelo rentismo
informacional.
Palavras-chave: Propriedade intelectual; Renda; Capitalismo informacional.

INTELLECTUAL PROPERTY AND RENT IN INFORMATIONAL


CAPITALISM

Abstract
This article summarizes the author's doctoral thesis, which proposes the analogy between
the rent of the land described by Karl Marx and the “informational rent” achieved by
intellectual property rights. The theoretical development carried out in the research is
exposed to analyze its application to a concrete case about the conflict between free access
and the private appropriation of the scientific knowledge involved in the creation of
quantum technologies. At the end, it is concluded that the scientific labor is subsumed to
capital in a process of accumulation marked by informational rentism.
Keywords: Intellectual property; Rent; Informational capitalism.

Introdução

Desde os anos 1980, a apropriação do conhecimento pela aquisição de direitos de


propriedade intelectual (DPIs) vem se expandindo aceleradamente, conforme dados da
Organização Mundial da Propriedade Intelectual (WIPO, 2017). Esse fenômeno suscita
o aprofundamento da seguinte contradição: se, por um lado, a produção de ciência e
tecnologia depende do amplo acesso ao conhecimento, por outro, os DPIs funcionam
como barreiras a tal acesso, já que são monopólios.
Como reação às dificuldades de acesso e utilização do conhecimento surgidas pela
rápida expansão dos DPIs, movimentos em prol da flexibilização do regime proprietário
do conhecimento – como Ciência, Tecnologia e Inovação Abertas, Acesso Aberto,
Software Livre, Creative Commons entre outros – se pretendem alternativas ao tradicional
modelo proprietário. Porém, até que ponto essas alternativas se traduzem em formas de

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21 a 23 de maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

resistência, ou são capturadas pela lógica capitalista, intrinsecamente assentada na


apropriação? O presente artigo retrata uma pesquisa de tese desenvolvida a partir desse
questionamento.
Assumindo-se a premissa de que o capitalismo se caracteriza por sistemáticos
movimentos de acumulação por despossessão (HARVEY, 2008), aponta-se que a
informação e o conhecimento seriam largamente apropriados pelo capital com respaldo
em direitos de propriedade intelectual a partir de meados do século XX, cultivando-se um
novo tipo de rentismo baseado em rendas informacionais. Esse novo movimento de
acumulação por despossessão consistiria em uma importante marca da transição entre o
fordismo e o pós-fordismo.
De acordo com Marcos Dantas (1994), enquanto o fordismo, na primeira metade
do século XX, reorganizou a economia capitalista assentada no trabalho simples, o
contemporâneo pós-fordismo reconfigurou a produção ao conferir uma centralidade ao
trabalho informacional de recuperar, processar, registrar e comunicar informação. Por
essa razão, o período pós-fordista é batizado pelo autor de "capital-informação" ou
"capitalismo informacional" (DANTAS, 1994). Ao contrário de certas posições
deterministas que atribuem a nova fase do capitalismo ao advento de novas tecnologias
da informação e da comunicação (TICs) digitais, Dantas (1994) demonstra que o que está
em questão continua sendo a exploração do trabalho, que, por sua vez, continua sendo
explicada pela teoria do mais-valor formulada por Karl Marx (2013). No contexto do
capital-informação, portanto, pela velha lógica da extração de mais-valor, persiste a
espoliação da classe trabalhadora em relação à riqueza que ela produz.
Nesse sentido, ainda de acordo com Dantas (2008), a exploração do trabalho
informacional tem repercutido na extração de rendas informacionais garantidas por DPIs,
que seriam uma nova versão das rendas da terra descritas por Marx (2017). Contudo,
apesar do grande feito de Dantas em construir um arcabouço teórico sobre um novo tipo
de rentismo ligado à propriedade intelectual, não foi encontrada, na literatura acadêmica,
nenhum estudo empírico das rendas informacionais.
Em face disso, pretendeu-se visualizar o rentismo informacional diante do
desenvolvimento de tecnologias quânticas oriundo de uma disciplina da Física chamada
Informação Quântica. Observou-se que está em curso uma corrida mundial pela criação
de inovações baseadas nas leis da Mecânica Quântica, tecnologias que prometem mudar
o paradigma da computação. Companhias do mundo inteiro – incluindo Google,
Microsoft, Intel, Toshiba e IBM – investem substancialmente para realizar esse potencial,
ao mesmo tempo em que os pesquisadores continuam compartilhando maciçamente,
sobretudo em uma plataforma de Acesso Aberto1 denominada arXiv, conhecimento sobre
os respectivos avanços científicos. Por envolver grandes interesses econômicos e
políticos, a disputa pela informação na corrida mundial para a criação de tecnologias
quânticas se mostrou um bom caso para testar de que modo novas ferramentas de acesso
ao conhecimento impactam (se é que impactam) no regime de propriedade intelectual.
Em suma, a tese em questão pretendeu testar a analogia entre o conceito de renda
da terra, formulado por Karl Marx (2017), e a remuneração do trabalho informacional
garantida pelos DPIs, a partir, principalmente, da teoria das rendas informacionais

1
O Acesso Aberto é um movimento criado com a Declaração sobre Ciências e a Utilização do
Conhecimento Científico, ou Declaração de Budapeste, emitida na Conferência Mundial sobre Ciência
promovida pela Unesco no ano de 1999 em Budapeste. Em consonância com os termos expressos nesse
documento, o Acesso Aberto se traduz na disponibilidade online ao acesso livre e irrestrito para todos aos
resultados de pesquisa científica publicados em forma de artigos ou preprints.

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construída por Marcos Dantas (2008). Aplicou-se esse desenvolvimento teórico a um


estudo de caso sobre a publicação de pesquisas no campo da Física, especificamente
acerca de assunto de grande interesse político e econômico – qual seja, a criação de
tecnologias quânticas –, para fins de apuração dos limites do cercamento do conhecimento
para a extração de rendas informacionais.

Capitalismo informacional e cercamento do conhecimento

De meados do século XIX ao início do XXI, seguidas fases do desenvolvimento


capitalista são datadas de acordo com suas características específicas quanto ao modo de
organização e dinâmica econômica pautada pela acumulação de capital. Em geral,
identificam-se os períodos do imperialismo, do fordismo e do pós-fordismo (CHESNAIS,
1996).
Aproximadamente entre 1880 e 1913, o imperialismo consistia na expansão
econômica de alguns Estados para outros territórios transformados em colônias. Em
seguida, houve um período de guerras e pós-guerras mundiais, que deu fim ao antigo
imperialismo e preparou as condições geopolíticas mundiais para o surgimento de uma
nova fase do capitalismo, o fordismo.
O fordismo foi uma fase de crescimento, compreendendo os "trinta anos
gloriosos", do pós-Segunda Guerra Mundial até o final dos anos 1970.
Na passagem do fordismo para o pós-fordismo, o trabalho informacional passa a
ser o mais valorizado economicamente, gerando uma acelerada expansão dos direitos de
propriedade intelectual (DPIs) e do correlato rentismo informacional. O trabalho
informacional é, segundo Dantas (1999), aquele que capta, processa, comunica e registra
informação pela produção de sentido e significado em um contexto cultural e científico.
Com essa perspectiva, ancorada na importância do trabalho informacional – e não da
informação isoladamente – Dantas denomina o período pós-fordista de capitalismo
informacional ou capital-informação, iniciado no final dos anos 1970, perdurando até os
dias de hoje. No conceito de capitalismo informacional, o destaque atribuído ao trabalho
para a constituição do valor econômico não é fortuito: a interpretação sobre os fenômenos
do capitalismo informacional se desenvolve com base na obra de Karl Marx (2013, 2014,
2017), que realizou, no século XIX, uma importante crítica da economia política a partir
da teoria do valor-trabalho, segundo a qual o valor econômico é medido pelo tempo de
trabalho humano social médio necessário para produzir mercadorias.
Com foco no protagonismo do trabalho, portanto, a alusão ao capitalismo
informacional implica uma visão crítica sobre a atribuição das transformações
econômicas das últimas décadas ao puro avanço da tecnologia. A tecnologia não é neutra;
é sempre pensada, projetada e utilizada dentro das condições materiais em vigor, sendo
capturada pelos interesses do capital.
A necessidade de o capital se reinventar para continuar se autovalorizando fez
emergir o capitalismo informacional2, contrastando com a rigidez do fordismo. Nessa

2
Outros inúmeros autores têm sugerido termos e conceitos que dialogam com as transformações das
forças produtivas na virada do século XX para o XXI, como, por exemplo, acumulação flexível
(HARVEY, 1992), capitalismo digital (SCHILLER, 2000), capitalismo virtual (DAWSON, FOSTER,
1998), capitalismo de alta tecnologia (HAUG, 2003), capitalismo informático (FITZPATRICK,
2002), capitalismo comunicativo (DEAN, 2005), capitalismo cognitivo (NEGRI, VERCELLONE,
2008), mundialização do capital (CHESNAIS, 1996) e capital-imperialismo (FONTES, 2010).

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nova fase, a produção industrial se fragmenta em serviços terceirizados e outras quebras de


vínculo formal de trabalho, com o auxílio das tecnologias da informação e da comunicação
(TICs) – o marco da terceira revolução industrial. O trabalho passa a se distribuir entre
amorfas "redes" de pessoas cada vez mais "autônomas", isto é, formalmente excluídas dos
quadros de trabalhadores de estruturas empresariais mais e mais concentradas e lucrativas.
Além disso, a produção vai se automatizando, substituindo trabalhadores pela tecnologia. No
início do século XXI já se fala em quarta revolução industrial, ou “Indústria 4.0”, ligada à
robotização, inteligência artificial e tecnologias quânticas (SILVA et al, 2017).
A introdução da tecnologia no processo produtivo significa que o trabalho redundante
passa a ser realizado por máquinas, de modo que o trabalho humano gradativamente se
concentra mais em processos informacionais (DANTAS, 1999). Contudo, como somente o
trabalho humano gera valor (SMITH, 1996; MARX, 2013), a substituição do trabalho vivo,
humano, por trabalho morto, realizado por máquinas, incide no que Marx (2017) chamou de
tendência à queda da taxa geral de lucro, inerente ao sistema capitalista. Diante desse
fenômeno, os grandes proprietários dos meios de produção buscam formas de continuar
acumulando riqueza apesar da queda do lucro, o que é alcançado, em certa medida, por um
modo rentista de enriquecimento.
A encruzilhada entre a exclusivista propriedade privada e o caráter social da
informação e do conhecimento tem encaminhado teorias que descrevem a expansão dos DPIs
como uma reedição do cercamento sobre relações comuns enquanto condição da acumulação
de capital (BOYLE, 2003; HESMONDHALGH, 2008; GLASSMAN, 2006; PEEKHAUS,
2012). Desse modo, se na acumulação primitiva de capital a terra comunal precisou ser
cercada e expropriada (MARX, 2013), agora, cada vez mais, o conhecimento parece fazer as
vezes da terra, sendo cercado e expropriado por meio dos DPIs. Em torno do direito de
propriedade, a relação entre a terra e a informação se reforçaria pela analogia entre a renda
da terra (MARX, 2017) e a renda informacional (DANTAS, 2008).
Pela teoria econômica clássica (SMITH, 1996[1776]), a terra não tem nenhum valor
em si porque não é produto de trabalho. Qualquer "preço da terra", portanto, é irracional.
Trata-se de uma ficção imposta à sociedade, porém com efeitos reais. De modo análogo às
terras, durante muito tempo as obras eminentemente produzidas pela criação intelectual
humana sequer eram encaradas como bens passíveis de comercialização, eis que essas obras
eram oriundas da "pura natureza" da cognição humana. Em dado momento, o "cercamento"
do domínio intelectual passou a acontecer sob a denominação de propriedade intelectual,
levando à hipótese desenvolvida por James Boyle (2003) de um novo movimento de
cercamento, análogo ao de terras, caracterizando-se como uma segunda onda de acumulação
de capital na História.
A visão de Boyle se coaduna com a argumentação de David Harvey (2013) segundo
a qual o processo de acumulação primitiva não pertence exclusivamente à pré-história do
capitalismo. A expropriação das populações rurais e camponesas, a política de exploração
colonial, neocolonial e imperialista, o uso dos poderes do Estado para realocar recursos para
a classes de terras comuns, a privatização das terras e dos recursos do Estado e o sistema
internacional de finança e crédito, além dos débitos nacionais crescentes e da continuação da
escravidão por meio do tráfico de pessoas, são processos específicos de acumulação que Marx
descreve e que ainda permanecem entre nós (HARVEY, 2013, p. 293). Assim, ocorre uma
continuidade da acumulação primitiva por toda a geografia histórica do capitalismo. Trata-se
de políticas de acumulação por desapossamento que, inclusive, tendem a se intensificar na
medida em que aumenta a desigualdade social ou concentração de riqueza, pois a acumulação
pode abarcar tudo: desde o confisco do direito de acesso à terra e à subsistência até a privação
de direitos – aposentadoria, educação e saúde, por exemplo (HARVEY, 2013, p. 296).
Diferentemente de Boyle, que vê no alastramento da propriedade intelectual um segundo

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movimento de acumulação, Harvey aponta que a propriedade intelectual é uma forma de


acumulação por despossessão, movimento reiterado da reprodução ampliada3.
Na tese da qual deriva este artigo, partimos da premissa de que o papel cada vez maior
da propriedade intelectual reflete a acumulação por despossessão sobre o conhecimento
produzido por trabalho informacional. Trata-se de um processo que aliena o trabalhador de
seus próprios meios e produtos de trabalho. Em O Capital, o trabalhador típico enfocado por
Marx é o homem adulto, que detinha conhecimento do processo produtivo como um todo e
passa a perdê-lo por um processo cada vez mais agressivo de alienação. O capital vai
desapossando o trabalhador do conhecimento e fazendo com que este seja privatizado. O
cercamento do conhecimento provê um mecanismo para o aprofundamento da separação
entre os trabalhadores e os meios de produção.
Se o conhecimento cercado por DPIs seria “a nova terra” cercada com respaldo no
direito de propriedade, tratemos agora da analogia entre as rendas informacionais – isto é,
remunerações baseadas em DPIs – e as rendas fundiárias descritas por Marx (2017).

Renda informacional

A partir das obras de Smith (1996[1776]) e Ricardo (1988[1817]), Marx se insere


em uma tradição que separa a esfera da produção da esfera da renda. A produção é o
mundo do valor, e o valor sofre metamorfoses a depender da relação de produção
envolvida. O valor pode assumir a feição de mais-valor, lucro e lucro extra. A renda fundiária
acontece quando parte do lucro extra ou todo o lucro extra é entregue a um proprietário de
terra exclusivamente porque esse proprietário, por deter um título de propriedade, autorizou
que o capitalista utilizasse a terra para produzir. Note-se que, no modelo em tela, a figura do
proprietário de terra se distingue da figura do capitalista. O proprietário em nada participa da
produção, apenas coleta o que a produção realizou. Reitera-se, assim, a conotação do rentista
como parasita.

A propriedade privada sobre a terra separa a esfera da produção da esfera da renda.

3
Explicar o que é De acordo com Marx (2014), a reprodução simples equivale ao primeiro período de
rotação do capital, quando o capitalista consome o mais-valor. A reprodução passa a ser ampliada ou
expandida em um segundo momento, de acumulação propriamente dita, quando uma determinada fração
do mais-valor total é empregado para a aquisição de mais capital, de maneira a aumentar a escala de
produção.

233
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Para Marx (2017, p. 676), a propriedade de terra é o “monopólio de certas pessoas


sobre porções definidas do globo terrestre como esferas exclusivas de sua vontade privada,
com exclusão de todas as outras”. Portanto, quando se trata de terra destinada à produção, a
propriedade privada em si se configura como monopólio4. Esse monopólio, por estar em mãos
distintas do capitalista, se constitui como barreira de acesso ao mesmo. É, porém, uma
barreira relativa a partir do momento em que o capitalista consegue o aval do proprietário
para ingressar nessa terra e nela produzir.
Marx (2017) separa diferentes tipos de renda da terra entre renda diferencial (I e
II), renda absoluta e renda de monopólio.
As rendas diferenciais dizem respeito à diferença de lucratividade (lucro extra)
em razão de uma redução no custo de produção por fatores de localização e fertilidade da
terra empregada como meio de produção. A renda diferencial I se refere a condições
naturais do solo, ao passo que a renda diferencial II se liga à introdução de ciência e
tecnologia às condições da terra.
A renda absoluta decorre de uma imposição do monopólio sobre a terra como uma
barreira absoluta à produção: o proprietário das terras só autoriza o capitalista a ocupá-
las se lhe for repassado o preço de renda que deseja. O aspecto afetado não é mais o custo
de produção que gera um lucro extra, como na renda diferencial. A imposição da
propriedade como barreira absoluta à produção significa que o elemento afetado é o preço
social médio das mercadorias, que deve ser aumentado para satisfazer o preço de renda
desejado pelo proprietário. Em condições normais de concorrência, pelo livre jogo de
oferta e demanda, o preço das mercadorias não atingiria o lucro adicional suficiente para
alcançar o preço da renda requerido pelo proprietário. Na prática, a renda absoluta
equivale ao contemporâneo conceito de especulação imobiliária: de uma relação de
monopólio em que o proprietário sequer trabalha a terra no sentido de realizar melhorias
nela, mas o preço dessa terra em particular varia de acordo com a variação do preço global
de produção que repercute no preço das terras.
A renda de monopólio se configura quando produtos oriundos de determinada
terra são qualitativamente diferenciados e gerados em quantidade reduzida, e parcela da
sociedade se dispõe a pagar preços fora da realidade comum de mercado para adquiri-los.
Um exemplo clássico dessa situação é o vinho do Porto, vinho oriundo da região do Porto,
em Portugal. Aqui, assim como na renda absoluta, o aspecto afetado na produção é o
preço social médio das mercadorias. No entanto, não é o poder do proprietário que impõe
essa condição, mas a força da demanda. O aumento do preço gera um sobrelucro que será
repassado ao proprietário de terra como renda de monopólio.

Em todos os casos de renda da terra descritos, a metamorfose do lucro extra em


renda acontece exatamente em razão de um monopólio sobre o gozo e a fruição da terra
– ou seja, a propriedade privada da terra. Os proprietários fundiários, graças ao monopólio
que têm de “determinadas partes do globo terrestre e seus anexos”, nos termos de Marx,
capturam parte do valor gerado em sua porção de terra e se apropriam dele sob a forma
de renda. São, portanto, rentistas (PAULANI, 2016, p. 524).
Nossa hipótese é que dinâmica similar acontece na era do capitalismo
informacional, porém não sobre a propriedade da terra, e sim sobre monopólios
garantidos por direitos de propriedade intelectual (DPIs) para a exploração de

4
Diferente é o monopólio de mercado, que é praticado pelo capitalista e pode ser de dois tipos:
concentração e centralização (MARX, 2013, p. 701).

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conhecimento gerado pelo trabalho informacional. Ocorreria uma captura, pelo detentor
do monopólio, do valor gerado pelo trabalhador informacional.
Uma série de autores marxianos tem se debruçado sobre a questão. Dantas (2008)
sustenta que a renda informacional é a renda obtida por monopólio juridicamente
assegurado sobre algum conhecimento submetido a um direito de propriedade. Zeller
(2008) defende que a renda baseada em DPIs é uma renda de monopólio porque resulta
de uma escassez sistemática de oferta criada pelo monopólio da propriedade do
fornecedor de um produto-chave, como o conhecimento, que não enfrenta concorrência
direta de produtos de substituição. Leda Paulani (2016, p. 530) afirma que a “renda do
saber” seria uma renda absoluta porque se baseia pura e simplesmente na propriedade.
Jakob Rigi (2014) apresenta diferentes situações possíveis em que à propriedade
intelectual ora se atribuem rendas informacionais análogas às rendas diferenciais da terra,
ora às rendas absolutas da terra. Eleuterio Prado (2005) propõe que o rentismo em questão
advém da impossibilidade de se medir o tempo de trabalho empregado na produção de
conhecimento.

Subsunção do trabalho
Na correlação entre renda da terra e renda informacional, importa reconhecer que
a diferença central entre a terra e o conhecimento é que a primeira não é trabalho, ao passo
que o segundo, sim. O conhecimento é trabalho morto, e a informação, trabalho vivo
(DANTAS, 2006). Desse modo, a apropriação do conhecimento mediante o seu
cercamento para fins rentistas se traduziria como subsunção do trabalho.
Conforme Wilden (2001) e Dantas (1999), a informação é um processo que
produz signos, apresentando simultaneamente um aspecto quantitativo que descreve o ser
natural – expresso pela unidade de medida “bit” (binary digit) – e um aspecto qualitativo
referente ao ser social – descrito pela semiótica em termos de produção de sentido e
significado.
No indivíduo humano, como observam Fuchs e Hofkirchner (2001), o processo
informacional começa com a recepção de signos do ambiente pelo funcionamento do
sistema cognitivo. Todo o processo informacional passa pelo: 1) ciclo sintático (que
produz percepção), em que os signos são recebidos e concebidos no nível de dados; 2)
ciclo semântico (que produz conhecimento), em que se realiza a interpretação pela
introjeção e projeção e 3) ciclo pragmático (que produz sabedoria), com a realização de
processos de descrição e prescrição voltados à avaliação e à decisão5.
Por todo esse processamento vivo que constitui a própria informação,
concordamos com Dantas (2006) que o trabalho informacional humano é, por natureza,
sígnico. O signo é “aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém”
(PEIRCE, 1977, p. 46), como, por exemplo, palavras, desenhos, imagens sonoras e
visuais. Tal representação é fruto de um trabalho de mediação que envolve uma relação
dinâmica e indissociável entre o contexto, o objeto e o intérprete. O signo é a reunião da
relação entre o interpretante – a imagem mental – e o objeto – aquilo que é percebido pela

5
Rafael Capurro (2003) discrimina três aspectos da informação correspondentes ao que identifica como
paradigmas epistemológicos da Ciência da Informação: o físico, em que a informação se confunde com um
objeto físico que um emissor transmite a um receptor; o cognitivo, em que a informação significa conteúdo
intelectual que existe somente em espaços cognitivos; e o social, em que a informação só pode ser
considerada como tal no contexto social. O conceito de informação que mobilizamos nesta tese, conforme
os autores mencionados, pretende abarcar todos esses três paradigmas indicados por Capurro, já que
perpassa níveis ontológicos diversos, entre o ser natural e o ser social.

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mente. Quando o signo é exteriorizado pelo ser humano, permitindo-se seu


compartilhamento com outro ser humano, adquire objetividade.
Considerando o trabalho como a ação humana entre uma dada objetividade e a
atividade ideal prévia diretamente regida e mediada por uma finalidade específica
(LUKÁCS, 2010), podemos dizer que o trabalho informacional é o trabalho humano de
produção de signos que parte do conhecimento para gerar novo conhecimento. Trata-se
de um trabalho vivo, pois realizado por ser humano; teleológico, pois tem uma finalidade;
e teleonômico, porque parte de um projeto.
Enquanto a informação, nos termos aqui considerados, é trabalho vivo, o
conhecimento é tratado como trabalho passado, acumulado, "morto", que a informação
"vivifica" para que seja realizado conhecimento novo (DANTAS, 1999, 2006). O que
gera novos conhecimentos é a informação como processo desempenhado pelos seres
humanos. O trabalho vivo sempre possui o elemento da subjetividade capaz de criar
informação, isto é, de criar diferença em um dado contexto. Essa dinâmica metabólica
entre o ser humano e o meio ambiente, segundo a teoria marxiana do valor-trabalho, é o
que cria valor econômico6. Nas palavras de Dantas (2006, p. 49):
O conhecimento é produto da informação, logo produto do trabalho. É trabalho passado, não
deixando de ser, por isto, redundância que a informação reprocessa, enriquece, vivifica em
conhecimento novo. Sendo humano, o conhecimento incorpora necessariamente aspectos
constitutivamente humanos, como os sonhos de futuro, as emoções e pulsões, as determinações da
cultura. Se a informação, no geral, processa sinais, a informação humana, por que orientada pelo
conhecimento, processará signos. E o trabalho informacional humano será, por natureza, sígnico,
envolvendo toda uma incomensurável gama de possibilidades conotativas e pragmáticas. Como
diria [Umberto] Eco, "produzir signos implica um trabalho, quer estes signos sejam palavras ou
mercadorias".

Indo da terra ao conhecimento, o aprofundamento da alienação entre o ser humano


e a própria consciência ocorreria mediante a contínua espoliação dos meios de trabalho
humano, em processo que implica a submissão do trabalho ao modo de funcionamento
do capital, isto é: a subsunção do trabalho (MARX, 2004).
A subsunção do trabalho se diferencia em dois tipos: a formal e a real. A
subsunção formal está ligada ao aumento do mais-valor absoluto, isto é, ao aumento da
jornada de trabalho, quando o capitalista ainda não despojou o trabalhador do
conhecimento necessário ao desempenho do trabalho, logo o modo de operação do
trabalho permanece razoavelmente similar. A subsunção formal do trabalho ao capital só
se diferencia formalmente dos modos de produção anteriores. O que muda é a coação que
se exerce, ou seja, o método pelo qual o sobretrabalho é extorquido (MARX, 2004, p.
94). Já a subsunção real é a completa incorporação e subordinação do trabalho ao
processo capitalista de acumulação. Na subsunção real, todo o trabalho executado no
planeta forma um total de trabalho, como se fosse uma massa que desempenha funções
diferentes comandadas pelo capital. Ainda que uns trabalhadores se dediquem a trabalhos
simples, e outros a trabalhos informacionais – funções diferentes –, cada vez mais os
trabalhos são produtivos, participam do processo de produção de mercadorias, valor e
acumulação, portanto ficam diretamente explorados pelo capital e a ele subordinados em
geral (MARX, 2004, p. 115).

6
No conceito de Marx, o trabalho já o é, por definição, “criativo” ou “cognitivo”. O trabalho humano
sempre possui o elemento da subjetividade que pode produzir aleatoriedades em forma de mercadorias. A
diferença do trabalho informacional para o trabalho “simples”, segundo Dantas (2006), é que o primeiro se
caracteriza por sua aleatoriedade e o segundo por sua redundância.

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Se no século XIX o conceito de subsunção real parecia uma “antecipação de


futuros desenvolvimentos” (MARX, 2004), no globalizado contexto do capital-
informação efetivamente todos os países do planeta, de alguma maneira, estão submetidos
à dinâmica do capital, confirmando a subsunção real. Nesse sentido, Ricardo Antunes e
Giovanni Alves (2004, p. 346) observam que a marca da descontinuidade do fordismo
para o contemporâneo estágio do capitalismo – toyotista – é justamente a subsunção real
do trabalho ao capital, que requer a captura integral da subjetividade humana:
É claro que a operação de captura da subjetividade operária pela lógica do capital é algo posto e
reposto – pelo modo de produção capitalista. Ela é intrínseca à própria subsunção do trabalho ao
capital. Só que é sob o toyotismo que a captura da subjetividade operária adquire o seu pleno
desenvolvimento, um desenvolvimento real e não apenas formal.

Como o trabalho vivo é o que cria valor, de acordo com a teoria do valor-trabalho,
o valor econômico resulta da aplicação da subjetividade ao trabalho. A automação da
produção (trabalho morto) representaria a absorção da subjetividade pelas máquinas, ou
a objetivação do processo de trabalho, sendo a própria subjetividade expropriada. Por
outro lado, a própria subjetividade é reconstruída. O capital captura o valor da produção
de subjetividade “em ambos os sentidos do genitivo: a constituição da subjetividade, de
um comportamento subjetivo particular (uma classe trabalhadora que é hábil e dócil) e a
transformação da potência produtiva da subjetividade, sua capacidade de produzir
riqueza” (READ, 2003, p. 102). Nesse sentido, “o comum não é uma mera duplicação do
conceito de cooperação: é simultaneamente a fonte e o produto da cooperação, o lugar da
composição do trabalho vivo e seu processo de autonomia, o plano de produção da
subjetividade e da riqueza social” (ROGGERO, 2014, p. 13).
Portanto, o cercamento do conhecimento para obtenção de rendas informacionais
redunda na própria subsunção real do trabalho, isto é, na completa captura de relações
sociais pelo capital.

Estudo de caso: “corrida quântica” e acesso ao conhecimento

Consoante o substrato teórico desenvolvido na pesquisa, realizamos um estudo de


caso para a visualização concreta das descrições sobre o capitalismo informacional,
sobretudo no que concerne às rendas informacionais.
Selecionou-se para análise a corrida mundial por tecnologias quânticas, apontada
pelos meios de comunicação e ratificada por pesquisadores da área entrevistados, como
uma grande disputa comercial em torno da criação de computadores, criptografia e
sensores que incorporam conhecimentos produzidos no campo da Física denominado
Informação Quântica. No caso, existe uma competição quanto ao maior número de q-bits
na capacidade de processamento das novas máquinas quânticas, e as companhias
abertamente declaram pelas mídias que estão a perseguir a "supremacia quântica". A
Google anunciou, em maio de 2017, sua ambição de construir um computador quântico
de 49 q-bits. Em março, a IBM havia revelado semelhante intenção7. Para o
acompanhamento da imprensa e do público geral sobre as rápidas evoluções nesse
sentido, a IBM mantém um portal eletrônico inteiramente dedicado à sua atuação em

7
Conforme matéria jornalística da revista IEEE Spectrum. Disponível em:
https://spectrum.ieee.org/computing/hardware/google-plans-to-demonstrate-the-supremacy-of-quantum-
computing. Acesso em 16 de outubro de 2017.

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pesquisa e desenvolvimento de tecnologias quânticas: trata-se do IBM Q, disponível em


https://research.ibm.com/ibm-q/ (acesso em 16 de outubro de 2017).
O alto investimento obviamente não é gratuito. Estima-se que as tecnologias
quânticas podem gerar uma nova revolução tecnológica ainda na primeira metade do
século XXI (SILVA et al, 2017), retornando altas taxas de receita às firmas que
encabeçarem a disputa pelos DPIs envolvidos em tal corrida tecnológica.
O caráter globalizante do capital-informação torna-se ainda mais significativo nas
indústrias de telecomunicações, por seu papel desempenhado no próprio processo de
globalização. As máquinas quânticas poderão realizar cálculos simultâneos em ordem de
magnitude milhões de vezes superior às clássicas. Entre os esforços mundiais voltados
para o desenvolvimento de tecnologias quânticas, a China tem se destacado na formação
da "Internet quântica", isto é, uma rede de comunicação capaz de utilizar sinais quânticos
ao invés de ondas de rádio para enviar informação.
Considerando o contexto contemporâneo, em que a China exerce uma influência
de destaque nas relações internacionais, o recorte temporal da pesquisa compreende o
período entre os anos de 2002 e 2016. Isto porque, nesse intervalo de tempo, de acordo
com a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (WIPO, 2017, p. 17), a potência
asiática tem apresentado uma taxa de crescimento que, se mantida, a tornará o maior
usuário do sistema internacional de patentes até 2019. Trata-se do contexto em que ocorre
a corrida tecnológica em questão.
Em termos metodológicos, para o estudo de caso foi amplamente utilizado o
recurso de entrevistas a especialistas no assunto tratado a fim de coletar dados e,
principalmente, comparar o tempo de trabalho informacional de cientistas com suas
respectivas remunerações e condições de trabalho frente aos lucros das principais
indústrias de tecnologias quânticas com grande carteira de patentes e das editoras que
concentram as publicações de Informação Quântica. Essa comparação visou averiguar a
presença das rendas informacionais no capitalismo informacional.
Foram distribuídos formulários de entrevistas por e-mail a 160 pesquisadores de
Informação Quântica. Em relação aos pesquisadores do Brasil, 60 endereços de e-mail
foram obtidos junto ao INCT- Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Informação
Quântica. Quanto aos pesquisadores do exterior, 100 e-mails foram coletados em páginas
eletrônicas de departamentos de Informação Quântica de diversas universidades de todos
os continentes, sociedades empresárias grandes, como Google, IBM e Microsoft, e
startups do Vale do Silício, como a Rigetti. Foi garantido o anonimato de todas as
respostas, a fim de que os profissionais se sentissem tranquilos em relatar suas
experiências, ainda que eventualmente pudessem revelar conflitos entre interesses
empresariais e científicos. Os formulários foram enviados em novembro de 2017 e houve
uma taxa de resposta de aproximadamente 15%.
Quanto aos cercamentos incidentes sobre o conhecimento de Informação Quântica
em jogo, deu-se destaque aos direitos autorais, às patentes8 e aos segredos industriais,
pois tais espécies de DPIs costumam incidir com mais frequência sobre o trabalho
informacional em ciência, tecnologia e inovação.
De acordo com as entrevistas, foram examinadas as 12 principais revistas
científicas de Informação Quântica – a saber, Nature, Science, Nature Physics, Physical
Review Letters, Physical Review A, Physics A, Annalen der Physik, Physical Review X,

8
Por se traduzir em um monopólio de utilização do conhecimento, a patente é aqui classificada como um
cercamento, apesar de posições divergentes que enxergam na descrição das patentes uma forma de
compartilhamento do conhecimento empregado.

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New Journal of Physics, Quantum Information Processing, Quantum Information and


Computation e Quantum. Restou claro que os custos elevados das assinaturas de
periódicos, baseadas em cercamentos na forma de direitos autorais, acabam sendo arcados
principalmente pelos Estados, que injetam importantes recursos em restritas entidades
privadas que concentram a curadoria e gestão do conhecimento através da editoração de
periódicos.
Uma vez que o conhecimento científico se torna fundamental para a produção de
mercadorias no capitalismo informacional, o trabalho científico fica realmente subsumido
ao capital. Assim, ainda que parte do mercado editorial seja controlado por entidades sem
fins lucrativos, os preços arbitrados em função da propriedade intelectual para o acesso
ao conhecimento integram a dinâmica sistêmica da acumulação de capital. Nesse
processo, os cientistas podem se vincular profissionalmente a instituições acadêmicas ou
empresariais. No entanto, os artigos científicos são publicados por entidades à parte,
responsáveis pelas revistas mencionadas, que capturam o trabalho dos cientistas sem
remunerá-los9. Desse modo, tais organizações editoriais se apropriam dos produtos do
trabalho informacional dos cientistas e obtêm suas rendas exclusivamente por deterem os
respectivos direitos autorais. As editoras obtêm, em forma de renda, uma quota do
sobrelucro gerado pelo trabalho informacional apropriado pela indústria.
Observamos que na área de Informação Quântica a maioria dos periódicos se
apóia na propriedade intelectual – direitos autorais – para cercar o conhecimento cujo
acesso é requisito para a construção das tecnologias quânticas. Analogamente ao
cercamento de terras baseado no direito de propriedade, o novo tipo de cercamento pela
propriedade intelectual participa da exploração do trabalho informacional de cientistas
para a geração de rendas informacionais. De acordo com Richard Van Noorden (2013),
as editoras argumentam que cobram altos preços para o acesso de periódicos científicos
por conta dos custos administrativos envolvidos, especialmente em razão da seletividade
gerada pela revisão por pares. Entretanto, os cientistas convocados pelas revistas para
darem pareceres sobre artigos submetidos não são remunerados por isso. As editoras se
beneficiam do trabalho gratuito de cientistas, que se vêem recompensados pelo prestígio.
Ora, pela teoria marxiana do valor, tempo de trabalho não remunerado que gera
valor apropriado por outrem tem uma clara denominação: mais-valor. Esse mais-valor
assumirá a forma de lucro quando ele "sobrar" para o capitalista após o reinvestimento na
produção. Esse mesmo mais-valor, que agora aparece sob a forma de lucro, vira
sobrelucro ou lucro extra quando uma parte dele é paga a um proprietário cuja
propriedade é utilizada pelo capitalista para que possa continuar reproduzindo o capital.
Por sua vez, quando o lucro extra é percebido pelo arrendador, assume a forma de renda.
Tal raciocínio para a compreensão do valor se aplica especificamente às rendas
informacionais obtidas pelo cercamento do conhecimento no que diz respeito à disciplina
Informação Quântica. Como o acesso aos periódicos dedicados à comunicação científica
de Informação Quântica se encontra predominantemente restrito em nome do direito
autoral ou copyright, as cobranças a esse acesso se traduzem em rendas informacionais,
conforme a metamorfose do valor descrita, sob a condição da exploração do trabalho
informacional.

9
No ambiente de "competição científica" em busca de "capital simbólico" (BOURDIEU, 2004), a
publicação se faz necessária, daí porque os cientistas se sujeitam a efetuar um trabalho gratuito cujo valor
é apropriado pelas editoras privadas como renda. As editoras controlam o prestígio, pois seus periódicos
dominam os fatores de alto impacto. Então os pesquisadores são compelidos a publicar nesses veículos para
o bem de suas carreiras, ainda que existam alternativas em acesso aberto.

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Tudo isso é observado a partir de uma perspectiva sistêmica, considerando que o


valor perpassa diversas relações, inclusive transita por entidades sem fins lucrativos,
porém chega a um mesmo fim, qual seja, a acumulação de valor capitalista. Desse modo,
a expectativa de lucro das empresas que disputam a corrida pelo lançamento de novas
tecnologias quânticas justifica todos os investimentos de construção do conhecimento
científico, mesmo que isto implique remunerar editoras de comunicações científicas
como "arrendadoras" do acesso ao conhecimento.
Além dos cercamentos em forma de direitos autorais, observou-se que o processo
de desenvolvimento das tecnologias quânticas ainda parece muito concentrado em
investimentos, não tendo sido identificada, até o encerramento da pesquisa, uma
significativa elevação do números de patentes em computação e criptografia quânticas,
embora sim para sensores quânticos.
Verificou-se que ferramentas de abertura da circulação do conhecimento,
notadamente a plataforma arXiv, não têm ameaçado os interesses de grandes grupos
empresariais que investem em pesquisa e desenvolvimento na área de Informação
Quântica.
A existência de segredos industriais na área foi confirmada pelos entrevistados,
que revelaram não haver incompatibilidade entre os segredos no interior das empresas
sobre o desenvolvimento tecnológico e a divulgação de preprints ou mesmo de artigos
científicos na matéria. Isto porque os segredos envolvem principalmente detalhes de
implementação de uma tecnologia, que geralmente não são objeto de artigos científicos.
Outro ponto que ficou claro no estudo de caso é a discrepância entre países
periféricos e centrais no que tange à concentração da propriedade intelectual na corrida
quântica. Todas as revistas científicas consideráveis de Informação Quântica se baseiam
ou nos Estados Unidos, ou na Europa ocidental. As patentes são atribuídas a poucos
proprietários, geralmente empresas privadas de países desenvolvidos.

Considerações finais

O processo de construção da informação e do conhecimento é social, dependente


de um enorme conjunto de relações sociais que tecem o espírito humano. Se, por um lado,
pode ser difícil estabelecer as fronteiras entre o que é comum e o que é de autoria restrita
de alguém na produção de informação e conhecimento, por outro lado, é praticamente
impossível a mensuração do tempo de trabalho informacional correspondente à medida
do valor criado por esse trabalho. Diante dessas incertezas, existem inúmeras
controvérsias sobre a conveniência ética, social e econômica dos DPIs, encarados como
“cercas” sobre o conhecimento.
Como desdobramento do paralelo entre terra e conhecimento, assim como Marx
teorizou sobre a renda fundiária existente em nome do direito de propriedade, Dantas
(2008), Rigi (2014), Paulani (2016) e outros sustentam que o mesmo mecanismo rentista
se recolocaria no capitalismo informacional. Sobre o conhecimento, os DPIs fariam as
vezes do direito de propriedade sobre a terra. Acompanhando Dantas (2008),
denominamos “informacional” esse novo tipo de renda.
Marx (2017) observou que a renda não tem origem no processo de produção de
valor, somente existindo por causa da propriedade privada. A indústria cria valor e a renda
é extraída do sobrelucro. O proprietário de terra em nada participa da produção e se insere
em outra esfera de remuneração – a esfera rentista, que apenas coleta o que outros
produziram.

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No estágio avançado do capitalismo, a renda informacional surgiria de modo


análogo: a indústria cria valor ao incorporar na produção o conhecimento científico e
tecnológico (trabalho informacional). Em uma outra camada da economia, rentista,
residiria a remuneração exclusivamente pautada na detenção de DPIs.
Assim como no tempo de Marx, na prática os momentos ou camadas do capital
estão emaranhados. O esforço em separá-los serve ao esclarecimento do funcionamento
da engrenagem capitalista. Isolando-se as partes, busca-se uma visualização melhor do
todo complexo.
Por fim, o estudo de caso sobre a criação de tecnologias quânticas revelou diversos
aspectos do capitalismo informacional, destacando-se a subsunção do trabalho científico
e, a partir dos direitos de propriedade intelectual, a formação de rendas informacionais.

Referências

ANTUNES, Ricardo, ALVES, Giovanni. As mutações no mundo do trabalho na era da


mundialização do capital. Educ. Soc., Campinas, vol. 25, n. 87, p. 335-351, maio/ago.
2004.

BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo
científico. São Paulo: Unesp, 2004.

BOYLE, James. The Second Enclosure Movement And The Construction Of The
Public Domain, 2003.
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245
APONTAMENTOS PARA A CONVERGÊNCIA ENTRE A LEI DA QUEDA
TENDENCIAL DA TAXA DE LUCRO E O JOGO DE SOMA ZERO DE
ROBERT BRENNER

Thiago Martins Jorge


Universidade Federal de Juiz de Fora
thiagojorge815@hotmail.com

Resumo
O objetivo deste artigo é explicitar as importantes contribuições de Robert Brenner e
dos autores ligados à Teoria da Queda Tendencial da Taxa de Lucro para o estudo da
longa estagnação da economia capitalista, iniciada na década de 1970, e para as crises
que eclodiram desde então. Enquanto o primeiro ressalta os efeitos da intensificação da
competição intercapitalista e a saturação do mercado, o que teria culminado num “jogo
de soma zero”, os segundos, a partir da análise marxiana, ressaltam como o aumento da
composição orgânica do capital geraria uma tendência de queda para a taxa média de
lucro. Assim, apesar de suas diferenças, ambas as abordagens iluminam diferentes
aspectos da dinâmica econômica capitalista, apresentando importantes elementos de
convergência explicativa.
Palavras chave: Brenner; Taxa de Lucro; Crise

APPOINTMENTS FOR THE CONVERGENCE BETWEEN THE LAW OF


THE TENDENCY OF THE PROFIT RATE TO FALL AND THE ROBERT
BRENNER’S ZERO SUM GAME

Abstract
The purpose of this article is to demonstrate the important contributions of Robert
Brenner and the authors of the Theory of the Tendency of the Profit Rate to Fall to the
study of the long stagnation of the capitalist economy begun in the 1970s and the crises
that have erupted since so. While the former highlights the effects of the intensification
of inter-capitalist competition and market saturation, which would have culminated in a
"zero-sum game"; the seconds, from the Marxian analysis, emphasize how the increase
in the organic composition of capital would generate a declining tendency of the
average rate of profit. Thus, despite their differences, both approaches illuminate
different aspects of the capitalist economic dynamics, presenting important convergence
elements.
Keywords: Brenner; Rate of Profit; Crisis

1. INTRODUÇÃO

Apesar das crises econômicas de grandes proporções serem um fenômeno que


remete à segunda metade do século XIX, as suas causas seguem sendo objeto de largas
e intensas discussões. Não podemos minimizar o fato de que, longe de ser um problema
meramente técnico, as respostas encontradas para o problema da causalidade das crises
frequentemente possuem grandes consequências político-sociais. No entanto, mesmo
entre teóricos de orientação marxista e outros que conscientemente não possuem
interesses apologéticos, a questão se encontra muito distante de uma resolução.

246
Os teóricos da tradição marxista desenvolveram, desde a morte de Marx, uma
série de explicações para o fenômeno das crises: algumas inclusive radicalmente
divergentes entre si. Para mencionar algumas delas, podemos citar autores como
Anselm Jappe e Robert Kurz, que atribuem, à gradativa redução da participação dos
homens no processo produtivo, uma crise do valor (JAPPE, 2006); Harvey (1992), que
atrela a longa estagnação iniciada nos anos 1970 a um processo de superacumulação de
capital; autores como Chesnais (2015), Dúmenil e Lévy (2011), que concebem a crise
2007-8 a partir do fracasso das políticas neoliberais e a hegemonia do capital financeiro;
teóricos que ou atrelam a crise a um achatamento dos lucros por meio de uma expansão
dos salários (“profit squeeze”) ou vão na direção contrária, atribuindo a crise a uma
queda dos salários por meio da expansão dos lucros - o que culminaria numa crise de
subconsumo -; até uma posição como a de Mészáros (2002), que atribui grande
protagonismo ao que chama de “taxa decrescente de utilização”.
Dessa forma,

Para a maioria dos marxistas e economistas radicais de esquerda, a causa da


Grande Recessão é, portanto, mais provavelmente explicada pelas obras de
Keynes ou seu seguidor mais radical Hyman Minsky, que enfatizou a
inerente instabilidade do capitalismo à medida que os níveis de
endividamento aumentam. Se fosse para ser explicada por uma das ideias de
Marx, a maioria olharia para seu suposto foco no subconsumo das massas, na
hegemonia do capital financeiro monopolista ou na instabilidade inerente dos
mercados. (ROBERTS, 2011).

Todavia, todas as explicações indicadas, além de encontrarem alguma


dificuldade para serem sustentadas a partir dos dados disponíveis, vêm-se
constantemente atormentadas por uma série de questões: por que se aumentariam os
lucros e se esmagariam os salários? A crise seria, portanto, consequência da ganância
dos capitalistas? Ou, de outro lado, por que os gestores e capitalistas têm destinado
maiores recursos para a especulação financeira? Eles teriam se tornado mais
preguiçosos?
Considerando, portanto, as limitações dessas abordagens, nos debruçaremos
aqui sobre duas abordagens alternativas que, embora apresentem relevantes
divergências entre si, reconhecem a grande importância dos movimentos subjacentes à
taxa de lucro para a explicação da dinâmica das crises econômicas.
Para isso, apresentaremos, primeiramente, a teoria das crises de Robert
Brenner, que, mesmo rejeitando a hipótese da queda tendencial da taxa de lucro, traz
importantes contribuições para o entendimento das crises que abalam a economia
capitalista de 1970 em diante; e, na sequência, apresentaremos brevemente a posição de
alguns adeptos da Lei da Queda Tendencial da Taxa de Lucro (LQTTL) – em especial
Michael Roberts, Andrew Kliman e Guglielmo Carchedi. Num terceiro movimento,
demonstraremos, a partir da análise das teorias supracitadas, a convergência dos pontos
centrais desses trabalhos; isto é, demonstraremos que as duas correntes convergem,
fundamentalmente, tanto no que tange ao diagnóstico das crises recentes da economia
capitalista (pós 1970), quanto na funcionalidade das crises para o estabelecimento de
um novo ciclo de expansão econômica. Por fim, nas Considerações Finais, ainda que
sem o mesmo detalhamento dos movimentos anteriores, indicaremos os pontos de maior
divergência entre as duas abordagens - divergências reconhecidas inclusive pelos
próprios autores. Esperamos, com isso, demonstrar que a LQTTL e o Jogo de Soma
Zero de Brenner fornecem melhores explicações sobre a causalidade das crises.

247
Porém, alguns esclarecimentos finais devem ser adicionados. A análise dos
elementos de convergência de ambas as abordagens será realizada a partir do poder
explicativo demonstrado, por elas, diante dos nexos reais. Não temos, portanto, a
pretensão de construir um modelo teórico com poder explicativo universalizante. Em
outras palavras, o critério de verificação da validade analítica do Jogo de Soma Zero e
da LQTTL é a dinâmica econômica - a capacidade que tais abordagens demonstram em
jogar luz sobre ela, não critérios a priori.
Por fim, acreditamos que a investigação que aqui realizamos também se mostra
importante quando se identificam convergências entre elementos de análise particulares
a cada uma dessas abordagens. Podemos citar, por exemplo, a análise cuidadosa que
Brenner realiza quanto ao papel da atuação dos gestores econômicos e gestores políticos
do capital (PAÇO CUNHA) para o desenrolar da dinâmica econômica. Embora sua
análise seja bastante reveladora, um passo adiante poderá ser dado quando
incorporarmos a ela os elementos da Lei do Valor, que são ignorados por Brenner, mas
devidamente considerados pelos adeptos da LQTTL.

2. A TEORIA DO JOGO DE SOMA ZERO DA ECONOMIA CAPITALISTA


CONTEMPORÂNEA DE ROBERT BRENNER

Diferentemente dos autores que buscam explicar a crise de 2007-8 a partir do


advento das chamadas políticas neoliberais na década de 1980, para Brenner (2009) “A
fonte básica da crise de hoje é o declínio da vitalidade das economias avançadas desde
1973 e, especialmente, desde 2000”. Tal declínio se origina no “declínio da taxa de
retorno do investimento de capital desde o final da década de 1960”. Todavia,
diferentemente dos defensores da LQTTL – que atrelam a queda da taxa de lucro ao
aumento da composição orgânica do capital -, para Brenner (2006), a queda da taxa de
lucro é resultado da intensificação da competição, da superprodução e do aumento da
capacidade ociosa.
Em termos gerais, Brenner (2006, p. 32-33) identifica que o investimento em
capital fixo “tende a ocorrer em ondas e ser incorporada em grandes blocos de
desenvolvimento tecnicamente inter-relacionados”. “Como resultado da inter-relação
técnica interna da unidade, as fábricas existentes tendem a achar difícil adotar invenções
específicas sem alterar significativamente ou transformar completamente seu layout”.
Assim sendo, as empresas pioneiras ficam vulneráveis às novas entrantes, as quais, por
sua vez, aproveitam-se da inércia das primeiras para investir em tecnologias mais
eficientes, ao mesmo tempo em que exploram mão de obra mais barata - porém
capacitada - e, assim, conseguem apresentar preços de produção mais baixos. Dessa
forma, ao mesmo tempo em que as novas entrantes aumentam a oferta de mercadorias,
elas forçam para baixo a lucratividade, uma vez que as empresas pioneiras,
gradativamente mais ineficientes, se veem obrigadas a cortar a sua taxa de lucro a fim
de manterem a sua competitividade.
Brenner (2006) ainda nos mostra que, considerando os vultosos investimentos
que são realizados em capital fixo, bem como o seu longo período de depreciação,
mesmo que a taxa de lucro tenha que ser pesadamente esmagada, as empresas mais
ineficientes podem considerar a permanência no mercado a melhor decisão possível, o
que intensifica ainda mais o problema de superprodução e capacidade ociosa.

A principal causa, embora não a única, do declínio na taxa de lucro tem sido
uma tendência persistente para o excesso de capacidade nas indústrias

248
manufatureiras globais. O que aconteceu foi que, uma após a outra, novas
potências industriais entraram no mercado mundial - a Alemanha, o Japão, os
NICS do nordeste asiático, os Tigres do sudeste asiático e, finalmente, o
Leviatã chinês. Essas economias de desenvolvimento posterior produziram os
mesmos bens que já estavam sendo produzidos pelos desenvolvedores
anteriores, apenas mais baratos. O resultado foi uma oferta excessiva, em
comparação com a demanda, em uma indústria após a outra, e isso forçou a
queda dos preços e, dessa forma, dos lucros. As corporações que
experimentaram o aperto em seus lucros, além disso, não abandonaram suas
indústrias. Elas tentaram manter o seu lugar apostando na sua capacidade de
inovação, acelerando o investimento em novas tecnologias. Mas é claro que
isso só piorou o problema do excesso de capacidade. Devido à queda em sua
taxa de retorno, os capitalistas estavam obtendo excedentes menores em seus
investimentos. Eles, portanto, não tiveram escolha a não ser retardar o
crescimento de plantas, equipamentos e empregos (BRENNER, 2009a).

Historicamente, foi possível constatar que muitas dessas empresas, mesmo com
a completa depreciação do capital fixo, optaram por renovar os investimentos e
seguirem competindo no mesmo setor. Isso se deve ao fato de tais empresas, “após anos
de experiência, construíram inestimáveis ativos intangíveis de propriedade nas suas
próprias linhas, mas não em outras - informações sobre mercados, relacionamento com
fornecedores e clientes e, acima de tudo, conhecimento técnico” (BRENNER, 2006, p.
154). Portanto, por um lado, elas ainda possuíam vantagens que não seriam conservadas
caso optassem por investir em novas indústrias, por outro, caso o fizessem, teriam ainda
que enfrentar as barreiras de entrada numa conjuntura muito menos favorável.
O rápido aumento na renda discricionária, que facilitou a realocação de meios
de produção para novas indústrias durante a maior parte da época do pós-
guerra, chegou ao fim, e as linhas alternativas que ofereciam taxas adequadas
de retorno tornaram-se correspondentemente escassas. O problema tornou-se
ainda mais formidável porque tinha um aspecto estrutural importante. Uma
parte desproporcional da queda na demanda resultou da desaceleração
desproporcionalmente grande do crescimento do setor manufatureiro.
Obrigadas a enfrentar um novo padrão de necessidades econômicas, as
empresas enfrentaram maiores dificuldades em descobrir exatamente onde a
demanda lentamente crescente era encontrada ou de fato criada, um problema
que se tornou muito mais oneroso em função das suas capacidades reduzidas
em financiarem pesquisa e desenvolvimento (ibid., p. 155).

Dessa maneira, cercada cada vez mais por barreiras, a economia mundial
acaba, no início da década de 1970, tomando a forma “de um jogo de soma zero”. Nas
palavras do autor,

As economias capitalistas avançadas não puderam, portanto, escapar das


garras de um tipo de dinâmica hidráulica na qual o crescimento baseado na
exportação de um grande país ou grupo deles, garantido em grande parte pela
desvalorização de sua moeda, encontrou sua contrapartida na desaceleração
da produção e rápidos aumentos nos preços dos ativos daqueles que tiveram
suas moedas valorizadas. Nesse processo, os EUA e o leste da Ásia, com suas
moedas atreladas ao dólar, tenderam a se mover juntos; na contramão disso, a
Alemanha, o Japão e o sistema como um todo cresciam de forma dependente
ao mercado norte-americano (BRENNER, 2006, p. 286).

Ou seja, diante da valorização do dólar e desvalorização do marco e do iene, as


mercadorias norte-americanas tornam-se mais caras no mercado internacional, enquanto

249
as mercadorias japonesas e alemãs ganham competitividade e, portanto, se apoderam de
fatias de mercado até então ocupadas por empresas norte-americanas. Por outro lado,
com a desvalorização do dólar em relação a essas moedas, as empresas norte-
americanas voltam a se tornar mais competitivas, retomando as fatias de mercado por
elas perdidas na fase de alta do dólar. Assim, enquanto a taxa de lucro cresce em
determinada região, ela é necessariamente esmagada em outra.
Portanto, enquanto nos 25 anos subsequentes à 2ª Guerra Mundial as indústrias
estadunidenses pouco dependiam de créditos para realizar investimentos; a partir da
década de 1970, quando a taxa de lucro da atividade industrial cai vertiginosamente e o
ritmo de crescimento dos salários despenca -, verifica-se a expansão da atividade
financeira e especulativa como forma de expandir o consumo e compensar a queda do
poder de investimentos resultante do achatamento dos lucros. “Foi o crescimento sem
precedentes da dívida de todos os tipos - governamental, corporativa e dos
consumidores - que manteve o emprego e a utilização da capacidade e, em última
instância, assegurou a estabilidade durante a maior parte da crise” (ibid., p. 158). Em
outras palavras, a expansão do crédito e a formação de bolhas surgem como respostas à
insuficiência do consumo das famílias e do consumo empresarial diante da
superprodução e da expansão da ociosidade industrial, ainda assim serão incapazes de
retirar a economia mundial do jogo de soma zero.

Gráfico 1. Lucro Líquido do Setor Privado: EUA, Alemanha e Japão 1949-2007

Brenner (2009b, p. 10)

3. A LEI DA QUEDA TENDENCIAL DA TAXA DE LUCRO

Para uma apresentação rigorosa da chamada Lei da Queda Tendencial da Taxa


de Lucro, deveríamos seguir com alguma proximidade o longo percurso percorrido por

250
Marx ao longo dos três livros d’O Capital. Diante da inviabilidade de se realizar tal
empreendimento nos limites deste trabalho, recorreremos a uma breve apresentação
realizada por Andrew Kliman como forma de minimizar esse problema.
Para Kliman, a LQTTL pode ser apresentada nos seguintes termos: “Marx
sustentou que, à medida que a produção capitalista se desenvolve, os capitalistas tendem
a adotar técnicas mais produtivas e economizadoras de trabalho; ou seja, eles se voltam
cada vez mais para métodos de produção que substituem os trabalhadores por
máquinas” (2011, p. 14). Assim, “quando a produtividade aumenta, menos trabalho é
necessário para produzir um produto, desse modo ele pode ser produzido de forma mais
barata. Como resultado, seu preço tende a cair. E quando os preços tendem a cair, o
mesmo acontece com os lucros e a taxa de lucro” (2017, p. 226). Em outras palavras,
como somente o trabalho é capaz de produzir valor novo, uma vez reduzida, em termos
valorativos, a relação da quantidade de trabalho empregada para cada meio de produção
(aumento da composição orgânica do capital), a massa de valor encarnada em cada
mercadoria individual é cada vez menor. Dessa forma, a massa de valor total gerada
tende a crescer num ritmo cada vez mais lento, reduzindo o valor a ser apropriado por
cada capitalista individual.
Entretanto, é importante enfatizar que a LQTTL não se baseia simplesmente
numa análise de capitais individuais, mas sim analisando o capital social total. Tal
esclarecimento é importante posto que, a primeira vista, parece um absurdo afirmar que
tornar-se mais produtivo corrobora com a queda da taxa de lucro. Para contornar essa
falsa intuição, Kliman coloca a questão a partir de duas analogias (2011, p. 15): “se
você está em um estádio e se levanta, você pode ver melhor; mas se todos se levantarem
de uma só vez, nem todos verão melhor. Se você obtiver um mestrado, você terá um
emprego melhor e ganhará mais dinheiro; mas se todos tiverem um mestrado, nem
todos conseguirão empregos melhores e ganharão mais dinheiro”. Ou seja, obviamente
que, para um capital individual, é mais lucrativo tornar-se mais produtivo. No entanto,
quando a maioria dos capitais se torna mais produtiva, a massa de mais-valor total a ser
repartida por eles se torna menos volumosa.
É claro que as empresas capitalistas não conhecem nem se importam com
valor ou mais-valor medidos em termos de tempo de trabalho. Eles sabem e
se preocupam com os preços e lucros monetários. Por isso, pode ser útil
reafirmar a lei de Marx em termos de preço e lucro. Quando a produtividade
aumenta, mais coisas físicas e efeitos físicos (serviços) são produzidos por
hora de trabalho. De acordo com a teoria de Marx, no entanto, o aumento da
produtividade não faz com que mais valor novo seja criado. A mesma
quantidade de valor é “espalhada” entre mais itens, então o aumento na
produtividade faz com que os valores de itens individuais diminuam. Em
outras palavras, as coisas podem ser produzidas de forma mais barata. E
porque elas podem ser produzidas de forma mais barata, seus preços tendem
a cair? Em um ambiente competitivo, as empresas devem reduzir os preços
que cobram quando os custos de produção diminuem. Se não o fizerem,
correm o risco de uma perda significativa de quota de mercado ou mesmo de
falência, quando os concorrentes reduzem os seus preços em resposta aos
custos de produção reduzidos. No entanto, mesmo os monopólios que
desfrutam de custos mais baixos geralmente tendem a reduzir seus preços,
porque a redução nos custos permite que o lucro de cada item aumente
mesmo se seu preço for menor, e a redução no preço permite que eles
vendam mais itens. (ibid., p. 15-6).

251
Embora com uma fundamentação distinta, fica patente a proximidade desse
ponto de chegada com a conclusão da análise de Brenner. Contudo, antes de
avançarmos nisso, é preciso, primeiramente, apresentar aqueles fatores, identificados
por Marx (2016), que atuam em direção contrária à tendência de queda da taxa de lucro,
sem eliminar a sua tendência declinante.
A contratendência que provavelmente exerce maior resistência é a de que as
inovações tecnológicas, ao mesmo tempo em que agem em favor da diminuição do
valor encarnado em cada unidade de produto, também atuam em favor da diminuição do
valor encarnado nos meios de produção; assim sendo, mesmo que a massa de mais-
valor gerada seja menor (numerador), o capital total investido necessário para a
produção desse mais-valor (denominador) pode ser ainda menor, impedindo que a taxa
de lucro (o resultado dessa divisão) tenha o seu valor reduzido. Contudo, Carchedi
(2017), analisando o comportamento dessas determinações no longo prazo, identificou
que, na verdade, diante da complexificação tecnológica, o valor dos meios de produção
tende a crescer, ou seja, “uma só máquina pode custar menos, mas a totalidade do preço
das máquinas que substituem essa máquina aumenta não só em termos absolutos como
também em relação ao preço de saída”.

Gráfico 2. Valor dos meios de produção (% do PIB), EUA, 1947-2010

Fonte: Carchedi (2017)

A segunda contratendência investigada é a de que o aumento da taxa de


exploração (duração e/ou intensidade) pode “compensar” a queda relativa do número de
trabalhadores. Como demonstrado no gráfico abaixo (dados da economia norte-
americana), realmente, o aumento da exploração do trabalho tem tido um enorme
importância para atenuar a queda da taxa de lucro. No entanto, além do nível de
exploração ter um limite - ou seja, não é possível aumentá-lo infinitamente -, podemos
notar como, gradativamente, o impacto do aumento da exploração sobre a taxa de lucro
vai sendo mitigado. Assim, embora a taxa de exploração em 2007 tenha atingido a
mesma taxa de 1952, a taxa de lucro se manteve 15% abaixo em relação à taxa de lucro
obtida em 1952.

252
Gráfico 3. Taxa de exploração e taxa de lucro, 1947-2010)

Fonte: Carchedi (2017)

Por outro lado, caso o nível de exploração tivesse se mantido constante, a taxa
de lucro norte-americana teria tido a seguinte trajetória:

Gráfico 4. Margem de lucro com a taxa de exploração constante, EUA, 1947-2010

Fonte: Carchedi (2017)

253
Por fim, a terceira contratendência que aqui destacamos é o aumento da taxa
média de exploração obtida com a compressão dos salários. O resultado disso é que,

por um lado, o poder aquisitivo das massas se reduz e, por outro, que o valor
excedente produzido não pode ser investido em sectores produtivos devido ao
facto de a taxa de lucro cair nestes sectores. Em consequência, o capital
emigra para sectores improdutivos, como o comércio, as finanças e a
especulação. Os lucros destes sectores são fictícios, são deduções dos lucros
obtidos na esfera produtiva (ibid.).

Gráfico 5. Lucros reais e lucros financeiros, bilhões de dólares, 1950-2010, EUA

Fonte: Carchedi (2017)

Assim, uma vez que as contratendências não têm sido capazes de mitigar a
queda da taxa de lucro, Roberts (2016, p. 21) nos mostra, a partir do trabalho de Esteban
Maito (gráfico abaixo), a magnitude dessa queda:

Gráfico 6. A taxa de lucro no “Centro” (Economias Capitalistas Avançadas), %

254
Fonte: Roberts (2016, p. 21)

Entretanto, não se trata aqui de homogeneizar o fenômeno da queda da taxa de


lucro para todas as economias do mundo. Como o próprio Marx (2016) definiu, trata-se
de uma tendência que contém, em si mesma, uma série de contratendências. Dessa
forma, é esperado que diferentes economias apresentem diferentes taxas de lucro;
porém, também é esperado que, no agregado, e de forma cíclica, a taxa de lucro siga
uma tendência de queda.

Gráfico 7. Taxa de lucro em todo o mundo e no G7, 1963-2008 (índice 1963 = 100)

Fonte: Carchedi (2017)

Outro dado bastante indicativo da veracidade da LQTTL é o aumento da


produtividade e a redução do número de trabalhadores por meio de produção. Segundo
Carchedi (2017), a “produtividade aumentou de 28 milhões de dólares por trabalhador

255
em 1947 para 231 milhões em 2010, ao passo que os trabalhadores por meios de
produção se reduziram de 75 em 1947 para 6 em 2010” (gráfico abaixo).

Gráfico 8. A produtividade do trabalho e dos trabalhadores dos meios de produção

Fonte: Carchedi (2017)

Por fim, ao tratar da LQTTL, deve-se evitar correlacionar qualquer queda na


taxa lucro com a deflagração de uma crise econômica. “Apenas 0,5% a mais de
empresas falham quando a taxa média cai de 30% para 27%. Mas 4,4% a mais de
empresas - oito vezes e meia - fracassam quando a taxa média de lucro cai de 15% para
12%”.
O declínio, a curto prazo, de amplitude similar da rentabilidade tem
consequências muito mais sérias e generalizadas quando a taxa média de
lucro está em baixa do que quando está em alta. A baixa rentabilidade torna a
economia menos estável, mais propensa a crises e sérias quedas. Uma queda
na taxa média de lucro terá, portanto, efeitos desestabilizadores que persistem
mesmo que tenham parado de cair há muito tempo.
(...) Por exemplo, quando a taxa de lucro cai, a taxa de acumulação de capital
(investimento produtivo) tende a cair também. Mas isso implica que, se a
taxa de lucro estiver em biaxa e não se recuperar, a taxa de acumulação
também tenderá a estar em baixa e a não se recuperar. (...) Uma baixa taxa de
acumulação de capital, por sua vez, tenderá a resultar em baixas taxas de
crescimento de emprego, produção, renda e demanda por bens de consumo e
serviços. E quando o crescimento da renda (lucros, salários, receita tributária
e assim por diante) é lento, fica mais difícil para que as empresas, famílias e
governos paguem suas dívidas. Isso prepara o terreno para as crises
financeiras e de dívidas no futuro. Outro fator que pode contribuir para o
problema são as baixas taxas de juros. Quando a taxa de acumulação de
capital é baixa, as taxas de juros também tendem a ser baixas (tudo o mais
sendo igual, quanto menos as empresas desejarem tomar empréstimos para
financiar investimentos produtivos, mais os credores terão de reduzir as taxas
de juros que cobram para induzi-los a tomar novos empréstimos). Baixas
taxas de juros tornam os empréstimos mais atraentes e causam o aumento dos
preços dos títulos, ações e imóveis, o que estimula a especulação nesses
mercados de ativos e os torna mais vulneráveis à crise (2011, p. 17-8).

256
Portanto, “uma queda na taxa de lucro leva a crises apenas indiretamente e de
maneira retardada. A queda leva primeiro ao aumento da especulação e ao acúmulo de
dívidas que não podem ser pagas, e estas são as causas imediatas das crises” (2011, p.
22). Ou seja, não se trata de uma relação mecânica e livre de mediações entre a queda
na lucratividade e a deflagração de uma crise econômica.

4. CONVERGÊNCIAS ENTRE A LEI DA QUEDA TENDENCIAL DA TAXA DE


LUCRO E A TEORIA DO JOGO DE SOMA ZERO

Apresentadas as duas linhas explicativas, podemos finalmente identificar as


suas convergências analíticas. Vimos na seção anterior que, de acordo com a LQTTL,
com a redução da participação do trabalho na produção de novas mercadorias, a
quantidade de valor encarnada em cada mercadoria individual é reduzida. Isso significa
que tendencialmente, para que a mesma quantidade de valor siga sendo gerada, uma
quantidade maior de mercadorias terá que ser produzida. No entanto, como destacado
tanto por Brenner quanto por Kliman, o aumento da competição entre capitas cria
incentivos para que inovações tecnológicas sejam cada vez mais incorporadas no
processo produtivo, o que significa aumentar ainda mais a relação valor entre meios de
produção/força de trabalho e reduzir a margem que as empresas individuais podem
utilizar para elevar os preços acima do real valor das mercadorias. Assim, reforça-se a
necessidade de se ampliar a quantidade de mercadorias produzidas como forma de
contornar a redução da quantidade de valor encarnado em cada unidade.
Contudo, para a infelicidade dos capitalistas, a necessidade de se expandir a
produção de mercadorias não necessariamente é acompanhada pela capacidade de
absorção dessas mercadorias por governos, empresas e consumidores. Em outras
palavras, para que a taxa de lucro não seja rebaixada, o consumo teria que seguir
crescendo em consonância com o crescimento da composição orgânica do capital.
Todavia, enquanto o potencial de desenvolvimento tecnológico (e sua transferência para
a atividade produtiva) segue muito longe de atingir seus limites, a expansão do consumo
esbarra, cada vez mais, na estagnação do crescimento salarial e na própria redução da
lucratividade das corporações (o que, se não reduz diretamente a capacidade de
investimento das empresas, cria, pelo menos, desincentivos para que sejam realizados
novos investimentos – ver Kliman e Shannon (2015)).
Assim, podemos ver claramente como a superprodução e o jogo de soma zero,
como concebidos por Brenner, não se devem, somente, à intensificação da competição
internacional, mas também ao fato de que a expansão dos investimentos corporativos
pós 2ª Guerra Mundial e a incorporação das novas tecnologias na atividade produtiva
geraram um intenso aumento da composição orgânica do capital. Portanto, enquanto o
segundo fator explica a redução relativa da quantidade de valor gerada, a intensificação
da competição explica as dificuldades encontradas pelas empresas em sustentarem,
artificialmente, elevadas margens de lucro.
No entanto, a proximidade entre os autores não se limita ao diagnóstico da
crise, mas coincide também quanto ao papel desempenhado pelas crises. Para eles, uma
crise econômica permite que um novo ciclo se estabeleça, uma vez que é da sua própria
natureza a destruição de capitais e, com isso, o reestabelecimento da taxa de lucro num
nível que incentive a realização de novos investimentos. Tal incentivo, por sua vez,
permite que se inicie um novo ciclo de expansão econômica.

257
Imagine, por exemplo, uma empresa que possa gerar US $ 3 milhões em
lucro anualmente. Se o valor do capital investido no negócio for de US $ 100
milhões, a taxa de lucro dos proprietários será de apenas 3%. No entanto, se,
como resultado da destruição do valor do capital, novos proprietários
puderem adquirir o negócio por apenas US $ 10 milhões em vez de US $ 100
milhões, sua taxa de lucro - o retorno que receberão em seu investimento -
será de 30% (KLIMAN, 2011, p. 23).

Já Brenner (2003) atribui, inclusive, o boom da economia mundial nas décadas


de 1950-60 ao processo de destruição de capital ocorrido nas décadas anteriores (crise
de 29 e 2ª Guerra Mundial). Essa destruição culminou na redução da capacidade
produtiva para muito aquém da demanda por bens de produção e consumo, ao mesmo
tempo em que permitiu a “enorme eliminação do estoque de capital obsoleto”, bem
como o aproveitamento da “pressão decrescente sobre os salários” e do “enorme
acúmulo de inovações não aproveitadas” (BRENNER, 2003, p. 49). No mesmo
diapasão, analisando a dinâmica econômica a partir da década de 1970 - quando o jogo
de soma zero da economia mundial ganha forma -, ele aponta que a capacidade
produtiva instalada em muito supera a demanda, sendo necessário, portanto, que a
intensificação da competição elimine os capitais menos produtivos, abrindo caminho
para a restauração da taxa de lucro. Entretanto, com a intervenção estatal no mercado de
crédito e monetário, e a redução da carga tributária sobre as empresas, o governo norte-
americano impediu que muitos dos capitais menos produtivos fossem eliminados,
impossibilitando tanto o arrefecimento da competição, quanto a liquidação, por preços
amistosos, do espólio dos empreendimentos malsucedidos.
Nessa linha, Kliman (2011, p. 24) conclui que:
Para evitar uma repetição da década de 1930, os formuladores de políticas
utilizaram com sucesso o financiamento por dívidas e garantias de dívida
para retardar e evitar a destruição de capital. As desacelerações de meados da
década de 1970 e início da década de 1980, e até mesmo a mais recente
desaceleração, não foram, portanto, nada parecidas com a Grande Depressão.
Mas, como a destruição do capital restaura a lucratividade e, assim,
estabelece as bases para o próximo boom, também não experimentamos nada
como o boom que se seguiu à Grande Depressão e à Segunda Guerra
Mundial. Pelo contrário, a economia nunca se recuperou totalmente da queda
da década de 1970.

Contudo, um esclarecimento adicional é necessário: para Kliman, “o que


importa é a destruição do capital em termos de valor - o declínio no valor dos ativos
físicos, bem como o declínio no valor (fictício) dos ativos financeiros”. Obviamente
que,
quando ativos físicos são destruídos, seu valor também é destruído, mas o
fator predominante que faz com que o valor do capital seja destruído é a
queda dos preços. Como as dívidas não são pagas, os preços dos ativos
financeiros, como empréstimos hipotecários e títulos lastreados por
hipotecas, caem. Os preços das ações também caem tipicamente durante
recessões e depressões, bem como os preços das mercadorias produzidas -
tanto bens de capital físico quanto bens de consumo e serviços (ibid., p. 22).

Por fim vale adicionar que, para Carchedi (2017), o desaparecimento dos
capitais menos eficientes não significa apenas a mitigação do problema da

258
superprodução e da capacidade ociosa, significa também “o desaparecimento dos
capitalistas mais fracos, os que proporcionalmente utilizam mais trabalho do que meios
de produção. Quando a cadeia de investimentos se fecha, há menos trabalhadores
empregados, produz-se menos mais-valia e a taxa média de lucro cai”. Ou seja, se por
um lado o excesso de competição reduz o lucro dos capitais individuais, por outro, a
redução dessa competição - via eliminação dos capitais individuais menos produtivos -
acarreta a redução da massa total de mais-valor, o que também contribui para a queda da
taxa de lucro.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pudemos demonstrar, ao longo deste trabalho, como, a partir de uma análise
centrada nos movimentos subjacentes à taxa de lucro, não só aparecem importantes
convergências entre o pensamento de Brenner e os autores da LQTTL, mas também
como elas iluminam diferentes elementos da dinâmica econômica. Essa convergência
aparece não somente na investigação da causalidade das crises econômicas, mas
também na funcionalidade dessas crises para incitar um novo ciclo expansivo.
Devemos, porém, ao menos mencionar que, ao identificarmos tais
convergências, de forma alguma pretendemos apagar as importantes divergências
existentes entre os autores. Como analisado por Kliman (2007, capítulo 7), Brenner
incorpora nos seus trabalhos o teorema de Okishio que pretende provar a falsidade da
LQTTL. Kliman enfatiza em tom crítico que, para Brenner, “a teoria da queda da taxa
de lucro (...) voa na face do senso comum” (KLIMAN, 2007, p. 113). A partir disso ele
demonstra como Brenner confunde os efeitos individuais do aumento da composição
orgânica do capital (o que, via de regra, gera um lucro prêmio para a empresa de maior
composição), com os efeitos generalizados (quando a taxa de mais-valor gerada tende a
cair).
Feita essa ressalva, esperamos ter demonstrado como ambas as análises jogam
luz sobre diferentes elementos da dinâmica capitalista, contribuindo para o
entendimento da longa estagnação iniciada na década de 1970 e as crises que eclodiram
desde então.

REFERÊNCIAS
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259
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260
Disponível em: <https://thenextrecession.wordpress.com/2015/12/29/the-marxist-
theory-of-economic-crises-in-capitalism-part-two/> Acesso 30 de agosto de 2017.

______. The long depression. Chicago: Haymarket Books, 2016.

261
OS EXTREMOS DA MERCANTILIZAÇÃO DA VIDA SOCIAL NA
CONTEMPORANEIDADE DO CAPITALISMO. UMA ANÁLISE A LUZ DO
FETICHISMO DA MERCADORIA.
Victor César Fernandes Rodrigues.
UNESP – Franca
victor.rotciv_@hotmail.com

Resumo.
O presente trabalho tem por finalidade situar a problemática marxiana do fetichismo da
mercadoria no contexto contemporâneo do capitalismo. Sua proposta é a de reivindicar,
por um lado, que a criação incessante de necessidades é inerente à forma social do capital,
pois essa criação incessante de necessidades tem por finalidade a valorização do valor em
detrimento da satisfação das pessoas, e é precisamente por isto que o fetichismo se põe
de forma objetiva, na inversão social que opera. Por outro lado, pretende situar que
atualmente a criação incessante de necessidades está produzindo o recrudescimento do
fetichismo e reproduzindo cada vez maior submissão das pessoas aos imperativos do
mercado.
Palavras-chave: fetichismo; Mundo do Trabalho; Mercantilização da vida social.

THE EXTREMES OF THE MERCANTILIZATION OF SOCIAL LIFE IN THE


CONTEMPORARY CAPITALISM. AN ANALYSIS OF THE LIGHT OF THE
MERCHANT FETICHISM.
Abstract.

The present work aims to situate the Marxian problematic of commodity fetishism in the
contemporary context of capitalism. His proposal is to claim, on the one hand, that the
incessant creation of needs is inherent in the social form of capital, since this incessant
creation of needs has the purpose of valuing value to the detriment of the satisfaction of
people, and it is precisely for this reason that fetishism is put in an objective way, in the
social inversion that operates. On the other hand, it intends to situate that currently the
incessant creation of needs is producing the recrudescimento of fetichismo and
reproducing more and more submission of the people to the imperatives of the market.

Key words: fetishism; World of Work; Mercantilization of social life.


1) INTRODUÇÃO/ ENUNCIADO DO ESPAÇO POSICIONAL DO
PROBLEMA
Hoje se pode dizer que a questão da reificação e do fetichismo, na tradição crítica
inaugurada por Marx, teve início com a publicação da obra de Lukács, em 1923,
intitulada: “História e Consciência de Classe.”1 Mas esta “origem” é tão somente um

1
O referido livro de Lukács é um marco deste período de crise política do marxismo da II Internacional,
por haver situado o que havia sido marginalizado, mas de forma alguma o único. A obra de Isaak Rubin;
“Teoria Marxista do Valor”, também publicada em 1923, demonstra possuir um caráter extremamente
melhor sistematizado do que o livro de Lukács, com relação ao tema do fetichismo. A obra de Lukács,

262
desdobramento ulterior das formulações marxianas, contidas em obras as quais só
começaram a vir a público muito posteriormente.2 De fato, a temática do fetichismo, em
Marx, possui diversas posições distintas.3 A lista de autores marxistas que pensaram a
questão é vasta,4 ao cabo da qual é mais que suficiente para legitimá-la. Nossa tarefa,
neste trabalho, consiste no seguinte: trazer a questão do fetichismo para a atualidade; de
descortinar o fetichismo da mercadoria em relação às múltiplas refrações de seus
mecanismos referenciais. Principalmente, trazer a possibilidade de equacioná-la como
importante categoria para a compreensão do capitalismo contemporâneo e das atuais
inovações tecnológicas.
Vivemos em um mundo onde a mistificação operada pelo fetichismo da
mercadoria vem invadindo a todas as esferas. Ao cabo das quais vem estimulando a
retomada desta questão particular, no exame reticente de seus efeitos objetivos/subjetivos.
No marco dessa generalização “profana” da mercantilização nos encontramos todos. Indo
das novas circunstâncias de externalidade com a realidade e entre si mediante vidraças
oculares conectadas virtualmente5 à disseminação teleguiada de recursos automobilísticos
autônomos,6 a personificação das coisas e reificação das pessoas atingiu o cume
estatutário de a tudo incluir como estratos de seu império sacrossanto.

contudo, parece ser um catalisador de diversos desdobramentos filosóficos sobre o tema, tal a importância
de sua obra, em relação a de Rubin. Dado os limites deste pré-projeto, o contexto desta crise ficará em
suspenso. Mas é possível dizer, em linhas gerais, que a questão da reificação e do fetichismo emergem
precisamente através desta referida crise política da II Internacional, que congrega estes dois autores, e que
coincide com a inauguração do Instituto para Pesquisa Social (Institut für Sozialforschung) fundado por
Felix Weil em 3 de fevereiro de 1923. E que em autores como Adorno e Horkheimer, ganharam nova
postura e veredicto.
2
“[...] Quanto a este ponto, há que ressaltar, [...] que os materiais marxianos acessíveis até os anos trinta
não permitiam, com efeito, o estabelecimento do real perfil da empresa de Marx: até então permaneciam
inéditos, entre outros, dois conjuntos de elaborações sem cujo conhecimento é simplesmente impossível a
compreensão quer da evolução do pensamento de Marx, quer da estrutura mesma da sua teoria social –
trata-se dos Manuscritos de 1844, publicados em 1932, e dos Elementos Fundamentais para a Crítica da
Economia Política (1857-58), dados à luz entre 1939 e 1941. (NETTO. J. 1981. p. 31-2)
3
Pode-se dizer, quanto a este ponto, que somente no decurso de 1857-1873; tanto na “Contribuição à Crítica
da Economia Política”, especificamente no capítulo “O rendimento e suas Fontes”; quanto nos
“Grundrisse”, passando pelos Manuscritos de 1861-1865, ela vai tomando certa “formatação”, a qual terá
sua cristalização teórica n’O Capital, particularmente em sua segunda edição de 1873.
4
Em linhas gerais, pode-se apenas mencionar: KONDER. L. “Marxismo e Alienação” Ed. Civilização
Brasileira. 1965. ARTETA. A. 1993 “Marx: valor, forma social y alienación.” Madrid: Ed. Libertarias.
BEDESCHI. G. 1975 “Alienación y fetichismo em el pensamiento de Marx.” Madrid: Ed. Corazón.
GODELIER. M. “Economía, fetichismo y religión en las sociedades primitivas”. 3º Ed. México: Ed. Siglo
Veintiuno. 1980. LAMO DE ESPINOSA. E. “La teoria de la cosificación: de Marx a la Escuela de
Francfort.” Madrid: Ed. Alianza. 1981. MÉSZÁROS. I.. “A teoria da alienação em Marx.” Ed. Zahar. 1981.
RUBIN. I. “Ensaios sobre a teoria marxista do valor.” 1987. Ed. Polis. FAUSTO. R. “Marx: lógica e
política.” São Paulo, Editora Brasiliense, 1987. DUSSEL. E. “El fetichismo en las cuatro redacciones de
El capital (1857-1882).” Madrid. Ed. Verbo Divino. 1993. ANTONIO. R. “Teoría econômica y ciencias
sociales: Alienación, fetichismo y colonización.” Equador Debate. 2008.
5
O Google Glass é um dispositivo semelhante a um par de óculos, que fixados em um dos olhos,
disponibiliza uma pequena tela acima do campo de visão. A pequena tela apresenta ao seu utilizador: mapas,
opções de música, previsão do tempo, rotas de mapas, e além disso, também é possível efetuar chamadas
de vídeo ou tirar fotos de algo que se esteja a ver e compartilhar imediatamente através da internet. Não é
difícil imaginar, porém, serem também utilizados para compras via QR-CODE ou mediante implantes via
lentes de contatos. Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=P42H8iOxWOE
6
Já estão sendo testadas em diversas regiões carros inteiramente autônomos, uma espécie de “internet de
bordo”. Maiores informações, ver em: https://tecnoblog.net/178274/carros-autonomos-google-ruas-
california/. Não é difícil imaginar o quanto esta tecnologia modificará radicalmente o design de estradas,

263
Do futuro interativo tendencial entre algoritmos e seres humanos, liquefazendo
ainda mais os espaços humanos da comunicação interpessoal7 aos complexos
exoesqueletos adaptados à operários fabris8, da tecnologia do grafeno9 à privatização da
natureza e ambientalização dos discursos midiáticos10, persiste o regime
“fantasmagórico” que paira por sob nós, convertendo nossas mais íntimas capacidades
criativas e nossas candentes necessidades sociais em meros suportes de uma vida
inautêntica orquestradas e medidas por cálculos de mercado.11 As dimensões alcançadas
pela mercantilização da vida social hoje, traz a chancela o caráter expansivo desta
questão, em Marx.
A própria necessidade de primeiro transformar o produto ou a atividade dos indivíduos
na forma de valor de troca, no dinheiro, e o fato de que só nessa forma coisal adquirem
e comprovam seu poder social, demonstra duas coisas: 1) que os indivíduos produzem
tão somente para a sociedade e na sociedade; 2) que sua produção não é imediatamente
social, não é o resultado de associação que reparte o trabalho entre si. Os indivíduos estão
subsumidos à produção social que existe fora deles como uma fatalidade; mas a produção
social não está subsumida aos indivíduos que a utilizam como seu poder comum.
(MARX. K. 2011. p. 106. Grifo meu)

No mundo contemporâneo, as multilateralidades da reificação e do fetichismo


estão em conformidade com a tipificação da vida social, e isto oferece provas suficientes
acerca de sua vigência nos tempos que correm, para além de meros “conceitos” expostos

incluída a mobilidade urbana, além da extinção gradativa de empregos no setor de transporte e distribuição.
No mais, é o retrato da velocidade inovadora 4.0 com que o imperativo do lucro recobra seu significado e
direção, em se tratando da substituição de precariados uberizados e da consequente perda de controle social
do processo de produção.
7
“Programas como o Siri da Apple oferecem um vislumbre da capacidade de uma subárea da IA
(Inteligência Artificial) que está em rápido avanço: os assistentes inteligentes. Os assistentes pessoais
inteligentes começaram a surgir há apenas dois anos. Atualmente, o reconhecimento de voz e a inteligência
artificial progridem em uma velocidade tão rápida que falar com computadores se tornará, em breve, a
norma, criando algo que os tecnólogos chamam de computação ambiental; nela, os assistentes pessoais
robotizados estão sempre disponíveis para tomar notas e responder às consultas do usuário. Cada vez mais,
nossos dispositivos se tornarão parte de nosso ecossistema pessoal, nos ouvindo, antecipando nossas
necessidades e nos ajudando quando necessário — mesmo que não tenhamos pedido.” (SCHWAB. K.
2016. p. 17)
8
Maiores informações, ver em: https://exame.abril.com.br/tecnologia/fiat-indica-futuro-do-trabalho-com-
uso-de-exoesqueletos/
9
“O Grafeno [...] já é conhecido como um dos elementos que vão revolucionar a indústria tecnológica como
um todo devido a sua resistência, leveza, transparência e flexibilidade, além de ser um ótimo condutor de
eletricidade” Fonte: https://canaltech.com.br/produtos/grafeno-conheca-o-material-que-vai-revolucionar-
a-tecnologia-do-futuro-25436/ O Grafeno promete radicalizar nossa relação com as mercadorias e
incrementar seu fetichismo.
10
“Ao incorporar a fala ambientalista o discurso do mercado, amparado em uma simpática receptividade
midiática, se apropria do discurso ambiental e o despolitiza e descontextualiza, conjurando seu potencial
transformador [...] acaba convertendo a própria preocupação ambiental em novo fator de reprodução do
capital, mercantilizando a própria causa, seja na forma de produtos ditos ecologicamente corretos ou na
utilização imagética e estilizada na publicidade para associar a produtos e atividades uma imagem
ecológica”. Apud. ZANGALLI. J. Guimarães JR, 2011. In: https://digitalis-
dsp.sib.uc.pt/bitstream/10316.2/38052/3/A%20mercantilizacao%20da%20natureza.pdf
11
Diz-se e se pode voltar a dizer que a beleza e a grandeza deste sistema residem precisamente neste
metabolismo material e espiritual, nesta conexão que se cria naturalmente, na forma independente do saber
e da vontade dos indivíduos, e que pressupõe precisamente sua indiferença e sua independência recíprocas.
(MARX, K. 1987, p. 87. Grifo meu. Tradução minha).

264
por Marx na análise da mercadoria. Antes, elas constituem as formas de ser do
capitalismo, conformam suas determinações de existência12 e irradiam luminosidade
própria nesse modo de produção na exuberância de suas dimensões categoriais nucleares
na tríade fetichista da sociabilidade burguesa13; a mercadoria, o dinheiro e o capital.14 A
problemática da reificação e do fetichismo estão mais vivas hoje do que nunca; é o que
tentaremos demonstrar nas páginas que seguem, cujo horizonte mira enfrentar as
consequências que assume para os sujeitos sociais, participantes desses processos de
fundo. Em suma, o fetichismo é apenas um “termo” empregado por Marx para situar uma
análise estrita da mercadoria ou compõe o estatuto setorial da positividade capitalista
(NETTO, 1981) cuja estrutura discriminatória corresponde na reificação das pessoas e
personificação das coisas expressivas de seu regime?
O fetichismo, para Marx, atua como inversão objetiva, que não apenas inverte o
relacionamento social das objetivações humanas regidas pela forma valor, mas distorce
simultaneamente a relação humana posta sob tal regência; o modo de produção domina
os sujeitos que perdem o controle sobre suas objetivações e passam os mesmos a se
relacionarem materialmente entre si através única e exclusivamente da mediação dessas
coisas, das quais lhes escapam os rastros com os quais vieram a ser; característica que se
agrava na atual fase do capitalismo, em especial no “cântico de louvor” da exibição
espetacular que expressam os mais variados sentimentos com relação ao universo
digitalizado das relações humanas. No “mundo das mercadorias”, os homens lidam com
estas coisas-valores na proporção em que se relacionam entre si15, e somente na dimensão
desta relação devêm reconhecíveis como tais16; na proporção de uma relação social entre
coisas e uma relação reificada entre pessoas,17 confirmadas pela opressão estabelecida

12
“[...] as categorias expressam formas de ser, determinações de existência [...] ” (MARX. K. 2011. P. 85)
13
“[...] A reificação das relações de produção entre as pessoas é agora complementada pela “personificação
das coisas”. A forma social do produto do trabalho, sendo resultado de incontáveis transações entre os
produtores mercantis, torna-se um poderoso meio de exercer pressão sobre a motivação dos produtores
individuais de mercadorias, forçando-os a ajustar seu comportamento aos tipos dominantes de relações de
produção entre as pessoas nessa dada sociedade. O impacto da sociedade sobre o indivíduo é levado adiante
mediante a forma social das coisas. Esta objetivação, ou “reificação” das relações de produção entre as
pessoas sob a forma social de coisas, dá ao sistema econômico maior durabilidade, estabilidade e
regularidade. O resultado é a “cristalização” das relações de produção entre as pessoas.” (RUBIN. I. 1987.
p. 37)
14
“[...] É apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que assume, para eles, a forma
fantasmagórica de uma relação entre coisas.” (MARX. K. 2013. p. 147. Grifo meu)
15
“Na economia capitalista verifica-se o recíproco intercâmbio de pessoas e coisas, a personificação das
coisas e a coisificação das pessoas. Às coisas se atribuem vontade e consciência, e, por conseguinte, o seu
movimento se realiza consciente e voluntariamente; e os homens se transformam em portadores ou
executores do movimento das coisas.” (KOSIK. K. 1976. p. 174)
16
“[...] A separação do produtor dos seus meios de produção, a dissolução e a desagregação de todas as
unidades originais de produção etc., todas as condições econômicas e sociais do nascimento do capitalismo
moderno agem nesse sentido: substituir por relações racionalmente reificadas as relações originais em que
eram mais transparentes as relações humanas.” (LUKÁCS. G. 2003. p. 207)
17
“A metamorfose da relação mercantil num objeto dotado de uma “objetivação fantasmática” não pode,
portanto, limitar-se à transformação em mercadoria de todos os objetos destinados à satisfação das
necessidades. Ela imprime sua estrutura em toda a consciência do homem; as propriedades e faculdades
dessa consciência não se ligam mais somente à unidade orgânica da pessoa, mas aparecem como “coisas”
que o homem pode “possuir” ou “vender”, assim como os diversos objetos do mundo exterior. E não há
nenhuma forma natural de relação humana, tampouco alguma possibilidade para o homem fazer valer suas
“propriedades” físicas e psicológicas que não se submetam, numa proporção crescente, a essa forma de
objetivação.” (LUKÁCS. G. 2003. p. 223)

265
entre a classe possuidora e a classe despossuída, em níveis distintos,18 a qual conforma a
historicidade de seu estatuto.19
Na sociedade burguesa, quanto mais se desenvolve a produção capitalista, mais as
relações sociais de produção se alienam dos próprios homens, confrontando-os como
potências externas que os dominam. Essa inversão de sujeito e objeto, inerente ao capital
como relação social, é expressão de uma história da auto-alienação humana. Resulta na
progressiva reificação das categorias econômicas, cujas origens se encontram na
produção mercantil. (IAMMAMOTO. M. 2014. p. 48)

Um processo social que atua a margem dos produtores como uma fatalidade;
passam os sujeitos a meros suportes de uma relação entre coisas.20 Em contrapartida, os
sujeitos sociais, que somente obtendo tais coisas sustém sua própria vida, são dados
destinos funestos em “mundos impróprios”, que sequer lhes pertencem. A seguir,
veremos como estas características fetichistas da sociabilidade burguesa se intensificaram
na contemporaneidade, a qual verteu sob o selo da mercadoria múltiplos aspectos da
realidade social e promete verter ainda mais.
Segundo Netto;
[...] Na idade avançada do monopólio, a organização capitalista da vida social preenche
todos os espaços e permeia todos os interstícios da existência individual: a manipulação
desborda a esfera da produção, domina a circulação e o consumo e articula uma indução
comportamental que penetra a totalidade da existência dos agentes sociais particulares –
é o inteiro cotidiano dos indivíduos que se torna administrado, - um difuso terrorismo
psico-social se destila de todos os poros da vida e se instila em todas as manifestações
anímicas e todas as instâncias que outrora o indivíduo podia reservar-se como áreas de
autonomia. (NETTO. J. 1981 p. 81. Grifo meu)

Se a forma social das coisas, que são produtos do trabalho humano, aparece aos
homens com a mística qualidade de ocultar suas mediações sociais, ao passo de converter
as relações materiais dos homens com os produtos de seu trabalho em uma relação social
das próprias coisas; se a própria forma fetichista deste estatuto inverte as relações sociais
dos produtos do trabalho na própria base em que são produzidas, há razões para dizer que
na contemporaneidade do capitalismo está-se operando o recrudescimento fetichista deste
estatuto na tendência de tornar as próprias coisas conectadas entre si em uma “internet
das coisas” (IoT), cuja miniaturização nano tecnológica identifica cada coisa em um

18
“A classe possuinte e a classe do proletariado representam a mesma autoalienação humana. Mas a
primeira das classes se sente bem e aprovada nessa autoalienação, sabe que a alienação é seu próprio poder
e nela possui a aparência de uma existência humana; a segunda, por sua vez, sente-se aniquilada nessa
alienação, vislumbra nela sua impotência e a realidade de uma existência desumana.” (MARX. K.
ENGELS. F. 2003. p. 48)
19
“Como o trabalho vivo – no processo de produção – está já incorporado ao capital, todas as forças
produtivas sociais do trabalho apresentam-se como forças produtivas do capital, como propriedades que
lhe são inerentes, da mesma forma que, no caso do dinheiro, o caráter geral do trabalho, na medida em
que este cria valor, aparecia como propriedade de uma coisa. [...] a combinação social, na qual as diversas
forças de trabalho funcionam tão somente como órgãos particulares da capacidade de trabalho que constitui
a oficina coletiva, não pertence a estas, mas se lhes contrapõe como ordenamento (arrangement)
capitalista, é-lhes imposta.” (MARX. K. 1978. p. 83. Grifo meu)
20
“[...] O homem não aparece, nem objetivamente, nem em seu comportamento em relação ao processo de
trabalho, como o verdadeiro portador desse processo; em vez disso, ele é incorporado como parte
mecanizada num sistema mecânico que já encontra pronto e funcionando de modo totalmente independente
dele, e a cujas leis deve se submeter.” (LUKÁCS. G. 2003. p. 204)

266
banco de dados, os quais se conectam virtualmente, tornando o fetichismo das
mercadorias ainda mais expressivo,21 precisamente pela migração desta tecnologia em
pessoas,22 mostrando a atualidade da questão. Mas os aspectos peculiares da crise
contemporânea do capital são mais engenhosos, não é por acaso que a tecnologia
Blockchain de Bitcoin, por exemplo, a “moeda virtual” destes tempos, tem sido
recorrentemente exposta como o futuro do dinheiro,23 ao mesmo tempo em que expressa
o grau alcançado pelo fetichismo, em se tratando de um dinheiro que parece “surgir do
nada”, ou simplesmente através da “mineração virtual”.24
O Bitcoin é o blockchain mais conhecido neste momento, mas essa tecnologia logo dará
origem a inúmeros outros. Se, agora, a tecnologia do blockchain registra transações
financeiras feitas com moedas digitais (o Bitcoin, por exemplo), futuramente ele servirá
para registrar coisas bem diferentes, como nascimentos e óbitos, títulos de propriedade,
certidões de casamento, diplomas escolares, pedidos às seguradoras, procedimentos
médicos e votos — essencialmente, quaisquer tipos de transação que podem ser
transformadas em código. (SCHWAB. K. 2016. p. 22)

Da “matéria atormentada” pela engenharia genética, o lucro vem sempre como


prioridade,25 mostrando que a inversão, operada pelo fetichismo da mercadoria, atingiu
hoje o patamar inacreditável de tornar a própria vida celular um objeto de mercado. A
planificação global da sociedade, cuja mercantilização da totalidade das relações sociais
constitui propriamente a lógica da reificação, posta pelo fetichismo, em seu estatuto
setorial consolidado, no dinheiro, representa o quanto ainda nos falta apreender sobre o
significado real de tais categorias no marco da analítica marxiana. Nossos exemplos
pretendem oferecer um panorama contemporâneo de tais problemáticas, a luz das
circunstâncias que as conformam e as legitimam como “naturais” e das “saídas” do capital
em tempos de crise.
É o caso, por exemplo, dos empreendimentos no ramo do chamado mercado de
“barriga de aluguel”. No Brasil, agências especializadas neste tipo de nicho de mercado
já estão em vias de consolidação.26 Mas este é um movimento mundial27, nos Estados
21
Maiores informações, ver em: http://www.techtudo.com.br/noticias/noticia/2014/08/internet-das-coisas-
entenda-o-conceito-e-o-que-muda-com-tecnologia.html
22
O uso de microchip em pessoas no intuito de identificá-las às bases de dados não apenas reafirma a
reificação das pessoas e personificação das coisas, como também demonstra o recrudescimento do
fetichismo, ver em: https://exame.abril.com.br/tecnologia/empresa-belga-chama-atencao-por-implantar-
chips-em-funcionarios/#
23
Ver em: http://cbn.globoradio.globo.com/editorias/tecnologia/2017/05/17/BITCOIN-O-FUTURO-DO-
DINHEIRO-E-VIRTUAL.htm
24
“Na forma do capital portador de juros, portanto, esse fetiche automático está elaborado em sua pureza,
valor que valoriza a si mesmo, dinheiro que gera dinheiro, e ele não traz nenhuma marca de seu nascimento.
A relação social está consumada como relação de uma coisa, do dinheiro consigo mesmo.” (MARX, 1985,
Livro III, Tomo I, p. 294. Grifo meu).
25
Quando a indústria do veneno assume a porta-voz dos interesses da população e quando o extermínio de
plantas e animais silvestres torna-se acelerado, algo de muito fetichista está em jogo na lógica dessa
inversão. Ver em: http://www.agroecologia.org.br/2016/07/11/pl-do-veneno-o-lucro-vem-antes-da-saude-
e-do-meio-ambiente/
26
“Tammuz, que significa deus da fertilidade para os acádios, já tem 25 processos de brasileiros em
andamento, sendo 14 de casais gays, sete de casais heterossexuais e sete de solteiros. “O meu negócio é
possibilitar que qualquer pessoa possa ter uma família, respeitando todas as leis”, diz.” Fonte:
http://www.valor.com.br/cultura/blue-chip/4154436/agencia-de-barriga-de-aluguel-abre-escritorio-em-
sao-paulo
27
Informações: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/02/17/internacional/1487346402_358963.html

267
Unidos, por exemplo, pode-se alugar uma “barriga de aluguel” indiana, por US$ 6.250.
Casais ocidentais que buscam uma mãe de aluguel estão recorrendo sistematicamente a
essa terceirização dos ventres maternos na Índia.28
Na sociabilidade burguesa, tudo aquilo que puder ser submetido à forma-
mercadoria, cedo ou tarde será garantido por todos como aceitável; nessa “síndrome de
estocolmo” tão característica dos nossos tempos. A transversalidade da fetichização das
relações sociais constitui propriamente o elo condutor da conversão dos seres humanos e
da natureza em meras coisas quantitativamente avaliadas segundo o custo benefício dos
mercados na busca desenfreada por maiores lucros em detrimento dos seres vivos. A
inversão, portanto, entre a personificação das coisas e a reificação das pessoas comparece
setorialmente no capitalismo contemporâneo, e nos mostra que a rigor, não há limites
para esse regime estatutário. Ademais, é extremamente problemático relegar o tema do
fetichismo, em Marx, a um tema qualquer, pois a rigor, é na atualidade do capitalismo
que ele recobra seu sentido crítico preciso e elementar. Mas nada se compara ao direito
de poder lançar toneladas de gás carbônico na atmosfera, desde que sejam pagos os preços
estabelecidos pelo mercado de emissões.29 Quer dizer, nada se compara a possibilidade
de estatuir um “regime fantasmagórico” em todas as mais distantes e inóspitas treliças da
sociedade, como diz Netto: “do útero a cova.”30
A planificação global – aqui necessariamente vertical e burocrática – cobre a vida como
um todo: da distribuição ecológica ao conteúdo do lazer, do controle da mobilidade da
força de trabalho ao continuum instrução formal/informal, etc. A organização capitalista
da grande indústria moderna modela a organização inteira da sociedade macroscópica,
impinge-lhe os seus ritmos e os ciclos, introduz com a sua lógica implacável o relógio-
de-ponto e os seus padrões em todas as micro-organizações. (NETTO. J. 1981. p. 82)

No mais, não se pode subestimar os atuais empreendedores precários, inclusive


em servir literalmente de cobaia em testes de laboratórios farmacêuticos, por nada menos
que US$ 7.500.31 Mas que não se perca de vista a “banalidade do mal” que assume a
fetichização total da vida social e que penetra todos os poros da sociabilidade

28
“O subaluguel comercial tem sido legal na Índia desde 2002, como é em muitos outros países, incluindo
os Estados Unidos. Mas a Índia é o líder em torná-lo uma indústria viável, em vez de um tratamento de
fertilidade raro. Os especialistas dizem que poderia decolar pelas mesmas razões que a terceirização em
outras indústrias foi bem sucedida: um amplo laboratório trabalhando para taxas relativamente baixas.”
(Tradução minha). Fonte: http://usatoday30.usatoday.com/news/world/2007-12-30-3457229192_x.htm
29
A União Europeia administra um mercado de emissões de gás carbônico que torna permissível comprar
e vender o direito de destruir a camada de ozônio. Maiores informações, ver em:
https://www.nanotechdobrasil.com.br/point-carbon-estima-volume-do-mercado-de-carbono-norte-
americano-deve-dobrar-este-ano/
30
“[...] Exclusivamente os recursos heurísticos contidos nas formulações sobre o fetichismo podem abrir a
via à sua compreensão, porque o que aqui se universalizou, na imediaticidade da vida social, são os
processos alienantes e alienados peculiares ao modo de produção capitalista, os que se encontram na base
do mistério da forma mercadoria – que, então, dominam toda a organização social. Tais processos não
envolvem apenas os produtores diretos: penetram e conformam a totalidade das relações de produção social
e das relações que viabilizam a sua reprodução. Sob o salariato não se encontra mais apenas a classe
operária, mas a esmagadora maioria dos homens; a rígida e extrema divisão social do trabalho subordina
todas as atividades, “produtivas” e “improdutivas”; a disciplina burocrática transcende o domínio do
trabalho para regular a vida inteira de quase todos os homens, do útero à cova.” (NETTO. J. P. “Capitalismo
e Reificação” Ed. Ciências Humanas. São Paulo. 1981. p. 82)
31
“Os voluntários são pagos para não fazerem as coisas, mas para que as coisas sejam feitas a eles.”
(Tradução minha). Fonte: http://www.newyorker.com/magazine/2008/01/07/guinea-pigging

268
contemporânea. Vivemos em um período histórico em que os valores de mercado
administram a todas as relações, em que nos tornamos meros suportes da “fantasmagoria”
agora digitalizada e que se abate sobre nós, sem que tenhamos o menor controle. A atual
crise do capital está operando o recrudescimento desse regime. Pior para aqueles não
podem pagar pelos “serviços” oferecidos; por aposentadoria, por educação, saúde, etc.
Pior para aqueles que dependem das políticas sociais, via Estado, para manterem-se vivos.
Em um mundo onde fazer apostas sobre a vida de idosos ou doentes tornou-se um nicho
de mercado32, onde os valores de mercado passaram a governar todas as esferas da vida
social, falar de privatização, terceirização e flexibilização, hoje em dia, é quase um lugar
comum, se não associadas às dimensões que alcançaram o fetichismo, a alienação e a
reificação, nessa sociedade que nos toca viver. Tal a contribuição genuína desta questão
para a atualidade.
Basta verificar a ascensão que tem tido o mercado de empresas de segurança
privada, em todo o mundo;33 o aumento exponencial e aparentemente irreversível do
marketing orquestrado pelos grandes conglomerados farmacêuticos para comercialização
de remédios em escala toyotista34, em suma, o terrorismo psicossocial da forma-
mercadoria destilada em todos os poros da sociabilidade contemporânea, em que as
condições do trabalho necessárias a essa exuberante proliferação de coisas são apagadas
e dão lugar a um fetichismo persistente35, o qual tem no avanço da “digitização da
indústria e da economia” um fetichismo tecnológico estrutural que tende a uma 4º
revolução industrial e uma nova fase na acumulação do capital jamais antes vista.
Não é à toa, com efeito, que retomar a discussão sobre a reificação, posta pelo
fetichismo, hoje em dia, é se deparar com os mais impensáveis disparates a que podem
chegar o equivalente universal36 e a racionalização inerente à plataforma econômica de
transformação das relações entre pessoas em relações entre coisas,37 já que nem de longe
a humanidade parece preocupada em reivindicar o controle racional de suas objetivações.
Mais do que qualquer coisa, a crítica ao fetichismo assiste por sua vez à teorização de
Marx em sentido amplo, precisamente pelo fato de constituir uma forma de ser específica
do modo de produção capitalista e de suas relações sociais postas em sua atual fase.

32
Informações, ver em: http://www.nytimes.com/2009/09/06/business/06insurance.html?mcubz=1
33
Ver em: http://www.economist.com/node/86147
34
Maiores Informações: http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI338549-17805,00-
EXPLORE+OS+REMEDIOS+MAIS+CONSUMIDOS+DO+MUNDO.html
35
“As vitrines vistosas nas lojas e o marketing das tecnologias de ponta são um contraste bastante gritante
às imagens de crianças carregando sacos de pedras e de mineiros, enfiadas em túneis apertados,
permanentemente em risco de sofrerem danos nos pulmões” [...] “É um enorme paradoxo da era digital que
algumas das mais ricas e mais inovadoras empresas do mundo possam comercializar aparelhos
incrivelmente sofisticados sem lhes ser exigido que demonstrem de onde vêm as matérias-primas com que
são fabricados os seus componentes” Fonte: https://anistia.org.br/noticias/trabalho-infantil-e-exploracao-
na-republica-democratica-congo-alimentam-producao-mundial-de-baterias/
36
O que se quer dizer é que atualmente parece surgir uma pressão econômica “canibalística” para ocupar
os últimos recursos da natureza no intuito de transformá-los em mercadorias, por fazer até mesmo da
"natureza interna" do ser humano, (engenharia genética) o território da valorização do capital e, com isso,
da propriedade privada. Vê-se o totalitarismo operado pelo fetichismo, cuja inversão social comparece
tendo em vistas as saídas para a crise do capital. Hoje estamos vendo a intensificação dos fetiches para
múltiplos níveis.
37
Faixas inteiras e milimetricamente demarcadas contornam a paisagem no Xingu e serpenteiam a
reificação da natureza em imagens que saltam as vistas. Ver em:
https://jornalistaslivres.org/2017/08/imagem-que-falta/

269
Num futuro previsível, os empregos de baixo risco em termos de automação serão aqueles
que exigem habilidades sociais e criativas; em particular, as tomadas de decisão em
situações de incerteza, bem como o desenvolvimento de novas ideias. Isso, no entanto,
pode não durar. Considere uma das profissões mais criativas — escrever — e o advento
da geração automatizada de narrativas. Algoritmos sofisticados podem criar narrativas
em qualquer estilo apropriado para um público específico. O conteúdo soa tão humano
que um teste recente efetuado pelo jornal The New York Times mostrou que, ao ler duas
peças semelhantes, é impossível dizer qual delas foi criada por um autor humano e qual
foi produzida por um robô. A tecnologia avança de forma tão veloz que Kristian
Hammond, cofundador da Ciência da Narrativa, uma empresa especializada em geração
automatizada de narrativas, prevê que, por meados da década de 2020, 90% das notícias
poderão ser geradas por um algoritmo, a maior parte delas sem qualquer intervenção
humana (exceto a criação do algoritmo, claro). (SCHWAB. Klaus. 2016. p. 34)

O aumento do desemprego38 unido ao aumento dos “empresários de si”39; a


barbárie tornando-se lucrativa,40 e profissões sendo descartáveis.41 Ora, quais seriam os
rumos e destinos das políticas sociais por via de serviço despersonalizado de inteligência
artificial e algoritmos? A precarização do trabalho e intensificação da exploração, por
outro lado, torna a discriminação operada pelo fetichismo da mercadoria um tema central.
Pois se o “mapa da violência” de mortes por arma de fogo, no Brasil, por exemplo, revela
um número assustador42, e se a chamada “guerra às drogas” tornou-se um negócio mais
que lucrativo para as grandes corporações de armas43, porque não criar um mercado que
atenda um contingente militar privado, que possa combater em zonas de guerra, por um
soldo de US$ 1.000 por dia?44 Ademais, na atual crise do capital a guerra permanente

38
“Desemprego fica em 12,2% em janeiro de 2018 e atinge 12,7 milhões de pessoas. Índice é maior do que o registrado no
trimestre encerrado em dezembro, quando a taxa foi de 11,8% e ficou estável sobre 3 meses anteriores; IBGE diz que taxa só
não caiu por razões sazonais.” Fonte: https://g1.globo.com/economia/concursos-e-emprego/noticia/desemprego-fica-em-
122-em-janeiro-de-2018.ghtml
39
“[...] Podemos entender a uberização como um futuro possível para empresas em geral, que se tornam
responsáveis por prover a infraestrutura para que seus “parceiros” executem seu trabalho; não é difícil
imaginar que hospitais, universidades, empresas dos mais diversos ramos adotem esse modelo, utilizando-
se do trabalho de seus “colaboradores just-in-time” de acordo com sua necessidade. Mas, se olharmos para
o presente da economia digital, com seus motoristas Uber, motofretistas Loggi, trabalhadores executores
de tarefas da Amazon Mechanical Turk, já podemos ver o modelo funcionando em ato, assim como
compreender que não se trata apenas de eliminação de vínculo empregatício: a empresa Uber deu
visibilidade a um novo passo na subsunção real do trabalho [...] e que tem possibilidades de generalizar-se
pelas relações de trabalho em diversos setores.” (ABÍLIO. C. L. “Uberização do trabalho: subsunção real
da viração.” 2017.) Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2017/02/22/uberizacao-do-trabalho-
subsuncao-real-da-viracao/
40
“[...] Suponha que a ONU ou outro organismo internacional estabelecesse uma cota anual de refugiados
para cada nação, atribuindo aleatoriamente quantidades de refugiados a cada país, permitindo que as nações
comprem e vendam suas obrigações. Provavelmente, um país rico, como o Japão, cumpriria sua obrigação,
pagando uma cota anual de refugiados que não quisesse à Rússia ou a Uganda para ficar com eles. A Rússia
ou Uganda ganha uma nova fonte de renda nacional, e o Japão atende suas obrigações em relação aos
refugiados, terceirizando-os.” Fonte: http://www.nytimes.com/1994/08/13/opinion/share-the-
refugees.html?mcubz=1
41
Maiores informações, ver em: http://especiais.correiobraziliense.com.br/tecnologia-e-mudancas-no-
mercado-de-trabalho-fazem-profissoes-acabarem
42
Ver em: http://old.brasileiros.com.br/2016/08/o-brasil-e-o-pais-que-mais-mata-por-arma-de-fogo-no-
mundo/
43
“Num mundo de 840 milhões de famintos, as despesas militares dos países superam US$ 1,7 trilhão
em três anos, o equivalente a US$ 260 dólares por habitante do planeta”. Fonte:
http://www.redebrasilatual.com.br/revistas/91/ricos-poderosos-e-sem-limites-2814.html
44
Maiores informações, ver em: https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2004/09/private-military-
contractors/303424/

270
mostra-se um instrumento de contenção da queda da taxa de lucro e tem-se revelado um
forte mecanismo de contra tendência do sistema.
As formulações sobre o fetichismo, nesta ótica, deixam de ser pertinentes a mistérios
singulares (o enigma da mercadoria, do dinheiro, etc.) para se converterem no recurso
heurístico do mistério macroscópico: a positividade como pseudo-objetividade posta pelo
capitalismo tardio. Elas passam a constituir os requisitos de uma análise genética (a
transformação progressiva do fetichismo da mercadoria para as formas de todas as
instâncias e agências sociais, com a mercantilização geral da vida) e sistemática (o
modus operandi pelo qual as manifestações reificadas se estruturam na pseudo
objetividade da positividade) da cultura da sociedade burguesa constituída. (NETTO. J.
1981. p. 89)

Essa desertificação da sociabilidade humana em detrimento do maremoto de


“coisas” sensivelmente-suprassensíveis e a transformação do reino animal e vegetal em
um suporte energético,45 faz acentuar o estatuto do lucro e o eleva a estatura da transgenia
mercantilizada. O capitalismo tardio (Mandel, 1985) demonstra como nenhuma outra
época o quanto o fetichismo da mercadoria era uma questão central para a crítica de Marx
da economia política46; demonstra que, a rigor, o fetichismo é uma categoria crítica
central para Marx, no exame da forma-mercadoria. Demonstra, com efeito, seu poder de
síntese, ao cabo da qual resulta na serialidade de suas telas nervuradas na reificação das
relações sociais entre os sujeitos47, enquanto perdurarem o modo de produção capitalista.
Não é por acaso que as novas formas de organização política estão motivadas na
criação dos “sindicatos de aplicativos”, que recorrem através de manifestações via
processos judiciais pela regulação formal dos vínculos empregatícios com as chamadas
“empresas-aplicativos”, e que ora resultam em negociatas entre o governo e essas
empresas, ora escancaram a dificuldade que tem sido a regulação do trabalho nessas
empresas do setor digital.48 Mas é precisamente na esteira desse avanço das empresas do
ramo digital que o fetichismo encontra adequação perfectível; na administração de um
conjunto de normas e critérios avaliativos exercidos pelos próprios usuários, através de
métodos de vigilância e exigências rigorosas, recheado de conflitos e contradições,49
porém dispersas sob o véu intangível dos vínculos empregatícios e no esboroamento
consecutivo das demandas por direitos. Os trabalhadores tornam-se corresponsáveis pela

45
“[...] Na agricultura, a transgenia permite a criação de animais de grande porte com características
comercialmente interessantes, cuja produção por técnicas clássicas de cruzamentos e seleção são
extremamente demoradas. Assim, existem vacas transgênicas que produzem mais leite, ou leite com menos
lactose ou colesterol, porcos e gado transgênicos com mais carne e ovelhas transgênicas que produzem mais
lã.” Fonte: “ANIMAIS TRANSGÊNICOS – NOVA FRONTEIRA DO SABER”. Lygia da Veiga Pereira in
http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252008000200017
46
“[...] sempre que se confronta com a economia política, ele (Marx) se defronta com a problemática do
fetichismo. Resumindo: independentemente das etapas evolutivas da sua reflexão, todas as vezes em que a
economia política é o âmbito em que se coloca o objeto da operação crítica de Marx, põe-se lhe a
problemática do fetichismo.” (NETTO. P. J. 1981. p. 54)
47
“[...] No valor de troca, a conexão social entre as pessoas é transformada em um comportamento social
das coisas; o poder [Vermögen] pessoal, em poder coisificado.” (MARX. K. 2011. p. 105)
48
“O Uber concordou em fazer algumas mudanças em seu modelo de negócios, afirmou o presidente-
executivo, Travis Kalanick, em mensagem após o acordo. Alguns motoristas reclamavam que o Uber
arbitrariamente desligava motoristas de suas plataformas.” Fonte:
http://exame.abril.com.br/negocios/uber-paga-ate-us-100-mi-para-encerrar-processo-de-motoristas/
49
Fonte: http://pioneiro.clicrbs.com.br/rs/geral/cidades/noticia/2017/07/motoristas-da-uber-e-usuarios-
do-aplicativo-trocam-reclamacoes-em-caxias-9833886.html

271
sustentação desse regime de coisas (algoritmos)50 na proporção de se tornarem eles
próprios um mero ícone certificado, qualificado e vigiado por seus clientes-consumidores.
Mais exatamente, a “gpesização” da vida humana estabelece o grau alcançado pelo
controle dos corpos, em um mundo pleno de sutilezas.
Passam os próprios trabalhadores, tanto aqueles que buscam uma fonte de renda
alternativa em jornadas indefinidas, regida por demandas repentinas e incertas, quanto
àqueles que consomem de seus serviços a meros ícones personificados, os quais se
encontram duplamente convertidos sob o imperativo da lógica da reificação de suas
relações recíprocas em detrimento das relações sociais das coisas de que necessitam e põe
a funcionar. Ambos se convertem em perfis virtuais, números de um cadastro
personificado, numa “religião da vida cotidiana”51 na qual estão e estamos refém. Suas
atividades são sensíveis, elas retroalimentam a circulação de mercadorias em suas
distribuições espaços-temporais, mas são alimentadas por programas executados por
softwares e seus algoritmos suprassensíveis.52 Nessa modalidade de organização do
trabalho, são os próprios trabalhadores que personificam a qualidade, a fiscalização e a
gestão dos serviços ofertados pelos startups; torna-se ainda mais difícil mensurar as
mediações sociais do processo. Quais estão sendo as implicações éticas desse tipo de
organização produtiva? Quais estão sendo os efeitos e consequências desse cultivo de
logotipos de startups e marcas digitais, dispersas numa multidão vigilante que avalia e dá
certificação dos serviços prestados?
E quanto aos direitos, serão estritamente mediados pelo mercado? Acaso tais
questões não foram visualizadas por Marx quando tratou da crítica ao fetichismo da
mercadoria?53
[...]. Inclusive, se levarmos em conta a relação simplesmente formal – a forma geral da
produção capitalista, compartilhada tanto por sua modalidade menos desenvolvida
quanto por sua modalidade mais desenvolvida – os meios de produção, as condições
objetivas de trabalho, não aparecem subsumidas ao operário, mas este subsumido a elas.
O capital utiliza o trabalho. Já essa relação é, em sua simplicidade, personificação das
coisas e coisificação das pessoas. (MARX. K. 1987 p. 86-7. Grifo meu)

Estamos convencidos que a crítica ao fetichismo da mercadoria, por um lado,


assiste à teorização de Marx em sentido amplo, ao que por outro lado, atualmente constitui
um dos pilares de sua teoria social que se tem de radicalizar, precisamente pela evidência

50
“O valor converte, antes, todo produto do trabalho num hieróglifo social.” (MARX. K. 2013. 209)
51
[...] essa personificação das coisas e essa reificação das relações de produção, essa religião da vida
cotidiana [...] (MARX. K. 1985. Livro III. Tomo II. p. 280)
52
“O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete
aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos
do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação
social dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos, existente à margem
dos produtores. É por meio desse quiproquó que os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas
sensíveis-suprassensíveis ou sociais.” (MARX. K. 2013. p. 206. Grifo meu)
53
“[...] Por um lado, o valor, o trabalho passado que domina o trabalho vivo, é personificado no capitalista;
por outro, o trabalhador aparece inversamente, como mera força de trabalho objetiva, como mercadoria.
Dessa relação às avessas se origina necessariamente, mesmo já na própria relação de produção simples, a
correspondente concepção às avessas, uma consciência transposta, que é ainda mais desenvolvida pelas
transformações e modificações do processo de circulação propriamente dito.” (MARX. K. 1985. Livro III.
Tomo I. p. 36)

272
das formas mercantilizadas em múltiplos interstícios da vida humana e social na
contemporaneidade.
2) O ESPAÇO FIGURAL 4.0 DA INDÚSTRIA E A QUESTÃO DO
FETICHISMO.
Simplificadamente, podemos dizer que a despeito da chamada “reestruturação
produtiva” a partir de meados da década de 1960, as quais se combinam com as mais
atuais análises sobre a flexibilização da produção e dos postos de trabalho, que o advento
da 4º Revolução Industrial,54 traz a chancela uma variedade imensa de variáveis,55 que
podem tornar este estudo não mais situado na ponta da crítica. Resumidamente falando,
as três revoluções industriais do passado; a primeira por volta de 1760 e 1840, do tempo
de Marx, motivada pelo empenho em tecnologias de engenharia mecânica, máquinas a
vapor e ferrovias; a segunda, no fim do século XIX e início do século XX, que
combinaram o avanço da eletricidade, linhas de montagem e difusão da produção em
massa, a exemplo do fordismo; a terceira, nossa mais conhecida, forjada a partir de
meados da década de 1960, com o advento da informática e da tecnologia da informação,
automatização, a exemplo do toyotismo, e em seguida, a Internet, em princípio dos anos
de 1990, hoje se confronta com um novo paradigma 4.0 de inovação, ainda ligeiramente
suspenso na maior parte das análises acerca do “Mundo do Trabalho”.
Isto significa que a temática do fetichismo da mercadoria, expressa por Marx na
segunda edição de 1873, no livro primeiro d’O capital, traz consigo algo mais do que
apenas uma conceituação qualquer, ante o prisma tecnológico de seu tempo. Para nós, o
século XXI e seu modelo de logística digitalizado, exemplificado nas páginas anteriores,
ainda que brevemente, põe como central esta temática e ainda é capaz de iluminar os
limites teóricos das formulações em torno da chamada revolução industrial 4.0. O
dispositivo de “re-encantamento” que traz consigo são taxativos, como se tudo estivesse
prestes a melhorar instantaneamente56, em se tratando do esforço apologético por apoiar
ao capital em sua equação com o trabalho,57 e delegar a segundo plano os chamados
“tecnófobos”, como se tudo pudesse ser reduzido a questão da técnica desprendida das
relações de propriedade privada e dos monopólios a ela associadas. Em um país desigual
como o Brasil em relação ao acesso à Internet, para citar apenas um exemplo, além da
assimetria evidente entre campo e cidade e o descompasso decorrente entre as condições
de acesso a equipamentos que tornem permissíveis o ingresso na “sociedade da
informação”, há ainda o agravamento do atraso do setor empresarial brasileiro em relação

54
Não há segurança em afirmar a origem deste termo, com relação as abruptas mudanças na entrada do
século XXI na indústria como um todo. Utilizo aqui a referência de Klaus Schwab, em seu livro: “A Quarta
Revolução Industrial”, publicada em 2016, pela Edipro.
55
À guisa de exemplo: http://www.valor.com.br/video/5561016011001/robos-transformam-o-setor-de-
logistica?utm_source=Facebook&utm_medium=Social&utm_campaign=Timeline
56
“Hoje, o foco mundial em tecnologia e inovação é impulsionado por um desejo desesperado de encontrar
uma solução mágica para os problemas econômicos e sociais e políticos relacionados à raça
humana. Embora existam muitos problemas importantes a serem resolvidos, e embora as inovações
continuem em muitos campos, há uma expectativa irracional de que mudanças e inovações dramáticas, pelo
menos na escala das revoluções industriais ou da computação antiga, estão no horizonte.” Maiores
informações, ver em: https://www.independent.co.uk/voices/there-s-no-such-thing-as-the-fourth-
industrial-revolution-a7441966.html
57
Ver em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/570969-os-robos-ficam-do-lado-do-capital-na-
equacao-marxista

273
à 4º Revolução Industrial, muito menos enquanto possibilidade real e muito mais
enquanto “promessa” externa, isto é, meramente apologética.58
Algumas das estimativas colocadas no espaço calculável de tais inovações
ratificam o conteúdo aparentemente vanguardista e cosmopolita da 4º Revolução
Industrial, sem que as consequências humano-societárias sejam colocadas com rigor e
sem problematizar o estatuto geopolítico desigual de suas implementações. Ora, em que
condições a implementação em larga escala de impressoras 3D59, por exemplo, para a
indústria manufatureira como um todo nos países centrais reproduziria como efeito nas

58
“Pesquisa mostra que 32% das empresas não ouviram falar do tema. [...] Segundo a pesquisa, realizada
pela Fiesp em parceria com o Senai-SP, somente 41% das indústrias utilizam o lean manufacturing, ou
sistema de produção enxuta. E 32% dos entrevistados não tinham ouvido falar em quarta revolução
industrial, Indústria 4.0 ou Manufatura Avançada, nomes diferentes para a mesma mudança na forma de
produzir, com base em tecnologia e dispositivos autônomos que se comunicam entre si ao longo da cadeia
de valor.” Fonte: http://www.fiesp.com.br/noticias/fiesp-identifica-desafios-da-industria-4-0-no-brasil-e-
apresenta-propostas/
59
“[...] A tecnologia possui uma ampla gama de utilizações, desde as grandes (turbinas eólicas) até as
pequenas (implantes médicos). No momento, seu uso limita-se principalmente às indústrias automotivas,
aeroespaciais e médicas. Ao contrário dos bens manufaturados produzidos em massa, os produtos impressos
em 3D podem ser facilmente personalizados. Conforme as restrições atuais em relação a tamanho, custo e
velocidade são progressivamente superadas, a impressão em 3D irá se tornar mais difundida e incluirá
componentes eletrônicos integrados, tais como placas de circuito e até mesmo células e órgãos humanos.
Os investigadores já estão trabalhando em 4D, um processo que criaria uma nova geração de produtos
capazes de fazer modificações em si mesmos de acordo com as mudanças ambientais, como calor e
umidade. Essa tecnologia poderia ser usada nas roupas ou nos sapatos, bem como em produtos relacionados
à saúde, por exemplo, implantes projetados para se adaptarem ao corpo humano.” SCHWAB. Klaus; “A
Quarta Revolução Industrial”, 2016, Ed. Edipro. p. 25

274
periferias geográficas do capital senão o recrudescimento da concorrência desigual e
combinada, as quais intensificariam o atraso ou obrigariam a adequação subalternizada
às inovações esperadas? Em tempos de austericídio programado para duas décadas,
restariam alternativas?
Por tais razões estruturais, por outro lado, qualquer expectativa “otimista” acerca
das habilitações necessárias para o presente século; investimento em capacidades
cognitivas, técnicas etc., que não leve em consideração a circunstância específica dessa
nova fase do capital mundial e consequentemente deste cenário industrial revolucionário
estará fadada a cometer os maiores disparates; relativizando a mercantilização 4.0 das
relações humanas e enviesando o discurso do capital mediante apologia fetichista refém
de um materialismo tosco acrítico e anti-humanista, a peculiaridade desta revolução e a
forma de seu rebatimento no Brasil passa ao largo das análises empresariais e político-
partidárias, como se estivessem “desconectados”.
Há um cenário desafiador para os países de baixa renda, isto é, saber se a quarta revolução
industrial levará a uma grande “migração” das fabricantes mundiais para as economias
avançadas, algo bastante possível caso o acesso a baixos salários deixe de ser um fator de
competitividade das empresas. [...] Caso esse caminho se feche, muitos países terão de
repensar seus modelos e estratégias de industrialização. Se e como as economias em
desenvolvimento podem aproveitar as oportunidades da quarta revolução industrial será
uma questão importantíssima para o mundo; é essencial que sejam feitas mais pesquisas
e reflexões para compreendermos, desenvolvermos e adaptarmos as estratégias
necessárias. (SCHWAB. K. 2016. p. 38)

Virtualmente, o tema da 4º Revolução Industrial aparece pela boca de vários


entusiastas estrangeiros, os quais entoam um hino particularmente conhecido, qual seja;
o de afirmarem explicitamente que as dramáticas inovações tecnológicas à nossa espera
produzirão um certo efeito “mágico” nas relações humanas60, reduzirá o custo dos
produtos,61 estimulando maior demanda do consumidor e consequentemente novos
mercados surgirão, novos empregos aparecerão, novas relações sociais e coisas que tais.
Na verdade, é o velho e carcomido procedimento idólatra dos economistas e líderes
empresariais62; ao capitalismo tudo o que estiver ao alcance e à humanidade o que restar
dos escolhos da concorrência intercapitalista, que é o que na verdade reveste o
fundamento desta inovação. Mais exatamente, mantenhamos a todo o custo o “místico
véu de névoa”63 envolvido nas próprias coisas que se erguem diante dos seres humanos e
da própria natureza como fantasmas sugadores de sua vitalidade mais íntima e
radicalizemos de forma visceral toda e qualquer condição de perpetuação e manutenção
desse sistema, ainda que tenhamos de apelar para a construção da paisagem esperançosa
de um mundo “novo” com maiores comodidades, que, porém, mantenha a estrutura da

60
“A premissa deste livro é que a tecnologia e a digitalização irão revolucionar tudo, fazendo com que
aquela frase tão gasta e maltratada se torne verdadeira: “desta vez será diferente. ” (SCHWAB. K. 2016. p.
15)
61
Não é difícil imaginar o quanto as impressoras 3D terão um impacto extremado nesta direção, em que
pese a possibilidade de imprimir desde órgãos; ver aqui: https://www.youtube.com/watch?v=4kYtsfkIrOk
às armas de última geração; e aqui: https://www.youtube.com/watch?v=w1UNdh-3vuU
62
A implementação da indústria 4.0 para os próximos anos é exclusiva à China, EUA, Japão e Alemanha.
63
[...] o reflexo religioso do mundo real só pode desaparecer quando as relações cotidianas da vida prática
se apresentam diariamente para os próprios homens como relações transparentes e racionais que eles
estabelecem entre si e com a natureza. A configuração do processo social de vida, isto é, do processo
material de produção, só se livra de seu místico véu de névoa quando, como produto de homens livremente
socializados, encontra-se sob seu controle consciente e planejado.” (MARX, Op. cit., p. 154. Grifo meu).

275
desigualdade entre os países natural e o estatuto da propriedade privada intocável, dada a
finalidade de incremento da taxa de lucratividade entre as grandes potências como métrica
para a retomada do crescimento para sair da crise. Todavia, é certo que esta inovação não
virá desprovida de catástrofes, a julgar pelo acirramento competitivo entre os países que
prometem tais inovações.
Na esteira deste discurso reiterado, os avanços relacionados à Inteligência
Artificial (IA) realizam com a mais autêntica veracidade o quanto a irreversibilidade
emergente deste processo ameaça sucumbir uma quantidade imensa de empregos e
modificar substancialmente nossas relações sociais a ponto disto de nenhuma maneira ser
considerado do ponto de vista do controle consciente e planejado de tal inovação, tal o
nível da abstração automática que a forma social da produção mercantil 4.0 requer para
sua manifestação e consequente publicidade; mistificar, com novo estilo, a tecnologia
como resultando do capital e não herdeira de força humana acumulada por milhares de
gerações.

CONCLUSÃO.
No geral, nossa intenção se caracterizou pelo esforço de apreender a temática do
fetichismo sob as seguintes plataformas, dentre elas; 1) O fetichismo constitui uma
categoria objetiva da realidade burguesa. Este primeiro ponto diz respeito ao fato de que
a reflexão marxiana sobre o caráter fetichista da mercadoria não se esgota no primeiro
capítulo de sua magna obra, tal como também não é um mero conceito articulador de uma
temática reclusa. Com efeito, a crítica do fetichismo compõe um complexo social
objetivamente determinado, a qual se estrutura pela abstração objetiva dos trabalhos
quando estes se socializam de maneira indireta através do mercado. Este caráter indireto
ao mesmo tempo torna legítimo o elemento por detrás das “leis econômicas”, qual seja;
a violência e a opressão. 2). Essa igualdade dos trabalhos a uma forma abstrata oculta a
desigualdade na exploração da força de trabalho, aspecto que compõe em paralelo lutas
sociais estabelecidas sob um regime jurídico encoberto pelo fetichismo.64 A dominação
e a exploração não aparecem à primeira vista, mas estão envolvidas pela “teia de aranha”
social das relações mercantis, a qual incorpora aos sujeitos sociais no ordenamento
fetichista de controle metabólico motivado pela manutenção de “coisas” mercantis em
detrimento das relações humanas dos sujeitos entre si,65 que se agrava e persiste na atual
fase do capitalismo. E finalmente, 3). De propor uma apreensão das relações sociais
configuradas na fase tardia do capitalismo a luz da mercantilização abundante da vida
social, em cujo cerne encontra-se o debate acerca da função social da tecnologia no

64
Tal como sinaliza Pachukanis: “As relações dos homens no processo de produção envolvem, assim, num
certo estágio de desenvolvimento, uma forma duplamente enigmática. Elas surgem, por um lado, como
relações entre coisas (mercadorias) e, por outro, como relações de vontade entre unidades independentes
umas das outras, porém, iguais entre si: tal como as relações entre sujeitos jurídicos. Ao lado da propriedade
mística do valor aparece um fenômeno não menos enigmático: o direito. Simultaneamente, a relação
unitária e total reveste dois aspectos abstratos e fundamentais: um aspecto econômico e outro jurídico.”
(PACHUKANIS, 1988, p. 75)
65
Por debaixo dessa abstração anônima, que opera economicamente, se justapõe uma forma jurídica e uma
forma política, em que a relação social entre as classes é “apagada”. Isto é, por trás do fetichismo
encontram-se relações de poder e dominação, ao mesmo tempo lutas e resistências entre as classes sociais.
Relações estas que nunca se mostram tal como são, por a própria sociabilidade burguesa funcionar apoiada
em mecanismos de mistificação e fetichismo inerentes a essa ocultação. Tal a dimensão ideológica no trato
marxiano do problema do fetichismo.

276
capitalismo e das mudanças abruptas que nos reservam o futuro em se tratando do
relacionamento contraditório entre a maquinaria e os seres humanos.
Na maquinaria, o trabalho objetivado se contrapõe materialmente ao trabalho vivo como
o poder dominante e como subsunção ativa deste a si […] A acumulação do saber e da
habilidade, das forças produtivas gerais do cérebro social, é desse modo absorvida no
capital em oposição ao trabalho, e aparece consequentemente como qualidade do capital
[...] Ademais, na medida em que a maquinaria se desenvolve com a acumulação da ciência
social, da força produtiva como um todo, o trabalho social geral não é representado no
trabalhador, mas no capital. O saber aparece na maquinaria como algo estranho, externo
ao trabalhador; e o trabalho vivo é subsumido ao trabalho objetivado que atua
autonomamente.” (MARX, 2011, p. 932-3. Grifo meu).

Espera-se com isto salientar que o tema do fetichismo alcança uma posição
contundente nos tempos hodiernos, a julgar pelo fato desta tematização assistir a um
processo social que se encontra sintetizado por Marx, quando de sua elaboração. Isto
demonstra, por outro lado, ser a forma social deste capitalismo que tende a modificar-se
estruturalmente nos próximos anos e as condicionalidades periféricas do empresariado
brasileiro neste cenário e sua consequente apatia com relação ao que se passa “lá fora” a
forma mais fetichista de gestão política e econômica dos interesses envoltos na soberania
nacional e mistificada o suficiente a ponto de não atentar-se para a aberrante catástrofe
esperada aos países que não anteciparem estratégicas factíveis para esta tendente
industrialização 4.0.
Quais os desafios implicados para o Brasil em torno desta questão? Quais as
consequências produtivas serão impostas às economias periféricas com o advento do
Grafeno, da Impressão 3D, da Inteligência Artificial, etc., que não agravem o estatuto da
dependência e não fortaleçam às desigualdades geopolíticas? Seria possível um projeto
industrial de vanguarda no âmbito político para os próximos anos, que tivesse a sabedoria
de antecipar o inevitável ou sucumbiremos a contemplação do desenvolvimento alheio
como parte de nosso espetáculo dramático, para cujos “emplastros” agrário-exportadores
ofereceremos às grandes potências como expressão de nossa submissão voluntária e de
nossa participação dependente? Mais exatamente, haveria certa ressonância entre a
subjetividade reificada dos setores empresariais brasileiros isentos de um projeto de
nação e o fetichismo circunscrito na naturalização de um destino subalterno inevitável,
ou no caso, a superação deste “místico véu de névoa”, desse estado de nação subalterna
encontrar-se relacionada ao investimento decidido em capacidades humanas
fluentemente adaptadas à 4º Revolução Industrial?
Esta problemática constitui, em síntese, parte do escopo em que julgamos
exponencial nesta pesquisa em tela, qual seja: medir a dinâmica termostática da
mercantilização da vida social no universo produtivo das indústrias 4.0, sondando as
consequências humano-societárias que elas liberam para o conjunto da humanidade,
porém partindo do agravamento de seu rebatimento em um país dependente e ainda
lastreado pelo atraso industrial como o Brasil. Nossa situação periférica torna o tema do
fetichismo da mercadoria e suas refrações contemporâneas parte de um processo
agravado pela dependência, em que os rebatimentos da indústria 4.0 aqui desenvolverão
o subdesenvolvimento se não forem devidamente analisados antecipadamente e tomados
em sério no que tange aos efeitos contraditórios que prometem para as relações sociais
universalmente.

277
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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LEFEBVRE, “O direito à cidade.” São Paulo. Ed. Moraes. 1991
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MARX, Karl. “O Capital: crítica da economia política”. Livro I. Ed. Boitempo. 2013
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__________ “O Capital: crítica da economia política.” Livro III. São Paulo. Nova
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__________ “capítulo VI (inédito)”. Ed. Ciências Humanas. 1978.
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PACHUKANIS. E. B. “Teoria geral do direito e marxismo.” São Paulo: Editora
Acadêmica. 1988.
RUBIN. I. “Teoria Marxista do valor”. Coleção Teoria e História. Ed. Polis. 1987

278
GT 2

Crítica da economia política e crítica do Direito em


Marx e no Marxismo

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

Alicerces do projeto jurídico-penal no capitalismo hiper-tardio


brasileiro: uma análise a partir de Nelson Hungria

Gabriela Rigueira Cavalcanti


Universidade Federal de Juiz de Fora
grc1306@gail.com

Resumo

Analisa-se a gênese e função social do Direito, enquanto ideologia,


especificamente o projeto jurídico-penal do Estado Novo a partir do ideário de Nelson
Hungria, codificador e jurista essencial daquele período histórico. Recorre-se não apenas
a análise imanente como forma de apreender os nexos internos e a lógica de suas ideias,
mas também à pesquisa histórica para compreender a totalidade das relações econômicas
e, portanto, sociais em que desponta e atua este pensamento.

Palavras-chave: Nelson Hungria. Estado Novo. Via Colonial.

Abstract

This work analyzes the genesis and social function of Law, as ideology,
specifically the Estado Novo legal-criminal project from the ideas of Nelson Hungria,
codifier and essential jurist of that historical period. We use not only immanent analysis
as a way of apprehending the internal ties and the logic of his ideas, but we also appeal
to historical research to understand the totality of the economic and therefore social
relations in which his thought arises and acts.

Keywords: Nelson Hungria. Estado Novo. Colonial Way.

Introdução

Uma vez que se nos confronta como meta a análise da ideologia de um autor
(CHASIN, 1978), inescusável se torna firmar, desde já, que não há nenhuma ideologia
inocente (LUKÁCS, 1959). Sendo assim, o procedimento que aspira à compreensão de
objeto de tal espécie (ideológico), necessariamente deve se pautar pela busca da
determinação da gênese e função social (CHASIN, 1978) deste objeto enquanto
ideologia. Mais do que isso, analiticamente deve-se proceder à crítica imanente (IDEM)
que constitui fator indispensável na exposição e no desmascaramento das tendências,
se queremos pôr em evidência de um modo real e concreto o caráter reacionário das
diversas ideologias (LUKÁCS, 1959) sendo também indispensável a demonstração no
terreno dos fatos e filosoficamente de sua incoerência interna, seu caráter contraditório
(IDEM).
Partimos assim da formulação sintética que,
logo à primeira aproximação, implica reconhecer que o tratamento
analítico de uma questão ideológica qualquer (como qualquer outro fenômeno
sócio-histórico) só pode ser dirimido se nos situarmos no terreno
das relações entre o todo e as partes, na imprescindibilidade de relacionar
a ideologia (parte) ao todo da existência social. (CHASIN, 1978)

Disso salta que, a pesquisa sobre os fatos que importam à esfera jurídica, a
despeito de seu caráter evidentemente jurídico, não pode tomar o Direito como complexo
280
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

auto-referenciado - como o próprio (através de suas leis, jurisprudências e doutrinas) o


faz, comumente - sob pena de ruptura com a fidedigna análise da realidade. O que não
implica negar a autonomia incontestável do fenômeno jurídico face a outros complexos
da vida social humana - relegando-o à sorte de mero epifenômeno da economia, por
exemplo - mas sim e, antes de mais nada, significa adotar a perspectiva da totalidade na
compreensão da história do ser social. Não obstante, e fique desde já claro, é pressuposto
de nosso trabalho a correta compreensão do Direito enquanto ideologia.
Para encetar nossos estudos, cabem duas perguntas: qual a relevância de Nelson
Hungria para a compreensão do projeto jurídico-penal brasileiro e quais elementos de
suas elucubrações teóricas nos permitem vislumbrar a realidade social de seu momento
histórico? Mais do que isso, como norte de nosso percurso, devem nos orientar outros
dois questionamentos: qual a função histórica do Direito Penal na particularidade
brasileira e por que Nelson Hungria seria um ponto chave para a compreensão desta?
Se entendemos que o Direito surge como alternativa real para dar respostas a
conflitos reais da socialidade humana e que, por quanto ideologia, não só se engendra a
partir de certas condições específicas da realidade, mas também atua sobre esta mesma
realidade através de um corpo burocrático (legisladores, juízes, promotores, etc) e - no
limite – coercitivo (polícia judiciária), entendemos também a importância do jurista
enquanto ideólogo, sujeito pensante cuja atividade implica a própria produção de ideias
sobre e para fenômeno jurídico. E nesta esteira, a tradição do Direito firma-se num
processo tautológico de leis que se assentam sobre a doutrina e doutrina que se assenta
sobre leis, manifesto, num último momento, na própria atuação judiciária.
Mas se as mudanças na materialidade dos fatos humanos têm o condão de
reverberar nas esferas ideológicas, de certo modo isso ocorre no Direito através de seus
ideólogos juristas, não só dando novo reconhecimento aos fatos, mas erguendo sobre esse
reconhecimento intervenções na realidade (normas e sanções). O jurista não é assim um
“termômetro” de transformações determinantes no plano mais material da vida humana,
mas, certamente, é no cenário dessas transformações que ele pensa e constrói
sistematicamente suas propostas de percepção e de intervenção na realidade através da
regulação de condghutas. E, dessa forma, seu pensamento comporta, sempre, ressalvado
algum grau maior ou menor de negação, a afirmação do legado histórico em meio ao qual
vive e, por tanto, pensa. Assim, o Direito, pela boca ou pela pena dos juristas revela o
seu modo de ser e ir sendo, ainda que os nexos efetivos de sua atuação na realidade não
se possam atestar somente pela análise crua da doutrina, jurisprudência e leis. Nesse
sentido, certamente Nelson Hungria, caricatamente alcunhado de “príncipe dos penalistas
brasileiros”, cumpre papel fundamental não só enquanto jurista, mas também legislador,
posto que participou ativamente de diversas comissões redatoras de codificações penais
desde os anos 40.
Da gênese do ideário de Hungria cabe então analisar quais as condições
específicas em que este pôde emergir, para então compreender qual função coube ao
Direito Penal, por ele escorçado, cumprir no fundo histórico brasileiro. Primeiramente
então, urge compreender o contexto social das décadas de 1930 e 1940 (período ao qual
limitaremos nossa análise neste excerto) para identificar1 o pensamento de Hungria.

O Direito na Via Colonial: o ambiente da gênese e função do pensamento de


Hungria.

1
“É que a questão não é buscar o lugar certo das idéias, mas a idéia “certa”, própria dos lugares, na medida
em que as idéias não são pedras subsumidas à lei da gravidade, sem que sejam, contudo, passíveis de fuga
aos critérios universais do verdadeiro” (CHASIN, 1959, p.).
281
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
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É José Chasin que, em seu O Integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade


no capitalismo hipertadio (1978), cunha a teoria da via colonial de entificação do
capitalismo. A relevância desse achado reside na superação de teorias insuficientes ou
equivocadas sobre o desenvolvimento do capitalismo no país, o que é decisivo para a
ciência da história na compreensão dos fenômenos sociais particulares.
Chasin parte da compreensão da “importância do componente da Colônia como
fundamento e ponto de partida da nossa história” (QUEIROZ, 2017, p.5), compreendendo
a centralidade das diferenças nas “legalidades internas dos Estados-nação coloniais
subordinados ao imperialismo [...], abordando pelo método das diferenças específicas do
processo histórico as particularidades que compõe o caso nacional” (idem) em
comparação com as vias clássicas e com a via prussiana de desenvolvimento do
capitalismo. A conclusão a que chega é que o tempo histórico das transformações sociais
é determinante para compreender esse processo, posto que se na via prussiana a
consolidação industrial é tardia, no Brasil ela é hipertardia. Além disso, o Brasil se
desassemelha a esses processos por sofrer profundas influências do imperialismo e do
capital monopolista “na composição de seu capital nacional, não deixando de ser um país
subordinado na ordem da produção capitalista” (QUEIROZ, 2017, p. 5).
Já no final do século XIX, é certo, a escalada industrial começa reorganizar a
sociedade brasileira. Mas é a “revolução” de 1930 que
marca o fim de um ciclo e o início de outro na economia brasileira: o fim da
hegemonia agrário-exportadora e o início da predominância da estrutura
produtiva de base urbano-industrial. Ainda que essa predominância não se
concretize em termos da participação industrial na renda interna senão em
1956, quando pela primeira vez a renda do setor industrial superará a da
agricultura. (OLIVEIRA, 1972)

Entretanto, a classe dos industriais não irrompeu, como nos casos clássicos de
desenvolvimento do capitalismo (Inglaterra e França, por exemplo) em uma revolução
radicalizada com bases populares. Na verdade, por aqui o que ocorreu foi um caminho
sem ruptura, conciliando o novo e o velho, o capital agroexportador e o capital industrial
em ascensão. Mesmo com a intensa participação estatal no processo em tela, o capitalismo
autêntico não consegue romper com os limites da sua atrofia. O ponto em que nos
interessa frisar aqui é como a contingência histórica proporcionou a objetivação de um
capitalismo verdadeiramente atrófico: em termos gerais, a passagem ao capitalismo de
fato no Brasil não ocorreu com a completa ruptura com o sistema agroexportador e nem
pretendeu lançar o país à condição de economia emancipada no cenário econômico
global. Pelo contrário, o desenvolvimento histórico acabou,
com os desdobramentos de suas determinantes estruturais do capitalismo
brasileiro, consubstanciando um tipo de capital atrófico, subordinado e
induzido de fora [...]. Pela Via Colonial da objetivação do capitalismo, a
reprodução do país hospedeiro sempre se faz na condição de subalternidade, o
receptor tem de ser reproduzido sempre enquanto receptor. (RAGO, 2010, p.
81)

Em outras palavras, explica Chasin, “a objetivação pela Via Colonial do


capitalismo [...] particulariza formações sociais economicamente subordinadas”
(CHASIN, 1989, p. 39). O capital metropolitano, com seus influxos e refluxos, produz e
reproduz a miséria de um anacronismo nas formas sociais e econômicas das colônias,
armada sobre a incompletude do capital incompletável destas.
É bem vivo o entendimento nesse sentido de que os capitais e as iniciativas
estrangeiras e nacionais se foram combinando e interpenetrando de tal forma que não há
realmente mais, hoje, como deslindar a meada e circunscrever uma indústria puramente
brasileira e livre de “contaminação” do capital internacional, sem ligação e relação
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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

alguma com interesses estrangeiros; e determinar, por conseguinte, uma burguesia


“nacional” anti-imperialista (PRADO JR., ? p. 110-1). Daí que
embora a classe industrial ou antes alguns representantes, possam
individualmente entrar em conflito com a poderosa concorrência de
empreendimentos estrangeiros, e esse conflito se traduza eventualmente em
ressentimentos contra o capital estrangeiro, não se verificam na situação
brasileira circunstâncias capazes de darem a tais conflitos um conteúdo de
oposição radical e bem caracterizada, e muito menos de natureza política.
(idem, p. 190)

Conforme explica Paço Cunha (2017), isso acarreta consequências no plano


político como a instabilidade, marca constante que oscila ao longo da história entre a
institucionalização da autocracia burguesa e o bonapartismo. “Essa forma política
cambaleante teve funcionalidades [...]. Serviu consideravelmente de alavanca para todo
rompante econômico e para disciplinar as massas por meio de diferentes expedientes”.
(PAÇO CUNHA, 2017, p. 8)
Nesse sentindo, pesquisas recentes2 informam o relevante papel do Direito na via
colonial de desenvolvimento do capitalismo no Brasil, sobretudo focando-se na história
e no significado da legislação trabalhista. As conclusões encaminham que há significativa
mudança no trato da questão social pelo Estado brasileiro. Por exemplo, antes de 1920 o
debate político é notadamente emperrado e a repressão será o traço preponderante na
relação do patronato com o proletariado.
A partir de 1926 é fundado o Ministério do Trabalho. Tal iniciativa deixa claro
que no caso brasileiro a questão trabalhista e a pobreza são encaradas quase que de forma
indissociável, de modo que as reivindicações trabalhistas apareciam como um problema
de “carestia”. Percebe-se que a criação de ministério constitui um tipo de resposta
meramente administrativa que, por si só, não pretende e nem poderia abolir as
contradições que estão no cerne do problema social. Assim, a finalidade última dessa
nova postura do Estado visa, no limite, a administração, disciplinamento e habituação do
proletariado a um determinado regime de funcionamento. “E esse movimento pode
explicar o que se testemunha parcialmente na virada dos anos de 1930 nessa matéria da
relação entre assimilação e repressão, guardadas as particularidades do caso brasileiro”
(idem)
A mudança de postura a partir de 1930 é ainda mais significativa:

Uma delas está nas concessões que o patronato foi obrigado a realizar, face às
pressões grevistas, e que significavam, na prática, a passagem de uma posição
de simples negação de uma série de reivindicações trabalhistas, para sua
aceitação e, até certo ponto, implementação (são os exemplos das 8 horas de
trabalho e de medidas de regulamentação do trabalho da mulher e do menor).
Ou seja, o empresariado é forçado a reconhecer, ao menos teoricamente, a
questão do trabalho no Brasil, embora considerado toda a sua especificidade
em relação à Europa. Neste campo, a vigência de normas que regulamentassem
as relações de trabalho, consagradas por uma legislação social, vai sendo ao
longo dos anos firmada. Estes fatos têm importantes desdobramentos, uma vez
que indicam, de um lado, a aceitação da legislação social como instrumento de
controle da classe operária e não mais como simples armadilha que se voltaria
contra seu criador [a própria burguesia] e, de outro, traduzem a delimitação de
um novo papel do Estado na questão (Gomes, 1979, p. 154)

A legislação social marca um movimento típico do território jurídico, que desloca


a repressão para a institucionalidade das soluções baseadas em direitos – direitos que, se

2
Cf. PAÇO CUNHA, Elcemir. A função do direito na via colonial e RODRIGUES, Arthur Bastos. A
apreensão caiopradiana do Direito na Via Colonial. In: Anais do Colóquio Internacional Marx e o Marxismo
2017. Niterói, agosto de 2017.
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antes serviam de arma para o proletariado na luta contra à burguesia, agora, cada vez mais
se mostravam como arma de defesa para a promoção dos interesses desta classe3. O que,
em verdade, não é nenhuma surpresa histórica pois também no exemplo da via clássica
de objetivação do capitalismo, a esfera jurídica serviu “à generalização das novas
condições produtivas” (PAÇO CUNHA, op. cit., p. 15), estabelecendo os parâmetros
gerais no interior dos quais funciona a extração do valor. Mas significou “também um
modo de regulação do mercado do trabalho” (idem).
Esse movimento concomitante da forma política e jurídica segue o compasso da
da industrialização brasileira pós-anos 1930, quando “os incrementos no contingente
obreiro são muitas vezes maiores que o stock operário anterior” (OLIVEIRA, 2003, p.
37-9). Assim, a legislação social implementada pouco a pouco alcançava seu
correspondente à verbalização ideológica das classes dominantes [...] de propiciar a
formação de um enorme “exército de reserva” propício à acumulação (Oliveira, 2003, p.
37-9).
Os conflitos sociais que brotam dessa realidade em que uma multidão de
indivíduos livres não incorporados ao mercado de trabalho nas cidades brasileiras do
período de entificação capitalista não podem, entretanto, ser socorridos apenas pela
legislação trabalhista. Diferentes mecanismos foram acionados pela burguesia industrial
visando efetivar “sua proposta domesticadora, desmobilizando categorias e/ou tendências
pela persuasão – acenando leis sociais de amparo ao trabalhador – ou pela força quando
aquela se mostrava insuficiente” (SILVA, 1990, p. 125). Enquanto a política servia de
palco para os conflitos entre os setores dominantes (a fração agroexportadora da
burguesia e a fração industrial), o direito se ocupava das contradições existentes entre
capital e trabalho não só através dos direitos sociais (PAÇO CUNHA, 2017). Nesse
sentido, lançamo-nos à tarefa de investigar por quais outros canais operou o direito na
forja do projeto social da burguesia nacional
Sabemos que
A Revolução de 1930 marca o fim de um ciclo e o início de
outro na economia brasileira: o fim da hegemonia agrário-exportadora e o
início da predominância da estrutura produtiva de base urbano-industrial.
Ainda que essa predominância não se concretize em termos da participação
industrial na renda interna senão em 1956, quando pela primeira vez a renda
do setor industrial superará a da agricultura. (OLIVEIRA, 1972)

Ainda assim, pode-se dizer que o período marca o “ponto alto” da objetivação do
capitalismo (industrial, por excelência) no país. Entretanto, a classe dos industriais não
irrompeu, como nos casos clássicos de desenvolvimento do capitalismo (Inglaterra e
França, por exemplo) em uma revolução radicalizada com bases populares. Na verdade
No Brasil, bem como na generalidade dos países coloniais ou dependentes, a
evolução do capitalismo não foi antecedida por uma época de ilusões
humanistas e de tentativas mesmo utópicas de realizar na prática o ‘cidadão’
e a comunidade democrática. Os movimentos neste sentido, ocorridos no
século passado e no início deste século, foram sempre agitações superficiais,
sem nenhum caráter verdadeiramente nacional e popular. Aqui, a burguesia se
ligou às antigas classes dominantes, operou no interior da economia retrógrada

3
Importante ressaltar a importância e a amplitude das lutas operárias do início do século XX na conquista
por melhores condições de vida e trabalho, neste sentido, mas o, por parte da classe dominante, “o espírito
é sempre o mesmo: transformar uma questão política, de correlação de forças entre o trabalhador e o
patrão, numa questão jurídica e técnica, com suas regras e normas só acessíveis aos especialistas,
incluindo-se nesta categoria os vogais. É por isso que a Justiça do Trabalho, prevista já na Constituição
de 1934, só foi possível ser instituída durante o Estado Novo, quando os sindicatos já estavam totalmente
atrelados e os trabalhadores amordaçados, sem condições de resolver por suas próprias mãos os conflitos
de trabalho. Se toda essa análise, realizada ao longo desta pequena obra, for verossímil, a conclusão
que se impõe é óbvia: a legislação trabalhista, no seu espírito e no processo de seu implemento,
carrega as marcas das lutas operárias mas também as de sua derrota” (Munakata, 1981, p. 105).
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e fragmentada. Quando as transformações políticas se tornavam necessárias,


elas eram feitas ‘pelo alto’, através de conciliações e concessões mútuas, sem
que o povo participasse das decisões e impusesse organicamente a sua vontade
coletiva. (RODRIGUES, 1965)

Nada disso, porém, quer dizer que a burguesia nacional não cuidou de promover
um arremedo politicista, estabelecendo uma nova diretriz para o Estado brasileiro e o
governo de Getúlio Vargas é o que melhor substancializa esse novo projeto sócio-
econômico nacional. De fato, com o novo sempre pagando tributo ao velho, o Estado
Novo brasileiro pós-revolução de 1930 não se incumbiu propriamente da extinção das
velhas formas agrárias e da estrutura de poderes que a economia colonial agroexportadora
criou, mas sim se revelou uma acomodação de contrários, um pacto de renovação entre
os setores dominantes agrário e industrial. Mas nesse projeto houve o protagonismo do
setor industrial na elaboração de novos fundamentos políticos, jurídicos e administrativos.
Ponto relevantemente discutido nesse sentido é a direção assumida por industriais
e gestores empresariais (como Jorge Street, Pupo Nogueira e Roberto Simonsen, por
exemplo) na elaboração do que viria a ser o direito social brasileiro (da Consolidação das
Leis Trabalhistas ao sistema previdenciário e de assistência social, até mesmo
planejamentos urbanísticos, envolvendo questões como a moradia)4, exercendo grande
influência no governo diretamente ou através de entidades patronais como a CIESP
(Centro das indústrias do estado de São Paulo) e o IDORT (Instituto de Organização
Racional do Trabalho).
Dessa maneira e por outras que não cabem neste trabalho, o Direito se mostrou
como uma das mais importantes mediações na objetivação do capitalismo nacional. O
Estado Novo é a maior prova disso, pois sob o seu lema de “racionalização” e
“supremacia do interesse coletivo” (o que alguns sintetizam por “corporativismo”),
lançou as bases para a solidificação de uma consistente burocracia e elevou ao patamar
de “direitos” o que antes era disputa privada entre trabalhadores e patrões (direitos
trabalhistas), caridade eclesiástica (serviços e assistência social), “queda de braço”
comercial (sistema tributário centralizado, legislação concisa de comércio internacional)
e espasmos industrializantes independentes (uma sólida política de desenvolvimento
industrial baseada na substituição de importações e desenvolvimento da indústria de base
nacional).
Somente pensando na totalidade do projeto inaugurado pelo Estado Novo é
possível compreender os alicerces em que se estriba o Direito Penal brasileiro. Por óbvio,
e de importante destaque, a legislação penal anterior ao período é digna de análise detida
e seu legado é fundamental para a compreensão da renovação que a legislação de 40
promoveu.

Antecedentes do projeto jurídico-penal do Estado Novo


De modo geral, o procedimento que parte das formas sociais da colônia e do
império para compreender o atual estágio da sociedade brasileira, expõe-se ao risco de
buscar onde ainda não estão presentes alternativas e possibilidade desenvolvidas do
conflito contraditoriamente posto - isto é, nas formas mais simples - explicação para o
mais complexo e autêntico. Rodrigues (2017, p. 10) adverte que isso não significa que a
gênese é irrelevante para o processo de compreensão da realidade, muito pelo contrário.

4
Sobre o tema ver: DEAN, A industrialização de São Paulo (1880-1945). São Paulo: Difusão Europeia do
Livro, 1971; DINIZ; BOSHCI. Empresariado nacional e estado no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1978;
GOMES, Burguesia e trabalho: política e legislação social no Brasil 1917-1937. Rio de Janeiro: Campos,
1979 ; MUNAKATA, A legislação trabalhista no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1981; RAGO, Do cabaré
ao lar: a utopia da cidade disciplinar, Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985 ; WEINSTEIN,
(Re)Formação da classe trabalhadora no Brasil (1920-1964). São Paulo: Cortez, 2000.
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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

Na colônia, a gênese do processo histórico brasileiro encontra elemento essencial à


configuração da particularidade da via-colonial (idem). Entretanto, isso não implica que
o simples seja o definidor do complexo, mas sim que o processo de desenvolvimento a
partir da colônia dá forma essencial à consolidação do capitalismo brasileiro no raiar
século XX (idem). Assim, é imprescindível conhecer a gênese do capitalismo no Brasil,
mas é a sua consolidação que explica o seu desenvolvimento a partir dessa gênese (idem).
Essas considerações nos facultam entender que a forma jurídica mais simples
presente na colônia, amalgamada e umbigada com outras práticas sociais como a política
e a religião (ibid., p. 15), adquire especificidades própria através de funções engendradas
na realidade em decorrência do próprio desenvolvimento da vida social. Em momentos
determinantes na forja das relações típicas da sociabilidade capitalista, como, por
exemplo, na transição de sua forma mercantilista para a industrial, o direito cumpre
importantes funções específicas. Rodrigues informa que, da leitura das obras
historiográficas de Caio Prado Jr.5, por exemplo, é possível identificar indícios de que o
direito cumpre certa função particular,
principalmente ao oficializar as transformações pelo alto como na Independência
e na República, em que a lei exerce uma função, na composição do velho ao novo,
como a fatura da dívida que historicamente se tem com o atraso conservador no
país, mantendo as relações de inferioridade e submissão em relação ao mercado
exterior, na posição de economia exportadora de produtos primários com a
posterior industrialização atrófica. A fatura é o reconhecimento posterior do fato
que toma o direito para si como mediação social que indica graus de protagonismo,
mesmo enquanto protoforma jurídica não diferenciada, na colônia e Império.
(ibid., p. 16).

Exatamente por isso e por questões de exposição didática, consideramos de grande


valia uma breve reflexão sobre a história do direito e, mais especificamente, do direito
penal do período colonial e imperial no Brasil, sobretudo porque a partir de elementos
surgidos em meio a essas dinâmicas societárias pré-capitalistas poderemos encontrar
condicionantes do próprio projeto jurídico-penal típico da fase industrial da economia
brasileira.
Desde já, cabe alertar que as funções desempenhadas pelo exercício das punições
no período do mercantilismo são muito diferentes daquelas de momentos posteriores. Vê-
se como a própria natureza das penas típicas do período (o degredo, as galés, os açoites,
as mutilações e a morte) revela as congruências históricas com uma sociabilidade
marcada pela incipiência das burocracias estatais no Brasil colonial (ZAFFARONI;
BATISTA; 2011, p. 412), pelo escravismo e pela forma econômica da exploração agrícola
e extrativista da terra.
As ordenações Afonsinas portuguesas, em cuja vigência (1447-1521) se deu a
descoberta do Brasil (ibid., p. 413), demonstram como tradição e religiosidade ainda se
imbricavam nas formas (quase) jurídicas - é o que se percebe da ênfase dada à
criminalização da heresia e da sexualidade segundo padrões canônicos (idem). A
influência reduzida das ordenações sobre nova colônia demonstra justamente uma
realidade em que o poder monárquico português disputava autoridade com o poder
canônico e com as autoridades locais da colônia, o que resulta na prática em um exercício
desregulado e privado do poder punitivo, exercício muito mais adaptado à realidade de
incipiente exploração e parco povoamento dos novos territórios.
Posteriormente, a Carta de Grandes Poderes que D. João III outorgou a Martim
Afonso de Souza, em 1530, outorgando-lhe “todo poder e alçada, mero e misto império,
assim no cível como no crime” (ibid., p. 414) vem se integrar a um estágio superior da
ocupação da colônia por Portugal, de modo que a nova fase de exploração colonial pode
5
O século XX é tratado por Caio Prado Jr., exclusivamente, aqui, nas obras selecionadas: “História
Econômica do Brasil”, “A Revolução Brasileira” e “A Questão Agrária no Brasil” (ibid., p, 17).
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ganhar contornos mais bem definidos e potencializar-se com as resoluções da Carta, que
tratou de ordenar o cotidiano social da colônia da forma mais adequada à reprodução do
sistema colonial ainda em princípios de consolidar-se, ou seja, sob os termos de um rígido
controle das classes subalternas (força de trabalho) pelo grupo regente (é o que se percebe
do fato de que escravos, gentios e peões homens livres eram suscetíveis da pena de morte
e as pessoas de mór qualidade eram poupadas dessa espécie de pena, cabendo-lhe
sobretudo penas pecuniárias e o degredo). Entretanto, mesmo com a tentativa portuguesa
de centralizar a administração política da colônia, o predomínio de formas de punição
domésticas exercidas desregulamentadamente por senhores contra seus escravos [...],
constituirá remarcável vinheta nas práticas penais (idem). Também as práticas punitivas
contra indivíduos de nações indígenas resistentes ao empreendimento colonial obedecem
aos mesmos padrões, ainda que sua situação não seja idêntica ao do escravo negro:
observa-se a existência de uma divisão entre leis sobre os índios amigos e leis contra o
gentio bravo (ibid., p.416). Para os primeiros encontra-se, por exemplo, nas missões
setentrionais do século XVII, uma atenuação dos castigos (idem) com fundamento
principalmente no viés evangelizador da religião, para os segundos, a mais brutal
escravização (idem), como já apontava o Regimento de Tomé de Souza.
Se essas experiências anteriores revelam que as formas institucionalizadas de
punição cumprem o papel de lubrificar as engrenagens sociais para o impulso definitivo
da exploração colonial, é sob o regime das Ordenações Filipinas que o principal eixo
criminalizante e punitivo do período colonial se fixaria, embora coexistissem, sem
prejuízo, formas de punição difusas nas mãos dos senhores locais que o escravismo
necessariamente implica (ibid., p. 417). A vigência da matéria penal promulgada com as
Filipinas sobreviveria inclusive após o período do Estado nacional brasileiro, apenas
prostrando-se, em termos legais, ao código penal de 1830 e às limitações da nova ordem
constitucional que viria a ser inaugurada.
Desse breve percurso histórico insta ressaltar o já anotado: as formas jurídico-
penais presentes na colônia eram extremamente descentralizadas e intercortadas por
fatores como a religião e os regionalismos, principalmente. Isso nos leva a perceber que
a violência e, de modo geral, os usos punitivos do mercantilismo concentrado no corpo
do suspeito ou condenado (ibid., p. 411) ainda se encontram muito mais tangentes à
própria reprodução material da vida na colônia no que diz respeito às punições contra
negros escravizados (exercida pelos seus proprietários diretos) e indígenas, mas também,
conforme afirmado, resvalam nas formas tradicionais e religiosas. Em outras palavras, é
apenas mais tarde em 1830 que o crime (e a consequente punição) começa a dissipar de
fato o seu caráter religioso e moral, passando a ser visto como um ente eminentemente
jurídico (MAIA; NETO, 2011, p. 189).
As razões para essa transformação não são de difícil apreensão, pois é justamente
no decorrer do século XXVIII que se aprofunda o conflito entre o capitalismo mercantil
[...] e o nascente capitalismo industrial (ZAFFARONI; BATISTA, op. cit., p. 421). Após
a ascensão revolucionária da burguesia, especialmente na França, o eco do liberalismo
ressoará por todo o mundo e, pouco a pouco, o capitalismo mercantil monárquico lusitano
(idem) entrará em crise, mas não sem enfrentar politicamente as ofensivas liberais dos
proprietários rurais, que se tornam sob o império a força política e socialmente
dominadora (PRADO Jr., 1973, p. 143). Essa situação culminará em amplas tentativas
por parte da monarquia lusitana em centralizar a administração da nação como forma de
reafirmar sua predominância enquanto classe regente, porém a própria unidade e
consolidação do Estado imperial servirá a muitos propósitos dos proprietários rurais,
muitas das vezes sequer se opondo aos seus interesses (basta perceber que o próprio
Código de Processo Penal de 1832 permitirá a estruturação de um sistema em que a
administração do poder punitivo permaneceria fortemente nas mãos das autoridades
locais). Some-se aos conflitos (e acomodação de interesses) políticos entre as classes
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regentes o fato de que a crise financeira agravada pela queda nos preços internacionais
do açúcar produziu entre as classes subalternas
insatisfações que se materializarão em inúmeras sedições: a partir de 1831 os
cabanos no Paraná, a setembrada de 1832 em Pernambuco, a revolução
farroupilha de 1835 no sul [...], a sabinada também na Bahia em 1837, a
balaiada no Maranhão em 1839 [...]... (ZAFFARONI; BATISTA, op.cit., p.
423).

Daí que a legislação pós-independência (1822) consagrasse princípios liberais na


Constituição de 1824 (o art. 179 da mesma abarcava uma série de garantias individuais
como a liberdade de manifestação do pensamento, a liberdade religiosa, a inviolabilidade
do domicílio, o devido processo legal, entre outras) e na nova legislação penal preservasse
toda a preocupação de disciplina e controle anti-rebelião sobre os escravos, em atenção
às necessidades dos proprietários rurais (agora mormente engajados na produção de café,
que ultrapassa o açúcar e o algodão nas exportações e concentra geograficamente
riqueza e poder político, prorrogando a demanda por mão de obra escrava) (idem).
A contradição entre a permanência do modelo escravista e os apelos pela
liberalidade dos mercados é traço marcante da via colonial de entificação do capitalismo
no país. Isso se explica pelo fato de que se nos países europeus era a feudalidade que [...]
aparecia como entrave ao capitalismo, no Brasil a integração com o capitalismo mundial
se deu por meio do escravagismo, um tipo anômalo de capitalismo (PAÇO CUNHA,
2017, p. xx). Por isso, durante o período que, para o desenvolvimento econômico europeu,
as colônias foram elementos basilares na concentração capitalista (MAZZEO, 2015, p.
75) - com fundamento nas possibilidades de produção ampliada de mercadorias para os
centros europeus (ibid., p. 76) através da implementação do trabalho escravo no Novo
Mundo – nenhum óbice aos usos da mão de obra escravizada poderia ser socialmente
suscitado. Aliás, no Brasil,
só a forma violentamente aberta e juridicamente garantida de apropriação da
força de trabalho alheia, que é a escravidão, poderia prover o contingente
requerido pelo setor açucareiro. [...]. A escravidão representa, face a essa
exigência, a possibilidade de mobilização rápida e plástica de mão-de-obra,
adequando-a às necessidades da produção em grande quantidade e em volume
crescente [...]. (FRANCO, 1975, p.21-28).

Assim, não é de se espantar que o liberalismo pudesse marcar a forma política do


período (sobretudo se pensamos na disputa entre a nova classe dominante dos
proprietários rurais e o poder monárquico) sem prejuízo de sua coexistência com a
violência transparente da escravidão.
No que diz respeito às ideias liberais, é interessante perceber que o Código
Criminal do Império foi elaborado por uma geração de juristas formados na Universidade
de Coimbra, onde o curso de direito recebeu forte influência do ideário iluminista, o que
nos possibilita compreender melhor a existência de ideias liberais na elite política
brasileira no pós-independência (MAIA; NETO, op. cit., p. 191-192). Assim, sob
influência das ideias da Escola Clássica do Direito Penal (na qual se insere os seguidores
de Beccaria, Bentham e Howard), toda a codificação penal de 1830 foi elaborada,
incorporando aqui no Brasil os contrapontos da burguesia revolucionária europeia às
práticas jurídicas processuais e punitivas do Antigo Regime – o que, conforme explicado,
veio a calhar para a classe agroexportadora brasileira.
Pensando no escravismo vigente no Brasil, seria quase redundante afirmar que,
obviamente, esses contrapontos6 na legislação penal, bem como as garantias
6
Dê-se como exemplo a defesa do princípio da legalidade dos crimes e punições, ou seja, todos os crimes
e suas respectivas punições devem ser predefinidos pela lei, evitando-se, desta forma, abusos nos processos
e nas penas infligidas; o crime é um ente jurídico, uma quebra do “contrato social”, portanto, uma
violação à tutela do Estado, e só ele, o Estado, pode punir esses desvios; o criminoso é um indivíduo
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constitucionais supramencionadas, não têm como objeto o direito dos negros ou das
outras classes subalternas, mas sim a proteção jurídica dos próprios indivíduos
pertencentes à classe dos grandes proprietários de terra7. O escravismo, como se viu,
ainda visceral à estrutura sócio-econômica do império, conservaria o seu reconhecimento
legal, sendo que a nova codificação característica do período de consolidação do Estado
nacional do Brasil apenas anunciaria um movimento de reorganização da administração
das desordens sociais, buscando centralizar e burocratiza-la. Não é por acaso que
Daqueles pelourinhos rústicos – madeiros com pouco mais de dois metros –
que Debret viu “fincados em todas as praças mais frequentadas” do Rio, e
registrou numa gravura, a fustigação urbana se deslocaria para o interior de um
estabelecimento estatal [...]. (ZAFFARONI; BATISTA, op. cit., p. 426)

Mas a proposta jurídico-penal de 1830 anunciava já (ainda que de forma um tanto


descompassada) outros sinais dos novos tempos. É nesse sentido que no Brasil a pena de
prisão com trabalho viria a ser adotada com a promulgação do Código Criminal de 1830,
primeiro na América Latina a prescrever o labor penal como importante mecanismo de
disciplina e correção moral (MAIA; NETO, op. cit., p. 188). Apesar da inovação,
prepondera neste momento o caráter colonial das relações de produção. Assim, por
exemplo, a pena de galés não é abolida formalmente da legislação (o que nos dá indícios
claros da permanência dos sentidos ainda mercantis da sociedade brasileira), mas, na
prática, a condenação à tal implicava na condenação do criminoso ao trabalho
compulsório em obras públicas (ibid., p. 191), o comprova também os novos sentidos de
modernização impulsionados muitas das vezes pelo próprio Estado (que começa a
preludiar o seu espessamento enquanto forma política determinante para o
desenvolvimento econômico nacional, esboçando as reformas estruturais necessárias à
nova fase de acumulação),. Tome-se como exemplo as obras da Casa de Correção da
Corte, no Rio de Janeiro, ou, no caso do Recife, do Teatro de Santa Isabel, do Hospital
Pedro II e da Casa de Detenção. (idem).
É bastante intrigante e aparentemente paradoxal a subsistência do princípio da
correção pelo trabalho em uma sociedade escravocrata. Mas se retomamos o fato de que
a burocracia e os juristas responsáveis pela efetivação do projeto jurídico penal do império
foram letrados na Europa justamente em meados do século XIX, período de copioso
desenvolvimento industrial daquele continente, fica mais fácil compreender as origens do
fator trabalho dentre os métodos punitivos eleitos no Brasil. Mas como as ideias não
brotam espontaneamente na cabeça dos indivíduos nem aqui nem na Europa, é preciso
perceber, conforme explicam Rusche e Kirchheimer que, desde o final do século XVI a
Holanda ensinava ao resto do mundo o exemplo das casas de correção:
Foi [...] a Inglaterra que abriu o caminho, mas por várias razões o
desenvolvimento máximo dessa iniciativa foi atingido na Holanda. Em fins do
século XVI, a Holanda possuía o sistema capitalista mais desenvolvida da
Europa, porém não dispunha da reserva de força de trabalho que existia na
Inglaterra depois do fechamento dos campos. [...] condições de trabalho
favoráveis [...] prevaleciam na Holanda, com uma jornada de trabalho pequena.
Inovações destinadas a reduzir o custo da produção eram naturalmente bem-
vindas. Todos os esforços foram feitos para aproveitar a reserva de mão-de-
obra disponível, não apenas absorvê-la às atividades econômicas, mas
sobretudo, para “ressocializá-la” de uma tal forma que futuramente ela
entraria no mercado espontaneamente. [...] As pessoas que estivessem
satisfeitas com os ganhos de uma semana de quatro dias de trabalho e que
preferissem passar o resto do tempo como bem entendessem eram levadas a

portador de livre arbítrio e um ser perfectível, tendo, por isso mesmo, a pena uma função de correção do
criminoso para sua reinserção no convívio social. (MAIA; NETO, op. cit., p. 189).
7
Não estamos aqui a dar prioridade ontológica às ideias no que diz respeito à transformação social. É óbvio
para nós que essas ideias só puderam emergir na Europa em razão das revoluções burguesas, sintomas do
alvorecer do modo de produção capitalista e da derrocada dos empecilhos da feudalidade.
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acreditar que o dever para com o trabalho é a essência da vida. Obviamente,


muitos trabalhadores não puderam ser persuadidos a aceitar essa nova teoria
voluntariamente, nem tampouco a disciplina imposta pelos catecismos foi
suficiente para resolver os problemas sociais. Foram necessárias medias mais
radicais, como as casas de correção, onde os mais resistentes eram forçados a
forjar seu cotidiano de acordo com as necessidades da indústria. (RUSHE;
KIRSCHHEIMER, 2004, p.68-69)

O objetivo principal desses estabelecimentos penais era transformar a força de


trabalho dos desajustados e ociosos (mendigos aptos, vagabundos, desempregados,
prostitutas e ladrões, os que haviam cometido pequenos delitos e, posteriormente, os
flagelados, marginalizados e sentenciados com penas longas), tornando-a socialmente
útil. A generalização dessa tendência por toda a Europa procurava impedir que os pobres
recusassem a oferecer seu potencial de trabalho, preferindo mendigar a trabalhar por
baixos salários8 (ibid., p. 67). A casas de correção deveriam ser como escolas de
comércio e incubadoras para a indústria (ibid., p. 81).
Entretanto, apesar das influências do modelo europeu das casas de correção,
certamente não é possível transpor mecanicamente as razões de ser dessa instituição
naquele continente para o Brasil. Como já expusemos, a pena de prisão com trabalho no
Código Criminal do império foi característica marcante do projeto jurídico-penal do
período (dentre os 366 crimes previstos no código, 119 eram apenados com essa
modalidade de sanção, a maior parte dentre as penas cominadas9), tornando premente a
necessidade de serem construídas casas correcionais onde esta modalidade de pena
pudesse ser aplicada com eficácia e presteza (vide o art. 49 do Código) – o que
impulsionou uma reforma penitenciária em todo o Império a partir da década de 1850.
Assim, em 1850, o Rio de Janeiro inaugurou sua casa de correção; São Paulo, em 1852;
e em 1855, Pernambuco e a província de São Pedro do Rio Grande do Sul, entre outras.
(MAIA; NETO, op. cit., p.192). A questão é que a despeito dessas mudanças, as bases
sociais do período no Brasil não condiziam com as bases sociais europeias que
possibilitaram o surgimento da forma jurídico-penal em questão por lá.
O período compreendido entre 1830-1890 terá em sua política penal as marcas de
uma época tingida pelo trauma anterior das rebeliões causadas pelos mais diversos
motivos, como movimentos da tropa insubordinada, resistência de escravos e levantes
antilusitanos (ALBUQUERQUE NETO, 2009, p.34-35) e por uma expressiva população
marginal que conturbava – com as mazelas do crime e da mendicância – as zonas onde a
urbanização (que fora impulsionada por fatores como o desenvolvimento da economia da
mineração, as reformas de infraestrutura promovidas a partir da chegada da família real
e, posteriormente, com a modernização alavancada pela economia do café), principiava
por se tornar fenômeno visível, ainda que viesse a tomar proporções mais amplas somente
após os idos de 189010.

8
“As queixas características da Baixa Idade Média quanto aos delitos contra a propriedade e outros crimes
graves cometidos por criaturas desesperadas, sem meios de subsistência, dão lugar a queixas sobre o ócio
de mendigos [...]. Frequentemente trabalhadores tornavam-se mendigos quando queriam férias por um
período longo ou curto de tempo, ou quando recuperavam o fôlego enquanto procuravam emprego melhor
ou mais agradável.” (RUSCHE; KIRSCHHEIMER, op.cit., p. 66)
9
Cf. Código Criminal do império do Brasil (1862). Edição anotada por Josino do Nascimento Silva. Rio
de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert Editores.
10
Nesse sentido, Santos (1996, p. 20-21) afirma que, no fim do período colonial (1822), as cidades entre
as quais avultaram São Luís do Maranhão, Recife, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo somaram perto
de 5,7% da população total do País, onde viviam então 2.850.000 habitantes. (...) Em 1872, apenas três
capitais brasileiras contavam com mais de 100.000 habitantes: Rio de Janeiro (274.972), Salvador
(129.109) e Recife (118.671). [...] São Paulo tinha então uma população de 31.385 pessoas. Outro autor,
Zorraquino (2005, p. 29), informa que em 1872, a população total do Brasil aproximava-se dos 10,10
milhões de habitantes. A porcentagem da população urbana variava, segundo vários autores, entre 6% e
290
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

É sob este contexto que se deve procurar os fundamentos da ampliação e do


surgimento de uma série de instâncias repressivas e disciplinares, como a edição de
posturas municipais, a organização dos aparatos policiais e prisionais (idem) e o
paradigma da casa de correção. Entretanto, a questão do trabalho nas casas de correção
brasileiras, ainda que pudesse aqui e ali apresentar algum sentido econômico em termos
de produção industrial e disciplina para o trabalho11 no período mencionado, permanece
carente de conteúdo social capaz de lhe dar o mesmo sentido conferido pelo
desenvolvimento do capitalismo europeu. Na realidade, “o sucesso de penalidades como
a prisão com trabalho e o exílio para uma ‘colônia correcional’ demandavam uma
infraestrutura simplesmente inexistente”. (CHAZKEL, 2009, p.7).
A inexistência de uma efetiva infraestrutura capaz de possibilitar o exercício das
punições com fundamento no trabalho do preso é verificada em todo o território nacional.
O que se observa é a existência nem sempre constante de possibilidades de ofício dentro
das casas de correção, onde o trabalho adquire usos muito mais voltados para realização
de obras públicas (conforme já destacamos) e para a capacitação de pequenos grupos de
presos para ofícios comuns de profissionais liberais. O exemplo de Pernambuco revela
que, ano após ano, a incapacidade da Casa de Detenção em concretizar os objetivos que
perfaziam a pena de trabalho era suscitada na administração pública, pois os oficiais de
justiça lamentavam repetidas vezes [...] e imploravam por mais dinheiro para retificar a
situação. (ibid., p. 9). No Rio Grande do Sul, a experiência de Pelotas demonstra que na
falta de oficinas [de trabalho], talvez os presos atendessem à demanda por
trabalhos em serviços e obras públicas. [...] É interessante observar que a pena
com trabalhos forçados passa a ser apresentada como de utilidade para o
Estado - os presos são mão de obra barata, e a própria sociedade reconhecia
isto. Encontramos outras referências ao trabalho dos presos. [...] O trabalho
público não tinha nada de regenerativo, apenas supria uma demanda dos
serviços públicos e a carência de verbas governamentais, além de exibir pelas
ruas uma certa pedagogia voltada ao controle social. (MOREIRA, AL-ALAM,
2009, p.24 – destaque nosso)

Também a Casa de Correção de Fortaleza


tem um lugar certo, onde se vão ocupar os vadios, e desordeiros, e se corrigem
os bêbados, e viciosos, e o público acha ali oficiais de vários ofícios que já lhe
prestam um serviço certo, e por um preço razoável na fatura de todas as obras
que deles pretende. Existem na casa Tendas e oficiais de Ferreiro, Ourives,
Funileiro, Tartarugueiro, Alfaiate e Sapateiro. (FILHO; MARIZ;
FONTELLES NETO, 2009, P. 67)

Como já afirmamos, a disciplina que a produção econômica exigia de uma força


de trabalho escravizada explorada dentro da unidade produtiva da propriedade rural se
traduz com muito mais eficiência no exercício do poder punitivo local dos senhores dos
escravos. Neste momento histórico, a realidade do país é eminentemente agrária e os

mais de 10%, para, finalmente, em 1890, segundo Santos, serem três as cidades com mais de 100.000
moradores: Rio de Janeiro com 522.651, Salvador com 174.412 e Recife com 111.556. Três outras cidades
passavam da casa dos 50.000 (São Paulo: 64.934; Porto Alegre: 52.421; e Belém: 50.064) (SANTOS,
op.cit.), levando-se em conta que em 1890, a população total do Brasil chegou aos 14,33 milhões de
habitantes (com um incremento de perto de 42% em relação a 1872). (ZORRAQUINO, op. cit., p. 30)
11
Como exemplo, a Casa de Correção de Recife, que, entre 1860 e 1870, tinha se tornado uma verdadeira
fábrica, condição que não sustentaria por muito tempo com a concorrência dos calçados fabricados no
presídio de Fernando de Noronha, diretamente gerenciado por militares, o que com certeza influenciou na
preferência pelos seus produtos. Esta experiência com as oficinas na Casa de Detenção do Recife
demonstrou a falta de uma política prisional que sustentasse legalmente os vários discursos de valorização
do trabalho como elemento reformador do criminoso. Apesar de o trabalho ser visto como “forma de
redenção” para o preso, o governo provincial debatia-se em questões que diziam respeito meramente à
sua sustentabilidade financeira e complementação para o parco orçamento da Casa de Detenção. (MAIA;
NETO, op. cit. 198)
291
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centros urbanos que se principiam a formar, apesar de fornecerem já indicativos


relevantes sobre as mazelas sociais aprofundadas com o novo ciclo produtivo, ainda não
amargam com a dura realidade de um largo contingente de desempregados e marginais
ao sistema produtivo conforme se verá nas décadas pós-abolição. O surgimento dessa
forma de punição – a prisão de modo geral, mas necessariamente a prisão com trabalho –
no Brasil não teve como sujeito o escravo. Esse mecanismo europeu de habituação e
disciplinamento das massas para o trabalho industrial foi adaptado às particularidades e
demandas de uma sociedade escravista (ALBUQUERQUE NETO, op. cit., p.34). Prova
disso, na trilha das evidências já mencionadas, é o fato de que não se acreditava na
correção moral do escravo pelo labor penal. Assim, outras alternativas para punir o
escravo criminoso figuraram na legislação do Império (idem). Na verdade, a prisão com
trabalho no Código Criminal de 1830, não é prevista para os indivíduos escravizados, mas
sim para a pessoa livre [...] e basta examinar a documentação para se perceber que
grande parte da população carcerária era composta de indivíduos livres (idem).
No Rio de Janeiro, mais da metade da população da Casa de Detenção, durante
as últimas décadas do século XIX, era constituída por réus não escravos (CHAZKEL,
2009, p. 6). Em 1879 apenas cerca de 28% (2.028) das 7.225 pessoas que passaram pela
Casa de Detenção eram escravas, na maioria das vezes indiciadas somente pelo crime de
fuga (idem). Em outra região do país, o Ceará, a tendência se mostra a mesma12:
o conjunto dos réus era, em sua grande maioria, composto de trabalhadores
livres [...]. Como já foi comentado, a categoria dos cativos refletia, em parte,
sua pouca presença no cômputo total da população cearense e, em parte, o fato
de que eles estavam já submetidos a um regime de vigilância e punição na
própria unidade de produção agrícola senhorial. Em síntese, os dados
induzem a pensar uma Justiça que existia, sobretudo, para brancos pobres,
pessoas de raízes territoriais incertas, desligadas que eram dos regimes de
trabalho e obrigações do mundo escravocrata. (FILHO; MARIZ;
FONTELLES NETO, op.cit., p. 67 – destaque nosso)

Sem dúvida, conforme já tratamos, ainda no império, problemas como a desordem


social e a miséria já começavam a marcar os incipientes centros urbanos brasileiros,
fornecendo material humano para a lotação do novo sistema carcerário consolidado com
as reformas de 1830. Mas a parcela mais importante da força de trabalho explorada na
economia escravista permanecia disciplinada dentro da própria unidade produtiva
agrícola. O momento em que o trabalho carcerário é institucionalizado como punição no
Brasil não é acompanhado de uma escalada industrial, pois esta só sobrevirá
hipertardiamente.
Entender esse aspecto é fundamental para que possamos caracterizar corretamente
função do Direito Penal na industrialização tardia do capitalismo atrófico brasileiro. É
que elementos de permanência e de ruptura se seguirão no modelo jurídico-penal das
décadas seguintes. Não é por coincidência que o governo republicano em 1890, na figura
do ministro da justiça Campos Salles, convidaria Batista Pereira - o mesmo jurista que o
governo imperial convidou para a reforma do Código Criminal de 1830 - para proceder
às adaptações na legislação que os novos tempos pós-abolição demandavam. Por outro
lado, se o velho permanece tributário do processo modernizador, a modernidade modifica
as formas com que certos problemas sociais se apresentam.
A transformação econômica que se enceta a partir do final do século XIX e atinge
o seu apogeu aos finais da década de 1940 compreende justamente o período em que o
salto na industrialização nacional foi capaz de reestruturar a vida social do país. Na
verdade,

12
Os dados dão conta de que, em 1855, na Casa de Correção de Fortaleza, dentre os réus 84,10% eram
trabalhadores livres e apenas 1,25% eram cativos, conforme se demonstram Filho, Mariz e Fontelles Neto
(op. cit., p. xxx) com base em relatórios da antiga Secretaria de Polícia da Província do Ceará.
292
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A passagem ao capitalismo não se iniciou, no Brasil, com a revolução política


burguesa de 1888-1891 [que inclui aspectos jurídicos]; mas essa transformação
superestrutural foi condição necessária para que o modo de produção
capitalista se tornasse dominante na formação social brasileira. As relações de
produção capitalistas germinaram no Brasil pós 1850: em algumas das
indústrias, instaladas nesse período, já se configurava a existência da relação
capital-trabalho assalariado, do processo capitalista de trabalho. Todavia, tais
relações coexistiam com as relações de produção servis (colonato, moradia,
quarta, etc.), que se difundiam no campo; e eram, como estas, subordinadas às
relações de produção escravistas, dominantes. A extinção legal da escravidão
e a formação do direito burguês (capacidade jurídica para todos os
homens, contrato de trabalho, etc.) imprimiram, entretanto, um novo
ritmo – inviável sob um Estado escravista [...] – ao desenvolvimento do
mercado de trabalho urbano e, consequentemente, à difusão do trabalho
assalariado industrial. Essa transformação jurídico-política, de um lado,
"libertou" uma parte dos trabalhadores do campo (escravos) e os
constituiu em ofertantes de sua força de trabalho no mercado urbano;
permitiu, de outro lado, a "libertação" de massas camponesas em outras
formações sociais (Itália, Espanha, Portugal), e converteu grande parte delas
(após breve passagem pelo campo) na componente central do mercado de
trabalho urbano (Saes, 1985, p. 347-8).

O novo ciclo econômico que se inicia no Brasil com o fim da escravidão traz
consigo outros problemas sociais. Desemprego e desordem urbana ganham dimensões
muito maiores e contornos diferentes daqueles pré-novecentistas. A legislação penal de
1890 passa a se ocupar detidamente da vadiagem. Em junho de 1893, o decreto n° 145,
também na mesma esteira, determina que a pena de prisão correcional será cumprida em
colônias fundadas pela União ou pelos Estados para a reabilitação de mendigos válidos,
vagabundos ou vadios, capoeiras ou desordeiros.
É interessante o fato de que, a partir desse momento, um regime carcerário começa
a se desenvolver para acomodar a crescente preocupação com os pequenos crimes e com
a resultante repressão policial de práticas antes toleradas (CHAZKEL, op. cit., p. 7-8).
Juridicamente, surge a figura das contravenções penais, infrações consideradas de menor
potencial ofensivo e com penas menores do que os fatos considerados crimes. Novas
colônias penais surgem para abrigar pessoas condenadas por contravenções,
especialmente a impopular Colônia Correcional de Dois Rios (idem). Os impactos dessa
nova realidade se revelam nos números da Casa de Detenção do Rio de Janeiro, cujos
registros de entrada, na década de 1890, demonstram que instituição alojou mais
indivíduos condenados por contravenções do que por qualquer infração mais séria. Em
1890, 60% das pessoas trazidas para a Detenção foram detidas por embriaguez,
vadiagem e comportamento desordeiro (idem).
A legislação penal de 1890 estrutura de modo mais amplo e sistemático as
condutas criminalizadas e a forma de combater e puni-las. Mas a realidade da escassez de
estabelecimentos para o cumprimento das penas permanece a despeito das mudanças.
Ainda que a maioria dos crimes previsse a prisão celular como pena (modalidade que
envolvia trabalhos dentro do presídio) não existiam estabelecimentos desse tipo para o
cumprimento (DI SANTIS; ENGBRUCH, 2016, s/p). Se tomamos como exemplo o ano
de 1906 no estado de São Paulo, podemos observar que foram condenados 976 presos no
estado de São Paulo à prisão celular, mas existiam apenas 160 vagas, portanto 816
presos (90,3%) cumpriam pena em condições diversas àquela prevista no Código Penal
vigente (idem).
O período que se inaugura com república observa também, em seu projeto
jurídico-penal, a premência de outra questão: a repressão aos opositores e agitadores,
especialmente, os movimentos de trabalhadores e os grupos anarquistas e comunistas –
tendência que seguirá como marca decisiva da legislação penal da primeira metade do
293
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século XX. Basta observar atentamente o Título I do livro que trata dos crimes em espécie
no Código Penal de 1890, cujo nome sugestivo é “Dos crimes contra a existência política
da república”, para perceber a preocupação aguda do Estado brasileiro em deter qualquer
sorte de oposição política. A densidade de uma pequena amostra do número de presos na
Colônia Penal de Clevelândia (Oiapoque - Amapá), que iam desde anarco-sindicalistas
ao tenentistas e comunistas, não nos deixa mentir: dos 946 presos lá internados entre
1924 e 1927, 491 morreram, ou seja, mais da metade (SALVEMINI, 2003, p. 112).
De modo geral, o período que se estende de 1890 a 1937 é marcado por uma série
de rígidas intervenções do Estado na organização da vida cotidiana do país. As reformas
higienistas realizadas no antigo centro do Rio de Janeiro e a criminologia de matriz
lombrosiana de Nina Rodrigues13 são grandes exemplos de como a modificação das bases
econômicas na transição do capitalismo de matriz agroexportadora para o capitalismo
industrial se adaptou para forjar um novo tipo de indivíduos, habituados a uma nova
sociabilidade, marcada pela voracidade da exploração do trabalho industrial. Mas os
detalhes desse momento histórico, sobretudo quando contrastados com o período após
1937, serão objeto de análise mais detida à frente.

O ideário de Hungria como expressão da realidade dos novos tempos


De 1890 a 1930 o Estado brasileiro é dirigido pela fração agroexportadora da
burguesia nacional. O momento de transição da forma política do império para a forma
política da república é marcado por uma série de convulsões internas. A própria
transformação econômica em curso coloca na ordem do dia problemas sociais decorrentes
de uma crescente população urbana miserável, seja a miséria do desemprego ou a miséria
do trabalho degradante nas fábricas.
Neste período, as condições de trabalho na indústria são pavorosas e o cotidiano
particular de um modo de produção fundado na indústria ainda não foi socialmente
fixado. Ao nosso ver, é possível compreender melhor esse período à luz da experiência
inglesa. O que Marx chamou de legislação sanguinária n’O Capital se ocupou
justamente de violentar, através do Direito, as massas que constituíam o nascente
proletariado, destituídos das antigas relações de produção feudais. Assim, no momento
em que, na Inglaterra, por exemplo,
Expulsos pela dissolução dos séquitos feudais e pela expropriação violenta e
intermitente de suas terras, esse proletariado inteiramente livre não podia ser
absorvido pela manufatura emergente com a mesma rapidez com que fora
trazido ao mundo. Por outro lado, os que foram repentinamente arrancados de
seu modo de vida costumeiro tampouco conseguiam se ajustar à disciplina da
nova situação. Converteram-se massivamente em mendigos, assaltantes,
vagabundos, em parte por predisposição, mas na maioria dos casos por força
das circunstâncias. Isso explica o surgimento, em toda a Europa ocidental, no
final do século XV e ao longo do século XVI, de uma legislação sanguinária
contra a vagabundagem. (MARX, 2010, p. 280)

Assim, hipetardiamente e sob as bases sociais da herança do escravismo colonial,


a disciplina coercitiva do Direito, nessa fase de desenvolvimento do capitalismo
brasileiro, se ocupa de forjar o indivíduo moderno. Aqui, o Direito Penal é importante
esteio econômico não em termos de produtividade com o trabalho (de fato pouco
expressivo) dentro do cárcere. Mas, mesmo assim, a programação criminalizante da
primeira República espelha [...] as contradições de um sistema penal que participava
decisivamente da implantação da ordem burguesa. (BATISTA; ZAFFARONI, op. cit.,
p. 456). Para o funcionamento dessa nova ordem, é necessário obrigar os trabalhadores
livres a venderem-se voluntariamente e nesse sentido opera o Direito na sua função

13
Cf.
294
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

ideológica de dirimir os conflitos surgidos na ordem social, colocando-se, como violência


extraeconômica direta sobre o proletariado recém-nascido no Brasil. O melhor exemplo
disso é modalidade das contravenções penais, conceito jurídico criado para a repressão
de práticas comuns às parcelas marginais no processo de constituição do proletariado
moderno, principalmente manifestas na preocupação da legislação de 1890 com a
vadiagem e com comportamentos inúteis à rotina do trabalho assalariado, como a
embriaguez. Até mesmo a existência de institutos correcionais para menores de 09 a 14
anos que não infratores mas que tão somente encontravam-se em situação de abandono
denuncia a função disciplinadora que o Direito Penal pôde cumprir na forja de novas
individualidades.
A partir da década de 1930 se delineia uma nova forma política na qual, por meio
do Estado, o patronato de forma “passivo-agressiva”, ataca as organizações de
trabalhadores com o intuito de desarticular as lutas por transformações sociais no terreno
da economia, mas dá à classe trabalhadora assistência social em forma de direitos. No
Direito Penal, a dureza da legislação sanguinária à brasileira pode se afrouxar após quase
40 anos de mãos de ferro. Batista e Zaffaroni afirmam mesmo que
Não há comparação possível entre o regime legal da primeira República e o da
lei de contravenções penais de 1941, mesmo considerando-as medidas de
segurança, essa cruel e festejada novidade que os tribunais, no tema específico
da vadiagem e da mendicância, reduziriam drasticamente. A criminalização da
vadiagem é quase um dado estrutural do capitalismo industrial, e por tanto, não
poderia estar ausente da conjuntura em exame; contudo, a disciplina legal da
República agroexportadora a respeito foi inquestionavelmente mais severa.
(ibid, p. 463)

Exemplo maior disso são os decretos nº 19.445 de 1930 e nº 21.946 de 1932, por
meio dos quais Getúlio Vargas indultou todos os condenados e acusados por vadiagem e
capoeiragem.
A despeito de que subsista no ideário dos juristas de 1940 a questão do trabalho,
ela permanece apenas como espantalho, posto que a não efetivação de um sistema
carcerário voltado para a massificação do trabalho industrial continua contradizendo a
vontade dos legisladores. A realidade é que, em termos de reprodução material da vida, a
própria compulsão econômica torna-se por si só capaz de empurrar os indivíduos para o
trabalho assalariado, conforme se verá. Por isso,
O próprio Nelson Hungria se insurge, pois
[...] as medidas de segurança referidas no artigo 88, § 1º, III do Código Penal,
tem finalidade exclusivamente “reeducativa”. Também aqui a reeducação tem
como base central o trabalho individualizado, a que se aliam, naturalmente,
outros métodos “ortopsíquicos” ou de pedagogia corretiva [...]. Já não se trata
de lidar com anormais orgânicos ou constitucionais, mas com indivíduos que,
em geral, insuficientemente dotados de resistência volitiva e sob a desnorteante
influência de circunstâncias diversas, notadamente o meio inferior em que
cresceram ou vivem, o adquirido hábito de aversão ao trabalho regular e a
carência de orientação educativa [...]. (HUNGRIA, 1951, p.).

Consultando-se a letra fria do próprio Código Penal de 1940 é possível obter um


demonstrativo desses elementos se percebemos que, a medida de segurança detentiva –
modalidade que consiste na internação em colônia agrícola, instituto de trabalho, de
reeducação ou de ensino profissional – direcionava-se sobretudo aos criminosos
claramente identificáveis àqueles das parcelas marginais (ociosos, vadios e prostitutas).
Hungria assevera ainda que os institutos de trabalho, reeducação ou ensino profissional
deverão aproximar-se tanto quanto possível, dos estabelecimentos congêneres para
operários ou aprendizes livres (HUNGRIA, 1944, p. xx).
Os dados da realidade, porém, na contramão dos próprios objetivos manifestos na
legislação, dão conta de que
295
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
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os dispositivos dos Códigos Penal e Processual Penal, no que respeita à


instituição e execução das medidas de segurança detentivas, ainda não
passaram de pano de boca. À parte dos superlotados manicômios judiciários,
na sua maioria já instalados ao tempo da legislação anterior, inexiste qualquer
dos estabelecimentos reclamados pelo novo sistema de prevenção contra
delinquência. A “colônia agrícola” e o “instituto de trabalho, de reeducação ou
de ensino profissional” estão sendo irrisoriamente substituídos por uma
problemática “liberdade vigiada”, que nem sequer foi ainda devidamente
regulamentada. (HUNGRIA, 1944, p. xx)

Por mais que essa constatação de Hungria pudesse dar indícios da predominância
da finalidade disciplinadora no projeto jurídico-penal de 1940 em virtude da centralidade
do fator trabalho também no instituto da liberdade vigiada (já que segundo o art. 767 do
Código de Processo Penal de 1941, para ser beneficiário da liberdade vigiada, era
condição obrigatória que o condenado devesse tomar ocupação, dentro de prazo
razoável, se for apto para o trabalho), o que é mais relevante na afirmação do autor, em
verdade, é o fato de que execução das penas voltadas para o disciplinamento e a própria
construção das unidades onde se cumpririam essas penas nunca se efetivou
satisfatoriamente, nem mesmo no momento de objetivação do capitalismo nacional.
Para entender as razões dessa mudança no tratamento do Direito Penal com
relação a esse aspecto disciplinador do modo de vida, é necessário perceber que, com o
desenvolvimento das relações de produção no capitalismo, educação, tradição e hábito
(MARX, op.cit, p. 283) passam a atuar sobre os trabalhadores de modo que, com o passar
do tempo, eles mesmos reconhecem as exigências desse modo de produção como “leis
naturais” (ibid., 284). A violência extraeconômica (do Direito Penal, por exemplo)
permanece sendo empregada no cotidiano da dominação de uma classe pela outra no
capitalismo, mas ela perde a sua intensidade, pois a coerção muda exercida pelas relações
econômicas sela o domínio do capitalista sobre o trabalhador (ibid. 283).
Um paralelo entre dois momentos históricos pode nos ajudar a compreender a
questão: se nos tempos da escravidão a importância de um sistema punitivo e
disciplinador da força de trabalho centralizado na figura do Estado era secundária em
razão de que a disciplina se aplicava pelo exercício punitivo dos próprios senhores de
escravos dentro da unidade agrícola (o tronco e a chibata), já nos tempos do trabalho
assalariado industrial, um sistema punitivo cujo escopo fosse o adestramento das massas
para o trabalho fabril também seria igualmente secundário, visto que a existência de um
grande exército industrial de reserva (oriundo da abolição da escravidão) em condições
de reprodução miseráveis (decorrentes dos baixos patamares de remuneração repostos
pela superexploração, como se verá) é em si mesma mecanismo de controle da força de
trabalho, pois, no limite, a particularidade da indústria nacional implica uma atrofia
incapaz de absorver o gigantesco contingente de mão de obra disponível.
Quanto a persistência do tema do trabalho no ideário dos juristas e da existência
de fato de algumas oficinas de formação profissional dentro das instituições, Rusche e
Kirschheimer apontam para uma tendência mais ou menos genérica de que o trabalho
carcerário permaneça um problema central, a despeito do fato de haver perdido seu
significado econômico nos países de capitalismo industrial altamente desenvolvido
(Rusche e Kirschheimer, op. cit., p. 209). No Brasil, a cronologia do cárcere e do Direito
se expressa em termos similares: surgem os preceitos do trabalho carcerário na legislação
de 1830 sem que a materialidade das relações sociais comporte a sorte deste tipo de
projeto jurídico-penal; a partir de 1890 a punição se alça de fato ao status de mecanismo
necessário de adestramento para a nova rotina do trabalho assalariado (trabalhando muito
mais na forja das individualidades do que na produtividade da força de trabalho) que se
choca com as contradições da recém abolida escravidão e, finalmente, aos fins de 1930,
ainda que persista a noção de trabalho ressocializador no ideário e na legislação, a
296
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objetividade de uma nova fase de alta industrialização na economia nacional e de um


grande contingente populacional excedente vai aos poucos afrouxando o rigor punitivo
contra a “vadiagem”, pois a compulsão econômica torna-se ela mesma a polícia, o juiz
e o carcereiro.
Mas este não é o único aspecto de que o pensamento de Hungria relevante em
termos ideológicos. Bem sabia Hungria que a primeira marca do Estado Novo na
legislação penal foi a sua nova diretriz na repressão da criminalidade política.
(HUNGRIA, 1941-A). Um movimento sindical fortalecido e cada vez mais influenciado
por direções de partidos abertamente comunistas era talvez a principal preocupação do
novo governo com relação às possíveis ameaças de instabilidade política. Nas palavras
do penalista,
na atual fase de não conformismo ou de espírito de rebeldia contra as
instituições políticas ou sociais, a defesa destas, sob o ponto de vista jurídico-
penal, reclama uma legislação especialíssima, de feitio drástico, desafeiçoada
aos critérios tradicionais do direito repressivo. (HUNGRIA, 1941-B)

O pensamento do autor exprime bem a bandeira geral, no terreno da política,


defendida sob a insígnia do Estado Novo: nem curvar-se ao liberalismo extremado dos
mercados desregulados e muito menos permitir qualquer avanço dos movimentos de
esquerda. É que, como diz Hungria,
Com o Estado Novo, já não é isso compreensível. Não é admissível, de modo
algum, seja qual for a razão, política ou econômico-social, que o indivíduo se
ponha em atitude negativa contra o Estado. Se o conflito se verifica e a
atividade subversiva do indivíduo se estende até o domínio do direito penal,
ofendendo interesses vitais da coletividade, interesses que são os interesses
políticos do Estado, o crime por ele praticado ao invés de merecer
benevolência, deve ser reprimido com máxima severidade, com maior
severidade do que a empregada contra os crimes lesivos dos interesses
simplesmente individuais. (HUNGRIA, 1941-A)

Aqui se vê bem justificada a Lei de Segurança Nacional de 1935 que, embora não
tenha Hungria participado de sua elaboração, acabou por tornar-se, para ele, objeto de
elogio. Assim, assevera:
Caiu, assim, a barreira que a tradição liberal criara entre a criminalidade
política e a criminalidade comum. Era preciso abolir a superstição liberal de
que a revolução é um direito implícito do indivíduo, e o Estado Novo não
recuou sequer diante da extrema ratio: a decretação da pena de morte contra
os rebeldes de armas na mão. Revogaram-se as prerrogativas do delinquente
político: já não se reservam para este sanções privilegiadas; extinguiu-se a
custódia honesta; instituiu-se um tribunal especial, com regras de processo
derrogativas da justiça normal de modo a assegurar a punição pronta, rigorosa
e inexorável dos delitos políticos. (HUNGRIA, 1941-A).

Se consultamos a historiografia, é possível verificar o contorno que a repressão


aos crimes políticos adquiriu no período do Estado Novo, o que, para nós, coloca-se para
além de meras expressões “simbólicas” de dominação ou de uma suposta dicotomia entre
Estado e indivíduo (como preferem alguns). Na verdade, a repressão aos delitos políticos
foi condição mesma de afirmação da “superioridade de armas” da burguesia nacional
sobre os movimentos dos trabalhadores, estilhaçando desde muito pronto e sem maiores
dificuldades qualquer burburinho de insurgência popular que ameaçasse a lógica da
reprodução econômica em curso. É o que singelas estatísticas podem demonstrar:

Tecnicamente no brasil estavam registrados como ocupantes das prisões


apenas aqueles que haviam efetivamente sido condenados. O número de
pessoas encarceradas, por isso, era aparentemente pequeno e, à primeira vista,
não causava qualquer surpresa. O Cadastro Penitenciário Estatístico do Brasil,
por exemplo, informa que em 1934 estavam cumprindo pena em todo o país
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6.123, dos 46.228.607 habitantes, o que correspondia a 0,000103 por cento da


população [...] Os números sobre os reclusos que o Conselho Penitenciário
apresentava através da Inspetoria Geral eram alheios à realidade criminal do
país. A Polícia possuía o poder de promover o encarceramento de pessoas sem
condenação formal da Justiça. Expediente que cada vez mais estava sendo
usado pelas autoridades policiais. Em 1938, só na cidade de São Paulo, foram
vítimas de detenções policiais e correcionais 46.336 pessoas, em 1929, 48.742;
em 1940 48.361, em 1941; 45.786; e em 1942, 47.789 indivíduos foram presos
pela polícia. Estes números representam mais do que sete vezes a soma dos
condenados em todo o país no ano de 1934. (CANCELLI, 1991).

Mas se a repressão aos delitos políticos é certamente um aspecto fundamental para


a compreensão do projeto jurídico-penal típico da fase superior de objetivação do
capitalismo hiper-tardio nacional, há que se frisar que não é o único. Como se observa,
nos próprios termos de Hungria,
O direito penal no Estado Novo não propugna somente o princípio da
autoridade, o reforço do poder estatal, mas também a afirmação do instinto
coletivo, a subordinação racional do indivíduo ao interesse geral. Haja vista a
lei de repressão dos crimes contra a economia popular, que veio eliminar a
liberdade do aproveitamento egoístico e abolir a lei da jungle do terreno
econômico. O Estado Novo não vacilou em interferir até mesmo na esfera dos
contratos privados, para coibir o exercício abusivo de direitos e a escravização
dos fracos pelos fortes (HUNGRIA, 1941-A, p. 14) .[...] Batendo no mesmo
rumo de anteposição do bem geral a o interesse individual, o projeto assume a
proteção do trabalho, incriminando a greve, o lock out, a boicotagem, a
sabotagem, etc. Não o inspira, neste particular, o pensamento de proteção a um
direito de liberdade, como acontece com a lei vigente, mas o objetivo de tutela
do interesse coletivo sob o ponto de vista econômico. (HUNGRIA, 1941-A)

A própria letra do Código Penal de 1940, do qual Hungria foi coautor, nos ajuda
a compreender melhor a abrangência e a relevância dos chamados Crimes Contra
Economia Popular. Se examinamos os tipos penais descritos no Título III – Dos crimes
contra a propriedade imaterial ( que abrange o capítulo II - Crimes contra o privilégio
de invenção, capítulo III - Crimes contra as marcas de indústria e comércio e capítulo IV
- Crimes de concorrência desleal) e Título IV - Crimes contra a organização do trabalho,
conseguimos perceber o sentido cristalino de uma legislação voltada para a regulação do
mercado, não só homogeneizando patamares de concorrência entre industriais e
comerciantes, mas também coibindo a amplitude de movimentos de trabalhadores que
interferissem na produção (o que, certamente, limita o próprio poder de negociação dos
trabalhadores, visto que, tendo sido restringida a sua capacidade de cessar a produção
industrial, seu poder de barganha nas negociações com o patronato decai – isso sem
mencionar a ampla margem criada pelos tipos penais do título IV no sentido da
criminalização dos movimentos de trabalhadores).
Além destes dois aspectos determinantes ao progresso do projeto econômico
nacional materializados no pensamento de Hungria (repressão aos delitos políticos e o
ideário do trabalho), podemos ainda identificar mais uma questão sintomática dos
imperativos da objetivação do capitalismo hipertardio na construção do novo projeto
jurídico-penal brasileiro na década de 1940: a administração política da pobreza.
Como os novos imperativos da industrialização permitem que o cárcere fixe condições
de vida degradantes em face da superpopulação endêmica deste momento histórico e, ao
mesmo tempo, a objetivação do capitalismo começa a dispensar a violência do Direito
enquanto demiurgo de uma nova sociabilidade apta ao cotidiano industrial, o cárcere e o
Direito Penal como um todo começam a cumprir um papel um tanto diferente no caso
brasileiro.
O direito e a política, enquanto alternativas para a resolução dos conflitos sociais
emergentes, pugnam alternadamente pela assistência e pela repressão criminalizante, tal
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como se deu durante a longa história da gênese do cárcere na Europa. (MEDRADO,


2017, p. 20). Nesse sentido, uma passagem do próprio Marx pode nos elucidar:
A primeira coisa que a Inglaterra tentou, portanto, foi acabar com o pauperismo
por meio da beneficência e de medidas administrativas. Depois, ela não
encarou o avanço progressivo do pauperismo como consequência necessária
da indústria moderna, mas como consequência do imposto inglês para os
pobres. Ela compreendeu a penúria universal como uma mera particularidade
da legislação inglesa. O que antes era derivado de uma falha na beneficência,
passou a ser derivado de um excesso de beneficência. Por fim, a miséria foi
vista como culpa dos miseráveis e, como tal, punida neles mesmos. O
significado universal que a Inglaterra politizada extraiu do pauperismo
restringe-se a isto: no desdobramento do processo, apesar das medidas
administrativas, o pauperismo foi tomando a forma de uma instituição
nacional, tornando-se, em consequência, inevitavelmente em objeto de uma
administração ramificada e bastante ampla, uma administração que, todavia,
não possui mais a incumbência de sufocá-lo, mas de disciplina-lo, de
perpetuá-lo. Essa administração desistiu de tentar estancar a fonte do
pauperismo valendo-se de meios positivos; ela se restringe a cavar-lhe o
túmulo, valendo-se da benevolência policial, toda vez que ele brota da
superfície do país oficial. O Estado inglês, longe de ir além das medidas
administrativas e beneficentes, retrocedeu aquém delas. Ele se restringe a
administrar aquele pauperismo que, de tão desesperado, deixa-se apanhar e
jogar na prisão (MARX, 2010a, pp. 34-35)

Parece-nos bem evidente que a mudança de postura na política criminal a partir


de 1930 (antes mencionada por nós na redução das prisões por contravenções, por
exemplo) consubstancia na realidade brasileira algo bem parecido com a experiência
inglesa. E isso se torna tanto mais provável quanto nos aproximamos das inovações que
o período do governo Vargas enceta. A mudança na relação com a pobreza foi tensionada,
em grande parte, pela atuação dos trabalhadores em mobilizados em lutas por garantias
mínimas – lutas que marcam a primeira metade do século XX. Mas a resposta dada a
essas pressões, em meio ao pacto entre frações burguesas e à consolidação do capitalismo
no país, foi uma resposta política amplamente imbrincada também numa resposta
jurídica. Se a CLT é uma alternativa para a resolução dos conflitos sociais em torno da
questão do trabalho em harmonia com a característica que sustenta o direito enquanto
fenômeno ideológico, a mudança de postura com relação à criminalização da pobreza
segue a mesma lógica. Se a repressão dura e simples dos movimentos de trabalhadores
ameaçava colocar em risco a hegemonia burguesa do controle do mercado de trabalho,
gerando revoltas sucessivas entre os operários, a repressão dura e simples contra as
parcelas desocupadas da classe trabalhadora também se expunha aos mesmos efeitos.
Assim como o Direito e o Estado no período não negam os conflitos sociais na
questão do trabalho, reduzindo-os a mero “caso de polícia”, também não negam mais
a pobreza, reconhecendo inclusive a sua origem. É, nas próprias palavras de Nelson
Hungria, refletindo sobre sobre A criminalidade do homem de cor (sic):
E vamo-lo encontrar nos albores da República completamente desajustado às
novas condições de vida com que teria de se defrontar... O que não houve
realmente foi a proteção social e a assistência econômica aos negros libertos.
E esse foi o grande erro dos próceres do abolicionismo e dos teóricos da
República. Mais de meio milhão de negros escravos foram abandonados à sua
própria sorte. Que sabemos dessa grande massa que abandonou subitamente as
fainas agrárias apara as novas condições econômicas que surgiram nos
primórdios da República? Enquanto que os imigrantes recém-vindos tinham a
proteção do Estado, aqui entravam protegidos pelas leis, com seus contratos de
trabalho assegurados, com todas as garantias e vantagens de ordem social e
econômica, os negros eram atirados inermes, desajustados, abandonados, ou
mesmo escorraçados e vítimas da vingança inconsciente dos seus senhores de
ontem, às novas condições de vida e de trabalho, às quais não se achavam
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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
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adaptados... [...] Houve então uma enorme desorganização da sua


personalidade. Inadaptado às novas condições sociais, deseducado, insciente
das novas necessidades da civilização industrial que começava, o negro foi
engrossar a cauda dos desajustados, dos “chomeurs”, dos vagabundos das
estradas ou da multidão de mendigos e desocupados das cidades. Fenômeno
do mais puro desajustamento da personalidade às nova condições a que não se
achava adaptado... (HUNGRIA, 1951, p.)

Se o tema da formação racial da população brasileira e do racismo dissimulado


dos ideólogos das ciências sociais do século XX merece brochura própria, nos é dada a
vênia de focarmo-nos naquilo que se encontra nas entrelinhas do pensamento de Hungria,
tomando seu recorte sobre a população negra, na verdade, como uma amostra geral sobre
as camadas empobrecidas no Brasil, sobretudo a que se origina do contingente recém
liberto das relações de escravidão. Assim, aduz o próprio penalista que o combate à
elevada delinquência dos homens de cor, é, antes de tudo, um problema econômico e de
educação social (idem) e prossegue:
A nossa atual legislação trabalhista, visando atenuar as profundas diferenças
dos padrões de existência, tem redundado, não há dúvida, em benefício da
situação econômica dessa infortunada gente, mas isso não basta. O que eles
precisam, primordialmente, é de ser socialmente amanhados desde a infância,
mediante um programa de educação ativa que os coloque em plano idêntico ou
condição de igualdade com os brancos [...]. É essa a educação que poderá
libertá-los efetiva e definitivamente da fatalidade do pauperismo. Ou metemos
ombro a essa empresa ou teremos de assistir à progressão indefinida do número
dos homens de cor que procuram suprir pelo crime ou derivar no crime
indistintamente as suas vantagens sociais e econômicas. E urge que se arroste
essa tarefa pois outro grave perigo já se esboça em nossos horizontes político-
sociais: os homens de cor estão servindo de lenha ao fogacho da propaganda
comunista [...]. (ibid. p. 28).

Tal sorte de indícios nos permite afirmar com alguma tranquilidade muito que, se
o próprio ideólogo da legislação penal de 1940 não hesita em afirmar que o risco da
permanente situação de mazela social conduz a “propaganda comunista” e que a
legislação trabalhista e a educação tem o condão de tornar menos miserável a vida dessa
parcela da classe trabalhadora, poucas dúvidas podem restar a respeito do papel através
do qual o cárcere integrará a sistemática do projeto jurídico-penal da burguesia brasileira.
Assim, como na Inglaterra observada por Marx, o Estado brasileiro também não vai além
das medidas administrativas e beneficentes, restringindo-se a administrar, política e
jurídico-penalmente o pauperismo, para diluir a densidade dos conflitos sociais a favor
da classe dominante.

Conclusão

O Direito na via colonial desempenha com protagonismo o papel de catalisar


transformações sociais necessárias ao desenvolvimento da fase superior de objetivação
do capitalismo industrial. Se isso se torna bastante evidente nos idos de 1930 e 1940 conta
com ampla participação do empresariado14 na elaboração das leis trabalhistas e sociais
(PAÇO CUNHA, 2017, p. 16), também é possível perceber um prolongamento dessa
lógica por outros ramos jurídicos, como o Direito Penal, ainda que este não tenha sofrido
atuação direta do empresariado. O que em nada enfraquece a tese, pois as formas
ideológicas não são maniqueísmo de ordem mecânica e o jurista expressa, em última
instância, o próprio movimento da realidade econômica em seu modo de pensar e de

14
(cf. Gomes, 1979; Weinstein, 2000)
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intervir na realidade, ainda que a forma como ele apreenda tais fenômenos seja
necessariamente distorcida.
Daí porque o pensamento de Hungria possa ser considerado ideologia. Expoente
de um projeto jurídico-penal típico de um momento de objetivação industrial, seu
pensamento se defronta com os conflitos da realidade, não os podendo negar, tendo,
ainda, que dar respostas práticas para solucioná-los,
A partir de elementos do próprio pensamento de Hungria, pode-se notar que
questão penal se não se torna central, como se poderia objetar, expressa em seu
movimento fatores determinantes na construção da modernidade no Brasil. Se em 1830 o
Código Criminal do Império inaugura novas formas punitivas amparadas por um discurso
focado no trabalho, a realidade não concorre à efetivação dessas, pois a função
disciplinadora das punições encontra-se dissolvida nas próprias unidades agrícolas de
produção, nos termos da violência aparente do escravismo. Mas as mudanças econômicas
em curso por todo o mundo impulsionam transformações sociais que vão culminar com
a abolição da escravidão e no Brasil, em 1890, com a proclamação da República. A partir
daí, com o surgimento decisivo da direção industrializante na economia brasileira, o
Direito Penal passa a desempenhar um papel um tanto diferente.
A exemplo de experiências europeias, o Direito Penal se encarrega de integrar à
nova rotina do trabalho industrial as individualidades ainda marcadas pelo ritmo colonial
de produção. Acentua-se a preocupação da legislação com novos delitos, plenamente
identificáveis com as práticas do proletariado nascente, recém liberado da escravidão
(como por exemplo a mendicância e a capoeira). Os conflitos entre capital e trabalho se
acentuam, a luta dos sindicatos se agrava nos centros urbanos e outros movimentos de
rebelião pelo interior do país colocam na ordem do dia a contestação da nova ordem. A
solução impetrada é a repressão impiedosa, expressão clara do bonapartismo brasileiro,
determinando a perseguição, a morte e a prisão de agitadores nos cantos mais hostis do
país e a expulsão de imigrantes considerados “subversivos”.
Mas se o Direito Penal, com todas as suas agências repressoras, socorre à forja de
uma nova sociabilidade durante o início do século XX, quando o próprio processo
econômico se torna, ele mesmo, capaz de compelir as massas ao cumprimento voluntário
da nova rotina da vida industrial, essa função perde o protagonismo. Assim, no momento
de objetivação do capitalismo no país, quando a burguesia industrial toma as rédeas do
jogo político, outras funções do Direito Penal tornam-se mais evidentes. É nesse sentido
que o cárcere expressa também a condição de superexploração da força de trabalho no
país, fixando como tendência no período os baixíssimos patamares remuneratórios e, por
outro lado, também se revela como alternativa política de administração do pauperismo
– tudo isso não só se prova pelo pensamento de Hungria, como é o ambiente mesmo em
que ele produz esse pensar, pensar este que se volta como alternativa prática de
intervenção na realidade enquanto projeto jurídico-penal.

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

A LEI E A PRODUÇÃO DAS CIDADES NO BAIXO AMAZONAS: UMA


CRÍTICA AO DIREITO POR MEIO DA EXPERIÊNCIA DE REVISÃO DA
LEGISLAÇÃO URBANÍSTICA DE PARCELAMENTO, USO E OCUPAÇÃO
DO SOLO DO MUNICÍPIO DE SANTARÉM-PA

Ana Beatriz Oliveira Reis


Universidade Federal do Oeste do Pará
reis.aboliveira@gmail.com

Resumo
Analisa-se nesse trabalho acadêmico a relação entre a lei e a produção das cidades no
Baixo Amazonas tendo o espaço urbano como lócus privilegiado para a compreensão do
fenômeno jurídico em sua condição estruturante do processo de acumulação. Por meio do
pensamento jurídico crítico, compreendemos que a forma jurídica corresponde às
concretas relações sociais, sendo sua finalidade garantir a imposição da sociabilidade do
capital. Essa análise se faz por intermédio da recente experiência de alteração da lei de
parcelamento, uso e ocupação do solo (Lei Complementar 07/2012) do município de
Santarém/PA, localizado na região do Baixo Amazonas. Verifica-se que a intensificação
do processo de urbanização na cidade de Santarém tem exigido novos aparatos legais para
legitimar as ações do poder público e do mercado que, muitas vezes, ocorrem à margem
da lei. Conclui-se, portanto, que o Direito assume papel central na estruturação desse
processo por meio do reconhecimento oficial das práticas do mercado e na criação de uma
equivocada ideia de que a legislação urbanística, ao operar a noção do dever ser, é capaz
de limitar a atuação do setor privado por meio da proteção dos interesses coletivos.

Palavras-chave: produção das cidades; crítica ao direito; Baixo Amazonas; legislação


urbanística; Santarém-PA.

THE LAW AND THE PRODUCTION OF CITIES IN THE LOWER AMAZON:


A CRITICAL TO THE RIGHT BY MEANS OF THE REVIEW EXPERIENCE
OF THE URBAN PLANNING, USE AND OCCUPATION LAW OF THE
MUNICIPALITY OF SANTARÉM-PA

Abstract
This article analyzes the relation between the law and the production of cities in the Lower
Amazon, assuming the urban space as a privileged locus for the understanding of the
juridical phenomenon in its structuring condition of the accumulation process. By means
of critical legal thinking, we understand that the legal form corresponds to the concrete
social relations, and its purpose is to guarantee the imposition of the sociability of
capital. This analysis is done through the recent experience of the Land use and
Subdivision Law alteration (Complementary Law 07/2012) of the municipality of
Santarém / PA, located in the region of Lower Amazonas. It is verified that the
intensification of the process of urbanization in the city of Santarém has demanded new
legal devices to legitimize the actions of the public power and of the market that, often,
occur outside the law. It is concluded, therefore, that the Law assumes central role in the
structuring of this process by means of the official recognition of market practices and

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

the creation of a mistaken idea that urban legislation, when operating the notion of being,
is able to limit the private sector through the protection of collective interests.
Keywords: Cities Production; Right critical; Lower Amazon; Urban Law; Santarém-PA.

INTRODUÇÃO
A pretensão desse trabalho acadêmico é analisar a relação entre a lei e a produção
das cidades no Baixo Amazonas tendo o espaço urbano como lócus privilegiado para a
compreensão do fenômeno jurídico em sua condição estruturante do processo de
acumulação. Por meio do pensamento jurídico crítico, compreendemos que a forma
jurídica corresponde às concretas relações sociais, sendo sua finalidade, garantir a
imposição da sociabilidade do capital. Essa análise se faz por intermédio da recente
experiência de alteração da lei de parcelamento, uso e ocupação do solo (Lei
Complementar 07/2012) do município de Santarém, no Estado do Pará, localizado na
região conhecida como Baixo Amazonas.
Para essa análise faz-se necessário, num primeiro momento, compreender o
espaço urbano no sistema de produção capitalista utilizando-se dos estudos realizados por
Jean Lojkine na década de 80 e pela recente abordagem de David Harvey no âmbito da
geografia urbana crítica.
É de extrema importância ainda pensar as especificidades da produção do
espaço urbano nas cidades nos países periféricos, em especial, na região do Baixo
Amazonas na qual situa-se a cidade de Santarém valendo-se aqui dos estudos sobre a
economia política da urbanização de Paul Singer realizados na década de 70.
Compreendido o papel do espaço urbano no processo de acumulação, passamos
a questão-problema norteadora desse trabalho: mas, afinal, qual o papel do Direito na
produção das cidades? A abordagem realizada aqui toma o fenômeno jurídico na sua
(intrínseca) relação com os processos econômicos e se faz por intermédio do pensamento
jurídico crítico marxista.
Para compreendermos a relação entre lei e a produção das cidades, valemos não
só da investigação teórica como também da recente experiência pela qual passou a cidade
de Santarém, o maior centro urbano do Oeste do Pará. Localizada às margens do rio
Amazonas no percurso entre a cidade de Manaus e Belém, duas grandes capitais da região
norte do Brasil, Santarém é a terceira maior cidade do Estado, sendo referência para vários
municípios, em especial, aqueles da região conhecida como Baixo Amazonas.
A intensificação da pressão do setor do agronegócio pela ampliação de
infraestruturas para o escoamento da produção de monoculturas e do mercado imobiliário
para o aumento da lucratividade dos seus negócios na região, tem causado muitos
impactos na vida cotidiana das santarenas e dos santarenos nas últimas décadas. O
processo de urbanização pelo qual passa a cidade de Santarém, sede da região
metropolitana de mesmo nome, encontra na lei (e no Estado) especial aliada às mediações
necessárias para que a sociabilidade do capital seja hegemônica na região em
contraposição aos outros modos tradicionais de reprodução da vida.
Trata-se, portanto, de uma investigação teórica e empírica que se vale das técnicas
de pesquisa de revisão bibliográfica, análise documental, legislativa e observação direta.
Não menos importante ressaltar que, a conclusão desse trabalho dependeu,
fundamentalmente, das inúmeras contribuições diretas e indiretas recebidas durante o I
Seminário Crítica da Economia Política e do Direito realizado no mês de maio de 2018
na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

O ESPAÇO URBANO E O SISTEMA DE PRODUÇÃO CAPITALISTA


A dimensão espacial da teoria da acumulação foi abordada por Karl Marx, já no
século XIX. Nas palavras de David Harvey, ainda que de forma fragmentária e
superficial, Marx conseguiu relacionar “o processo geral de crescimento econômico com
o entendimento explícito de uma estrutura emergente de relações espaciais” (HARVEY,
2006, p.41). Importante aspecto para entender a dimensão espacial da teoria da
acumulação é a compreensão do capital enquanto processo de circulação entre a produção
e a realização (consumo), sendo fundamental para a acumulação que a circulação se
expanda (HARVEY, 2006, p.71). A dimensão espacial desse processo, além de ser
essencial para a expansão e para a acumulação, também assume papel central nas soluções
para as crises do sistema de produção capitalista, neste caso, renovando as condições que
possibilitam novos padrões de lucratividade ou se expandido para novas regiões.
David Harvey, ao resgatar as ideias de Karl Marx, aponta a necessidade da
acumulação de minimizar os custos da circulação uma vez que “quanto mais longo o
tempo de giro do capital, menor é o rendimento anual da mais-valia” (HARVEY, 2006,
p. 48). A partir dessa necessidade, há aglomeração da produção em grandes centros
urbanos, onde há também a anulação do espaço pelo tempo.
Percebe-se, portanto, que é de suma importância que as infraestruturas urbanas
atendam a necessidade do capital de diminuir o tempo de circulação. E, além dessa
necessidade, diante da crise no sistema de produção capitalista, a infraestrutura que
outrora foi fundamental para garantir a expansão do capital, torna-se obsoleta, sendo
necessária destruição do espaço urbano, construindo-se um novo e que garanta outros
padrões de acumulação. Ou seja, o capitalismo não apenas constrói cidades, como
também as destroem para construir infraestruturas mais modernas.
Jean Lojkine na obra ‘O Estado Capitalista e a Questão Urbana’ afirma que a
cidade capitalista, além de ser o local onde se concentram os meios de consumo coletivo,
é também “o modo de aglomeração específica do conjunto dos meios de reprodução (do
capital e da força de trabalho) que se vai tornar, por si mesmo, condição sempre mais
determinante do desenvolvimento econômico (LOJKINE, 1981, p. 124).”
No contexto do capitalismo monopolista, Jean Lojkine apresenta ainda os limites
capitalistas da urbanização. A cidade capitalista surge como efeito da necessidade de
aumentar a taxa de lucro numa tentativa de se economizar (e socializar) os custos da
produção. Isso não significa, como alerta o autor, que o urbano seja desenvolvido para se
aumentar a produtividade do trabalho social (LOJKINE, 1981, p. 153). Primeiro porque
o aumento da composição orgânica do capital ratifica a tendência de queda da taxa de
lucro e, ainda, porque os diferentes agentes de produção do espaço urbano possuem
interesses antagônicos devido à concorrência e a fragmentação do espaço urbano imposto
pela renda fundiária urbana (não pela propriedade privada enquanto categoria jurídica).
Os limites encontrados à aglomeração racional urbana são: os limites de financiamento,
a concorrência anárquica entre os diferentes agentes que produzem o espaço urbano e,
por fim, a propriedade privada da terra (LOJKINE, 1981, p. 153).
Em linhas gerais, para compreender os limites do financiamento dos meios de
consumo coletivo, é necessário trazer aqui a seguinte distinção feita pelo autor entre
meios de circulação material e social e os meios de consumo coletivo. Enquanto aqueles
são condições indispensáveis ao processo de produção, estes estão relacionados apenas à
reprodução da força de trabalho. As despesas de consumo coletivo são despesas sem
retorno uma vez que não diminuem nem o tempo de produção e tampouco o tempo de

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circulação de capital (LOJKINE, 1981, p. 161). Outra característica dos meios de


consumo coletivo é que eles não são rentáveis, embora o grau de interesse do capital em
relação a esses meios varie.
Quanto aos limites decorrentes da concorrência anárquica, Jean Lojkine contrapõe
desenvolvimento econômico e urbanização. “A cidade capitalista desempenha, pois,
fundamental papel econômico no desenvolvimento do capitalismo mas, inversamente, a
urbanização é moldada, modelada, de acordo com as necessidades da acumulação
capitalista” (LOJKINE, 1981, p. 161).
Quanto ao último limite, qual seja, a propriedade privada, Lojkine questiona por
que até hoje não foi suprimido esse instituto arcaico tendo em vista que esse é uma
barreira à acumulação. Uma resposta meramente política, segundo o autor, seria atribuir
esse fato a importância das camadas médias de proprietários de terra necessários a garantir
a supremacia dos setores dominantes. Por outro lado, a explicação econômica desse fator
seria a progressiva apropriação, ainda que contraditória, da renda fundiária pelos “grandes
grupos monopolistas” (LOJKINE, 1981, p. 165).
Jean Lojkine relaciona o fenômeno da apropriação monopolista da renda fundiária
urbana às dificuldades relacionadas às ações de planejamento urbano uma vez que a
supressão da propriedade privada monopolista é também, em última análise, a supressão
do modo de produção capitalista. O autor pondera que a legislação só é capaz de
expropriar o pequeno proprietário não dando conta da complexa relação entre capital
monopolista e a renda fundiária, sendo que os grandes grupos econômicos passam a
influenciar cada vez mais as ações de planejamento e gestão das cidades.

A produção do espaço urbano nos países periféricos


O processo de urbanização nos países periféricos possui suas peculiaridades
embora, para Paul Singer, a dependência não seja a nossa distinção fundamental uma vez
que o desenvolvimento urbano está intrinsecamente relacionado à “maior ou menor
integração dos vários países no mercado capitalista internacional” (SINGER, 2014, p.
67). A aposta na dependência como traço distintivo, segundo Paul Singer, pode fomentar
a ideia de que o problema é o capital estrangeiro uma vez que o nacional produziria uma
urbanização mais justa.
Sobre a migração do campo para a cidade, Paul Singer aponta que são dois os
fatores de expulsão da população rural na América Latina, que, segundo o autor, em nada
tem a ver com a dependência. O primeiro deles deriva do aumento populacional
decorrente da ampliação do saneamento e da difusão de vacinas. Esse crescimento se
contrapõe a indisponibilidade física ou social de terras que, em muitos lugares, são detidas
pelos latifundiários. Caso a população não consiga elevar a produtividade da pequena
propriedade disponível por meio de técnicas que podem exigir a utilização de insumos
industriais, a saída para a cidade ocorre em decorrência dos “fatores de estagnação das
forças produtivas” no campo (SINGER, 2014, p.72).
Já o segundo são os “fatores de mudança das relações de produção” (SINGER,
2014, p.73). Estes ocorrem no contexto de reestruturação das forças produtivas
capitalistas por meio da conexão entre a economia de subsistência e o mercado por
intermédio da expansão das redes de transporte. Nesse contexto, há o aumento do
consumo de bens industrializados, reduzindo o cultivo voltado para o consumo local.
Logo, o deslocamento da população é resultado da liberação da força de trabalho
(SINGER, 2014, p. 73).
Para se entender, portanto, o significado histórico da urbanização em cada um
dos países latino-americanos, não basta verificar sua magnitude. É preciso

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verificar, antes de mais nada, se a migração rural é provocada por fatores de


mudança ou de estagnação. No primeiro caso, a urbanização é um aspecto
necessário do desenvolvimento das forças produtivas, cuja intensidade é
refletida pelo ritmo de crescimento das cidades. No segundo caso, a
urbanização meramente reflete a incapacidade do sistema de responder
positivamente ao desafio representado pelo crescimento populacional
(SINGER, 2014, p.73-74).

Paul Singer diz ainda que tanto a concentração urbana bem como a centralidade
das metrópoles são falsos problemas para compreender a urbanização, uma vez que
eventuais melhoras decorrem de um aperfeiçoamento do planejamento urbano, nos
limites do sistema de produção capitalista (SINGER, 2014, p.78). A questão central nessa
análise dever ser a concentração do capital, pois esta revela contradições centrais do
capitalismo uma vez que são superadas momentaneamente e, logo após, ressurgem de
forma mais grave (SINGER, 2014, p. 78-79).
No âmbito das relações entre cidade e campo, Paul Singer destaca ainda que se
trata de um processo no qual o capitalismo penetra numa economia não capitalista de
subsistência, desintegrando esta economia para integração àquela (SINGER, 2014, p. 79).
Contudo, na América Latina, a penetração do capitalismo na economia rural não
provocou uma revolução agrícola, pois na maioria dos países a agricultura permanece
tecnologicamente atrasada (SINGER, 2014, p. 80). Essa análise, em especial, favorece a
uma melhor compreensão da dinâmica econômica das cidades na Amazônia onde
processos modernos se articulam com processos tradicionais e a separação entre espaço
urbano e espaço rural é muito tênue.

A RELAÇÃO ENTRE LEI E A PRODUÇÃO DAS CIDADES


Mas, afinal, qual o papel do Direito na produção das cidades?
Primeiramente, faz-se necessário apresentar o que entendemos como Direito.
Embora existam concepções pluralistas no âmbito do pensamento jurídico crítico, é
importante ressaltar que compreendemos aqui que o fenômeno jurídico só adquire
especificidade na modernidade com o desenvolvimento das relações capitalistas. O
Direito estatal institucionalizado advém das concretas relações sociais sendo que a análise
do fenômeno jurídico passa necessariamente pela procura dos mecanismos e estruturas
que garantam a especificidade do Direito perante qualquer assunto, independente do
conteúdo (MASCARO, 2015, p. 7).
Em 1842, o jovem Karl Marx, critica a lei referente ao furto de madeira da região
da Renânia na antiga Prússia. Essa lei passou a proibir costumes locais da população que
recolhia madeira caída de florestas particulares para suas necessidades vitais (valor de
uso). Ao denunciar essa lei, por ir contra ao “direito consuetudinário dos pobres” (MARX,
2017, p.84), Marx nos contempla com importantes reflexões acerca da relação entre o
fenômeno jurídico e a acumulação.
Não se pode falar em direitos consuetudinários dos estamentos privilegiados.
Eles encontraram na lei não só o reconhecimento do seu direito razoável, mas
muitas vezes até o reconhecimento de suas pretensões desarrazoadas (...).
Porém, se esses direitos consuetudinários da pobreza são contrários ao conceito
de direito razoável, os direitos consuetudinários da pobreza são contrários ao
costume do direito positivo (MARX, 2017, pp. 86-87).

Karl Marx publica essas críticas na Gazeta Renana, jornal prussiano do século
XIX no qual foi editor. Na Gazeta Renana de nº 303, de 30 de outubro de 1842, Marx
expõe ainda as contradições do Estado que atua na defesa dos interesses dos proprietários.

310
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Essa lógica, que transforma o empregado do proprietário florestal em


autoridade do Estado, transforma a autoridade do Estado em empregada do
proprietário florestal. A estruturação do Estado, a determinação de cada uma
das autoridades administrativas, tudo precisa de desconjuntar para que seja
rebaixado à condição de meio do proprietário florestal e para que o interesse
deste apareça como a alma determinante de todo o mecanismo. Todos os
órgãos do Estado se convertem em orelhas, olhos, braços e pernas que o
interesse do proprietário florestal usa para escutar, espiar, proteger, agarrar e
correr (MARX, 2017, p. 104).

No ano de 1847, em “A miséria da Filosofia”, as críticas ao Direito se tornam mais


ásperas ao mesmo tempo em que a compreensão acerca da relação entre o fenômeno
jurídico e a mercadoria é amadurecida. Nessa altura, o jovem Marx conclui que “A
legislação, tanto política como civil, apenas enuncia, verbaliza as exigências das relações
econômicas” (MARX, 1985, p. 83) sendo que “o direito não é mais que o reconhecimento
oficial do fato” (MARX, 1985, p. 86).
Feita essas considerações iniciais por intermédio do pensamento marxiano, torna-
se imprescindível compreender as bases e pressupostos do Direito na reprodução da
sociabilidade capitalista. Para György Lukács, entre os dois polos essenciais à reprodução
do ser social, quais sejam o indivíduo e a totalidade da sociedade, torna-se fundamental a
mediação política. E, nesse momento, o Direito surge enquanto “mediação no complexo
social total, e como um complexo autônomo com legalidade própria no momento em que
a regulamentação dos conflitos sociais não é mais possível sem um estrato de
especialistas” (SARTORI, 2010, p.67). Estes especialistas devem, pelo menos
aparentemente, estarem acima das classes sociais.
Ao tratar especificamente o fenômeno jurídico, Vitor Santori ratifica o caráter
ideológico do “dever-ser” por intermédio da obra Lukacsiana. O dever-ser seriam
efetivados por meio das possibilidades históricas se se objetivar as teologias secundárias
(valor de troca).
O Direito, pois, não atua somente quando a “normalidade” é ameaçada: a
própria normalidade só se configura como tal pela mediação jurídica (...)
Aquilo que é considerado normal, pois, não pode ser dissociado das relações
sociais existentes, relações concretas marcadas pelo antagonismo inerente à
sociedade civil-burguesa e pelo posicionamento do homem como
personificação de uma relação social que se impõe no cotidiano mesmo com
ares de evidência (SARTORI, 2010, p.78).

Nesse momento, a pretensão de universalidade do fenômeno jurídico é apontada


como um dos objetivos da mediação feita pelo Direito ainda que indiferente a teologia
que permeia essa mediação. A “totalização mediadora” se apresenta nas expressões como
“vontade da lei” (SARTORI, 2010, p.80). Nessa mediação, a finalidade do Direito não
seria o alcance da justiça ou o bem comum, mas sim a reprodução da sociedade civil-
burguesa sendo a forma jurídica desta sociedade singular em relação a outras (SARTORI,
2010, pp. 83-84). Por intermédio da obra de György Lukács, Vitor Sartori conclui,
portanto, que “o Direito envolve o processo unitário e objetivo de imposição da
sociabilidade do capital, com tudo que isso implica (2010, p.117).”
A relação entre o fenômeno jurídico e o modo de produção capitalista também
foi observada por Evguiéni B. Pachukanis. Para o jurista russo, a correspondência entre a
forma mercantil e a forma jurídica na sociedade capitalista se verifica por meio da análise
do condicionamento histórico da norma jurídica que, para o jurista russo, se dá na própria
relação econômica. A finalidade da ordem jurídica é a circulação de mercadorias,

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desconsiderando-se a ideia de que o fenômeno jurídico ocorre por meio de uma submissão
incondicional à uma autoridade externa (PACHUKANIS, 2017, p. 110).
Para Pachukanis, a superação do sistema de produção capitalista passa
necessariamente pelo fim do momento jurídico. Portanto, não se trata apenas da
ressignificação do conteúdo do direito burguês por meio da criação de um direito
proletário, uma vez que o aniquilamento do direito significa a supressão do momento
jurídico das relações humanas (PACHUKANIS, 2017, p.78).
No âmbito do pensamento jurídico crítico, portanto, é no modo de produção
capitalista que o Direito se universaliza e se propõe a regular todos os campos da vida
social, embora, quanto mais se desenvolva, mais difícil se torna verificar essa relação com
a circulação mercantil, assumindo, cada vez mais, uma aparência de transcedentalidade.
No planejamento e das gestões da cidade, as leis são fundamentais para
legitimarem as ações do poder público e do mercado na criação de espaços capazes de
atender as necessidades da acumulação. Conforme já ressaltado por Henri Lefebvre na
obra “A revolução urbana”, o urbanismo não é uma técnica neutra manejada pelos
arquitetos e planejadores urbanos e sim um instrumento político instituído pelo Estado na
tentativa de criar homogeneização do espaço que se realiza por meio de uma concepção
abstrata e fragmentada (LEFEBVRE, 2002, p. 150). No capitalismo, o espaço abstrato
apresenta as seguintes peculiaridades:
O capitalismo e o neocapitalismo produziram o espaço abstrato que contém o
“mundo da mercadoria”, sua “lógica” e suas estratégias à escala mundial, ao
mesmo tempo que a potência do dinheiro e a do Estado político. Esse espaço
abstrato apoia-se em enormes redes de bancos, centros de negócios, de grandes
unidades de produção. E também no espaço das autoestradas, dos aeroportos,
das redes de informação. Nesse espaço, a cidade, berço da acumulação, lugar
da riqueza, sujeito da história, centro do espaço histórico, explodiu
(LEFEBVRE, 2002, p. 51).

Nesse contexto, a legislação urbanística cumpre papel essencial na dinâmica do


mercado, pois “além de estabelecer fronteiras, demarcando e dissolvendo territórios, as
normas que regulam a construção urbanística e o loteamento intervêm diretamente na
estruturação dos mercados imobiliários” (ROLNIK, 1997, p. 101).

A RECENTE EXPERIÊNCIA DE REVISÃO DA LEGISLAÇÃO URBANÍTICA


DE PARCELAMENTO, USO E OCUPAÇÃO DO SOLO EM SANTARÉM-PA

Compreender a questão urbana na Amazônia é uma tarefa demasiadamente


complexa que não se esgotaria nesse presente trabalho. Contudo, a recente experiência
pela qual passa a cidade de Santarém-PA, pode nos ajudar a compreender melhor a
relação entre o fenômeno jurídico e a urbanização.
Embora as cidades na Amazônia existam desde o período colonial, a
intensificação do processo de urbanização se deu na década de setenta por meio de uma
política nacional desenvolvimento baseada na expansão da fronteira agropecuária
(BECKER, 2013, p. 33) causando significativos impactos sociais e econômicos neste
território.
Bertha Becker, ao resgatar o processo histórico de ocupação da Amazônia, destaca
que a ocupação europeia aqui foi tardia em relação ao restante do Brasil. Esta ocupação
se realizou por meio de núcleos urbanos (CASTRO, 2008; BECKER, 2013) que eram
pequenos aglomerados de pessoas e serviços com poder mais simbólico do que efetivo de

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integração. Não houve condições, nem de acessibilidade nem de recursos econômicos e


político, para que as cidades pudessem crescer e muito menos para que organizassem
estruturas regionais.
As cidades na Amazônia, num primeiro momento, surgem a partir do boom da
borracha na época colonial, quando são criadas as primeiras vilas e povoados. Na época,
haviam duas motivações para a ocupação na Amazônia: demarcar a presença portuguesa
no norte (conquista territorial) e interesses econômicos (organização do sistema
extrativista).Praticamente todas as cidades eram portuárias sendo que obtiveram um
crescimento expressivo apenas aquelas cuja seus portos garantiam acesso para o mercado
externo, portanto, Belém (com acesso ao oceano Atlântico) e Manaus, com acesso
privilegiado ao médio Amazonas.
Nessa época, os seringais se caracterizavam como o lugar da produção e a cidade
como o local do comércio. A expansão urbana se realizou ainda através dos rios, por meio
da ocupação dos seus vales. Destaca-se ainda que os núcleos urbanos vieram antes do
desenvolvimento rural, sendo que essas cidades cresceram em surtos, ou seja, período de
cerca 20 a 30 anos de prosperidade de um determinado ciclo econômico e, depois,
declínio (BECKER, 2013, pp. 13-14). As dificuldades de integração enfrentadas pelos
núcleos urbanos na região permanecem até hoje.
Segundo Edna Castro, quanto a relação capital e trabalho aqui, a lógica econômica
articula-se com processos modernos x tradicionais numa constante interação entre cidade
e floresta. Boa parte da população que vive nas cidades da Amazônia mantem processos
de trabalho que decorrem do uso da floresta. Na Amazônia, predominam as cidades
pequenas e médias sendo um desafio para os estudiosos o fato de que a maioria dos
trabalhos acadêmicos utilizam categorias analíticas da teoria clássica da urbanização
(tamanho das cidades, hierarquização, redes urbanas) sendo que não se pode concluir pela
ausência ou presença de urbanização com base apenas na densidade demográfica.
Nesse contexto, as cidades amazônicas foram se estabelecendo com deficiências
de infraestrutura e equipamentos urbanos disponíveis, resultado de um processo histórico
em que os projetos para ocupação da região priorizaram capacitar a produção, sem
preocupações quanto a políticas públicas urbanas que ordenassem a estruturação das
cidades. Essas características mantêm a identidade das cidades amazônicas e formam um
tecido urbano particular.
O município de Santarém, localizado na região oeste do Estado do Pará, se
sobressai como principal centro urbano da região do Baixo Amazonas desde a economia
colonial. É a terceira maior cidade do Pará e no ano de 2012, tornou-se sede da região
metropolitana de mesmo nome compos1ta ainda pelos municípios de Belterra e Mojuí
dos Campos.
Recente pesquisa publicada evidencia as peculiaridades dessa metrópole que, nas
últimas décadas, passou a sofrer maiores pressões do agronegócio, voltado para a
produção da soja, e do mercado imobiliário. Nesse contexto, o espaço urbano da região
metropolitana de Santarém pode ser considerado ambivalente por, cada vez mais, atender
ao perfil hegemônico de cidade (cidades globais) e por ainda concentrar populações que
reproduzem modos seculares de vida como as populações ribeirinhas, povos tradicionais,
indígenas e quilombolas (GOMES et al., 2017).
Destaca-se ainda a simbiose entre espaço urbano e espaço rural, sendo esses
limites muito tênues embora, atualmente, emerjam novos conflitos sociais em Santarém
por acesso ao solo urbano e processos de luta por direitos relacionados à vida na cidade,
como a luta pela moradia protagonizada pelos moradores das ocupações urbanas, por

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exemplo, a ocupação Vista Alegre do Juá que reúne cerca de três mil famílias (REIS at
al., 2017).
É nesse lugar histórico-social específico que foi apresentado no mês de setembro
de 2017 o Projeto de Lei 1621/2017 proposto pelo vereador Antônio Rocha, presidente
da Câmara Municipal. O PL 1621/2017 teve por objetivo a alteração da Lei de
Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (Lei Complementar 07/2012).
Entre as alterações propostas pelo projeto de lei, destaca-se a mudança do
zoneamento do município, ampliando-se a zona urbana para áreas onde já existem
condomínios de alto padrão irregulares, o que poderia provocar a supervalorização do
preço da terra. Além disso, o PL 1621/2017 propunha a flexibilização da regulamentação
do uso e ocupação do solo permitindo, por exemplo, a atividade extrativista e mineral em
áreas de Zona de Proteção Ambiental.
A alteração dos limites dos gabaritos das construções foi uma das inovações mais
polêmicas, sendo questionada por diversos segmentos uma vez que permitia a
verticalização de grande parte da área central da cidade e, especialmente, da vila de Alter
do Chão, principal ponto turístico de Santarém, com edifícios de até 19 mestros. Ressalta-
se que nessa vila já existem construções iniciadas fora do padrão definido pela legislação
urbanística municipal e usos incompatíveis com as restrições definidas pela Lei
Complementar 07/2012.
Nesse sentido, a declaração do vereador Antônio Rocha é bastante significativa:
“A gente espera que esse projeto venha legalizar aquilo que nós precisávamos. Queríamos
construir uma casa, não podíamos, queríamos construir um muro, não podíamos. A
prefeitura não dava licença e as pessoas construíam por conta própria1.”
Destaca-se que o referido Projeto de Lei, em que pese o impacto das mudanças
propostas, foi desacompanhado de quaisquer estudos técnicos que justificassem tais
alterações. Esse fato, aliado à ausência de amplo debate participativo que envolvesse a
população local, ensejou a Recomendação Conjunta n.º 02/2017 do Ministério Público
do Estado Pará que advertiu ao Município de Santarém que suspendesse o Projeto de Lei
afim de que garantir: a realização estudos técnicos interdisciplinares; a apresentação e
execução de um plano de atividades informativas e consultivas com a população; a
realização de audiência pública com outras instituições como INCRA, ITERPA,
FUNAIS, dentre outras e, por fim, a realização de Consulta Prévia, livre e informada às
populações tradicionais atingidas pelas mudanças.2
Outra questão que motivou críticas de diversos segmentos da sociedade foi o
fato de que a discussão sobre a alteração da legislação urbanística se deu ao largo do
processo de revisão do Plano Diretor da cidade iniciado em julho de 2017. Sendo o Plano
Diretor o principal instrumento de política urbana, conforme definido pela Constituição
Federal no artigo 182, a lei de parcelamento, uso e ocupação do solo deveria ser alterada
sob a luz desse instrumento, e não o contrário. Além disso, o processo de elaboração e
revisão dos Planos Diretores deve ser, obrigatoriamente, participativo, o que poderia
dificultar, ao menos no âmbito da produção legislativa, o exercício da “democracia direta

1
Câmara aprova construções em áreas de APP e no entorno de rodovia que dá acesso a Alter do
Chão. Portal G1 Santarém. 12 de dezembro de 2017. Disponível em: https://g1.globo.com/pa/santarem-
regiao/noticia/camara-aprova-construcoes-em-areas-de-app-e-no-entorno-de-rodovias-que-dao-acesso-a-
alter-do-chao.ghtml Acesso em jul. 2018.
2
PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE SANTARÉM (MPPA). Recomendação Conjunta n.º 02/2017
Outubro, 2017 . Disponível em: http://www.mppa.mp.br/upload/RECOMENDACAO%20%2002-
2017%20REFORMA%20LPUOS%20-%20PA%200114770312017.pdf Acesso em jul.2018.

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do capital” (VAINER, 2011). Essa insatisfação motivou a suspensão da segunda


audiência do processo de revisão do Plano Diretor de Santarém, no dia 13 de outubro de
2017. Segmentos do movimento social de Santarém recusaram continuar a discussão do
Plano Diretor enquanto o projeto de lei 1621/2017 não fosse suspenso.
Apesar da recomendação do Ministério Público do Pará e da crítica realizada por
diversos coletivos da cidade, no dia 12 de dezembro de 2017, em menos de 3 meses da
sua apresentação ao parlamento municipal, o projeto de lei 1621 foi aprovado como Lei
Complementar 11/2017. Embora a articulação realizada entre representantes de
segmentos sociais tenha conseguido impedir algumas mudanças, como a construção de
edifícios de até 19 metros na Vila de Alter do Chão, a nova Lei passou a permitir a
construção em Áreas de Preservação Ambiental, ainda que sujeitas ao Código Florestal.
Fato é que a legislação urbanística do município foi alterada em tempo recorde (menos
de três meses) e sem qualquer estudo prévio. Além disso, o sentido conferido ao Plano
Diretor pela Constituição Federal, enquanto principal instrumento de política urbana, foi
esvaziado. Ressalta-se ainda que nem a técnica legislativa foi observada: erros
gramaticas, uso inadequado de incisos, parágrafos e alíneas e ressalvas indevidas, como
no caso do artigo 44 § 4º, I que já prevê a morosidade do poder público na prestação de
serviços de saneamento básico, dentre outros exemplos.
No dia 14 de dezembro de 2017, após a aprovação da lei pela Câmara Municipal
de Santarém, foi realizada audiência pública de iniciativa do Ministério Público do Estado
do Pará com a presença de representante do Ministério Público da União, vereadores,
secretários do governo municipal e movimentos sociais. Embora a lei já tivesse sido
alterada e o debate, naquele momento, perdido seu sentido participativo, foi ressaltada a
não realização de estudo prévio para a alteração da legislação urbanística e o
desconhecimento por parte dos poderes executivo e legislativo dos reais impactos das
alterações realizadas.

Quadro 1: Alterações na legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo


do município de Santarém-PA.
Artigo Lei Complementar 07/2012 Projeto de Lei 1621/2017 Lei Complementar 11/2017
Art. 4º, - Serão consideradas áreas NÃO FOI CRIADO
CXXXIII urbanas para fins da presente
Dispõe sobre a lei, independentemente de lei
definição de municipal definir como área
área urbana. rural, o conceito de área
urbana definida no artigo 4º
do Código Tributário do
Município.
Art. 16, § 2 II- Bacia do Irurá, II- Igarapé do irurá, incluindo II- Igarapé do irurá, incluindo
Define as Zonas incluindo lagos do Mapiri, lagos do Mapiri, Papucu e Rocha lagos do Mapiri, Papucu e
Especiais de Papuci e Rocha Negra. Negra; Rocha Negra;
Preservação III- Bacia do Igarapé de III- Igarapé de São Braz, III- Igarapé de São Braz,
Ambiental. São Braz, incluindo o Lago do incluindo o Lago do Juá, até as incluindo o Lago do Juá, até as
Juá, situado ao lado direito e margens do Rio Tapajós; margens do Rio Tapajós;
esquerdo no entorno da Ponte IV – Igarapé do Maicá ou lagos IV – Igarapé do Maicá ou lagos
da Avenida Governador do Igarapé Maicá; do Igarapé Maicá;
Fernando Guilhon até as V- Igarapé do Mararu; V- Igarapé do Mararu;
margens do Rio Tapajós; VIII – Igarapé do Urumari VIII – Igarapé do Urumari
IV- Igarapé do Maicá ou IX -Lago Verde em Alter do IX - Lago Verde em Alter do
Bacia do Igarapé Maicá; chão chão
V- Igarapé do Maruru; § 5º APA do Juá pela lei
VI- Cachoeira do Maró; Municipal nº 19.206/2012
VII- Cachoeira do Aruã;
VIII- Bacia do Urumari;

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Artigo Lei Complementar 07/2012 Projeto de Lei 1621/2017 Lei Complementar 11/2017
IX- Bacia do Lago
Verde em Alter do Chão.

Art. 19, II Art.19, II. Área Portuária II- Art. 19, II: Área Portuária II- REDAÇÃO ORIGINAL
Define a Zona iniciando na Av. Borges Leal, iniciando na Av. Borges Leal,
Portuária II seguindo até o limite da área seguindo pela margem do Rio
de proteção ambiental do Tapajós e Rio Amazonas até o
Maicá. Rio Ituqui.

Art. 21: VI – áreas de interesse de a) A partir dos limites do a) NÃO FOI APROVADO
Define a zona proteção estética que visa Mirante do Tapajós na Rua b) No entorno da orla fluvial,
de interesse impedir a construção de Adriano Pimentel, no perímetro excluindo os limites do entorno
institucional prédios nas seguintes compreendido entre a Rua do Mirante (alínea a), na
poligonais: Francisco Correa e Rua Inácio poligonal compreendida entre a
a) A partir dos limites do Correa, onde as edificações Travessa Antônio Bastos, entre a
Mirante do Tapajós na Rua deverão ter gabarito de até 02 Avenida Fernando Guilhon e
Adriano Pimentel, no (dois) pavimentos e altura de até Avenida Borges Leal; Avenida
perímetro compreendido entre 13 (treze) metros, incluindo as Borges Leal e Travessa Antônio
a Rua Francisco Correa e Rua construções auxiliares situadas Bastos e Rua São Silvestre; Rua
Inácio Correa, onde as acima do teto do último São Silvestre entre Avenida
edificações deverão ter pavimento (caixa d’água, casa Borges Leal e travessa
gabarito de até 02 (dois) de máquina, hall de escada) e os Presidente Kennedy, Rua
pavimentos e altura de até 10 elementos de composição da Violeta Imperial entre Travessa
(dez) metros, incluindo as referida fachada (platibanda e Presidente Kenedy e Travessa
construções auxiliares frontões), conforme Mapa em Acácia Prateada, Travessa
situadas acima do teto do anexo XI; Acácia Prateada entre Avenida
último pavimento (caixa Presidente Vargas e Avenida
d’água, casa de máquina, hall b) No entorno da orla fluvial, Rui Barbosa; Aveia Rui Barbosa
de escada) e os elementos de excluindo os limites do entorno entre Travessa Acácia Prateada
composição da referida do Mirante (alínea a), na e Avenida Mendonça Furtado,
fachada (platibanda e poligonal compreendida entre a Avenida Mendonça Furtado
frontões), conforme Mapa em Travessa Antônio Bastos, entre a entre Avenida Rui Barbosa e
anexo XI; Avenida Fernando Guilhon s e Rua Rosa Paso; Rua Rosa
b) No entorno da orla fluvial, Avenida Borges Leal; Avenida Passos entre Avenida Mendonça
excluindo os limites do Borges Leal e Travessa Antônio Furtado e Avenida Marechal
entorno do Mirante (alínea a), Bastos e Rua São Silvestre; Rua Rondon; Avenida Marechal
na poligonal compreendida São Silvestre entre Avenida Rondon entre Rua Rosa Passos e
entre a Travessa Antônio Borges Leal e travessa Rua Belém; Rua Belém entre
Bastos, entre a Avenida Presidente Kennedy, Rua Avenida Marechal Rondon e
Fernando Guilhon s e Avenida Violeta Imperial entre Travessa Avenida Álvaro Adolfo;
Borges Leal; Avenida Borges Presidente Kenedy e Travessa Avenida Álvaro Adolfo entre
Leal e Travessa Antônio Acácia Prateada, Travessa Rua Belém e Rua Antônio
Bastos e Rua São Silvestre; Acácia Prateada entre Avenida Simões; Rua Antônio Simões
Rua São Silvestre entre Presidente Vargas e Avenida entre Avenida Álvaro Adolfo e
Avenida Borges Leal e Rui Barbosa; Aveia Rui Barbosa Rua Uruará entre Rua Nova
travessa Presidente Kennedy, entre Travessa Acácia Prateada e Olinda, com edificações com
Rua Violeta Imperial entre Avenida Mendonça Furtado, gabarito de até 27 (vinte e sete)
Travessa Presidente Kenedy e Avenida Mendonça Furtado metros de altura, incluindo as
Travessa Acácia Prateada, entre Avenida Rui Barbosa e construções auxiliares situadas
Travessa Acácia Prateada Rua Rosa Paso; Rua Rosa acima do teto do último
entre Avenida Presidente Passos entre Avenida Mendonça pavimento (caixa d’água, casa
Vargas e Avenida Rui Furtado e Avenida Marechal de máquinas, hall de escada) e os
Barbosa; Aveia Rui Barbosa Rondon; Avenida Marechal elementos de composição da
entre Travessa Acácia Rondon entre Rua Rosa Passos e referida fachada (platibandas e
Prateada e Avenida Mendonça Rua Belém; Rua Belém entre frontões).
Furtado, Avenida Mendonça Avenida Marechal Rondon e c) Nas demais zonas não
Furtado entre Avenida Rui Avenida Álvaro Adolfo; incluídas beste artigo, as
Barbosa e Rua Rosa Paso; Rua Avenida Álvaro Adolfo entre edificações terão gabaritos e
Rosa Passos entre Avenida Rua Belém e Rua Antônio alturas de acordo com a taxa de
Mendonça Furtado e Avenida Simões; Rua Antônio Simões ocupação do solo e índice de
Marechal Rondon; Avenida entre Avenida Álvaro Adolfo e aproveitamento e legislação
Marechal Rondon entre Rua Rua Uruará entre Rua Nova vigente devidamente
Rosa Passos e Rua Belém; Rua Olinda, com edificações com

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Belém entre Avenida gabarito de até 27 (vinte e sete) autorizada pelos órgãos
Marechal Rondon e Avenida metros de altura, incluindo as competentes.
Álvaro Adolfo; Avenida construções auxiliares situadas
Álvaro Adolfo entre Rua acima do teto do último d) NÃO FOI CRIADA
Belém e Rua Antônio Simões; pavimento (caixa d’água, casa
Rua Antônio Simões entre de máquinas, hall de escada) e os
Avenida Álvaro Adolfo e Rua elementos de composição da
Uruará entre Rua Nova referida fachada (platibandas e
Olinda, com edificações com frontões).
gabarito de até 19 (dezenove c) Na vila de Alter do Chão onde
metros de altura, incluindo as as edificações deverão ter
construções auxiliares gabarito de até 19 (dezenove)
situadas acima do teto do metros de altura, incluindo as
último pavimento (caixa construções auxiliares situadas
d’água, casa de máquinas, hall acima do teto do último
de escada) e os elementos de pavimento (caixa d’água, casa
composição da referida de maquinas, hall de escada) e os
fachada (platibandas e elementos de composição da
frontões). referida fachada (platibandas e
c) Nas demais zonas não frontões).
incluídas beste artigo, as d) Nas comunidades de Pontas
edificações terão gabaritos e de Pedras, Tapari, Carapanari e
alturas de acordo com a taxa Pajuçara, as edificações deverão
de ocupação do solo e índice ter gabarito de até 19 (dezenove)
de aproveitamento. metros de altura, incluindo as
construções auxiliares situadas
acima do teto do último
pavimento (caixa d’água, casa
de máquinas, hall de escada) e os
elementos de composição da
referida fachada (platibandas e
frontões)
e) nas demais zonas não
incluídas neste artigo, as
edificações terão seus gabaritos
e alturas de acordo com a taxa de
ocupação do solo e índice de
aproveitamento.

Art. 39: Na Zona de Preservação Na Zona de Preservação Nas Zonas de Preservação


Define a Zona Ambiental (ZPA) serão Ambiental (ZEPA), excluindo- ambiental (ZEPA), em
de Preservação admitidas atividades ligadas se as construções nas áreas conformidade com a Lei n.º
Ambiental ao ecoturismo que utilizam definidas no art. 42, serão 12.651/2012 – Código Florestal,
forma sustentáveis de apreciar admitidas atividades esportivas, serão admitidas atividades
o patrimônio natural pela de recreação, comerciais, esportivas, de recreação,
riqueza de ecossistemas e de extrativista mineral, vegetal e comerciais, extrativistas mineral
biodiversidade, incentivando animal, hoteleira, de loteamento para fins de construção civil,
sua conservação e buscando a e turismo capazes de atender o vegetal e animal, hotelaria, de
formação de uma consciência convívio harmônico entre loteamento, edificações
ambientalista através da homem e o meio ambiente. unifamiliar e multifamiliar e de
interpretação do ambiente, Incisos I ao XII – revogados. turismo que utilizam de forma
promovendo o bem estar da § 1º. As sustentável os recursos naturais
comunidade, sendo permitidas construções/equipamentos a e incentivam a conservação do
atividades esportivas e de serem instalados ou em meio ambiente, bem como sejam
recreação, obedecendo a funcionamento deverão capazes de atender o convívio
parâmetros definidos no anexo obrigatoriamente ser licenciados harmônico entre o homem e o
I desta Lei Complementar, pelo órgão ambiental meio ambiente, obedecendo aos
quais sejam: competente, bem como pelos parâmetros do anexo I desta Lei
I – campismo; demais órgãos de acordo com a Complementar.
II – esportes coletivo ou legislação vigente. Incisos I ao XII – revogados.
individual ao ar livre; § 2º. As áreas definidas como §1º As
III – trilhas para bicicletas; ZEPA estão sujeitas as construções/equipamentos a
IV -excursionismo; legislações pertinentes as serem instalados ou em

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V – pedestrianismo; florestas públicas e áreas funcionamento deverão
VI - enduro equestre; protegidas. obrigatoriamente ser licenciados
VII – escalada; § 3º. Só será permitida a pela instância ou órgãos de
VIII – safári fotográfico; extração mineral fora de corpos acordo com a legislação
IX – arvorismo; hídricos, em área que vigente.
X – tirolesa e similares; corresponda a 50% (cinquenta § 2º. As áreas definidas como
XI – trilhas; por cento) da extensão total do ZEPA estão sujeitas as
XII – praias; imóvel aprovado no Cadastro legislações pertinentes as
§ 1º. Só serão permitidas Ambiental Rural – CAR. florestas públicas e áreas
construções destinadas ao § 4º. Para os imóveis que ainda protegidas.
comércio e prestação de possuem mata nativa, só será § 3.º Em caso de área rural, só
serviços de apoio ao esporte e permitida a extração minerais será permitida a extração
lazer, tais como: em áreas que corresponda no mineral realizada de acordo
I – venda de alimentos e máximo a 20% (vinte por cento), com espaço de uso alternativo
bebidas não alcóolicas; da extensão total do imóvel do solo definida pelo Cadastro
II – venda de artesanato; aprovada no Cadastro Ambiental Rural – CAR.
III – apoio às atividades Ambiental Rural – CAR. § 4º. Em caso de áreas em zona
esportivas de recreação; 5§º. Só será permitida a extração urbana ou de expansão urbana,
IV – serviços públicos: de substâncias minerais de as atividades de extração de
informações, seguranças e utilização imediata na minério deverão obedecer os
similares. construção civil e critério de licenciamento
§ 2º. Os equipamentos acima beneficiamento associado. ambiental previstos na
descritos deverão seguir legislação específica.
projeto para execução e § 5º. Não será permitida
localização definido em nenhuma atividade degradante,
conformidade com essa lei. que cause impacto ambiental ao
§ 3º. Os projetos de tais obras demande supressão vegetal, na
dependerão de aprovação área de savana ou campos,
prévia de órgãos competentes, localizados na APA Alter do
conforme legislação ambiental Chão e Eixo Forte;
municipal, estadual e/ou § 6º. As construções a partir do
federal. limite definido como Área de
Preservação Permanente (APP)
deverão obedecer aos disposto
no Código Florestal – lei nº.
12.651/2012.
§ 7º. Nas áreas de savana ou
cerrado amazônico localizados
na APA Alter do Chão e Eixo
Forte, não será permitida
nenhuma atividade utilizadora
dos recursos ambientais
consideradas efetiva ou
potencialmente poluidoras ou
aquelas que, sob qualquer
forma, possam causar
degradação ambiental, exceto, a
realização de pesquisas
científicas e o desenvolvimento
de atividades de educação e
interpretação ambiental, da
recreação em contato com a
natureza e de turismo ecológico.
§ 8º. Na área da APA de Alter do
Chão serão admitidas atividades
de extração mineral e agricultura
familiar de acordo com os
seguintes parâmetros:
I – criação animal nos incisos a)
a i), de acordo com o seguinte:
a) Não é permitida a construção
de cercas e currais para criação
de animais de médio e grande

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porte, com distância inferior a
cem metros (100 m) da margem
de igarapés, lagos, enseadas e
rios.
b)Os criadores se
responsabilizam por
investimento em cercas
eficientes para a confecção dos
seus animais, tais como bovinos,
suínos, equinos, caprinos, bem
como recolhê-los em currais
durante a noite.
c) É proibido o fechamento de
vias públicas para a criação de
animais.
d) É de responsabilidade dos
criadores construir tanques ou
bebedouros próprios e impedir o
acesso de bovinos, suínos,
equinos e caprinos para beber
água em igarapés, praias,
enseadas e lagos.
e) Os trabalhadores que utilizam
animais para transporte estão
autorizados a circular no
exercito da função,
responsabilizando-se pelo
destino adequado dos objetos de
seus animais. Os proprietários
de animais domésticos ficam
igualmente responsáveis pela
destinação dos dejetos dos seus
animais.
f) Não é permitida a criação de
búfalos na APA Alter do Chão.
g) A única técnica de pecuária
intensiva permitida na APA de
Alter do Chão é a que conta com
o pastoreio rotativo em piquetas
tipo Voisin.
h) Devem ser incentivados
sistemas de criação de aves em
regime de semi- confinamento
(conhecidos como galinha
caipira).
I – Agricultura familiar nos
inciso a) a e), de acordo com o
seguinte:
a) Devem ser asseguradas e
efetivadas práticas de
conservação do solo.
b) As derrubadas de vegetação
para uso agrícola só serão
permitidas respeitando-se os
limites da Área de Conservação.
c) Não é permitida a
monocultura em larga escala na
APA Alter do Chão e entorno,
bem como o cultivo de
transgênico e o uso de
agrotóxicos, devendo ser
incentivado o uso de insumos
orgânicos quando necessário.

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d) a agricultura tradicional deve
respeitar o limite de um hectare
por ano por família em sistema
rotativo.
e) os órgãos e instituições
competentes devem manter um
cadastro de agricultores famílias
que possibilite o monitoramento
da área plantada.
III- Mineração nos incisos a) a
c), de acordo com o seguinte:
a) É proibida a exploração
mineral em áreas de savana e
APPs.
b) Nas outras áreas, o Poder
Executivo poderá expedir
licenças de exploração de
minérios de segunda classe, tais
como seixo, pedra, areia, barro e
piçarra.
c) A extração de argila para uso
artesanal em pequena escala
deverá ser regulada por meio de
cadastramento dos artesãos de
cada comunidade e a definição
de local adequado para extração.
Art. 40: A vegetação existente nessa A vegetação nessa área deve ser
Dispõe sobre a área deve ser preservada e preservada e ampliada, salvo as
vegetação em ampliada. supressões para obras para
área de ZPA instalação dos equipamentos
previstos do art. 39 da
presente lei que estejam
localizados em áreas
consolidadas.
Art. 41: Em edificações existentes, Nas áreas da APA, serão Nas áreas de APA, serão
Dispõe sobre as com uso inadequado, serão permitidos loteamentos chácaras permitidos loteamentos de
obras em área de permitidas apenas obras de de recreio que atendam às chácaras de recreio que atendam
ZPA. manutenção relativas à dimensões mínimas de dois mil às dimensões mínimas de dois
segurança, conservação e e quinhentos metros quadrados mil e quinhentos metros
higiene, ficando proibido o (2.500,00 m²) de área e quadrados (2.500,00 m²) de área
acréscimo de área construída cinquenta metros (50,00 m) de e cinquenta metros (50,00) de
e/ou pavimentada. testada. testada.
Parágrafo Único: caso a área Parágrafo único: caso a área
venha a ser considerada como venha a ser considerada como
urbana, seguirá os parâmetros urbana ou de expansão urbana,
previstos no capítulo II desta lei. seguirá os parâmetros previstos
no capítulo II deste título.
Art. 42: Na ZEPA não será permitida a Não serão permitidas REDAÇÃO ORIGINAL
Dispõe sobre a construção de edificações de construções em áreas em áreas
construção de usos habitacionais de APP definida pela Lei nº.
edificações de permanentes. 12.651/2012 Código Florestal,
usos em uma largura mínima de:
habitacionais I – 30 (trinta) metros, para os
permanentes cursos d’água de menos de
10(dez) metros de largura;
II – 50 (cinquenta) metros, para
os cursos d’água que tenham 10
(dez) e 50 (cinquenta) metros de
largura;
III – 30 (trinta) metros, nas áreas
no entorno dos lagos e lagoas
naturais, em zona urbana;

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§1º. Também não serão
permitidas construções em área
de savana ou campos
amazônicos que estejam
localizados na APA Alter do
Chão e Rodovia Everaldo
Martins, desde que a área de
savana seja delimitada por ato
do Poder Executivo.
§ 2º. A supressão de vegetação
nativa e construções em Área
de Preservação Permanente e
áreas de savana de que tratam
este artigo poderão ser
autorizadas,
excepcionalmente, nas
hipóteses de utilidade pública
conforme previstas no art. 3º ,
VIII da Lei 12.651/2012 –
Código Florestal.
Art. 43: As atividades a serem - REVOGADO
Dispõe sobre as desenvolvidas na ZEPA
atividades na deverão ocorrer sem riscos
ZEPA de poluição sonora, do ar, da
água, do solo e do subsolo.

Art. 44: As construções permanentes As construções a serem As futuras construções a serem


Dispõe sobre as propostas para a faixa de realizadas na ZEPA deverão realizadas na ZEPA e ZEIS
construções ocupação, que não poderá obedecer as normas deverão também obedecer às
permanentes na ultrapassar trinta por cento estabelecidas no Código de normas estabelecidas no Código
Zona de Proteção (30%) da área total da gleba, Obras. de Obras e na Legislação
Ambiental. serão permitidas apenas para o Ambiental Específica, bem
uso de lazer e devem ter como aos seguintes
volumetria e espaçamento requisitos/parâmetros que
entre as mesmas, de modo a constam no art. 21 da presente
garantir a manutenção da lei e, adicionalmente, será
paisagem natural e o livre exigido, no uso que se refere ao
acesso aos recursos hídricos. saneamento básico, o seguinte.
Parágrafo único. Nas § 1° Obrigatoriedade de ligação
construções referidas no caput ao sistema Público de
deste artigo será exigido, no Esgotamento Sanitário,
que se refere ao saneamento abastecimento D’água, onde
básico, o seguinte: houver;
I – obrigatoriedade de ligação § 2º Localização de fossa séptica
do Sistema Público de a uma distância mínima de trinta
Esgotamento Sanitário e metros (30 m) dos recursos
Abastecimento d’água onde hídricos e dos poços existentes
houver; para abastecimento de água;
II – localização de fossa § 3º Não existindo estrutura
séptica a uma distância pública de esgotamento
mínima de trinta metros (30,00 sanitário, a construção deverá
m) dos recursos hídricos e dos prever seu próprio sistema de
poços existentes para tratamento de esgoto, totalmente
abastecimento de água. impermeabilizado e totalmente
livre de risco de contaminação.
§ 4º Na área da APA Alter do
Chão, para as construções
referidas no caput deste artigo,
será exigido, no que se refere a
saneamento básico, de acordo
com o seguinte:
I – Deve ser assegurado o
cumprimento do papel do

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Artigo Lei Complementar 07/2012 Projeto de Lei 1621/2017 Lei Complementar 11/2017
Estado no tratamento da água
servida à população e no
tratamento dos esgotos
domésticos. Enquanto isso não
acontece, fica na
responsabilidade de cada
proprietário realizar o adequado
tratamento dos afluentes,
domésticos ou não, pelos
produtores das emissões e/ou
rejeitos;
a) as propriedades já existentes
deverão se adequar, no prazo
máximo de 1 (um) ano após a
sanção desta Lei.
II – Deve ser coibido o
lançamento de efluentes
poluidores e de resíduos nos
cursos d’água e área adjacentes
aos mesmos;
a) Deve ser assegurada junto ao
Poder Público a construção de
poços profundos e
microssistemas com a finalidade
de abastecimento da população
local, sendo de responsabilidade
da administração dos mesmos a
fiscalização do uso irregular e
abusivo.
b) O Poder Público, com o apoio
das organizações comunitárias,
deve identificar, monitorar e
divulgar as áreas de balneário,
assim como recuperar e
conservar os cursos d’água
urbanos e rurais, especialmente,
os cursos d’água que formam os
lagos da APA.
III- Não é permitida em toda
área da APA a construção de
fossas negras (sem
permeabilidade de fundo);
IV – O Poder Público,
juntamente com as organizações
comunitárias da APA Alter do
Chão, devem buscar
alternativas apropriadas para
cada localidade e deve ser
incentivada a construção de
fossas ecológicas e banheiros
secos.
a) Nos casos de construções
públicas, esse tipo de tratamento
é obrigatório.
b) É proibida a construção de
qualquer tipo de fossa a menos
de trinta metros (30m) da
margem de rios, lagos, igarapés
ou qualquer fluxo natural de
água no maior cheio registrada,
tomando-se sempre cuidado
com a elevação do nível de água
no lençol freático, sendo que a

322
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

Artigo Lei Complementar 07/2012 Projeto de Lei 1621/2017 Lei Complementar 11/2017
profundidade total máxima
recomendada é de três metros e
meio (3,5 m).
Art. 53, § - - Nas áreas definidas como ZEIS,
único: conforme definido pela
Dispõe sobre as legislação vigente, serão
Zonas Especiais admitidas atividades esportivas,
de Interesse de recreação, comerciais,
Social (ZEIS) extrativista mineral, vegetal e
animal, hoteleira, de loteamento
e de turismo capazes de atender
o convívio harmônico entre o
homem e o meio ambiente.
Fonte: elaboração própria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O resgate da experiência santarena de revisão da legislação urbanística possibilita
inúmeras considerações sob diferentes perspectivas. Embora o estudo interdisciplinar da
legislação seja necessário para compreender quais são os possíveis alcances das
alterações aprovadas, nesse espaço privilegiou-se verificar a relação da lei com a
produção das cidades no Baixo Amazonas por intermédio do pensamento jurídico crítico.
Num primeiro momento, o processo de urbanização foi aqui compreendido
enquanto fundamental para a produção do espaço de acordo com as necessidades da
acumulação. Posteriormente, apreendeu-se o fenômeno jurídico enquanto mediação
necessária à produção do valor e à imposição da sociabilidade capitalista, valendo-se da
máxima do “dever ser”. Portando, entende-se o Direito enquanto o “reconhecimento
oficial do fato” (MARX, 1985) e não como uma instituição imparcial capaz de garantir
os interesses coletivos frente aos interesses privados.
Nesse sentido, é necessário ressaltar que à crítica ao processo alteração da
legislação urbanística de Santarém por meio do PL 1621 não significa o saudosismo à
legislação anterior. Esta é igualmente produto do avanço da sociabilidade do capital para
a região do Baixo Amazonas. O uso do espaço pela população local, como os povos
tradicionais, por muito tempo, não dependeu do direito positivo. Esse uso não se
respaldava no reconhecimento da propriedade privada individual e, muito menos, da sua
titulação, sendo esta uma necessidade do capital para inserir no mercado aquelas terras
ainda não disponíveis.
Na experiência ilustrada, restou evidente que as “garantias legais” frente aos
interesses da acumulação são muito frágeis. Os interesses econômicos encontram no
Estado e na Lei especiais aliados. Na experiência santarena, a Lei Complementar 11/2017
reconheceu práticas que já estão ocorrendo na cidade. O art. 41, por exemplo, torna legal
os loteamentos que estão surgindo na Área de Proteção Ambiental Municipal Alter do
Chão.
Importante ponderar ainda que a crítica ao Direito e ao Estado por intermédio do
pensamento jurídico crítico marxiano e marxista, contudo, não compreende que
mudanças no conteúdo das leis e/ou de governo poderia subordinar aquelas instituições
aos interesses coletivos. Tanto a forma política quanto a forma jurídica são derivadas da
forma mercadoria e reportam-se a mesma lógica de reprodução do capital (MASCARO,
2013, p. 39).
Embora não tenha sido pretensão do presente artigo verificar a atuação dos
diversos segmentos sociais no processo legislativo e o peso da articulação política feita
por esses segmentos na modificação do projeto de lei original, é importante ressaltar que

323
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

o resgate aqui realizado de maneira sucinta não dá conta de toda complexidade que
envolve o caso. Destaca-se, por exemplo, o protagonismo dos grupos do Distrito de Alter
do Chão na negociação realizada com os vereadores e a centralidade que a questão da
verticalização assumiu no debate público sobre a modificação da legislação urbanística.
Conclui-se, portanto, que o processo de urbanização no Baixo Amazonas tem
exigido novos aparatos legais a fim de legitimar as práticas do mercado e que permitam
a expansão do processo de acumulação, integrando esse território, no qual práticas
tradicionais ainda resistem às necessidades do capital nacional e internacional. Nesse
sentido, o Direito assume papel central na estruturação desse processo e na criação de
uma equivocada ideia de que a legislação urbanística é capaz de limitar a atuação do setor
privado por meio da proteção dos interesses coletivos.

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Santarém, PA, 2017.
______. Projeto de Lei nº 1621/2017. Altera a Lei Complementar 007/2012, de 28 de
setembro de 2012, que dispõe sobre o parcelamento, uso e ocupação do solo. Santarém,
PA, 2017.

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

_______. Lei Complementar 007/2012. Dispõe sobre o parcelamento, uso e ocupação


do solo do município de Santarém-Pará. Santarém, PA, 2017.
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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

COMPLEXOS JURÍDICO E ECONÔMICO:


ENTRE O REFLEXO E A INCONGRUÊNCIA.

Alexandre Aguiar dos Santos


Universidade Federal de Goiás
aasantos28@yahoo.com.br

Resumo
A forma jurídica como uma das estruturas de regulamentação social específica do modo
de produção capitalista é dinamizada pela complexa relação entre o direito e a economia.
Dentro do vasto campo das contribuições do marxismo para a pesquisa em direito, a
relação entre direito e economia surge como um dos fundamentos do complexo jurídico.
Neste sentido, a necessidade de diferenciação entre a gênese e o desenvolvimento da
interação entre o desenvolvimento das forças produtivas e as suas respectivas relações de
produção, em especial o direito é importante ponto de referência para o desenvolvimento
da pesquisa em direito. A exposição dos elementos básicos desta diferenciação é a
finalidade deste modesto trabalho, indicando possíveis elementos de orientação no estudo
investigativo das relações concretas e contraditórias (entre o reflexo e a incongruência)
dos complexos jurídico e econômico.
Palavras-chave: Direito; econômia; ontologia do ser social; totalidade social.

LEGAL AND ECONOMIC COMPLEXES:


BETWEEN REFLECTION AND INCONGRESS.

Abstract
The legal form as one of the structures of social regulation specific to the capitalist mode
of production is dynamized by the complex relationship between law and the economy.
Within the vast field of contributions of Marxism to research in law, the relationship
between law and economics emerges as one of the foundations of the legal complex. In
this sense, the need to differentiate between the genesis and the development of the
interaction between the development of productive forces and their respective relations
of production, especially the law, is an important point of reference for the development
of research in law. The exposition of the basic elements of this differentiation is the
purpose of this modest work, indicating possible orientations in the investigative study of
the concrete and contradictory relations (between the reflection and the incongruity) of
the legal and economic complexes.
Keywords: Law; economy; the ontology of the social being; social totality.

Introdução

O marxismo como um arcabouço teórico e prático tem significativa contribuição


para a pesquisa jurídica. Dentro da totalidade social – compreendida como um complexo
de complexidades – a regulamentação social se constitui num campo de investigação
relevante para o entendimento dos diferentes modos de produção social. A forma jurídica
como uma das estruturas de regulamentação social específica do modo de produção
capitalista é dinamizada pela complexa relação entre o direito e a economia. Dentro do
vasto campo das contribuições do marxismo para a pesquisa em direito, a relação entre
direito e economia surge como um dos fundamentos do complexo jurídico. Neste sentido,

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

a necessidade de diferenciação entre a gênese e o desenvolvimento da interação entre o


desenvolvimento das forças produtivas e as suas respectivas relações de produção, em
especial o direito é importante ponto de referência para o desenvolvimento da pesquisa
em direito. A exposição dos elementos básicos desta diferenciação é a finalidade deste
modesto trabalho, indicando possíveis elementos de orientação no estudo investigativo
das relações concretas e contraditórias (entre o reflexo e a incongruência) dos complexos
jurídico e econômico.
No âmbito das contribuições marxistas para o estudo do complexo jurídico este
trabalho opta por fazer uma abordagem a partir da ontologia do ser social delineada pelo
filósofo húngaro György Lukács.

Gênese do complexo Jurídico.


A gênese de um determinado complexo social, neste caso o jurídico, precisa ser
congruente com o desenvolvimento da totalidade social – esta compreendida como um
complexo de complexidade. Em termos sintéticos é possível indicar que a legalidade do
desenvolvimento do ser social tem como fundamento o trabalho como elemento de
mediação só ser social com a natureza. Do desenvolvimento do trabalho podem ser
indicadas três legalidades sociais específicas: a) desenvolvimento da produtividade social
o trabalho e da divisão social do trabalho; b) recuo das barreiras naturais; c) aumento da
sociabilidade do ser social. Cabe destacar que estas legalidades do desenvolvimento do
ser social possuem um caráter tendencial, possibilitando a existência de movimentos
contraditórios. Estas legalidades, analisadas post festum, acabam por afirmar o seu caráter
tendencial, sobrepujando os momentos contrários ao seu desenvolvimento no ser social.
O processo de aumento da produtividade social do trabalho e da divisão social do
trabalho possibilita em um determinado momento do ser social a produção de excedente
e a superação dos limites da produção para a subsistência. Com a produção de excedente,
de corrente do aumento da produtividade social do trabalho, surge a questão da
apropriação deste excedente. Ou seja, o desenvolvimento das forças produtivas exige
novas relações sociais voltadas para o problema da apropriação do excedente. O processo
histórico deste desenvolvimento culmina na instituição da propriedade privada como
meio de apropriação do excedente socialmente produzido e da consequente divisão social
de classes entre produtores e proprietários. O antagonismo de classe exige novas formas
de regulação social que eram desconhecidas até então. A gênese do estado como resposta
ao caráter antagônico das sociedades de classe evidencia um processo em que a
regulamentação social passa a ser, paulatinamente, forjada neste novo complexo do ser
social. O estado como mediador das contradições social e garantidor da reprodução social
dos interesses dominante vai forjar uma divisão social do trabalho específica dos agentes
de estado, passando pela organização do monopólio da violência a estruturas de decisão
em que os interesses dominantes sejam preservados.
O costume vai se constituir na principal forma de regulamentação social a ser
exercida pelo durante um londo período da história da sociedade de classes, formas
jurídicas embrionárias são possíveis de ser identificadas, contudo, no âmbito da solução
dos conflitos econômicos decorrentes da crescente divisão social do trabalho o
predomínio da regulamentação costumeira será superado apenas com o advento do modo
de produção capitalista.
Enquanto os problemas da cooperação e convivência social dos homens são
essencialmente ordenados segundo os costumes; enquanto os homens são
capazes de regular por si mesmos suas necessidades, espontânea e facilmente
identificáveis, sem necessidade de um aparelho particular (família e escravos

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domésticos, a jurisdição nas democracias diretas); enquanto isso ocorre, não


existe o problema da autonomia da esfera jurídica diante da econômica. Tão
somente num grau superior da construção social, quando intervêm as
diferenciações de classe e o antagonismo entre elas, é que surge a necessidade
de criarem órgãos e instituições específicos, a fim de cumprir determinadas
regulamentações do relacionamento econômico, social, etc., dos homens entre
si. Uma vez surgídas tais esferas, seu funcionamento torna-se o produto de
pores teleológicos específicos, que são certamente determinadas pelas
necessidades vitais elementares da sociedade (dos estratos que são decisivos
em cada oportunidade concreta), mas que precisamente por isso se encontram
com tais carecimentos numa relação de heterogeneidade. (Lukács, 2012, pp.
385).
A relação entre o desenvolvimento das formas de regulamentação social e o
desenvolvimento das forças produtivas explicita o caráter de momento predominante da
base econômica no desenvolvimento dos distintos complexos sociais e em particular
daqueles voltados para a regulação das relações de produção.
O caráter de momento predominante da base econômica não elimina a interação
socialmente reforçada da esfera jurídica como um dos meios de satisfação dos
carecimentos vitais da sociedade. Duas questões são relevantes nesta relação: a primeira
é que o complexo jurídico tem sua gênese em um momento histórico determinado pelo
surgimento do modo de produção capitalista. Ou seja, o direito tem sua gênese histórica
singular vinculada ao capital; e segundo, o fato da economia ser o momento predominante
não implica em um juízo de valor hierárquico lógico-gnosiológico de uma esfera sobre a
outra, ao contrário, apenas destaca que na interação entre os distintos complexos sociais
é elementar identificar que a existência de determinada estrutura social (jurídica) só é
possível em face de determinado desenvolvimento da esfera econômica. Por outro lado,
a cisão da sociedade em classes sociais é também um desdobramento do desenvolvimento
das forças produtivas. O caráter de momento predominante da economia sobre a esfera
jurídica não elimina a possibilidade de determinação da esfera jurídica sobre a esfera
econômica. Assim sendo, é essencial nos afastarmos de qualquer entendimento lógico-
gnosiológico que, em face do caráter de momento predominante da esfera econômica, vê
o direito ou como uma correspondência direta da base material ou com total autonomia
diante dos demais complexos sociais.
As contradições do modo de produção capitalista forja a necessidade social da
gênese do direito. Este fundamento da sua gênese está presente em todo o
desenvolvimento da esfera jurídica, porém, mesmo que esta relação não seja
aparentemente evidente em face do caráter generalizante dos imperativos jurídicos. A
característica de apresentar os interesses particulares de determinada classe como
“interesses de todos” adequadamente articulado por uma estrutura homogeneizante e
compacta, coerente em sim mesma, constitui, objetivamente, um afastamento do
complexo jurídico da sua gênese. Por outro lado, a estrutura jurídica é constantemente
chamada a cumprir o seu mandato social diante dos conflitos decorrentes da base
econômica e dos conflitos de classe daí decorrentes – como mecanismo eficaz para
estabelecer e reorganizar, na sua conservação ou mudança, os compromissos de classe,
exigidos a cada momento diante das transformações decorrentes da interação
contraditória dos complexos sociais.
O caráter consciente ou não do mandato social do direito perante as contradições
de classe e a base econômica não altera a estrutura do pôr teleológico no âmbito jurídico,
pois, a subsunção das posições teleológicas singulares ao imperativo geral mantém-se

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como elemento próprio da práxis jurídica. O direito busca por meio da subsunção da
práxis individual ao imperativo geral orientar a conduta de uma forma em que a essência
dos compromissos de classe e da reprodução do modo de produção mantenha sua
efetividade como elemento de regulação social, sem referir-se diretamente a eles. Ele, o
pôr teleológico no direito, parte de uma condição pressuposta como existente e busca
estabelecer uma orientação adequada e esta condição. Este aspecto é bem destacado por
Lukács quando afirma que o direito em “oposição à economia, não visa absolutamente a
produzir algo novo no âmbito material; ao contrário, a teleologia jurídica pressupõe todo
o mundo material como existente e busca introduzir nele princípios ordenadores
obrigatórios, que esse mundo não poderia extrair de sua própria espontaneidade
imanente” (Lukács, 2012, p. 386).
A forma jurídica como regulamentação social específica vai constituir
paulatinamente uma nova divisão social do trabalho em que um grupo de especialistas
será responsável pelo mandato social do complexo jurídico. Neste sentido, a paulatina
autonomização da esfera jurídica em relação aos demais complexos sociais, em especial
frente ao complexo econômico vai caracterizar a incongruência presente entre a base
econômica e a esfera do direito.

Entre o reflexo e a incongruência.


A autonomia da esfera jurídica é sempre relativa, pois é expressão do quadro legal
de interação social. Esta autonomia não suprime a relação de reconhecimento da esfera
jurídica dos fatos econômicos e neste sentido, é ineliminável a sua relação com a
economia, mesmo que de forma aparente o direito seja considerado como pressuposto de
determinadas relações econômicas. Este reconhecimento dos fatos econômicos aliado ao
caráter relativamente autônomo da esfera jurídica apenas na aparência inverte a relação
de momento predominante. Marx explicita esta relação ao comentar o direito de herança
em 1869:
Tal como qualquer outra legislação burguesa, as leis sobre herança constituem
não a causa, mas sim o efeito, a consequência jurídica da organização
econômica existente que se funda na propriedade privada dos meios de
produção, i.e. a terra, a matéria-prima, as máquinas etc. Desse mesmo modo,
o Direito de herdar escravos não constituía a causa da escravidão, senão, pelo
contrário, era a escravidão que constituía a causa de os escravos serem
herdados (MARX, 1869, p. 01).
Aparentemente o direito se apresenta como um pressuposto para o
estabelecimento da práxis econômica. Apenas aparentemente, pois a essência do direito
está na sua relação de reconhecimento dos fatos econômicos e, no momento em que o
reconhecimento se consolida no direito, este se constitui num elemento de interação
relevante para as relações econômicas, orientando a práxis econômica de acordo com o
desenvolvimento historicamente determinado. Sob o aspecto histórico podemos
compreender o direito numa relação de consequência e pressuposto da práxis econômica.
E o caráter heterogêneo destes momentos (causa e efeito) torna-se um dos elementos da
discrepância entre o complexo jurídico e o econômico.
Esta heterogeneidade não deve ser submetida a um entendimento de que se trata
de estruturas independentes, com plena autonomia entre si. Tal perspectiva resulta num
aprofundamento do fetichismo jurídico em que o direito é um complexo absolutamente
autônomo frente aos demais complexos sociais e a totalidade social. Apenas na
perspectiva gnosiológica em que se rompe com o caráter ineliminável da relação entre o
direito e a economia é possível esta “pureza” do direito.

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Do ponto de vista da análise ontológica, a relação de causa/efeito se constitui


numa determinação reflexiva, em que o momento consequente atua sobre o precedente
numa relação de identidade de identidade e não identidade, em que a esfera jurídica é uma
forma singular reflexo das relações econômicas e precisa constantemente referir-se a esta,
do ponto de vista prático. A sua constituição como complexo social distinto da esfera
econômica tem como pressuposto o desdobramento prático da orientação jurídica, no
sentido de eliminar os conflitos que potencialmente ou materialmente põe em cheque a
reprodução econômica em específico, ou a reprodução social como um todo.
Marx na referida matéria sobre o direito de herança enfatiza o caráter reflexivo da
esfera jurídica sobre a economia, evidenciando como o momento predominante da base
econômica se afirma sobre as esferas superestruturais da totalidade social, mesmo diante
da revolução proletária este momento predominante é enfatizado. Reconhecendo que em
uma sociedade de transição (socialismo), em que o protagonismo econômico e social dos
trabalhadores seja conscientemente orientado para as transformações da estrutura
econômica fundamentada sob o capital, a questão não se resolve adequadamente com a
imediata extinção do direito de herança. Mas ao contrário, enquanto persistirem os fatos
econômicos que dão origem ao direito de herança, o papel da estrutura jurídica será o
estabelecimento de orientações para que tal direito seja exercido de acordo com os
interesses emancipatórios dos trabalhadores.
Todas as medidas que se relacionam com o Direito de herança podem, por
isso, apenas se relacionar com uma situação de transição em que, por um lado,
ainda não se acha transformado o atual fundamento econômico da sociedade,
sendo que, porém, por outro lado, as massas trabalhadoras já reuniram força
suficiente para impor medidas transitórias, adequadas a, finalmente, viabilizar
uma mudança radical da sociedade. Considerada a partir desse ponto de vista,
a modificação das leis sobre herança forma tão somente uma parte de muitas
outras medidas de transição que conduzem ao mesmo objetivo. No que
concerne à herança, essas medidas transitórias podem ser apenas as seguintes:
a) ampliação dos impostos sobre a herança que já existem em muitos Estados
e aplicação dos fundos assim obtidos para o objetivo da emancipação social;
b) limitação do Direito testamentário à herança, porque este, diferentemente
do Direito não-testamentário à herança ou do Direito de família à herança,
surge como uma exageração arbitrária e supersticiosa dos fundamentos da
própria propriedade privada (MARX, 1869, p. 1).
A orientação explicitada por Marx evidencia o entendimento de que as relações
jurídicas ao reconhecerem determinado fundamento econômico também exercem, de
forma reflexiva, o condicionamento desta esfera. Assim, os fundamentos econômicos não
são indiferentes às determinações do complexo jurídico. Marx, no prefácio de 1959 já
indicava o caráter contraditório da interação entre a base econômica e a superestrutura
jurídica, e em especial quanto ao momento em que esta (regulação jurídica) passa a ser
os “grilhões” do desenvolvimento das forças produtivas.
Em uma certa etapa do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais
da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes
ou, o que nada mais é do que a sua expressão jurídica, com as relações de
propriedade dentro das quais aquelas até então se tinham movido. De formas
de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações se transformam em
seus grilhões. Sobrevém então uma época de revolução social (MARX, 1982a,
p. 25).
A interação contraditória entre a esfera econômica e a esfera jurídica, acima
sintetizadas, dão a dimensão adequada da relação de reflexo específico que a esfera

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jurídica desenvolve e do seu caráter determinado/determinante do desenvolvimento das


forças produtivas. Em outras palavras, as relações jurídicas são o reconhecimento de um
fato econômico, neste sentido, determinado pela estrutura econômica. Porém, o
reconhecimento do fato econômico é expressão do reflexo deste na esfera jurídica, isto é,
da captação dos elementos relevantes no âmbito jurídico dos fatos econômicos, o que não
significa ser uma expressão fiel das relações econômicas. Mas ao contrário, trata-se de
um reflexo que tem como finalidade, o estabelecimento de condições determinadas de
reprodução social, nos quais os conflitos decorrentes da estrutura econômica sejam
adequadamente solucionados, a fim de preservar não apenas a reprodução econômica,
mas também a reprodução da totalidade social. Assim, as contingências da reprodução da
totalidade social ingressam como elementos de interação no campo do direito. Diante
disto, o reflexo da estrutura econômica na esfera jurídica desenvolve-se de forma desigual
e até contraditória de tal maneira que o direito, em determinado momento histórico, passa
a ser o obstáculo (os “grilhões” como diz Marx) do desenvolvimento das forças
produtivas.
A heterogeneidade dos complexos é um dos aspectos elementares da interação
orgânica destes na totalidade social1. No entanto, esta relação constitui-se numa
determinação reflexiva de essência e fenômeno, em que o caráter essencial do
desenvolvimento tendencial do ser social é fruto do desdobramento das posições
teleológicas singulares que podem, de forma consciente ou não, interditar ou impulsionar
o ser social em seu desenvolvimento tendencial. A heterogeneidade dos complexos
integrantes do ser social, também é caracterizada pelo desenvolvimento desigual destes
complexos. O caráter orgânico da totalidade social é a forma mais adequada para
compreender o desenvolvimento desigual como elemento essencial de interação entre os
complexos, que por sua vez só se constituem na forma de complexo parcial da totalidade
social, através da sua relativa autonomia frente aos demais complexos sociais e a
totalidade. A heterogeneidade entre o direito e a economia não elimina a interação entre
estes complexos, mas evidencia que esta interação ocorre de forma incongruente entre
uma esfera e outra. Esta incongruência se expressa também no caráter de
desenvolvimento tendencial da esfera econômica como um todo, ou seja, na ausência de
um desenvolvimento teleológico desta e do caráter predominantemente teleológico da
esfera jurídica. Este caráter teleológico da esfera jurídica só é possível por causa da sua
caracterização como reflexo e reconhecimento dos fatos econômicos.
Na escala da sociedade enquanto totalidade concreta, temos uma relação
análoga, só que ainda mais complexa e articulada, entre economia e direito.
Mais que isso: a heterogeneidade é aqui ainda mais acentuada, já que agora
não se trata apenas de heterogeneidade no interior de um único pôr
teleológico, mas entre dois sistemas diversos de pores teleológicos. O direito
é ainda mais nitidamente um pôr do que a esfera e os atos da economia, já que
só surge numa sociedade relativamente evoluída, com o objetivo de consolidar
de modo consciente, sistemático, as relações de dominação, de regular as
relações econômicas entre os homens, etc. Basta isso para notar que o ponto
de partida de tal pôr teleológico tem um caráter radicalmente heterogêneo com
relação à economia (Lukács, 2012, pp. 386).
A polaridade entre a totalidade social e as posições teleológicas singulares como
uma característica essencial do ser social, adquire, aqui, um acento especial quanto ao
caráter diferenciado das posições teleológicas singulares de acordo com o complexo
social em que se concretizam. Desta maneira, as posições teleológicas da esfera jurídica
se diferenciam da esfera econômica em face da autonomia relativa de cada uma destas

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esferas. A característica essencial desta relação é a diferenciação entre teleologia


primária, própria da esfera econômica e a teleologia secundária, concretizada na esfera
jurídica. O caráter diferenciado do objeto do trabalho constitui um aspecto elementar da
incongruência entre o econômico e o jurídico.
Marx em uma carta destinada a Lassale, comentando sobre as concepções de
direito deste, expressa de forma aforística a relação de não congruência entre a esfera
econômica e a jurídica, indicando “um ponto muito essencial” de que “a noção jurídica
de determinadas relações de propriedade – por mais que destas derivem – certamente não
é e não pode ser, por sua vez, com estas congruentes” (Marx, 1861, s/pg.).
Esta incongruência tem como fundamento, as diferenças entre o objeto das
posições teleológicas jurídicas e econômicas. Porém, esta diferenciação do objeto do pôr
teleológico não elimina a estrutura fundamental do caráter heterogêneo entre a prévia
ideação e a práxis; a objetivação como momento determinante do valor; a consciência
como reflexo da realidade e a transformação desta, pela posição teleológica; as
alternativas do pôr teleológico a partir da realidade; o desenvolvimento do campo da
liberdade com o domínio das leis causais; o caráter essencial da totalidade em face das
posições teleológicas singulares; e o caráter teleológico exclusivo das posições
singulares. Estas características estão presentes na teleologia secundária e, portanto, no
direito. Contudo, a esfera jurídica por causa do seu objeto apresenta uma estrutura
peculiar.
O desenvolvimento da estrutura jurídica tende a tornar velada a sua gênese e os
elementos essenciais de sua estrutura, para que possa atuar com relativa autonomia diante
dos demais complexos sociais. O direito como uma forma específica de reflexo,
reconhece os fatos sociais relevantes, sintetizando-os em imperativos abstratos e
fundamentando a autonomia do sistema em si mesmo (plena) a partir de uma estrutura
formalista, homogeneizante e sem contradições internas. Esta estrutura fortalece o caráter
fetichista do direito, na medida em que afasta a necessidade de compreensão de sua
gênese, realizando uma verdadeira inversão de sentido: a criatura se converte no criador,
o reconhecimento de um fato econômico passa a ser a base para o desenvolvimento dos
fatos econômicos. Engels, na Carta a Conrad Schmidt, evidencia esse caráter invertido do
direito.
O reflexo das relações econômicas enquanto princípios de Direito é,
necessariamente, também um reflexo que se situa de cabeça para baixo :
processa-se sem que os agentes tenham dele consciência. O jurista imagina
operar com proposições apriorísticas, enquanto que estas constituem, porém,
apenas reflexos econômicos – assim tudo se encontra de cabeça para baixo.
Parece-me evidente que essa inversão – a qual, enquanto permanece
irreconhecida, constitui o que denominamos de visão ideológica – pode reagir,
por sua vez, novamente sobre a base econômica, modificando-a, dentro de
determinados limites (Engels, 1890, s/pg.).
O direito aparentemente se apresenta como um conjunto de regulamentação de
“proposições apriorísticas” num sistema compacto e homogêneo, em que a sua interação
com a base econômica (reflexo de determinados fatos econômicos) é do ponto de vista
prático compreendido como um pressuposto da práxis econômica.
Por outro lado, a discrepância entre a esfera jurídica e a econômica se explicita,
também, nesta relação entre o desenvolvimento espontâneo do complexo econômico e os
“princípios ordenadores obrigatórios” do complexo jurídico, em que seu desenvolvimento
é submetido a um sistema aparentemente lógico e unitário. Tais princípios ordenadores
são expressão da consciência jurídica autorreferenciada, em que o caráter

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

homogeneizante da estrutura jurídica possibilita equacionar a mudança ou preservação de


imperativos gerais decorrentes das transformações nos compromissos de classe. Esta
autonomia da esfera jurídica em relação à estrutura econômica é reforçada pelo caráter de
reflexo específico da estrutura jurídica.
O direito como reconhecimento de um fato econômico se constitui num tipo
particular de reflexo no qual se realiza uma generalização das condições econômicas de
um determinado período histórico e social. Ingressam na estrutura de reflexo não
exclusivamente os elementos econômicos da sociedade, mas também os elementos
decorrentes da estrutura de dominação social específica. Isto ocorre de tal maneira que o
reflexo da estrutura econômica é captado em suas consequências na totalidade social,
como um momento de reprodução desta e, portanto como expressão de uma situação
histórica e social determinada. Esta condição de reflexo é, ao mesmo tempo, a origem das
contradições entre a esfera econômica e a jurídica e o caráter específico do direito na
manutenção e preservação de determinados compromissos de classe, decorrentes do
processo de distribuição do trabalho excedente entre as classes sociais. Se por um lado a
discrepância se torna evidente, e pode inclusive opor a estrutura jurídica à estrutura
econômica, em especial quando se trata de mudanças radicais na sociedade, como por
exemplo, um período de revoluções. Por outro lado, é este caráter discrepante entre estas
duas estruturas que possibilita a interação de interesses contraditórios internos à
totalidade social. Diante disto, o caráter de reflexo do direito tem antes de tudo uma
relação prática com o desenvolvimento da totalidade social. Sua capacidade de refletir
determinados fatos econômicos está diretamente subordinada ao papel do direito no
quadro geral da interação social. Isto quer dizer que o direito como reflexo dos fatos
econômicos tem antes de tudo uma função geral no quadro de interação social em que o
reflexo da realidade econômica ocorre de modo deformado. “Nesse campo, não se trata
de fazer uma separação abstrata de verdadeiro e falso na imagem ideal do econômico,
mas de verificar o ser-precisamente-assim de um espelhamento eventualmente falso é
constituído de tal maneira que se torna apropriado para exercer funções sociais bem
determinadas” (Lukács, 2013, p. 498).
Destaca-se o papel do caráter autorreferenciado do direito que busca se constituir
como um campo autônomo frente às demais estruturas do ser social. O processo de
abstração do pôr teleológico no âmbito do direito implica, por um lado, no afastamento
dos elementos de sua gênese, e por outro, no resultado prático do mandato social do
direito no quadro de interação social.
É exatamente este o caso da “falsidade” gnosiológica do direito. Os critérios
do processo de abstração objetivante que o pôr jurídico efetua no conjunto da
realidade social consiste em se ele é capaz de ordenar, definir, sistematizar, etc.
os conflitos socialmente relevantes de maneira tal que o seu sistema possa
garantir a otimização relativa do respectivo estado do desenvolvimento da sua
própria formação, visando ao enfrentamento e à resolução desses conflitos. (É
óbvio que isto pode ser efetuado em conformidade com os interesses da classe
dominante em cada caso). Engels tem toda a razão ao trazer
metodologicamente para o primeiro plano a ausência de contradição, ou seja,
o domínio da lógica formal, para essa área. Contudo, a extrapolação não
dialéticos dessa exigência, que ocorre com frequência entre os especialistas da
esfera jurídica, leva igualmente a formar um falso conhecimento da estrutura
do ser social que dai resulta. Porque o lógico, nesse caso, permanece um mero
instrumento da formação ideal: o conteúdo daquilo que, por exemplo, deve ser
encarado como idêntico e não-idêntico não é determinado pela objetividade
social existente em si, mas pelo interesse da classe dominante (ou das classes

333
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

dominantes, ou dos compromissos de classe) em como determinados conflitos


devem ser regulados de modo bem determinado e, por essa via dirimidos.
Nesse processo, o que socialmente forma em si um todo coerente pode muito
bem ser separado e o heterogêneo pode ser reduzida um denominador comum;
se e quando isso acontece, se quando a união ou separação estão corretas não
é decidido por critérios lógicos (embora tudo apareça numa forma lógica), mas
pelas necessidades concretas de uma situação histórico-social concreta.
(Lukács, 2013, 499).
Sem eliminar o caráter de momento predominante da esfera econômica no
desenvolvimento da esfera jurídica, fica evidente que a função de orientação dos
imperativos gerais do direito corresponde ao complexo quadro de interações sociais em
que a própria estrutura econômica é condicionada à reprodução da totalidade social. Neste
sentido, a discrepância entre o direito e a economia se fundamenta não apenas nas
posições teleológicas singulares, mas também na função (mandato social) exercido pelo
complexo jurídico no âmbito da reprodução da totalidade social. Novamente, a polaridade
entre as posições teleológicas singulares e a totalidade social se faz presente, indicando a
determinação reflexiva do todo sobre os complexos parciais, numa relação entre essência
e fenômeno.
A legalidade do ser social está diretamente vinculada à sua gênese, ou seja, ao
trabalho. Aqui interessa explicitar que o caminho de análise realizado, em momento
algum deixou de referir-se a esse fundamento do ser social, dos desdobramentos
decorrentes dele. Nesta totalidade social, o complexo econômico, as contingências,
decorrentes de nossa ineliminável relação com a natureza constitui-se como o momento
predominante na reprodução do ser social. A totalidade social desenvolve-se dentro
daquelas tendências gerais do ser social: recuo das barreiras naturais (ineliminável),
desenvolvimento da produtividade social e consequente intensificação da divisão social
do trabalho; e ampliação – intensiva e extensiva – da sociabilidade do ser social. O caráter
tendencial desse desenvolvimento é dado justamente pelo desenvolvimento desigual entre
os distintos complexos sociais. Para Lukács, o caráter de interação dos complexos é
sintetizado desta forma:
Ora, se recordarmos os aspectos de similaridade ontológica de base e
superestrutura (…), ou seja, que ambas estão baseadas em pores teleológicos e
em suas cadeias causais, já não soará tão chocante se dissermos que, na
realidade social, os limites entre essência e fenômeno muitas vezes se tornam
fluidos, que as diferenças realmente existentes só podem ser constatadas com
alguma precisão a posteriori, com o auxílio de análises conceituais, científicas.
Assim, certas relações de produção condicionam certas formas do direito, e a
sua conjunção é tão forte na imediaticidade do ser social que as pessoas que
agem têm de tornar uma objetividade unitária presente nelas para pressuposto
ou objeto de seus pores teleológico-práticos. Isso naturalmente não impede que
elas constituam complexos extremamente díspares do ser social que atum de
modo – relativamente – independente um do outro, não impede que as relações
de produção, impelidas pelo desenvolvimento das forças produtivas, se
modifiquem independente do sistema legal e, desse modo, necessariamente
imponham a este a modificação total ou parcial ou pelo menos as
reinterpretações correspondentes. Consumada essa transformação, surge para
a práxis imediata da nova objetividade uma situação média mais ou menos
parecida com a antiga.(Lukács, 2013, pp. 492-493).
O trabalho é a homogeneidade presente na base e na superestrutura, o elemento
fundante do ser social, presente nos distintos complexos do ser social. O caráter histórico

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

do desenvolvimento do ser social se manifesta como um elemento essencial para o seu


entendimento, à medida que os limites entre a essência e o fenômeno podem ser
estabelecidos apenas post festum. Assim, também se manifesta o caráter de continuidade
do ser social, em que as posições teleológicas são constantemente reflexivas sobre as
causalidades socialmente postas. Alterando a concretude da realidade sobre a qual, novos
pores teleológicos serão efetivados, independentemente do fato dos indivíduos terem ou
não consciência disto. De tal forma que as transformações na base econômica refletirão
uma adequação contingente da esfera jurídica. Porém, esta possível reacomodação de um
complexo em relação ao outro, forjados na base econômica, se insere na
continuidade/transformação da reprodução do ser social em que as novas necessidades e
novas possibilidades de resposta, para as posições teleológicas precedentes, constituem a
esfera das possibilidades alternativas da práxis, ou seja, a esfera da liberdade.
A continuidade do ser social está articulada às possibilidades de interação dos
complexos sociais em que o caráter tendencial do seu desenvolvimento seja concretizado,
superando os obstáculos de sua interdição. Neste sentido, o direito pode se converter num
poderoso instrumento de orientação das posições teleológicas singulares, conforme passa
a ser conscientemente orientado pelo desenvolvimento da totalidade do ser social, e não
como um reflexo predominante da dinâmica econômica do modo de produção do capital.
Sem olvidar o momento predominante do reflexo econômico, o direito estabelece
uma intensa articulação com os demais complexos do ser social e com sua totalidade. Em
especial, no atual estágio de desenvolvimento da sociabilidade do ser social, a estrutura
jurídica é um poderoso mediador das relações internas aos distintos complexos do ser
social, como a política, a religião, a educação, etc. Nesta relação com os demais
complexos, o momento predominante do complexo econômico não é eliminado, bem
como a gênese de classe do direito, contudo, estes elementos são objetivamente afastados
da interação por causa da estrutura lógica e da autonomia pressupostas da estrutura
jurídica.
A gênese e o desenvolvimento da esfera jurídica evidenciam o caráter
contraditório da relação entre direito e economia. Se por um lado não ha que se falar em
direito sem se referir ao modo de produção capitalista, por outro lado, a esfera jurídica se
concretiza como um pôr teleológico diferenciado do pôr teleológico no âmbito da
produção material do capital e forja uma aparante autonomia perante a base econômica,
não apenas ela como diante de toda a totalidade social, apresentando-se como princípio
orientador das posições teleológicas dos diferentes complexos da totalidade social. Neste
sentido, ocorre a aparente inversão de sentido em que a esfera jurídica é compreendida
como pressuposto dos pores teleológicos no âmbito das demais esferas fo ser social e em
particular no âmbito do complexo econômico.
Esta síntese das questões apresentadas, longe de abordar exaustivamente a
questão, tem como finalidade explicitar alguns elementos essenciais para a investigação
jurídica das relações entre o direito e a economia, possibilitando perceber que as
incongruências entre ests esferas não elimina a necessária interação destes complexos na
totalidade social como elementos que podem reafirmar o caráter tendencial das
legalidades do desenvolvimento do ser social, ou se constituírem em contratendencias,
obstáculos, ao seu desenvolvimento.

Bibliografia citada

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

ENGELS, Friedrich. Carta de Friedrich Engels a Conrad Schmidt. 27 de Outubro de 1890.


<http://www.scientific-socialism.de/FundamentosCartasMarxEngels271090.htm>
Acessado 27/07/2018.

LUKACS, Giörgy. Para uma ontologia do ser social I – São Paulo: Boitempo,2012.

_______. Para uma ontologia do ser social II – 1. Ed. – São Paulo: Boitempo,2013.

MARX, KARL. Prefácio. In: Para Crítica da Economia Política. São Paulo: Abril
Cultural, 1982a. (Col. Os Economistas).

_______. Sobre o Direito de Herança, em Face dos Contratos e da Propriedade Privada.


2-3 de Agosto de 1869. In: <http://www.marxists.org/portugues/marx/1869/08/03.htm>
Acessado 27/07/2018.

_______. Carta a Lassale. Londres, 22 de julho de 1861. <http://www.scientific-


socialism.de/FundamentosCartasMarxEngels220761.htm> Acessado 27/07/2018.

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DIREITO NA “CRITICA AO PROGRAMA DE GOTHA”

Débora de Araújo Costa


Universidade Federal de Minas Gerais
deboradearaujo18@gmail.com

Resumo
O presente artigo analisa a crítica ao Direito realizada Karl Marx através da seleção de
trechos específicos da obra Crítica ao Programa de Gotha. Se trata de uma crítica
baseada principalmente nas noções de distribuição justa do fruto do trabalho e igual
direito e sua assimilação pelo movimento operário alemão, na qual o autor trava um
embate com as ideias de Ferdinand Lassalle, precursor da social democracia alemã. A
crítica ao Direito assume então os contornos da crítica de uma aliança entre a classe
trabalhadora e o Estado para a realização da sociedade comunista.
Palavras-chave: Direito; Reformismo; Socialismo; Estado

RIGHT IN “CRITIQUE OF THE GOTHA PROGRAMME”

Abstract
This article analyses the critique of Right made by Karl Marx through the selection of
specific passages from the Critique of the Gotha Programme. It refers to a critique based
mostly on the notions of fair distribution of the proceeds of labor and equal right and its
assimilation by the German working class movement, in which the author sets a clash
with the ideas of Ferdinand Lassalle, precursor of the German social democracy. The
critique of right shapes into the critique of the alliance between the working class and
the State to the construction of the communist society.
Keywords: Right; Reformism; Socialism; State.

Introdução

Em 1875, poucos anos após a experiência histórica da Comuna de Paris,


dois partidos operários alemães se unificaram, na cidade de Gotha: a Associação Geral
dos Trabalhadores Alemães (ADAV), fundada por Ferdinand Lassalle e o Partido
Social-Democrata dos Trabalhadores (SDAP), dirigido por Wilhelm Liebknecht,
Wilhelm Bracke e August Bebel, quadros políticos próximos de Karl Marx.
A trajetória política de Marx foi iniciada durante a atividade jornalística na
juventude, na qual se viu obrigado a tratar das questões materiais de seu tempo,
redigindo os textos de 1843 e 1844 onde inaugura o pensamento propriamente marxiano
(CHASIN, 2012). As questões sociais sempre foram o elemento orgânico da teoria
marxiana, acompanhando o autor por toda sua obra, afinal “Os filósofos apenas
interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo.”
(ENGELS; MARX, 2007, p.535). A época das críticas feitas ao programa de unificação,
Marx já havia redigido o Manifesto Comunista e protagonizado a consolidação da
Primeira Internacional.
Apesar de não ser contrário a unificação, Marx teceu duras críticas ao programa
de coalizão. Seus comentários ao texto, apesar de dispersos e característicos de um
escrito que não pretendia à publicação, se tornaram “um texto coerente de combate

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

contra o socialismo aliado ao Estado”(LÖWY, 2012 In: MARX, 2012, p.10). Foram
enviadas a Wilhelm Bracke por correspondência, para que chegasse ao conhecimento
dos partidários da SDAP – partido do qual Bracke era dirigente.
O manuscrito ficou desconhecido do público por muitos anos, sendo enfim
publicado em 1891, por Friedrich Engels, executor testamentário de Marx - falecido em
1883. Engels, para quem o texto em questão demonstrava o posicionamento de Marx
em relação aos princípios econômicos e estratégicos da militância de Lasalle, justifica a
linguagem impetuosa do manuscrito no fato de à época ele e Marx estarem de tal forma
envolvidos no movimento político alemão que “o retrocesso (...) anunciado nesse
projeto de programa só podia nos perturbar violentamente” (ENGELS, 2012 In: MARX,
2012,p.18), além de acreditar que os anarquistas, na figura de Bakunin, poderiam de
maneira oportunista atribuir a eles a responsabilidade do programa.

A questão do Direito e o Socialismo Jurídico

Engels e Kautsky, travando uma luta contra o socialismo jurídico, formularam a


respeito da concepção jurídica de mundo, pela qual “as relações econômicas e sociais
(...) agora se representam fundadas no direito e criadas pelo Estado” (2012, p.18). Ainda
que o Direito não tenha surgido com as Revoluções Burguesas, sua universalização e
generalização ocorreram nos marcos do desenvolvimento do mercado, pois segundo os
autores “(...) uma vez que a concorrência, forma fundamental das relações entre livres
produtores de mercadorias, é a grande niveladora, a igualdade jurídica tornou-se o
principal brado de guerra da burguesia” (ENGELS, KAUTSKY, 2012, p.19). Trata-se
então de identificar as condicionantes históricas e materiais1 que permitiram que a
consolidação da concepção jurídica de mundo atingisse não apenas as relações sociais
nos marcos de uma sociabilidade burguesa, mas a própria luta de classes que em sua
estratégia de luta pela posse do Estado “deveria ser conduzida por meio de
reivindicações jurídicas” (ENGELS, KAUTSKY, 2012, p.19).
A tese de uma especificidade burguesa do Direito, contrária a noção de ubis
societas ibi jus, demonstra principalmente que se trata de uma forma social que não
pode ser transposta na história, alterando-se apenas seu conteúdo que seria determinado
pela correlação de forças sociais2. Não se admitindo, portanto, um direito proletário, ou
seja, um conjunto de leis de caráter socialistas que seriam promulgadas sem romper com
os elementos fundantes da forma jurídica3.
A preocupação de que a classe operária assimilasse a formula burguesa de
reinvindicações jurídicas foi um ponto crucial das glosas de Marx ao Programa de
Gotha. Afinal, nesse momento a concepção de partido político se distingue do conceito
atual de partido, no qual identificamos um instrumento de disputa eleitoral. O partido
político revolucionário, em sua concepção clássica, é aquele que tem como principal
tarefa a organização da classe trabalhadora, tendo como objetivo estratégico a revolução
proletária4. Logo, o programa de Gotha anuncia a própria estratégia revolucionária da

1
O caráter ideológico de um conceito não elimina aquelas relações reais e matérias que esse exprime”.
(PACHUKANIS, 2017, p. 89).
2
Cf. NAVES, 2014, p. 11-12.
3
Cf. Pachukanis, 2017.
4
Cf. Lenin, 2010.

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classe operária alemã, o que não deveria deixar margens para uma estratégia baseada no
socialismo aliado ao Estado.

Direito na “Crítica ao Programa de Gotha”

Em sua primeira tese, o programa anuncia


O trabalho é fonte de toda riqueza e toda cultura, e como o trabalho
útil só é possível na sociedade por meio da sociedade, o fruto do
trabalho [Arbeitsertrag] pertence inteiramente, com igual direito, a
todos os membros da sociedade. (MARX, 2012, p. 23)

Sobre esse ponto, Marx tece algumas considerações. Em primeiro lugar, desconstrói a
noção de que o trabalho é a fonte de toda riqueza. A natureza é a fonte dos valores de
uso, e o trabalho se realiza com “os objetos e os meios a eles pertinentes” (MARX,
2012, p. 23). O trabalho, portanto, é a exteriorização da força de trabalho, a única capaz
de gerar valor (MARX, 2013, p.116-119). Porem uma vez que o homem estabelece uma
relação de propriedade com a natureza, essa seria eliminada da equação deixando o
trabalho em local privilegiado na função de geração de riquezas.
Para o autor, isso não ocorre por acaso, uma vez que interessa a burguesia a ideia
de que o trabalho não apenas é natural ao homem, mas, não possuindo outra mercadoria
que não seja a própria força de trabalho se vê “escravo daqueles que se apropriaram das
condições objetivas de trabalho “ e “só pode trabalhar com a sua permissão” (MARX,
2012, p.24).
Ou seja, o trabalho não ocorre no abstrato e só se pode afirmar que o trabalho é
fonte de toda riqueza ocultando a apropriação dos meios objetivos para a sua realização,
e em última instancia, ocultando a própria exploração da força de trabalho.
Nesse momento, podemos relembrar o que Marx chamou n’O Capital de “duplo caráter
do trabalho” pois:
Todo trabalho é, por um lado, dispêndio de força humana de trabalho
em sentido fisiológico, e graças a essa sua propriedade de trabalho
humano igual ou abstrato ele gera o valor das mercadorias. Por outro
lado, todo trabalho é dispêndio de força humana de trabalho numa
forma especifica, determinada a realização de um fim, e nessa
qualidade de trabalho concreto e útil, ele produz valores de uso.
(MARX, 2013, p.124).

Assim, para Marx, “trabalho útil” só poderia ser o trabalho que gere o efeito
visado, podendo ser realizado por um selvagem que abate um animal para se alimentar
ou se defender. Mas o programa associa esse trabalho útil como sendo possível apenas
em sociedade, o que nos levaria a um ponto crucial da política lassalliana: fruto integral
do trabalho que pertence inteiramente a todos os membros da sociedade, pois apenas
através dela ele se realiza. Esses elementos serão melhor desenvolvidos no terceiro
ponto do programa, porem Marx se atenta agora ao fato de a fraseologia do parágrafo
deveria ser substituída por uma demonstração de como a sociedade capitalista fornece
as bases e as condições materiais para que se rompa de vez como a própria exploração
do trabalho, pois essa é a tarefa de um programa que se diz revolucionário.
Podemos prosseguir para o próximo ponto do programa a ser analisado

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A libertação do trabalho requer a elevação dos meios de trabalho a


patrimônio comum da sociedade e a regulação cooperativa
[genossenschaftliche] do trabalho total, com distribuição justa do fruto
do trabalho. (MARX, 2012, p. 27).

Alguns pontos são cruciais nesse momento, pois além de retomar a ideia de fruto
integral do trabalho e igual direito, o programa anuncia também a perspectiva de
cooperativa de trabalho e de justiça, expressa na ideia de “distribuição justa”.
A respeito do fruto do trabalho, que não especifica se se trata de seu produto ou
valor, Marx é categórico “’Fruto do trabalho’ é uma noção vazia, posta por Lassalle no
lugar de conceitos econômicos determinados” (MARX, 2012, p.27). Fruto do trabalho
tomado como produto do trabalho é produto social total do qual deveriam ser realizadas
deduções decorrentes de necessidades econômicas que de forma alguma poderiam ter
como base de cálculo a justiça (MARX, 2012, p. 28). De modo que o fruto integral se
transforma em fruto parcial (MARX, 2012, p.29) que seria revertido aos membros da
sociedade.
A ideia de que se possa desprender um conceito de justiça abstrato ignora que
cada classe, ou cada qual, possui a sua própria noção de justiça, pois os próprios
burgueses considerariam sua distribuição como justa, tendo como base o atual modo de
produção. Afinal, “as relações econômicas são reguladas por conceitos jurídicos, ou, ao
contrário, são as relações jurídicas que derivam das relações econômicas? ” (MARX,
2012, p.27).
A formula lassalliana, ao colocar ênfase na distribuição de maneira isolada,
ignora a produção. A distribuição dos meios de consumo - inclusive os frutos do
trabalho - é uma consequência da distribuição dos próprios meios de produção (MARX,
2012, p. 32). Ela pede uma distribuição mais justa sem considerar o nexo essencial
entre a distribuição e as relações de produção. Tratar a distribuição de maneira
independente da produção é o que Marx e Engels chamaram de Socialismo Vulgar,
herança da economia burguesa. (MARX, 2012, p. 33)
Consequentemente, o produtor individual, após realizadas as devidas deduções
receberia como fruto do trabalho o equivalente ao que contribuiu. Nesse momento, ao
tratar da ideia de igual direito se torna evidente que o igual direito não rompe com a
noção de equivalência, pois a mesma quantidade de trabalho que o produtor individual
deu a sociedade é recebida de volta em outra forma, sendo que o que ele dá a sociedade
nada mais é que sua quantidade individual de trabalho (MARX, 2012, p. 29-30).
“Ele recebe da sociedade um certificado de que forneceu um tanto de trabalho
(depois da dedução de seu trabalho para os fundos coletivos) e, com esse certificado
pode retirar dos estoques sociais de meios de consumo uma quantidade equivalente a
seu trabalho” (MARX, 2012, p.30). Aqui o trabalho continua sendo igual padrão de
medida, e impera o princípio que regula a troca de mercadorias “segundo o qual uma
quantidade de trabalho em uma forma é trocada por uma quantidade igual de trabalho
em outra forma” (MARX, 2012, p.30).
A distribuição justa do fruto do trabalho é, ao final, a lógica da troca de
equivalentes aplicada a um trabalho cooperativo, e “o igual direito é ainda, de acordo
com seu princípio, o direito burguês” (MARX, 2012, p.30), ou seja, a forma social que
regula a troca de mercadorias. Ainda que aqui exista um progresso em relação a
sociedade capitalista, o direito “continua marcado por uma limitação burguesa”.

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Nosso objetivo aqui é uma sociedade comunista, não como ela se


desenvolveu a partir de suas próprias bases, mas, ao contrário, como
ela acaba de sair da sociedade capitalista, portanto trazendo de
nascença as marcas econômicas, morais e espirituais herdadas da
velha sociedade de cujo ventre ela saiu. (MARX, 2012, p.29)

Ou seja, Marx não nega que o novo traz consigo os elementos do velho, mas
alerta que nem por isso se pode criar esperanças em um direito proletário ou socialista,
pois mesmo no trabalho cooperativo, o igual direito segue indiferente as diferenças
individuais e as diferenças de classe, de modo que ele é um “direito da desigualdade”.
Afinal, uma vez que o trabalho segue sendo o padrão de medida, os trabalhadores por
questões de idade, físicas, talentos, etc., acabam fornecendo a sociedade uma quantidade
desigual de trabalho e recebendo uma quantia desigual do fundo social. Porém
O direito, por sua natureza, só pode consistir na aplicação de um igual
padrão de medida; mas os indivíduos desiguais só podem ser medidos
segundo um padrão igual de medida quando observados do mesmo
ponto de vista, quando tomados apenas por um aspecto determinado,
por exemplo, quando, no caso em questão, são considerados apenas
como trabalhadores e neles não se vê nada além disso, todos os outros
aspectos desconsiderados. (MARX, 2012, p. 31).

Essas distorções são inerentes e necessárias ao direito, logo, se formos falar de


uma distribuição igual do fruto do trabalho em função da quantidade de trabalho que foi
dada a sociedade pelo individuo, a distribuição será necessariamente desigual. Porém,
segundo o próprio Marx, essas distorções são inevitáveis em uma sociedade socialista,
já que “o direito nunca pode ultrapassar a forma econômica e o desenvolvimento
cultural, por ela condicionado, da sociedade” (MARX, 2012, p.31).
Se as distorções são inevitáveis, e a superação do direito se mostra impossível
em um primeiro estágio da sociedade comunista, porque Marx condena com tanto vigor
a noção de igual direito no Programa de Gotha? Como abordamos anteriormente se trata
da estratégia política de um partido revolucionário, que pretende construir a revolução
proletária. Logo, o que Marx condena não é a existência do direito nessa sociedade, mas
sua incorporação à estratégia política, ou seja, a aposta no direito como meio de se
alcançar uma sociedade comunista. O reformismo pode ser caracterizado como a crença
na melhoria do Estado e suas instituições, entre elas o Direito, como uma forma de
superação do capitalismo. Em suas glosas críticas marginais de 1844, Marx já declarava
Onde há partidos políticos, cada um encontra o fundamento de
qualquer mal no fato de que não ele, mas o seu partido adversário,
acha-se ao leme do Estado. Até os políticos radicais e revolucionários
já não procuram o fundamento do mal na essência do Estado, mas
numa determinada forma de Estado, no lugar da qual eles querem
colocar uma outra forma de Estado (MARX, 2010c, p. 59) (grifo
nosso).

Aliás, no Programa de Gotha, o trabalho cooperativo ocorria em “cooperativas


de produção com subvenção estatal e sob o controle democrático do povo trabalhador”
(MARX, 2012, p. 39-40). Marx chama isso de ilusões democráticas que substituem o
processo revolucionário de transformação da sociedade por uma crença na melhoria e

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subvenção do Estado, que aceitaria pacificamente ser controlado pelo povo trabalhador.
Retomando as glosas críticas marginais de 1844, temos que o “suicídio é contra a
natureza” (MARX, 2010c, p. 61) de modo que uma vez que a transformação da
sociedade passa necessariamente pela destruição do Estado capitalista, seria no mínimo
ingênuo acreditar que esse tomaria parte ativa no processo.
“Entre a sociedade capitalista e a comunista, situa-se o período da transformação
revolucionária de uma na outra. A ele corresponde também um período político de
transição, cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado”
(MARX, 2012, p.43) ou, como desenvolvido por Lenin
O proletário necessita do Estado só por um certo tempo. Sobre a
questão da supressão do Estado, como objetivo, não nos separamos
absolutamente dos anarquistas. Nós sustentamos que, para atingir esse
objetivo, é indispensável utilizar provisoriamente, contra os
exploradores, os instrumentos, os meios e os processos do poder
político, da mesma forma que, para suprimir as classes, é
indispensável a ditadura provisória da classe oprimida. (1987, p. 75)

Temos então um programa que abre mão de categorias da economia política para
explicar a exploração da força de trabalho e sua superação e que propaga uma crença
idealista da aliança do proletário ao Estado, ignorando o período necessário da ditadura
do proletariado, que serviria, entre outros, para organizar a resistência à reação
necessária da classe capitalista contra a revolução proletária.
No capitalismo, a única mercadoria que o proletário dispõe para trocar por
valores de uso é a própria força de trabalho (cf. MARX, 2013), tendo sido separado dos
meios de produção, assim a distribuição justa do fruto de trabalho de Lassalle na qual o
trabalho é o padrão igual de medida não supera a noção da troca de equivalentes, na
qual o trabalhador se torna um equivalente vivo (cf. NAVES, 2014). E sobre as
condições pelas quais se pode superar essa “maldição histórica” que se deve debruçar a
classe operária, ao invés de anunciar um Estado livre que já se encontra realizado, e não
passa, em essência, do próprio Estado capitalista.
Existe uma diferença crucial entre reconhecer os limites de uma sociedade de
transição, que ainda carrega consigo as marcas da antiga, e trabalhar para seu
desmantelamento, e entre apostar na melhoria dessas bases para a construção de uma
nova sociedade. Sobre isso, Marx não poderia ser mais claro
Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiver sido
eliminada a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do
trabalho e, com ela, a oposição entre trabalho intelectual e manual;
quando o trabalho tiver deixado de ser mero meio de vida e tiver se
tornado a primeira necessidade vital; quando, juntamente com o
desenvolvimento dos indivíduos, suas forças produtivas também
tiverem crescido e todas as fontes da riqueza coletiva jorrarem em
abundancia, apenas então o estreito horizonte jurídico burguês poderá
ser plenamente superado e a sociedade poderá escrever em sua
bandeira “De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo
suas necessidades!” (MARX, 2012, 31-32)

Conclusão

342
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

Em um mundo marcado por desigualdades, a perspectiva de uma distribuição


justa e de de um igual direito podem “encher os olhos” até mesmo dos mais lúcidos.
Entretanto, Marx nunca se contentou com soluções simples. Desde os escritos de 1843,
em especial, Sobre a Questão Judaica o autor já chamava a atenção ao fato da
igualdade, e seu par liberdade, serem frutos de uma concepção burguesa de mundo. A
igualdade formal entre os homens representa apenas a igualdade entre potenciais
proprietários que vão ao mercado vender suas mercadorias, e não possui lastro real na
vida material.
O problema, como elaborado n’O Capital, é que para a maioria das pessoas, a
única mercadoria da qual dispõem para vender é a própria força de trabalho, que é
vendida ao capitalista em troca de um salário. Logo, uma relação de exploração se
torna, aparentemente, uma relação entre proprietários iguais que estabelecem livremente
uma troca mercantil. O direito não reconhece a classe, ou a desigualdade, pois seu
padrão deve ser necessariamente um igual padrão de medida.
Por isso, não deveria causar espanto que o autor combatesse com tamanha
ferocidade a assimilação da concepção jurídica de mundo pelo movimento operário
alemão. As glosas ao programa de Gotha são muito mais extensas e ricas do que foi
possível ser apresentado no presente trabalho, tendo sido dado ênfase a três pontos
principais: a “distribuição justa” que ignora o fator da produção e os conceitos
econômicos, o “igual direito” que se apoia na concepção de justiça para proclamar um
direito socialista e a ideia de “subvenção Estatal”, que antes de reconhecer a
necessidade da destruição progressiva do estado capitalista no período de transição
aposta na sua melhoria e “proletarização” como modo de alcançar a sociedade
comunista. Afinal, para Marx, o direito não “está sendo burguês” ele é burguês, e a
superação de seu estreito horizonte ocorrerá quando o próprio trabalho “deixar de ser
um mero meio de vida e se tornar a primeira necessidade vital” (MARX, 2012, p. 31-
32).

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343
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

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344
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 22 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

RADICALIZAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO:


CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS PARA A EFETIVIDADE DA GESTÃO
PÚBLICA A PARTIR DA TEORIA MARXISTA

Greice dos Reis Santos


Universidade Federal do Rio de Janeiro
greice.grs90@gmail.com

Marina Rodrigues Corrêa dos Reis


Universidade do Estado do Rio de Janeiro
marinarreis@hotmail.com

Resumo
A partir das reflexões acumuladas no marco da teoria social crítica, o presente trabalho
busca indicar pistas para pensar a democracia no Brasil de hoje. Para tanto, pautar-se-á
em perspectivas de análises que, apesar de distintas, são complementares e necessárias
ao aprofundamento do debate. As referidas perspectivas se constituem no horizonte de
estudo de autores marxistas que tocam no problema em voga – viabilidade da
radicalização da democracia brasileira – por focos distintos, no âmbito da emancipação
humana e da emancipação política. A questão central deste estudo é compreender a
potencialidade da democracia, a partir do marco da teoria crítica, no contexto de
radicalização da questão social.
Palavras-chave: democracia; emancipação humana; emancipação política.

RADICALIZATION OF THE DEMOCRATIC STATE:


THEORETICAL CONTRIBUTIONS TO THE EFFECTIVENESS OF PUBLIC
MANAGEMENT FROM THE MARXIST THEORY

Abstract
From accumulated reflexes accumulated no framework of critical social theory, or
present work seeks to indicate clues to think democracy not Brazil de hoje. For this
purpose, we plan for analytical perspectives that, although different, are complementary
and necessary to the debate. As referred to perspectives, it is not a study horizon of
Marxist authors who do not have an issue - viabilidade da radicalização da democracia
brasileira - by different focuses, not a field of human emancipation and political
emancipation. A central focus of this study is to understand the potential of democracy,
based on the framework of critical theory, not the context of radicalization of the social
questão.
Keywords: democracy; human emancipation; political emancipation.

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
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INTRODUÇÃO

A partir das reflexões acumuladas no marco da teoria social crítica, o presente


trabalho busca indicar pistas para pensar a democracia no Brasil de hoje. Para tanto,
pautar-se-á em perspectivas de análises que, apesar de distintas, são complementares e
necessárias ao aprofundamento do debate. As referidas perspectivas se constituem no
horizonte de estudo de autores marxistas que tocam no problema em voga – viabilidade
da radicalização da democracia brasileira – por focos distintos, no âmbito da
emancipação humana e da emancipação política1.
Na conjuntura nacional de um acordo "democraticamente legal" de impeachment
e de judicialização de questões políticas, de retração de direitos sociais, da “recente”
intervenção militar no âmbito da segurança pública, se faz necessário lançar luz sobre o
cenário atual a partir da tradição marxista. Para tanto se faz essencial, num primeiro
momento, delimitar inicialmente de qual “democracia” se pretende problematizar.
Segundo Oliveira (1998, p. 41) “a democracia representativa é o espaço
institucional no qual, além das classes e grupos diretamente interessados, intervém
outras classes e grupos, constituindo o terreno do público, do que está acima do
privado”. De modo que essa democracia representativa apreende as classes sociais como
“sujeitos da história” (OLIVEIRA, 1998).
Ao se debruçar sobre a realidade latino-americana, Jaime Osório2 esmiúça as
relações de poder vigentes, e delimita a democracia contemporânea:

Esvaziada de “todo conteúdo normativo (referente às formas de


vida concretas), liberando-a de uma pesada carga que impede
sua coexistência com uma sociedade plural, desigual
(econômica e socialmente) e, sobretudo, sumamente
conflituosa”, a democracia “dá resposta apenas ao muito
importante (problema) de como eleger as pessoas que nos
governam. Mas não resolve, por si mesma, os problemas de
injustiça, do atraso, do emprego e da imobilidade social”. Seu
campo de operações é a política, mas apenas um espaço restrito
dentro da política. Por isso, “sua eficácia se dá no âmbito da
representação política e da forma como aqueles que governam
são eleitos” (OSÓRIO, 2014, p. 276).

Ao se dedicar a analisar a formação brasileira, Chasin aponta que a “história do


Brasil é “rica” em ditaduras e “milagres. Pobre efetivamente de soluções econômicas de
resolução nacional e carente de verdadeira tradição democrática” (CHASIN, 2000a
apud PAÇO-CUNHA, 2015, p. 5). O filósofo brasileiro denomina o sistema instituído
no país como “democracia liberal dos proprietários”.
1
Nas obras Sobre a Questão Judaica de 1843 e Glosas Críticas Marginais ao Artigo “O Rei da Prússia e a
Reforma Social” de um Prussiano de 1844, Karl Marx trabalha com dois conceitos chaves: emancipação
política e emancipação humana. A emancipação política se dá por meios políticos, é a forma final de
emancipação na sociedade capitalista, ao passo que a emancipação humana rompe com todas as formas
de alienação (propriedade, exploração, dinheiro, desigualdade social e da forma política).

2
OSÓRIO, Jaime. O Estado no centro da mundialização – A sociedade civil e o tema do poder. São
Paulo: Outras Expressões, 2014.

346
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
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(...) países como o nosso, onde não vigora, nem nunca vigorou,
uma democracia de proprietários minimamente coerente e
estável. Para nossos proprietários seria demasiado, forte demais
para sua fraqueza de base, tanto que sempre fecharam o círculo
recíproco entre “sociedade civil” e “sociedade política” de
forma autocrática. Seja pela institucionalização desta através de
fachadas liberais (pense-se na República Velha), seja através do
bonapartismo (pense-se no Estado Novo e na forma de
dominação instaurada pelo golpe de 1964 (CHASIN, 2012, p.
26)

Segundo Mattos (2017, p. 22), a dominação burguesa no Brasil, “assolada


sempre pela ameaça da revolução proletária, ainda que em territórios distantes, constrói-
se sobre o pressuposto da necessidade de prevenir tal ameaça, de forma a garantir as
elevadas taxas de exploração da força de trabalho”.

(...) não apenas o golpe de 1964 e a ditadura por ele instalada


seriam resultados da lógica da “contrarrevolução preventiva”,
mas também a “transição democrática” teria sido dirigida pela
mesma lógica. (...) desde as normas constitucionais de 1988
(aperfeiçoadas pelas suas sucessivas “reformas” nas décadas de
1990 e 2000), são evidentes os elementos contrarrevolucionários
preventivos” (MATTOS, 2017, p. 22)3.

A partir desses apontamentos iniciais é que esmiuçaremos a problemática da


democracia por duas correntes analíticas já sinalizadas – emancipação humana e
emancipação política. Embora, sob domínio da burguesia, entendemos que a
democracia pode e deve ser conduzida pelas massas populares. Em vista disso, mais do
que compreender os seus limites na ordem social vigente, a proposta é pensar saídas no
campo das possibilidades, sejam políticas (que se pretendem no interior da ordem
capitalista) ou humanas (que vislumbram a superação desta ordem).

I. DEMOCRACIA PERSPECTIVADA PELA EMANCIPAÇÃO HUMANA

Ao constatar o desenvolvimento de uma democracia não clássica no Brasil ––


Chasin aponta como única saída para a implantação das formas essenciais da
democracia no país ser aquela perspectivada pelo trabalho.

O que implica se pôr imediatamente no terreno do próprio


capital, ou seja, praticar desde logo um diapasão político
negativo, vale dizer: fundir luta econômica com luta política. A
não ser que se queira acreditar que seja possível fazer conviver
instituições de tipo democrático com superexploração do
trabalho, democracia com arrocho salarial. O que se perspectiva,

3
Reflexão trabalhada pelo autor citado a partir do estudo de Renato Lemos, referenciada na obra de
Florestan Fernandes. LEMOS, Renato L. C. Contrarrevolução e ditadura: ensaio sobre o processo político
brasileiro pós-1964. Marx e o marxismo, v.2, n.2, jan./jun.2014.

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
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pois, como passo fundante de uma programática para a


construção de uma democracia dos trabalhadores, é o
rompimento da atual política econômica. E sua necessária
substituição por uma política econômica da perspectiva do
trabalho. O que redunda na fratura e desorganização de certos
aspectos da organização do capitalismo, sem que implique de
imediato a superação do modo de produção do capital
(CHASIN, 2012, p. 26).

De acordo com Naves (2010) a democracia não apreende nenhum interesse4 das
massas, e recria as circunstâncias de seu subdesenvolvimento ao capital.

Mas é também a afirmação de que não pode haver exercício da


política fora do espaço democrático, que política e democracia
são a mesma coisa, e que tudo o que ultrapassa a legalidade
democrática burguesa decai ao nível degradante do banditismo
(NAVES, 2010, p. 63).

Ao se entender os limites estruturais da democracia vigente, da “democracia


burguesa” conforme assinalado por Naves (2010) é que se coloca a necessidade da
democracia ser exercida pela classe que efetivamente pode e precisa realizar a
transformação social com vistas à superação das classes, tendo como norte de realização
a emancipação humana.

Na formação de uma classe que tenha cadeias radicais, de uma


classe na sociedade civil que não seja uma classe da sociedade
civil, de um estamento que seja a dissolução de todos os
estamentos, de uma esfera que possua caráter universal porque
os seus sofrimentos são universais e que não exige uma
reparação particular porque o mal que lhe é feito não é um mal
particular, mas o mal em geral, que já não possa exigir um
título histórico, mas apenas o título humano; de uma esfera que
não se oponha a consequências particulares, mas que se oponha
totalmente aos pressupostos do sistema político (MARX, 2005,
p. 155).

Refletir sobre a radicalização da democracia pela perspectiva da emancipação


humana é ter ciência dos limites inerentes à própria dimensão política, o que impõe
pressupor o rompimento com a ordem capitalista vigente, tendo como horizonte a
transformação social. Pautar-se nessa lógica é ser radical e “Ser radical é agarrar as
coisas pela raiz. Mas, para o homem, a raiz é o próprio homem. (...) é a revolução
radical, a emancipação humana universal (MARX, 2005, p. 154).

4
Cabe sinalizar a distinção necessária entre interesses e necessidades de uma classe social. Enquanto as
necessidades sociais atuam de modo mais espontâneo e no limite da reprodução das condições de
existência da classe trabalhadora, seu interesse somente se realiza com a superação de todas as classes,
isto é, com a transformação das condições objetivas de modo a impedir toda forma de exploração do
homem sobre o homem (REIS, 2016).

348
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Em seu estudo sobre o capitalismo tardio, Mandel assevera que o Estado burguês
“tem sua estrutura determinada pelos princípios de separação dos poderes e de uma
burocracia profissional” (MANDEL, 1982, p. 347):

Essa estrutura poderia, na melhor das hipóteses, construir uma


democracia indireta – governo dos representantes do povo, ao
invés do governo do próprio povo, mas na verdade isso tem
caráter puramente formal, por causa da impotência econômica
da maioria dos assalariados em relação à aquisição dos meios
materiais necessários ao exercício efetivo de suas liberdades
democráticas (MANDEL, 1982, p. 347).

II. DEMOCRACIA PERSPECTIVADA PELA EMANCIPAÇÃO POLÍTICA

Historicamente, o Estado e a burocracia estruturados no Brasil não foram


capazes de produzir ampliação significativa de direitos. Hoje, no país, “[...] não
possuímos um Estado expressivo para a área social nem tampouco uma estrutura
administrativa racional” (SOUZA FILHO, 2011, p. 219).
Tomando como aporte as reflexões marxianas, entendemos que o Estado e a
burocracia representam a dominação de classe presente na sociedade civil e, por essa
razão, a função precípua de ambos é garantir a manutenção e a reprodução das relações
sociais capitalistas. Se por um lado, segundo Souza Filho (2011), essa é a essência do
Estado e de sua estrutura administrativa, por outro lado, a aparência tanto de um quanto
do outro é a dimensão de “universalidade”.
A título de clarificação, em concordância com o autor supracitado, o que
estamos querendo dizer é que, na realidade, essa “dimensão universal” refere-se às
ações do Estado e da burocracia que visam atender às necessidades das classes
subalternas. Recapitulando, o Estado não expressa a vontade geral e tampouco está
voltado para o bem comum, ele simplesmente administra determinados interesses das
classes dominadas, de forma a assegurar a estrutura de dominação fundada na
propriedade privada (SOUZA FILHO, 2011).
Em sua obra Sobre a questão judaica, de 1843, Marx delimita o limite do Estado
quando discute a emancipação política. Segundo o revolucionário:

A emancipação política de fato representa um grande progresso;


não chega a ser a forma definitiva da emancipação humana em
geral, mas constitui a forma definitiva da emancipação humana
dentro da ordem mundial vigente até aqui. Que fique claro:
estamos falando aqui de emancipação real, de emancipação
prática. (MARX, 2010, p. 41, itálicos no original).

Como se pode perceber, o limite da ação estatal, no que diz respeito ao


atendimento dos interesses das classes subalternas, encontra-se no marco da
emancipação política, haja vista que a mesma, em relação ao Estado, permite que ele
subsista enquanto expressão da dominação de classe presente na sociabilidade do
capital. Do ponto de vista civilizatório, poderíamos afirmar que a emancipação política

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é um avanço no que se refere às possibilidades de ampliação de direitos no interior da


sociedade de classes, todavia, ela é a máxima do capital.
O Estado, ao fornecer bens e serviços fundamentais à sobrevivência das classes
subalternas, reforça sua capacidade de impor à sociedade os interesses políticos e
sociais das classes hegemônicas. Ao mesmo tempo e no mesmo processo, os
subalternos colocam, no seio do próprio Estado, questões relevantes aos seus interesses.
Esse movimento, salvo erro nosso, explicita a contradição da esfera pública estatal. Ou
seja, ainda que a função precípua do Estado seja legitimar a dominação de classe, para
cumprir com esta finalidade, ele necessita atender a outros interesses na sociedade que
não diretamente aqueles das classes hegemônicas.
A despeito das críticas que podem e devem ser empreendidas, na sociedade
capitalista, parece válido reconhecer que o Estado se constitui como mediação
estratégica para implementar mudanças favoráveis aos interesses da classe trabalhadora,
mesmo se considerarmos as suas limitações (SOUZA FILHO, 2011).
Assim sendo, no interior da sociedade de classes, para que gestão pública seja
baseada na finalidade de universalização e aprofundamento de direitos, como sustentado
por Souza Filho (2011, p. 220), “[...] não podemos prescindir de Estado forte na área
social e burocracia estruturada, principalmente na dimensão de sua racionalidade [...].
Apesar de não serem suficientes, são estas as condições necessárias”.
Entretanto, como constatado pelo autor, a estruturação de um Estado direcionado
para a universalização de direitos e, por conseguinte, uma ordem administrativa que
efetive essa finalidade, depende da existência de uma hegemonia nessa direção. Em
outros termos, para levarmos a cabo a estruturação de uma administração pública
democrática e universalista é necessário construir aquilo que Coutinho denominou de
projeto de democracia de massa. Trata-se de um projeto marcado por um novo
referencial de relação entre Estado e sociedade, projeto capaz de tornar a gestão pública
mais permeável aos interesses populares (DURIGUETTO, 2007).
Ademais, para que essa hegemonia se constitua no Brasil, a estrutura de
desenvolvimento econômico deve estar orientada nessa direção. Na análise de Souza
Filho (2011, p. 221), a questão central para a efetivação de uma gestão pública
democrática é eminentemente política, vez que “[...] depende da capacidade de as forças
democráticas conquistarem hegemonia em torno de uma finalidade ético-política
voltada para a universalização e aprofundamento de direitos”.
Todavia, como efetivar essa proposta – ou melhor, um projeto de democracia de
massa – na sociedade capitalista? Sem a pretensão de fornecer respostas ilusionistas, na
trilha de Souza Filho (2011) e Paes de Paula (2005), nos parece crucial destacar alguns
elementos e/ou aspectos que consideramos essenciais à efetivação de uma gestão
pública democrática. Lembrando que, mesmo em um cenário adverso, as propostas de
administração democrática devem buscar fortalecer os movimentos de mudança de
projeto e de pacto de dominação (SOUZA FILHO, 2011).
Essa concepção, ao nosso ponto de vista, apesar de representar um grande
progresso, não vislumbra a superação do modo de produção capitalista e, por isso
mesmo, se interpõe nos marcos da emancipação política. Assim, a radicalização
democrática (relacionada à conquista de hegemonia por parte das massas populares) terá
como limite a sociabilidade do capital.
Retomando a nossa argumentação, o primeiro elemento que nos cabe destacar está
relacionado “(...) à imprescindível sintonia de orientação que deve ter a política
econômica e a política social de um governo” (SOUZA FILHO, 2011, p.231). Em

350
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
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outras palavras, a efetivação de uma gestão pública democrática requer o apoio de uma
política econômica capaz de priorizar as demandas das massas populares – somente
assim uma política social poderá ter êxitos, do ponto de vista democrático. Caso
contrário, a política social enfrentará obstáculos estruturais vinculados à política
econômica e, portanto, não conseguirá expandir direitos na ordem social vigente.
Nessa mesma pista, Paula (2005, p.58) coloca a necessidade de
problematizarmos uma nova visão de desenvolvimento nacional capaz de “[...] formular
um projeto nacional e mobilizar capacidade política e administrativa para implementá-
lo”.
Um segundo elemento a tratar, como enfatizado por Souza Filho (2011), é o
binômio descentralização-participação. A descentralização, por si mesma, não se traduz
diretamente em democratização; ao contrário, ela poderá traduzir-se de forma
democrática caso expresse um processo de participação no controle das ações públicas e
se for conduzida pelo governo federal, que deve garantir aos níveis sub-nacionais apoio
técnico e financeiro.
Para Paula (2005), a esse respeito, torna-se imperativo criar organizações
administrativas efetivas, abertas à participação popular e com autonomia para agir em
favor do interesse coletivo. Trata-se de afirmar uma gestão pública que não centraliza o
processo de decisão no aparelho de Estado, antes procura se nutrir de distintos canais de
participação social, em todas as esferas governamentais.
Esse segundo elemento nos impulsiona a tratar um terceiro componente
fundamental: “(...) a articulação do poder público com as organizações da sociedade
civil” (SOUZA FILHO, 2011, p.232). Para o autor supracitado, tal articulação se coloca
em dois campos. O primeiro diz respeito ao processo democrático e de controle das
ações públicas no âmbito da formulação e fiscalização da política pública, que só pode
efetivar-se via intervenção de organizações da sociedade civil nos espaços públicos,
sejam eles formais ou informais. O segundo refere-se à execução de serviços sociais,
isto é, as instituições prestadoras de serviços sociais devem abrir espaços para a
manifestação e posicionamento dos usuários em relação aos serviços prestados. De igual
modo, podemos pensar a execução de serviços em co-gestão entre Estado e
organizações da sociedade civil, haja vista que existem variadas instituições não estatais
que atuam na prestação de serviços sociais5.
Na análise de Paula (2005, p.161), a “administração pública co-gestionária (...)
funcionaria pelas alternativas criadas pela engenharia institucional para a participação
popular na definição de programas, projetos e gestão de serviços públicos”. Como
reiterado pela autora, isso exige reformular a organização do Estado e reinventar novos
arranjos institucionais que impulsionem práticas democráticas. Algumas experiências,
segundo Paula (2005), podem contribuir para o fortalecimento de tais práticas, quais
sejam: os fóruns temáticos, os conselhos gestores de políticas sociais e orçamento
participativo6.
Em vias de finalização, de acordo com Souza Filho (2011), um último elemento
a indicar é a questão do poder nos processos de formulação e execução das políticas

5
Todavia, esse processo de articulação do poder público com as organizações da sociedade civil não pode
retirar do Estado o papel central de responsabilidade sobre o desenvolvimento das políticas sociais, pois
ele é o único capaz de implementar ações que propiciem a universalização e o aprofundamento de direitos
(SOUZA FILHO, 2011, p. 232).

6
Sobre as experiências citadas, ver Paula (2005).

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sociais. Em geral, aqueles que trabalham com tais políticas tendem a não reconhecer a
luta por poder presente no seu âmbito. Assim sendo, para que possamos construir um
projeto de democracia comprometido com as massas populares, far-se-á necessário
considerar a luta por poder no campo da política social, o que significa pensá-la como
um espaço de luta e não como um campo da benemerência, da caridade e da filantropia
social.
Esse último elemento, salvo equívoco, nos impulsiona a pensar o perfil dos
gestores públicos, uma vez que lidam diretamente com a administração das políticas
sociais. Seguindo a reflexão de Paula (2005, p.170), entendemos que o gestor público
comprometido com o projeto de democracia de massa é aquele que possui “[...]
habilidades de negociar e capacidade de operar na fronteira tênue entre a técnica e a
política, desenvolvendo ações voltadas para os problemas da democracia, da
representação e da participação”. “O gestor público que pretenda atuar nessa
perspectiva pode e deve cumprir o papel de ator importante na luta pela hegemonia em
torno de uma ordem democrática” (SOUZA FILHO, 2011, p. 224).
Com base na reflexão apresentada, tornam-se evidentes a necessidade e a
possibilidade de pensarmos e agirmos no campo da democracia – embora limitada pela
sociabilidade do capital – numa perspectiva articulada a movimentos de superação da
ordem capitalista. Isso implica apreender, tanto do ponto de vista teórico quando do
ponto de vista prático-político, os elementos que procurarmos apresentar. Entendemos
que, apesar de limitados, eles são fundamentais para vislumbrarmos a efetividade do
projeto de democracia de massa. Se a curto prazo a tarefa é afirmar esse projeto, no
campo da emancipação política, a longo prazo, o que nos importa reivindicar é a sua
radicalidade, sob o horizonte da emancipação humana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos desafios contemporâneos postos a ordem democrática instituída –


desde as questões de ordem objetiva e estrutural, de “administração” das crises cíclicas
do capitalismo em tempos de barbárie social e o caráter estrutural ocupado pelo fundo
público no capitalismo contemporâneo (OLIVEIRA, 1998), tanto no que diz respeito
aos desafios de ordem subjetiva, como o processo de formação da consciência de classe
e sua (des) mobilização – é que se vislumbrou compreender a potencialidade creditada
ao aparato democrático sob a perspectiva da emancipação política e da emancipação
humana.
A partir do marco da teoria crítica é que o acúmulo das distintas perspectivas
enunciadas, no âmbito das produções marxistas foi tomado com intuito de apreender as
(in) potencialidades creditadas a democracia. Cabe indicar que assumir a perspectiva da
emancipação política e da emancipação humana não significa assumir uma perspectiva
de evolução etapista, ou de transição pré-estabelecida na sociabilidade do capital e das
possibilidades de se romper com tal ordem. Em outras palavras, compreendemos a
emancipação política como a aquela que coloca como luta social na ordem do dia,
entretanto, essa não se constitui na realização posterior de desenvolvimento que culmine
na emancipação humana. Afirmar isso seria romper com a compreensão dialética da
totalidade.
Analisar a democracia, a partir jovem democracia brasileira, impõe
circunscreve-la no âmbito dos países dependentes. Nesse sentido, Boron (1994, p. 37),

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 22 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

em sua obra “Estado, Democracia e capitalismo na América Latina”, aponta os


possíveis desdobramentos da democracia latino-americana: “se visualiza no horizonte
novas emboscadas para a democracia nos capitalismos periféricos e cujos efeitos de
longo prazo podem ser tão deletérios como no passado o foram os golpes militares”.
Com a instauração de um quadro de

Ingovernabilidade tendencial do regime democrático, acelerada


deslegitimação e provável desestabilização com risco de
reinstalação de ditadura militar de novo tipo: fervor de
fundamentalismo nacional-populista que se apossaria das
grandes massas pauperizadas pelo ajuste e condenadas ao
inferno da marginalidade pelas democracias capitalistas
“realmente existentes” na América Latina (BORON, 1994,
p.38).

Diante da possibilidade entrevista pelo autor: de uma democracia legal, que se


institui como neo-ditadura se coloca a urgência da luta no “campo dos possíveis”, no
âmbito da emancipação política. Uma vez que direitos sociais são descontruídos
paulatinamente na ordem do dia. Diante dos condicionantes estruturais de uma
democracia dependente, apenas a independência e a construção de uma outra ordem
societária possibilitaria vislumbrar a efetivação da emancipação humana.

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354
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

O PROBLEMA DA VIOLAÇÃO CONTRATUAL:


NOTAS A PARTIR DA CRÍTICA MARXISTA À CONCEPÇÃO DE RICHARD
POSNER EM “LET US NEVER BLAME A CONTRACT BREAKER”

Guilherme Cavicchioli Uchimura


Universidade Federal do Paraná
guilherme.uchimura@hotmail.com

Iara Vigo de Lima


Universidade Federal do Paraná
iaravigo@ufpr.br

Resumo
O trabalho consiste em um estudo do artigo Let Us Never Blame a Contract Breaker, de
Richard Posner, considerado um dos pais fundadores da Análise Econômica do Direito.
Posner sustenta que, após a celebração do contrato, o que importa do ponto de vista social
não é o cumprimento dos termos contratados por si só, mas a eficiência da alocação de
recursos em um ponto de vista extracontratual. A relação contratual, assim, caracteriza-
se pelo momento da calculabilidade da capacidade de cumprir o contrato (ability to
comply). Para Posner, aquele que viola o contrato não deve ser censurado – daí o título:
“let us never blame” – pela sociedade ou desencorajado pelo Estado. Sob a perspectiva
da crítica marxista ao direito, o que se revela na sinceridade posneriana são dois
fundamentos do fenômeno jurídico que se condicionam mutuamente: (i) a calculabilidade
da violação do contrato e (ii) a adeontologicidade do fenômeno jurídico. Concluímos
apontando que o principal desafio que se coloca adiante é, colocando o uso destas
primeiras notas em um contexto de pesquisa mais amplo, identificar as conexões entre a
violação contratual (específico) e a violação do direito (geral).
Palavras-chave: Violação contratual; Violação do direito; Evguiéni Pachukanis; Crítica
marxista ao direito; Richard Posner; Análise Econômica do Direito (Law & Economics).

THE VIOLATION OF LAW PROBLEM:


NOTES FROM THE MARXIST CRITIC TO RICHARD POSNER’S
CONCEPTION IN LET US NEVER BLAME A CONTRACT BREAKER

Abstract
This work is a study about the paper Let Us Never Blame a Contract Breaker, from
Richard Posner, considered one of the founding fathers of Economic Law Analysis or
Law & Economics. Posner contends that, after the conclusion of the contract, what
matters from the social point of view is not the fulfillment of the contractual terms, but
the efficiency of the resources allocation from an extra-contractual point of view. The
contractual relation, therefore, is characterized by the moment of the calculability of the
ability to comply. For Posner, the one who violates the contract should not be blamed –
what explains his paper title – by society or discouraged by the state. From the perspective
of the Marxist Critique of Law, there are two grounds of the juridical phenomenon
revealed in Posnerian sincerity that condition one another: (i) the calculability of breach
of contract and (ii) the adeontologicity of the legal phenomenon. We conclude by pointing
out that the main challenge is to put the use of these first notes in a broader context of

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

research, to identify the connections between breach of contract (specific) and violation
of law (general).
Keywords: Breach of contract; Violation of law; Evguiéni Pachukanis; Marxist Critique
of Law; Richard Posner; Law & Economics.

INTRODUÇÃO
Em trabalho recente, com base na teoria marxiana-pachukaniana, realizamos um
estudo inicial sobre o problema da violação na Análise Econômica do Direito, tomando
em especial obras de Ronald Coase e John Brown. Concluímos provisoriamente que a
tecnicidade aparece como parte da concepção destes autores sobre a violação de normas
jurídicas (UCHIMURA e LIMA, 2018). Aqui, pretendemos dar continuidade ao exercício
da crítica marxista às concepções de violação presentes nesta emergente corrente de
pensamento.
Em termos de método, nas palavras Evguiéni Pachukanis, trata-se de exercer a
crítica à jurisprudência burguesa, a qual
deve, antes de tudo, adentrar no território inimigo, ou seja, não
deve deixar de lado as generalizações e as abstrações que foram
trabalhadas pelos juristas burgueses e que se originam de uma
necessidade de sua própria época e de sua própria classe, mas, ao
expor a análise dessas categorias abstratas, revelar seu verdadeiro
significado – em outras palavras, demonstrar as condições
históricas da forma jurídica (PACHUKANIS, 2017, p. 80).

Abordaremos aqui, mais especificamente, o artigo Let Us Never Blame a


Contract Breaker, de Richard Posner, considerado um dos pais fundadores da Análise
Econômica do Direito (cf. RIEFFEL, 2006; ROSA, 2011; LINHARES, 2011;
ZANATTA, 2012; MACKAAY e ROUSSEAU, 2015). Como veremos, a crítica marxista
à concepção posneriana da violação do direito pode resultar aproximações das condições
históricas da violação do direito em sua especificidade como relação social capitalista,
tema sobre o qual até agora encontramos, em Teoria Geral do Direito e Marxismo
(PACHUKANIS, 2017), apontamentos ainda a serem desenvolvidos.

1 O PROBLEMA DA VIOLAÇÃO NA CRÍTICA MARXISTA AO DIREITO


Em 1926, ao prefaciar a segunda edição de Teoria Geral do Direito e Marxismo
(Teoria Geral do Direito e Marxismo ), Pachukanis afirma: “[a] crítica marxista da teoria
geral do direito está apenas começando” (2017, p. 59).
Completado quase um século da publicação da obra, cuja primeira edição é de
1924, foram muitos os que se dedicaram a elaborar avanços teóricos, propor revisões e
incorporar novos elementos ao que, com Pachukanis, faz-se referência como crítica
marxista da teoria geral do direito. Ainda assim, a importância e a atualidade de Teoria
Geral do Direito e Marxismo , principal obra do autor, permanece sendo amplamente
reconhecida, seja como “a referência máxima quando se trata da relação entre o direito e
o marxismo” (SARTORI, 2015, p. 37), seja como “a principal referência marxista no
campo da filosofia do direito” (KASHIURA JÚNIOR; NAVES, 2011, p. 1). Trata-se, em

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suma, da obra máxima de um autor que representa, “ainda hoje, a mais importante
sistematização de uma teoria marxista do direito” (PAZELLO, 2015, p. 134).
Assumimos neste trabalho que estudar a obra Teoria Geral do Direito e
Marxismo é fundamental para aqueles que pretendem, como seu autor, enfrentar o direito
“como um fenômeno social objetivo” (PACHUKANIS, 2017, p. 98). Entretanto, a tarefa
é evidentemente mais ampla do que o aprendizado das lições do livro de 1924, como
reconhece Pachukanis no trecho já citado. A construção da crítica marxista ao direito
pressupõe tanto a investigação rigorosa do pensamento marxiano sobre o direito –
considerando, inclusive, as importantes obras de Marx com as quais Pachukanis não teve
contato (cf. SARTORI, 2015) –, quanto o desenvolvimento de questões sobre as quais
nosso autor jogou apenas uma luz inicial.
Dentro das limitações de viabilidade em que se insere, o presente trabalho volta-
se à investigação da violação do direito, questão assim referida por Pachukanis no
capítulo sétimo de Teoria Geral do Direito e Marxismo . Sabe-se que o autor, em seus
estudos na Alemanha, entre 1910 e 1914, preparou uma tese de doutorado sobre as
“Estatística das violações das leis de segurança do trabalho”. Infelizmente, não se conhece
o teor do trabalho ou, sequer, se este chegou a ser depositado (NAVES, 2017). Ainda
assim, o interesse de nosso autor pelo tema, anos antes da elaboração e publicação de sua
obra máxima, já indicava que a violação do direito viria a ser um momento do fenômeno
jurídico relevante para o desenvolvimento da crítica marxista da teoria geral do direito.
Pachukanis dedica ao sétimo capítulo de Teoria Geral do Direito e Marxismo
o título “Direito e violação do direito”. Em termos de organização da obra, esta é a última
das sete seções, além da introdução e dos prefácios das reedições. Trata-se, assumindo
que Pachukanis realiza a exposição de sua análise do simples ao complexo, de um dos
momentos de maior concretização histórica do fenômeno jurídico abordados na obra.
Tendo começado pela identificação do elemento mais simples do fenômeno jurídico, o
sujeito de direito, Pachukanis chega aqui a um momento de maior complexidade do
fenômeno jurídico, em que é necessária a mobilização articulada das categorias
desveladas no decorrer de sua obra para a realização da crítica. De fato, afirma o autor:
“a relação jurídica adquire historicamente seu caráter específico antes de tudo em fatos
de violação de direito” (PACHUKANIS, 2017, p. 166).
Nesta seção, Pachukanis trata das formas da relação entre dano e reparação em
estágios primitivos de desenvolvimento até a forma da troca equivalente que, com o
desenvolvimento capitalista, passa a caracterizar a condenação penal. Neste caminho, é
interessante observar com atenção a seguinte passagem: “A lei e a pena por sua violação,
em geral, estão intimamente associadas uma à outra e, dessa maneira, o direito penal como
que assume o papel de representante do direito em geral, é a parte que substitui o todo”
(PACHUKANIS, 2017, p. 167). Ao afirmar que “o direito penal como que assume o papel
de representante do direito em geral”, Pachukanis identifica o direito penal como um ramo
metonímico do fenômeno jurídico, ou seja, uma parte que representa o todo. A análise
que se realiza neste capítulo, portanto, não se refere apenas aos delitos, mas à violação
direito em geral, tema em parte desenvolvido recentemente por Uchimura e Coutinho
(2018). Abre-se, com isso, a possibilidade de investigar a violação do direito, com as
devidas mediações, em distintos momentos, como o contratual, o legal, o judicial etc. (cf.
PAZELLO, 2015).
Colocada esta possibilidade, o presente trabalho volta-se a investigar a violação
do direito em um dos mais fundamentais momentos do desenvolvimento da forma
jurídica: o contrato. Como se afirma na célebre passagem d’O Capital sobre o processo

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de troca, as mercadorias precisam de “um ato de vontade comum” (MARX, 2017, p. 159)
de seus guardiões para serem trocadas. Este ato, prossegue Marx, constitui a “relação
jurídica, cuja forma é o contrato, seja ela legalmente desenvolvida ou não”. Com isso,
para a crítica marxista ao direito, o contrato, expressando a relação jurídica fundamental
entre sujeitos de direito, ou seja, a troca de mercadorias, figura como “o modelo
fundamental de todas as relações jurídicas” (KASHIURA JÚNIOR, 2014, p. 176).

2. O PROBLEMA DA VIOLAÇÃO CONTRATUAL EM RICHARD POSNER E A


CRÍTICA MARXISTA
Posner, como vimos, figura mundialmente como o mais conhecido expoente da
AED. Sua obra abrange uma larga amplitude de temas jurídicos abordados a partir da
perspectiva econômica. Não trataremos aqui, entretanto, do pensamento posneriano em
geral. O propósito deste estudo é examinar os seus escritos voltados especificamente para
a questão da violação eficiente do direito. Posner apresenta formulações sobre o tema
principalmente em dois momentos: primeiro na obra Economic Analysis of Law,
publicada pela primeira vez em 1972, e depois no artigo Let Us Never Blame a Contract
Breaker, de 2009, objeto principal de nosso estudo.
A título de contextualização, cabe apresentarmos uma breve análise do primeiro
destes textos. Em Economic Analysis of Law, Posner trata do conceito de violação
eficiente do direito ao discutir os remédios jurídicos a serem aplicados em casos de
violação de contrato. É a partir desta abordagem que, segundo Gregory Klass (2014), o
conceito violação eficiente – formulado anos antes por Birmingham (1970) – alcança uma
projeção considerável no cenário da doutrina contratual estadunidense.
No início do texto, Posner faz uma distinção introdutória entre as violações
oportunistas e os demais tipos de violação de contrato. Estas, segundo ele, seriam aquelas
“sem justificativa econômica”, identificando casos em que alguém quebra sua promessa
“apenas para tirar vantagem da vulnerabilidade” da outra parte. Para estes casos, Posner
atribui o remédio da restituição dos lucros obtidos pela parte inadimplente à vítima, uma
espécie de punição capaz de desincentivar tal conduta (POSNER, 1986, p. 105).
O maior interesse de Posner, entretanto, está nas violações não oportunistas, a
maior parte das violações de contrato observadas nos Estados Unidos segundo o autor.
Estas podem ser voluntárias ou involuntárias. E esta é uma distinção importante para o
conceito de violação eficiente, como veremos. Em relação às violações voluntárias, o
texto faz referência ao ditado de Holmes que vimos no item anterior (a “heresia
holmesiana”): “[o] dever de manter um contrato na common law significa uma previsão
de que se deve pagar indenização se não mantê-lo – e nada mais”. Posner complementa:
“não faz parte da política do direito [policy of the law] compelir a aderência aos contratos,
mas apenas exigir que a parte escolha entre agir de acordo com o contrato ou compensar
a outra parte pelos danos resultantes de não fazê-lo” (POSNER, 1986, p. 106).
Posner identifica que a regra geral dos remédios contratuais mais eficiente é
aquela em que a indenização é calculada com base na expectativa de lucro da vítima da
violação, regra que podemos denominar de reparação integral, conforme o uso da
dogmática contratual brasileira. Tal medida, prossegue, seria suficiente para “incentivar
o cumprimento da promessa a não ser que isso resulte em um uso ineficiente de recursos”.
E aqui entram os limites da atuação da organização estatal como objeto de preocupação
de Posner.

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O que fazer diante de uma situação em que “uma parte é tentada a quebrar o
contrato simplesmente porque o lucro com a violação excederia suas expectativas de lucro
na conclusão do contrato”? Para o autor, se este ganho cobrir também as expectativas de
lucro da vítima da violação, a violação deveria ser incentivada: “[n]otem como o direito
precisa ser cuidadoso para não exceder indenizações compensatórias se não quiser
impedir violações eficientes do direito” (POSNER, 1986, p. 107-8).
Imaginemos o caso de um contrato em que “A” se compromete a entregar um
produto a “B” em determinado prazo. O fato de um vendedor violar um contrato ao deixar
de entregar um produto combinado, para o autor de Economic Analysis of Law, é um
indício de que “há outra transação que aumenta mais o valor do que a conclusão da
venda”. Neste caso, Posner é enfático: “nós queremos encorajar a violação” (POSNER,
1986, p. 118).
Com a análise desta obra, é possível perceber as linhas gerais da caracterização
do fenômeno da violação contratual por Posner. É em seu artigo mais recente sobre o
tema, entretanto, que Posner apresenta conceitos que merecem uma atenção maior de
nossa parte: o artigo Let Us Never Blame a Contract Breaker, publicado em 2009 no
periódico Michigan Law Review. O título da publicação abordada é, por si só, bastante
sugestivo. Posner realiza uma espécie de convite negativo ao leitor (“let us never”),
desafiando a tradução à língua portuguesa. Em termos aproximativos, resultaria em algo
como Nunca Reprovemos Um Violador de Contratos.
O objetivo do artigo é basicamente, discutindo a eficiência dos remédios
jurídicos para a violação de contratos, justificar a aplicação da reparação integral como
forma de responsabilidade civil para este tipo de situação. Posner analisa a questão a partir
das três linhas gerais características da AED: orientação pragmática, eficiência
econômica e tematização dos limites da organização estatal.
Já no início do texto, Posner apresente a seguinte tese: “conceitos de falta ou
culpa, ao menos quando entendidos mais em termos morais do que transladados para
termos econômicos ou outros termos práticos, não são acréscimos úteis à doutrina do
direito contratual” (POSNER, 2009, p. 1349). A partir do critério econômico da
eficiência, defende a inaplicabilidade de remédios como as indenizações punitivas
(punitive damages) – pelos quais se arbitraria na condenação um valor superior aos danos
causados como forma de desencorajar novas violações – ou a determinação do
cumprimento de determinada obrigação assumida (especific performance).
Assumindo que os arranjos contratuais constituem uma questão de barganha e
que os custos desta barganha são sociais e não meramente privados, Posner argumenta
que as violações de contrato eficientes deliberadas são eficientes – “efficient breaches are
efficient” (POSNER, 2009, p. 1353). Por trás da aparente tautologia, na mesma linha de
sua exposição em Economic Analysis of Law, o autor pretende enfatizar que as violações
eficientes do direito devem ser encorajadas pela organização estatal, uma vez que
permitem uma alocação de recursos mais eficiente e, com isso, resultam na elevação do
produto social.
Para desenvolver este argumento, Posner retoma a posição de Oliver Holmes,
para o qual o contrato nada mais seria que “uma opção de executar ou pagar”. Com isso,
a violação do contrato “não é um ato errado, mas meramente dispara o dever de pagar
danos liquidados ou outros danos” (POSNER, 2009, p. 1349). As indicações de Holmes,
entretanto, são bastante incipientes. Em seu artigo, Posner dá maior verticalidade à
reflexão sobre a concepção do contrato como opção.
O argumento se desenrola da seguinte forma:

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Holmes pensava nos contratos como opções – quando você assina um


contrato em que promete um cumprimento específico (fornecer um
produto ou executar um serviço), você compra uma opção de executar
a performance ou pagar danos. O caráter da opção é particularmente
explicitado quando o contrato contém uma cláusula de liquidação de
danos [i.e., uma cláusula penal]. Você está prometendo que irá executar
ou pagar a quantia especificada na cláusula. Desde que você pague os
danos fixados pela corte no possível processo por quebra de contrato,
estejam eles especificados em cláusula ou arbitrados de acordo com os
princípios dos danos contratuais, nenhuma reprovação [blame] pode ser
atribuída a você pelo não cumprimento, mesmo que isso tenha sido
deliberado – mesmo se, por exemplo, você não executou simplesmente
porque outra pessoa lhe ofereceu mais dinheiro do que o produto ou
serviço que você tinha se comprometido a entregar no contrato, e você
não teve capacidade para suprir o cliente prometido e o cliente novo
mais necessitado. Você não quebrou realmente sua promessa, porque o
que você prometeu (apesar de não ser assim que o contrato é escrito)
foi um ou outro: não o cumprimento, mas ou o cumprimento ou a
compensação pelo custo do descumprimento à outra parte do contrato.
(POSNER, 2009, p. 1350).

Observemos com atenção que Posner distingue a manifestação imediata do


contrato – a forma como “o contrato é escrito” – e o que “realmente” ocorre no pagamento
dos danos fixados. Em sua visão, ainda que o contrato seja escrito como dever-ser,
apresenta-se aos contratantes como “opção” comprada pela parte contratante.1
Suponhamos que “A” celebre um contrato de prestação de serviço com “B” estabelecendo
uma multa de determinado valor em caso de descumprimento. Se “B” resolver pagar este
valor em vez de prestar o serviço, não haverá para Posner motivo para que esta conduta
seja reprovada. O pagamento da compensação fixada libera, juridicamente, o contratante
da violação do contrato.
Posner afasta o caráter normativo que se expressa nos instrumentos contratuais
e coloca a questão em termos puramente mercadológicos: “quando você assina um
contrato [...], você compra uma opção de executar a performance ou pagar danos”. Neste
particular, podemos caracterizar a perspectiva de Posner sobre o direito como
adeontológica. E este, estranhamente, é um ponto que se revela em comum com a crítica
marxista ao direito (cf. PAZELLO, 2014).
Esta perspectiva adeontológica já aparecia, em alguma medida, nas
representações da AED sobre o fenômeno da violação do direito que examinamos em
outros momentos, sobretudo na crítica à concepção de Ronald Coase (cf. UCHIMURA e
LIMA, 2018). Com Posner, entretanto, a ênfase no conceito de opção entre cumprir ou
violar torna esta presença mais nítida.
Não é nosso objetivo investigar em que medida esta postura é generalizada na
AED. Podemos indicar, entretanto, alguns indícios deste nível de consciência em textos
introdutórios ao campo. Em um dos artigos mais difundidos no Brasil sobre a
epistemologia da AED, por exemplo, encontramos a seguinte passagem: “a
normatividade do direito não apenas não é pressuposta como muitas vezes é negada, isto

1
Mais adiante, Posner chega a falar em uma “teoria contratual da opção [option theory of contract]”
(POSNER, 2009, p. 1351).

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é, admite-se que regras jurídicas enquanto incentivos – em algum caso concreto – podem
ser simplesmente ignoradas pelos agentes envolvidos” (GICO JÚNIOR, 2010, p. 21).
A postura de Posner que decorre desta perspectiva não é meramente descritiva.
Ao analisar a violação eficiente do contrato, a atenção se volta às consequências. Aparece
o incremento do produto social como questão a ser considerada pela atuação da
organização estatal. Vejamos como o autor trata disso em um exemplo:

Se A quebra seu contrato com B para vender a C porque C pagará mais


do que o prejuízo (que equivale aos danos) para B pela violação, a
violação incrementa o produto social: B não está em situação pior
[worse off], e A e C estão ambos em situações melhores [better off]. Mas
se B é obrigado a executar a performance contratual específica, A não
pode vender a C sem pagar B para que este concorde em terminar o
contrato com ele, criando uma situação de monopólio bilateral.
(POSNER, 2009, p. 1351).

Posner sustenta, a partir disso, que o princípio da boa-fé contratual é um


postulado moral, sem justificativa pragmática, que desencoraja a violação eficiente do
direito.2 E prossegue com a análise do exemplo:

O que exatamente é uma violação “deliberada” do direito? No caso


comum de violação de contrato, o custo da performance do réu
excederia o benefício do demandante. O custo pode ser ou pode incluir
um custo de oportunidade, tal como em meu exemplo, no qual o réu [B]
descobriu que poderia vender seu produto para uma terceira parte por
um preço maior do que o preço de contrato. Um custo de oportunidade
é um custo real. Julgar uma violação motivada por um desejo de evitar
tal custo “deliberado” e impor indenizações punitivas [punitive
damages] ou determinar a performance específica encorajaria condutas
ineficientes – fornecendo um produto ou serviço para a parte do
contrato que recebeu a promessa por um valor menor do que o
prometido por outra pessoa. É claro que as três partes envolvidas podem
barganhar uma saída para a situação. Mas essa seria uma barganha
custosa em decorrência da configuração de monopólio bilateral. O
promitente [B] poderia sair do contrato apenas negociando com o
promissor [A], e o promissor apenas poderia extrair concessões do
promitente negociando com ele. Cada parte estaria pressionando para
maximizar sua parte no valor excedente [surplus value] que a violação
tornaria disponível, e tal negociação seria custosa e poderia falhar. Se
falhasse, o excedente seria perdido, e este seria um custo social, e não
meramente um custo privado. (POSNER, 2009, p. 1353)

Assim, a hipótese de que “B” não viole o contrato com “A” para contratar com
“C” é caracterizada por Posner como um “custo de oportunidade”. Este custo, como
vimos na citação, representa perda de valor excedente, o que para o autor estadunidense
representa não um custo privado, mas sim um custo social. A eficiência na violação é
concebida a partir disto como uma questão que afeta toda a sociedade, e que por isso não

2
Para o autor estadunidense, aí estaria um dos motivos pelos quais o sistema common law – baseado mais
nos costumes e nas decisões judiciais do que na regulação legal – seria superior ao civil law em termos
de promoção de atividades comerciais.

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deveria ser desencorajada com os remédios de uma responsabilidade civil sancionatória.


Aqui, fica evidente que a questão de fundo do argumento é a atuação da organização
estatal: Posner está argumentando que os órgãos jurisdicionais tratem da questão da
violação do contrato como uma opção que pode ter consequências economicamente
eficientes, fazendo desaparecer qualquer vestígio do princípio da força obrigatória dos
contratos (pacta sunt servanda).
No trecho citado, também observamos a presença da noção de “violação
deliberada do contrato”, aparecendo como noção mais específica do que a violação
voluntária tratada em Economic Analysis of Law. No argumento de Posner, o ato de
deliberar é consequência de um cálculo econômico e, por isso, deve ser incentivado. Na
sequência do texto, as violações involuntárias são identificadas como frequentemente
ineficientes. Com isso, se fosse o caso de o Estado intervir nas opções dos contratantes,
seria mais sensato punir alguém que tenha involuntariamente violado um contrato – eis
que negligente no cálculo de sua capacidade de cumprimento – do que alguém que tenha
deliberadamente o feito nos marcos da eficiência, ou seja, incrementando o produto social
no ato de violação. Tal argumento se resume da seguinte forma: “Violações involuntárias
do direito geralmente são ineficientes: o promitente calculou mal [miscalculated] sua
capacidade de cumprir [ability to comply] os termos contratados com os quais ele
concordou” (POSNER, 2009, p. 1353).
O que podemos extrair a partir disso para a construção da crítica marxista ao
direito? Observamos aqui a articulação de dois momentos da formação da relação
jurídica. O “ato de vontade comum a ambos” (MARX, 2017, p. 159) encontra seu paralelo
na descrição posneriana na noção de “termos contratados com os quais ele concordou”
(POSNER, 2009, p. 1353). O contrato é um ato de concordância. Em sua aparência, é a
manifestação fenomênica da vontade comum dos sujeitos de direito que se expressa como
um conjunto de normas.
A vontade comum que caracteriza a formação do contrato, apesar de
fundamental para a compreensão do fenômeno jurídico, é uma singularidade. O que
decorre deste ato, deste pequeno relampejo, é um segundo momento da relação jurídica,
que se arrasta enquanto perdurar a relação contratual, e este momento apenas
aparentemente consiste no dever de que as partes cumpram os termos acordados. Na
perspectiva posneriana, o momento jurídico que nasce da celebração do contrato é um
momento em que os agentes econômicos calculam sua “capacidade de cumprir os termos
contratados”. A partir dele, renasce o momento do isolamento entre os guardiões das
mercadorias e do impulso egoísta que caracteriza o processo de valorização do valor.
Posner situa este momento no plano de seu pragmatismo do seguinte modo: após
a celebração do contrato, o que importa do ponto de vista social não é o cumprimento dos
termos contratados por si só, mas a eficiência da alocação de recursos em um ponto de
vista extracontratual. Instaura-se o momento da calculabilidade da capacidade de cumprir
o contrato (“ability to comply”). O agente econômico eficiente é aquele que analisa os
termos do contrato e melhor calcula a eficiência entre as opções de executá-los ou assumir
a responsabilidade pelo seu descumprimento.
Este é o momento em que, para Posner, aquele que viola o contrato não deve ser
censurado (“let us never blame”) pela sociedade ou desencorajado pelo Estado. Para nós,
o que se revela na sinceridade posneriana são dois fundamentos do fenômeno jurídico que
se condicionam mutuamente: (i) a calculabilidade da violação do contrato e (ii) a
adeontologicidade do direito. Os fatos de violação eficiente de contrato se manifestam,
na visão pragmática, como resultado da prática de os contratantes calcularem sua

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

capacidade de cumprimento. A calculabilidade entre as opções de cumprir ou descumprir


o contrato combinada com a defesa de que o Estado não desencoraje este cálculo afirma
o caráter fático – ser, e não dever-ser – do direito.
Há outro momento da formação da relação contratual que nos interessa. Posner
também sustenta que os danos, no sentido jurídico do termo, estão diretamente
relacionados ao valor em circulação na execução do contrato: “se não há redução de valor,
nenhum dano pode ser obtido”. Podemos notar alguma centralidade, por consequência,
ao momento da negociação contratual, no qual as partes têm liberdade para especificar “a
quantidade de danos aos quais a vítima de uma violação terá direito” (POSNER, 2009, p.
1356).
Em relação a este ponto, se retomarmos a construção básica da crítica marxista
ao direito, devemos lembrar que, “os guardiões das mercadorias têm de estabelecer
relações uns com os outros”, e o processo de troca se realiza por meio da “concordância
com a vontade do outro”, de “um ato de vontade comum a ambos” Este ato é a “relação
jurídica, cuja forma é o contrato” (MARX, 2017, p. 159). São estes, basicamente, os
pressupostos jurídicos da valorização do valor no processo de troca apontados n’O
Capital.
O momento da negociação contratual é o momento em que os sujeitos de direito
se encontram no mercado. Para que a troca se realize, é necessário que as suas vontades
sejam equiparadas. O que a análise de Posner nos provoca a pensar em relação a este
momento é que não é apenas o valor das mercadorias e as vontades que são determinadas
sob a forma da equivalência no processo de formação da relação jurídica, mas também “a
quantidade de danos aos quais a vítima de uma violação terá direito”.
Quando as partes estabelecem cláusulas de multa, juros moratórios, indenização
compensatória ou outras cláusulas penais, por exemplo, estão colocando preços nas
opções de violar, inadimplir ou descumprir. Para Posner, o futuro ato de violação tornaria
disponível um valor excedente (“surplus value”) – que, evidentemente, nada tem a ver
com a categoria mais-valia de Marx.
Este valor excedente de que fala Posner não é verdadeiramente excedente, mas
sim equivalente. Se o contrato se manifesta por meio de normas sobre as quais há
concordância entre as partes, é necessário lembrar que as normas não são nada mais que
a régua das relações sociais (KASHIURA JÚNIOR, 2009). No limite, esta régua, como
vimos, é justamente a igualação de dispêndios do trabalho determinado pelo princípio da
troca de equivalentes. Para que tenha se tornado possível falar em eficiência econômica
na violação do direito, é necessário que as opções entre cumprir ou descumprir tenham se
realizado historicamente sob a forma da mensurabilidade, tal qual a troca de mercadorias.
O fenômeno jurídico se expressa em um aspecto quantitativo (medida), sem deixar de se
realizar sob a forma subjetiva da troca de equivalentes que completa o processo de troca
de mercadorias.
Outra questão tratada por Posner em Let Us Never Blame a Contract Breaker é
a separação entre direito e moral. No último parágrafo do artigo, afirma que não é seu
desejo “debater a moralidade no ato da violação do contrato” (POSNER, 2009, p. 1363).
Isso não significa, porém, que o tema não tenha sido tangenciado no artigo. Apoiando-se
na obra de Holmes, por exemplo, o autor afirma que “o fato de que o direito usa a
linguagem moral não significa que deveres jurídicos são deveres morais” (POSNER,
2009, p. 1357). A partir disso, realiza uma reflexão sobre a noção de boa-fé contratual. O
argumento é construído da seguinte forma:

363
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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

Nós geralmente queremos que as pessoas sejam honestas e francas em


suas negociações com outras. Mas não existe o dever geral de boa-fé no
direito contratual. Se você oferece um preço baixo um bem a seu dono,
você não é obrigado a contar a ele que você pensa que o bem está
subvalorizado – que ele não sabe o seu valor de mercado e você sabe.
Não se exige que você seja altruísta, cândido ou um bom rapaz. Você
está permitido a obter lucro a partir da assimetria de informação. Se
você não pudesse fazê-lo, o incentivo à descoberta de informação sobre
valores verdadeiros seria reduzido. É um exemplo do tradicional
paradoxo econômico de que o vício privado também pode ser virtude
pública. (POSNER, 2009, p. 1357-8).

O que se revela no argumento de Posner sobre a boa-fé contratual é que, na


realidade, os “deveres jurídicos” são falsos deveres em sua concepção. Como colocado
no início do artigo, o contrato é uma opção de executar ou pagar. A negociação contratual,
por sua vez, é o momento de determinação das medidas desta opção. Os deveres jurídicos
que aparecem na formalização do contrato, por sua vez, não são deveres morais, mas
também sequer são deveres, apesar do uso da “linguagem moral” no direito. Mais do que
a permissão para obter lucro a partir da assimetria de informação, a postura pragmática
também afirma a permissão de aumentar a margem de lucro a partir da violação eficiente
do contrato: no horizonte desta visão, apenas mais um “vício privado” que se torna
“virtude pública”. Trata-se de algo não apenas juridicamente permitido, mas
economicamente desejável: uma opção, um ser que, em essência, distingue-se
radicalmente do plano do dever-ser. Com isso, podemos interpretar o pensamento
posneriano como uma rara perspectiva adeontológica sobre o fenômeno jurídico
encontrada do fora do campo crítico.
De modo geral, as anotações realizadas acima sobre a obra posneriana
constituem um estudo que, no contexto da investigação da violação do direito na crítica
marxista ao direito, deverá ser ainda desenvolvido sob diversas dimensões. O principal
desafio que se coloca adiante é identificar as conexões entre a violação contratual
(específico) e a violação do direito (geral). A crítica à representação do fenômeno
encontrada na sincera pena posneriana, formando talvez um conjunto de “abstrações que
foram trabalhadas pelos juristas burgueses e que se originam de uma necessidade de sua
própria época e de sua própria classe” (PACHUKANIS, 2017, p. 80) constitui o momento
com o qual podemos iniciar esta tarefa.

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DIÁLOGOS E TENSÕES NO ÂMBITO DA CRÍTICA MARXISTA DO


DIREITO1
Jefferson Lee de Souza Ruiz
Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Universidade Federal do Rio de Janeiro
leenorio@uol.com.br

Resumo
Teoria geral do direito e marxismo, de Evguiéni Pachukanis, foi publicada em 1924.
Para Naves (2017, p. 21), cem anos depois não fomos muito além daquele “livro
seminal”. A obra marca o debate marxista sobre direito, suscitando polêmicas e distintas
interpretações. Dentre elas: forma jurídica e forma mercadoria se identificariam na
produção de mercadorias, em sua circulação ou em ambos os fenômenos? A forma
jurídica do direito transborda ou não sua dimensão legal? Houve direito em sociedades
anteriores à do capital? Existirá em sociedade humanamente emancipada? Este artigo
pretende: (a) registrar algumas de tais relevantes polêmicas; (b) esboçar a hipótese de
que a proposição da igualdade, da equivalência, é o que distingue o direito no
capitalismo. A noção universalizada de igualdade não se limita ao direito. Impacta
profissões, lutas sociais e/ou classistas, interpretações sobre a desigual sociedade em
que vivemos.
Palavras-chave: direito(s); equivalência; necessidades humanas; marxismo;
emancipação humana.

DIALOGUES AND TENSIONS IN THE FRAMEWORK OF THE MARXIST


CRITICISM OF LAW
Abstract
Evangieni Pachukanis's General Theory of Right and Marxism was published in 1924.
For Naves (2017, p.21), one hundred years later we did not go much further than that
"seminal book." The work marks the Marxist debate on law, provoking controversies
and different interpretations. Among them: legal form and commodity form would
identify themselves in the production of goods, in their circulation or in both
phenomena? Does the legal form of the law overflow its legal dimension or not? Was
there any right in societies prior to capital? Will it exist in a humanly emancipated
society? This article intends: (a) to register some of such relevant controversies; (b)
outline the hypothesis that the proposition of equality, of equivalence, is what
distinguishes law in capitalism. The universalized notion of equality is not limited to
law. Impacts professions, social and / or class struggles, interpretations about the
unequal society in which we live.
Keywords: law(s); equivalence; human needs; Marxism; human emancipation.

INTRODUÇÃO
Em 2017 as editoras Boitempo (PACHUKANIS, 2017b) e Sundermann
(PACHUKANIS, 2017a) lançaram, no Brasil, “Teoria geral do direito e o marxismo”,
de Evguiéni B. Pachukanis – a segunda foi denominada “A teoria geral do direito e o

1
Por Crítica marxista do Direito não nos referimos a uma perspectiva específica de abordagem. Mesmo
no interior do marxismo há distintas interpretações sobre o tema e acerca de como Marx dialogava com o
fenômeno do Direito e algumas de suas expressões (a exemplo dos direitos humanos – cf. Ruiz, 2014).
Ademais, crítica pode significar reconhecer, dialeticamente, aspectos não necessariamente negativos,
opressores ou autoritários – a exemplo do que se apreende de críticas literárias, artísticas e outras.

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marxismo e ensaios escolhidos 1921-1929”. Havia ao menos uma edição brasileira pela
Acadêmica (PACHUKANIS, 1988). Publicada originalmente em 1924, a obra
autodenominada por seu autor de “esboço”, “impulso” ou “estímulo” ao debate, tornou-
se central para um relevante debate entre marxistas: a crítica do direito2.
Confirmando suas características preliminares de um profícuo debate, o livro
de Pachukanis permite distintas interpretações e provoca desdobramentos por vezes
díspares. Seus comentadores dialogam sobre aspectos como a possível extinção do
direito em uma sociedade socialmente emancipada3; uma possível maior atenção de
Pachukanis à esfera da circulação de mercadorias ao invés de sua produção; o que
caracteriza centralmente a relação entre a forma mercadoria e a forma jurídica, dentre
outras possíveis polêmicas (por exemplo: o direito é fenômeno tipicamente capitalista?).
Pretendemos reforçar uma hipótese nestas polêmicas. É razoável deduzir que
se o aparato jurídico tem peso decisivo para a organização de determinada sociedade, a
forma jurídica se adéque ao essencial do modo de produção correspondente. Pachukanis
desvela o quanto o capitalismo estabelece uma fenomenal associação entre forma
jurídica e forma mercadoria – apontada por Marx (2017) como central na sociedade do
capital. Isto nos parece distinto de afirmar que a forma jurídica surja no capitalismo.
Várias de suas expressões estiveram presentes em sociedades anteriores – inclusive
dimensões apreciadas por Pachukanis, como ideologia, norma, violações do direito ou
daquelas que ele identifica como centrais na forma direito (tribunais, pessoas em litígio
etc.). O que nos parece específico no direito sob o capitalismo (essencial na associação
entre as formas jurídica e da mercadoria) é a noção de igualdade/equivalência.
A contribuição central do autor ao analisar a associação burguesa entre forma
jurídica (em suas distintas expressões) e forma mercadoria é, ao mesmo tempo, uma das
grandes novidades históricas do discurso econômico/político/ideológico da burguesia
pós-revoluções do século XVIII. Trata-se da ideia da igualdade perante a lei. Não é
única e tão somente um processo ideológico (...), porquanto é um processo
real em que as relações humanas tornam-se jurídicas, que caminha par a par
com o desenvolvimento da economia mercantil-monetária (e capitalista, na
história europeia) e que acarreta profundas e múltiplas transformações de
caráter objetivo. (PACHUKANIS, 2017b, p. 62, grifos nossos)

Tal perspectiva de igualdade é, salvo engano, inédita na história da


humanidade4: sociedades anteriores em que existiram leis, tribunais e outras expressões
jurídicas, mesmo que houvesse algum nível de equivalência (por exemplo, entre
“crime” e “punição” recebida, existente há milênios), não conceberam igualdade como
universal, para todas as classes sociais e segmentos que as compunham5. Tal associação
2
No prefácio à segunda edição de seu livro, na década de 20 passada, Pachukanis questiona sua utilização
como material didático sobre o direito. Credita-o ao pouco acúmulo que a literatura marxista reunia sobre
uma teoria geral do direito. Gonçalves (2014, pp. 304-305) afirma haver uma “obstrução da retomada de
Marx e da crítica ao capitalismo na reflexão sobre o direito” nesta área do conhecimento (Direito).
Demonstra o quanto o marxismo ressurge com relevância em campos como filosofia, sociologia,
economia ou ciência política. Sobre o Brasil, embora não exclusivamente, poderíamos acrescer às
reflexões de Gonçalves a significativa importância que o marxismo tem para o Serviço Social desde o
final da década de 1970 (cf. IAMAMOTO, 2007; NETTO, 1996; CRESS-RJ, 2013).
3
Marx e Engels a denominavam comunismo – cf. Marx, 2004, p. 107; Marx & Engels, 2008, p. 32.
4
Estudos arqueológicos (HARARI, 2016; ASLAN, 2013) demonstram que no chamado comunismo
primitivo tais noções eram algo presentes, embora não necessariamente como traço hegemônico.
5
Na Grécia Antiga, tida por muitos como o “berço” dos debates sobre democracia, só homens com posse
participavam das eclésias, assembleias que decidiam sobre a vida e a organização social da época.

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burguesa como discurso acentua seu caráter de aparente igualdade, quando a essência
de tal sociedade é, necessariamente, a exploração de uma classe por outra, com a
consequente apropriação privada (por pouquíssimos) da riqueza socialmente produzida.
Interpretar o direito unicamente a partir da lógica que a burguesia lhe confere
impacta lutas sociais, suas possibilidades e horizontes. Também o faz com profissões6.
Partiremos de reflexões da obra pachukaniana, identificando e abordando, onde
couberem, polêmicas acerca de sua contribuição. Ao final abordaremos a perspectiva
que vemos mais promissora para lutas e debates acerca do direito.

O IMPACTO DE TEORIA GERAL DO DIREITO E MARXISMO


Pachukanis defende existirem categorias centrais para explicar o fenômeno do
direito. Afirma (PACHUKANIS, 2017b, p. 67, grifo nosso):
A teoria geral do direito pode ser definida como o desenvolvimento dos
conceitos jurídicos fundamentais, ou seja, os mais abstratos. Estes incluem
definições como “norma jurídica”, “relação jurídica”, “sujeito de direito” etc.
Graças a sua natureza abstrata, tais conceitos são igualmente aplicados a
outros ramos do direito, seus significados lógico e sistemático permanecem
inalterados, independentemente do conteúdo a que se aplicam.

Considerada a afirmação de seu livro como um esboço, não um manual com


todas as respostas, não é de se estranhar que suas próprias reflexões, em distintos
momentos, guardem possíveis níveis de tensões entre si. Seu norte, contudo, é sempre
próximo de reflexões e proposições marxianas. Dentre elas se encontra, sem dúvida, o
reconhecimento de que o fundamental é partir da materialidade da vida:
Uma teoria geral do direito que não pretende explicar nada, que, de antemão,
recusa a realidade factual, ou seja, a vida social, e lida com as normas, não
se interessando nem por sua origem (uma questão metajurídica!) nem pela
ligação que estabelecem com certos materiais de interesse, só pode,
evidentemente, pretender o título de teoria no mesmo sentido usado, por
exemplo, para se referir à teoria do jogo de xadrez. Tal teoria não tem nada a
ver com ciência. Ela não se ocupa de examinar o direito, a forma jurídica
como uma forma histórica, pois, em geral, não tem a intenção de pesquisar o
que está acontecendo. (PACHUKANIS, 2017b, p. 71, grifos nossos)

Para Pachukanis, apreender o sentido que o direito assume na sociedade


capitalista exigirá buscar categorias que, embora não apareçam com evidência à
primeira observação, são essenciais. Assim, o autor não pensa o direito exclusivamente
como o que está previsto em lei. Em sete capítulos, aborda suas relações com diversas
dimensões da sociedade capitalista: métodos de construção do concreto nas ciências
abstratas (capítulo 1); ideologia e direito (2); relação e norma (3); mercadoria e sujeito
(4); direito e Estado (5); direito e moral (6) direito e violação do direito (7)7.
Constatamos o impacto de Teoria Geral do Direito e Marxismo nas referências
que lhe fazem distintos autores. Para Melkevik (2015, p. 62), professor da Universidade
de Laval, no Canadá, apenas esta obra “merece seu lugar na história da filosofia do

6
Se defender direitos é ser servil a um Estado monopolizado por interesses das classes dominantes, seria
ilusória a existência de projetos profissionais libertários, ainda que com os limites que lhes são próprios.
7
Cf. Pachukanis, 2017b, p. 7.

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direito”. Negri (2017b, p. 50-51), marxista italiano, ao analisar duas ondas8 de interesse
pela teoria pachukaniana, defende que ela “sugere um esclarecimento dos impasses que
atualmente desestabilizam o funcionamento dos ordenamentos jurídicos no mundo
globalizado”. Vincent (1976), filósofo marxista francês, diz não haver “razão para
considerarmos que os problemas fundamentais apresentados por Pachukanis estejam
ultrapassados” (In PACHUKANIS, 2017b, p. 219). Milovanovic (2003), professor de
direito criminal em Chicago (EUA), registra o quanto ao final dos anos 1970, na Europa
e na América do Norte, ao redescobrir a obra de Pachukanis e submetê-la a “cuidadosa
análise crítica”, teóricos do direito teriam concluído “que oferecia uma alternativa às
interpretações tradicionais marxistas, que veem a lei pura e simplesmente como
vinculada aos interesses da classe dominante” (In PACHUKANIS, 2017b, p. 220). No
Brasil, Pazello (2014, pp. 144-5) afirma que embora haja em O Capital, de Marx, 700
referências ao direito (se consideradas formas análogas, quase mil), Pachukanis é a
primeira e ainda mais importante sistematização marxista do direito. Para Naves (2017,
p. 15), diferente do que fizeram outros juristas marxistas (inclusive seu contemporâneo
e interlocutor, Stutchka), Pachukanis se propõe a responder por que “certa relação social
precisa se manifestar como direito”, apreendendo “que é na forma que repousa o
segredo mais íntimo do fenômeno jurídico” (grifo original)9.
No prefácio à terceira edição de seu livro, em 1927, Pachukanis admite tal
impacto. Diferente de três anos antes, afirma que “o último ano não foi em vão para a
teoria marxista do direito” e que já haveria “material suficiente para uma disciplina
jurídica”, ainda que reafirme seu livro como um rascunho “por meio dos quais se pode
tentar elaborar um manual marxista para a teoria geral do direito” (PACHUKANIS,
2017b, p. 57, grifo nosso). Ao informar que não incorporou alterações advindas de tais
debates, diz que o faria “se este esboço permanecer (...) a experiência inicial de uma
crítica marxista dos principais conceitos jurídicos” (loc. cit., grifo nosso).
Esta breve resenha demonstra o quão significativa é, para a crítica marxista do
direito, a obra central de Pachukanis. Rivera-Lugo, professor de direitos humanos na
Universidade Autônoma de San Luis Potosí, no México, propõe em 2014 um resumo
dos elementos que constituiriam a teoria esboçada por Pachukanis. Aponta sete aspectos
centrais: (a) sem desconsiderar seu caráter ideológico10, uma teoria marxista do direito
precisa se concentrar na crítica da forma jurídica como “reflexo de relações sociais
específicas”; (b) a genealogia da forma legal e da subjetividade jurídica estaria “nas
relações de troca de mercadorias”, determinantes da produção social capitalista; (c) à
forma jurídica equivaleria a forma mercadoria – o que implicaria a necessidade de partir
da última para uma apreensão do direito; (d) daqui decorreria a constituição do sujeito
jurídico: aquele que participa do processo de troca de mercadorias, das quais é produtor
ou possuidor (entre as mercadorias trocadas se encontra sua própria força de trabalho);

8
Segundo Negri, nos anos 1970 o principal interesse foi apreciar o direito existente na revolução
bolchevique inaugurada em 1917. Quatro décadas depois as atenções superariam a “primeira onda”,
voltando-se para os “núcleos teóricos próprios da disciplina jurídica construída por Pachukanis” (loc. cit).
9
Naves (idem, p. 13) registra, ainda, que “Muito resenhado, o livro foi considerado ‘um dos melhores
trabalhos marxistas sobre o direito’, (...) ‘correta aplicação do método do materialismo dialético no campo
do direito’”. A fonte de tais afirmações é SHARLET, Robert. Pashukanis and the commodity Exchange
theory of Law, 1923-1930: a study in soviet marxist legal thought. Universidade de Indiana, 1968.
10
Lyra Filho (1999) também aborda o caráter ideológico do direito. Após apreciar polêmicas e distintas
definições sobre ideologia, afirma existirem três “ideologias jurídicas”: o jusnaturalismo (a ideia do
direito natural), o juspositivismo (a interpretação do direito enquanto previsões legais) e a dialética (que
consideraria os interesses de classes e grupos sociais em disputa na definição do que seja o direito).

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(e) o princípio da igualdade no direito conferiria juridicidade à forma do valor; (f) mais
que o caráter abstrato dos direitos de cada sujeito jurídico, o que prevaleceria seria o
“balanço real das forças” – donde decorreria o caráter de regulação social da forma
jurídica, visando “submissão à ordem capitalista prevalecente”; por fim, (g) uma teoria
marxista do direito deveria assumir a necessidade de “extinção progressiva da forma
jurídica como modo predominante de regulação social”: uma sociedade humanamente
emancipada exigiria “outro modo não jurídico de regulação social”, com convivência
social “fundada em práticas escoradas em uma nova consciência ética do comum”, que
substituiria a “normatividade clássica e coativa do direito” (In PACHUKANIS, 2017b,
pp. 217-8, grifos sempre nossos). Ao menos nos trechos grifados encontram-se distintas
interpretações sobre a obra pachukaniana, como passamos a abordar.

POLÊMICAS SOBRE ALGUMAS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS


PACHUKANIANAS
Ao buscar a essência do direito, Pachukanis busca em Marx inspiração
metodológica, que teria revelado uma condição fundamental: “enraizada na própria
economia” se dá a “existência da forma jurídica, justamente a igualação dos dispêndios
do trabalho segundo o princípio da troca de equivalentes” (Idem, pp. 79-80). Estaria
dado o “profundo vínculo interno entre a forma do direito e a forma da mercadoria”
(Idem, p. 80). Categorias e conceitos não são algo pré-determinado e eterno: uma teoria
marxista sobre o direito deve oferecer “uma interpretação materialista da própria
regulamentação jurídica como uma forma histórica determinada” (Idem, p. 72). Isso é o
que permitiria “abarcar o conceito de direito em seu movimento real, revelando todas as
inter-relações e ligações internas”, captando “sua forma mais acabada e precisa” (Idem,
p. 74, grifo nosso). Equivalência; forma jurídica; forma mercadoria; movimento real;
forma histórica mais acabada: eis elementos que dentre outros (como “sujeito de
direitos”), perpassarão sua obra. Como citamos, forma jurídica não se resume a leis:
a forma do direito, expressa por meio de abstrações lógicas, é um produto da
forma jurídica real ou concreta (...), uma mediação real das relações de
produção. Eu não apenas apontei que a gênese da forma jurídica deve ser
procurada nas relações de troca, mas também destaquei o momento que,
segundo meu ponto de vista, representa a mais completa realização da forma
jurídica, a saber, o tribunal e o processo judicial. (...) Uma transação
mercantil (...) é um fato econômico objetivo – uma relação econômica, com a
qual está indissociavelmente ligada em sua forma jurídica objetiva.
(PACHUKANIS, 2017b, p. 64, grifos nossos)

Abordando sua dimensão ideológica, o autor afirma que “o momento jurídico


dessa regulamentação começa onde têm início as diferenças e oposições de interesses”
(Idem, p. 94). O direito seria “uma categoria histórica que corresponde a um ambiente
social definido11, construído pela contradição de interesses privados” (Idem, p. 86).

11
“Podemos alcançar uma determinação clara e acabada apenas se tomarmos como base a análise da
forma do direito completamente desenvolvida, que oferece uma interpretação tanto das formas que lhe
precederam quanto de sua forma embrionária.” (Idem, p. 86, grifos nossos). O que parece ser específico
da sociedade capitalista, portanto, é uma determinada forma assumida pelo direito.

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Miéville (2017, pp. 203-4) cita Arthur12 ao identificar que Pachukanis relaciona
tal momento “intimamente ao surgimento da mercadoria na mediação das trocas
materiais” – o que pode permitir uma interpretação de que o direito tenha surgido da
relação de trocas equivalentes de mercadorias, típica da sociedade do capital. O mesmo
autor, contudo, apresenta reflexões que complexificam tal identificação, demonstrando
o quanto elas não se resumem à temporalidade da existência do direito:
A concepção de Pachukanis de que o direito existe para atender a certos
interesses conflitantes, e que o embrião do sistema jurídico é o sujeito que
afirma uma pretensão, pode ser questionada porque não leva em consideração
a coerção estatal. Pode-se dizer que ela ignora o fato de que sua teoria não
compreende formas anteriores como “a paz do Rei”. Ela não foca nas
relações de dominação e subordinação encontradas em sociedade de classes
baseadas em distintas relações de propriedade13. (ARTHUR, 2017, p. 31,
grifo nosso)

Para Arthur, Pachukanis argumenta que na sociedade capitalista a propriedade


alcança seu maior grau de desenvolvimento. A liberdade de posse e de alienação do que
se possui (como a força de trabalho) pode ser relacionada às categorias de “sujeito de
direito ou personalidade jurídica”. Afinal: “É apenas começando por este ponto que
podemos continuar a explicar precisamente o porquê de o domínio de classe na
sociedade moderna ser mediado por normas jurídicas e pelo Estado moderno” (Idem, p.
32). Para o autor, o procedimento de Pachukanis é similar ao de Marx n´O Capital, ao
partir da mercadoria para chegar ao conceito de mais-valia, “forma específica da
apropriação do trabalho excedente no capitalismo – ainda que a exploração tenha
existido em sociedades não produtoras de mercadorias” (loc. cit., grifo original).
Arthur destaca outras dimensões deste complexo: a “estratégia materialista
básica [de Pachukanis] é correlacionar a troca de mercadorias com o momento em que
o homem passa a ser visto como uma personalidade jurídica – portador de direitos (em
oposição aos privilégios consuetudinários” (2017, pp. 203-4, grifo nosso). Trata-se, em
outras palavras, de elevar o indivíduo à categoria de sujeito de direitos, decorrência do
momento em que capitalistas e trabalhadores são apresentados como equivalentes, cada
qual dispondo de sua posse nas relações de trabalho, ocultando essências profundas de
tal relação: a da exploração da força de trabalho e a da apropriação privada das riquezas
socialmente produzidas. Arthur afirma, com razão, que “A natureza da superestrutura
jurídica é adequada a esse modo de produção” (Idem, p. 203).
Há, neste processo, profunda inter-relação com as lutas entre classes. Arthur, a
partir de Pachukanis, afirmará a possibilidade de interpretar que “o elemento básico da
relação jurídica é a contestação – dois lados defendendo cada qual os seus direitos”

12
Referência a Introduction, pp. 13-5, de Chris Arthur, em Law and Marxism, de Pachukanis. Não há ano
e editora na citação, reproduzida à p. 204 do texto de Miéville, extraído de sua obra Between Equal
Rights: A Marxist Theory of International Law (Leiden, Brill, 2005) – cf. Miéville, 2017, p. 201.
13
Pachukanis já havia sido confrontado com esta interpretação: “A outra reprimenda que me fez o
camarada Stutchka, justamente a de que eu reconheço a existência do direito apenas na sociedade
burguesa, eu aceito, mas com algumas ressalvas. De fato, sustentei e continuo a sustentar que a mais
desenvolvida, universal e acabada mediação jurídica engendra-se a partir das relações entre os produtores
de mercadoria; que, portanto, toda teoria geral do direito e toda ´jurisprudência pura´ é uma decisão
unilateral, que abstrai de todas as outras condições, da relação entre as pessoas que surgem no mercado no
papel de produtores de mercadorias. Mas, com efeito, uma forma desenvolvida e acabada não exclui
formas atrasadas e rudimentares; pelo contrário, as pressupõe.” (PACHUKANIS, 2017b, p. 65).

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(ARTHUR, apud MIÉVILLE, 2017, p. 204). Se a pré-história da humanidade até os


dias atuais é a história das lutas de classes (MARX e ENGELS, 2008), tal processo não
se inicia sob o capital: nele assume características distintas, mais evoluídas.
Rivera-Lugo (2017, p. 217, grifo nosso), por sua vez, destaca que “Mais do que
os direitos abstratos de cada sujeito jurídico, o que prevalece afinal é o balanço real das
forças”. Daí decorreria a forma jurídica ser “um modo de regulação social predicado na
coerção e na sanção para compelir a submissão à ordem capitalista prevalecente” (loc.
cit., grifo nosso). Ainda que reafirme a estratégia capitalista no que tange à relação entre
forma jurídica e forma mercadoria, o autor mexicano registra em Pachukanis a
prevalência final do balanço real de forças que se confrontam.
O servo está em uma situação de completa subordinação ao senhor
justamente porque essa relação de exploração não exige uma formulação
jurídica particular. O trabalhador assalariado surge no mercado como um
livre vendedor de sua força de trabalho porque a relação capitalista de
exploração é mediada pela forma jurídica do contrato. Acredita-se que esses
exemplos sejam suficientes para se admitir o significado decisivo da
categoria de sujeito para a análise da forma jurídica. (PACHUKANIS, 2017b,
p. 118)

Voltamos, assim, à categoria sujeito de direito. Mas, ora: mesmo no feudalismo


havia relações jurídicas, ainda que não fossem exclusivas das relações de subordinação
entre servo e senhor. Conferir tal relação social apenas aos aspectos consuetudinários ou
da prevalência do discurso religioso de uma suposta vontade divina é pouco para
explicar as relações existentes naquela sociedade. No mínimo, relações jurídicas então
existentes (depois questionadas pelas revoluções burguesas) justificavam a paralisia na
evolução do modo de produção de riquezas14.
Melkevic (2015, pp. 67-8) propõe uma abordagem precisa e promissora para a
obra de Pachukanis. Segundo ele, o lugar da equivalência na obra pachukaniana tem
lógica interna simultaneamente pacificadora e conflitual. Quanto ao caráter pacificador,
Pachukanis, ao fazer do direito um intermediário nas relações sociais,
inscreve este elemento no coração mesmo do direito. Como este implica um
reconhecimento do “outro” como sujeito de direito, dá-se, em consequência,
um acordo pacífico para chegar a um consenso. Esta lógica de
reconhecimentos interindividuais se revela necessária e socialmente lógica
por estabelecer a troca de posições do sujeito de direito que permite, em
seguida, a troca de mercadorias.

Como, contudo, para o próprio Pachukanis, esta relação se situa no tempo e no


espaço, outros domínios do social se fazem presentes. Assim, o agente pacificador
sempre terá seu complemento no elemento (conflitual) do direito:

14
Quase todos os habitantes das sociedades feudais faleciam no exato local em que haviam nascido
(HOBSBAWM, 2010). O não desenvolvimento das forças produtivas implicava relações sociais distintas.
Leis e discursos religiosos compunham um mesmo processo de subordinação. “Direitos” existiam para
senhores feudais, “escolhidos por Deus”. A remota mobilidade social também decorria de tais fatores.
Para explicações mágicas da vida tratava-se de um destino divino reservado à maioria das populações:
contentar-se com o sofrimento terreno para obter seu “pedaço” no céu. Tais versões – polêmicas mesmo à
época de Jesus (cf. ASLAN, 2013) – foram tensionadas por lutas sociais e pelo envolvimento de
segmentos religiosos com processos revolucionários socialistas posteriormente (cf. LÖWY, 2016).

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Pachukanis enfatiza a ordem jurídica que está largamente condicionada por


este último, em razão do fato de que existe “uma luta” por afirmar a
supremacia de um sujeito em detrimento de outro. Cada parte quer reforçar
sua própria posição, quer impor seu interesse no estabelecimento da ordem
jurídica. A questão do direito não existe, então, no vácuo, mas se insere e
reflete a divergência de interesses existente em toda sociedade15.

Pazello (2015, pp. 135-6) destaca a crítica que Pachukanis apresenta a


perspectivas naturalistas ou niilistas de explicação do direito:
Pachukanis assevera que há aí um abandono da forma jurídica como
elemento explicativo, quando não se dá uma completa distorção no que tange
a seu sentido: para tais teorias, pode passar por “ficções”, “fantasmas
ideológicos” e “projeções” ou ainda por “resultado de uma luta de
interesses”, “manifestação da coerção estatal” e “processo que se desenvolve
na mente humana”16. Desdobramentos não coincidentes em seus conteúdos,
mas convergentes quanto a seus equívocos formais. (PAZELLO, 2015, pp.
135-6)

Pachukanis (2017b, p. 71) também questiona perspectivas às quais pareceria


“ser suficiente introduzir o momento da luta de classes nas teorias citadas para que se
obtivesse uma teoria do direito genuinamente marxista e materialista”.
Outro campo de polêmicas leituras da obra de Pachukanis é a que se destina a
identificar se o autor privilegiaria a análise do momento da circulação de mercadorias,
em detrimento do momento de sua produção. Não há como negar que o autor confere
importância ao momento da circulação, em que a mercadoria se realiza ao combinar
valores de uso e de troca. Dialogando sobre o direito como ideologia, cita Adoratski17:
A enorme influência da ideologia jurídica em todo o modo de pensamento
ortodoxo dos membros da sociedade burguesa explica-se por seu enorme
papel na vida dessa sociedade. A relação de troca acontece sob a forma dos
atos jurídicos de compra e venda, obtenção de crédito, empréstimo, aluguel.
(...) O homem que vive na sociedade burguesa é encarado constantemente
como sujeito de direitos e obrigações, diariamente cumpre uma quantidade
inumerável de ações jurídicas, atraindo para si as mais variadas
consequências jurídicas. Nenhuma sociedade necessita (...) de tal ideia de
direito (...) e nenhuma submete essa ideia a uma elaboração tão detalhada,
nenhuma a transforma em um instrumento necessário à circulação cotidiana
como o faz a sociedade burguesa. (ADORATSKI, Apud PACHUKANIS,
2017b, p. 95, grifo nosso)

Ao apreciar a relação entre direito e norma, Pachukanis (Idem, p. 109)


expressará duas perspectivas potencialmente contrapostas. Na primeira, define o sujeito
de direito como “titular de todas as pretensões possíveis”, como parte do “tecido
jurídico fundamental que corresponde ao tecido econômico”. Trata-se das “relações de
produção da sociedade, que repousa na divisão do trabalho e na troca” (grifos nossos).
Na sequência de suas reflexões, contudo, afirma que “Demonstraremos adiante que o

15
Melkevic utiliza sinônimos para aspectos pacificadores ou conflituais. “Irenogênese contém o radical
grego ´ireno´, que é relativo a ‘paz’; já polemogênese contém o radical ‘polemos’, que se refere a guerra.
Em português, estudos especializados utilizam as expressões ‘irenologia’ e ‘polemologia’, ciências da paz
e da guerra, respectivamente” (MELKEVIC, 2015, p. 67), informam os redatores da Verinotio.
16
Referências a Pachukanis, 1988, p. 20.
17
Referência a Adoratski, V. V. Sobre o Estado. Moscou: Academia Socialista da URSS, 1923, p. 41.

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‘fim em si’ para a ordem jurídica é apenas a circulação de mercadorias”. Momentos


distintos do mesmo processo reflexivo, destacando-se ora a produção ora a circulação
de mercadorias em sua relação com o “tecido jurídico” ou com a “ordem jurídica”.
Negri, contudo, parece perceber uma maior evidência de um destes momentos
– e o faz elogiando Pachukanis por captá-la da obra do próprio Marx:
Pachukanis foi um dos primeiros (e, infelizmente, um dos últimos teóricos
marxistas do direito) a captar o ponto de vista marxiano pelo qual, para além
da contraposição abstrata e escolástica entre estrutura e superestrutura, o
direito é dialeticamente considerado forma do processo real da troca, face do
valor da troca. (NEGRI, 2017a, pp. 12-13)

O mesmo Negri afirma que Pachukanis, ao se confrontar com problemas como


“a definição do direito como mercadoria”, a “ciência jurídica”, “a tendência evolutiva
do direito na sociedade do capital” ou, ainda, a transição para uma sociedade
humanamente emancipada, terá uma “imagem parcial e determinada do funcionamento
da lei do valor, uma imagem unilateral do processo de exploração, que vê somente o
atraso da vigência dessa lei” (Idem, pp. 43-4). Mas admite, a seguir, que “há sempre,
concomitantemente [em Pachukanis], força para superar essa unilateralidade da análise.
(...) O direito não é uma função que, embora ligada ao processo de trabalho, possa ser
separada do processo de valorização” (Idem, p. 44).
É certo que Pachukanis constrói suas proposições em profundo diálogo com
Marx, como demonstra a bibliografia citada ao longo de sua obra. Assim, é sugestivo
perceber que ao analisar a relação geral entre produção-distribuição-troca-consumo
(MARX, 2011, pp. 44-53), o autor alemão afirma, por exemplo, que “A produção é
também imediatamente consumo” (Idem, p. 45) e, simultaneamente, “O consumo
também é imediatamente produção” (Idem, p. 46). Marx afirmará, contundentemente:
“O resultado a que chegamos não é que produção, distribuição, troca e consumo são
idênticos, mas que todos eles são membros de uma totalidade, diferenças dentre de uma
unidade” (Idem, p. 53, grifos nossos). Nas palavras de Paula (2014, p. 59):
O ponto central do argumento de Marx é mostrar que o que os economistas
burgueses só percebem como relações fortuitas e articuladas por nexos
reflexivos, são, de fato, partes de um “todo orgânico” que reúne produção,
distribuição e determinadas formas jurídico-políticas a que “correspondem
determinadas formas de consciência moral”.

Há mais dois aspectos potencialmente polêmicos na leitura que se faz de


Pachukanis, centrais às reflexões do presente artigo. O primeiro diz respeito ao que
deixaria de existir no âmbito do direito em uma sociedade humanamente emancipada,
portanto posterior à transição socialista. Ao longo de sua obra, o autor faz contundentes
afirmações da associação entre direito e capitalismo. Afirma ter chegado “à conclusão
de que a moral, o direito e o Estado são formas da sociedade burguesa”
(PACHUKANIS, 2017b, p. 160). Não nega, contudo, que o proletariado necessite
utilizá-las em suas lutas, desde que tenha consciência “das origens históricas dessas
formas”, com uma atitude crítica que reconheça “a necessidade histórica tanto de sua
existência quanto de seu desaparecimento” (Idem, pp. 160-1). A relação entre capital e
direito é anunciada na introdução a sua obra: “Só a sociedade burguesa capitalista cria
todas as condições necessárias para que o momento jurídico alcance plena determinação
nas relações sociais” (Idem, p. 75) – muito embora “plena determinação” acabe por
admitir determinações mais frágeis anteriores. Pachukanis não o nega:

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O Rússkaia Pravda – o mais antigo monumento jurídico do período kievano


da história [séculos IX a XIII – loc. cit.] – composto de 43 artigos (a assim
chamada lista acadêmica), tem apenas dois artigos que não se relacionam a
uma violação do direito penal ou do direito civil. Outros artigos ou
determinam sanções ou contêm regras processuais que se aplicam nos casos
de violação do direito. (...) Esse mesmo quadro será representado nas
chamadas leis bárbaras das tribos germânicas. Assim, por exemplo, na “Lei
Sálica”, de 408 artigos, apenas 65 não possuem caráter repressivo. O antigo
monumento do direito romano, a Lei das XII Tábuas, começa com uma regra
que define a ordem de responsabilidade diante do tribunal: Si in ius vocat, ni
it, antestamino. Igitur em capito. [“Se (alguém) for convocado ao tribunal,
compareça. Se não comparecer, apresentem testemunhas (deste fato). Em
seguida, seja preso”]. (Idem, pp. 165-6, grifos nossos, exceto no trecho em
latim)

O autor é afirmativo em dados momentos acerca do que deve ser extinto em


uma sociedade que supere as classes. Afirma que com a extinção das relações mercantis
e da forma jurídica de propriedade, “também estaria condenada à morte a forma geral
do direito” (Idem, p. 135). Adiante, permite uma leitura dúbia de suas afirmações:
Apenas quando estudarmos o ritmo e as formas da erradicação das relações
de valor na economia e, com isso, do desaparecimento dos momentos do
direito privado na superestrutura jurídica e, finalmente, a dissolução gradual
desses processos fundamentais na própria estrutura jurídica como um todo,
poderemos dizer que esclarecemos pelo menos um dos lados do processo de
criação da cultura sem classes do futuro. (Idem, p. 137, grifos nossos)

O que desaparece parecem ser as relações de valor na economia (sempre


relacionadas à forma mercadoria) e o momento do direito privado na superestrutura
jurídica – o que pode preservar, ainda que provisoriamente, outros “momentos” do
direito. Pachukanis encerra Teoria Geral do Direito e Marxismo com nova adjetivação:
Os conceitos de delito e pena (...) são definições necessárias da forma
jurídica, das quais poderemos nos livrar somente quando dermos início à
eliminação da superestrutura jurídica em geral. E, quando começarmos de
fato (...) a eliminar esses conceitos e conseguirmos nos virar sem eles, esse
será o sintoma de que, diante de nós, alargam-se os estreitos horizontes do
direito burguês. (PACHUKANIS, 2017b, p. 183, grifos nossos)

Pachukanis é explícito ao afirmar, corretamente, que o direito burguês não será


substituído por um direito proletário, coerente com sua proposição de que a forma
jurídica se associa a categorias de “valor, capital, lucro etc.”. Para ele, “A extinção das
categorias (precisamente das categorias, não de uma ou outra prescrição) do direito
burguês de modo algum significa a substituição por novas categorias do direito
proletário18” (Idem, pp. 77-8, grifos nossos). Esta afirmação lhe custaria talvez a própria
vida, ao rejeitar a possibilidade de que o direito no período stalinista da revolução russa
apontasse perspectivas efetivamente emancipatórias.
O momento em que surge o direito e sua extinção também são pontos de
apreciação e polêmica. Negri cita Marx no que diz respeito ao direito à propriedade:

18
Registre-se que Engels e Kaustky (2012) fazem apreciações no mesmo sentido.

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Originalmente, o direito de propriedade19 apareceu diante de nós como


fundado no próprio trabalho. (...) Agora, ao contrário, a propriedade aparece
do lado do capitalista, como direito a apropriar-se de trabalho alheio não
pago ou de seu produto; do lado do trabalhador, como impossibilidade de
apropriar-se de seu próprio produto. A cisão entre propriedade e trabalho
torna-se consequência necessária de uma lei que, aparentemente, tinha
origem na identidade de ambos. (MARX20, apud NEGRI, 2017a, p. 11, grifos
nossos)

Após afirmar que Pachukanis é pleno em desmistificar a possibilidade de


socialização do capital, bem como fazê-lo com o Estado e com o direito, Negri dialoga
com o autor dizendo não se tratar de uma “marginalização do direito”, mas da “nova
forma que assume o direito, enquanto decalque e garantia do processo do mais-valor”
(NEGRI, 2017a, p. 29, grifo nosso). Retoma de Pachukanis afirmação de Marx nos
Grundrisse (2011, p. 43), embora ambos se limitem a parte da citação marxiana, que
reconhece que “o direito do mais forte também é um direito”21. O parágrafo em que
Marx faz tal afirmação, se reproduzido integralmente, acresce elementos a esta reflexão:
Os economistas burgueses têm em mente apenas que se produz melhor com a
polícia moderna do que, por exemplo, com o direito do mais forte. Só
esquecem que o direito do mais forte também é um direito, e que o direito do
mais forte subsiste sob outra forma em seu “estado de direito”. (loc. cit.)

Marx aborda, neste trecho, a produção em geral. Como é próprio dos


Grundrisse, são anotações que retomará em obras posteriores, particularmente em O
Capital. O trecho acerca do direito do mais forte é antecedido por críticas de Marx à
afirmação de que a propriedade seja condição da produção: “dizer que a produção e (...)
a sociedade são impossíveis onde não existe qualquer forma [de] propriedade é uma
tautologia”. Cada estágio de produção terá condições sociais correspondentes:
Para resumir: para todos os estágios da produção há determinações comuns
que são fixadas pelo pensamento como determinações universais; mas as
assim chamadas condições universais de toda produção nada mais são do que
esses momentos abstratos, com os quais nenhum estágio histórico efetivo da
produção pode ser compreendido. (MARX, Idem, p. 44, grifo original)

Relacionar tais reflexões ao direito exige retomar o debate acerca do direito


como tradição consuetudinária antes do advento do capitalismo. É sob o capital que a
proposição de igualdade/equivalência passa a predominar no direito. Antes dele, o
direito do mais forte prevalecia (sendo substituído pela “polícia moderna” por –
atenção! – se produzir melhor!). Sob o capital a proposição é de que o direito seja igual
para todos. Economistas burgueses, propositalmente, “se esquecem” de que o direito do

19
Como abordamos em Ruiz (2014), a crítica ao “direito” à propriedade precisa ser qualificada. Para
Marx, está em jogo a propriedade dos meios de produção de riquezas. Em Para a questão judaica
(MARX, 2009), propriedade, igualdade, liberdade vêm acompanhadas de pronomes demonstrativos –
evidenciando a crítica à perspectiva burguesa da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do
Cidadão, de 1789. No Manifesto do Partido Comunista (MARX & ENGELS, 2008), o questionamento é
feito à propriedade privada que exclui nove décimos dos seres humanos do acesso à mesma propriedade.
20
A citação é extraída de Engels, Friedrich. Lineamenti di una critica dell´economia política del 1844, em
Scritti. Roma, Manigni, 1899. O tradutor da obra de Pachukanis (2017b) registra que a citação consta de
Marx, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.
21
Cf. Negri, 2017a, p. 29; Pachukanis, 2017b, p. 139; Marx, 2011, p. 43.

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mais forte também se configura um direito – ainda que “sob outra forma” – na
sociedade que apresenta o direito como “igual”.
Rivera-Lugo (2017, p. 217), como vimos, afirma que uma sociedade comunista
exigiria um modo não jurídico de regulação social, e que neste momento a convivência
social estaria fundada em novas práticas sociais, em uma “nova consciência ética do
comum”. É legítimo esperar que uma sociedade sem classes, com formas de produção
que não sejam exploradoras do trabalho alheio, resulte em nova “consciência ética”.
Contudo, “Ao invés de ‘eliminar toda a desigualdade social e política’, [em] uma nova
sociedade, ‘com a supressão das diferenças de classe desaparece por si mesma toda a
desigualdade social e política resultante dessas diferenças´” (MARX, 2004, p. 116,
grifo nosso). A experiência histórica reivindicada como socialista e as possibilidades
teleológicas que se apresentam para o futuro recomendam a prudência apontada por
Marx (Idem, p. 120) para pensar o que será a sociedade humanamente emancipada.
Naves (2017, p. 15, grifo original) também identifica em Pachukanis a defesa
da necessidade de extinção do direito em uma sociedade sem classes. Ela decorreria do
fato de que “ao contrário de tantos juristas marxistas”, o autor russo respondeu à
pergunta sobre por que certa relação social (a do capital) precisa se manifestar como
direito. Segundo ele, Pachukanis “pôde compreender que é na forma que repousa o
segredo mais íntimo do fenômeno jurídico”. Afirma que as referências do autor russo ao
direito pré-burguês não abalam a identificação entre direito e capital (tese que vê como
fundamental), que interdita “toda a possibilidade de que o direito possa ir para além do
capital” (Idem, pp. 17-8). Argumenta que algo pode perfeitamente “ser chamado de
direito sem que realmente o seja”22. Pachukanis perceberia que “só há direito se houver
uma relação de equivalência subjetiva autônoma, mas esta inexiste se o elemento
religioso ou político estão igualmente presentes nesse mesmo objeto, pois a religião e a
política são formas sociais não equivalentes” (loc. cit., grifos originais). Ainda assim, ao
argumentar que a leitura de sua obra é tarefa urgente, Naves defende que ela “nos dá os
meios, no retorno a Marx que ela opera, de quebrar as formas do direito que nos
encerram na liberdade burguesa da compra e da venda, apontando na direção da
ultrapassagem efetiva do mundo das mercadorias” (Idem, p. 22, grifo nosso).
Kashiura Jr. e Naves (2012, p. 7) afirmam que a identificação da norma como o
aspecto central do direito é natural e a-histórica. Perguntam: “por que a relação que
envolve o escravo e o seu senhor não exige mediação jurídica e, ao inverso, a relação
entre o trabalhador assalariado e o capitalista não pode dar-se senão juridicamente?”. A
seguir, afirmam que a relação entre trabalhador assalariado e capitalista exige mediação
jurídica “porque só pode dar-se como uma relação de troca mercantil” – o que, nas
relações feudais ocorria “por intermédio da força” (Idem, p. 12)23.

22
Kashiura (2015, p. 71) reforça o mesmo argumento de Naves (2014), afirmando que “aquilo que
comumente se designa como ‘direito antigo’ ou ‘direito feudal’ não pode ser definido como ‘direito
menos desenvolvido’ ou ‘direito com outro conteúdo’, [mas] tão-somente como não-direito”.
23
“A análise nos moldes do método delineado por Marx permite ainda a Pachukanis compreender que a
forma jurídica é, ela mesma, histórica, ou seja, o direito não se apresentou como tal, apenas com
diferentes conteúdos, em todos os períodos históricos. A forma jurídica mesma tem condições de surgir
apenas num contexto determinado, numa formação social determinada. Em A teoria geral do direito e o
marxismo resta claro que a forma jurídica é uma forma social eminentemente burguesa, isto é, uma forma
social que alcança desenvolvimento pleno apenas na sociedade capitalista” (Idem, p. 11). Ora, existir em
diferentes sociedades e modos de produção e, nelas, assumir “diferentes conteúdos” não faz com que um
determinado fenômeno seja a-histórico. Pensemos no trabalho e em sua profunda inter-relação com a

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Arthur (2017, p. 26) acresce às reflexões apontamentos sobre a dimensão


ideológica do direito. Chama atenção para o fato de que “uma forma ideológica não
pode morrer a não ser que morram junto as condições sociais que a engendraram”. Em
sua apreensão, Pachukanis defenderia que “o elemento jurídico nas relações sociais
desaparece gradualmente” (Idem, p. 34) e que o direito desaparecerá “quando tiver sido
definitivamente erradicada a forma da relação de equivalentes” (Idem, p. 42). No
feudalismo “todas as relações eram mediadas pela dependência e autoridade pessoais”, e
o fato dos servos obedecerem aos senhores “era o resultado direto e imediato de que o
último tinha uma força armada ao seu dispor e sua autoridade era um inescapável fato
dado por Deus” (Idem, p. 32). No capitalismo, com a força armada cabendo ao Estado
(“poder público situado acima de cada capitalista individual”) esta relação seria
radicalmente distinta. Somar-se-ia a esta distinção o fato, já abordado, “de que o
trabalhador assalariado não é compelido ao trabalho por um dado empresário, mas
aliena sua força de trabalho por meio de um livre contrato” (loc. cit.). Seriam
“proprietários autônomos”, e o Estado garantiria os contratos em geral.
Não nos parece que o escravismo ou a servidão dispensem algum nível de
relação jurídica. No que se refere à escravidão, era corrente a aquisição de escravos –
“propriedades” de seus senhores. No âmbito das lutas políticas, a derrubada de
legislações escravistas, ainda que possam não ter sido o elemento central de sua
superação nos países em que ocorreram, compuseram mobilizações de distintos setores
que questionavam tal forma de produção (ainda que por razões ético-valorativas). Além
disso, a relação “livre” entre trabalhador assalariado e capitalista é apenas uma ficção.
Divergimos de que toda relação jurídica exprima igualdade entre as partes. O que não
há nas relações feudais e escravistas é a igualdade jurídica: ela é típica do capital.
Sociedades anteriores, contudo, não prescindiram de quaisquer relações jurídicas24.
Já a polêmica sobre sua extinção numa sociedade humanamente emancipada
não se restringe ao direito. Em geral, se articula à existência do Estado, que nada tem de
neutro e sobre o qual há diferentes e legítimas leituras acerca de sua (im)permeabilidade
à disputa de interesses entre classes e/ou grupos sociais. Parecem-nos insuficientes tanto
as visões que afirmam ser o Estado apenas um “comitê executivo dos negócios da
burguesia” quanto as que, em contraposição, julgam-no exclusivamente sujeito às
distintas conjunturas e correlações de forças, sempre parte da luta por hegemonia. Esta
polarização acaba por permitir que um aspecto fundamental neste debate acabe sendo
secundarizado: em um país de cerca de 207 milhões de habitantes e um planeta com
quase três bilhões, com projeções de que em 2050 sejamos 9,7 bilhões de pessoas, é
possível imaginar formas de sociedade sem qualquer tipo de regulação coletiva?
Mesmo a proposição marxiana de indivíduos produtores livremente associados
– correta do ponto de vista teleológico e como proposição potencialmente libertária –
não impediu que Marx colocasse o debate em um novo patamar, essencial, ao apreciar o
Programa de Gotha25. Pergunta o autor: “Que transformação sofrerá o Estado numa

forma jurídica que o direito assume no capital. Identificar distintas características ao longo da história,
ainda que a partir de sua forma mais evoluída (o trabalho assalariado) não elimina a criticidade da análise.
24
“Durante a Grécia antiga, por exemplo, tinham direitos apenas os cidadãos. Esses eram humanos. Os
escravos, como “coisa”, não eram [sequer] sujeitos de direito. Eram apenas objetos dos direitos alheios”
(DORNELLES, 2007, p. 11; grifos e conteúdo entre colchete de nossa responsabilidade).
25
À Crítica ao Programa de Gotha, em 1875, Marx adiciona o intertítulo Observações sobre o Programa
do Partido Operário Alemão. Para Antunes (2004, p. 10), trata-se de “um esboço de como pode se
estruturar, a partir de uma nova modalidade de trabalho, uma sociedade capaz de superar o capital, em

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sociedade comunista? Por outras palavras: que funções sociais análogas às atuais
funções do Estado subsistirão?” (MARX, 2004, p. 119).
Ainda sobre a Crítica ao Programa de Gotha: (a) o texto foi um dos últimos
redigidos por Marx – distante, portanto, de uma etapa possivelmente idealista, menos
ancorada na análise da materialidade da vida; (b) herdeiro de todo seu impressionante
percurso político, militante e teórico, Marx defende a extinção do direito burguês,
adjetivando o direito que certamente deixaria de existir. Uma questão similar à que
Marx dirige ao Programa de Gotha é promissora: que funções análogas ao direito tal
qual o conhecemos deixarão de existir em uma sociedade humanamente emancipada?
A dicotomia entre o fim ou não do direito e do Estado tende a impactar, teórica
e politicamente, a sociedade que eventualmente supere as classes. Ela pode eliminar a
dialética dos processos sociais, como se o comunismo fosse um “fim da história"26 às
avessas (RUIZ, 2014). Há que se atentar para a contundente afirmação marxiana, citada
anteriomente em diálogo com Rivera-Lugo, acerca de que contradições deixam de
existir com a superação das sociedades de classe: segundo Marx, são aquelas resultantes
das diferenças de classes.
Assim como podemos chamar de direito aquilo que não é, podemos deixar de
fazê-lo com aquilo que, em leituras distintas, são. O que resta é saber: é possível afirmar
que há, em Marx e em Pachukanis, possibilidades para esta segunda interpretação? Em
outras palavras: é possível identificar naquilo que classes e segmentos subalternizados,
ao longo de suas lutas, denominam de “direito”, dimensões não legais que guardem
potencial ontológico e emancipatório?

É POSSÍVEL UMA CRÍTICA ONTOLÓGICA27 DO DIREITO?


Em polêmica estabelecida com Stutchka28, Pachukanis afirma que o mesmo
acerta em prever o direito como parte das relações sociais, mas não explica a razão pela
qual as formas jurídicas, sempre históricas, se revestem de conteúdo de classes. Para a
filosofia burguesa do direito tal questão sequer se colocaria. Contudo, “Para a teoria
marxista, que se esforça por penetrar nos mistérios das formas sociais e reconduzir
‘todas as relações humanas ao próprio ser humano’, essa tarefa deve ser colocada em
primeiro lugar” (PACHUKANIS, 2017b, p. 96, grifos nossos). Ao apreciar as relações
entre direito e norma, diz que “O homem que produz em sociedade é o pressuposto do
qual parte a teoria econômica. Desse pressuposto fundamental deve partir a teoria geral
do direito, já que ela lida com definições fundamentais” (Idem, p. 104, grifos nossos). A
seguir, apreciando as complexas relações entre mercadoria e sujeito, afirma:
Como consequência da diversidade natural de propriedades úteis, um
produto aparece na forma de mercadoria apenas como um simples invólucro
do valor, e os aspectos concretos do trabalho humano diluem-se no trabalho
abstrato como criador de valor – do mesmo modo que a diversidade concreta
de relações do homem com as coisas surge como uma vontade abstrata do
proprietário e todas as particularidades concretas que diferenciam um

busca de sua emancipação humana e social”. Marx a redige cerca de nove anos após finalizar o Livro 1 de
O Capital. São, então, reflexões de um Marx maduro, propositivo e participante dos debates de sua época.
26
A ampla rejeição às teses de Fukuyama (1992) serve de alerta para o risco de inverter sua lógica.
27
Sartori (2010) demonstra que Lukács, dentre outras dimensões centrais, identifica teleologias
secundárias (as das relações entre seres humanos) e mediação jurídica. Em Flores (1989) o direito para a
Escola de Budapeste está especialmente nas teleologias primárias (relações entre ser humano e natureza).
28
Pëtr Ivanovic Stutchka, Comissário do Povo para a Justiça após a revolução de outubro de 1917.

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representante da espécie homo sapiens de outra diluem-se na abstração do


homem em geral como sujeito de direito. (Idem, p. 121, grifos nossos)

As classes subalternizadas, ao cheirar e examinar29 o direito supostamente


igual, perceberam ao longo do século XIX – só algumas décadas após as revoluções
burguesas do século XVIII – que a revolução não seria para todos (TRINDADE, 2002).
A proposição da igualdade seria fundamental em sua inter-relação com outra proposição
burguesa, central para a nova economia que se estabelecia: a da liberdade. Afinal,
A força de trabalho só pode aparecer como mercadoria no mercado enquanto
for e por ser oferecida ou vendida como mercadoria pelo seu próprio
possuidor, pela pessoa da qual é a força de trabalho. A fim de que seu
possuidor a venda como mercadoria, é mister que possa dispor dela, que seja
proprietário livre de sua capacidade de trabalho, de sua pessoa. Ele e o
possuidor do dinheiro encontram-se no mercado e entram em relação um com
o outro como possuidores de mercadoria, dotados de igual condição,
diferenciando-se apenas por um ser o vendedor e outro o comprador, sendo
ambos, juridicamente, pessoas iguais. (Marx, 2008, p. 198, grifos nossos).

O desvelamento do caráter ideológico da defesa burguesa de igualdade e


liberdade favoreceu que lutas sociais concretas lhes conferissem outros significados,
resgatando seu caráter potencialmente revolucionário. Impactou perspectivas críticas à
burguesia; demonstrou o quanto as lutas entre classes conferem distintos significados às
palavras e a categorias teóricas (KONDER, 2009, pp. 163-167).
O termo “liberdade”, antes de 1800 sobretudo uma expressão legal que
denotava o oposto de “escravidão”, tinha começado a adquirir um novo
conteúdo político. Sua influência direta é universal, pois ela forneceu o
padrão para todos os movimentos revolucionários subsequentes, suas lições
(interpretadas segundo o gosto de cada um) tendo sido incorporadas ao
socialismo e ao comunismo modernos. (HOBSBAWM, 2010, p. 100)

Tais polêmicas acerca do que seja o direito, de seu alcance, existência e


permanência no tempo histórico podem ser abordadas “por dentro e por fora” do âmbito
do Direito enquanto área do conhecimento. O direito, como destaca Pachukanis,
compõe uma relação social. Apreender a centralidade depositada pelo capital em sua
forma jurídica não elimina demais dimensões. Ao contrário, se visto em perspectiva
crítica e dialética, pode exigir potencializá-las (RUIZ, 2014). Como tal, transborda
leituras restritivas que o apreciam quase exclusivamente no âmbito das relações legais.
No Direito e fora dele há quem demonstre o quanto o direito supera em muito a esfera
das relações legislativas. Fazem-no, dentre vários outros, Abreu (2008), Lyra Filho
(2012), Naves (2005), Tonet (2002), Trindade (2002; 2011) e autores das reflexões
presentes nas edições brasileiras de 2017 da obra de Pachukanis (Negri, Cerroni e
Miéville in PACHUKANIS, 2017b; Naves e Arthur in PACHUKANIS, 2017a)30. A
crítica marxista do Direito transborda a dimensão jurídico-legal do direito ao
caracterizá-lo essencialmente como parte central de estratégias burguesas vinculadas à
economia política. Mesmo autores que não se autodenominam marxistas, como
Comparato (2008), ampliam o alcance do que denominam direito.

29
Os itálicos remetem ao exemplo de Marx acerca da identificação da mais-valia (MARX, 2008, p. 677).
30
Segundo o próprio Pachukanis (2017b, p. 98), “O direito como um fenômeno social objetivo não pode
esgotar-se na norma nem na regra, seja ela escrita ou não”.

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Ao resgatar a centralidade do ser humano para uma apreciação sobre o que seja
o direito, Pachukanis estabelece a centralidade ontológica do ser humano enquanto ser
social (LUKÁCS, 2012; 2013) para a devida apreensão das formas sociais que se
apresentam na vida concreta.
Deveria nos servir de alerta o fato de que, no âmbito das lutas sociais e/ou de
31
classes , direitos não significam apenas o que está reconhecido pelo Estado ou, mesmo,
pelo conjunto da sociedade. Passe livre; universalidade no acesso ao ensino superior;
direito ao aborto; direito à comunicação (como possibilidade de produzir e distribuir
conteúdo a milhões de pessoas) são reivindicados como direitos32.
Esta linha de raciocínio parece-nos ser concretizada na relação entre direito e
necessidades humanas que Flores (1989) identifica em autores até então marxistas da
Escola de Budapeste – leitura da qual nos aproximamos. Ela considera que
subalternizados chamam de direitos são necessidades que apenas seres humanos, em sua
relação com a natureza e com a materialidade da vida concreta, são capazes de
reconhecer. Trata-se do processo ininterrupto, através do qual transformamos a natureza
e nos autotransformamos33. Nesta lógica, todos os direitos são humanos e sociais:
Nessa coimplicação dialética [...] medida pelo postulado ilustrado do uso
racional e efetivo das capacidades humanas, se apoia a ideia de direitos
humanos entendidos como bens sócio-históricos produzidos pela humanidade
em seu processo de evolução e desenvolvimento. Os direitos humanos não
podem ser considerados sem que seja feita uma referência ao esforço
humano, consciente ou inconsciente, para criar objetivações e projetar
racionalmente metas e objetivos. Qualquer consideração sobre essas normas e
regras fora da relação com o trabalho – como atividade humana específica –
conduzirá a resultados insatisfatórios, quer sejam metafísicos ou puramente
formais, quer dizer, a reduções que afetam diretamente todo o processo de
sua execução. (FLORES, 1989, p. 57, grifo original34)

Em suas palavras, é “partir do fenômeno concreto ou ineliminável das


necessidades humanas” (Idem, p. 99) nos debates sobre o direito. “É necessário o
reconhecimento de todas as necessidades, à exceção daquelas que considerem ao
homem como puro meio, aquelas que se dirigem à opressão dos outros, à manutenção
irracional do poder, à humilhação e à degradação do ser humano” (Idem, pp. 89-90,
grifo original) – excluindo-se a propriedade privada dos meios de produção de riquezas.

31
Há lutas sociais não exclusivas das contradições entre classes, como as contra racismo, machismo,
homofobia, discriminações e opressões das mais diversas ordens. Elas se inter-relacionam, como
demonstram estatísticas nacionais acerca dos salários que mulheres (brancas e negras) e homem negros
recebem pelo mesmo trabalho desenvolvido por homens brancos. Lutas permanecerão existindo. E, como
Marx, não nos referimos exclusivamente àquelas resultantes da existência de distintas classes sociais.
32
“Direitos não são algo dado por uma esfera sobrenatural, (...) advindos da natureza ou de uma suposta
igualdade inata entre todos os seres humanos. São resultado de lutas históricas, de conflitos de interesses,
de ações dos movimentos sociais, do Estado, dos poderes públicos, das classes e de segmentos
heterogêneos e internos a elas. Talvez por isso falar de direitos sociais e de direitos humanos como partes
distintas de um determinado fenômeno se demonstre equivocado” (RUIZ, 2014, pp. 244-5).
33
“A própria primeira necessidade satisfeita, a ação da satisfação e o instrumento já adquirido da
satisfação conduzem a novas necessidades – e esta produção de novas necessidades é o primeiro ato
histórico” (MARX & ENGELS, 2009, pp. 41-2).
34
Utilizamos, nas citações a Flores, versões por nós traduzidas para o português do original em espanhol,
submetidas a cuidadosa revisão de Gustavo Repetti, a quem novamente registramos nosso agradecimento.

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As próprias necessidades naturais de alimentação, roupa, aquecimento,


habitação etc., variam de acordo com as condições climáticas e de outra
natureza de cada país. Demais, a extensão das chamadas necessidades
imprescindíveis e o modo de satisfazê-las são produtos históricos e
dependem, por isso, de diversos fatores, em grande parte do grau de
civilização de um país e, particularmente, das condições em que se formou a
classe dos trabalhadores livres, com seus hábitos e exigências peculiares. Um
elemento histórico e moral entra na determinação do valor da força do
trabalho, o que a distingue das outras mercadorias. Mas, para um país
determinado, num período determinado, é dada a quantidade média dos
meios de subsistência necessários. (MARX, 2008a, p. 201, grifos nossos)

Rosdolsky assim interpreta este trecho de O Capital:


O montante dessas necessidades, acrescentamos, também depende de
expectativas mais recentes, expectativas que a classe trabalhadora consegue
tornar reais em sua luta sindical e política contra a classe capitalista, caso os
êxitos obtidos por aquela não sejam apenas transitórios. Marx destaca
expressamente o “elemento histórico e moral” que intervém na determinação
do valor da força de trabalho. (ROSDOLSKY, 2001, p. 238)

Haveria, então, contradições entre esta leitura e a obra pachukaniana? Nossa


hipótese é que Teoria Geral do Direito e Marxismo centra sua crítica no direito mais
evoluído, o da sociedade do capital. Mas a transborda, ultrapassa. O que viabiliza o
contrato, o que atende profundamente às necessidades do modo de produção capitalista,
é a ideia de equivalência e de igualdade. Nas reflexões de Naves,
É assim que o homem pode se apresentar, como diz Marx em uma expressão
magnífica, como um “equivalente vivo” (...). De fato, tudo se passa, no
domínio do direito e da ideologia jurídica, no terreno da expressão de
vontades livres que celebram acordos com base na mais estrita igualdade, e,
assim, produzindo o esquecimento das condições reais da exploração
capitalista. (NAVES, 2017a, p. 17, grifos nossos)

Pachukanis (2017b, pp. 79-80) destaca que Marx revela que tal condição
fundamental se enraíza na própria economia. A existência da forma jurídica é
“justamente a igualação dos dispêndios do trabalho segundo o princípio da troca de
equivalentes, (...) o profundo vínculo interno entre a forma do direito e a forma da
mercadoria”. Esta relação se expressará no contrato: “Histórica e concretamente, (...) o
conceito de ato jurídico deriva do de contrato. Fora do contrato, os próprios conceitos
de sujeito e de vontade no sentido jurídico existem apenas como abstração sem vida”
(Idem, p. 127). Pachukanis identificará que “A ideia de equivalente, essa primeira ideia
puramente jurídica, tem sua fonte na forma da mercadoria” (Idem, p. 167). E retornará à
centralidade do ser social no que se refere ao direito (Idem, p. 168, grifo nosso):

Na verdade, a ideia jurídica, ou seja, a ideia de equivalência, torna-se


completamente clara e se realiza de modo objetivo apenas naquele estágio de
desenvolvimento econômico em que a forma da equivalência se torna regular
como critério da paridade da troca, ou seja, em nenhum caso no mundo
animal, mas na sociedade humana.

Na sociedade de classes a impossibilidade de direitos iguais é evidente. “Na


fábrica, a propósito da jornada de trabalho, tem-se, ‘portanto, uma antinomia, um direito

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contra outro direito, ambos igualmente apoiados na lei da troca de mercadorias’. (...)
Entre direitos iguais, quem decide é a força” (MARX, 2017, p. 309).
Na Crítica ao Programa de Gotha, (MARX, 2004, p. 108-110), Marx critica a
manutenção do caráter burguês do direito no texto proposto (“o direito igual ainda
continua onerado por uma limitação burguesa”); para ele, todo direito é “baseado na
desigualdade”; há distinção entre indivíduos, que “não seriam indivíduos distintos se
não fossem desiguais”. Suas reflexões evoluem para a famosa proposição: “De cada um
segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades!”.
Lembremo-nos que Marx anuncia, na mesma obra (2004), que só livre do jugo
do capital, da “escravizante subordinação dos indivíduos à divisão do trabalho” é que
todas as potencialidades humanas poderão ser efetivamente desenvolvidas. A
desconsideração prévia de necessidades humanas em sociedades com modos de
produção algo alternativos ao do capital já resultou no contrário de uma vida
humanamente emancipada35. Em outras palavras, nada nos garante que o mais amplo
universo de necessidades produzidas pelos seres sociais em uma sociedade sem classes
estará de imediato atendido. As desigualdades que deixarão de existir, relembramos, são
as próprias das sociedades de classes. As demais persistirão objeto de disputas e, quiçá,
lutas – em torno da satisfação de necessidades que sequer somos capazes de imaginar,
posto que impedidas pela sociabilidade do capital. O oposto pode significar, a nosso
ver, decretar um novo fim da história (embora às avessas) ou a morte da dialética.

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35
Cf. Melkevic (2015), Hobsbawm (1995) e Ruiz (2014), este especialmente em sua seção final.

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

CATEGORIA SUJEITO DE DIREITO EM PACHUKANIS: UM PASSO EM OU


ALÉM DE MARX?
Júlio César Villela da Motta Filho
Universidade Federal de Minas Gerais
juliomotta199@gmail.com

Odara Gonzaga de Andrade


Universidade Federal de Lavras
odaraandrade@hotmail.com

Resumo:
A partir da teoria da forma jurídica e seus elementos, pretende-se compreender a centralidade
dada por Pachukanis à categoria sujeito de direito e o modo pelo qual o autor tenta aproximar
a crítica ao Direito à crítica da economia política realizada por Marx, principalmente da
categoria de pessoa trabalhada pelo autor alemão, indagando se há uma mera continuidade
ou se trata de uma inovação do autor soviético. A resposta se constrói com uma análise que
permite compreender melhor a influência de Pachukanis no momento revolucionário
soviético e ao Direito após este contexto.
Palavras-chave: Marx; Pachukanis; sujeito de direito.

CATEGORY SUBJECT OF RIGHTS IN PACHUKANIS: A STEP IN OR BEYOND


MARX?

Abstract: From the theory of juridical form and its elements, we intend to understand the
centrality given by Pachukanis to the category of subject of law and the way in which the
author tries to approximate the criticism to the Law to the critic of the political economy
realized by Marx, mainly of the category of a person worked by the German author, asking
whether there is a mere continuity of a suspected Marxist method or is it an innovation of the
Soviet author. The answer is constructed with an analysis that allows to understand better
the influence of Pachukanis in the Soviet revolutionary moment and the Law after this
context.
Keywords: Marx;Pachukanis; subject of right

1. INTRODUÇÃO
Evguiéni Pachukanis, em sua obra Teoria do Direito e Marxismo, busca desenvolver
historicamente categorias centrais para a Teoria do Direito. Dentre as categorias abordadas,
como a norma jurídica, a relação jurídica, dentre outras, o sujeito de direito tem uma
importância fulcral para a compreensão da forma jurídica. Busca-se assim compreender se
há uma relação entre a noção de pessoa presente em Marx com o conceito de sujeito de
direito, entendendo ser necessária a relação entre sujeitos de direitos essencial para a que
coisas se relacionem umas com as outras como mercadorias (MARX, 2013).
Por mais que parte das interpretações sobre o tema entendam que Pachukanis foi,
em sua crítica ao direito, fiel ao suposto método presente em O Capital elaborado por Marx
à crítica da economia política, como Naves (2000 e 2014), Kashiura (2009, 2014) há
divergências (SARTORI, 2015; SARTORI, no prelo a;b), que acreditam que a relação de

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pessoa e sujeito de direito elaborada pelo autor soviético não pode ser feita de forma
automática e imediata — partindo de Chasin (2009) e Lukács (2012) —. Ou seja, em sua
obra, Pachukanis compreendeu que a categoria sujeito de direito se derivaria imediatamente
da análise da forma mercadoria (PACHUKANIS, 2017, p.61). A primeira vertente, ligada a
uma leitura althusseriana (ALTHUSSER, 1979, 1987, 1999 e 2002) enxerga que há uma
fidelidade ao método de Marx, sendo correta tal análise de derivação imediata e estando ela
já presente em O capital.
O presente trabalho, então, procura se inserir em tal debate, analisando a correlação
entre a noção de sujeito de direito e a noção de pessoa presentes em Marx e Pachukanis.
Longe de tentar retirar as importantes contribuições de Pachukanis como marxista, busca-se,
aqui, compreender um caráter de inovação do autor, e não mera continuidade das obras do
autor alemão. Ou seja, se é possível conferir centralidade às categorias do direito, Pachukanis
é o grande responsável por essa análise (SARTORI, no prelo a,b), e não propriamente Marx.
A Teoria Geral do Direito de Pachukanis certamente contribuiu e ainda contribui
para as análises do Direito e sua especificidade burguesa. Buscando uma análise dos
elementos que compreendem a forma jurídica, retirando a centralidade da norma, e focando,
dessa maneira, na categoria do sujeitos de direito. Tais categorias imbricadas entre si e que
trazem um caráter inovador ao autor soviético. E este caráter devendo ser exaltado para
melhor compreensão da obra no contexto que ela se realiza, compreendendo o principal
teórico marxista do direito de forma adequada e, questionando alguns de seus pontos, abre-
se a possibilidade para ir além de suas análises.

2. TRANSPOSIÇÃO DA ANÁLISE PRESENTE EM O CAPITAL


Para melhor compreensão das razões que levaram Pachukanis a partir e dar
centralidade ao sujeito de direito em seu livro Teoria Geral do Direito e Marxismo, deve-se
compreender o modo pelo qual: “Explicitamente, o autor soviético tenta transpor a análise
marxiana trazida em O capital para o campo do Direito” (SARTORI, no prelo b, p.15).
O presente trabalho não pretende tratar especificamente sobre a existência ou não
de um método de Marx, tendo em vista que “O estudo da concepção teórico-metodológica
de Marx apresenta inúmeras dificuldades- desde as derivadas da sua própria complexidade
até as que se devem aos tratamentos equivocados a que a obra marxiana foi submetida”.
(NETTO, 2009, p. 3). O que se destaca sobre o tema é que parte importante dos
pesquisadores do autor soviético acreditam que existe, sim, um método marxiano e que
Pachukanis o utiliza:
Pachukanis, rigorosamente, retorna a Marx, isto é, não apenas às referências ao
direito encontradas em O capital- e não seria exagero dizer que ele é o primeiro
que verdadeiramente as lê, mas principalmente, ele retorna à inspiração original de
Marx, ao recuperar o método marxiano” (NAVES, 2000,p. 16).

Porém, este não será o ponto de divergência aqui tratado. O que se tentará
demonstrar no decorrer deste tópico é que na obra de Pachukanis há uma clara tentativa de
levar a análise de Marx para o Direito: o autor soviético claramente parte do modo como
Marx inicia o Capital para iniciar sua análise em Teoria Geral do Direito e Marxismo. Por
mais que a existência ou não do método marxiano e sua correta utilização por Pachukanis
seja questionável, o trabalho focará sua divergência discordando de que “a concepção de

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Pachukanis corresponde inteiramente às reflexões que Marx desenvolve, sobretudo nos


Grundrisse em O capital” (NAVES, 2014, p. 48). Ou seja, mesmo supondo que
efetivamente pachukanis tenha utilizado perfeitamente do método em sua crítica, não há
como falar que ele e Marx são iguais. Portanto, demonstraremos: 1) como o início da análise
de Pachukanis é similar a de Marx de forma não coincidente e 2) existindo ou não um método,
o que é dito por Pachukanis sobre o sujeito de direito não é dito por Marx
Primeiramente, deve-se ter em vista que o autor soviético visa uma análise da forma
jurídica não apenas como uma mera ideologia ou com enfoque exclusivo em seu conteúdo,
sendo a forma jurídica, sem dúvidas, histórica e devendo ser analisada como tal, como se
perceberá ao se esmiuçar sua categoria de sujeito de direito mais adiante. Com a suposta falha
dos autores marxistas em se desvencilhar das teorias psicológicas e sociológicas, torna-se
necessário, para Pachukanis, compreender o conteúdo real da forma jurídica
(PACHUKANIS, 2017, p. 72). Assim:
o marxismo, ao tratar da forma jurídica e do próprio direito, não deve focar única
e exclusivamente em seu conteúdo, mas também deve analisar a materialidade da
própria regulação jurídica, do direito e da regulamentação jurídica enquanto forma
jurídica, alcançando o “ passado, presente e futuro das instituições jurídicas”. Tal
análise possibilitaria a compreensão do direito em sua forma mais acabada e
conferiria a capacidade de compreender o direito em seu movimento real.
(PACHUKANIS, 2017, p. 73)

Para realizar tal análise e crítica à forma jurídica da forma explicitada, há uma clara
remissão ao O Capital. Tendo em vista que tanto a “teoria geral do direito” como a “economia
política” começam com a mercadoria (PACHUKANIS, 2017, p.75), há uma similaridade de
origem em ambas, permitindo uma análise parecida. Assim, a teoria geral do direito
percorreria uma história paralela, mesmo que não autônoma, em relação à economia política,
sendo forma jurídica igualmente capaz de refletir um desenvolvimento histórico real da
sociedade burguesa (PACHUKANIS, 2017, p.76). Ou seja, o direito forneceria uma base
igualmente sólida de estudos, assim como a economia política. Sua história percorreria um
caminho análogo/paralelo à forma mercadoria, possibilitando o estudo do desenvolvimento
da sociedade burguesa:
Do mesmo modo que a riqueza da sociedade capitalista assume forma de uma
enorme coleção de mercadorias, também a sociedade se apresenta como uma
cadeia ininterrupta de relações jurídicas. (PACHUKANIS, 2017, p.83)

No trecho, a relevância que Pachukanis começa a dar à forma jurídica é notória,


destacando as relações jurídicas para a esfera de troca de mercadorias, sendo que estas
relações — o que se analisará melhor a seguir — são essenciais para o fetichismo da
mercadoria. O que se destaca agora é a clara remissão do trecho anterior à seguinte passagem
presente em O capital: “a riqueza das sociedades em que domina o modo de produção
capitalista aparece como uma 'enorme coleção de mercadorias' e a mercadoria individual
como sua forma elementar.” (MARX, 2013, p.113).
A similaridade dos dois trechos não é uma obra do acaso ou uma coincidência.
Pachukanis tem um claro objetivo: assim como Marx partiu da mercadoria para sua crítica à
economia política, ele pretende partir de um elemento do direito — ver-se-á demonstrando

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que este é a forma jurídica e seus elementos — para uma análise da teoria geral do direito,
sendo esse o pilar de sua crítica e análise.
Mesmo que aqui se pretenda questionar a maior centralidade dada ao direito feita
por Pachukanis, deve-se frisar que o autor não comete o mesmo erro de autores como Anton
Menger, por exemplo, que visaram se desligar das discussões a respeito da economia política,
dando completa autonomia e centralidade ao direito, conferindo grau de “ornamentos” para
discussões acerca da economia política (ENGELS; KAUSTKY, 2012, p.22). Por mais que
destaque a importância da forma mercadoria, Pachukanis não se esquece da esfera produtiva
e da importância da crítica realizada à economia política:
Do mesmo modo, o direito considerado em suas determinações gerais, como
forma, não existe somente na cabeça e nas teorias dos juristas especialistas. Ele
tem, paralelamente, uma história real, que se desenvolve não como um sistema de
ideias, mas como um sistema específico de relações, no qual as pessoas entram não
porque o escolheram conscientemente, mas porque foram compelidas pelas
condições de produção. (PACHUKANIS, 2017, p.83)

Do mesmo modo, não se pode falar que o autor soviético defendia um Direito do
proletariado, como presente no Programa de Gotha. Portanto, tanto para Marx (MARX,
2012, p.31), como para Pachukanis, não se trata de um aproveitamento do direito, mas de sua
supressão, por mais que ainda exista na fase de transição: “Exigir do direito proletariado seus
próprios, novos, conceitos gerais é uma tendência que parece revolucionária par excellence.
Contudo, na realidade, proclama a imortalidade da forma do direito”. (PACHUKANIS, 2017,
p.77). Ou seja, mesmo com uma grande centralidade do direito conferida por Pachukanis em
sua crítica, não se trata em nenhum momento de uma legalidade revolucionária .
Mesmo considerando que: “ambos destacam a abordagem acrítica e anti-histórica
da tradição com a qual debatem; procuram, assim, trazer a gênese real e efetiva das categorias
que analisam” (SARTORI, no prelo b, p.13), que se pretende expor a seguir é que Pachukanis
não pode ser interpretado como uma mera continuidade de Marx, apresentando diversos
caráteres divergentes e com grau de inovação. Ou seja, ainda que destaque a importância da
esfera produtiva e das críticas realizadas por Marx à economia política, demonstrando
conhecimento das obras do autor alemão, não basta a mera remissão à economia política para
a compreensão do Direito de forma a compreender todo seu movimento real e efetivo e a
utilização correta do método (SARTORI, 2016). Dessa maneira, busca-se fazer um paralelo
entre as categorias de pessoa (de Marx) e de sujeitos de direito (de Pachukanis) a fim de se
compreender se há uma relação direta e imediata entre os autores. Assim, se abordará a seguir
as teorias de ambos, remetendo a sua devida contextualização histórica.

3. OS SUJEITOS DE DIREITO: UM NOVO CONCEITO OU UMA


CONTINUAÇÃO DAS LIÇÕES DE MARX?
a) A forma jurídica em Pachukanis: o que é ou qual papel dos sujeitos de Direito?
Partindo de uma crítica ao neokantismo e ao sociologismo jurídico, Pachukanis, como
já dito, almejava entender o direito em seu movimento real e efetivo. Para esta compreensão,
o autor buscou entender o que é a forma jurídica e o que a compõe, buscando demonstrar a
abstração das “relações de fato entre pessoas contrapostas umas às outras como produtoras

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de mercadorias” . Dessa maneira, ainda que divergentes as teorias sobre o que seria a forma
do Direito giravam em torno da centralidade normativa. Tanto no neokantismo como no
sociologismo se vê o Direito como um sistema normativo. Enquanto para o neokantismo o
direito é um conjunto de normas amparadas pela sanção, o sociologismo jurídico buscava
compreender o conteúdo material no qual se preenchem as normas. Em ambos os
movimentos, se perde o que há de específico no Direito e este “serviria” para qualquer
momento histórico.

O Direito, então, teria como essência a norma e sua forma seria abstrata e eterna na
historicidade. Entretanto, em uma análise do “método” materialista-histórico amparado pela
investigação da análise pela mercadoria (MARX, 2013, p.113), Pachukanis parte da análise
das categorias mais abstratas para se compreender a forma jurídica. A partir de sua
investigação, então, o autor toma a categoria dos sujeitos de direito como central para
compreensão da forma jurídica. Neste tópico, demonstrar-se-á as razões que levaram o autor
a partir deste ponto como marco zero de sua crítica, ou seja, a razão pela qual o sujeito de
direito, para Pachukanis, tem importância central, assim como a própria mercadoria para o
autor alemão
O autor soviético vai trazer a compreensão que é na sociedade capitalista, que tem
por fim a circulação de mercadorias a partir da exploração do trabalho, o Direito terá sua
forma mais completa e intensificada. Assim, a sociedade fundamentada no modo de produção
capitalista pode ser vista não apenas como uma “enorme coleção de mercadorias”, mas como
uma cadeia ininterrupta de relações jurídicas. (PACHUKANIS, 2017):
(...) “ideia do direito” nada mais é do que a expressão unilateral e abstrata de uma
das relações da sociedade burguesa, a saber, da relação entre proprietários
independentes e iguais, uma relação que é a premissa “natural” do ato de troca
(PACHUKANIS, 2017, p. 234)

A chamada “vida social” comporta, então, um conjunto de relações. Há uma relação


humana mediada por transações e relações por meio de oposição, ou seja, por meio de
oposição entre os sujeitos enquanto proprietários de si. A mercadoria nasce na troca e a
circulação de mercadoria existe pela mediação de sujeitos de direito: em outras palavras, há
uma relação de equivalência abstrata entre mercadorias e os sujeitos abstratos de direito. O
movimento real e efetivo do direito, essencial para a própria apreensão e crítica da sociedade
burguesa como um todo, poderia ser compreendido partindo-se das relações jurídicas entre
indivíduos — especificamente entre sujeito de direitos — , sendo estas a “célula central do
tecido jurídico”. (PACHUKANIS, 2017, p.97) Assim, a norma jurídica não é a responsável
pela existência da relação jurídica. Ela se origina de relações previamente existentes ou são
geradas por lei estatal, devendo, mesmo nesse último caso, se basear ou originar de relações
sociais preexistentes:
Do mesmo modo, o direito considerado em suas determinações gerais, como
forma, não existe somente na cabeça e nas teorias dos juristas especialistas. Ele
tem, paralelamente, uma história real, que se desenvolve não como um sistema de
ideias, mas como um sistema específico de relações, no qual as pessoas entram não
porque o escolheram conscientemente, mas porque foram compelidas pelas
condições de produção. (PACHUKANIS, 2017, p.83)

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Há um duplo movimento: (1) uma realidade “real”— baseada na ideologia burguesa


e intermediada por instituições burguesas — recapturada pela linguagem jurídica (pela lógica
da abstração) e transformada numa (2) realidade de sujeitos de direitos dotados de
personalidade jurídica (criada por uma ideologia) que os tornam livres e iguais para
circulação de mercadorias. Há uma reificação, novamente, dos sujeitos pela linguagem
jurídica, na medida em que o indivíduo só irá existir, na sociedade capitalista, pela
personificação jurídica (EDELMANN, 1973). A forma jurídica complementa a forma
mercadoria: “a relação jurídica entre sujeitos é apenas outro lado das relações entre os
produtos do trabalho tornados mercadorias”. (PACHUKANIS, 2017, p.97).
Nesse sentido, para o autor soviético existiria já em Marx um vínculo fundamental
entre forma jurídica e forma mercadoria, sendo a primeira indispensável para a concretização
do processo de troca e da própria formação da mercadoria:
Além disso, Marx revela a condição fundamental, enraizada na própria economia,
da existência da forma jurídica, que é justamente a igualação dos dispêndios do
trabalho segundo o princípio da troca de equivalentes, ou seja, ele descobre o
profundo vínculo interno entre a forma do direito e a forma mercadoria.
(PACHUKANIS, 2017, p.80)

Ademais, acerta o autor soviético ao destacar e enfatizar que a “emergência da


importância decisiva das relações jurídicas, no capitalismo, traz o afastamento de um
elemento natural e espontâneo” (SARTORI, no prelo a), focando em seu caráter histórico e
como construção social (LUKÁCS, 2010, 2012, 2013):
Ao aplicar as considerações metodológicas supracitadas à teoria do direito,
devemos começar pela análise da forma jurídica em seu aspecto mais abstrato e
puro e passar, depois, pelo caminho de uma gradual complexidade até a
concretização histórica. Por isso, não devemos perder de vista que o
desenvolvimento dialético dos conceitos corresponde ao desenvolvimento
dialético do próprio processo histórico. (PACHUKANIS, 2017, p.86)

A grande questão é a relevância dada especificamente a relação jurídica entre


sujeitos de direito, derivada imediatamente do termo pessoa e da forma mercadoria, para o
processo de troca de mercadorias. Partindo da explicada importância das relações jurídicas,
estas só poderiam se dar entre sujeitos:
Toda relação jurídica é uma relação entre sujeitos. O sujeito é o átomo da teoria
jurídica, o elemento mais simples e indivisível, que não pode mais ser decomposto.
É por ele, então, que começaremos nossa análise. (PACHUKANIS, 2017, p.109)

A forma jurídica assume centralidade que advém das relações reificadas que
dependem, simultaneamente, da capacidade dos indivíduos nelas presentes serem sujeitos de
direito, assim como dependem do próprio valor de mercadoria: “O vínculo social da produção
apresenta-se, simultaneamente, sob duas formas absurdas: Como valor de mercadoria e como
capacidade do homem de ser sujeito de direito”. (PACHUKANIS, 2017, p.121). Tendo como
premissa que “o fetichismo da mercadoria se completa com o fetichismo jurídico”
(PACHUKANIS, 2017, p.124), o autor partirá de uma análise do sujeito de direito assim
como Marx partiu da mercadoria, fazendo com que derivasse imediatamente (PAÇO
CUNHA, 2015) seu ponto de partida do termo pessoa presente em O capital:

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As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se umas pelas


outras. Temos, portanto, de nos voltar para seus guardiões, os possuidores de
mercadorias. Elas são coisas e, por isso, não podem impor resistência ao homem.
Se não se mostram solícitas, ele pode recorrer à violência; em outras palavras, pode
tomá-las à força. Para relacionar essas coisas umas com as outras como
mercadorias, seus guardiões têm de estabelecer relações uns com os outros como
pessoas cuja vontade reside nessas coisas e que agir de modo tal que um só pode
se apropriar da mercadoria alheia e alienar a sua própria mercadoria em
concordância com a vontade do outro, portanto, por meio de um ato de vontade
comum a ambos. Eles têm, portanto, de se reconhecer mutuamente como
proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, seja ela
legalmente desenvolvida ou não, é uma relação volitiva, na qual se reflete a relação
econômica. (MARX, 2013, p.159)

Dada a forma jurídica por sua aparência abstrata, os sujeitos de direito se colocam
como livres e iguais para a circulação de mercadoria, como já supramencionado. De modo
que as relações de produção da sociedade seriam “edificadas” sob a divisão do trabalho e a
troca. Sendo que esta última existirá a partir do momento que existem sujeitos para a
mediação entre as coisas, de modo que a personificação do indivíduo pela linguagem jurídica
dá ao fetiche da mercadoria sua invisibilidade na visibilidade. Em outras palavras, a
personalidade jurídica cria o sujeito e este que circula a mercadoria produto do seu próprio
trabalho. O sujeito de livre e igual é necessário para todo o processo produtivo. Nesse sentido,
a liberdade e igualdade são mazelas, somos livres na medida em que somos escravos e iguais
na possibilidade de sermos desiguais:
O sujeito como titular e destinatário de todas as pretensões possíveis e a cadeia de
sujeitos ligados por pretensões recíprocas são o tecido jurídico fundamental que
corresponde ao tecido econômico, ou seja, às relações de produção da sociedade,
que repousa na divisão do trabalho e na troca”. ( PACHUKANIS, 2017, p.109)

As categorias expostas por Pachukanis, entretanto não são vistas de modo imediato
em Marx. Para o autor alemão há importância da esfera de troca para o fetichismo da
mercadoria e para que mercadorias se relacionem umas com as outras como mercadorias,
porém, a centralidade dada por Pachukanis à forma jurídica e a derivação do termo pessoa
como sujeitos de direito não pode ser vista em Marx, e, se pode ser feita, não há tal
imediatidade (SARTORI, no prelo a;b e PAÇO CUNHA, 2015), perpassando, antes, pelo
aspecto religioso e pelo sujeito automático. Ou seja, partindo de O capital e,
consequentemente, da teoria do valor, (NASCIMENTO, 2015) o autor soviético realiza uma
analogia/derivação direta e imediata entre a forma mercadoria, o fetichismo e o Direito, o
que se pretende demonstrar como uma interpretação equivocada e que não reproduz
fielmente o que foi esboçado em Marx, como será abordado no tópico a seguir.
b) A categoria pessoa em Marx: Os sujeitos de Direito e a continuação das premissas
do autor alemão.
Partindo do mesmo método de Marx em O Capital, Pachukanis busca os elementos
mais abstratos da forma jurídica levando em conta a teoria do valor. O autor busca relacionar
o termo pessoa com sujeito de direito, sendo isto essencial para sua formulação teórica.
Dessa maneira, busca-se compreender quais interpretações e analogias (se possíveis) temos
como mais adequadas: teria o sujeito de direito alguma essencialidade/centralidade em
Marx?

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Primeiramente, ressalta-se a importância, dada por Marx, ao processo de troca para


que o produto do trabalho se torne mercadoria: (1) o produto do trabalho deve ter valor de
uso para outra pessoa, devendo lhe ser útil e que distintos produtos de trabalho possam se
confrontar como trabalho humano igual, trabalho abstrato; (2) na esfera de circulação de
mercadorias, a força de trabalho deve ser incorporada ao produto do trabalho de forma
abstrata, gerando valor de uso para outra pessoa e valor de troca para que mercadorias
diferentes possam se confrontar mutuamente (MARX, 2013). Entretanto, Marx vai atribuir o
caráter místico da forma-mercadoria à naturalização dos inícios e fins do processo produtivo
e de troca entre coisas, que passam a ter o caráter de mercadoria como uma qualidade natural
para as pessoas, não referindo-se a forma jurídica e misticidade envolta do Direito pelos
elementos que compõem esta última (sujeitos de direito e ideologia) :
O caráter místico da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de
que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como
caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais
que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos
produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos, existente
à margem dos produtores. É por meio desse quiproquó que os produtos do trabalho
se tornam mercadorias, coisas sensíveis-suprassensível ou sociais. (MARX, 2013,
p.147)

O fetiche da mercadoria seria então “uma relação social determinada entre os


próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre
coisas”. (MARX, 2013, p.147). E a mercadoria traria uma forma social, por se tratar de: “uma
coisa muito complicada, cheia de sutileza metafísica e manhas teológicas”. (MARX, 2013,
p.146). Ou seja, por trazer de uma forma social repleta de misticismos, não haveria a precisão
pretendida por Pachukanis, dependendo a mercadoria tão diretamente da forma jurídica.
(SARTORI, no prelo b) Estaria, pois, a reificação presente em primeiro momento, e não a
forma jurídica.
Nesse contexto, para Marx uma analogia estaria mais próxima em relação ao campo
religioso, uma vez que o próprio capital consiste em “uma relação social entre pessoas
intermediada por coisas” (MARX, 2013, p.147), sendo o valor, e não sujeitos de direito,
apareceria como sujeito desse processo. Assim, o valor: “Tal qual um Deus, assume uma
posição demiúrgica”. (SARTORI, no prelo a, p. 15). Por mais que a relação de troca se dê
entre os “guardiões”, a forma social do valor sujeita os próprios homens. As mercadorias, de
criaturas, viram criadoras, e aos trabalhadores. Ou seja, o valor se valoriza devido a sua
qualidade mística e “oculta” de ser valor:
(...) aparecem as relações sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos privados
como o que são, isto é, não como relações diretamente sociais entre pessoas em
seus próprios trabalhos, senão como relações reificadas entre as pessoas e relações
sociais entre coisas. (MARX, 2013, p.148)

Afinal, qual o papel do Sujeito de Direito em Marx? A questão perpassa por muitos
outros pontos mais centrais, como a analogia com a religião e o sujeito automático (valor)
que é possível se observar na esfera de circulação:
O sujeito (…) que se mostra em O capital na esfera de circulação de mercadorias
é aquele que conforma o “ponto de partida e o ponto final” de todo processo de
valorização na medida em que oculta sua relação com a esfera propriamente

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produtiva, e, portanto, com o processo de produção de mais valor, que depende da


força de trabalho. (SARTORI, no prelo a, p.17)

Levando tudo isso em conta, a melhor analogia, em Marx, remete-se a religião e não
ao Direito. Isso porque no processo de troca uma relação entre pessoas “cuja vontade reside
nas coisas” e que, principalmente, de forma autonomizada, as pessoas presentes nesse
processo não percebem a real natureza de suas relações e de seus produtos de trabalho, agindo
o próprio valor como um Deus.
Há que se levar em conta, que para o autor soviético o sujeito de direito é conferido
de qualidades dadas pela linguagem jurídica, quais sejam a liberdade e igualdade. E ambas,
convergem para que haja uma disposição do trabalho. Porém, a possibilidade de dispor de si
mesmo, de dispor de sua pessoa (SARTORI, no prelo a) a questão, novamente, não se dará
com a derivação do sujeito de direito de forma automática e direta vez que “o produtor direto,
o trabalhador, somente pôde dispor de sua pessoa depois que deixou de estar vinculado à
gleba e de ser servo ou dependente de outra pessoa”. (MARX, 2013, p.786). Há, também, em
Marx maior contato com o sujeito automático e a forma social do valor neste aspecto, pois o
indivíduo.
O aspecto contratual da venda da força de trabalho não é o aspecto jurídico o
dominante (SARTORI, no prelo b). Em verdade, há, em Marx, destaque para a esfera
produtiva, que obriga a pessoa a dispor de sua força de trabalho, não o caráter de ser sujeito
de direito em uma relação jurídica contratual vendendo-a:
Ou seja, também sob este aspecto, não é possível, imediatamente, derivar a
noção de sujeito de direito a partir da obra marxiana. Se Pachukanis diz que
as relações naturais, com o desenvolvimento social, são substituídas pelas
jurídicas, em Marx, a questão é distinta, até mesmo porque o autor alemão
vem a enfatizar “educação, tradição, costume”, de modo a deixar claro que
não se tem o reconhecimento da base real da sociedade capitalista em uma
simples passagem da religião ao Direito, mas por via de diversos aspectos
relacionados à imposição da relação capital e, portanto, da lei do valor. (
SARTORI, no prelo a, p.20)

Portanto, seja qual forma a perspectiva analisada, não se pode encontrar a mesma
centralidade conferida por Pachukanis ao sujeito de direito. Há, sim, em Pachukanis caráter
inovador perante Marx, tendo mais aproximações entre o autor e Engels, do que o próprio
Marx. E compreender dessa maneira é dar mais elucidação aos conceitos basilares e ideias
do autor soviético, bem como trazer maior compreensão dos processos envolta da Revolução
Russa.
Em Pachukanis, pode ser observada uma clara substituição das relações pessoais e
patriarcais características do feudalismo por relações jurídicas, característica extremamente
importante para a dominação impessoal do capitalismo. Ou seja, o Direito aparece como
substituto das relações pessoais feudais marcadas pelo aspecto religioso, havendo não mais
uma relação pessoal direta, mas uma relação jurídica entre sujeitos de direito.
Em Marx há um destaque de importância da religião na Idade Média, uma vez que
esse período histórico foi dominado pelo catolicismo. (MARX, 2013). Porém, como visto
durante todo o trabalho, não há centralidade do Direito em Karl Marx. A forma jurídica está
presente em sua obra, sem dúvidas, porém não de forma central para o fetichismo da

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mercadoria e para as relações de troca na esfera da distribuição, havendo ênfase na lei do


Valor e na questão de como este se comporta de forma demiúrgica e sobre-humana nas
relações entre pessoas mediadas por coisas.
No entanto, em O socialismo jurídico tal concepção se mostra clara e efetiva,
havendo explicitamente uma passagem da visão religiosa de mundo para uma concepção
jurídica. Assim, Pachukanis estaria mais próximo, nesse aspecto de Engels, e não Marx, já
que a fundamentação para a mudança de uma dominação direta da idade média para uma
dominação indireta marcada pelo Direito e, consequentemente, maior valorização deste,
estaria melhor baseada em Engels do que em Marx :
(...) a bandeira religiosa tremulou pela última vez na Inglaterra no século XVII, e
menos de cinquenta anos mais tarde aparecia na França, sem disfarces, a nova
concepção de mundo, fadada a se tornar clássica para a burguesia, a concepção
jurídica de mundo. (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p.17).

Em suma, a aproximação do sujeito de direito à forma mercadoria está mais presente


na obra de Engels do que em Marx. Entretanto, não restam dúvidas que o autor soviético
acertou em diversos pontos referentes à obra de Marx, podendo ser a obra Teoria Geral do
Direito e Marxismo “propriamente marxiana (CHASIN, 2009). Assim, aqui, há similaridade
com a visão da seguinte tese de que Pachukanis: “serviu-se essencialmente das ideias que
encontrou em Marx sob a influência decisiva da perspectivação engelsiana.” (PAÇO
CUNHA, 2015, p.169). Ademais, com o diferente grau de importância conferidos ao Direito
em Engels e Marx, fica claro que estes dois não podem ser considerados sem se ter em mente
que apresentam diferenças (SARTORI, 2015; PAÇO CUNHA, 2015).
Ou seja, partindo mais de uma visão jurídica de mundo presente em Engels, e não
presente em Marx, Pachukanis, por óbvio, não parte diretamente de Marx. A obra de
Pachukanis detém grande capacidade análitica do campo do direito, subvertendo
completamente o modo de compreender a forma jurídica e sua especificidade burguesa, a
crítica pachukaniana do Direito o levou ao auge e à morte. Entretanto, ainda que o autor
parta de sua análise dos estudos de Marx sobre a forma mercadoria, esta é mais próxima da
interpretação de Engels sobre o Direito. Isso não diminui a essencialidade de se ler e
compreender Pachukanis, principalmente, nos contextos que é atribuído caráter excêntrico e
místico ao Direito. Não obstante, a indagação sobre qual o caráter do sujeito de direito para
marx é retórica ou até mesmo esvaziada, tendo em vista que os esforços do autor não
perpassam na categoria, sendo esta uma inovação do soviético.
Concluído o objetivo maior do estudo: demonstrar de onde deriva a categoria de
sujeito de direito para Pachukanis. A resposta certamente não está na aproximação entre
sujeito de direito e a categoria de pessoa para Marx, mas sim, nos próprios estudos do autor
sobre a forma jurídica no contexto da Revolução Russa.

5. CONCLUSÃO
Partindo de uma necessidade imperiosa de se criar uma nova organização jurídica e
legislativa eminente ao contexto da Revolução Russa de 17 (NAVES, 2014,p. 24) Pachukanis
foi um dos mais influentes juristas soviéticos. Participando “como personagem principal de
todas as polêmicas de seu tempo” (LEANDRO MASCARO, 2002, p.139), o autor deve ser

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compreendido na medida do seu tempo e do seu caráter inovador enquanto marxista. Após
a Revolução de 1917, a U.R.S.S, dentre os incontáveis desafios e tarefas organizacionais,
tinha que solucionar os problemas jurídicos.
Os principais dificuldades iniciais eram: “a influência do pensamento jurídico
burguês, e na necessidade política de colocar em funcionamento o novo aparelho judiciário”
(NAVES, 2014,p. 25). Ademais, uma mera organização nova do judiciário e de todo o Direito
não bastava: era necessário que essa organização refletisse os ideias, até então
preponderantes, dos revolucionários. Ou seja, era necessário que o aparelho jurídico
permitisse a participação das massas, por meio de, por exemplo, tribunais populares
(NAVES, 2014, p.25). É esse o cenário em que se encontra o autor soviético. Portanto, estes
fatos devem sempre ser levados em conta para que as críticas e abordagens sobre ele não
sejam vazias ou ingênuas. Como um jurista de seu tempo, bastante influenciado por autores
como Marx e Engels, Pachukanis se posicionou e elaborou uma crítica ao Direito.
Portanto, as particularidades e inovações deste autor devem ser levadas em conta,
tendo em vista a grande importância de seus estudos. Porém, o que se vê, repetidamente, em
grande parte na academia nacional é a visão de Pachukanis como uma espécie de
continuidade de Marx:
Podemos dizer que a concepção de Pachukanis corresponde inteiramente às
reflexões que Marx desenvolve, sobretudo nos Grundrisse e em O Capital, a
propósito do lugar central que ocupa a análise da forma para compreender as
relações sociais capitalistas. (NAVES, 2000, p.40)

Ainda que o autor soviético tenha como base inicial a forma mercadoria, assim como
Marx, sua teoria da forma jurídica e os elementos destas, principalmente no que concerne aos
sujeitos de direito não é uma mera reprodução ou continuidade de Marx, não existindo, já em
Marx, tal analogia ou possibilidade de uma derivação direta. Do termo pessoa na esfera de
circulação, não há, imediatamente, a noção de sujeito de direito, ou seja, não há a centralidade
dada por Pachukanis à forma jurídica.
O que se vê é que, caso possível tal derivação, suas devidas mediações deveriam ter
sido melhor explicitadas, pois, em Marx, há maior enfoque a noção de relações sociais
reificadas sendo que a dialética entre pessoas e coisas (SARTORI, no prelo a) é o central no
tocante ao termo pessoa. Ademais, uma possível analogia seria com a religião, não
propriamente com o Direito. Portanto, seja na esfera de circulação de mercadorias, com as
pessoas (“guardiões”) trocando mercadorias, seja no momento em que a pessoa dispõe de sua
força de trabalho, o sujeito de direito, e a forma jurídica, não se mostram centrais como em
Pachukanis, apresentando este uma interpretação, inclusive, mais próxima da pensada por
Engels e sua valorização do Direito. Portanto, resume-se:
Pachukanis, pois, é bastante perspicaz: traz as raízes de uma categoria decisiva da
teoria do Direito para o centro de sua crítica ao mesmo. No entanto, sejam quais
forem as vantagens de sua teoria, ela não deriva diretamente da análise presente
em O capital. (SARTORI, no prelo a, p.25)

Compreender o Pachukanis como inovador diante das contribuições sobre a categoria


de pessoa e não como mera continuação desta abre um leque de possibilidades para
compreensão das influências do autor no contexto da Revolução Russa, assim como no
Direito. Partindo de tal pressuposto este estudo, então, buscou compreender a categoria de

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Sujeito de Direito para Pachukanis, logo em seguida se fez uma análise sobre a categoria de
pessoa para Marx. Fortalecendo essa “nova” visão interpretativa acerca do grande autor
soviético, passando a ser analisado com caráter de inovações e tendo em vista as diferenças
em relação à Marx, há novas possibilidades de estudos acerca das influências diretas desse
autor no momento revolucionário soviético e da construção do Direito após este contexto,
juntamente, com sua essencialidade burguesa e influências no capital.

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As Serpentes de Marx: o desenvolvimento e o sentido de uma metáfora

Lucas Parreira Álvares


Universidade Federal de Minas Gerais
lucasparreira1@gmail.com

Resumo: O presente texto tem por objetivo investigar o desenvolvimento teórico de uma
metáfora no pensamento de Marx, a qual denominamos aqui por “metáfora da serpente”.
Parte-se do desenvolvimento dessa metáfora desde os textos de juventude de Marx até
seus escritos nos anos finais de sua vida. Por fim, propomos uma hipótese sobre o modo
pelo qual Marx utiliza tal metáfora.

Palavras chave: Metáforas de Marx; Estilo literário; Marx e a linguagem

The Serpents of Marx: the development and meaning of a metaphor


Abstract: This text seeks to investigate the theoretical development of a metaphor in
Marx's thought, which we refer to here as the "serpent metaphor". It starts from the
development of this metaphor from the texts of the young Marx to his writings in the final
years of his life. Finally, we propose a hypothesis about the way in which Marx uses this
metaphor.

Keywords: Marx's metaphors; Literary style; Marx and the language

1. Introdução: Personagens abstratos, realidade concreta

Ao ler um obra como o livro 1 de O Capital, o leitor não acostumado com o


estilo literário de Karl Marx certamente se surpreende ao perceber a quantidade de
referências que dão subsídio à explicação central, a saber: o processo de produção do
capital1. Da mitologia grega, Marx invoca personagens como Hércules, Sísifo, Medusa,
Perseu; da mitologia romana, Cupido e Júpiter; dos personagens bíblicos, Isaque, Jacó,
Abraão, Moisés e mesmo Jesus. As referências à literatura clássica não ficam atrás,
aparecendo personagens como: Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, Dom Quixote, de
Michel de Cervantes, Bill Sikes, de Charles Dickens, entre tantos outros. Não é estranho
que no período que antecedeu a publicação de O Capital, Marx tenha enviado uma carta
a Engels em 1865 dizendo, dentre outras coisas, sobre a dificuldade de mandar sua obra
para impressão devido a seu rigor no que se refere à exposição do texto final que iria a
público: “sejam quais forem as deficiências que possam ter, a vantagem de meus escritos
é que eles são um todo artístico, o que só se consegue com o meu método de não deixar
jamais que cheguem à impressão antes de estarem terminados” (MARX, 2010, p.88). Essa
preocupação com O Capital é melhor expressa se comparada às produções anteriores de
Marx a partir de suas investigações acerca da “anatomia da sociedade civil burguesa”
como Contribuição à crítica da economia política e mesmo os Grundrisse nas quais o

1
Esse texto em questão é uma espécie de embrião para um futuro texto a ser desenvolvido com maior
profundidade. Como não foi possível desenvolver nesse instante um texto mais profundo sobre essa
temática, acho necessário assumir toda a responsabilidade do texto. Para o propósito futuro de desenvolver
um texto mais aprofundado do que esse, agradeço as sugestões e críticas desenvolvidas tanto por Ivan
quanto por Vera Cotrim.

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
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estilo literário de Marx não aparece de maneira tão “refinada”, por assim dizer, quanto
em O Capital.
Dentre os elementos da estilística de Marx, a metáfora cumpre um papel
fundamental. Ludovico Silva (2012, p.11) aponta que “a ciência nada perde, só ganha, se
ao seu rigor demonstrativo se acrescer um rigor ilustrativo; nada contribui mais para a
compreensão de uma teoria que uma metáfora adequada ou uma analogia que a calce”, e
tal utilização fica muito evidente nas diversas metáforas de Marx que foram frutos de
demasiados estudos. Dentre elas, alguns destaques:
1) a tão mencionada “metáfora do edifício”: Marx (2008, p.49), no Prefácio de
59 afirma que o conjunto das relações de produção forma a “estrutura econômica da
sociedade, a base real sobre a qual eleva uma superestrutura jurídica e política, e à qual
correspondem formas sociais determinadas de consciência” e complementa dizendo que
“a transformação que se produziu na base econômica transforma mais ou menos lenta ou
rapidamente toda a colossal superestrutura”. Ludovico Silva (2012, p.49), em linhas
gerais, condena o perigo de se apresentar como metáfora algo que, para uma grande
tradição do marxismo – principalmente intelectuais influenciados por Althusser a partir
da publicação do ensaio Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado e da obra A Favor
de Marx – constitui uma explicação científica acabada;
2) A contundente “metáfora do parto”. Marx (2013, p.821), em uma passagem
de O Capital, menciona que “a violência é a parteira de toda sociedade velha que está
prenhe de uma sociedade nova. Ela mesma é uma potência econômica”. Engels (1990),
utilizando da metáfora de Marx, também questiona sobre o papel da violência que
“desempenha também, na história (...) um papel revolucionário; sabemos que ela é,
também, para usar uma expressão de Marx, a parteira de toda a sociedade antiga, que traz
em suas entranhas uma outra nova”. Mônica Hallak, a partir dessa metáfora, menciona
que a questão que se levanta é: qual o papel da violência no contexto de transição, ou até
mesmo “até que ponto a nova sociedade necessita de parteira para vir a ser?2”.
3) as diversas “metáforas teológicas”, dentre elas, destaque para a relação que
Marx estabelece entre a assim chamada “acumulação primitiva3” que “desempenha na
economia política aproximadamente o mesmo papel do pecado original na teologia”. Para
Enrique Dussel, que analisou exaustivamente as metáforas teológicas na obra de Marx,
“o capital é a forma de pecado original de nosso tempo, como relação social de dominação
a priori; um, o rico, já possui dinheiro (acumulação primitiva), o outro já é pobre antes de
celebrar um contrato de assalariado - a priori do pecado estrutural (DUSSEL, 1993,
p.168).
O objetivo desse artigo é, através de uma leitura imanente, analisar a gênese e o
desenvolvimento de uma metáfora de Marx, a saber, a metáfora da “troca de peles”. Para
tanto, começaremos nossa trajetória em um dos textos iniciais de Marx enquanto ainda
era colunista na Gazeta Renana, o Debates sobre a lei referente ao furto da madeira, de

2
Disponível em: http://www.herramienta.com.ar/coloquios-y-seminarios/violencia-e-metafora-do-parto.
3
Sempre que trato do tema da “acumulação primitiva”, julgo ser necessário fazer uma advertência:
provavelmente a melhor tradução para o termo “Ursprüngliche” seja “original/originária”. A utilização de
“primitiva” é problemática por alguns aspectos. Em primeiro lugar, o termo “primitivo” – e seus derivados
- não possui uma relevância no que pese a totalidade da obra de Marx; e em segundo lugar, com advento
dos estudos históricos evolucionistas, o termo “primitivo” passou a adquirir uma conotação pejorativa. A
opção da tradução pela expressão “acumulação primitiva” em detrimento à expressão “acumulação
originária” pode parecer tão problemática quanto se, nas traduções bíblicas, a expressão “pecado original”
fosse substituída por “pecado primitivo”. Vale mencionar, também, que a origem do termo se encontra em
Adam Smith que escreve acerca de uma “previous accumulation” em sua obra Riqueza das Nações. A
opção, portanto, em utilizar o termo “acumulação primitiva” não parte de uma insistência, mas sim, na
constatação de que essa é forma mais passível de ser compreendida por eventuais interlocutores.

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1842; em seguida, passaremos por Sobre a questão judaica, de 1843 na qual a metáfora
é novamente utilizada; posteriormente avançaremos analisando a utilização da metáfora
nos textos em que Marx trata da revolução de 1848-1849; em seguida voltaremos nossos
olhares para os Grudrisse, já em 1857-58; depois analisaremos as metáforas nas quais
Marx se utiliza das serpentes em O Capital, 1868; para, enfim, chegarmos aos esboços da
carta de Marx à Vera Zasulitch, já em 1877, momento esse em que a metáfora adquire
uma centralidade no texto. Por fim, como conclusão, apresentaremos uma hipótese sobre
a utilização de Marx da metáfora das serpentes.

2. “A serpente de minhas aflições”

Podemos sugerir que a primeira grande formulação teórica de Marx que


congregou uma maior sofisticação tanto em sua investigação quanto na forma em que
pretendia ser exposta é sua dissertação através da qual nosso autor submeteu para a
obtenção de seu grau doutoral. Trata-se do belíssimo trabalho sobre a Diferença entre a
filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro. Entretanto, apesar dos esforços de
Marx, tal texto não foi publicado enquanto seu autor ainda estava em vida – não se sabe
ao certo o motivo dessa não publicação. Após o desenvolvimento desse trabalho,
entretanto, Marx tentou se ingressar no magistério superior. Porém, tal projeto se tornou
inviável na medida em que, com a ascensão de Frederico Guilherme IV ao trono prussiano
no ano de 1840, uma onda reacionária se afirma e atinge também a universidade, de modo
que, em outubro de 1841, Bruno Bauer é excluído de sua cátedra (NETTO, 2017). Como
consequência, Marx fica desempregado, e a ele restou o ingresso na atividade jornalística.
Assim, inicia seu trabalho como colaborador da Gazeta Renana.
Vale notar que o periódico Gazeta Renana foi fundada e financiada pela
burguesia liberal da região do Reno e, na medida em que não se tratava de um jornal
católico, as publicações obtinham até certa simpatia do Estado prussiano, esse que era
protestante. Naquela época, Marx, além de não ser um comunista, não se apresentava
como um opositor fundamental ao Estado prussiano. Na verdade, através de seus artigos,
Marx buscava demonstrar como esse estado deveria agir a partir de determinadas
situações (HEINRICH, 2018). Em seus três primeiros artigos, Marx trata: 1) da questão
da liberdade de imprensa; 2) da legislação que impede aos camponeses a posse das lenhas
separadas das árvores; 3) a denúncia da miséria dos vinhateiros do Moselle. Se por um
lado não há, dentre os originais de Marx, registro desse terceiro artigo, os dois primeiros
são absolutamente interessantes para a compreensão dos anos iniciais de produção da vida
desse autor. Não poderia ser diferente para o propósito desse texto, já que, em seu artigo
sobre o Furto da Lenha, Marx traz a seguinte passagem:

“Descobriremos que os costumes que são costumes de toda a classe pobre


sabem captar a propriedade com instinto certeiro por seu lado indeciso;
descobriremos que essa classe não só sente o impulso de satisfazer uma
necessidade natural, mas na mesma medida sente a necessidade de satisfazer
um impulso legal. A madeira seca no chão nos serve de exemplo. Sua ligação
orgânica com a árvore viva é tão pequena quanto a pele descascada com a
cobra.” (MARX, 2017, p.89)

É notório como que Marx, na exposição desse texto, não se apresenta, até então,
como um autor crítico ao direito – como podemos observar em suas obras a seguir,
principalmente após a Crítica da filosofia do Direito de Hegel. Pelo contrário, Marx é um
defensor do assim chamado direito consuetudinário. Para além dessa questão central do

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

texto, é essa a primeira vez em que podemos observar a utilização, por Marx, de uma
metáfora que o guiaria em trabalhos durante toda a sua trajetória teórica, através da qual
nosso autor levou tentou levar a cabo seu desejo de fazer uma “crítica impiedosa a todo
o existente”. Marx, em defesa da apropriação pelos pobres da madeira seca caída no solo
dos bosques, diz que a ligação orgânica de tal material com a árvore viva “é tão pequena
quanto a pele descascada com a cobra”.
O processo que é cientificamente chamado de “ecdise” constitui um momento
fundamental para o ciclo biológico das serpentes, pois, periodicamente, necessitam passar
por esse fenômeno de troca de pele. Esse movimento físico faz com que o réptil possa
expandir seu corpo e crescer, de modo a se reconstituir enquanto um animal4. O fato,
porém, é que após esse procedimento, a serpente não possui mais nenhuma ligação
orgânica com a pele que de si foi descartada. Do mesmo modo, podemos constar que
também não há nenhuma ligação orgânica entre a árvore e o galho seco que dela se
dissociou. Assim, o argumento de que a utilização desse galho seria um atentado ou modo
pelo qual a árvore se constituiu, é tão frágil quanto argumentar que um condutor deva
responder por crime contra animais se, por exemplo, o veículo que ele conduzia passar
por cima de uma pele descartada de uma serpente. Esse foi apenas um dos argumentos
que Marx desenvolveu para criticar o tratamento que o Estado prussiano dava aos pobres
que se utilizavam dessa lenha para sua sobrevivência, a saber, criminalizando-os.
As intervenções de Marx enquanto era colaborador da Gazeta Renana acabaram
por obter um certo destaque, o que deu a ele as credenciais para assumir a direção do
periódico em outubro de 1842. Conduzido por Marx, o jornal acentuou sua orientação
crítica, o que não agradou os seus demais integrantes. No dia 18 de março, em
consequência, Marx se afasta do periódico e, no fim daquele mesmo mês, no dia 31 de
março, o periódico foi fechado pelas autoridades prussianas5. Já no ano seguinte, em
1843, Marx vive um tempo com Jenny, que tornaria sua esposa no dia 19 de junho daquele
ano. A segunda metade desse ano é importante para a trajetória intelectual de Marx, pois
ele se propôs, naquela época, a dois projetos imediatos: 1) uma revisão de parte do
pensamento de Hegel; 2) a criação de um periódico que pretendia vincular a filosofia com
a intervenção social. É verdade que as inquietações de Marx para com o pensamento de
Hegel vinham de 1842, mas é só no segundo semestre de 1843, em que Marx e Jenny
residiam em Kreuznach, que Marx elabora sua Crítica da filosofia do direito de Hegel
(NETTO, 2017). Se por um lado esse manuscrito também não chegou a ser publicado
enquanto seu autor era vivo – tendo ido a público apenas no ano de 1927 -, o projeto de
criação de um novo periódico obteve êxito.
Tratam-se dos Anais Franco-Alemães, que, sob responsabilidade de Marx e de
Arnold Ruge, foram publicados em 1844 e trouxeram, em sua primeira – e única – edição,
dois artigos fundamentais de Karl Marx, através dos quais já é possível observar um
momento de inflexão na obra desse autor, tanto sob a perspectiva de sua relação com o
pensamento hegeliano, quanto em seu tratamento dado ao direito, por exemplo. Um
desses artigos é o Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel, que, apesar de sua
relevância – sendo ainda um dos textos mais lidos e discutidos de Marx – não levou em

4
Essa substituição de células não é uma especificidade das cobras, podendo ser observado em diversos
outros animais, como lagartos, iguanas, camaleões, entre outros. O ser humano, inclusive, também passa
por um evento com finalidade semelhante, porém tendo no processo, suas peculiaridades. O humano,
diferente das serpentes, descartam suas células pouco a pouco,
5
Vale notar que as autoridades prussianas não eram tão hostis a Marx quanto a maioria dos biógrafos
insinua. Na verdade, Heinrich (2018) aponta que “depois de terem fechado a Gazeta Renana, elas [as
autoridades prussianas] inclusive entraram em contato com ele para lhe oferecer um cargo (oferta que Marx,
aliás, recusou)”.

404
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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

conta a magnitude do trabalho crítico que Marx vinha desenvolvendo a Hegel no ano
anterior. Um segundo artigo de Marx publicado nos Anais Franco-Alemães, é uma
resposta a Bruno Bauer intitulado Sobre a questão judaica. Em função desse projeto,
Marx deixa a Alemanha em outubro e se estabelece em Paris, onde travará relações com
o influente socialista francês P. J. Proudhon e com o poeta Heinrich Heine (NETTO,
2017) – esse que exerceu influência no estilo literário de Marx, como veremos adiante.
Em seu texto Sobre a Questão Judaica, Marx reflete sobre as condições
determinadas aos judeus que viviam na prússia. Criticando a sugestão de uma
emancipação política por parte dos judeus elaborada por Bruno Bauer, um dos principais
jovens hegelianos, Marx reconhece que essa proposta representa um grande progresso,
porém “não chega a ser a forma definitiva da emancipação humana em geral”. Assim, a
“emancipação política é a redução do homem, por um lado, a membro da sociedade
burguesa, a indivíduo egoísta independente, e, por outro, a cidadão, a pessoa moral”;
processo esse que se distingue da emancipação humana que só seria plenamente realizada
“quando o homem individual real tiver recuperado para si o cidadão abstrato e se tornado
ente genérico na qualidade de homem individual na sua vida empírica, no seu trabalho
individual, nas suas relações individuais”, ou seja, “quando o homem tiver reconhecido e
organizado suas forças próprias como forças sociais e, em consequência, não mais separar
de si mesmo a força social na forma da força política” (MARX, 2010, p.54). Durante sua
exposição, e no que se refere aos nossos propósitos aqui, Marx disserta:

A forma mais cristalizada do antagonismo entre o judeu e o cristão é o


antagonismo religioso. Como se resolve um antagonismo? Tornando-o
impossível. Como se faz para tornar impossível um antagonismo religioso?
Superando a religião. Assim que judeu e cristão passarem a reconhecer suas
respectivas religiões tão somente como estágios distintos do desenvolvimento
do espírito humano, como diferentes peles de cobra descartadas pela história,
e conhecerem o homem como a cobra que nelas trocou de pele, eles não se
encontrarão mais em uma relação religiosa, mas apenas em uma relação crítica,
científica, em uma relação humana. A ciência constitui então sua unidade.
Todavia, na ciência, os antagonismos se resolvem por meio da própria ciência.
(MARX, 2010, p.34)

Percebam: Marx apresenta que as religiões se manifestam como “estágios


distintos do desenvolvimento do espírito humano”, embora tal assertiva não se refere à
propositura de que o exercício da religião apareça como uma necessidade para uma forma
que conforme a religião como superada.
Já no ano de 1850, aquela que é, para Engels (2012, p.9) “a primeira tentativa
feita por Marx de explicar, com a ajuda de sua concepção materialista, uma quadra da
história contemporânea a partir da situação econômica dada”, ou seja, a série de artigos
datado de 1848-1849 pela Nova Gazeta Renana acerca das Lutas de Classes na França.
Em determinado momento, ao analisar a revogação do sufrágio universal em 1850, Marx
aponta que:

“Por fim, a lei de 6 de agosto de 1850 reintroduziu a permutabilidade das notas


por dinheiro. Esses fatos, a contínua elevação da circulação, a concentração de
todo o crédito francês nas mãos do banco e a acumulação de todo o ouro e toda
a prata da França nas caixas-fortes do banco levaram o sr. Proudhon à
conclusão de que agora o banco necessariamente se despiria de sua velha pele
de cobra e se metamorfosearia em um banco popular proudhoniano” (MARX,
2012, p.147).

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

Não que seja incomum encontrar críticas a Proudhon na obra de Marx, mas essa
carrega consigo uma especificidade: ao tratar do contexto francês, Marx não poderia
deixar de dialogar com autores críticos pertencentes a esse contexto. Quando Marx diz
que Proudhon chegara à conclusão de que o “banco necessariamente se despiria da sua
velha pele de cobra e se metamorfosearia em um banco popular proudhoniano”, a
especificidade da metáfora da serpente aparece nesse momento como sua mais perfeita
forma relacionada à “transformação”, ou, mesmo nas palavras de Marx, a uma espécie de
“metamorfose”. Isso já nos dá inicialmente um embrião do papel que essa metáfora,
embora utilizada em momentos distintos na obra de Marx, pode nos oferecer. Mas, para
que compreendamos esse sentido, é necessário que nos voltemos aos momentos
posteriores em que Marx a utiliza enquanto um recurso estilístico.
A utilização que Marx faz novamente dessa metáfora aparece de maneira mais
sutil nos Grundrisse. Nessas circunstâncias, já não se trata especialmente de um momento
no qual tal utilização se manifeste de maneira tão refinada quanto nas anteriores. Nesses
escritos, já nos ano de 1858, que são fundamentais para a compreensão da crítica à
economia política, Marx afirma que:

“Deve estar inteiramente claro agora que isso é uma inépcia enquanto for
mantida a base do valor de troca e, além disso, que a ilusão de que o dinheiro
metálico falsearia a troca resulta de um total desconhecimento de sua natureza.
Por outro lado, é igualmente claro que, na medida em que aumenta a oposição
às relações de produção dominantes e que essas próprias relações pressionam
de maneira mais violenta para a mudança da antiga pele, a polêmica se dirige
contra o dinheiro metálico ou contra o dinheiro em geral como a manifestação
mais evidente, mais contraditória e mais difícil em que o sistema se manifesta
tangivelmente. (MARX, 2011, p.291)”.

Embora ainda não estivesse pressuposto na obra de Marx a crítica ao “fetichismo


da mercadoria”, o que somente aconteceria por volta de 10 anos depois, Marx investiga
o processo de transformação do dinheiro em capital como um momento em que uma
relação social, uma determinada relação de indivíduos entre si aparece como um metal,
uma pedra, ou mesmo uma coisa puramente corpórea fora deles (MARX, 2011). É dentro
desse contexto que nosso autor volta à utilização da metáfora da troca de peles, ao se
referir que “na medida em que aumenta a oposição às relações de produção dominantes e
que essas próprias relações pressionam de maneira mais violenta para a mudança da
antiga pele” do dinheiro. A utilização da metáfora, embora nesse momento não se remeta
a uma associação com a “serpente”, denota um movimento não só da história como
também de uma das categorias econômicas, que nada mais são do que formas de ser e
determinações de existência (MARX, 2011), ou seja, partes moventes e movidas da
própria realidade (LUKÁCS, 1979, p.25).
Com a publicação da principal obra de Marx, O Capital, a utilização da metáfora
de maneira semelhante com a dos Grundrisse aparece quando o velho mouro trata da
“mercadoria” enquanto categoria econômica. Nosso autor menciona que

Como nenhuma mercadoria se relaciona consigo mesma como equivalente e,


portanto, tampouco pode transformar sua própria pele natural em expressão de
seu próprio valor, ela tem de se reportar a outra mercadoria como equivalente
ou fazer da pele natural de outra mercadoria a sua própria forma de valor.
(MARX, 2013, p.184)

A “pele” enquanto forma; e a mudança de pele enquanto mudança de forma.


Novamente estamos diante de um momento no qual a utilização de tal recurso remente à

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noção, tão cara à dialética marxiana, de “movimento”: seja da história, seja de categorias
econômicas ou mesmo das abstrações que se movem no seio tanto da investigação quanto
da exposição de Marx. São vários os momentos em que Marx, n’O Capital, faz uso desse
recurso estilístico sob pretexto semelhante ao supracitado:

A segunda metade de sua circulação ela percorre não mais em sua própria pele
natural, mas na pele do ouro. Desse modo, a continuidade do movimento recai
inteiramente do lado do dinheiro, e o mesmo movimento que, para a
mercadoria, engloba dois processos antitéticos, também engloba, como
movimento próprio do dinheiro, sempre o mesmo processo, a sua troca de lugar
com uma mercadoria sempre distinta. (MARX, 2013, p. 256)

Porém, há um momento em que a utilização dessa metáfora aparece de maneira


central na temática de um texto: nos referimos aqui aos rascunhos que Marx desenvolve
para responder a carta enviada pela revolucionária russa, do grupo Repartição Negra,
Vera Ivanovna Zasulitich. No anseio de encontrar o melhor caminho para o
desenvolvimento de uma revolução social na Rússia, Zasulitch questiona Marx sobre uma
eventual necessidade da forma “comuna rural russa” ter de ser superada pelo modo de
produção capitalista. Marx, tanto em seus rascunhos quanto em sua carta propriamente
dita, responde que não só essa transformação não é necessária, como a Rússia estaria
diante de uma oportunidade sem precedentes. Analisemos, portanto, as passagens em que
Marx, em seus diversos rascunhos utilizou da metáfora da troca de peles:

Falando em termos teóricos, a “comuna rural” russa pode, portanto, conservar-


se, desenvolvendo sua base, a propriedade comum da terra, e eliminando o
princípio da propriedade privada, igualmente implicado nela; ela pode tornar-
se um ponto de partida direto do sistema econômico para o qual tende a
sociedade moderna; ela pode trocar de pele sem precisar se suicidar; ela pode
se apropriar dos frutos com que a produção capitalista enriqueceu a
humanidade sem passar pelo regime capitalista, regime que, considerado
exclusivamente do ponto de vista de sua duração possível, conta muito pouco
na vida da sociedade. Porém, é preciso descer da teoria pura à realidade russa.
(MARX; ENGELS, 2013, p.62);

E a situação histórica da “comuna rural” russa é sem igual! Ela é a única na


Europa que se mantém não como ruína esparsa, a exemplo das miniaturas raras
e curiosas na condição de tipo arcaico que ainda se encontravam há pouco
tempo no Ocidente, mas como forma quase predominante da vida popular e
espalhada por todo um imenso império. Tendo ela na propriedade comum do
solo a base da apropriação coletiva, o seu ambiente histórico, a
contemporaneidade da produção capitalista, disponibiliza-lhe já prontas todas
as condições materiais do trabalho comum em larga escala. Ela é capaz,
portanto, de incorporar as conquistas positivas produzidas pelo sistema
capitalista sem passar por seus “forcados caudinos”. Ela pode substituir
gradualmente a agricultura parceleira pela agricultura extensiva com o auxílio
de máquinas, a que convida a configuração física da terra russa. Ela pode,
portanto, tornar-se o ponto de partida direto do sistema econômico para o qual
tende a sociedade moderna e trocar de pele sem ter de cometer suicídio. Pelo
contrário, ela deveria começar por colocar-se num estado normal” (MARX;
ENGELS, 2013, p.);

Vamos abstrair por um momento as misérias que afligem a comuna russa e


enfoquemos suas possibilidades de evolução. A comuna está numa situação
única, sem precedente na história. Na Europa, somente ela ainda possui uma
forma orgânica, predominante na vida rural de um império imenso. A
propriedade comum do solo lhe oferece a base natural da apropriação coletiva,
ao passo que seu ambiente histórico, a contemporaneidade com a produção

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

capitalista, oferece-lhe já prontas todas as condições materiais do trabalho


cooperativo, organizado em larga escala. Ela pode, portanto, incorporar as
conquistas positivas realizadas pelo sistema capitalista sem passar por seus
“forcados caudinos”, substituindo gradualmente a agricultura parceleira pela
agricultura combinada com o auxílio de máquinas, a que convida a
configuração física do solo russo. Depois de ter sido posta previamente num
estado normal em sua forma presente, ela poderá tornar-se o ponto de partida
direto do sistema econômico para o qual tende a sociedade moderna e trocar
de pele sem precisar antes cometer suicídio. (MARX; ENGELS, 2013, p.72);

Esboços para uma conclusão – e uma sugestão de hipótese

O ponto principal dessa breve investigação é o seguinte: qual o sentido que essa
metáfora da troca de peles da serpente possui na obra de Marx? Para esse estudo
preliminar, podemos sugerir que a utilização da metáfora, em todo o decorrer da obra de
Marx, esteve relacionado à ideia de “movimento”: ora da história, ora das abstrações, ora
das próprias categorias econômicas investigadas. Nesse sentido, esse recurso estilístico
está absolutamente vinculado à dialética de Marx. Talvez por esse motivo podemos aqui
apresentar uma hipótese acerca do porquê que o velho mouro utilizou essa metáfora. A
nossa hipótese é que Marx se baseou em Hegel que, na Fenomenologia do Espírito,
afirmou que:

“Mas agora ela se infiltra - espírito invisível e imperceptível - através das partes
nobres de lado a lado, e logo se apodera radicalmente de todas as vísceras e
membros do ídolo carente de consciência, e, "uma bela manhã, dá uma
cotovelada no tipo, e - bumba! - o ídolo está no chão". Numa bela manhã, cujo
meio-dia não é sangrento, se a infecção penetrou todos os órgãos da vida
espiritual. Só a memória conserva - como uma história acontecida não se sabe
como - a modalidade morta da figura precedente do espírito. E, dessa maneira,
a nova serpente da sabedoria, erigida para a adoração, apenas se despojou, sem
dor, de uma pele murcha (HEGEL,1990, p.71).”

Podemos estipular que, para uma investigação futura dessa temática, é


necessário alguns aprofundamentos, dentre eles: estabelecer com mais precisão os nexos
existentes entre o desenvolvimento teórico de Marx e o modo como ele se utilizou da
metáfora em seus textos no desenrolar de sua obra; a compreensão das diferenças entre a
utilização de Marx e a de Hegel; uma interpretação mais precisa sobre o modo pelo qual
a metáfora das serpentes manifesta a dialética presente na obra de Marx.

Referências Bibliográficas

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Editorial Presença/Martins Fontes, 120p.

DUSSEL, Enrique. Las metáforas teológicas de Marx. Navarra, Editorial Verbo


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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

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LUKÁCS, György. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de


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HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito (Parte II). Petrópolis: Editora Cortez,


1990, 222p.

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

ELEMENTOS PARA A DETERMINAÇÃO MATERIAL DO DIREITO NOS


TEXTOS ECONÔMICOS TARDIOS DE MARX:
O MOVIMENTO DO DIREITO NA VIA CLÁSSICA

Lucas Almeida Silva


Universidade Federal de Juiz de Fora
lucas.as1770@gmail.com

Resumo
Este trabalho investiga o direito nos textos econômicos tardios de Marx, de 1857 em
diante. O objeto derivado, portanto, apenas poderia ser a via clássica de objetivação do
capitalismo. Desta investigação pudemos concluir que há em Marx duas etapas do
movimento do direito, com dois traços principais cada. No primeiro momento, temos a
revogação dos restos do direito feudal, que obstava a acumulação nascente, e a
instituição de um direito viabilizador do capitalismo, que atualiza seus pressupostos
objetivos. Este é o direito para a compulsão ao trabalho, que o estende tão
compulsoriamente quanto a legislação posterior o encurta. No segundo momento, com o
amadurecimento do modo de produção capitalista, o funcionamento de suas leis
imanentes leva, por sua vez, a dois traços. De um lado, a auto-proteção da classe
trabalhadora e sua revolta crescente levam à instituição de uma jornada normal de
trabalho, o que é, simultaneamente, freio racional à rapacidade cega do capital e
expressão da manutenção de um pressuposto objetivo da acumulação. De outro, e
posteriormente, temos a generalização destas condições de concorrência, o que
normaliza as condições de extração do mais-valor relativo e leva o capitalismo desta via
a um patamar superior.
Palavras-chave: Karl Marx. direito. via clássica.

ELEMENTS FOR THE MATERIAL DETERMINATION OF LAW IN MARX’S


LATE ECONOMIC TEXTS: THE MOVEMENT OF LAW IN THE CLASSIC
PATH

Abstract
This paper investigates law in Marx’s late economic texts, from 1857 onwards. Our
object could only thus be the objectification of capitalism in its classical path. From this
investigation we conclude that there are in Marx two stages in law, with two main
features each. At first, we have the abolition of the remnants of feudal law, which
hindered the nascent accumulation, and the institution of a law harmonic to capitalism,
which actualizes its objective presuppositions. This is the legislation to compulsion to
work, which extends work as compulsorily as later legislation shortens it. Later, with
the maturing of the capitalist mode of production, the operation of its immanent laws
leads, in turn, to two traits. On the one hand, the self-protection of the working class and
its growing agitation lead to the institution of a normal working day, which is, at the
same time, a rational bridle to the blind unrestraint of capital and expression of the
maintenance of an objective assumption of accumulation. On the other hand, we have
the generalization of these conditions of competition, which normalizes the conditions

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of extraction of the relative surplus value and takes capitalism to a higher level.
Keywords: Karl Marx. law. classic path.

INTRODUÇÃO
Sustentamos neste artigo que os textos econômicos marxianos a partir de 1857,
com os Grundrisse, contêm, ainda que dispersas, análises sobre a determinação material
do direito e particularmente sobre o desdobramento de seu movimento. Nos textos
objeto de nossa investigação, é notável a presença majoritariamente da via clássica, que
compreende Inglaterra e França. É neles incontestável o predomínio de análises sobre o
caso inglês. Compreensivelmente, se Marx se incumbia de “desvelar a lei econômica
do movimento da sociedade moderna” (MARX, 2013, p. 79), nada mais natural que se
pôr a descobrir suas tendências imanentes em seu maior desenvolvimento concreto.
Marx captura que a tendência geral do movimento do direito na via clássica
compreende dois grandes momentos, com dois traços principais cada.
No primeiro momento, quando da objetivação do modo de produção
capitalista, o direito feudal inglês era um óbice à acumulação capitalista nascente. Tal
direito devia ser neutralizado para que o processo pudesse se desenrolar. Aqui se
inserem os achados marxianos referentes à acumulação primitiva, à fase impúbere do
capitalismo. Este processo de dissolução da feudalidade e do direito que lhe
correspondia tomou a forma da acumulação primitiva, como exposta por Marx.
Este primeiro momento, assim, guarda dois traços principais em relação ao
direito. De um lado, revoga-se toda a legislação feudal, que agora é um empecilho à
produção material. Por outro lado, coloca-se um novo direito sanguinário para viabilizar
o modo de produção nascente, um movimento em virtude do qual transformam-se “em
trabalhadores assalariados livres a massa da população que se tornara sem propriedade e
livre” (MARX, 2011, p. 645), ou seja, cria-se uma classe trabalhadora adequada à
produção moderna. Este é o direito para a compulsão ao trabalho, que o estende tão
compulsoriamente quanto a legislação fabril o encurta.
Os dois traços deste momento são o fim do direito feudal e a instituição de um
direito da acumulação primitiva, por assim dizer. Este direito da fase ascendente da
burguesia rearticula o direito romano, em vista da incompatibilidade da burguesia
nascente em relação ao direito feudal local, e se prova mediação na luta desta classe
contra a Idade Média. Tomados em conjunto, ambos os traços são sintomas distintos da
necessidade de atualização de um pressuposto básico do modo de produção capitalista, a
saber, a existência de uma força de trabalho adequada.
No segundo momento, com o amadurecimento do modo de produção
capitalista, um novo direito deve surgir para a proteção da relação de capital em face da
revolta crescente dos trabalhadores e simultaneamente para a auto-proteção da classe
trabalhadora. Este direito, porém, é face da produção social de uma força de trabalho
adequada à acumulação capitalista, de tal modo que a legislação capitalista é
simultaneamente hostil ao trabalhador e freio racional à rapacidade cega do capital. Este
novo direito prescinde da violência explícita, uma vez que o trabalhador pode ser
deixado às leis imanentes da produção. Com o desenvolvimento destas, toda a
legislação anterior caduca e pode ser revogada ou ignorada, por perder seu sentido
econômico. A compulsão do momento anterior perde sua razão de ser. A categoria

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econômica desenvolvida, que é um resultado histórico, agora renuncia à mediação


jurídica que viabilizou seu desenvolvimento em estágios imaturos.
Ao mesmo tempo, este novo direito social, encarnado na legislação fabril,
generaliza as condições de extração de mais-valor relativo, normaliza a concorrência,
acelera a concentração de capitais e leva adiante a transformação da produção artesanal
em fabril. A consequência final é que se desemboca num patamar superior de
acumulação, dado que se funda primordialmente no aumento de produtividade,
tendendo a busca por mais-valor a se centrar no relativo, não apenas no absoluto, ainda
que as duas tendências coexistam, a depender das circunstâncias. O trabalho inglês
torna-se mais produtivo e sua hora de trabalho produz mais valor do que sua
correspondente continental, de modo que este capitalismo maduro inglês encontrou as
condições de passar de sua adolescência violenta a uma maturidade comparativamente
serena, em que o aumento da produtividade toma o lugar da rapacidade pelo mais-valor
absoluto, que, no limite, transformaria o sangue de crianças em capital.
A legislação fabril permite ao capital atingir um patamar superior também
porque protege em si a relação de capital, ainda que capitalistas individuais a vejam
apenas como um óbice. Sem ela, a tendência à época caminhava no sentido da implosão
do modo de produção capitalista em sua gênese: “Os inspetores de fábricas alertaram
urgentemente o governo de que o antagonismo de classes chegara a um grau de tensão
inacreditável” (MARX, 2013, p. 363).
Este segundo momento, enfim, guarda dois traços: a criação do moderno
direito social e o início de um novo patamar da acumulação capitalista, agora fundada
na igualdade de concorrência e na extração, majoritariamente, de mais-valor relativo.
Juntos, estes dois momentos são a determinação material do direito nos textos
econômicos de Marx e nosso resultado de investigação. Note-se que as categorias de
que lançamos mão não são um pressuposto, mas antes um ponto de chegada, extraídas
do objeto. Para tanto, almejamos o que Chasin expôs paradigmaticamente como uma
análise concreta ou imanente dos escritos marxianos (CHASIN, 2009).

O DIREITO NOS TEXTOS ECONÔMICOS TARDIOS DE MARX


No caso específico de nosso objeto, o pressuposto objetivo mais elementar era a
criação de uma força de trabalho adequada à acumulação nascente. Daí o impulso para a
revogação de todas as disposições em contrário, acompanhada da mais crua violência da
assim chamada acumulação primitiva. Neste período, o processo material resultou na
separação entre trabalhador e condições de produção, cujo resultado se provou a criação
da força de trabalho livre. Esta força de trabalho é livre em dois sentidos:
Para transformar dinheiro em capital, o possuidor de dinheiro tem, portanto,
de encontrar no mercado de mercadorias o trabalhador livre, e livre em dois
sentidos: de ser uma pessoa livre, que dispõe de sua força de trabalho como
sua mercadoria, e de, por outro lado, ser alguém que não tem outra
mercadoria para vender, livre e solto, carecendo absolutamente de todas as
coisas necessárias à realização de sua força de trabalho (MARX, 2013, p.
244).
Consequentemente, podemos provar o sentido do processo material:
O processo que cria a relação capitalista não pode ser senão o processo de
separação entre o trabalhador e a propriedade das condições de realização de

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seu trabalho, processo que, por um lado, transforma em capital os meios


sociais de subsistência e de produção e, por outro, converte os produtores
diretos em trabalhadores assalariados. A assim chamada acumulação
primitiva não é, por conseguinte, mais do que o processo histórico de
separação entre produtor e meio de produção. Ela aparece como “primitiva”
porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção que lhe
corresponde (MARX, 2013, p. 786).
Tal caráter da acumulação primitiva não apresenta nenhuma novidade, sendo
amplamente reconhecido. O que nos importa, porém, é que, no caso do direito, este
processo, em reciprocidade com o momento preponderante, guarda a dissolução de
todas as determinações bem talhadas à produção feudal. Na objetivação do modo de
produção capitalista, o direito feudal local obstaculizava a acumulação nascente. Assim,
a atualização dos pressupostos objetivos do modo de produção moderno requeria a
neutralização do direito local. Leia-se a seguinte passagem:
O que nos interessa aqui, antes de tudo: o comportamento do trabalho em
relação ao capital, ou às condições objetivas do trabalho como capital,
pressupõe um processo histórico que dissolve as diferentes formas em que o
trabalhador é proprietário, ou em que o proprietário trabalha. Sobretudo, por
conseguinte: (…) Dissolução das relações em que ele figura como
proprietário do instrumento. Assim como a forma da propriedade de terra
acima presume uma comunidade real, essa propriedade do trabalhador sobre
os instrumentos presume uma forma particular do desenvolvimento do
trabalho manufatureiro como trabalho artesanal; associado a isso, o sistema
de guildas e de corporações etc. (…) Por outro lado, dissolução na mesma
medida das relações em que os próprios trabalhadores, as próprias
capacidades de trabalho vivas, ainda fazem parte diretamente das condições
objetivas de produção e são apropriados enquanto tais — ou seja, são
escravos ou servos (MARX, 2011, pp. 408–409).
Temos esta longa enumeração dos pressupostos objetivos do modo de
produção moderno, que se devem atualizar por meio da dissolução do modo de
produção feudal, que o antecedeu. É uma exposição sintética dos condicionamentos que
a materialidade impõe ao direito, que, acossado pela mudança material, deve afrouxar
tudo quanto embarace a acumulação nascente, como as “leis da guilda, suas tradições
etc.” Sua dissolução, na medida em que são a regulação jurídica de relações em que “as
próprias capacidades de trabalho vivas” ainda pertencem diretamente às “condições
objetivas de produção e são apropriados enquanto tais”, é a face jurídica da ruína da
feudalidade e de suas disposições legais. A revogação das normas referentes às guildas,
fique claro, segue de perto a queda das próprias guildas. De modo mais geral, vale o
mesmo para o desmonte de todas as disposições fundadas sobre relações de dependência
direta e dissolução destas relações mesmas, sejam de “escravos ou servos”.
Obliquamente, demonstra-se a reciprocidade não mecânica do direito e da
materialidade. Se num momento a criação de uma força de trabalho assalariada
demanda a “dissolução das relações em que ele [o trabalhador] figura como proprietário
do instrumento”, no próximo a preservação desta mesma força de trabalho requer a
intervenção do direito por meio da legislação fabril. O mesmo impulso move a
revogação da legislação feudal sobre a inamovibilidade do trabalhador: o
desenvolvimento capitalista “(…) pressupõe a abolição de todas as leis que impedem os
trabalhadores de transferir-se de uma esfera da produção a outra ou de uma sede local

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da produção para outra qualquer” (MARX, 2014, p. 231). Da mesma forma, o


desenvolvimento da acumulação primitiva pode revestir certos pretextos jurídicos, que
evidentemente não podem ser explicados a partir de si próprios:
Se estudássemos a história das terras comunais inglesas, como estas foram
sucessivamente convertidas em propriedade privada e incorporadas ao cultivo
pelas Enclosure Bills (…). O fator decisivo, nesse caso, foi muito mais a
ocasião que faz o ladrão: os pretextos jurídicos de apropriação, mais ou
menos plausíveis, que se ofereciam aos grandes proprietários de terra
(MARX, 2017b, p. 830).
Sobre este mesmo movimento de usurpação da propriedade comunal, veja-se:
Vimos como a violenta usurpação dessa propriedade comunal, em geral
acompanhada da transformação das terras de lavoura em pastagens, tem
início no final do século XV e prossegue durante o século XVI. Nessa época,
porém, o processo se efetua por meio de atos individuais de violência, contra
os quais a legislação lutou, em vão, durante 150 anos. O progresso alcançado
no século XVIII está em que a própria lei se torna, agora, o veículo do roubo
das terras do povo, embora os grandes arrendatários também empreguem
paralelamente seus pequenos e independentes métodos privados. A forma
parlamentar do roubo é a das “Bills for Inclosures of Commons” (leis para o
cercamento da terra comunal), decretos de expropriação do povo, isto é,
decretos mediante os quais os proprietários fundiários presenteiam a si
mesmos, como propriedade privada, com as terras do povo (MARX, 2013, p.
796).
Provamos com isso um ponto importante do movimento. Como exposto acima,
a objetivação do modo de produção capitalista na via clássica passava pela dissolução
das condições da feudalidade e do direito que lhe correspondia. Na citação aqui
reproduzida, este processo material, “em geral acompanhad[o] da transformação das
terras de lavoura em pastagens” se deu em virtude de “atos individuais de violência,
contra os quais a legislação lutou”. A legislação, portanto, era um impedimento à
acumulação nascente. Este contexto dá lugar a um momento em que se forma um direito
mais harmônico à acumulação primitiva em processo, de modo que “a própria lei se
torna, agora, o veículo do roubo das terras do povo”. As duas faces do processo de
acumulação primitiva — a substituição de um direito feudal por um direito abertamente
violento que se torna força material ao agir na objetivação do capitalismo inglês — são
demonstradas na mesma citação, nas condições do processo inglês.
O elemento comum a todas as passagens reunidas é que, para direcionar, para
levar adiante os conflitos sociais, foi preciso lançar mão de um poder que impulsionasse
o processo de transformação do modo de produção feudal em capitalista. Este poder,
como visto, abreviou as dores do parto da transição de um modo de produção a outro,
em virtude do que, do ponto de vista do direito, temos bem demonstrado que o
momento inaugurador da acumulação primitiva, além das óbvias mudanças materiais,
resultou na ruína de todo o direito, em sentido amplo, feudal. Assim, as guildas, o
“sistema estamental” etc. e suas expressões jurídicas. A passagem seguinte é decisiva:
Prescindindo de motivos mais elevados, os interesses mais particulares das
atuais classes dominantes obrigam-nas à remoção de todos os obstáculos
legalmente controláveis que travem o desenvolvimento da classe
trabalhadora. É por isso que, neste volume, reservei um espaço tão amplo à
história, ao conteúdo e aos resultados da legislação inglesa relativa às
fábricas (MARX, 2013, p. 79).

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O desenvolvimento do direito é possibilitado pela produção material,


desenvolvimento, porém, que pode assumir formas que a travem ou impulsionem.
Como temos demonstrado, um exemplo claro é a legislação medieval de guildas, um
entrave à produção moderna: “In the medieval guilds the master was prevented from
becoming a capitalist by the guild regulations, which restricted to a very low maximum
the number of workers he was permitted to employ at any one time1” (MARX;
ENGELS, 1988, p. 270). É uma legislação que tinha de ser tornada inoperante para que
o capital se pudesse desenvolver. No mesmo sentido: “And indeed the laws on
apprenticeship were to be repealed soon after the emergence of machinery2” (MARX;
ENGELS, 1991, p. 499); “(…) Factory labour leaves the worker only a knowledge of
certain hand movements; with this, therefore, the laws on Apprenticeship are done
away with3” (MARX; ENGELS, 1994, p. 34).
Neste caso, a categoria econômica madura prescinde das mediações anteriores.
A criação de uma força de trabalho adequada agora não passa mais pelo aprendizado, e
portanto a mudança material — o sistema fabril em processo de maturação — torna
possível descartar a legislação que a antecedeu. O fascinante é que o próprio direito foi
uma mediação para a generalização do sistema fabril, que, por sua vez, foi pivotal para
tornar supérflua a mediação jurídica na determinação de categorias econômicas. Assim,
as leis do aprendizado são descartadas assim que a criação de uma força de trabalho
adequada possa ser deixada às leis imanentes do modo de produção moderno.
Que o direito seja mediação para a constituição de categorias materiais, as
quais, quando maduras, prescindem da mediação jurídica, porém que, em crise, podem
lançar mão contraditoriamente da mediação jurídica, como a limitação da jornada
normal de trabalho, apenas vem a demonstrar a complexidade do movimento concreto.
Este ponto é importante para demonstrar outra matéria, a que nos referimos na
introdução, a saber, que a burguesia, em sua fase ascendente, rearticulou o direito
romano:
Mas o ponto verdadeiramente difícil de discutir aqui é o de como as relações
de produção, como relações jurídicas, têm um desenvolvimento desigual
[ungleiche Entwicklung]. Em consequência disso, p. ex., a relação do direito
privado romano (nem tanto o caso no direito penal e no direito público) com
a produção moderna (MARX, 2011, p. 62).
Há várias formas de entificação do direito possíveis e abertas pela mesma base,
ou seja, que assentam sobre as mesmas condições de possibilidade. O direito privado
romano, em específico, foi rearticulado na produção moderna, o que não ocorreu com os
direitos penal e público. Este ponto demonstra a importante função desempenhada pelo
direito, que foi mediação na fase ascendente da burguesia contra a feudalidade.
Este desenvolvimento desigual também se refere ao fato de que uma mudança
material “transforma mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal

1 Tradução livre: “Nas guildas medievais, o mestre era impedido de se tornar um capitalista pelos
regulamentos da guilda, que restringia a um número muito baixo de trabalhadores o que era permitido
empregar a qualquer momento.”
2 Tradução livre: “E de fato as leis sobre o aprendizado seriam repelidas logo após a emergência da
maquinaria.”
3 Tradução livre: “O trabalho fabril deixa ao trabalhador apenas o conhecimento de certos movimentos
manuais; com isso, portanto, as leis sobre o Aprendizado são descartadas.”

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superestrutura” (MARX, 2008, p. 50). A base material e a superestrutura, portanto,


podem apresentar, dentro de certos limites, rumos diferenciados, ainda que em
reciprocidade. A questão é difícil, porém, no âmbito específico do direito, podemos
destacar que, além do fato de a produção moderna rearticular o direito privado romano,
e nem tanto os direitos penal e público, o direito privado em Roma ser em grande
medida oposto aos seus fundamentos. Assim, seu desenvolvimento, que só pode existir
posta certa produção anterior, pode coincidir com a dissolução da comunidade romana,
ou seja, pode ser desarmônica diante de seus pressupostos objetivos:
Por essa razão, é igualmente claro que esse direito [romano], embora
corresponda a uma situação social na qual a troca não estava de modo algum
desenvolvida, pôde, entretanto, na medida em que estava desenvolvido em
determinado círculo, desenvolver as determinações da pessoa jurídica,
precisamente as do indivíduo da troca, e antecipar, assim, o direito da
sociedade industrial (em suas determinações fundamentais); mas, sobretudo,
teve de se impor como o direito da sociedade burguesa nascente perante a
Idade Média. Mas seu próprio desenvolvimento coincide completamente com
a dissolução da comunidade romana (MARX, 2011, pp. 188–189).
A linha de demonstração apenas passa aí na trajetória de provar a rearticulação
do direito romano sobre a base da produção moderna. O sentido do processo tornou
necessário rearticular um direito pré-capitalista, como tal heterogêneo à materialidade,
no próprio processo material de dissolução da feudalidade e constituição da moderna
sociedade civil-burguesa. Em relação à não correspondência, ou heterogeneidade, do
direito em relação a seus pressupostos objetivos, veja-se Marx:
(…) das römische Recht, mehr oder minder modifiziert, von der modernen
Gesellschaft angeeignet wurde, weil die rechtliche Vorstellung, die das
Subjekt der freien Konkurrenz von sich selbst hat, der der römischen Person
entspricht (wobei ich hier gar nicht auf den Punkt, der sehr wesentlich ist,
eingehn will, daß die rechtliche Vorstellung bestimmter
Eigentumsverhältnisse, sosehr sie aus ihnen erwächst, ihnen andrerseits doch
wieder nicht kongruent ist und nicht kongruent sein kann)4 (MARX;
ENGELS, 1974, p. 614).
Enfim, com esta exposição da rearticulação do direito romano, podemos
recapitular o que demonstramos. Sobre o processo objetivo de constituição do
capitalismo inglês demonstramos que o direito feudal inglês devia ser demolido para
que pudesse nascer uma nova sociedade das cinzas do modo de produção anterior.
Fizemos ver, contudo, que o direito da fase ascendente da burguesia, mediante o qual
leva adiante seus conflitos contra a feudalidade, rearticula o direito romano, agora sobre
outra base. Resta por provar que o próprio desenrolar, segundo as leis imanentes ao
processo capitalista, exige uma mediação jurídica que o limite. Na resolução da questão,
é preciso explicitar a análise marxiana da passagem de um direito sanguinário a uma
legislação de caráter inteiramente diverso. Vejamos a questão em detalhe.
O direito nos textos econômicos marxianos guarda uma clara face de violência,

4 Tradução livre: “(...) o direito romano, mais ou menos modificado, foi adotado pela sociedade
moderna porque a representação jurídica que o sujeito da livre concorrência faz de si corresponde à
da pessoa romana (não que eu tenha qualquer intenção de cá adentrar na vital questão de que a
representação jurídica de certas relações de propriedade, por mais que delas surgindo, não são nem
podem ser com elas de todo congruentes).”

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posto que, nos contextos de revolução social da via clássica, era necessário lançar mão
do direito para direcionar a acumulação a um patamar superior. Por isso o caráter da
legislação terrorista do trabalho na Inglaterra pôde ser tão monstruoso. Passada esta
etapa de revolução social, foi facultado ao direito assumir funções mais comedidas.
Com isso consideramos apenas que uma tendência do capital se pode
modificar, a depender das circunstâncias concretas. Quando a luta de classes chegou a
tal ponto que o movimento histórico mostrou ser a limitação legal da jornada de
trabalho a alternativa mais viável na constituição de uma classe trabalhadora adequada à
acumulação, temos aí uma atuação consciente sobre a realidade que pode apreender a
realidade material e se tornar um passo em direção ao reino da liberdade. Ao mesmo
tempo, esta jornada normal de trabalho é uma necessidade imanente da produção
capitalista, afinal impede a transformação do sangue de crianças em capital. Como
afirma Marx, “[u]ma jornada de trabalho normal parece, assim, ser do próprio interesse
do capital” (MARX, 2013, p. 338).
Naturalmente, esta legislação acerca da jornada normal de trabalho não nasce
pronta dos manuais dos juristas. É evidente aqui que “as relações jurídicas (…) não
podem ser explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito
humano” (MARX, 2008, p. 49):
Vimos que essas determinações minuciosas, que regulam os limites, as
pausas do trabalho com uma uniformidade militar, de acordo com o sino do
relógio, não foram de modo algum produto das lucubrações parlamentares.
Elas se desenvolveram paulatinamente a partir das circunstâncias, como leis
naturais do modo de produção moderno. Sua formulação, seu
reconhecimento oficial e sua proclamação estatal foram o resultado de longas
lutas de classes (MARX, 2013, pp. 354–355).
Com a maioridade do modo de produção capitalista, o direito é chamado a
cumprir duas funções: por um lado, deve ser uma barreira de auto-proteção da classe
trabalhadora; por outro, serve como um compromisso, de modo que a nova acomodação
resultante permita a continuidade da relação de capital.
Para tanto, as circunstâncias inglesas viram dois momentos: primeiro, a
violência direta de um direito predatório, encarnada no que chamou Marx de “legislação
sanguinária” (MARX, 2013, p. 805) e de “leis grotescas e terroristas” (MARX, 2013, p.
808), no processo de constituição do capitalismo, a acumulação primitiva; segundo, a
instituição do direito do trabalho ou direito social, decorrente da luta de classes à época,
cujo efeito principal é a redução da jornada normal de trabalho por meio do direito,
sendo assim um freio racional à avidez do capital pela acumulação, cuja rapacidade
desmedida exauria a classe trabalhadora.
Assim, com as contraditórias alianças com médicos, juízes e fiscais de fábrica,
inclusive figurando em litígios para a aplicação judicial e compulsória de multas a
desvios, temos este impulso, que eventualmente se transformará numa jornada normal
de trabalho: “Os inspetores de fábrica apelaram aos tribunais” (MARX, 2013, p. 360);
“(…) os inspetores de fábrica ingleses, ao contrário, declararam que o ministro não
dispunha de poder ditatorial para suspender as leis e deram continuidade aos processos
judiciais contra os rebeldes pro-slavery [pró-escravidão]” (MARX, 2013, p. 360). A
citação seguinte, contudo, é absolutamente vital:
Assim que a revolta crescente da classe operária obrigou o Estado a reduzir à

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força o tempo de trabalho e a impor à fábrica propriamente dita uma jornada


normal de trabalho, ou seja, a partir do momento em que a produção
crescente de mais-valor mediante o prolongamento da jornada de trabalho
estava de uma vez por todas excluída, o capital lançou-se com todo o seu
poder e plena consciência à produção de mais-valor relativo por meio do
desenvolvimento acelerado do sistema da maquinaria (MARX, 2013, p. 482).
Eis a mais explícita prova da atuação de compromisso do direito, que, obrigado
à delimitação da jornada normal de trabalho, generalizou as condições de extração de
mais-valor relativo por meio do aumento de produtividade. É a causa do enorme
dinamismo do modo de produção capitalista e o impulso que leva o capitalismo inglês a
um patamar superior. Nesta questão, Marx é brilhante ao demonstrar que “[a] livre-
concorrência impõe ao capitalista individual, como leis eternas inexoráveis, as leis
imanentes da produção capitalista” (MARX, 2013, p. 342).
Assim, o desenvolvimento do modo de produção capitalista e a livre operação
de suas leis imanentes criam a pressão para leis que aparentemente o limitam:
It is only capital’s shameless and ruthless lack of moderation, impelling it to
go beyond the natural limits of labour time into the realms of madness,
whereby the labour also silently becomes more intensive and strained with
the development of the productive forces, that forcibly compels even the
society which rests on capitalist production (in this connection the rebellion
of the working class itself is of course the main driving force) to restrict the
normal working day within firmly fixed limits. This first occurs as soon as
capitalist production has emerged from the crude and boisterous years of its
adolescence and created a material basis for itself5 (MARX; ENGELS,
1991, p. 386).
Em suma, e este é o ponto a destacar, a tendência geral do movimento foi a
transição de um capitalismo nascente, que carecia da intervenção por meio do direito
para assegurar as condições de sua objetivação, para um capitalismo maduro, em que o
bom funcionamento de suas leis naturais carece do surgimento da legislação fabril e do
moderno direito trabalhista, por meio do qual institui-se uma jornada normal de
trabalho. Como provamos acima, esta jornada normal de trabalho, por sua vez,
generaliza a busca por mais-valor relativo. Na letra de Marx, a diferença entre estes
momentos aparece da seguinte forma:
It was first of all the forcible legislation passed since the Statute of Edward
III which established the working day (seeking at the same time to hold down
wages), but in precisely the opposite way to the factory acts of nowadays.
The earlier legislation corresponds to the period of the formation of
capitalist production, the conditions of which only ripened gradually; the
later legislation corresponds to the domination of the capitalist mode of
production, which removed all the obstacles standing in its way, and created
the circumstances under which the “natural laws” could function freely. The

5 Tradução livre: “É apenas a falta de moderação desavergonhada e implacável do capital, impelindo-o


a ultrapassar os limites naturais do tempo de trabalho rumo aos reinos da loucura, pelo que o trabalho
silenciosamente também se torna mais intenso e exaustivo com o desenvolvimento das forças
produtivas, que compele forçosamente a sociedade que se baseia na produção capitalista (a este
respeito, a rebelião da própria classe trabalhadora é, evidentemente, a principal força motriz) para
restringir a jornada normal de trabalho dentro de limites firmemente fixados. Isto ocorre primeiro
assim que a produção capitalista surgiu dos anos brutos e turbulentos de sua adolescência e criou uma
base material para si mesma.”

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earlier legislation was a way of determining the working day in order to


force the workers to perform every day a certain quantity of labour, through
a form of compulsion which lay outside the compulsion of the laws of
economics; these are the laws against the alleged “indolence and ease” of
the working classes. The later legislation, in contrast, consists of laws
against overwork, interventions into the “natural functioning” of the laws of
economics. The contrast between these two types of law shows the manner in
which capitalist production enforces labour — the former laws compel the
workers to labour, the latter enforce the limits of the working day6 (MARX;
ENGELS, 1994, p. 295).
Veja-se no mesmo sentido:
In earlier centuries too, in the period preceding capitalist production, we
likewise find forcible regulation, i.e. regulation by laws, on the part of
governments. But the aim then was to force the workers to work for a definite
period of time, whereas the present regulations all have the opposite
objective, to force the capitalist to have them work for no more than a
definite period of time. In the face of developed capital it is only government
compulsion that can limit labour time. At the stage at which capital is only
entering on its development, government compulsion steps in to transform the
worker forcibly into a wage labourer7 (MARX; ENGELS, 1988, p. 226).
E ainda outra clara evidência do movimento objetivo do direito, de como a
própria dinâmica do modo de produção capitalista necessita de limitação, uma limitação
que o eleva a um novo patamar:
We have considered absolute and relative surplus value separately. But in
capitalist production they are bound together. And it is precisely the
development of modern industry which shows how they develop
simultaneously, how the working day is prolonged in the same degree as
necessary labour time is reduced by the development of the social productive
powers of labour. It is capital’s tendency to develop surplus value
simultaneously in both forms. It thereby calls forth at once the struggle for
the normal working day, depicted previously, and its enforced establishment

6 Tradução livre: “Foi antes de tudo a legislação forçosa aprovada desde o Estatuto de Eduardo III que
estabeleceu o dia útil (buscando ao mesmo tempo rebaixar os salários), mas precisamente no caminho
oposto à legislação fabril de hoje em dia. A legislação anterior corresponde ao período de formação
da produção capitalista, cujas condições apenas amadureceram gradualmente; a legislação posterior
corresponde ao domínio do modo de produção capitalista, que eliminou todos os obstáculos que se
mantêm em seu caminho e criou as circunstâncias em que as ‘leis naturais’ poderiam funcionar
livremente. A legislação anterior era uma forma de determinar o dia útil para forçar os trabalhadores
a realizarem todos os dias uma certa quantidade de trabalho, através de uma forma de compulsão que
ficava fora da compulsão das leis da economia; estas são as leis contra a alegada ‘indolência e
acomodação’ das classes trabalhadoras. A legislação posterior, em contraste, consiste em leis contra o
excesso de trabalho, intervenções no ‘funcionamento natural’ das leis da economia. O contraste entre
esses dois tipos de leis mostra a maneira pela qual a produção capitalista reforça o trabalho — as leis
anteriores obrigam os trabalhadores a trabalhar, estes aplicam os limites do dia útil.”
7 Tradução livre: “Em séculos anteriores também, no período que precede a produção capitalista,
igualmente encontramos regulação forçada, isto é, regulação por leis, por parte dos governos. Mas o
objetivo era forçar os trabalhadores a trabalhar por um determinado período de tempo, enquanto os
regulamentos atuais têm o objetivo oposto, para forçar o capitalista a fazê-los funcionar por um
período de tempo definido. Em face do capital desenvolvido, é apenas uma compulsão do governo
que pode limitar o tempo de trabalho. No estágio em que o capital só está entrando em seu
desenvolvimento, a compulsão do governo entra em direção a transformar forçosamente o
trabalhador em um trabalhador assalariado.”

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as a law imposed on capital by the state. The tendency of capitalist


production is shown clearly when one compares the state’s intervention in
the first dawn of bourgeois industry (as this appears e.g. in the labour
statutes of the 14th century) with modern factory legislation. In the former
case, labour time is fixed in order to compel the workers to perform a certain
quantity of surplus labour for their employers (or even labour in general), to
compel them to perform absolute surplus labour. In the latter case, the aim is
forcibly to establish a boundary, beyond which the capitalist may not prolong
absolute labour time, so as to prevent the prolongation of labour time beyond
a definite limit. The necessity of such an intervention by the state, which was
first demonstrated in England, the home of large-scale industry, and the
necessity of extending this intervention progressively to new branches of
industry, in the same measure as capitalist production seizes hold of those
branches, proves at once, on the one hand, that capitalist production knows
of no limits to the appropriation of alien labour time, and that, on the other
hand, the workers are incapable within the established conditions of
capitalist production—without acting as a class upon the state, and, through
the state, upon capital—of saving from the harpy’s claws of capital even the
free time necessary for their physical preservation8 (MARX; ENGELS,
1994, pp. 61–62).
Ademais, a formação de uma força de trabalho formalmente livre e adequada
ao modo de produção vindouro possui uma série de pressupostos objetivos cuja
atualização passa pelo uso mais brutal da mediação jurídica:
A primeira forma [refere-se ao mais-valor absoluto] corresponde à
transformação violenta da maior parte da população em trabalhadores
assalariados e à disciplina que transforma sua existência na de meros
trabalhadores. Durante 150 anos, p. ex., desde Henrique VII, os anais da
legislação inglesa contêm, escritas com sangue, as disposições punitivas que
foram empregadas para transformar em trabalhadores assalariados livres a
massa da população que se tornara sem propriedade e livre. A supressão dos

8 Tradução livre: “Consideramos o mais-valor absoluto e relativo separadamente. Mas, na produção


capitalista, eles estão unidos. E é precisamente o desenvolvimento da indústria moderna que mostra
como eles se desenvolvem simultaneamente, como o dia útil é prolongado no mesmo grau em que o
tempo de trabalho necessário é reduzido pelo desenvolvimento dos poderes produtivos sociais do
trabalho. A tendência do capital é desenvolver valor excedente simultaneamente em ambas as formas.
Desta forma, ela evoca imediatamente a luta pela jornada normal de trabalho, retratada anteriormente,
e seu estabelecimento forçado como uma lei imposta ao capital pelo Estado. A tendência da produção
capitalista é mostrada claramente quando se compara a intervenção do estado no primeiro amanhecer
da indústria burguesa (como isso aparece, por exemplo, nos estatutos do trabalho do século XIV) com
a legislação fabril moderna. No primeiro caso, o tempo de trabalho é fixado para obrigar os
trabalhadores a realizar uma certa quantidade de mão-de-obra excedente para seus empregadores (ou
mesmo trabalhar em geral), para obrigá-los a realizar mais-trabalho absoluto. No último caso, o
objetivo é forçosamente estabelecer um limite, além do qual o capitalista não pode prolongar o tempo
de trabalho absoluto, de modo a evitar o prolongamento do tempo de trabalho além de um limite
definido. A necessidade de tal intervenção pelo Estado, que foi demonstrada pela primeira vez na
Inglaterra, o lar da indústria em larga escala e a necessidade de ampliar essa intervenção
progressivamente para novos ramos da indústria, na mesma medida em que a produção capitalista se
apodera dessas ramificações, prova de uma vez, por um lado, que a produção capitalista não conhece
limites à apropriação do tempo de trabalho alheio e que, por outro lado, os trabalhadores são
incapazes, dentro das condições estabelecidas de produção capitalista — sem agir como uma classe
sobre o Estado e, através do Estado, sobre o capital — de salvar das garras de harpia do capital
mesmo o tempo livre necessário para sua preservação física.”

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séquitos, o confisco dos bens das igrejas, a supressão das guildas e o confisco
de suas propriedades, a expulsão violenta da população do campo por meio
da transformação da terra agrícola em pastagens, o cercamento das áreas
comuns etc., tinham posto os trabalhadores como simples capacidade de
trabalho. Mas eles preferiram, é claro, a vagabundagem, a mendicância etc.,
ao trabalho assalariado, e primeiro tiveram de ser violentamente habituados a
ele. Algo parecido se repete com a introdução da grande indústria, das
fábricas funcionando com máquinas (MARX, 2011, p. 645).
Este processo, em suma, guarda uma série de “abusos desmedidos”, e cria as
condições para o momento seguinte, de limitação legal:
Até aqui, nosso tratamento do impulso de prolongamento da jornada de
trabalho, da voracidade de lobisomem por mais-trabalho, limitou-se a uma
área em que abusos desmedidos — que, no dizer de um economista burguês
da Inglaterra, não ficam aquém das crueldades dos espanhóis contra os peles-
vermelhas da América — fizeram com que o capital fosse submetido aos
grilhões da regulação legal (MARX, 2013, p. 317).
Como se vê, “[a]propriar-se de trabalho 24 horas por dia é, assim, o impulso
imanente da produção capitalista” (MARX, 2013, p. 329).
Demonstramos, com isso, como as determinações do direito não estacionam, e,
a depender das circunstâncias concretas, revestem caracteres muito distintos. A
legislação terrorista, inclusive, teve de dar respostas ao pauperismo, à “questão social”.
ara nossos propósitos, basta provar que a materialidade põe a questão do pauperismo em
relevância, de modo que é facultado ao direito tutelá-la:
A pobreza enquanto tal começa com a liberdade dos agricultores — o
agrilhoamento feudal ao solo ou ao menos à localidade havia até então
poupado à legislatura o trabalho de ocupar-se com os vagabundos, pobres etc.
Eden acredita que as diferentes guildas comerciais etc. teriam alimentado
também seus próprios pobres (MARX, 2011, p. 615).
Tal reação ao pauperismo varia enormemente, desde uma legislação
assistencial, na figura da Lei dos Pobres e suas emendas, ao arrocho do direito penal e
da política criminal, isto é, retroceder aquém das medidas do direito social.
Para ser bem-sucedido, o capítulo deve fazer ver de que formas a materialidade
ao mesmo tempo assenta as condições objetivas da existência do direito e impõe um
espectro mais ou menos amplo de limites dentro do qual este se pode movimentar, ainda
que de forma desigual, a depender das circunstâncias concretas. O processo de ruína do
modo de produção feudal, assim, compele certo movimento do direito para a revogação
de todas as ordenações que solidificavam a feudalidade. Igualmente, a constituição
deste novo modo de produção carecia da importante mediação do direito, de modo que
houve uma legislação sanguinária para a compulsão ao trabalho. Por fim, a modificação
da materialidade e a maturidade do modo de produção moderno requerem, ao mesmo
tempo, a criação de um direito para a proteção da força de trabalho e mesmo para a
assistência aos excluídos desta força de trabalho, ou seja, leis de assistência ao exército
industrial de reserva. Todos estes momentos, ressalte-se, convivem numa reciprocidade
complexa, mais ou menos tensa. Portanto, o movimento inglês corre numa velocidade
desigual, dada sua organização jurídica casuística, ao passo que na França pode se
operar num só lance.
Que Marx não estacione numa determinação conceitual arqueada
subjetivamente provam seus enunciados sobre a jornada normal de trabalho. A atuação

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jurídica é complexa, passando da violência ostensiva, num primeiro momento, à


compulsão econômica, quando a produção social de uma classe trabalhadora adequada à
acumulação capitalista está num estágio adiantado. Como aduz nosso autor:
Para “se proteger” contra a serpente de suas aflições, os trabalhadores têm de
se unir e, como classe, forçar a aprovação de uma lei, uma barreira social
intransponível que os impeça a si mesmos de, por meio de um contrato
voluntário com o capital, vender a si e a suas famílias à morte e à escravidão
(MARX, 2013, p. 373–4).
Ao mesmo tempo, pode Marx sustentar que “a legislação sobre o trabalho
assalariado, desde sua origem cunhada para a exploração do trabalhador”, seja “sempre
hostil a ele” (MARX, 2013, p. 809).
Como visto, a jornada normal de trabalho, um compromisso imposto pela
revolta crescente da classe trabalhadora, é produto das próprias contradições imanentes
ao capitalismo. Assim, com o tempo, e com a normalização das condições de
concorrência, ela teve de se generalizar:
O modo de produção material modificado, ao qual correspondem as relações
sociais modificadas entre os produtores, engendra, de início, abusos
desmedidos e provocam, como reação, o controle social que limita, regula e
uniformiza a jornada de trabalho e suas pausas. Por isso, durante a primeira
metade do século XIX, esse controle aparece como mera legislação de
exceção (...). A legislação foi, por isso, obrigada a livrar-se progressivamente
de seu caráter excepcional, ou, onde ela é aplicada segundo a casuística
romana, como na Inglaterra, a declarar arbitrariamente como fábrica (factory)
toda e qualquer casa onde algum trabalho é executado (MARX, 2013, pp.
369–370).
Ao falar da mudança da jornada normal de trabalho como atuação dos
trabalhadores, por meio do Estado, sobre o estado atual de coisas da vida material como
um importante passo rumo ao reino da liberdade devemos relembrar que não cabe ao
pesquisador repetir conclusões acerca de possibilidades que existem no processo
histórico mesmo por meio de seus sistemas doutorais. Afirma nosso autor:
Pelo que diz respeito à limitação da jornada de trabalho, tanto na Inglaterra
quanto em todos os outros países, ela nunca foi regulamentada a não ser por
intervenção legislativa. E sem a constante pressão exterior dos operários, essa
intervenção nunca se efetivaria. Em todo o caso, esse resultado não seria
alcançado por acordos particulares entre os operários e os capitalistas. É a
necessidade de uma ação política geral que demonstra claramente que, na luta
puramente econômica, o capital é a parte mais forte (MARX, 2010b, p. 137).
Como sempre, é bom notar que o próprio desenvolvimento da lei fabril avança
desigualmente, em reciprocidade com outros momentos. Como escreve Marx:
A França se arrasta, claudicante, atrás da Inglaterra. Foi necessária a
Revolução de Fevereiro para trazer à luz a Lei das 12 Horas, muito mais
defeituosa que a original inglesa. Apesar disso, o método revolucionário
francês também mostra suas vantagens peculiares. De um só golpe, ele
estabelece para todos os ateliês e fábricas, sem distinção, os mesmos limites
da jornada de trabalho, ao passo que a legislação inglesa cede à pressão das
circunstâncias, ora nesse ponto, ora noutro, e está no melhor caminho para se
perder em meio a novos imbróglios jurídicos. Por outro lado, a lei francesa
proclama como um princípio aquilo que a Inglaterra conquistou apenas em
nome das crianças, dos menores e das mulheres, e que só recentemente foi
reivindicado como um direito universal (MARX, 2013, pp. 371–372).

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Não poderia ser mais claro o fato de que o direito está concretamente ligado às
circunstâncias de cada país, como a concorrência mundial, o estágio da luta de classes, a
organização jurídica, se casuística e de common law ou de inspiração romano-germânica
(civil law) etc. Não obstante, posto que a materialidade, no processo de objetivação do
capitalismo, impunha circunstâncias mais ou menos similares, o desenvolvimento da
legislação fabril no continente europeu pôde seguir o caminho inglês:
The governments on the Continent (France, Prussia, Austria, etc.) were com-
pelled, in proportion with the development there of capitalist production,
hence of the factory system, to follow the English example by limiting the
working day d’une manière ou d’une autre. They have for the most part, with
certain modifications, copied, and inevitably so, the English factory
legislation9 21 (MARX; ENGELS, 1988, p. 220).
Como as atuações do Estado e do direito são complexas, é possível extrair
determinações contraditórias do movimento concreto. Ao mesmo tempo em que o
direito pode ser uma reação de proteção dos trabalhadores, ainda que “sempre hostil a
ele[s]”, pode também ser um freio racional contra os excessos da grande indústria:
As investigações profundamente conscienciosas da Child. Empl. Comm.
[Children’s Employment Commission] demonstram, de fato, que em algumas
indústrias a regulamentação da jornada de trabalho não fez mais do que
distribuir uniformemente, ao longo de todo o ano, a massa de trabalho já
empregada; que tal regulação foi o primeiro freio racional aplicado aos
volúveis caprichos da moda, homicidas, carentes de sentido e por sua própria
natureza incompatíveis com o sistema da grande indústria (...). Entretanto, o
capital, como ele mesmo reiteradamente declara pela boca de seus
representantes, só consente em tal revolucionamento “sob a pressão de uma
lei geral do Parlamento” que regule coercitivamente a jornada de trabalho
(MARX, 2013, pp. 550–551).
O aspecto do direito como freio racional, segundo nos parece, não recebe a
devida atenção na literatura marxista. Ao mesmo tempo em que demonstra claramente
os efeitos que o direito tem sobre a materialidade, não deixa de ser um momento da
produção social de uma classe trabalhadora adequada à acumulação capitalista e da
eliminação de excessos da grande indústria. Ao mesmo tempo, é evidente que isto não
exclui outra determinação marxiana, segundo a qual:
A legislação fabril, essa primeira reação consciente e planejada da sociedade
à configuração natural-espontânea de seu processo de produção, é, como
vimos, um produto tão necessário da grande indústria quanto o algodão, as
self-actors e o telégrafo elétrico (MARX, 2013, p. 551).
O direito desempenha os papéis concretamente, simultânea e
contraditoriamente, de um freio racional ao impulso do capital e de elemento essencial à
reprodução deste mesmo capital.
Por outro lado, tutelar legalmente uma jornada normal de trabalho generaliza as
condições de extração de mais-valor relativo e normaliza a concorrência. Quanto a isto,
como afirma Marx, “a igual exploração da força de trabalho é o primeiro direito

9 Tradução livre: “Os governos do continente (França, Prússia, Áustria etc.) foram compelidos,
proporcionalmente ao desenvolvimento da produção capitalista, e, portanto, do sistema fabril, a
seguir o exemplo inglês, limitando o dia de trabalho d’une manière ou d’une autre [de um jeito ou de
outro]. Eles, em sua maior parte, com certas modificações, inevitavelmente copiaram a legislação da
fábrica inglesa.”

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humano do capital” (MARX, 2013, p. 364). O trecho a seguir é explícito quanto à


incitação da busca por mais-valor relativo:
Ao mesmo tempo, operou-se uma modificação no caráter do mais-valor
relativo. Em geral, o método de produção do mais-valor relativo consiste em
fazer com que o trabalhador, por meio do aumento da força produtiva do
trabalho, seja capaz de produzir mais com o mesmo dispêndio de trabalho no
mesmo tempo. O mesmo tempo de trabalho agrega ao produto total o mesmo
valor de antes, embora esse valor de troca inalterado se incorpore agora em
mais valores de uso, provocando, assim, uma queda no valor da mercadoria
individual. Diferente, porém, é o que ocorre quando a redução forçada da
jornada de trabalho, juntamente com o enorme impulso que ela imprime no
desenvolvimento da força produtiva e à redução de gastos com as condições
de produção, impõe, no mesmo período de tempo, um dispêndio aumentado
de trabalho, uma tensão maior da força de trabalho, um preenchimento mais
denso dos poros do tempo de trabalho, isto é, impõe ao trabalhador uma
condensação do trabalho num grau que só pode ser atingido com uma jornada
de trabalho mais curta (MARX, 2013, p. 482).
Neste mesmo sentido:
[B]eweisen die englischen factory reports einstimmig zwei Thatsachen: 1)
daß seit Einführung des Zehnstunden (später modificirt in 10½ Stunden)
Gesetzes die kleinen, stückweisen Verbessrungen in der Maschinerie
ungleich grösser und beständiger waren als in irgend einer vorhergehnden
Periode und 2) daß ihre Geschwindigkeit und die Masse der Maschinerie, die
der einzelne Arbeiter zu überwachen hat, die Ansprüch an die Intensivität
seiner Nerven und Muskelarbeit sehr zugenommen hat. Dieselben Reports
lassen ferner keinen Zweifel über die andren beiden Thatsachen: 1) daß ohne
das Stundengesetz, die Beschränkung des absoluten Arbeitstags, jener grosse
Umschwung im industriellen Betrieb nicht eingetreten wäre, daß er
erzwungen war durch die äussre Grenze, die die Gesetzgebung der
Exploitation des Arbeiters setzte; 2) daß ohne die schon erreichte
technologische Höhe der Entwicklung, wie die mit der erreichten Stufe der
capitalistischen Production überhaupt gegebnen Hülfsmittel, das Experiment
nicht möglich war, d. h. nicht so rasch mit diesem günstigen Erfolg möglich
war10 (MARX, 1982, pp. 1907–1908).
O direito, ao instituir uma jornada normal de trabalho, acaba por, em virtude da
concorrência, normalizar a extração de mais-valor relativo. É o que provamos acima.
Outro efeito da regulação jurídica é o aumento dos custos de produção — pois aumenta
o valor da força de trabalho com seus direitos trabalhistas. Assim, os pequenos
produtores são destituídos pelo aumento dos custos de produção. Decorre daí certa

10 Tradução livre: “[O]s Factory Reports ingleses unanimemente demonstram duas coisas: 1) que desde
a introdução da Lei das 10 Horas (mais tarde modificada para 10h 1⁄ 2) os pequenos e gradativos
melhoramentos na maquinaria se deram numa escala maior e mais contínua do que em qualquer
período anterior, e 2) que a velocidade e o número do maquinário que o trabalhador individual tem de
supervisionar aumentou deveras a intensidade do trabalho, as demandas sobre os nervos e músculos
do trabalhador. Ademais, os mesmos Reports não deixam dúvidas sobre os seguintes dois fatos: 1)
que sem a legislação trabalhista, a limitação da jornada de trabalho absoluta, a grande revolução no
funcionamento da indústria não haveria ocorrido, posto que implementada pelo limite externo fixado
pela legislação à exploração do trabalhador; 2) que o experimento não seria possível, isto é, não seria
possível tão bruscamente com um resultado tão favorável, sem o alto nível de desenvolvimento
tecnológico já alcançado e os meios de assistência dados pelo nível da produção capitalista adquiridos
em geral.”

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concentração de capitais, uma vez que os pequenos produtores, como as oficinas


menores, passam a ter uma margem de lucro agudamente reduzida:
Se a lei fabril, por meio de todas as suas medidas coercitivas, acelera
indiretamente a transformação das oficinas menores em fábricas, interferindo,
assim, indiretamente no direito de propriedade dos capitalistas menores e
garantindo o monopólio aos grandes, a imposição legal do volume de ar
necessário para cada trabalhador na oficina expropriaria diretamente, de um
só golpe, milhares de pequenos capitalistas! Ela atingiria a raiz do modo de
produção capitalista, isto é, a autovalorização do capital, seja grande ou
pequeno, por meio da “livre” compra e consumo da força de trabalho
(MARX, 2013, pp. 552–553).
Este efeito material do direito pode levar a enormes mudanças, como a
precarização do trabalho, o rebaixamento dos salários etc. O importante a destacar,
como sempre, é que capturar o conteúdo mutante do direito e sua gênese e função
concretas é vital.
Que fique claro que estes efeitos não podem ser derivados mecanicamente: “It
should of course always be remarked that as soon as a concrete economic phenomenon
comes into question, general economic laws can never be applied simply and directly11”
(MARX; ENGELS, 1991, p. 383). Prova disso é que, no caso específico da Inglaterra, a
instituição de uma jornada normal de trabalho e a subsequente busca por mais-valor
relativo, o que implica trabalho mais intenso, em vez de extenso, como na busca por
mais-valor absoluto, conviveu com um aumento do valor socialmente produzido e
mesmo com o aumento de salários:
This is the reason why with the introduction of the Ten Hours’ Bill there was
not only a growth in the productivity of the branches of English industry into
which it was introduced, but also a rise rather than a fall in the amount of
value they produced, and even in wages12 (MARX; ENGELS, 1991, p. 383).
No mesmo sentido, e mais explicitamente:
The Factory Reports show that in those branches of industry which were
covered (until April 1860) by the Factory Act, and in which therefore the
working week had been reduced by law to 60 hours, wages did not fall
(comparing 1859 with 1839) but rather rose, whereas they positively fell
during this period in factories where “the labour of children, young persons
and women” was still “unrestricted” (...). The phenomenon that the Ten
Hours’ Bill has not cut down the profits of the English manufacturers, in
spite of the shortening of the working day, is explained by two reasons: 1)
The English hour of labour stands above the Continental one, it is related to
it as more complex labour to simple labour. (Hence the relation of the
English to the foreign manufacturer is the same as the relation of a
manufacturer who has introduced new machinery to his competitor) (...). 2)
What is lost through the reduction of absolute labour time is gained in
condensation of labour time, so that in fact 1 hour of labour is now equal to

11 Tradução livre: “Deve-se sempre observar que, logo que um fenômeno econômico concreto esteja em
questão, as leis econômicas gerais nunca podem ser aplicadas de forma simples e direta.”
12 Tradução livre: “Esta é a razão pela qual, com a introdução da Lei das dez horas, não houve apenas
um crescimento na produtividade dos ramos da indústria inglesa em que foi introduzida, mas também
um aumento, em vez de uma queda, na quantidade de valor que produziram, e mesmo em salários.”

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6
/5 or more hours of labour13 (MARX; ENGELS, 1988, pp. 337–338).
Os efeitos materiais da lei das dez horas (e meia) aparecem elencados ainda a
seguir:
Todos conhecem a Lei das dez horas, ou antes, a Lei das dez horas e meia,
em vigor desde 1848. Foi uma das maiores mudanças econômicas que
testemunhamos. Foi uma alta súbita e compulsiva de salários, não apenas a
alguns negócios locais, mas aos principais ramos da indústria, pelos quais a
Inglaterra domina os mercados do mundo (...). Bem, qual foi o resultado
[desta lei]? Um aumento dos salários em dinheiro dos operários das
indústrias, apesar da diminuição da jornada de trabalho, um grande aumento
no número de operários ocupados nas indústrias, uma queda constante nos
preços dos seus produtos, um maravilhoso desenvolvimento nas forças
produtivas do seu trabalho, uma extraordinária expansão progressiva dos
mercados para suas mercadorias (MARX, 2010b, pp. 81–82).
Consideradas as citações imediatamente acima, é preciso concluir que os
efeitos materiais da legislação fabril, a qual instituiu a jornada normal de trabalho de
dez horas (e meia), necessitaram da produção material mais desenvolvida da Inglaterra,
de modo que o trabalho social inglês seja mais complexo que seu correspondente
continental. Deve-se igualmente concluir que a busca generalizada pelo mais-valor
relativo era uma possibilidade historicamente aberta pelo desenvolvimento anterior,
que, por sua vez, leva o modo de produção capitalista a um novo patamar de
acumulação, dado o rápido avanço das forças produtivas. Esta possibilidade histórica,
porém, não necessariamente se encontra aberta em outras vias de objetivação do
capitalismo, e portanto legislações similares em conteúdo podem ter efeitos materiais
significativamente distintos.
É curioso notar que esta legislação que regula a jornada normal de trabalho e
aumenta os salários é um momento posterior àquelas que os rebaixam forçosamente:
(...) a partir de Henrique VII (quando começa simultaneamente a limpeza da
terra das bocas supérfluas mediante a transformação da lavoura em
pastagens, o que perdura por mais de 150 anos, pelo menos as reclamações e
a interferência legislativa; portanto, crescia o número das mãos colocadas à
disposição da indústria), o salário na indústria não era mais fixado, mas só na
agricultura (...). Com o trabalho livre, ainda não está plenamente posto o
trabalho assalariado. Os trabalhadores ainda encontram apoio nas relações
feudais; sua oferta ainda é muito pequena; por isso, o capital ainda é incapaz
de, como capital, reduzir o salário ao mínimo. Daí as determinações
estatutárias do salário. Enquanto o salário ainda é regulado por meio de
estatutos, não se pode dizer nem que o capital como capital subsumiu a

13 Tradução livre: “Os Factory Reports mostram que, nos ramos da indústria que foram cobertos (até
abril de 1860) pela lei fabril e em que, portanto, a semana de trabalho foi reduzida por lei a 60 horas,
os salários não caíram (comparando 1859 com 1839), mas antes aumentaram, enquanto eles caíram
positivamente durante este período em fábricas onde “o trabalho de crianças, jovens e mulheres”
ainda era “sem restrições” (...). O fenômeno de que a Lei das dez horas não tenha reduzido os lucros
dos fabricantes ingleses, apesar do encurtamento do dia útil, é explicado por dois motivos: 1) A hora
de trabalho inglesa está acima da continental, relacionando-se a ela como trabalho mais complexo em
relação a trabalho simples. (Daí a relação do fabricante inglês com o estrangeiro é a mesma que a
relação de um fabricante que introduziu novo maquinário com seu competidor) (...). 2) O que se
perde através da redução do tempo de trabalho absoluto é obtido na condensação do tempo de
trabalho, de modo que, de fato, 1 hora de trabalho é agora igual a 6 ⁄ 5 ou mais horas de trabalho.”

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produção a si mesmo, nem que o trabalho assalariado recebeu o seu modo de


existência adequado (...). Em 1514, o salário é outra vez regulamentado,
quase da mesma forma como da vez anterior. O horário de trabalho é também
outra vez fixado. Quem não quisesse trabalhar quando requisitado era preso.
Portanto, ainda trabalho forçado dos trabalhadores livres por um salário
determinado. Eles primeiro têm de ser forçados a trabalhar nas condições
postas pelo capital. O sem-propriedade está mais inclinado a tornar-se
vagabundo, ladrão e mendigo do que trabalhador. Isso só fica evidente no
modo de produção desenvolvido do capital. No estágio preliminar do capital,
coerção do Estado para converter os sem-propriedade em trabalhadores em
condições favoráveis ao capital, que aqui ainda não são impostas aos
trabalhadores por meio da concorrência dos trabalhadores entre si (MARX,
2011, pp. 615–616).
No primeiro momento, assim, sobre os salários regulados por lei: “Salários
razoáveis foram, assim, fixados compulsoriamente por lei, assim como os limites da
jornada de trabalho” (MARX, 2013, p. 344), acerca do primeiro “Statute of Labourer”
[Estatuto dos Trabalhadores], de 1349.
Aludimos acima que a legislação foi instrumental para a transição da produção
manufatureira à fabril. O trecho abaixo é explícito quanto a isso:
Essa revolução industrial, que transcorre de modo natural-espontâneo, é
artificialmente acelerada pela expansão das leis fabris a todos os ramos da
indústria em que trabalhem mulheres, adolescentes e crianças. A
regulamentação compulsória da jornada de trabalho em relação a sua
duração, pausas, início e término, o sistema de revezamento para crianças, a
exclusão de toda criança abaixo de certa idade etc. exigem, por um lado, o
incremento da maquinaria e a substituição de músculos pelo vapor como
força motriz. Por outro, para ganhar em espaço o que se perde em tempo,
tem-se a ampliação dos meios de produção utilizados em comum: os fornos,
os edifícios etc., portanto, em suma, uma maior concentração dos meios de
produção e, por conseguinte, uma maior aglomeração de trabalhadores (...).
Mas se, desse modo, a lei fabril acelera artificialmente a maturação dos ele-
mentos materiais necessários à transformação da produção manufatureira em
fabril, ela ao mesmo tempo acelera, em virtude da necessidade de um
dispêndio aumentado de capital, a ruína dos pequenos mestres e a
concentração do capital (MARX, 2013, pp. 545–548).
É o direito sendo importante mediação para levar a materialidade a um patamar
superior, como já havia conseguido antes, ao possibilitar a acumulação capitalista com o
direito terrorista, e como, a contrario sensu, a impedia, com sua legislação feudal.

CONCLUSÃO
Em suma, é preciso expor abrangentemente o que Marx aduz em seus textos
econômicos tardios acerca do direito. Como se deve concluir da argumentação acima, o
direito está em reciprocidade com a esfera material, a economia, e seus limites objetivos
são expandidos ou limitados pela materialidade. A produção material constitui o ponto
de arranque e momento preponderante, a determinação material, ainda que isto não deva
jamais ser tomado mecanicamente, a ponto de anular o efeito de “retorno” do direito.
Assim, ainda que não haja um conceito de direito em Marx, o direito mesmo seria
impossível não houvesse pressupostos materiais. Há determinações materiais sem as
quais não haveria um desenvolvimento superior, como o direito.

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Como se vê pelo rumo da exposição, julgamos acertado começar pela ação da


materialidade sobre o direito, uma vez que é a materialidade que assenta as bases do
desenvolvimento jurídico posterior e condiciona, de modo complexo, suas possíveis
existências concretas. O direito possui suas especificidades, ou seja, suas características
próprias, porém não lógica inteiramente sua. É provar obliquamente como a apreensão
de que o direito é condicionado pela materialidade não pode ser erroneamente tomada
como se nosso autor subestimasse a vasta importância que pode vir a exercer sobre a
materialidade. O direito pode ser convertido em força material, atuando de forma não
mecânica sobre a materialidade, não devendo jamais ser sublimado num conceito
estanque. O direito não é epifenomênico, um reflexo mecânico e passivo da base
econômica. Talvez contraintuitivamente, o direito é ao mesmo tempo materialmente
secundário, pois é uma relação que encontra na materialidade determinados
pressupostos de existência, e importante, devido a seus efeitos materiais.
Queremos frisar que em Marx estes momentos separados convivem em
reciprocidade complexa. Salta aos olhos que nosso autor jamais faria uma separação
estanque entre estes momentos, o que podemos provar pela ausência de esquematismos
em seus textos. Tomamos a liberdade, no interesse de expor os resultados de nossa
investigação, de fazê-lo, porquanto a produção material é o pressuposto objetivo
inafastável sobre o qual se erige uma ordem jurídica, dentro de condições de
possibilidade concretas, e é a materialidade que age como momento preponderante no
movimento objetivo. Assim, a exposição respeita o próprio movimento concreto.
Dito isso, retomemos a tese principal deste trabalho. O ponto nevrálgico de
nossa exposição é a tendência geral do movimento do direito nos textos econômicos,
que passa pela via clássica, na qual há a substituição de um direito feudal e de um
direito terrorista para a compulsão ao trabalho, num primeiro momento, pela legislação
fabril, no momento posterior, sendo este um direito produto do próprio desenvolvimento
e um freio racional às tendências imanentes da produção capitalista. São ambos, não
obstante, momentos da constituição do modo de produção capitalista e da força de
trabalho que lhe corresponde. Ao mesmo tempo, esta nova legislação fabril leva a
produção a um novo patamar, normalizando a concorrência e generalizando as
condições de extração de mais-valor relativo.
É evidente que a queda do direito feudal é acompanhada por um processo de
dissolução das condições materiais da feudalidade em condições de reciprocidade, o que
inclusive torna esta queda possível e ativa o direito como mediação na constituição do
modo de produção moderno. O mesmo vale para a criação de um direito da acumulação
primitiva, que não seria possível sem pressupor as condições materiais desta
acumulação, que assenta as bases da produção moderna. Neste ponto, insistimos que a
produção material cria as condições de possibilidade do direito e permanece o momento
preponderante. A própria forma expositiva, como consta acima, é um elemento
evidenciador do movimento objetivo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHASIN, José. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo:
Boitempo, 2009.

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

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______. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857–1858: esboços da crítica da


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______. ______. Edição: Friedrich Engels. São Paulo: Boitempo, 2014. v. 2: o processo
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______. Salário, preço e lucro. In: Trabalho assalariado e capital & salário, preço e
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Dietz Verlag, 1982. v. II.3.6. (Marx-Engels Gesamtausgabe II).

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. 1861–63, Economic Manuscripts. Londres:


Lawrence & Wishart, 1989. v. 31. (Marx/Engels Collected Works).

______. ______. Londres: Lawrence & Wishart, 1989. v. 32. (Marx/Engels Collected
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______. ______. Londres: Lawrence & Wishart, 1991. v. 33. (Marx/Engels Collected
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(Marx/Engels Collected Works).

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(Marx/Engels Collected Works).

______. Marginal Notes on Adolph Wagner’s Lehrbuch der politischen Oekonomie. In:

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

1874–83. Londres: Lawrence & Wishart, 1989. v. 24, p. 531–559. (Marx/Engels


Collected Works).

______. Randglossen zu Adolph Wagners „Lehrbuch der politischen Ökonomie“. In:


Werke. Berlim: Dietz Verlag, 1987. v. 19, p. 355–383.

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O DIREITO BURGUÊS DIANTE DA DITADURA BURGUESA:


AS VIOLAÇÕES AO ORDENAMENTO JURÍDICO NA REPÚBLICA SOCIAL
FRANCESA1

Lucas de Oliveira Maciel2


Universidade Federal de Minas Gerais

Resumo: Em suas análises sobre a república social francesa, Marx descobriu seu caráter
contraditório na medida em que esta consistiu na relação entre um domínio irrestrito da
classe burguesa alçada ao parlamento e a forma política republicana do regime.
Analisaremos, a partir dos textos do pensador sobre o referido período, as
consequências disso para o ordenamento jurídico francês da época, notadamente, o
estado de sítio de Paris, as repressões de 1848 e 1849, a Constituição da república, e a
supressão do sufrágio universal.
Palavras-chave: ditadura burguesa; república francesa; ordenamento jurídico.

BOURGEOIS LAW AGAINST BOURGEOIS DICTATORSHIP:


THE VIOLATIONS TO THE LEGAL ORDINANCE IN THE FRENCH SOCIAL
REPUBLIC

Abstract: In his analysis of the french social republic, Marx discovered its
contradictory character in its relation between irrestrict domination by the bourgeoisie
in the parliament and the regime’s republican political form. We shall analyse, through
studies of Marx’s texts about the refered period, the consequences of this relation to the
french legal ordinance at the time, notably, the state of emergency in Paris, the 1848 and
1849 repressions, the Constitution of the republic, and the supression of universal
suffrage.
Keywords: bourgeois dictatorship; french republic; legal ordinance.

1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por intuito explorar como se colocou a questão do
direito nas análises históricas de Marx sobre a república francesa de 1848, mais
especificamente, como este se inseriu na relação contraditória entre domínio burguês
irrestrito e a forma republicana com que o regime político francês da época se
apresentou. Veremos as consequências disso para o ordenamento jurídico francês, entre
as quais, adianta-se, encontram-se as repressões de 1848 e 1849, o estado de sítio de
Paris, e a supressão do sufrágio universal em 1850. Não entraremos, contudo, no golpe
de Luís Bonaparte de 1851. A ênfase será o direito francês diante da ditadura burguesa

1
O tema deste artigo foi extraído de pesquisa de monografia apresentada como trabalho de conclusão de
curso intitulada “A relação entre Estado e sociedade civil-burguesa na França republicana: Constituição,
estado de sítio e ditadura de classe na obra de Karl Marx” (MACIEL, 2017).
2
Estudante de graduação em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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durante a república. Serão trabalhados, principalmente, a obras As lutas de classes na


França (2012b) e O 18 de brumário de Luís Bonaparte (2011b), que são dois textos em
que o pensador analisa a república social francesa.
Antes de adentrar as referidas obras, contudo, é necessário tratar de como a
política aparece em textos anteriores de Marx, notadamente em Sobre a questão judaica
(2010), já que tratam da contradição acima apontada. Além disso, é necessário analisar
o fundamento dessa contradição da esfera política em um estranhamento que se coloca
na esfera produtiva capitalista, o que será feito a partir dos Manuscritos econômico-
filosóficos (2004) e d’A ideologia alemã (2007). Por fim, antes de analisar a república
francesa, é necessário estudar o próprio movimento do Estado entre as reflexões
marxianas da década de 1840 e início da década de 1850, sem o que é impossível
compreender como a política se coloca na França analisada por Marx, e, com isso, o
direito. Adianta-se, é essencial perceber que o Estado se torna “um comitê para gerir os
negócios comuns de toda a classe burguesa” (MARX; ENGELS, 2017, p. 24), enquanto
a referida classe deixa de ser uma força progressista para se tornar conservadora.

2. O ESTADO POLÍTICO E SUA BASE REAL


2.1. Sobre a questão judaica
O texto Sobre a questão judaica trata das reivindicações de emancipação dos
judeus diante do Estado alemão, à época um Estado cristão (MACIEL, 2017, p. 12).
Marx, aqui, polemiza com o neohegeliano Bruno Bauer, segundo o qual o judeu só pode
se tornar cidadão do Estado se abandonar o judaísmo (Ibid), pois a condição de judeu e
a de cidadão seriam contraditórias: “sua essência judaica e limitada sempre e em última
análise preponderará sobre seus deveres humanos e políticos. (...) O judeu só poderia
permanecer judeu na esfera estatal ao modo sofista, ou seja, na aparência” (BAUER,
1843, p. 57, apud MARX, 2010, p. 35). Segundo Marx, “Bauer exige, portanto, por um
lado, que o judeu renuncie ao judaísmo, que o homem em geral renuncie à religião, para
tornar‑ se emancipado como cidadão” (MARX, 2010, p. 36).
Marx acusa Bauer de não saber que tipo de emancipação está em jogo na
questão judaica (MACIEL, 2017, p. 12). O pensador diferencia a emancipação política
daquilo que denomina emancipação humana, e afirma que, no caso do desejo dos judeus
de se alçar à condição de cidadãos, trata-se da primeira, a qual, contudo, não exige a
abolição da religião (Ibid, p. 13). O que o neohegeliano faz é “impor condições que não
estão fundadas na essência da emancipação política mesma” (MARX, 2010, p. 36).
Com isso, Marx retira a crítica do campo religioso, ou seja, da relação entre Estado
cristão e indivíduo judeu, cada qual com seu respectivo preconceito religioso (MARX,
2010, p. 33), e a desloca para o campo propriamente político, ou seja, submete à crítica
o “Estado como tal” (MARX, 2010, p. 36), não só o Estado cristão. Musetti resume:
(...) a confusão de Bauer residiria no fato dele não haver compreendido a
verdadeira essência do Estado moderno, razão pela qual elenca como pré-
condição para a vida cívica a abolição da religião, algo que está para além do
campo de atuação da emancipação política (MUSETTI, 2014, p. 45).
Qual seria, então, a essência da emancipação política? De acordo com Marx:
“O Estado pode, portanto, já ter se emancipado da religião, mesmo que a maioria
esmagadora continue religiosa. E a maioria esmagadora não deixa de ser religiosa pelo
fato de ser religiosa em privado” (MARX, 2010b, p. 39). Em outras palavras, com a
emancipação política, o Estado “pode simplesmente abstrair da religião, (...) reservando
para ela um lugar entre os demais elementos da sociedade civil [-burguesa]”
(MUSETTI, 2014, p. 49). Trata-se, pois, com a referida emancipação, da constituição da

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oposição entre Estado e sociedade civil-burguesa (MACIEL, 2017, p. 14; MUSETTI,


2014, p. 46), em que o Estado se caracteriza por ser livre dos elementos dessa mesma
sociedade, os quais podem atuar livremente nesta (MARX, 2010, p. 39; MUSETTI,
2014, p. 46). Essa oposição, contudo, não só não leva à abolição dos elementos da
sociedade civil-burguesa, como os pressupõem, uma vez que, enquanto universalidade,
o Estado só existe enquanto tal em relação com estes enquanto particulares: “Só assim,
pela via dos elementos particulares, é que o Estado se constitui como universalidade”
(MARX, 2010b, p. 40).
Na medida em que o Estado consiste na “esfera da comunidade, dos assuntos
gerais do povo” (MARX, 2009, p. 69 apud MUSETTI, 2014, p. 47), Marx afirma que o
“Estado político constitui, por sua essência, a vida do gênero humano em oposição à sua
vida material” (MARX, 2010, p. 40). O pensador aponta, a partir disso, que, com a
emancipação política, opera-se divisão do homem em:
(...) uma vida dupla não só mentalmente, na consciência, mas também na
realidade, na vida concreta; ele leva uma vida celestial e uma vida terrena, a
vida na comunidade política, na qual ele se considera um ente comunitário, e
a vida na sociedade [civil-] burguesa (Ibid).
Essa vida dupla é, nos termos de Marx, de um lado, a do citoyen, e, de outro, a
do bourgeois. É a distinção entre o cidadão, ator da esfera pública, e o indivíduo
egoísta, ator da esfera privada. De acordo com Musetti:
A emancipação política, nesse sentido, pressupõe a cisão do homem nas
figuras do burguês (o homem privado, o indivíduo real, membro da
sociedade civil [-burguesa]) e do cidadão (o homem público, o indivíduo
abstraído de suas determinações reais, membro de uma comunidade
imaginária, irreal) (MUSETTI, 2014, p. 49).
Marx afirma que a essa cisão “acaba se reduzindo toda a questão judaica”
(MARX, 2010, p. 41), uma vez que “O conflito que emerge entre o homem que professa
uma religião particular e sua cidadania, entre ele e as demais pessoas como membros da
sociedade, reduz-se à divisão secular entre o Estado político e a sociedade [civil-
]burguesa” (MARX, 2010, p. 41). Como se viu, contudo, diferentemente do que
acreditava Bauer, essa contradição é intrínseca à emancipação política.
Com a referida divisão, tem-se, ainda, a configuração da vida do citoyen como
ficção, ou seja, “Para o homem como bourgeois [aqui: membro da sociedade [civil-]
burguesa], a ‘vida no Estado [é] apenas aparência ou uma exceção momentânea à
essência e à regra’” (MARX, 2010, p. 41). O homem real aparenta ser somente o
burguês, o indivíduo egoísta, enquanto o cidadão aparenta ser uma artificialidade oposta
à vida real dos homens, desprovida de qualidades concretas, de determinações reais
(MACIEL, 2017, p. 17). Como coloca Marx:
(...) o homem na qualidade de membro da sociedade [civil-] burguesa é o que
vale como o homem propriamente dito, como o homme em distinção ao
citoyen, porque ele é o homem que está mais próximo de sua existência
sensível individual, ao passo que o homem político constitui apenas o homem
abstraído, artificial, o homem como pessoa alegórica, moral (MARX, 2010,
p. 53).
Trata-se, pois, “da separação entre o homem e sua comunidade, entre si
mesmo e os demais homens” (MARX, 2010, p. 42).
Se o bourgeois é o homem real, e o citoyen, uma abstração fictícia, temos,
como consequência, um Estado que se declara mero meio cujo fim é a conservação da
sociedade civil-burguesa: “a vida política se declara como um simples meio, cujo fim é
a vida da sociedade [civil-] burguesa” (MARX, 2010, p. 51). Em outras palavras, se o

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Estado pressupõe os elementos particulares para se configurar enquanto universalidade,


essa pressuposição se revela, agora, uma subordinação.
À emancipação política e sua divisão contraditória entre vida individual e vida
comunitária, Marx opõe a emancipação humana, que superaria essa oposição:
Mas a emancipação humana só estará plenamente realizada quando o homem
individual real tiver recuperado para si o cidadão abstrato e se tornado ente
genérico na qualidade de homem individual na sua vida empírica, no seu
trabalho individual, nas suas relações individuais, quando o homem tiver
reconhecido e organizado suas “forces propres” [forças próprias] como
forças sociais e, em consequência, não mais separar de si mesmo a força
social na forma da força política (MARX, 2010, p. 54).
Esclarecida a essência do Estado político, torna-se necessário, em seguida, se
indagar acerca de seu fundamento, que Marx verá no modo de produção capitalista. É a
noção de estranhamento colocada nessa esfera que explica a cisão entre Estado e
sociedade civil-burguesa.

2.2. O estranhamento capitalista enquanto fundamento do Estado político


Enquanto materialista, o pensamento marxiano exige que a apreensão da
sociabilidade humana parta de premissas concretas, quais sejam, a existência sensível
do homem (MARX; ENGELS, 2007, p. 87; MUSETTI, 2014, p. 104). A partir daí,
Marx afirma que o homem concreto, diante da realidade concreta, possui necessidades
que precisa satisfazer, o que é feito por meio do trabalho (MARX; ENGELS, 2007, pp.
32-33). É esse, para o autor, o traço distintivo do homem: o trabalho enquanto meio que
lhe permite a produção da própria existência:
Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou
pelo que se queira. Mas eles mesmos começam a se distinguir dos animais
tão logo começam a produzir seus meios de vida, passo que é condicionado
por sua organização corporal. Ao produzir seus meios de vida, os homens
produzem, indiretamente, sua própria vida material (MARX; ENGELS, 2007,
p. 87).
O trabalho humano se caracteriza por ser atividade vital consciente (MARX,
2004, p. 84), ou seja, atividade direcionada a fins conscientemente postos pelo próprio
homem, a partir do que ele pode “conduzir um modo humano de existência”
(MÉSZAROS, 2009, p. 79, apud MUSETTI, 2014, p. 70):
O modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida depende, antes de
tudo, da própria constituição dos meios de vida já encontrados e que eles têm
de reproduzir. Esse modo de produção não deve ser considerado meramente
sob o aspecto de ser a reprodução da existência física dos indivíduos. Ele é,
muito mais, uma forma determinada de sua atividade, uma forma
determinada de exteriorizar sua vida, um determinado modo de vida desses
indivíduos. Tal como os indivíduos exteriorizam sua vida, assim são eles. O
que eles são coincide, pois, com sua produção, tanto com o que produzem
como também com o modo como produzem. O que os indivíduos são,
portanto, depende das condições materiais de sua produção (MARX;
ENGELS, 2007, p. 87).
Essa produção ocorre no seio de relações sociais de produção e dentro de certo
estágio de desenvolvimento de forças produtivas (MACIEL, 2017, p. 28), aqui
entendidas como “a conjunção da totalidade de fatores que concorrem na produção da
existência social” (MUSETTI, 2014, p. 107), e estas nada mais são que a sociedade
civil-burguesa:
A forma de intercâmbio, condicionada pelas forças de produção existentes
em todos os estágios históricos precedentes e que, por seu turno, as
condiciona, é a sociedade civil [-burguesa] (...). Aqui já se mostra que essa

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sociedade civil [-burguesa] é o verdadeiro foco e cenário de toda a história, e


quão absurda é a concepção histórica anterior que descuidava das relações
reais, limitando-se às pomposas ações dos príncipes e dos Estados (MARX;
ENGELS, 2007, p. 39).
Descobriu-se, assim, o caráter subordinado do Estado à sociedade civil-
burguesa, foco das relações de produção e forças produtivas humanas:
(...) indivíduos determinados, que são ativos na produção de determinada
maneira, contraem entre si estas relações sociais e políticas determinadas. A
observação empírica tem de provar, em cada caso particular, empiricamente e
sem nenhum tipo de mistificação ou especulação, a conexão entre a estrutura
social e política e a produção. A estrutura social e o Estado provêm
constantemente do processo de vida de indivíduos determinados (...)
(MARX; ENGELS, 2007, p. 93).
Uma vez que ficou claro que o Estado tem por fundamento a sociedade civil-
burguesa, é necessário apontar, em seguida, que a essência dessa sociedade é o modo de
produção capitalista:
A “sociedade atual” é a sociedade capitalista, que, em todos os países
civilizados, existe mais ou menos livre dos elementos medievais, mais ou
menos modificada pelo desenvolvimento histórico particular de cada país,
mais ou menos desenvolvida. O “Estado atual”, ao contrário, muda
juntamente com os limites territoriais do país. No Império prussiano-alemão,
o Estado é diferente daquele da Suíça; na Inglaterra, ele é diferente daquele
dos Estados Unidos. “O Estado atual” é uma ficção. No entanto, os diferentes
Estados dos diferentes países civilizados, apesar de suas variadas
configurações, têm em comum o fato de estarem assentados sobre o solo da
moderna sociedade [civil-] burguesa, mais ou menos desenvolvida em termos
capitalistas (MARX, 2012c, p. 42).
A constituição do Estado político enquanto cisão entre vida individual e vida
em comunidade se explica, dessa forma, a partir da sociedade capitalista, mais
especificamente, a partir da noção de trabalho estranhado (MARX, 2004, p. 79) que se
coloca nessa esfera. Este consiste em que “o objeto (Gegenstand) que o trabalho produz,
o seu produto, se lhe defronta como um ser estranho, como um poder independente do
produtor” (MARX, 2004, p. 80). O trabalho estranhado diz respeito, pois, ao fato de que
o produto desse trabalho se coloca como se existisse independentemente do produtor,
como uma força externa que a ele se opõe, ou seja, o produto “se torna uma existência]
que existe fora dele (ausser ihm), independente dele e estranha a ele, tornando-se uma
potência (Macht) autônoma diante dele, que a vida que ele concedeu ao objeto se lhe
defronta hostil e estranha” (MARX, 2004, p. 81).
Esse estranhamento se encontra intimamente conectado com o processo
histórico de divisão do trabalho, a qual divide trabalho intelectual e trabalho material
(MARX; ENGELS, 2007, p. 35): “a delimitação do estranhamento (...) implica
reconhecê-lo como produto histórico-social constituído a partir da divisão do trabalho.
Esta é consolidada, como aduz Marx, na separação entre pensamento e atividade”
(MUSETTI, 2014, p. 117). É justamente essa separação que explica o estranhamento:
(...) com a divisão do trabalho, dá-se ao mesmo tempo a contradição entre o
interesse dos indivíduos ou das famílias singulares e o interesse coletivo de
todos os indivíduos que se relacionam mutuamente; e, sem dúvida, esse
interesse coletivo não existe meramente na representação, como ‘interesse
geral’, mas, antes, na realidade, como dependência recíproca dos indivíduos
entre os quais o trabalho está dividido. E, finalmente, a divisão do trabalho
nos oferece de pronto o primeiro exemplo de que, enquanto os homens se
encontram na sociedade natural e, portanto, enquanto há a separação entre
interesse particular e interesse comum, enquanto a atividade, por
consequência, está dividida não de forma voluntária, mas de forma natural, a

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própria ação do homem torna-se um poder que lhe é estranho e que a ele é
contraposto, um poder que subjuga o homem em vez de por este ser
dominado (MARX; ENGELS, 2007, p. 37).
A divisão do trabalho, então, tem por consequência a separação entre interesse
individual e interesse coletivo, com o que a ação do homem aparece como um poder
externo a ele e independente dele. A passagem deixa claro que isso não se coloca como
mero estado de consciência, mas objetivamente, ou seja, na medida em que há divisão
do trabalho, a existência humana é cindida em interesse do indivíduo e interesse
coletivo, o que impõe a subjugação do homem por sua própria atividade enquanto algo
estranho a ele. É a partir daí que se compreende o Estado:
(...) é precisamente dessa contradição do interesse particular com o interesse
coletivo que o interesse coletivo assume, como Estado, uma forma autônoma,
separada dos reais interesses singulares e gerais e, ao mesmo tempo, como
comunidade ilusória, mas sempre fundada sobre a base real [realen] dos laços
existentes (Ibid).
A passagem não só revela a raiz do Estado no trabalho estranhado, como o faz
nos mesmos termos de Sobre a questão judaica: o Estado se funda sobre a cisão entre
interesses particular e coletivo, e assume a forma do segundo desconectado do primeiro
enquanto “comunidade ilusória”. Explicitou-se, pois, a origem do Estado na divisão do
trabalho e no estranhamento, e seu caráter capitalista. Isso é necessário já que, no que
tocam os textos marxianos acerca da república francesa, trataremos das classes sociais
da sociedade capitalista (MACIEL, 2017, pp. 31-32) e retomaremos o tema do Estado
enquanto dissociado da vida real dos homens. Antes disso, contudo, passaremos por
como as reflexões de Marx sobre a política se desenvolvem antes da década de 1850 em
virtude do movimento do próprio objeto.

3. O FIM DA EMANCIPAÇÃO POLÍTICA ENQUANTO FORÇA


PROGRESSISTA
Em referência à emancipação política, Marx afirma que: “A emancipação
política de fato representa um grande progresso; não chega a ser a forma definitiva da
emancipação humana em geral, mas constitui a forma definitiva da emancipação
humana dentro da ordem mundial vigente até aqui” (MARX, 2010, p. 41). Essa ordem a
que o pensador se refere é nada além da sociedade capitalista (CHASIN, 2013, p. 54;
MACIEL, 2017, p. 34; SARTORI, 2012, p. 30), de forma que o progresso representado
pela emancipação política se relaciona ao progresso representado pelo próprio
capitalismo que se opõe à forma de sociabilidade anteriormente vigente:
As revoluções de 1648 e de 1789 não foram as revoluções inglesa ou
francesa, foram revoluções de tipo europeu. Não foram o triunfo de uma
determinada classe da sociedade sobre a velha ordem política; foram a
proclamação da ordem política para uma nova sociedade europeia. Nelas
triunfou a burguesia; mas o triunfo da burguesia foi o triunfo de uma nova
ordem social, o triunfo da propriedade burguesa sobre a propriedade feudal,
da nacionalidade sobre o provincialismo, da concorrência sobre o
corporativismo, da partilha do morgado, do domínio do proprietário de terra
sobre a dominação do proprietário a partir da terra, do esclarecimento sobre a
superstição, da família sobre o nome da família, da indústria sobre a preguiça
heroica, do direito burguês sobre os privilégios medievais (MARX, 2010, p.
322, apud SARTORI, 2012, p. 30).
O progresso, aqui, diz respeito à universalidade dessa nova forma social, que
desfaz o localismo medieval e se impõe a todas as relações sociais (MACIEL, 2017, p.
35; MUSETTI, 2014, p. 157; SARTORI, 2012, p. 30). Lembremos, contudo, que esse
progresso pressupõe a relação capital (MACIEL, 2017, p. 35; SARTORI, 2012, p. 30) e

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é parcial (MUSETTI, 2014, P. 157), pois somente é progresso na medida em que abole
as relações sociais anteriores (SARTORI, 2012, p. 33). Dessa forma, uma vez
consolidado, o capitalismo perde seu caráter progressista, e a classe capitalista,
dominante, se torna força conservadora comprometida com a manutenção dessa ordem
(MACIEL, 2017, p. 36). De acordo com Marx, isso tem início principalmente em 1848
com a repressão às jornadas de junho (MACIEL, 2017, p. 36; SARTORI, 2012, p. 33),
movimento de contestação do capital que será descrito adiante. O papel do Estado, com
isso, também se transforma:
Ele [o Estado] fora sempre o poder para a manutenção da (...) ordem
existente da sociedade e, portanto, da subordinação e exploração da classe
produtora pela classe apropriadora. Mas assim que essa ordem foi aceita
como uma necessidade incontroversa e incontestada, o poder estatal pôde
assumir um aspecto de imparcialidade (...). Com a entrada da própria
sociedade em nova fase, a fase da luta de classes, o caráter de sua força
pública organizada – o poder estatal – teve de mudar (...) e cada vez mais
desenvolver seu caráter de instrumento de despotismo de classe, de
engrenagem política voltada a perpetuar a escravização social dos produtores
da riqueza por seus apropriadores, do domínio econômico do capital sobre o
trabalho (MARX, 2011a, p. 170).
O “aspecto de imparcialidade” assumido pelo Estado e descrito por Marx em
Sobre a questão judaica se perde, e seu caráter de classe se revela, por mais que o
capital dede sempre tenha sido a base da nova sociedade (MACIEL, 2017, p. 36). Nesse
sentido, dirão Marx e Engels, no Manifesto Comunista (2017), que o “Estado moderno
não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa”
(MARX; ENGELS, 2017, p. 24). Isso não anula o que o pensador disse em seu texto de
1843, mas torna este insuficiente (MACIEL, 2017, p. 36). A cisão entre Estado e
sociedade civil-burguesa permanece na medida em que um comitê é uma esfera
representativa (SARTORI, 2012, p. 33). A indissociabilidade entre os dois, contudo, é
agora muito mais evidente, já que o Estado se subordina diretamente aos interesses da
classe burguesa (MACIEL, 2017, p. 37; SARTORI, 2012, p. 33).
Expostos os traços gerais do esgotamento do caráter progressista da classe
burguesa e sua conversão em classe conservadora e as consequências disso para o
tratamento do Estado, passemos às análises marxianas da república social francesa, para
que possamos ver como isso se deu concretamente no referido país, e quais as
implicações disso para o direito.

4. A REPÚBLICA SOCIAL FRANCESA, SEU CARÁTER CONTRADITÓRIO E


SEU ORDENAMENTO JURÍDICO
4.1. A insurreição de junho e o domínio da burguesia republicana
A revolução de 1848 na França derruba a monarquia de julho, regime em que
dominou uma fração da burguesia, a dos banqueiros (MARX, 2012b, p. 37). A oposição
a estes vinha de outra facção burguesa, a industrial. Todavia, a monarquia foi derrubada
mediante união de diferentes classes (MACIEL, 2017, p. 39; MUSETTI, 2014, p. 172),
mediante a conciliação de interesses intrinsecamente incompatíveis (MUSETTI, 2014,
p. 172), no que se formou um governo provisório:
O governo provisório, erigido sobre as barricadas de fevereiro,
necessariamente refletiu em sua composição os diversos partidos entre os
quais se dividiu a vitória. Ele nada podia ser além de um compromisso entre
as muitas classes que haviam se unido para derrubar o trono de julho; seus
interesses, no entanto, contrapunham-se hostilmente (MARX, 2012b, p. 43).

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A república foi proclamada por pressão da classe trabalhadora e, por isso,


proclamada república social (MARX, 2011b, p. 33; MARX, 2012b, pp. 43-44). O
proletariado, aqui, por isso, manteve suas reivindicações dentro dos limites da
emancipação política, limitadas, pois, à sociedade capitalista e ao desejo de arrancar
concessões sociais desta (MACIEL, 2017, pp. 40-41; MARX, 2012b, p. 45; MUSETTI,
2014, pp. 174-175).
Marx afirma, em relação ao novo regime, que: “À monarquia burguesa de Luís
Filipe só poderia seguir a república burguesa, isto é, ao passo que, em nome do rei, o
governo foi exercido por uma parcela restrita da burguesia, em nome do povo, a
totalidade da burguesia passaria a governar” (MARX, 2011b, p. 34). Isso evidencia, por
um lado, o esgotamento do caráter progressista da emancipação política, pois a um
Estado burguês somente se seguiu outro, e não a superação do capital (MACIEL, 2017,
pp. 42-43; MUSETTI, 2014, p. 179) e, por outro, esse novo regime é o domínio
conjunto de toda a classe burguesa independentemente da facção (MACIEL, 2017, p.
43): “a primeira medida que a república de fevereiro teve de tomar foi consumar o
domínio da burguesia, permitindo que todas as classes proprietárias ingressassem ao
lado da aristocracia financeira na esfera do poder político” (MARX, 2012b, pp. 44-45),
que confirma a passagem anteriormente trazida do Manifesto Comunista (2017),
ingresso que se consolidou com a reunião da Assembleia Constituinte, majoritariamente
composta pela facção republicana da burguesia (MARX, 2012b, p. 59), mas que
representava a classe como um todo (MACIEL, 2017, p. 43):
(...) a Assembleia Constituinte tornou-se, a partir das jornadas de junho, a
representante exclusiva do republicanismo burguês, e esse seu aspecto foi se
tornando tanto mais aparente quanto mais ruía a influência dos republicanos
tricolores fora da Assembleia. Quando se tratou de sustentar a forma da
república burguesa, eles puderam dispor dos votos dos republicanos
democráticos, mas quando se tratou do seu conteúdo, nem mesmo o seu
modo de falar os distinguiu das facções burguesas monarquistas, porque os
interesses da burguesia, as condições materiais de seu domínio classista e de
sua exploração classista perfazem o conteúdo da república burguesa (MARX,
2012b, p. 69).
De acordo com Marx, todavia, o verdadeiro berço da república foram as
chamadas jornadas de junho: “(...) o verdadeiro local de nascimento da república
burguesa não é a vitória de fevereiro, é a derrota de junho” (MARX, 2012b, p. 61).
Estas revelaram o caráter burguês do novo regime político na medida em que se viu no
proletariado antagonista que se precisou reprimir (MACIEL, 2017, p. 44). A insurreição
de junho foi o primeiro confronto direto entre burguesia e proletariado na França, em
que este último foi durante derrotado (MARX, 2011b, p. 34), e teve por principal traço
o fim das ilusões da classe trabalhadora acerca do Estado, a qual já não deseja sua
reforma:
As exigências, exuberantes quanto à forma, mesquinhas e até ainda burguesas
quanto ao conteúdo, que o proletariado parisiense quis espremer da república
de fevereiro deram lugar à ousada palavra de ordem revolucionária: Derrubar
a burguesia! Ditadura da classe operária! (MARX, 2012b, p. 64).

A repressão de junho foi, assim, a repressão da subversão da ordem do capital,


ou seja, da revolução:
Desse modo, a facção burguesa republicana, que há muito se vira como
herdeira legítima da Monarquia de Julho, viu superados os seus ideais; ela, no
entanto, não chegou ao poder como havia sonhado sob Luís Filipe, isto é,
mediante uma revolta liberal da burguesia contra o trono, mas por meio de

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uma rebelião do proletariado contra o capital, rebelião que foi metralhada. O


que ela tinha imaginado que seria o mais revolucionário dos eventos, na
realidade sucedeu como o mais contrarrevolucionário dos eventos. O fruto
lhe caiu no colo, mas caiu da árvore do conhecimento e não da árvore da vida
(MARX, 2011b, p. 41).
Pode-se dizer, então, que junho representou o verdadeiro nascimento da
república porque com ele se consolidou a guinada conservadora da burguesia referida
anteriormente. A repressão da revolução é a permanência da sociedade dentro dos
limites da emancipação política, o que, agora, só pode ser a manutenção da ordem do
capital (MACIEL, 2017, p. 45):
Quando o proletariado fez do seu túmulo o berço da república burguesa,
obrigou-a simultaneamente a vir à frente em sua forma pura, ou seja, como o
Estado cujo propósito confesso é eternizar o domínio do capital, a escravidão
do trabalho (MARX, 2012b, p. 64).
Além disso, junho foi a fundação da república porque revelou que o domínio
burguês na forma da república seria despótico: “o domínio burguês livre de todas as
amarras teve de converter-se imediatamente em terrorismo burguês” (MARX, 2012b, p.
64). A salvaguarda do capitalismo exigiu da classe burguesa que seu domínio se
constituísse enquanto violência irrestrita (MACIEL, 2017, p. 46): “Ela [a insurreição de
junho] havia revelado que, nesse caso, a república burguesa representava o despotismo
irrestrito de uma classe sobre outras classes” (MARX, 2011b, p. 36).
Na sequência de junho, os trabalhos da Assembleia Constituinte de elaboração
da futura Constituição francesa se deram em meio a exercício de poder ditatorial por
parte do general Cavaignac, nesse contexto chefe do poder Executivo (MARX, 2011b,
p. 41; MARX, 2012b, p. 68):
Enquanto delimitava na teoria as formas dentro das quais o domínio da
burguesia se expressaria de modo republicano, ela conseguia se manter na
realidade apenas mediante a invalidação de todas as fórmulas, mediante a
violência sans phrase [sem retoques], mediante o estado de sítio (MARX,
2012b, p. 75).
Aqui, Marx opõe o conteúdo real do domínio burguês, de violência irrestrita, à
forma política republicana com que este se expressaria política e juridicamente
(MACIEL, 2017, p. 47). Há, dessa forma, uma contradição entre o domínio burguês real
e a esfera política francesa republicana: “a vida da república burguesa é marcada pela
tensão gerada na contradição entre o conteúdo social da dominação exclusiva de uma
classe e a forma política ‘democrática’ pela qual esse conteúdo se apresenta”
(MUSETTI, 2014, p. 203). Com isso, reforça-se o disposto em Sobre a questão judaica,
ou seja, de que a política se caracteriza pela cisão entre vida humana real ligada ao
modo de produção capitalista, no caso francês, o despotismo burguês, e a esfera política
enquanto comunidade abstrata, aqui a república social (MACIEL, 2017, p. 47). A
emancipação política caracteriza progresso na medida em que a cisão entre vida
individual e vida comunitária permite a abolição da sociabilidade feudal. Todavia,
mesmo após o exaurimento desse caráter progressista e a conversão da burguesia em
classe conservadora, a sociedade capitalista permanece dentro dos limites da referida
emancipação, o que garante a coexistência entre seu despotismo e a república (Ibid).
Nas palavras de Musetti:
(...) a forma republicana corresponde à forma de revolução política da
sociedade burguesa e não a sua forma de vida conservadora. A contradição
estrutural da república se desenvolve no processo histórico de acentuação do
conservadorismo da burguesia com a consolidação definitiva de seu modo de
vida, processo que implica a realização da emancipação política e a
explicitação de sua natureza contraditória, haja vista que, na forma social do

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capital, a universalidade abstrata do cidadão é forçada a revelar o seu suporte


material e declarar-se compromissada com a preservação da propriedade
privada, ainda que tal compromisso exija a supressão das mesmas garantias
republicanas para os trabalhadores (MUSETTI, 2014, p. 188).
Na república francesa, portanto, o Estado se revelou definitivamente como o
“comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa” (MARX; ENGELS,
2017, p. 24) sob o poder da burguesia republicana (e também mais tarde, como
veremos, sob o domínio da burguesia monarquista, o Partido da Ordem), poder que se
consolidou sob a relação contraditória entre ditadura burguesa e forma política
republicana por meio da qual ela se apresenta. Veremos, a seguir, as consequências
disso para o ordenamento jurídico francês, a saber, trataremos do estado de sítio de
Paris, da Constituição, das insurreições pequeno-burguesas de 1849 e da supressão do
sufrágio universal em 1850.

4.2. As consequências jurídicas da ditadura burguesa


4.2.1 O estado de sítio de Paris
Trouxemos acima a passagem em que Marx afirma que o domínio burguês na
França, durante os trabalhos da Constituinte, só se mantinham “mediante a violência
sans phrase [sem retoques], mediante o estado de sítio” (MARX, 2012b, p. 75). O
estado de sítio foi decretado em Paris durante esse período para garantir a elaboração da
Constituição, e foi liderado pelo já referido general Cavaignac (MARX, 2011b, p. 41;
MARX, 2012b, p. 68). Insere-se diretamente nessa contradição entre domínio burguês e
forma política republicana, e é forma de sua expressão (MACIEL, 2017, p. 48). Em
outras palavras, se tem, de um lado, uma ditadura burguesa, e, de outro, um regime
republicano fundado em garantias de liberdades, incompatível, pois com qualquer
dominação irrestrita, de forma que o estado de sítio se coloca como cristalização dessa
oposição no contexto da Assembleia Constituinte (Ibid). Ainda sobre o despotismo de
Cavaignac, Marx afirma que:
Enquanto na Assembleia os burgueses republicanos estavam ocupados em
ruminar, discutir e votar essa Constituição, fora da Assembleia, Cavaignac
mantinha Paris em estado de sítio. O estado de sítio de Paris foi a parteira
que ajudou a Constituinte no trabalho de parto da sua criação republicana.
Mesmo que a Constituição mais tarde tenha sido eliminada pela baioneta, não
se pode esquecer que foi igualmente pela baioneta, mais precisamente, pela
baioneta voltada contra o povo, que ela teve de ser protegida já no ventre
materno e foi pela baioneta que ela teve de ser trazida ao mundo (MARX,
2011b, p. 46).
O estado de sítio foi a “parteira” da Constituição, ou seja, o texto constitucional
dependeu, para surgir, de um cenário de exceção, de restrição das próprias garantias
jurídicas (MUSETTI, 2014, p. 204). Foi a violência irrestrita, a “baioneta voltada contra
o povo”, que permitiu que a Constituição viesse à luz (MACIEL, 2017, p. 49). Reitera-
se a subordinação do Estado à sociedade civil-burguesa, seu fundamento, descrita desde
Sobre a questão judaica (2010), na medida em que foi o domínio burguês real que pariu
o regime republicano que o contradiz (MACIEL, 2017, p. 49).
Tratemos, agora, da cria republicana, a Constituição de 1848, promulgada no
fim do ano.

4.2.2 A Constituição francesa de 1848 e o Partido da Ordem


4.2.2.1. A Constituição

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De acordo com Marx, a Constituição “sancionou (...) a vitória momentânea da


velha sociedade sobre a revolução” (MARX, 2012b, pp. 75-76), o que quer dizer que ela
se insere na fase conservadora da burguesia e de manutenção de seu domínio despótico
(MACIEL, 2017, pp. 53-54), que ela vem reconhecer:
A Constituição republicana de 1848, inserida no contexto de exaurimento da
revolução política como avanço social, sanciona a sociedade [civil-] burguesa
amadurecida, o que implica renunciar da aparência “social” com a qual se
apresentou em fevereiro e assumir sua essência de despotismo burguês
(MUSETTI, 2014, p. 198).
Isso quer dizer que o texto constitucional sanciona a contradição entre domínio
burguês irrestrito e forma política republicana, o que se dá em seu texto por meio de
garantias de liberdades que nunca são absolutas e contém em si a possibilidade da
própria revogação (MACIEL, 2017, p. 54):
O inevitável estado-maior das liberdades de 1848, ou seja, liberdade pessoal,
liberdade de imprensa, de expressão, de associação, de reunião, de ensino e
religião etc. recebeu um uniforme constitucional que o tornou inviolável.
Cada uma dessas liberdades foi proclamada como direito incondicional do
citoyen francês, cada uma, porém, dotada da nota marginal de que seriam
irrestritas enquanto não fossem limitadas pelos “mesmos direitos dos outros e
pela segurança pública”, ou por “leis” que visam mediar justamente essa
harmonia das liberdades individuais entre si e com a segurança pública
(MARX, 2011b, pp. 41-42).
As liberdades são proclamadas incondicionais ao mesmo tempo em que não o
são, já que anuladas por nota marginal, de forma que o texto constitucional contém a
possibilidade da própria revogação (MACIEL, 2017, p. 54):
(...) cada parágrafo da Constituição contém a sua própria antítese, a sua
câmara superior e a sua câmara inferior, a saber, na sentença universal, a
liberdade e, na nota marginal, a revogação da liberdade. Portanto, enquanto a
denominação da liberdade foi respeitada e somente a execução efetiva desta
foi impedida – pela via legal, bem entendido – a existência constitucional da
liberdade permaneceu incólume, intocada, por mais que a sua existência
ordinária tenha sido suprimida (MARX, 2011b, pp. 42-43).
Marx nos dá exemplos:
Os cidadãos têm o direito de se associar, de reunir-se de modo pacífico e sem
armas, de peticionar e expressar as suas opiniões por intermédio da imprensa
ou como quer que seja. O gozo desses direitos não sofrerá nenhuma
restrição, a não ser pelos mesmos direitos de outros e pela segurança
pública (cap. II da Constituição francesa, § 8). O ensino é livre. A liberdade
de ensinar deve ser gozada nas condições fixadas em lei e sob a supervisão
do Estado (Idem, § 9). A residência de cada cidadão é inviolável exceto nas
formas prescritas pela lei (cap. II, § 3.). Etc., etc (MARX, 2011b, p. 42).
Temos, dessa forma, garantias constitucionais cujos limites são “os mesmos
direitos de outros”, sendo que esses diferentes direitos devem ser conciliados por meio
de leis que os regulamentem e por meio da segurança pública (MACIEL, 2017, p.55).
Em relação à revogabilidade dos preceitos constitucionais por leis que visam
regulamentá-los, o pensador afirma que estas “’determinam’ a liberdade prometida, nas
quais elas se aniquilam” (MARX, 2012a, p. 38). Essa determinação é a destruição
dessas liberdades, ou seja, sua regulamentação por legislação infraconstitucional é ao
mesmo tempo sua destruição (MACIEL, 2017, p. 55). A Constituição deixa evidente,
com isso, a contradição entre despotismo burguês e regime republicano:
As eternas contradições deste disparate de Constituição, mostram com
suficiente clareza, que a burguesia pode ser democrática em palavras, mas
não nas suas ações; ela poderá certamente reconhecer a verdade de um
princípio, mas nunca o colocará em prática – e a verdadeira “Constituição”

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da França não está na Carta da qual temos referido, mas nas leis orgânicas
emanadas sob esta base (MARX, 2012a, pp. 38-39).
A Constituição, dessa forma, na medida em que se insere numa sociedade
caracterizada pela contradição entre domínio burguês irrestrito e forma política
republicana, nada pode além de sancionar essa contradição (MACIEL, 2017, p. 55). Ela
deve reconhecer uma dominação que “conseguia se manter na realidade apenas
mediante a invalidação de todas as fórmulas [republicanas], mediante a violência sans
phrase [sem retoques]” (MARX, 2012b, p. 75). Ela é uma cria republicana que
possibilita a supressão dos princípios republicanos (MACIEL, 2017, p. 55).
O texto constitucional, pois, admite a própria revogação por meio de legislação
infraconstitucional, o que faz com que, na prática, as liberdades constitucionais não
saiam do papel, de forma que as leis que as regulamentam se convertem na “verdadeira
‘Constituição’”. Em outras palavras, as leis que visam regulamentar a Constituição se
inserem na contradição acima referida, e tem por função viabilizar a anulação das
fórmulas republicanas, de forma que são essas mesmas leis que, ao sancionar a ditadura
burguesa, constituem a verdade da Constituição, a qual teve a sua “existência ordinária”
suprimida.
A segurança pública é definida por Marx em Sobre a questão judaica como:
(...) conceito social supremo da sociedade burguesa, o conceito da polícia, no
sentido de que o conjunto da sociedade só existe para garantir a cada um de
seus membros a conservação de sua pessoa, de seus direitos e de sua
propriedade (MARX, 2010, p. 50).
É evidente seu caráter de defesa dos interesses da burguesia, e seu
aparecimento enquanto hipótese de limitação das liberdades constitucionais na república
francesa vem mostrar seu compromisso com o despotismo burguês (MACIEL, 2017, p.
56). De acordo com Musetti:
Marx reitera a oposição entre o caráter abstrato das liberdades do cidadão e o
seu suporte material na figura do indivíduo proprietário, recordando que a
subordinação das liberdades à manutenção da segurança pública representa a
adequação do gozo dos direitos, supostamente incondicionais, aos parâmetros
da sociedade [civil-] burguesa (...). O regime legal estabelecido pela
Constituição alicerça-se na materialidade do poder burguês exercido através
da propriedade, que impõe seus limites em nome da proteção da segurança
pública (MUSETTI, 2014, pp. 200-201).
Marx reitera:
Assim, a Constituição constantemente remete a leis orgânicas futuras que
devem detalhar aquelas notas marginais e regular o gozo dessas liberdades
irrestritas de tal maneira que não entrem em choque umas com as outras nem
com a segurança pública. Mais tarde, essas leis orgânicas foram
implementadas pelos amigos da ordem e todas aquelas liberdades foram
regulamentadas de tal modo que a burguesia, ao gozar delas, não ficasse
chocada ao ver as demais classes gozarem dos mesmos direitos. Quando ela
proibiu “aos outros” essas liberdades ou lhes permitiu gozá-las sob condições
que implicavam outras tantas armadilhas policiais, isso ocorreu apenas no
interesse da “segurança pública”, isto é, da segurança da burguesia, como
prescreve a Constituição (MARX, 2011b, p. 42).
O compromisso de classe do texto constitucional é evidente: as liberdades
burguesas são garantidas, enquanto as das demais classes, por sua vez, podem ser
revogadas por leis orgânicas (MACIEL, 2017, p. 56). Musetti resume: “Ao garantir os
direitos do cidadão em termos universais e restringir sua efetivação prática a um
pequeno grupo de proprietários, a república burguesa negava a si própria, garantia
formalmente a liberdade e suprimia sua realização” (MUSETTI, 2014, p. 202). É dessa

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forma, pois, que a Constituição sanciona a contradição entre domínio burguês irrestrito
e forma política republicana.

4.2.2.2. O Partido da Ordem


Com a promulgação da Constituição, saem de cena a Assembleia Constituinte e
a burguesia republicana, e entram a Assembleia Legislativa e a burguesia monarquista
coligada no Partido da Ordem, que representou “a coalizão de orleanistas e legitimistas
em um único partido” (MARX, 2012b, p. 98). Os primeiros são representantes do
capital industrial e financeiro, e os segundos, da grande propriedade fundiária (MARX,
2012b, p. 98). Contudo, Marx ressalta que, em sua atuação enquanto Partido da Ordem,
assim como a Assembleia Constituinte, representam toda a classe burguesa:
(...) o reino sem nome da república foi a única coisa em que as duas facções
eram capazes de sustentar, em um domínio homogêneo, o interesse comum
de sua classe sem renunciar à sua rivalidade mútua. Se a república dos
burgueses não podia ser senão o domínio de toda a classe burguesa,
aperfeiçoado e manifesto em sua forma mais pura, ela poderia ser algo
diferente do que o domínio dos orleanistas complementados pelos
legitimistas e dos legitimistas complementados pelos orleanistas, ou seja, a
síntese da restauração e da monarquia de julho? (MARX, 2012b, p. 98).
A república permanece, dessa forma, independentemente de qualquer
subdivisão da burguesia, enquanto domínio desta como um todo sobre toda a sociedade.
Ela concilia, pois, os diferentes interesses burgueses (MACIEL, 2017, pp. 60-61):
(...) no palco público, ou seja, nas suas principais ações oficiais, na condição
de grande partido parlamentar, dispensavam as suas respectivas casas reais
com simples mesuras e adiavam a restauração da monarquia ad infinitum.
Eles executavam a sua real atividade na condição de Partido da Ordem, isto
é, sob um título social, não político, como representantes da ordem mundial
burguesa, não como cavaleiros de princesas andantes; como classe de
burgueses contra todas as demais classes, não como monarquistas frente aos
republicanos (MARX, 2011b, p. 61).
O Partido da Ordem é, pois representante de toda a classe burguesa diante de
todas as demais classes. Reitera-se a afirmação segundo a qual o “Estado é um comitê
para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa” (MARX; ENGELS, 2017, p.
24). A república é o regime político que permite a conciliação dos interesses das
diferentes facções burguesas e garante, com isso, seu domínio conjunto (MACIEL,
2017, p. 60). Com isso:
(...) constatamos que esses monarquistas acreditavam em uma restauração
imediata e, mais tarde, vemos que conservam a forma republicana
espumando de raiva, proferindo invectivas mortais contra ela, para, por fim,
admitirem que só na república conseguiriam se suportar e,
consequentemente, adiar a restauração por tempo indeterminado (MARX,
2012b, p. 99).
O Partido da Ordem era composto por burgueses monarquistas, que, enquanto
tais, repudiavam o republicanismo. Todavia, ao mesmo tempo, somente este garantia
seu domínio conjunto, de forma que não lhes era permitido derrubá-lo (MACIEL, 2017,
p. 60). Seu ódio, ainda, vinha não só de seu monarquismo, mas do fato de que sob o
parlamentarismo se confrontavam diretamente com as classes dominadas:
O instinto lhes ensinou que a república de fato consumou o seu domínio
político, mas, ao mesmo tempo, também minou a sua base social, porque
passaram a ter de confrontar-se e lutar diretamente com as classes subjugadas
sem mediação nenhuma, sem o refúgio da coroa, sem poder derivar o
interesse nacional das suas querelas secundárias entre si e com o reinado
(MARX, 2011b, p. 62).

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Na república, as classes dominantes se confrontam diretamente com as classes


dominadas no parlamento, sem a mediação do rei (MACIEL, 2017, p. 61). De acordo
com Musetti:
(...) forma republicana, (...) ao mesmo tempo em que, de um lado, permite o
domínio conjunto da burguesia, de outro, se afirma como regime da
intranquilidade, ao trazer para o cenário político o antagonismo real existente
entre as diversas classes sociais (MUSETTI, 2014, p. 221).
Isso se devia ao sufrágio universal:
(...) a contradição abrangente dessa Constituição é a seguinte: mediante o
sufrágio universal, ela dotou de poder político as classes cuja escravidão
social visa eternizar, ou seja, o proletariado, os agricultores e os pequeno-
burgueses. E a classe cujo antigo poder social foi por ela sancionado, ou seja,
a burguesia, ela privou das garantias políticas desse poder. Ela comprime seu
domínio político dentro de condições democráticas que, de um momento para
o outro, podem propiciar a vitória às classes inimigas e colocar em xeque até
mesmo os fundamentos da sociedade burguesa (MARX, 2012b, p. 77).
Nas palavras de Musetti: “ao mesmo tempo em que chancela politicamente o
domínio da burguesia sobre a reprodução social, o Estado republicano garante o
sufrágio universal e dota de poder político as classes exploradas pelo capital”
(MUSETTI, 2014, p. 203). Com isso, as classes dominadas podem eleger quem as
represente no parlamento de forma a entrar em embate direto com as classes dominantes
e seu domínio irrestrito (MACIEL, 2017, p. 62). Tem-se, assim, situação contraditória
em que o domínio irrestrito do Partido da Ordem só é possível em virtude do regime
republicano, regime esse que, ao mesmo tempo, garante às classes dominadas a
possibilidade de contestação da ditadura burguesa (Ibid).
O repúdio do Partido da Ordem ao regime republicano ficará mais evidente a
seguir, em que serão analisadas suas querelas com a Nova Montanha, partido social-
democrata, fruto de “coalizão de pequeno-burgueses e trabalhadores” (MARX, 2011b,
pp. 63-64), portanto, representantes parlamentares das classes dominadas, que tornam
visíveis, no âmbito político-representativo, os antagonismo de classes.

4.2.3. A insurreição democrática de 1849


Diante da rivalidade da Montanha, o Partido da Ordem sentiu a necessidade de
anular a oposição (MACIEL, 2017, p. 63): “A burguesia passou a sentir a necessidade
de acabar com os pequeno-burgueses democratas, assim como um ano antes haviam
compreendido a necessidade de dar um fim no proletariado revolucionário” (MARX,
2011b, p. 64). Isso seria feito atraindo-os para as ruas (Ibid).
Em 1849, a França lançou expedição militar a Roma, procedimento vedado
pela Constituição, que proibia o atentado contra a liberdade de outros povos (MARX,
2011b, pp. 64-65). A Montanha reagiu “com uma ação de impeachment contra
Bonaparte e os seus ministros” (MARX, 2011b, p. 65). O partido social-democrata se
manteve dentro dos limites da emancipação política (MACIEL, 2017, p. 64), e protestou
contra o Partido da Ordem em termos de defesa do texto constitucional (Ibid). Como já
se mostrou, a emancipação política não consegue ir para além do capital, uma vez que
este constitui seu fundamento, ou seja, a sociedade civil-burguesa, cuja essência é o
modo de produção capitalista, é a base do Estado político, de forma que a defesa deste
último pressupõe aquele primeiro (Ibid). Além disso, já se discorreu sobre a
Constituição, a qual sanciona a ditadura burguesa (MARX, 2012b, p. 75), e à qual,
portanto, não tem como se opor. Como coloca Musetti:
A Montanha se esbarrava nas limitações próprias a sua natureza
socialdemocrata. (...) pretende-se modificar a sociedade civil-burguesa pelo

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viés democrático, através da atenuação e harmonização de sua contradição


estrutural no plano político, recaindo, assim, no círculo vicioso que limita
toda e qualquer concessão democrática às condições de dominação da
burguesia pela propriedade privada (MUSETTI, 2014, p. 225).
Percebe-se, dessa forma, que a Montanha nada tinha de revolucionária, e não
pretendia subverter a ordem do capital. Suas reivindicações se atinham aos limites do
Estado político, motivo pelo qual eram perfeitamente compatíveis com a sociedade
capitalista. Marx, afirma, em relação à defesa do texto constitucional, por parte da
Montanha: “’Viva a Constituição!’ foi a palavra de ordem divulgada por ela, palavra de
ordem que não significava outra coisa que ‘Abaixo a revolução!’” (MARX, 2012b, p.
110). Na medida em que a Constituição aparece como oposta à revolução, o pensador
reitera o caráter limitado da emancipação política, presa aos limites da ordem do capital
e, com isso, à conservação da sociedade civil-burguesa em sua forma de ditadura de
classe (MACIEL, 2017, p. 65).
Com a rejeição do pedido de impeachment (MARX, 2012b, p. 109), a
Montanha se lançou às ruas, no dia 13 de junho, em defesa da Constituição (MARX,
2012b, p. 110), mas em protesto pacífico (Ibid): “À proclamação constitucional da
Montanha correspondeu, no dia 13 de junho, uma assim chamada demonstração
pacífica dos pequeno-burgueses” (MARX, 2012b, p. 110). Mesmo assim, foi duramente
reprimida:
Os acontecimentos do dia 13 de junho são conhecidos: a proclamação feita
por uma parte da Montanha, segundo a qual Bonaparte e os seus ministros
foram declarados “fora da Constituição”; o cortejo das Guardas Nacionais
democráticas pelas ruas, que, desarmadas como estavam, correram para todos
os lados ao se defrontarem com as tropas de Changarnier etc. etc. Uma parte
da Montanha fugiu para o exterior, outra foi mandada para a Alta Corte em
Bourges, e uma regulamentação parlamentar submeteu o resto à supervisão
ao estilo de mestre-escola do presidente da Assembleia Nacional (MARX,
2011b, p. 65).
Com isso, evidenciou-se que o despotismo burguês sequer tolera contestações
mesmo que estas não coloquem em cheque a ordem do capital. A resposta do Partido da
Ordem à defesa do próprio texto constitucional que rege a república foi a pura repressão
(MACIEL, 2017, p. 65). Se o republicanismo permite que as classes dominadas se
alcem ao poder político, e se isso contradiz o domínio irrestrito da burguesia, a solução
é nada mais que reprimir essas classes (Ibid). O Partido da Ordem, para se garantir, se
viu obrigado a simplesmente violar sem rodeios a Constituição, e “estigmatizar a
insurreição em defesa da ordem constitucional como ato anárquico” (MARX, 2011b, p.
69). Musetti resume:
O dia 13 de junho foi outro episódio no qual se manifesta o conservadorismo
da classe burguesa, que, para fazer valer seus interesses, abafou com
violência bélica a procissão pacífica e desarmada da Montanha, em defesa
dos direitos constitucionais. Tratava-se de mais um ataque das classes
proprietárias contra as instituições republicanas (...). A atitude da alta
burguesia coligada para com a Constituição revela que mesmo as garantias
democráticas conquistadas em 1848 devem ser extirpadas da república
burguesa (MUSETTI, 2014, pp. 226-227).
A incompatibilidade entre domínio burguês irrestrito e a Constituição
terminou, portanto, com a pura e simples prevalência do primeiro sobre a segunda, vista
como ameaça que precisava ser tirada do caminho (MACIEL, 2017, p. 66). Marx
descreve o repúdio do Partido da Ordem à Constituição e à república:
A explicitação oral inescrupulosamente descarada da mentalidade
monarquista, o insulto desdenhosamente airoso contra a república, a

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tagarelice inconfidente, frívola e coquete dos propósitos da restauração, em


suma, a violação jactanciosa da decência republicana conferem a esse
período o tom e o matiz que lhe são peculiares. Viva a Constituição! Esse foi
grito de guerra dos derrotados do dia 13 de junho. Os vencedores estavam,
portanto, dispensados da hipocrisia da linguagem constitucional, isto é, da
linguagem republicana. (...) Não passava dia sem que a Revolução de
Fevereiro fosse descrita da tribuna da Assembleia Nacional como uma
desgraça pública, sem que algum Junker [fidalgo] legitimista plantador de
couves da província asseverasse solenemente jamais ter reconhecido a
república (...) Thiers chamou a Constituição de pedaço de papel borrado (...).
A aclamação “Viva a república social-democrática!” foi declarada
inconstitucional; a aclamação “Viva a república!” se tornou passível de
punição por ser social-democrática. No aniversário da batalha de Waterloo,
um representante declarou: “Temo menos a invasão da Prússia do que o
ingresso dos fugitivos revolucionários na França”. As queixas contra o
terrorismo que teria sido organizado em Lyon e nos départements
circunvizinhos foram respondidas por Baraguey-d’Hilliers: “Prefiro o terror
branco ao terror vermelho” (J ’aime mieux la terreur blanche que la terreur
rouge). E a Assembleia prorrompia em aplausos frenéticos toda vez que os
lábios dos oradores deixavam escapar um epigrama contra a república, contra
a revolução, contra a Constituição, a favor do reinado, a favor da Santa
Aliança. Qualquer violação das formalidades republicanas, por menor que
fosse, como a de dirigir-se aos representantes como “citoyens” [cidadãos],
enchia os cavaleiros da ordem de entusiasmo (MARX, 2012b, pp. 114-116).
De acordo com Musetti, o caráter conservador da burguesia pós 1848 foi o que
a levou a se colocar contra as próprias instituições republicanas, tidas por ameaça a seu
despotismo na medida em que permitiam que este fosse contestado pelas classes
dominadas:
“o pouco apreço pela república manifestado pelas facções monarquistas
deixava entrever exatamente o que era rejeitado” (COTRIM, 2007, p. 242), a
saber, qualquer “condição democrática” que pudesse representar ameaça à
sociedade [civil-] burguesa. A guinada conservadora da burguesia se
manifesta em reação “desencadeada, primeiro, pelo levante do proletariado
revolucionário, em junho de 1848, e depois pelo da pequena burguesia
democrata, em junho de 1849”. (...) A resposta da alta burguesia revela que,
embora tenha encontrado na república burguesa a forma política que
possibilita sua dominação conjunta, seu interesse material exige o ataque às
instituições republicanas em razão do espaço que concediam a
questionamentos por parte das classes exploradas, que “deveriam ser
impedidos” (idem). Assim, “enquanto a batalha contra o proletariado era pela
existência da ordem burguesa” (ibid, p. 243), o combate à pequena burguesia
democrata “travava-se no interior dessa ordem (...). Ao sair vitoriosa em
ambas as ocasiões, “a burguesia afirma o sentido de sua dominação, e
demonstra não tolerar limitações, nem qualquer contraposição, tanto pelas
invectivas contra a república e a constituição quanto, praticamente, pelas leis
contra o direito de organização e manifestação” (idem) (MUSETTI, 2014, pp.
230-231).

Passemos agora à violação final ao ordenamento jurídico francês que


analisaremos no presente trabalho: a supressão, em 1850, do sufrágio universal.

4.2.4. A extinção do sufrágio universal


Após a repressão à pequeno-burguesia, foram realizadas, no dia 10 de março de
1850, eleições complementares para preencher os cargos que ficaram vagos (MACIEL,
2017, pp. 72-73; MARX, 2011b, pp. 82-83). O Partido da Ordem foi derrotado e a

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eleição alçou ao poder majoritariamente membros da Montanha (MACIEL, 2017, p. 73;


MARX, 2012b, p. 141), resultado que foi fruto da insatisfação das classes dominadas
com o governo burguês (MACIEL, 2017, pp. 73-74; MUSETTI, 2014, pp. 240-241), e
que evidenciou o caráter contraditório da república na medida em que mesmo sob o
despotismo da classe burguesa foi possível que representantes das classes dominadas
fossem eleitos em peso (MACIEL, 2017, p. 74).
Diante dessa nova ofensiva contra seu domínio irrestrito, a burguesia viu
novamente necessidade de agir. Dessa vez, contra o sufrágio universal que colocou sua
oposição em embate direto consigo no parlamento: “O sufrágio universal lhes deu razão
no dia 4 de maio de 1848, no dia 20 de dezembro de 1848, no dia 13 de maio de 1849 e
no dia 8 de julho de 1849. O sufrágio universal tirou a razão de si mesmo no dia 10 de
março de 1850” (MARX, 2012b, p. 143). A solução foi sua revogação no dia 31 de
maio por meio de lei eleitoral (MARX, 2012b, p. 151).
Marx diz:
(...) a base da Constituição é o sufrágio universal. A eliminação do sufrágio
universal é a última palavra do Partido da Ordem, da ditadura burguesa. (...) a
partir do momento em que o teor desse sufrágio, dessa vontade soberana, não
é mais a dominação dos burgueses, que sentido ainda teria a Constituição?
Não seria dever da burguesia regulamentar esse sufrágio de tal maneira que
ele queira o que é razoável, isto é, a sua dominação? Ao revogar
constantemente o poder estatal vigente e voltar a constituí-lo de maneira nova
a partir de si mesmo, o sufrágio universal não estaria revogando toda e
qualquer estabilidade? Ele não estaria questionando a todo instante todos os
poderes vigentes? Ele não estaria destruindo a autoridade? Ele não estaria
arriscando alçar a própria anarquia à condição de autoridade? Depois do 10
de março de 1850, quem ainda duvidaria disso? Ao rejeitar o sufrágio
universal, com que se havia drapeado até ali e do qual extraíra a sua
onipotência, a burguesia admitiu francamente isto: “Nossa ditadura subsistiu
até agora pela vontade popular; de agora em diante, ela precisa ser
consolidada contra a vontade popular” (MARX, 2012b, pp. 143-144).
O pensador afirma que o sufrágio universal é a base da Constituição, no que
sua revogação poderia ser considerada a revogação do próprio texto constitucional
(MACIEL, 2017, p. 74). Temos novamente situação em que a manutenção do
despotismo burguês exige a aberta violação da norma jurídica maior da república,
decorrente da contradição entre este e o parlamentarismo que garante que as classes
dominadas entrem em embate com a classe burguesa na Assembleia Legislativa
(MACIEL, 2017, p. 75). A eleição majoritária de membros do partido da Montanha,
composto por pequeno-burgueses e proletários, trouxe novamente à tona o temor da
burguesia diante do sufrágio universal, o qual permite a contestação da ditadura
burguesa no âmbito parlamentar por parte das classes que se visa subjugar e as quais,
justamente, com as eleições complementares, apareceram em peso no parlamento.
Diante disso, o Partido da Ordem, sem maiores cerimônias, suprimiu o sufrágio
universal em explícita violação da Constituição, esta tida por obstáculo ao exercício de
seu domínio irrestrito. Como coloca Musetti:
Tais batalhas obrigam a burguesia a destruir a bases da expressão pura de
domínio político – a república – para preservar o seu poder social pela
propriedade privada. E isso porque, contraditoriamente, a forma republicana,
ao mesmo tempo em que, de um lado, permite que a facções da burguesia
possam governar conjuntamente, de outro, favorece a intensificação da luta
de classes, tanto por permitir o debate e a liberdade de manifestação e
organização, quanto por possibilitar a compreensão das lutas sociais na sua
forma autêntica. Em circunstâncias de agudização do antagonismo entre as

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

classes, a república é obrigada a contrariar seus princípios constitucionais


para garantir a ordem social que a sustenta, o modo de produção capitalista
(MUSETTI, 2014, p. 242).
Para o autor brasileiro, somente as dinâmicas entre as classes sociais na
república francesa, em suas relações conflituosas, além do papel do Estado de
manutenção da ordem do capital e do domínio burguês, explicam essa supressão do
sufrágio universal: “A aprovação da lei eleitoral só encontra explicação na análise da
luta de classes, que a identifica como expressão das determinações materiais que
subordinam a política à necessidade de preservação do modo de produção” (MUSETTI,
2014, p. 241).

5. CONCLUSÃO
As análises de Marx sobre o Estado político nos revelaram que este consiste na
cisão entre a vida real dos homens e sua vida numa comunidade ilusória, ao mesmo
tempo em que essa vida real, cuja essência é a sociedade civil-burguesa, subordina o
Estado, mero meio para realização de seus fins. A emancipação política opõe Estado e
sociedade civil-burguesa e os declara indissociáveis nessa relação de subordinação. Seu
fundamento se encontra na sociedade capitalista na medida em que nesta se coloca um
estranhamento que isola o homem das forças sociais, que aparecem como se fossem
independentes dele e a ele opostas.
Marx não para por aí, e analisa as transformações por que passa o Estado na
medida em que a sociedade capitalista, que lhe dá base, se consolida, no que a classe
burguesa, dominante, se torna força preocupada com a manutenção dessa nova ordem, e
a partir do que o Estado se encontra diretamente subordinado a seus interesses.
No que toca a república francesa proclamada em 1848, a consequência disso é
um regime político que nasce da repressão à tentativa de subversão da ordem do capital
na Insurreição de junho. Seu berço foi contrarrevolucionário, e o que se seguiu foi um
regime que só podia ser o domínio irrestrito da classe burguesa alçada ao poder político.
Ao mesmo tempo, contudo, no âmbito político, mantinha-se uma república, garantidora
de liberdades, e, por isso, incompatível com esse domínio, motivo pelo qual o traço
distintivo do regime francês foi a relação contraditória entre despotismo burguês e
forma política republicana.
O ordenamento jurídico francês se inseriu nessa sociedade, e suas formas
concretas devem ser explicadas a partir dela. Primeiramente, decretou-se o estado de
sítio para garantia da ordem no momento de redação da Constituição: o direito
republicano só pode nascer com a anulação das próprias fórmulas republicanas. Em
seguida, vem à luz um texto constitucional que, ao mesmo tempo, prevê liberdades e a
possibilidade de revogação dessas mesmas liberdades quando gozadas pelas classes
dominadas e representarem, aos olhos da burguesia, ameaça a seu domínio. Sob o
Partido da Ordem, houve a aberta violação à Constituição quando se reprimiu a
manifestação pacífica da Nova Montanha, partido de oposição, que se colocou
justamente em defesa do texto constitucional. A burguesia que comanda o Estado se
mostrou disposta a desrespeitar o ordenamento jurídico e reprimir atos em sua defesa,
tidos por ameaça a seu despotismo, mesmo que compatíveis com a ordem do capital.
Por fim, revogou-se o sufrágio universal, uma vez que este possibilitava que as classes
dominadas elegessem representantes para o parlamento, a partir do que poderiam entrar
em embate direto com a burguesia e colocar seu domínio em cheque. A
incompatibilidade entre despotismo burguês e regime político republicano teve por
consequência a prevalência do primeiro e a violação aberta da Constituição francesa.

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Explicitaram-se, com isso, as consequências dessa relação contraditória para o


ordenamento jurídico da república social francesa.

REFERÊNCIAS BIBILIOGRÁFICAS
CHASIN, José. Marx – A determinação ontonegativa da politicidade.
Verinotio – revista on-line de filosofia e ciências humanas, n. 15, ano VIII, pp. 42-59,
abr. 2013.
MACIEL, Lucas de Oliveira. A relação entre Estado e sociedade civil-
burguesa na França republicana: Constituição, estado de sítio e ditadura de classe
na obra de Karl Marx. 2017. 87 fls. Monografia apresentada como trabalho de
conclusão de curso de graduação em Direito – Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte, 2017.
MARX, Karl. A Constituição da república francesa aprovada em 4 de
novembro de 1848. In: Novos Rumos, Marília, v. 49, n. 2, pp. 31-40, Jul.-Dez., 2012a.
______. A guerra civil na França/Karl Marx; seleção de textos, tradução e
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- 1.ed. - São Paulo : Boitempo, 2012b.
______. Crítica do Programa de Gotha / Karl Marx; seleção, tradução e notas
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2004.
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Nélio Schneider; prólogo Herbert Marcuse]. – São Paulo: Boitempo, 2011b.
______. Sobre a questão judaica / Karl Marx; apresentação [e posfácio]
Daniel Bensaïd; tradução Nélio Schneider, [tradução de Daniel Bensaïd, Wanda
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______; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente
filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do
socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846) / Karl Marx, Friedrich
Engels; supervisão editorial, Leandro Konder; tradução, Rubens Enderle, Nélio
Schneider, Luciano Cavini Martorano. – São Paulo: Boitempo, 2007.
______. Manifesto comunista. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich; LÊNIN;
Vladímir Ilitch. Manifesto Comunista; Teses de abril / Karl Marx e Friedrich Engels;
Vladímir Ilitch Lênin; Com textos introdutórios de Tariq Ali. – 1 ed., pp. 21-51, São
Paulo, Boitempo, 2017.
MUSETTI, Felipe Ramos. Da república social à ditadura bonapartista: a
crítica da política em O 18 de brumário de Luís Bonaparte. 2014. 290 f. Dissertação
(Mestrado em Filosofia) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo,
2014.
SARTORI, Vitor Bartolleti. Apontamentos sobre estado, sociedade civil-
burguesa e revolução em Marx. Verinotio – revista on-line de filosofia e ciências
humanas, n. 14, ano VIII, pp. 28-39, out. 2012.

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

A PERSPECTIVA CRÍTICA DA CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS E


DE SUA SISTEMATIZAÇÃO NO BRASIL: UM ESTUDO SOBRE A OBRA
“DIREITO SOCIAL BRASILEIRO” DE CESARINO JÚNIOR

Mateus Henrique Silva Pereira


Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo
Este artigo problematiza a construção dos direitos sociais no Brasil a partir da crítica
marxiana ao direito, para conhecer verdadeiramente o papel realizado por eles no início
do capitalismo industrial no nosso país. Para tanto, utilizou-se de pesquisa documental
mediante revisão de literatura de autores da historiografia, de formuladores dos direitos
sociais e da crítica marxiana ao direito. Após especial ênfase à obra Direito Social
Brasileiro de Cesarino Júnior, foi demonstrada a instrumentalidade ideológica dos
direitos sociais pátrios. Ao final, constatou-se que eles são incapazes de resolver as
mazelas sociais e a necessidade da busca de outros caminhos para a superação da ordem
do capital.
Palavras-chave: Direitos Sociais; Marxismo; Direito Social Brasileiro de Cesarino
Júnior.

THE CRITICAL PERSPECTIVE OF THE CONSTRUCTION OF SOCIAL


RIGHTS AND THEIR SYSTEMATIZATION IN BRAZIL: A STUDY ON THE
WORK “BRAZILIAN SOCIAL RIGHTS” OF CESARINO JUNIOR

Abstract
This article problematizes the construction of social rights in Brazil from the Marxian
critique of law, to truly know the role played by them at the beginning of industrial
capitalism in our country. For that, it was used documentary research by reviewing the
literature of authors of historiography, formulators of social rights and Marxian
criticism of law. After special emphasis on Cesarino Junior’s the Brazilian Social Law,
it was demonstrated the ideological instrumentality of the social rights of the country. In
the end, it was found that they are incapable of solving social ills and the need to search
for other ways to overcome the order of capital.
Keywords: Social rights; Marxism; Brazilian Social Law of Cesarino Júnior.

Introdução

Os estudos realizados sobre o tema de Direitos Sociais no Brasil costumam a


analisá-los como um sistema dado, realizado e perfeito. Tomam suas considerações a
partir da construção já definida pelo mainstream da pesquisa jurídica. Assim, elevam-se
valores universais conquistados no processo de lutas sociais, servindo como garantias
fundamentais elencadas na Constituição a qualquer ser humano através de um Estado
atuante, como o grande ator na efetivação desses direitos.
O presente trabalho não se dirige a essa via de estudos sobre os direitos sociais.
E também não o desmerece por completo. Apenas, o que será aqui desenvolvido, critica
a não reflexão sobre a gênese dos direitos sociais, e por conseguinte, as contingências

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históricas nas quais foram criados tais direitos. Procurando revelar a função do direito
na formação dos mesmos, seus criadores e a quem realmente serviram.
Em especial, trabalhar-se-á com a problematização da construção sistêmica
realizada por um dos grandes autores dos direitos sociais e trabalhistas à época, qual
seja Antônio Ferreira Cesarino Júnior, em sua obra Direito Social Brasileiro.
Para cumprir esse objetivo, será exposta a relação entre o direito e a economia
diante da particularidade da formação do capitalismo brasileiro com o intuito de
esclarecer como o direito atua nesse período da história nacional.
Adota-se a perspectiva crítica marxiana do direito, por meio de uma revisão de
literatura de nomes como Marx, Lukács e Chasin.
Ao final, são apresentadas considerações críticas acerca dos problemas
encontrados na construção dos direitos sociais no Brasil e mais especificamente na obra
de Cesarino Júnior, Direito Social Brasileiro.

2- A RELAÇÃO ENTRE DIREITO E ECONOMIA

Para uma análise real da relação entre direito e economia, busca-se as


condições objetivas do surgimento do direito, indo assim, aos seus problemas de gênese.
A primeira ideia clara é que o direito não nasce do próprio direito, pois ele depende de
outros elementos históricos.
Lukács destaca as formas proto-jurídicas a partir do surgimento da civilização
(pós-comunismo primitivo). Nestas formas proto-jurídicas, o direito não tinha ganhado
especificidade diante da economia, não possuindo heterogeneidade. Diante disso, essas
formas consubstanciavam-se em contingências históricas, necessidades do
desenvolvimento da sociedade e das relações econômicas.
Como exemplo dessas relações envolvendo regulações de uma determinada
sociedade, cita-se a Grécia antiga. Ela baseava-se na contradição entre gregos livres e
escravos, e entre gregos ricos e gregos pobres. Com o desenvolvimento dessas relações,
Sólon criou uma nova constituição, mas com as diferenças de propriedade, apenas
harmonizando as condições existentes (ARISTÓTELES,s/d).
Percebe-se com este exemplo que a gênese do direito pressupõe objetivamente
as contradições sociais. O direito está associado ao conflito, sendo índice deste. As
contradições sociais são necessárias para a existência daquele. Portanto, resta clara a
limitação do direito para a resolução das contradições sociais já que ele as pressupõem.
Posteriormente, com o advento do capitalismo, o direito adquiriu sua
heterogeneidade. Para Lukács, com a evolução das relações de produção da
humanidade, o direito não consegue apreender as bases econômicas e se torna
heterogêneo, na medida em que ganha especificidade ordenadora de tais relações.
Consolidando a incongruência entre a base econômica e o direito:
(...) O direito é ainda mais nitidamente um pôr do que a esfera e os atos da
economia, já que só surge numa sociedade relativamente evoluída, com o
objetivo de consolidar de modo consciente, sistemático, as relações de
dominação, de regular as relações econômicas entre os homens etc. Basta
isso para notar que o ponto de partida de tal pôr teleológico tem um caráter
radicalmente heterogêneo com relação à economia. Em oposição à economia,
não visa produzir algo novo no âmbito material; ao contrário, a teleologia
jurídica pressupõe todo o mundo material como existente e busca introduzir
nele princípios ordenadores obrigatórios, que esse mundo não poderia extrair
de sua própria espontaneidade (LUKÁCS, 2013, p. 269).

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Nesse sentido, para o autor húngaro, o direito só existe com essa incongruência
(traço ontológico do direito), ele é heterogêneo à economia, tornando-se uma prática
social própria. Ele não nasce como direito, mas torna-se heterogêneo, tendo suas
particularidades e se configura o direito como conhecemos. Cria-se portanto, uma lógica
própria, mas o direito não é autônomo.
Importante frisar que a relação de heterogeneidade entre direito e economia
não são dois momentos distintos, e sim um processo único, segundo o qual se tem o
surgimento e posteriormente a heterogeneidade. As relações materiais econômicas são a
base do direito e a relação econômica tem a preponderância sobre os demais complexos.
Ao buscar a reflexão da gênese do direito, pode-se enxergar melhor o grande
papel realizado pelo direito no capitalismo, o de regulação. Na Crítica ao Programa de
Gotha, Marx já demonstrava a instrumentalidade do direito perante as relações
econômicas, ao dizer “O direito nunca pode ultrapassar a forma econômica e o
desenvolvimento cultural, por ela condicionado, da sociedade”. (MARX, 2012, pags.
32/33).
Outro ponto importante em relação à crítica ao direito e sua descaracterização
referente à base econômica, é a aferição de que o direito atua como ideologia em meio
aos conflitos sociais, ao acomodar as contradições existentes no seio do capitalismo. A
ideologia, de acordo com Ester Vaisman, tem a dimensão de eficácia, na qual ela
engendra movimentos da realidade e a dimensão da duração, no sentido de
profundidade, conseguindo atingir a eficácia em maior medida (VAISMAN, 2010).
Assim, no desenvolvimento dos próximos capítulos, demonstrar-se-á como foi a
participação ideológica do discurso jurídico nas relações sociais da formação do
capitalismo brasileiro.

3- VIAS DE OBJETIVAÇÃO DO CAPITALISMO: A PARTICULARIDADE


BRASILEIRA

Neste tópico será feita as reflexões sobre as vias distintas do capitalismo, em


especial, as especificidades do direito no capitalismo brasileiro.
Como exposto anteriormente, o direito pressupõe as contradições sociais e
paradoxalmente serve como mediação real da luta social, como exemplo cita-se a
jornada de trabalho. A contraditoriedade existe na medida em que ele atua como freio
racional do capital (MARX, 2013), ao estabelecer condições mínimas de salubridade
para o trabalho por exemplo, e ao mesmo tempo a serviço do capital, ao estabelecer os
limites das garantias dos trabalhadores perante os empregadores, colaborando, portanto,
para a perpetuação das relações existentes dentro da ordem do capital.
O direito como conhecemos, desempenha a função de reconhecer os fatos já
postos, não traz novidades e, portanto, é um instrumento mantenedor das relações
sociais dadas, não revolucionário. Nesse sentido, o direito foi importante para o avanço
do capitalismo por meio das legislações garantidoras da acumulação do capital e do
mais-valor relativo, regulamentando a exploração de trabalho e consequentemente,
servindo como ideologia que engendrou o desenvolvimento do capitalismo.
Para a compreensão das relações capitalistas no Brasil, e entre elas as que
envolvem direitos sociais, é mister demonstrar as particularidades da formação do
capitalismo brasileiro, e não buscar um modelo da via clássica (França, Inglaterra) ou da
via prussiana e aplicá-lo ao Brasil para buscar entender esta formação particular.

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Nesse sentido, José Chasin definiu a formação do capitalismo aqui existente


como “capitalismo tardio”. No Brasil não houve a transição existente do feudalismo
para o capitalismo como o capitalismo de via clássica através de uma nova classe social
revolucionária como a burguesia da França e da Inglaterra (CHASIN, 1978).
O modelo do colonialismo desenvolvido aqui foi integrado ao capitalismo
internacional e tendo como classe interna dominante donos de terra que dispunham sua
produção para a agroexportação, aumentando cada vez mais a dominação estrangeira
em terras tupiniquins.
O processo de transição da colônia para o capitalismo se deu mediante algumas
particularidades. Não houve revolução, e sim uma acomodação da exploração já
existente feita pelas classes dominantes conservadoras, sendo denominada, portanto,
como revolução pelo alto.
Apesar de impulsos industrializantes ocorridos no século XIX, foi nos anos de
1930 que se instalou a aliança entre capital estrangeiro e capital interno agroexportador,
culminando no crescimento do capital industrial e o desenvolvimento deste. Destarte,
percebe-se que a formação do capitalismo brasileiro se deu não por um processo
revolucionário, e sim com a continuação da dependência ao capital estrangeiro, a mercê
de suas ideias e distante de uma independência nacional.
A burguesia ascendente não foi capaz de revolucionar e instituir uma nova
ordem dentro do país. Pelo contrário, procurou aliar-se com o capital estrangeiro em
1930, e impediu em 1960 a formação de um capital interno que poderia atingir uma
nova sociabilidade.
Diante desse cenário, os direitos sociais surgiram como uma mediação para
consolidar a acomodação das relações do capitalismo insurgente no Brasil, e para isso,
quem escreveria os direitos sociais seria uma vanguarda da burguesia paulista,
utilizando-os como instrumentos ideológicos a favor da exploração das classes
exploradas feita pelo capital estrangeiro em união às classes dominantes locais.
Para a melhor compreensão de quem seriam os atores participantes na criação
dos direitos sociais e em que medida eles influenciariam nestes direitos, abordar-se-á no
próximo capítulo uma breve contextualização do início da industrialização nacional.

4- A FORMAÇÃO DO EMPRESARIADO INDUSTRIAL NO BRASIL

O tema deste tópico mostra-se de grande relevância para a compreensão da


construção dos direitos sociais no Brasil, principalmente, explorar quem eram as
pessoas que estavam escrevendo eles, como no caso de Cesarino Júnior, e
consequentemente entendê-los de uma forma crítica, distinta do mainstream do direito.
No início do desenvolvimento industrial do país, a indústria paulista,
influenciada pelas ideias de Mussolini na Itália, possuía características fascistas, tais
como a extrema valorização da disciplina e o não investimento na mão de obra da classe
trabalhadora. Em razão desse perfil, o desenvolvimento da indústria nacional foi
atrasado, não enxergando no trabalhador um potencial consumidor de bens,
contrariando assim a própria lógica do capitalismo liberal que mais tarde se
desenvolveria. Nesse diapasão:
(...) A dificuldade dessa ideologia é que ela não põe dinheiro no bolso do
trabalhador. O consumo de artigos adicionais pelo obreiro não se apresenta
ao espírito do empresário como oportunidade para vender mais. Em vez
disso, ele profliga a prodigalidade de operário, ainda que não lhe tenha
aumentado os salários. Se os trabalhadores rurais não comessem tanto,

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calcula, haveria mais carne e mais açúcar para exportar e mais divisas para
ganhar. É muito possível que essa atitude tenha sido, em princípio, a causa do
retardado desenvolvimento do mercado interno no Brasil e da ausência de
interesse, tão amiúde notada pelos observadores pela produção em massa e
pelos pequenos lucros marginais. (DEAN, 1971, p. 87)

Após a chegada de Vargas, as mudanças do Estado brasileiro foram realizadas


em grande medida por meio do instrumento ideológico do complexo jurídico, cita-se
como exemplos na obrigatoriedade do reconhecimento pelo Estado de sindicatos de
trabalhadores somente se estes estivessem vinculados ao próprio Estado, sendo a melhor
maneira para controlá-los, e a criação do Ministério do trabalho.
O processo de regulamentação do direito para dirirmir conflitos, e não resolvê-
los, acentuou-se na concessão de direitos sociais dos trabalhadores àquela época,
consubstanciando o direito como um instrumento para a formação do capitalismo
industrial no Brasil e sua mudança de um conservadorismo fascista para a realização de
aspectos liberais. Dessa maneira, como nota-se em Dean, o direito atua como ideologia:
Em meados de 1932, o Ministério do Trabalho baixou decretos que
regulamentavam o emprego de mulheres na indústria, garantiam os contratos
de trabalho e limitavam a oito horas o dia de trabalho. Conquanto não fossem
postas em vigor com muita severidade e contivessem brechas que permitiam
aos interessados burlá-las facilmente, essas medidas deixaram os sindicatos
em posição muito melhor para negociarem com os seus empregadores.
Disso não se seguiu, contudo, que os operários se sentissem gratos por esses
benefícios ou que os empregadores se mostrassem particularmente
desgostosos. A maneira pela qual o Ministério do Trabalho aplicava e fazia
cumprir os novos regulamentos demonstrava a ambas as partes que o seu
propósito era manter a ordem social existente fazendo concessões aos
trabalhadores para que estes, em troca, se abstivessem de atividades políticas.
A intenção do novo governo foi clara desde o primeiro dos seus decretos
sobre o problema trabalhista. A Lei dos Dois Terços, à primeira vista grande
vitória da causa da salvaguarda do padrão de vida do trabalhador nacional foi
promulgada por motivos muito diferentes, a pedido dos próprios
empregadores. O seu preâmbulo revela a preocupação dos autores com o
custo da alimentação dos desempregados e da necessidade de proporcionar-
lhes serviços públicos e o desejo de evitar a “entrada desordenada de
estrangeiros” que frequentemente contribuem para aumentar a desordem
econômica e a insegurança social”. A lei não só limitava o ingresso de
passageiros de terceira classe e estipulava que dois terços da folha de
pagamento de cada firma se compusessem de trabalhadores brasileiros natos,
desferindo assim um golpe em favor do nativismo: mas também exigia que o
desempregado se registrasse no Ministério do Trabalho, que se encarregaria
de encontrar emprego para ele nas fazendas coagindo destarte a força de
trabalho em favor da fisiocracia oficial (DEAN, 1971, p. 201).

Constata-se nessa passagem, a utilização já nesta época, do discurso do direito


como uma grande arma ideológica dos industriais nacionais por meio das concessões
trabalhistas. O distanciamento da prescrição existente na norma jurídica e sua
consequência real permite à assunção dos direitos sociais como efetivas garantias às
classes sociais exploradas, e ao mesmo tempo, atua na reprodução social existente, que
somente interessa às classes sociais exploradoras.
Dessa forma, no próximo capítulo nos deteremos na análise da construção dos
direitos sociais no país na obra de Cesarino Júnior, grande expoente na criação das leis
trabalhistas e dos direitos sociais.

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5- DIREITOS SOCIAIS EM CESARINO JÚNIOR: A EXPRESSÃO DO


DISCURSO IDEOLÓGICO DO DIREITO

Neste tópico, abordar-se-á a questão da formação dos direitos sociais,


dimensionando-os a partir da obra de Cesarino Júnior, autor reconhecido em razão de
sua influência na construção dos direitos trabalhistas no Brasil, sendo um dos principais
nomes atuantes no ramo de referidos direitos.
Aqui, analisar-se-ão as disposições de Cesarino Júnior referentes a tais direitos,
e posteriormente, refletir-se-á sobre elas, tendo por base as críticas expostas acima sobre
as limitações inerentes do direito e sua forma de acomodação existente na formulação
dos direitos sociais em nosso país.
Em sua obra Direito Social Brasileiro, Cesarino Júnior buscou criar uma
sistemática em torno dos direitos sociais e as legislações que os materializavam. Logo
no primeiro capítulo, ele define Legislação Social como:
(...) conjunto das medidas legais e regulamentares visando a proteção dos
salariados de um modo particular, e de um modo geral de todas as pessoas
economicamente débeis (CESARINO JÚNIOR, 1957, p. 15)

De acordo com o autor as medidas protetivas criadas teriam por objetivo a


resolução da questão social por meio do melhoramento das condições dos operários
industriais cada vez mais crescentes na época. Merecendo, portanto, um amparo dos
órgãos oficiais, principalmente o Estado.
Mais a frente o autor, com fulcro na construção de sua dogmática, defende que
as leis sociais tem por grande finalidade a proteção ao economicamente mais fraco, e
elas ainda perseguiriam outros valores importantes como a paz social, o interesse geral e
o bem comum (CESARINO JÚNIOR, 1957).
Estes valores acima citados, o professor da USP já os defendia anteriormente
em um artigo seu denominado de Sobre o conceito de Direito Social. Ele dimensionaria
a importância dos direitos sociais não somente no âmbito dos economicamente mais
fracos, mas também aos economicamente mais fortes, deixando claro o papel deste
instituto como um instrumento de harmonização da sociedade, senão vejamos:
(...) Mas então – dir-se-á – o Direito Social é um direito de classe, um
privilégio, e como tal injusto. Nada menos certo. O fim imediato das leis
sociais é a proteção aos fracos, concordamos. Mas não é o único. Por
intermédio dessa proteção o que o Estado realmente visa é assegurar a paz
social, o interesse geral, o bem comum. E ninguém poderá negar que,
estabelecendo a paz social, pela proteção que dispensa ao pobre, o Direito
Social está no mesmo passo protegendo o rico, pois enquanto garante a
subsistência de um, assegura a tranquilidade de outro (CESARINO JÚNIOR,
1941, p. 15).

Nesse sentido, ele elege a ordem pública como um princípio essencial ao


Direito Social. Percebe-se, portanto, que tais definições corroboram para a acomodação
das relações sociais existentes à época, servindo como instrumento mantenedor da
ordem vigente no início do capitalismo industrial nacional, sem qualquer disposição de
ultrapassar os limites postos diante dos trabalhadores, confirmando assim, o caráter
instrumental dos direitos sociais do capital.
Em sua fundamentação do direito social, Cesarino Júnior comete erros graves
sobre diversas construções teóricas de autores que tocam na temática social. Aqui,
destaca-se a vulgata sobre Marx, ao afirmar que na teoria marxista existe a ideia de que

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o fator econômico é o único que tem importância na evolução da humanidade,


denominando isto de materialismo histórico (CESARINO JÚNIOR, 1957). Percebe-se o
total desconhecimento do autor perante a obra marxiana, pois este trabalhava com a
ideia de totalidade dos diversos complexos existentes e suas influências na sociabilidade
capitalista, tais como a religião, a política e o direito. Portanto, o que o pensamento
marxiano expõe é a preponderância do complexo econômico diante dos demais
complexos existentes, mas não só a sua atuação que é importante nas relações sociais,
não existe um mero economicismo na análise da realidade neste pensamento.
No fim da fundamentação do direito social, o autor em comento, defende um
Socialismo de Estado, na medida em que julga a melhoria da situação econômica não se
deve fazer por meios violentos ou revolucionários, mas gradativamente, por medidas de
caráter legislativo, que farão desaparecer pouco a pouco a desigualdade entre os homens
(CESARINO JÚNIOR, 1957). Nesta passagem do autor, fica claro a defesa por uma
harmonização dos conflitos sociais, e um posicionamento contrário frente a
possibilidade de uma revolução das formas materiais de produção. Destarte, infere-se
forte posicionamento da “vanguarda” da “ciência jurídica”, e em especial de Cesarino
Júnior, e de seus direitos sociais, para a acomodação social, tendo por base standarts
valorativos gerais e abstratos como paz social, interesse geral, bem comum, incapazes
de realizar a efetiva transformação social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo buscou criticar a formação do discurso dos direitos sociais no


capitalismo industrial brasileiro a partir do pensamento marxiano referente a relação
entre economia e direito.
Verificou-se que o direito tal como conhecemos pressupõe as contradições
sociais existentes na ordem econômica do capital, possuindo heterogeneidade perante à
economia, conforme Lukács. E por isso, é incapaz de resolver os conflitos inerentes a
essa forma de sociabilidade.
Pertinente se faz a análise de José Chasin sobre a particularidade do
capitalismo brasileiro, sendo que o período de transição para este não se deu de forma
revolucionária, e sim por acomodações desejadas pela união entre o capital estrangeiro e
classes nacionais historicamente dominantes. Em razão destas acomodações, os direitos
sociais criados nesse interim, serviram de mediação necessária para a manutenção da
ordem estabelecida pelos interesses estrangeiros. Sendo que os escritores de tais direitos
representavam uma vanguarda da burguesia.
Mostrou-se também a utilização do direito como discurso ideológico no
período estudado (1917-1945), em que o direito por meio de suas concessões
trabalhistas e sociais garantia a reprodução da ordem estabelecida pelas classes
dominantes sobre as classes dominadas.
Por fim, este artigo problematizou a formulação da sistemática jurídica dos
direitos sociais na obra Direito Social Brasileiro de Cesarino Júnior, com seus standarts
de paz social, de bem comum, mostrando que a vanguarda criadora dos direitos sociais
nacionais estava interessada, e cumpriu o seu papel de manutenção das relações sociais
de produção, mesmo diante do novo processo de industrialização vigente no Brasil e de
uma possibilidade de superação destas mesmas relações.

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A exposição também trouxe a demonstração materializada na obra Direito


Social Brasileiro de Cesarino Júnior, das limitações inerentes aos direitos sociais,
conferindo sua impossibilidade de resolver os problemas existentes à ordem capitalista.
Portanto, com a verificação desta incapacidade histórica dos direitos sociais,
resta clara que a superação das mazelas do capital não se dará via direitos sociais.
Necessário assim, a atividade por outros caminhos que aqui não cabe maiores reflexões,
do que depositar esforços na defesa destes direitos sociais do capital.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES, Constituição dos atenienses. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,


s/d.

CESARINO JÚNIOR, A.F. Direito social brasileiro. São Paulo: Freitas Bastos, 1957.

CESARINO JÚNIOR, A.F. A declaração dos direitos sociais na futura Constituição


Brasileira In Revista da Faculdade de Direito da USP, v.41(1946). Disponível em:
http://www.revistas.us p.br/rfdusp/article/view/66059. Acesso em: 18.mar.2017.

CESARINO JÚNIOR, A.F. Sobre o conceito de Direito Social In Revista da Faculdade


de Direito da USP, v. 36, n. 1-2 (1941). Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/ 65966/68577. Acesso em 15.mar.2017.

CESARINO JÚNIOR, A.F. Evolução no Direito Social Brasileiro In Revista da


Faculdade de Direito da USP, v. 47 (1952). Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/ 66158/68768. Acesso em: 17.mar.2017.

CHASIN, J. O integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo


hipertardio. São Paulo: Ciências Humanas, 1978.

DEAN, W. A industrialização de São Paulo (1880-1945). São Paulo: Difusão Europeia


do Livro, 1971.

LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social. vol. 2. São Paulo, 2013.

MARX, K. Crítica do programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.

MARX, K. O capital. vol. 1. São Paulo: Boitempo, 2013.

PUPO NOGUEIRA, O. A indústria em face das leis do trabalho. São Paulo: Escolas
Profissionais Salesianas, 1935.

VAISMAN, E. Ideologia e sua determinação ontológica. Verinotio, Belo Horizonte,


n.12,2010. Disponível em: http://www.verinotio.org/conteudo/0.49365995032122.pdf.
Acesso em: 30.jan.2017.

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DE MARX A WOLFGANG STREECK: DA CRÍTICA À ECONOMIA


POLÍTICA AO CAPITALISMO DEMOCRÁTICO

Matheus Henrique Evangelista Felício


Universidade Federal de Lavras
mhefelicio94@gmail.com

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo correlacionar a crítica à economia


política feita por Karl Marx no séc. XIX, ainda no germe do capitalismo com o artigo
“As Crises do Capitalismo Democrático” de Wolfgang Streeck no sentido de obter
conceitos chaves do marxismo como a produção de “mais-valor”, vigora atualmente na
nova faceta do capitalismo, as tensões entre capitalismo e democracia, de Estado de
direito a sistema econômico. As expectativas normativas da sociedade no direito e na
democracia como contrapeso ao sistema econômico se frustram, na medida em que, o
mercado compra o sistema político, e o direito em uma espécie de atualização, justifica
o modus operandi do sistema econômico. Streeck nada mais atualiza Marx que em cem
anos depois ainda vigora a lei do sistema econômico, de um modo peculiar, conciliando
democracia e capitalismo.
PALAVRAS-CHAVE: Mais valor; Crises; Capitalismo Democrático; Direito;
Economia.

FROM MARX TO WOLFGANG STREECK: FROM CRITIQUE OF


POLITICAL ECONOMY TO DEMOCRATIC CAPITALISM

ABSTRACT: The present article aims correlate the criticism of political economy done
for Karl Marx in XIX century, in beginning of capitalism with the article “The crisis of
Democratic Capitalism” of Wolfgang Streeck with goals to get key concepts of marxism
as the production of surplus-value work, nowadays it exist in a new aspect of capitalism,
the tensions between capitalism and democracy, of State of law with economic system.
The normative expectations of society in law and democracy as counterbalance to the
economic system that has failed, because the market buys the political system, and the
law is a kind of updating, justifying the modus operandi of the economic system.
Streeck only updates Marx who in one hundred years after still works the law of
economic system, in a peculiar way, conciliating democracy and capitalism.
KEY-WORDS: Surplus value; Crisis; Democratic Capitalism; Law; Economy.

I - INTRODUÇÃO

Não é recente dizer que o capitalismo assume novos modelos e formatos em


sua ampliação mundial, também não o é, dizer que ontologicamente ele é permeado de
contradições internas. Porém, há mais de duzentos anos o sistema capitalista de
produção em seu fundamento principal, mantém certos aspectos intocáveis para sua
expansão em escala global, a esses aspectos - os que geram fonte de riquezas aos
capitalistas, sendo que, pela teoria atual liberal a tendência era de que também refletisse
no resto da população1 - o capitalismo o mantém como sagrado, assim como a arca da
aliança era para os judeus, de modo que como se vê em capítulos posteriores, as

1
Ver: BAUMAN, Zygmunt. A riqueza de poucos beneficia todos nós?. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

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expectativas da sociedade em um sistema econômico que seja justo e igual, permeado e


controlado pelo direito e pela democracia, se frustram no passar do tempo.
De certo que o capitalismo se renovou não resta dúvidas, a financeirização do
mercado, as especulações, as tendências ultramodernas de moedas virtuais, o mercado
digital, a informatização, tudo isso demonstra que a tendência geral mundial é de cada
vez mais ter a economia como centro, e, sua expansão ser global não só
economicamente, mas também politicamente, culturalmente, como diz Octávio Ianni:

Primeiro, o capitalismo expande-se continuamente pela geografia e história


das nações e continentes, atravessando mares e oceanos. (...) Revoluciona
contínua ou periodicamente as condições sociais, econômicas, políticas e
culturais de povos e civilizações não capitalistas ou não ocidentais. (...) Sob
certos aspectos, pode-se dizer que o Novo Mundo, a África, a Ásia e a
Oceania que conhecemos são invenções do capitalismo, sempre concebido
como um modo de produção material e espiritual, como um processo
civilizatório universal.2

A esse processo de expansão capitalista, todas as suas desigualdades e mazelas


o acompanham, por onde passa, o rastro de má distribuição de renda se fixa e, isso é
próprio do sistema de produção, ele se mantém pela desigualdade. A sociedade em geral
de algum modo a todo esse processo de desigualdade tentou contrapô-lo e fixar
parâmetros de liberdade, igualdade e justiça distributiva. No entanto, os meios por ela
utilizados não foram suficientes. Wolfgang Streeck mostra muito bem que as tentativas
de atacar a gênese do capitalismo, a sua produção de mais-valor, foram usurpadas pelo
mercado econômico. A sociedade civil então fica a mercê da própria sorte, a sociedade
se isola não por serem ineficazes seus meios de contraposição ao modelo econômico em
sua atuação ou por seus meios serem errados, mas por não entender que eles também
fazem parte do sistema, tarefa que cabe aos críticos do direito, da economia e da
política, mostrá-los que dialeticamente, uma coisa que faz parte de algo, que o constitui,
não se pode em mesmas condições ser contra.
A isto este presente artigo tem a tarefa de demonstrar. Apresentar como se
constrói primeiro a crítica de Karl Marx, ao que se chama de economia política, e
mostrar de modo peculiar como funciona o sistema capitalista, suas facetas e intenções.
Por outro lado, trazer a concepção de Wolfgang Streeck acerca do que ele determinou
de capitalismo democrático, um período datado na historiografia como de grande
avanço social e econômico. As tensões entre democracia e capitalismo, suas
contradições - muitos dizem em termos semânticos - e complicações, num mundo
revestido de caráter privativo liberal. É esta a tarefa deste artigo, mostrar porque se
frustram e como o capitalismo se reinventa conciliando direito, democracia e economia,
sem perder a essência geral, a produção de mais-valor.

II - TEORIA DO VALOR EM KARL MARX

Se avaliarmos numa perspectiva histórica, Karl Marx só tem importância


histórica a partir das obras de grandes liberais clássicos, liberais esses que tem como
principais nomes Adam Smith e David Ricardo. Sem eles e pela profunda admiração a
eles de Marx, não seria possível hoje conceber a crítica à economia-política em moldes
tão evoluídos, tanto filosoficamente, quanto economicamente.

2
IANNI, Octávio. A sociedade global. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996. p. 53.

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Um evento novo que surgia no séc. XVIII em diante, era estranho aos
economistas, à origem das riquezas, de como era possível à riqueza gerar, ou produzir.
Diante disso, os liberais clássicos em suas análises concluíram que o fundamento de
riqueza de uma nação era pelo trabalho, ou seja, a constante do trabalho efetivado era
fundamento de sua riqueza, só se gera riqueza por trabalho, é um elemento objetivo que
circunda. Diferentemente dos Fisiocratas que entendia que a base, a riqueza de uma
nação se dava pelo desenvolvimento agrícola, pelo desenvolvimento que a terra
produzia, e assim se media a quantidade de potencial econômico com que uma
determinada sociedade tinha importância. Os liberais clássicos, a partir da terminologia
de que a riqueza das nações e sociedade se dava pela constante do trabalho efetivado,
em termos práticos, significava um modelo justo de competição, quem trabalhava mais,
como consequente, gerava mais riqueza, e o inverso era igualmente aplicado, quem
trabalha menos teria como consequência menor quantidade de riqueza. Isso dado, ainda
não resolvia o problema de que o modelo econômico liberal de justa competição e livre
mercado atravessavam sempre pela contradição de que enquanto uns trabalhavam para
tentar gerar riqueza, outros, sem muito esforço, manifestava riqueza absurdamente
maior. A desigualdade era justificada à época, pois o argumento que se assumia era de
que, se manifesta muita riqueza, consequentemente efetivou muito trabalho. É nesse
ponto que reside à crítica de Karl Marx, ele, a partir dos conceitos de valor como
trabalho, expande essa ideia a termos que os clássicos não passaram, pois é nesse ponto
que reside a diferença questionada entre poucos com muito e muitos com pouco.
Da transição do medievo para a modernidade três figuras são importantes para
a compreensão, sendo a separação do trabalhador com a terra, com os meios de
produção e recursos de subsistência. Antes, todos esses produtos ou coisas eram de
propriedade do trabalhador, agora na modernidade não, era impossível para um
camponês sustentar o ônus de competir com um industrial que desfrutava das melhores
ferramentas de trabalho e com o trabalho racionalizado mecânico, produzir em grande
escala em tempo recorde a época. Emerge nesse sentido a figura do trabalhador livre, ou
seja, aquele despossuído de relação com o senhor feudal. Em síntese, separação do
trabalhador e suas condições objetivas de trabalho, emerge o termo separação entre
trabalho e capital. Assim, as ferramentas de trabalho eram consideradas estranhas ao
trabalhador:

(…) na medida em que a figura do trabalhador foi despojada de suas


condições objetivas de trabalho, aquilo que é por ele produzido aparece-lhe
como algo que lhe é estranho, que pertence, em verdade, a outrem e que, por
conseguinte, só pode ser por ele apropriado por intermédio de uma troca,
como mercadoria a ser trocada; (...)3

Logo, se o trabalhador despossuído de condições objetivas de trabalho,


consequentemente o produto que por ele era gerado fica distante, e passa agora a
pertencer a outrem. A propriedade do bem não mais lhe pertence. Sendo assim, o que
resta para o trabalhador ao fim de todo esse processo é nada mais nada menos do que a
sua mão de obra de serviço. Se, antes o trabalhador vinculado ao senhor feudal possuía
as condições objetivas de trabalho, ele usufruía de sua propriedade, agora, com a figura

3
GOMES, David Francisco Lopes. A constituição de 1824 e o Problema da Modernidade. Tese de
doutorado - UFMG. Belo Horizonte, pág. 191. 2016.

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do trabalhador livre, sem as condições objetivas de trabalho, o que lhe resta apenas é a
sua capacidade de produzir o bem - que não será seu - ou seja, a sua força de trabalho.
A mercadoria para Marx perpassa por uma longa discussão sobre o que a
compõe. Vai dizer primeiro que “A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma
coisa que, por meio de suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de um tipo
qualquer”4. A mercadoria deve ser analisada sob o ponto de vista da qualidade - a
utilidade do bem - e a quantidade. Valor de uso, aquele que expressa à qualidade do
bem a sua utilidade e o Valor de Troca. Consequentemente, chega-se a outro conceito
que é o valor, como veremos. Como valor de troca é aquilo que é trocável, é o valor
embutido em cada produto que permeia a troca entre eles, por exemplo, certa
quantidade de trigo é trocada por y de seda ou z de soja, isso revela que na troca, é valor
quantitativo que se leva em consideração, ou seja, expressa valor em sentido numeral,
não objetivo e dado. A insuficiência do conceito de valor de troca é dada então, pois se
trocarmos certo produto com outro, mostra-se que há certa quantidade de grandeza
equivalente entre ambos, tanto um produto quanto o outro é permeável por outro
conceito que permite trocá-los equivalentemente:

Qualquer que seja sua relação de troca, ela é sempre representável por uma
equação em que uma dada quantidade de trigo é igualada a uma quantidade
de qualquer de ferro, por exemplo, 1 quarter de trigo= a quintais de ferro. O
que mostra essa equação? Que algo comum e de mesma grandeza existe em
duas coisas diferentes, em 1 quarter de trigo e em a quintais de ferro. Ambas
são, portanto, iguais a uma terceira, que, em si mesma, não é nem uma nem
outra. Cada uma delas, na medida em que é valor de troca, tem, portanto, de
ser redutível a essa terceira.5

O valor de troca é redutível a um terceiro, o valor. Se retirarmos toda a


utilidade de um bem, ele não é mais um bem útil, mas mantém certa quantidade de
trabalho que Marx vai chamar de trabalho humano abstrato:

Mas mesmo o produto do trabalho já se transformou em nossas mãos. Se


abstraímos seu valor de uso, abstraímos também os componentes
[Bestandteilen] e formas corpóreas que fazem dele um valor de uso. O
produto não é mais uma mesa, uma casa, um fio ou qualquer outra coisa útil.
Todas as suas qualidades sensíveis foram apagadas. E também já não é mais
o produto do carpinteiro, do pedreiro, do fiandeiro ou de qualquer outro
trabalho produtivo determinado. Com o caráter útil dos produtos do trabalho
desaparece o caráter útil dos trabalhos neles representados e, portanto,
também as diferentes formas concretas desses trabalhos, que não mais se
distinguem uns dos outros, sendo todos reduzidos a trabalho humano igual, a
trabalho humano abstrato.6

A mercadoria então se funda de duas características essenciais, o valor de uso,


que dá utilidade pro bem e o valor, essa quantidade de trabalho abstrato que permeia a
troca de mercadorias, ou seja, a quantidade de trabalho médio efetivado em determinado
produto. Em síntese, para Marx toda mercadoria há valor de uso e valor. O que disso
reflete na modernidade? Reflete que levado por Marx às consequências últimas, a
categoria valor-trabalho vai adotar outro significado do que era nos liberais clássicos, a

4
MARX. O Capital, Livro I. 2013, pág. 113.
5
MARX, O Capital, Livro I. 2013, pág. 115.
6
MARX, O Capital, Livro I. 2013, pág. 116.

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riqueza das nações perpassa agora por uma troca injusta da mercadoria força de trabalho
à mercadoria vendida expressa em valor do produto que o próprio trabalhador realizou.
Se, a lei geral das trocas reside a equivalência, ou seja, determinado produto só
é trocado por outro produto se em ambos há minimamente uma equivalência justa. Um
produto só pode ser trocado por outro se há a mesma quantidade de valor em ambos.
Há, nessa perspectiva de que os objetos trocados por dinheiro residem a lei das trocas:
M-D-M, ou seja, Mercadoria que é trocada por Dinheiro, e que de novo troca-se por
Mercadoria, e assim se segue infinitamente. Nas trocas em geral o processo é recorrente,
uma mercadoria é trocada por dinheiro que troca-se outra mercadoria, assim
sucessivamente, porém se a lei geral de equivalência das trocas é mantida, não se
explica por agora a origem das riquezas, ou como se gera riqueza, há eventualmente
discordância com relação a preço, que é outra categoria, e que de modo algum se
confunde com valor das mercadorias. Se as trocas infinitas de M-D-M há equivalência
entre um e outro, não se pode retirar daí a origem da riqueza, mesmo se alterasse a
ordem para D-M-D.
Desse quadro, sem tem como conclusão que só se pode conceber riqueza, se
nesse processo de D-M-D haja um desvio, ou seja, que haja uma mercadoria que suporte
gerar mais dinheiro do que ela foi comprada. Nesse contexto da nossa argumentação os
pontos argumentados se unem. Se, no processo de transição do medievo para a
modernidade o que sobrou para os trabalhadores foi somente a sua força de trabalho, e
se, a mercadoria é objeto de troca na sociedade capitalista de produção para a obtenção
de dinheiro, consequentemente, o que o trabalhador faz com o seu único produto
disponível é vendê-lo em sentidos mercantis a quem detém os meios que dele foi
retirado na transição. Vendê-lo para conseguir dinheiro, e assim, comprar os produtos
por ele próprio produzido, num círculo vicioso. A conclusão lógica de Marx é: a força
de trabalho é também uma mercadoria. Se ela é mercadoria, ela segue a lógica descrita
anteriormente, a mercadoria carrega dois elementos, o valor de uso e valor. E não
somente, a mercadoria força de trabalho é a mercadoria que suporta ser comprada a
valor inferior do que o produto que ela produz. É comprada por menos e produz um
produto de valor maior. O que em primeiro momento justificaria agora a alteração no
quadro D-M-D em que suporta a riqueza, ficaria assim D-M-D+X.
Assim, como uma mercadoria qualquer, a força de trabalho é valorada pelo
tempo de trabalho médio gasto para produzi-la, o conceito de valor, descrito acima. E
qual seria então o tempo de trabalho médio para produzir uma mercadoria força de
trabalho? Para Marx, aí reside o essencial, o tempo médio de trabalho gasto na força de
trabalho são os recursos de subsistência, ou seja, aqueles que garantem a força de
trabalho, a pessoa a ser valorada como mercadoria, vide:

O valor da força de trabalho, como o de todas as outras mercadorias, é


determinado pelo tempo de trabalho necessário para a produção – e,
consequentemente, também para a reprodução – desse artigo específico.
Como valor, a força de trabalho representa apenas uma quantidade
determinada do trabalho social médio nela objetivado. A força de trabalho
existe apenas como disposição do indivíduo vivo. A sua produção pressupõe,
portanto, a existência dele. Dada a existência do indivíduo, a produção da
força de trabalho consiste em sua própria reprodução ou manutenção. Para
sua manutenção, o indivíduo vivo necessita de certa quantidade de meios de
subsistência. Assim, o tempo de trabalho necessário à produção da força de
trabalho corresponde ao tempo de trabalho necessário à produção desses
meios de subsistência, ou, dito de outro modo, o valor da força de trabalho é

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o valor dos meios de subsistência necessários à manutenção de seu


possuidor.7

Ao submeter a força de trabalho humano num processo de produção qualquer,


o capitalista espera que o valor da mercadoria força de trabalho seja inferior ao valor do
produto por ela produzida. Ao receber o produto da força de trabalho com valor maior
do que a mercadoria que o capitalista comprou a força de trabalho gera-se então o mais-
valor, aquilo que é para Marx o motor do sistema capitalista de produção. Sob a
terminologia de mais-valor ou mais-valia, podemos conceituar como: quantidade
lucrativa recebida pelo capitalista no qual a obtêm comprando a mercadoria força de
trabalho por um valor e que, recebe como produto da atuação dessa mercadoria – força
de trabalho - um valor maior, ou seja, um mais-valor.
Marx então consegue explicar e esgotar as discussões da origem das riquezas,
em uma argumentação fantástica, expõe a fragilidade de um sistema e explica não
somente a riqueza, mas principalmente a desigualdade construída nesse sistema
econômico, que podemos dizer, injusto:

Com o aumento da força produtiva do trabalho, o preço da força de trabalho


poderia cair continuamente, acompanhado de um crescimento simultâneo e
contínuo da massa dos meios de subsistência do trabalhador. Relativamente,
porém, isto é comparado com o mais-valor, o valor da força de trabalho
diminuiria continuamente, ampliando, assim, o abismo entre as condições de
vida do trabalhador e as do capitalista.8

Como consequência, temos que o modo de produção capitalista, aquele que


sempre busca a produção de mais-valor, é ele o critério adjetivador de uma sociedade
moderna. Nesse peculiar David Francisco Lopes Gomes vai dizer:

(...) O que importa neste ponto é que sua conceituação emerge como a
questão fundamental que se põe “no umbral da sociedade moderna”. A
definição dos conceitos que revelam a lógica interna do modo de produção
capitalista – como modo de produção constante de mais-valor – só pode
assumir uma tal fundamentalidade para a porta de entrada em direção à
sociedade moderna se esta, como sociedade moderna, puder ser definida
como sociedade capitalista. A sociedade moderna não seria somente uma
sociedade que corresponde ao modo de produção capitalista, mas uma
sociedade cujos traços caracterizadores são determinados por esse modo de
produção.9

Para as sociedades entrarem no rol de sociedades modernas, elas devem seguir


traços desse modo de produção, o modo de produção de mais-valor. E essa lógica de
produção age como sistema em todos os setores da sociedade, vai dizer Marx:
“Religião, família, Estado, direito, moral, ciência, arte etc., são apenas formas
particulares da produção e caem sob a sua lei geral”10. Afetada esferas da vida, a
tendência geral da sociedade é contrapô-lo.

7
MARX. O Capital, Livro I. 2013, pág. 245.
8
MARX. O Capital, Livro I. 2017, pág. 590.
9
GOMES, David Francisco Lopes. A constituição de 1824 e o Problema da Modernidade. Tese de
doutorado - UFMG. Belo Horizonte, pág. 199. 2016.
10
MARX, 2008, pág. 106 apud GOMES, 2016, pág. 200.

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Com o desenvolvimento do capitalismo e sua produção expandida, a sociedade,


digo os que vendem sua força de trabalho, procurou de alguma maneira frear toda essa
lógica do sistema de produção, que produz desigualdades. Podemos citar a soberania
popular afunilada pela democracia, o direito, com a criação no séc. XX do direito do
trabalho, a constituição de Weimar numa perspectiva social e várias outras garantias
sociais, que de algum modo barrasse a expansão capitalista a partir do séc. XIX. Mas a
mais evidente época em que se conciliaram ambos, capitalismo e democracia foram no
pós-guerra - segunda guerra. A continuação não poderia ser feita por Karl Marx, trago
Wolfgang Streeck para mostrar como se deu e rompeu a relação de fundo entre capital e
trabalho.

III - O CAPITALISMO DEMOCRÁTICO DE WOLFGANG STREECK

Não é de hoje que capitalismo e democracia não se combinam, também não é


de hoje que muitos autores se debruçam sobre o tema, a opção por Wolfgang Streeck é
pela clareza metodológica e melhor conceituação dessa relação. Conceituamos acima
que o modelo capitalista é o modelo de procura e produção constante de mais-valor. E,
podemos entender aqui como democracia como um modelo em que as opções políticas
de uma sociedade sejam decididas pela regra da maioria. Do termo democracia, outros
conceitos surgem como igualdade, liberdade, justiça, etc., sendo assim, no início do séc.
XX, a democracia já avançada se viu em conflito com o sistema de produção capitalista.
As expectativas da sociedade, em uma sociedade efetivamente democrática e com
pretensões de justiça, liberdade e igualdade, não poderia dar certo com capitalismo, que
pressupõe desigualdade:

Na verdade, creio que não os trente glorieuses, mas as várias crises que se
seguiram representam a condição normal do capitalismo democrático — uma
condição pautada por um conflito endêmico entre mercados capitalistas e
políticas democráticas, que recrudesceu com o término do alto crescimento
econômico dos anos 1970.11

Para que, capitalismo e democracia, sem o perigo de um abolir o outro - a


maioria o mercado e o mercado a democracia - era necessário um controle político
amplo de políticas econômicas “a nacionalização de empresas e setores essenciais ou
um modelo de “cogestão” que incluísse os trabalhadores, como na Alemanha” 12. A
posição do mercado foi que a esse tipo de conciliação - submeter o mercado a controle
político - não era necessário, pois os mesmos objetivos do Estado com essa atitude
seriam obtidos pelo mercado em longo prazo se deixado livre em sua atuação, objetivos
esses o pleno emprego e justiça social. O capitalismo deixado à mão de políticos
descomprometidos com a agenda, digo, produtiva de mais-valor acarretaria problemas
estruturais graves. Para funcionar de maneira adequada o capitalismo requer:

políticas econômicas pautadas por normas, proteção de mercados, direitos de


propriedade constitucionalmente resguardados de interferência política
discricionária; autoridades regulatórias independentes; bancos centrais
vigorosamente protegidos de pressões eleitorais; e instituições internacionais

11
STREECK, 2012, pág. 36.
12
Ibidem, pág. 36.

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— como a Comissão Europeia ou o Tribunal de Justiça europeu — que não


tenham de se preocupar com reeleição popular.13

Então, a fórmula que guiou os anos pós-guerra de junção entre democracia e


capitalismo, o chamado Capitalismo Democrático foi para Wolfgang Streeck que os
trabalhadores aceitavam os mercados econômicos e seu direito de propriedade e o
mercado a democracia política, vide:

(...) implicava essencialmente a aceitação dos mercados capitalistas e os


direitos de propriedade pela classe trabalhadora organizada em troca de
democracia política, o que lhes possibilitava contar com seguridade social e
com a melhoria constante de seu padrão de vida.14

Com isso, os anos duradouros do Capitalismo Democrático sobreviveram


silenciosamente. O crescimento de demandas sociais exigidas pela sociedade, as livres
negociações coletivas dos sindicatos e o pleno emprego, gerou na sociedade em geral
uma regra, em que se espera o mesmo comportamento nos anos seguintes. É claro que
as tensões se acentuaram principalmente pelos interesses de ambos que não se
conectam. Acontece que segundo Streeck as exigências dos sindicatos de trabalhadores
no final da década de 60, onde o crescimento econômico já dava sinais de uma crise,
passava por um problema emblemático. A expectativa dos trabalhadores que o modelo
de reajuste salarial constante, junto ao pleno emprego garantido pelo Estado, dava aos
sindicatos “o poder de barganha (...) para além do nível que um livre mercado de
trabalho poderia sustentar”15. Dessa perspectiva, podemos abarcar que a tomada de
expectativa da sociedade, em um modelo de justiça e igualdade, principalmente,
democrático, na relação entre trabalho-capital, atingia a níveis altos que o mercado via
em sua essência - a produção de mais-valor - ameaçada pelos trabalhadores, nas vozes
dos sindicatos. A tensão interna entre democracia e capitalismo estava posta, e a reação
do mercado não seria mera contradição de ideias, ou posicionamento, era questão de
vida ou morte, afetado o capitalismo em suas essências últimas a reação viria a altura.
Os trabalhadores também, dada a opção de “vida melhor” reagiam contra os imperativos
do capital:

No final dos anos 1960 isso se traduziu em uma onda mundial de militância
trabalhista, impulsionada por um vigoroso senso de direito político a um
padrão de vida ascendente e livre do medo do desemprego.16

A solução encontrada desse emblema, primeiro de classe, mas segundo de


acesso a bens escassos na sociedade, foi que o Estado então, tomando a iniciativa, optou
pelo aumento da inflação, a medida para Streeck em primeiro momento não atingiria
aos trabalhadores, mas partia de um princípio contraditório de classes:

É por isso que a inflação pode ser descrita como um reflexo monetário do
conflito distributivo entre uma classe trabalhadora que demanda garantia de

13
Ibidem, pág. 37.
14
Ibidem, pág. 40.
15
Ibidem, pág. 40.
16
Ibidem, pág. 40.

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

emprego, bem como uma maior participação na renda nacional, e uma classe
capitalista que busca maximizar o retorno sobre o seu capital.17

A opção pelo aumento da inflação para ele ocasionava outro problema, a


inflação gerava em primeiro momento um apaziguamento de classes que num futuro
breve aumentaria, pois a inflação gerava “dinheiro adicional, ainda não chancelado pela
economia real, como um meio de antecipar recursos futuros por meio do consumo e da
distribuição do presente”18.
Ao optar pelo aumento da inflação a consequência foi o aumento do
desemprego - uma das garantias que eram exigidas pelos trabalhadores, a de pleno
emprego estava a fracasso. Dado isso, a crise do capitalismo democrático estava visível,
os trabalhadores exigiam pleno emprego e o mercado uma economia regular:

Ao provocar reações kaleckianas de detentores de capitais cada vez mais


desconfiados, a inflação acaba por gerar desemprego, penalizando os mesmos
trabalhadores cujos interesses ela pode inicialmente ter favorecido. A essa
altura, no mais tardar, os governos sob o capitalismo democrático estarão
sofrendo pressões para abandonar os arranjos salariais redistributivo-
acomodatícios e restituir a disciplina monetária.19

Na tentativa de abaixar a inflação, que segundo Streeck foi controlada apenas


em 1979, o modelo capitalista de produção já se encontrava em uma arena de combate
aberto, o velho vínculo apaziguado era utópico. Com o desemprego em alta, já
sinalizava a conflitos emblemáticos entre Estados e Sindicatos, como Margareth
Thatcher contra o Sindicato Nacional dos Mineiros e Ronald Reagan contra
Organização Sindical dos Controladores de Tráfego Aéreo.
Com o aumento do desemprego aumentou para os Estados a dívida pública,
que segundo Anthony Downs com o desemprego a demanda da população por serviços
públicos tendem a exceder os próprios recursos do Estado. O fator dívida pública foi
recorrente nos anos 1980 e o endividamento do Estado passa agora a sofrer pressão dos
mercados financeiros que cobravam organização nas contas, e que o déficit público tem
em efeito de esvaziamento:

Os economistas advertiram há muito tempo que o déficit público tem um


efeito de “esvaziamento” [crowding out] sobre o investimento privado,
ocasionando taxas de juros altas e crescimento baixo, mas jamais foram
capazes de identificar o limiar crítico.20

A partir disso, a política econômica adotada foi de cortes profundos nos gastos
públicos e nas políticas sociais, principalmente a partir de 1994 no governo Bill Clinton
nos EUA. Clinton adotou uma estratégia de “apaziguamento social” nas palavras de
Streeck, que constituiu em:

A crescente desigualdade de renda, causada pela contínua dessindicalização e


pelos cortes severos nos gastos sociais, bem como a redução da demanda
agregada, causada pela consolidação fiscal, foram contrabalançadas pela

17
Ibidem, pág. 41.
18
Ibidem, pág. 41.
19
Ibidem, pág. 41- 42.
20
Ibidem, pág. 45.

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

criação de oportunidades sem precedentes para que cidadãos e pessoas


jurídicas se endividassem. A feliz expressão “keynesianismo privado” foi
cunhada para designar aquilo que era, em essência, a substituição da dívida
pública pela dívida privada. Em vez de o governo tomar dinheiro emprestado
para financiar o acesso igualitário a habitação decente ou para a formação de
mão de obra qualificada para o mercado, passou a permitir — às vezes forçá-
los a tanto — que cidadãos individuais, sob um sistema de endividamento
extremamente generoso, tomassem empréstimos por sua própria conta e risco
para pagar seus estudos ou seu acesso a um bairro menos carente.21

Em síntese, o endividamento que era do Estado, uma dívida pública, passa a ser
privada, por uma opção política, e teve como reflexo:

Os ricos foram poupados de aumentos de impostos, e aqueles espertos o


bastante para dirigir seus interesses para o setor financeiro acumularam
lucros descomunais nos cada vez mais complexos “serviços financeiros” que
passaram a ser autorizados a comercializar de maneira quase irrestrita. Mas
os pobres também prosperaram, ao menos alguns deles e por algum tempo.
As hipotecas de alto risco [subprime mortgages] se tornaram um substituto —
ainda que ilusório no final das contas — para as políticas sociais, que foram
sucateadas, bem como para os aumentos salariais, que se tornaram
indisponíveis nos segmentos inferiores de um mercado de trabalho
“flexibilizado”. Para os afro-americanos em particular, a casa própria era não
só a realização do “sonho americano” como também um substituto
fundamental para as aposentadorias, que muitos eram incapazes de obter no
mercado de trabalho e a qual não tinham nenhum motivo para esperar de um
governo comprometido com a austeridade permanente.22

Assim, a ilusão transmitida através de crédito fácil e concomitante


endividamento privado das pessoas teve seu ponto máximo em 2008, na maior crise da
história. Mais uma vez o Estado foi chamado para apaziguar os ânimos e liberar
recursos aos mercados capitalistas que agora se encontram em recessão. Com o
investimento estatal na tentativa de recuperar a economia, investimentos estes, nos
setores econômicos e financeiros do mercado, gera-se uma nova dívida pública, que
mais uma vez será paga por redução de serviços públicos e aumento de impostos:

O cidadão comum irá pagar — pela consolidação das finanças públicas, pela
bancarrota de Estados estrangeiros, pelas crescentes taxas de juros da dívida
pública e, se necessário, por mais um resgate de bancos nacionais e
internacionais — com suas economias particulares, com cortes em benefícios
públicos, com redução de serviços públicos e com impostos mais altos.23

Wolfgang Streeck mostra que o capitalismo moderno assume formatos


diferentes do que Marx analisou. Diferentes no sentido de que a figura do Estado
assume protagonismo na agenda do capital. Protagonismo esse em que as dívidas do
capital, da especulação financeira, dos riscos econômicos, das isenções aos mercados,
em últimas instâncias serão pagas pelo cidadão comum, via alta de juros, redução dos
gastos públicos, aumento de impostos e o endividamento privado. A esperança de que a
agenda política e que a democracia são instrumentos de imposição contra o capital, não

21
Ibidem, pág. 46.
22
Ibidem, pág.46.
23
Ibidem, pág. 51.

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

passa de ilusões, os instrumentos hoje dos mercados para sua dominação ainda perpassa
pelo direito moderno, pelo Estado e pela democracia. Digo isso, pois Streeck mostra
todo o caminho percorrido e como os Estados assumem a agenda mercantil de fazer
chegar àqueles que não têm nada a ver, as contas das irregularidades do mercado.

IV - CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS

Ao expor no tópico dois que a agenda mercantil é uma busca constante de


mais-valor e que as nações para serem consideradas modernas se caracterizam como
uma nação capitalista. Além do mais, Wolfgang Streeck no tópico três nos mostrou que
as demandas trabalhistas foram aceitáveis até onde não se afetou a essência do
capitalismo, a de mais-valor, e que a partir daí se rompe o “acordo” entre mercados
capitalistas e soberania popular. As crises que se seguiram, o aumento de inflação,
aumento do desemprego, dívida pública e dívida privada, foram imposições dos
mercados às demandas populares, marcado por um intenso conflito que outrora era
silenciado. Assim, o Estado sempre assume protagonismo e com medidas que
privilegiam os mercados, sempre repassam as dívidas das crises, das irregularidades dos
mercados, para o cidadão comum. Ao chegarmos a esse ponto, podemos entender
perfeitamente quando Marx cita que “Revoluções não são feitas por leis”24, e que o
Estado é parte integrante do sistema capitalista:

O poder estatal centralizado, com seus órgãos onipresentes: o exército


permanente, a polícia, a burocracia, o clero e seus magistrados – órgãos
criados através de um plano sistemático de divisão e hierarquia do trabalho –
possuem suas raízes nos tempos da monarquia. (...) Conforme os progressos
da indústria moderna se desenvolveram, criando e aprofundando
antagonismos de classes entre o capital e o trabalho, o poder do Estado foi
adquirindo, cada vez mais o caráter de poder nacional do capital sobre o
trabalho, de força pública organizada para a escravização social, maquina de
violência e despotismo de classe.25

A sociedade espera que o Estado, a democracia e o direito são meios de


contraposição ao modelo capitalista, porém se frustram a medida que estes instrumentos
se voltam contra as pautas igualitárias e de justiça da sociedade. Portanto, cabe aos
críticos, conforme demonstrado que uma solução vinda dos mesmos instrumentos seria
repetir os erros de uma maneira trágica. Assim, quando o Estado assume a função de
dominação via sistemas legais, temos como conclusão que o sistema político é órgão
mediador nas imposições do capital, conforme Chasin citado por Sartori aponta “O
poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra”. Portanto,
não existe alternativa contra imposições do mercado avinda de instituições tipicamente
burguesas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GOMES, David Francisco Lopes, A Constituição de 1824 e o Problema da


Modernidade: o Conceito Moderno de Constituição, a História Constitucional

24
MARX, O Capital, L. I p. 820.
25
MARX, A Guerra Civil na França, 2011, pág. 55.

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56, março de 2012.

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desmantelo crônico. Piauí, pág. 01-14, outubro de 2014.

STREECK. Wolfgang. O cidadão como consumido. Considerações sobre a invasão da


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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

PARA UMA CRÍTICA DA BUROCRATIZAÇÃO SOVIÉTICA:


NOTAS PRELIMINARES SOBRE PACHUKANIS E O BUROCRATISMO NA
URSS

Pedro Pompeo Pistelli Ferreira


Universidade de Brasília
pedro.pistelli.ferreira@gmail.com

Resumo
No presente trabalho, propomos uma investigação preliminar acerca da obra de
Pachukanis sobre a burocratização no aparato de estado soviético. Inicialmente, faremos
uma breve discussão sobre as condições históricas que possibilitaram a expansão das
forças burocráticas dentro do estado soviético e, particularmente, sobre as tentativas
anteriores de explicar e enfrentar o processo de burocratização em curso. Então,
discutiremos o que é o oposto do direito para o jurista soviético, que é, para nós, a
criatividade das massas empregada em sua ação política. Finalmente, resumiremos os
seus trabalhos sobre a burocracia no estado soviético. Aqui, poderemos ver como a sua
crítica ao burocratismo é conectada à sua análise estrutural da forma jurídica, além de
sua noção do oposto ao direito.
Palavras-chave: Evgeny Bronislavovitch Pachukanis; Burocracia; Teoria Crítica do
Direito; História da URSS.

FOR A CRITIQUE OF SOVIETIC BUREAUCRATIZATION:


PRELIMINARY REMARKS ON PASHUKANIS AND THE BUREAUCRATISM
IN THE USSR

Abstract
In this paper, we propose a preliminary investigation on Pashukanis’ work about the
bureaucratization in the Soviet state apparatus. Firstly, we’ll make a brief discussion
about the historical conditions that made possible the expansion of the bureaucratic
powers inside the Soviet state and, particularly, about the previous attempts to face and
explain the process of bureaucratization. Then, we’ll discuss what is the opposite of law
in Pashukanis’ account. In this work, we understand that it is the political creativity of
the masses. Finally, we shall summarize Pashukanis’ works about the bureaucracy in
the Soviet state. There, we can see how his critique to the bureaucratism is connected to
his structural analysis of the juridical form and his notion of the opposite of law.
Keywords: Evgeny Bronislavovich Pashukanis; Bureaucracy; Critical Law Theory;
Soviet History.

Introdução

No presente trabalho, pretendemos delinear brevemente o significado das obras


de Evgeny Bronislavovitch Pachukanis acerca do processo de burocratização ocorrido
na União Soviética logo após a Revolução de Outubro. Portanto, trata-se de uma

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

pesquisa de caráter exploratório, voltada a uma perscrutação inicial acerca das obras
pachukanianas que versem sobre essa temática.
Por certo, nossas perguntas de pesquisa, além de sondarem o que Pachukanis
realmente compreendia do processo, dependem de outros elementos externos aos textos
assinados pelo autor em foco. Mais especificamente, pretendemos compreender o que
há de particular (se é que há algo assim) nas opiniões de Pachukanis sobre a burocracia.
Isso, por certo, conduz-nos à necessidade de tentar esquematizar muito brevemente o
contexto de burocratização na URSS e as tentativas anteriores de combate-la. Por
questões de espaço, demos primazia à obra de Lêni, dada a relevância do pensamento
dele para a construção de medidas efetivamente aplicadas em solo soviético contra o
fenômeno burocrático. Esse resgate consistirá na primeira seção de nosso trabalho.
Em um segundo momento de busca da particularidade da crítica pachukaniana à
burocracia, precisamos nos voltar à sua teoria da forma jurídica como um todo. Nela,
encontraremos os elementos metodológicos fundamentais para entender a burocracia
como uma forma histórica inserida na existência social, para além de mero conceito
abstrato conectado a algumas variáveis elaboradas de maneira solipsista. No caso,
parece-nos especialmente frutífero indicar que a burocracia é uma forma social ligada
ao processo de administração da vida que aparta as massas da vida pública. Essa
concepção vai de encontro ao que denominamos como o outro oposto do direito em
Pachukanis, que consiste justamente na criatividade política das massas populares.
Consequentemente, na segunda seção, indicaremos elementos que corroboram essa
nossa tese.
Por fim, entraremos nos texto em que o jurista soviético aborda diretamente o
problema político de enfrentamento ao processo de burocratização em curso. A partir
dos outros dois debates acima apontados, poderemos ter relances que indicam, para
além do significado inicial que pode ser depreendido de cada texto, o que há de inédito
e de peculiar na posição de Pachukanis acerca da explicação e do combate ao fenômeno
burocrático.

1. A burocracia no início da Revolução de Outubro: elementos do enfrentamento à


burocratização em Lênin e Stálin

Preliminarmente, podemos afirmar que o Império Russo, desde a consolidação


do domínio mongol em 1242, traz uma tônica histórica de centralização do poder
político que, em muitas oportunidades, descambou na formação de uma camada social
ligada ao governo tsarista e à gestão do Estado (SEGRILLO, 2012, CHAPMAN, 2008,
LIEVEN, 2006, REIS FILHO, 1989, MARIE, 2003, p. 253). Se pensarmos no contexto
pré-revolucionário, pode-se dizer que a burocracia era um dos três pilares do Estado
autocrático russo, ao lado da Igreja e do exército (CHAPMAN, 2008, p. 2). A conexão
entre a burocracia tsarista e a nobreza era formada por laços tão estritos que, em 1722,
Pedro, o Grande, criou uma vinculação entre os títulos de nobreza e a participação dos
indivíduos no serviço público estatal a partir da tabela de graduações. Essa medida foi
logo abortada, mas, no fim das contas, enfatizou as proximidades entre a nobreza e a
atividade burocrática a serviço do tsar (SEGRILLO, 2012, p. 165-166 e LIEVEN, 2006,
p. 229).
Nesse sentido, a tradição bolchevique, antes da Revolução de Outubro, mostrou-
se feroz adversária desse modus operandi. Uma das grandes promessas da Revolução

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

consistia justamente na substituição da gestão de burocratas pela criatividade das


massas1 [творчество масс]. Nas palavras de Lênin:

“A atividade criadora viva das massas: esse é o fator fundamental da nova vida
pública. Deixem os trabalhadores criarem o controle operário em suas fábricas
[...]. O socialismo não é criado por decretos vindos de cima. Sua alma é
estranha ao automatismo oficial-burocrático; o socialismo vivo, criador, é
produto das próprias massas do povo” (LÊNIN, [1917B]).

Inspirado na experiência da Comuna de Paris, pouco antes da tomada do poder,


o líder bolchevique já dizia que o o funcionalismo [чиновничество] e a burocracia
[бюрократия] burocracia deveriam ser colocados sob um profundo controle (todos os
funcionários seriam eleitos, exoneráveis e não ganhariam mais que o salário de um bom
operário) ou serem substituídos “pelo poder imediato do próprio povo”, cuja
fundamentação encontra-se, justamente, “na iniciativa directa das massas populares
partindo de baixo e à escala local” (LÊNIN, [1917a]).
No entanto, esse impulso inicial não pôde ser imediatamente resolvido, dado o
atraso econômico e cultural da União Soviética – que trazia como herança a consolidada
mentalidade da burocracia tsarista, eivada de elitismo, autoritarismo e abertura à
corrupção2 –, ainda incapaz de inserir as mais amplas massas na gestão da vida pública,
bem como o fortalecimento de uma fração de burocratas dentro do próprio partido,
composta por uma série de indivíduos que ingressaram nos quadros partidários movidos
por um “desejo de trinfo pessoal” em detrimento da “convicção ideológica”3 (MARIE,
2003, p. 252), que acabou por unificar-se na figura de Stálin (GRANT; WOODS,
[1969]). Lênin, no fim de sua vida, tentou enfrentar essa realidade, mas acabou
morrendo antes de poder reverter esse ciclo de burocratização (LEWIN, 1970).
Com a ascensão de Stálin ao poder – graças, em boa parte, a uma política
centrada no fortalecimento dos membros carreiristas nas fileiras partidárias –, o partido
começou a se preocupar cada vez menos com esses problemas e, em especial, passou a
dar centralidade aos equívocos técnicos causados pela burocracia, em detrimento de
suas limitações políticas (LOEBER, 1979). Destarte, o processo de burocratização,
entendido como uma tendência de afastamento das massas do controle do Estado e do
chão de fábrica, não foi interrompido e as bases capitalistas da produção, voltada à
valorização do capital e não à realização das necessidades mais prementes da classe
operária, mantiveram-se. Nesse cenário, “o poder é concentrado numa cúpula partidária
(fração burguesia de Estado) que leva a cabo uma política claramente repressiva e que
destrói as formas de organização da própria massa trabalhadora” (NAVES, 2007, p. 64).

1
Inclusive, já tivemos a oportunidade de defender que a priorização da atividade criativa das massas
consiste em um elemento central do pensamento político de Lênin. Para entrar em contato com essa
discussão, Cf. PAZELLO; PISTELLI FERREIRA, 2017.
2
“La rápida fusión del Estado y del Partido hace coexistir, y luego entrar en simbiosis, al aparato político
de origen plebeyo con la antigua burocracia zarista cuyos hábitos adopta rápidamente: el funcionamento
rutinario, el engreimiento y la corrupción” (MARIE, 2003, p. 253).
3
Esse processo foi ainda mais agravado a partir da Nova Política Econômica, que gerou uma nova
camada da população, formada por comerciantes e donos de negócios, que, por sua vez, aproveitaram-se
dessa falta de convicção dos burocratas comunistas para se aliar com eles e, por meio de acordos escusos
e corrupção, garantir que seus interesses seriam atendidos. Para uma análise historiográfica desse
processo, Cf. MARIE, 2003, p. 253-254, GRANT; WOODS, [1969], HEAD, 2008, p. 84-85, LEWIN,
1970, p. 153.

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

Feitas essas breves considerações sobre o contexto soviético, faz-se possível


compreender mais especificamente o significado da crítica pachukaniana ao
burocratismo. Contudo, antes de entrar nela mesma, é oportuno contextualizar o próprio
pensamento de Pachukanis, a partir de seu rechaço da forma jurídica e das alternativas
por ele propostas para superar essa forma especificamente burguesa.
2. A crítica ao direito em Pachukanis e o oposto da forma jurídica

Na presente seção, passaremos a uma discussão de cunho teórico mais geral:


qual é o oposto do direito em Pachukanis? Tal discussão é relevante para nossa pesquisa
porque, de acordo com algumas análises, esse oposto residiria na contraposição entre
“normas jurídicas” e “normas técnicas” (PACHUKANIS, 1988, p. 44, 87-89), o que
demonstraria, no jurista soviético, uma exagerada esperança na planificação estatal –
elaborada por técnicos apartados das massas trabalhadoras e campesinas –, o que, por
sua vez, culmina em uma teoria que, no limite, auxilia e robustece o fenômeno da
burocratização (NAVES, 1996, p. 122-123, 126, SOARES, 2009, p. 338, RIVERA
LUGO, 2014, p. 169).
Em nossa investigação preliminar, parece-nos que, se essa oposição é, de fato,
ressaltada por Pachukanis, não se deixa, por outro lado, de apresentar outras oposições,
tal como a entre a forma jurídica (marcada por uma relação de equivalência) e a forma
política (marcada por uma coerção das classes em conflito) – o que não significa, por
certo, que o direito não precise utilizar-se da política para garantir sua reprodução
(PACHUKANIS, 1988, p. 97, 103).
Inclusive, o autor soviético condena qualquer tentativa de explicar as ações do
Estado soviético a partir de uma noção “juridicizada” do direito, que tenta esconder
“força extra-judicial, e extra-jurídica e extra-legal do Estado, que se orienta para a
defesa da dominação de classe por todos os meios estranhos a qualquer forma jurídica”
(PACHUKANIS, 2009, p. 148). Ademais, defende que todos os problemas da URSS,
quando possível, sejam resolvidos de maneira política, uma vez que “toda questão séria
referente à administração está ligada com a forma jurídica não apenas por sua aparência
externa, mas por sua essência mesma” (PACHUKANIS, 2009, p. 142). Esse trecho nos
parece especialmente instigante, uma vez que abre uma brecha para traçar uma conexão
entre a administração do Estado a partir de dinâmicas racionais-burocráticas com a
forma jurídica mesma. Nesse sentido, a forma de superar essas limitações consiste,
justamente, na práxis política das massas populares. Aqui, Pachukanis deixa tácita
quase uma autocrítica de sua anterior equiparação da extinção da forma jurídica à
aplicação de normas técnicas (administração das coisas).
Nesse excurso, Pachukanis parece substituir sua visão formalista de normas
técnicas pela ação política e antijurídica da classe revolucionária, capaz de, com sua
própria organização, criar mecanismos de poder inéditos, gestados de baixo para cima:

Em geral, decidir questões políticas com o uso da força armada e com


desrespeito à legalidade não exaure a noção de revolução mesmo em um nível
puramente político. Aqui, é necessário ter em mente aquela diferença na qual
Lenin insistia: se uma revolução é conduzida pelas massas populares, que se
unem no próprio processo da luta, trazendo à tona, de baixo para cima [from
the bottom, снизу], seus órgãos autogestados de insurreição [their self-created
agencies of revolt], temos diante de nós uma revolução popular; ou essa
revolução continua como assunto de uma minoria, uma minoria que constitui
parte das classes proprietárias privilegiadas que usaram uma organização pré-
existente, como, por exemplo, o exército. A massa popular não exerce um

475
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

papel ativo e independente nessa situação. Ela é dominada previamente pela


organização do camada superior que assume a liderança [leading upper
stratum] e é condenada ao papel de um instrumento cego (PACHUKANIS,
1980c, p. 223).

Em outras palavras, a rebelião popular dos de baixo significa uma ação política
que rejeita qualquer limitação jurídica4 e é justamente essa autoatividade e auto-
organização das massas que constitui o oposto do jurídico em uma teoria marxista não
tecnicista. Aqui, há aquela constatação feita por Robespierre, em citação de Stutchka
(1988, p. 89): “os povos não julgam como tribunais; não promulgam sentenças:
fulminam; não condenam o rei: reduzem-no a nada; e esta justiça é melhor que a justiça
dos tribunais”. Portanto, oposta ao direito é a revolução no sentido puro da palavra, uma
vez que, nas palavras de Lenin, em texto de grande influência para Pachukanis, "o juízo
burguês evita todos os meios não parlamentares de luta, todas as ações abertas das
massas, todas as revoluções no sentido puro da palavra" (LENIN, 1968, p. 330, tradução
nossa).
Por isso, o texto assinalado nos conduz, mais uma vez, a uma leitura da transição
e do oposto do direito que não é meramente técnica, de modo a colocar em questão as
leituras unilaterais do antidireito em Pachukanis. Mais que isso, o tom de sua crítica
aproxima-se, por exemplo, da exposição de Edelman sobre o direito de greve e o
processo de legalização da classe operária, no qual ele delineia um quadro que capta o
antagonismo inconciliável entre a livre manifestação proletária e o enquadramento de
sua prática política dentro dos marcos legais formulados pelo direito: “de um lado, o
direito [...]; de outro, o ‘fato’ das massas [...]; de um lado, um poder legal; de outro, um
poder bruto, elementar, inorganizado” (EDELMAN, 2016, p. 56). A autoatividade das
massas, assim, surge como inverso do direito tanto no jurista soviético quanto no
pensador francês: “as massas levam uma vida muito problemática no direito. É claro
que elas existem, mas o preço de sua existência é sua própria negação como massas”
(EDELMAN, 2016, p. 32). Com as palavras de Pachukanis, poderíamos dizer: esse
preço é a sua transformação em um instrumento cego das classes privilegiadas, incapaz
de construir seus próprios órgãos de revolta.
Como considerações finais dessa seção, cumpre dizer que essa ênfase na
autoatividade das massas traz como consequência a formação, no arsenal teórico
pachukaniano, de uma série de conceitos que lhe permitirão criticar o processo de
burocratização em curso na União Soviética. Isso é o que veremos na seção a seguir,
nos textos em que o jusfilosófo soviético trata diretamente do problema da burocracia.

3. Os escritos de Pachukanis sobre o burocratismo no Estado soviético

Por fim, abordaremos, de forma muito limitada e preliminar, os textos de


Pachukanis sobre a luta contra o burocratismo. Neles, poderemos identificar como sua
crítica à burocracia vincula-se com a sua noção do que definimos como “oposto” do
direito, além de sua abordagem estrutural e recorrente do fenômeno da burocratização.
Assim, poderemos comparar seus posicionamentos com um panorama das outras
manifestações acerca do tema na sociedade soviética.

4
Aqui, parece-nos que Pachukanis ressoa uma grande influência causada pela teoria de Lênin acerca da
criatividade das massas. Para mais elementos acerca desse pensamento, Cf. PISTELLI FERREIRA, 2016,
p. 491-494, e LÊNIN, 1968.

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Dessa investigação, podemos perceber nos textos de Pachukanis5 e nas análises


secundárias acerca dessa discussão (LOEBER, 1979, NAVES, 1996, MAKEEV, 2016)
uma convergência em três aspectos principais da crítica pachukaniana ao burocratismo:
a) a definição de burocracia; b) sua proposta para combate-la; e c) seus
desentendimentos comparado aos teóricos em seu entorno.
No primeiro ponto, Pachukanis delineia um entendimento do que se configura
como característica essencial da burocracia: a criação de um aparato apartado e
colocado acima das massas, cujo surgimento está atrelado ao “desenvolvimento da
economia monetária”, à ascensão do capital comercial, à sua forma política (monarquia
absolutista) e à organização burocrática. A seguir, aponta que não se trata de mera
questão de excesso de formalismo, mas de gestão do próprio capitalismo, que, por sua
vez, assume formas inéditas quando adentramos no capitalismo monopolista, uma vez
que o burocrata ideal transforma-se em “um organizador”, que consegue “realizar
aquelas tarefas econômicas que, de forma mais estreita, fundem-se com as tarefas
políticas” (PACHUKANIS, [1929]). Ou seja, “o burocratismo, para Pachukanis, é uma
‘propriedade inevitável de um aparato apartado das massas e a elas contraposto
[противопоставленного]’” (PACHUKANIS, [1934], apud. MAKEEV, 2016, p. 264)
No segundo momento, identificamos sua proposta de como combater esse
problema a partir da inserção das massas na administração do Estado e da economia:

A questão não se limita à promoção de representantes separados, e portanto dos


mais desenvolvidos, mais capazes da classe operária. O principal da orientação
leninista consiste nisto: conclamar à participação na administração do Estado a
toda a massa, e não apenas pessoas eleitas que se diferenciem por quaisquer
méritos pessoais; de fato, o Estado soviético deve envolver na questão da
administração precisamente os mais atrasados, os mais ignorantes, os mais
acanhados, para os desenvolver, para levantar suas capacidades
(PACHUKANIS, [1929]).

Portanto, para o jurista soviético, não basta colocar os meios de produção sob
controle do Estado; é necessário “tomar de assalto [пойти штурмом] essa última
fortaleza, esse aparelho de estado soviético, e tomá-la com todos os meios, tanto com
um ataque frontal [...] quanto com um cerco” (PACHUKANIS, [1930], apud. NAVES,
1996, p. 114, tradução nossa). Como bem percebe Naves, há, nesse trecho, uma crítica
implícita ao momento atual da URSS, uma vez que:

Ora, se as massas precisam tomar o poder, e, ademais, por uma via


revolucionária (‘tomar de assalto’), então, pode-se concluir essas mesmas
massas não mais estão no poder, que elas já foram expropriadas do exercício

5
Em pesquisas bibliográficas (LOEBER, 1979, e NAVES, 1996), encontramos indicações da existência
dos seguintes artigos de Pachukanis voltados justamente ao debate sobre a burocracia: i) Советский
государственный аппарат в борьбе с бюрократизмом [O aparato estatal soviético na luta contra o
burocratismo] (1929); ii) Ленин и борьба с бюрократизмом [Lenin e a luta contra o burocratismo]
(1930); iii) Барацьба с бюрократізмам на сучасным этапе [Luta contra o burocratismo na presente
etapa] (1934, escrito em bielorrusso); iv) Реконструкция госаппарата и борьба с бюрократизмом [A
reconstrução do aparato estatal e a luta contra o burocratismo] (1935). Pelas considerações de Makeev
(2016), podemos indicar mais dois artigos que abordam o tema discutido (em especial por considerarem
os sovietes como espaços de combate ao burocratismo e de inserção das massas no controle da vida
política e administrativa): i) Диктатура пролетариата и современный ревизионизм [A ditadura do
proletariado e o revisionismo moderno] (1930); ii) Пролетарское государство и построение
бесклассового общества [O Estado proletário e a construção de uma sociedade sem classes] (1932).

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do poder de Estado, e que esse poder é agora exercido contra elas (NAVES,
1996, p. 120).

Mais uma vez, os elementos apresentados nos conduzem a uma visão que vai
muito além do tecnicismo na explicação da transição para a sociedade comunista. Aqui,
o burocratismo aparece profundamente conectado a qualquer iniciativa que distancie as
massas do povo da gestão do Estado e da produção da vida.
No terceiro aspecto, apontamos seus desentendimentos com interlocutores que
têm a tendência de ressaltar o problema técnico do aparato burocrático e não seus
aspectos políticos, o que o fez defender posições “contra a ‘juridização’ dos sovietes,
contra a representação dos sovietes como uma ‘forma jurídica’ da ditadura do
proletariado, porque [...] os sovietes não apenas uma instituição juridicamente
formulada: eles são uma forma organizativa criada pela atividade criativa [творчество]
de vários milhões oriundos das massas e que os congrega no trabalho estatal”
(PACHUKANIS, 1932, p. 21). Tal como defende Loeber (1979, p. 160), “não era
suficiente o aperfeiçoamento (усовершенствование) do sistema de administração. O
que era necessário era uma ‘decisiva intervenção’ das massas”, porque “os burocratas
mostravam incompreensão, indiferença e mesmo resistência em relação às tentativas de
envolvimento das massas”.
Essa compreensão, cumpre adendar, ia em completo enfrentamento às novas
linhas políticas acerca do burocratismo que estavam sendo adotadas pela liderança
partidária: a participação e o envolvimento da população ia cada vez mais dando lugar à
priorização da eficiência técnica e da produtividade6.

Considerações Finais

Após fazer um resgate do contexto da luta contra a burocracia na União


Soviética e comparar os pensamentos da época com as obras de Pachukanis, pudemos
identificar que ele abordou uma problemática da transição essencialmente política: a da
necessidade de romper com a separação entre governantes e governados, entre
burocratas e massa, a fim de construir a sociedade sem classes. Isso, por um lado, faz-
nos rever as considerações que absolutizam a leitura da transição em Pachukanis como
um processo meramente técnico de supressão do mercado pela planificação estatal (há
em suas obras elementos que dão prioridade à autoatividade das massas e à criação de
seus órgãos autogestados de revolta, que não devem ser limitados por nenhuma forma
jurídica ou formalismo) e, por outro, demonstra-nos que o jurista soviético não apenas
abordou profusamente o problema da burocracia no Estado soviético como também
destacou-se como um dos pensadores que tratou esse problema com maior radicalidade
e ênfase política na luta de classes (a burocracia nasce da separação entre governantes e
governados, dirigentes e dirigidos, chefes e massa, e sua extinção apenas ocorrerá com a
inserção de toda a população trabalhadora na vida pública e no controle da economia).

6
“Muitas resoluções do Estado e do partido sobre envolver as massas na administração do Estado e
contra o burocratismo foram redigidas entre 1917 e 1930, mas apenas duas resoluções desse gênero foram
adotadas de 1930 até a morte de Stálin, em 1953, de acordo com uma bibliografia soviética sobre direito
do Estado [Sovetskoe gosudarstvennoe pravo. Bibliografiia 1917-1957]. [...] Em sua luta contra o
burocratismo, as lideranças stalinistas eram movidas, ao que parece, não tanto pelo objetivo de alcançar a
participação das massas na administração estatal, mas mais por sua preocupação com uma eficiência
administrativa e uma racionalidade econômica” (LOEBER, 1979, p. 162, tradução nossa).

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Destarte, acreditamos que essa nova ênfase nos permite entender melhor as
considerações de Pachukanis sobre a burocracia, as quais, como mostramos
anteriormente, não se destacam por um exagerado tecnicismo, mas exatamente pelo seu
contrário: uma férrea defesa da inserção das massas na gestão do Estado e da economia,
entendida como um processo de cunho essencialmente político e, portanto, alheio a
qualquer juridização.
Todos esses elementos, no fim das contas, demonstram eixos de análise
incongruentes com a redução do processo de transição à mera técnica e à dinâmica de
planificação. Tratam-se de ideias, em última instância, incompatíveis com a virada
burocrática ocorrida com a consolidação do poder staliano, o que, em alguma medida,
permite-nos supor que esses textos podem entrar na lista de motivações que culminaram
na execução de Pachukanis em 1937, acusado de sabotagem e atividade
contrarrevolucionária contra a URSS.

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

RELAÇÃO JURÍDICA E RELAÇÃO ECONÔMICA:


UM PONTO DE CONTATO EM HOBBES

João Pedro Lopes Fernandes


Universidade Federal de Minas Gerais
marxjplf@ufmg.br

Matheus Correa de Sousa Heleno


Universidade Federal de Minas Gerais
matheuscsh@ufmg.br

Resumo
O presente artigo parte de um questionamento relativamente trivial na teoria marxista:
qual é a postura mais adequada da crítica materialista-dialética frente ao fenômeno
jurídico? Considerá-lo como mera ideologia ou como um ente ideológico, mas que
possui reflexo numa relação social objetiva? Diante dos posicionamentos de Pachukanis
em "Teoria Geral do Direito e Marxismo", que afirmam uma determinada
correspondência entre a forma jurídica das relações do Direito Privado e as relações
econômicas mercantis, este trabalho visa a corroborar a tese do pensador soviético por
meio de um resgate das noções marxianas de "mercadoria" e "fetichismo", e das
asserções tipicamente jusnaturalistas do Direito e do Processo enquanto "relações
jurídicas". Por fim, valer-se-á de uma análise marxiana do pensamento jurídico-liberal à
forma do contratualismo hobbesiano, destacando a importância do filósofo inglês no
estabelecimento da lógica economicista das relações jurídico-estatais e no processo de
fundamentação, através de pensamentos proto-juspositivistas ― mesmo que ainda
inseridos em uma contingência jusracionalista ―, do futuro Estado de Direito Liberal.
Palavras-chave: Relação Jurídica; Relação Econômica; Ideologia; Direito Privado.

LEGAL RELATIONSHIP AND ECONOMIC RELATIONSHIP:


A POINT OF CONTACT IN HOBBES

Abstract
The present article starts from a relatively trivial question in the Marxist theory: what is
the most adequate position of the materialist-dialectic criticism before the legal
phenomenon? To consider it as mere ideology or as an ideological entity, but which
reflects in an objective social relation? Faced with the positions of Pashukanis in ¨The
General Theory of Law and Marxism”, which affirm a certain correspondence between
the legal form of Private Law relations and mercantile economic relations, this paper
aims to corroborate the Soviet thinker’s thesis by means of a ransom the Marxian
notions of “commodity” and “fetishism”, and the assertions of Law and Process as
“legal relationships”, typical from a natural law concept. Finally, this paper will avail a
Marxian analysis of legal-liberal thinking applied to the form of Hobbesian
contractualism, highlighting the importance of the English philosopher in the
establishment of the economic logic of legal-state relations and in the process of
grounding, through proto legal-positivist thoughts ― even if still inside in a natural law
contingency ―, of the future State of Liberal Right.
Keywords: Legal Relationship; Economic Relationship; Ideology; Private Law.

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INTRODUÇÃO

Pachukanis publicou sua Teoria Geral do Direito e Marxismo em 1924. A


despeito das diversas críticas ao “economicismo pachukaniano” e às suas aproximações
supostamente não dialéticas entre relação jurídica e relação econômica, o autor
realizou uma leitura inovadora do fenômeno jurídico para a juveníssima União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). A então recém-fundada URSS enfrentou em
verdade um grave desafio: estruturar um novo aparato legislativo e judiciário. O esforço
dos teóricos marxistas encontrava-se desde já dificultado por dois fatores: por um lado,
pela influência do pensamento jurídico burguês ― especialmente de Petrajitski ― e, por
outro, pela necessidade política de colocar em funcionamento o aparato burocrático
como um todo1. Dois dos principais autores que primeiro se popularizaram ao enfrentar
o grave desafio foram Mikhail Reisner e Piotr Stutchka. O essencial desse esforço
consistiu na alteração da estrutura judiciária consubstanciada na constituição de
“tribunais populares” nos quais os juízes seriam eleitos entre operários e soldados. Dois
problemas que logo se apresentaram ao objetivo foram a competência limitada dessa
“judicatura popular” e a previsão da participação de “técnicos”, i.e., de “pessoal
competente” nas “causas complexas”. O que ocorreu, em verdade, e nenhuma foi a
sensibilidade de tais teóricos a isto, foi o reforço de instâncias formais separadas das
massas e que agiam orientadas por um saber especializado2.
Piotr Stutchka entendia que o proletariado, com a Revolução de Outubro, havia
derrubado o Estado burguês que serviu à opressão da classe trabalhadora e que, com ele,
também os códigos burgueses haviam sido derrogados, já que serviam necessariamente
ao interesse de classe dos burgueses. Contudo, e este ponto é central, a solução de
Stutchka não é radical quanto ao direito; para esse autor o proletariado deve também se
valer do direito para produzir normas que, durante a “ditadura do proletariado”,
subjuguem seus inimigos3. O direito é, para Stutchka, “sistema de relações sociais que
corresponde aos interesses da classe dominante e é tutelado pela força organizada de tal
classe [pelo Estado, assim definido em sua concepção]”4. A despeito do sem-número de
contradições internas a uma teoria que tenta começar, surda que é ao ensinamento
metodológico basilar de Marx, do todo indiferenciado de um fenômeno para as suas
categorias mais simples, não cabem neste trabalho detalhar tais censuras. Interessa-nos,
primeiro, perceber que Stutchka entende o direito não como forma jurídica, mas como,
repito, “sistema de relações sociais que corresponde aos interesses da classe dominante
[...]”5. Com isso se quer dizer que direito é conteúdo, não forma e é essa intuição que
orienta Stutchka quando ele relega ao plano ideológico os conceitos fundamentais (e
abstratos) da Teoria Geral do Direito. O segundo ponto importante diz respeito ao
acolhimento por parte de Stutchka do conceito de “consciência jurídica revolucionária”
de Mikhail Reisner, o que marca a filiação de sua tese a uma teoria psicológica do
direito.
Mikhail Reisner é tributário da noção de “consciência jurídica” do jurista
burguês e pré-revolucionário Leon I. Petrajitski, para quem:

1 Cf. NAVES, 2008, p. 24-25.


2 Ibidem, p. 25-26.
3 Ibidem, p. 29.
4 Cf. NAVES, 2008, p. 29-30.
5 Ibidem.

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A natureza do fenômeno jurídico reside não nas normas objetivas editadas


por uma autoridade, mas na esfera emocional, de modo que o cumprimento
das obrigações jurídicas e a observância das leis decorrem de uma
“consciência jurídica intuitiva”, de que todos os homens seriam providos.
NAVES, 2008, p. 33-34.

Tenta, é verdade, acrescentar a tal noção um “momento marxista” com o intuito


de desfazer a velha associação positivista entre direito e Estado, defendendo que cada
classe haveria de produzir seu próprio direito6. Quer-se com isso fundamentar o direito
não mais normativamente, mas numa noção de “justo” que seria relativa a cada classe.
O proletariado revolucionário, portanto, haveria de impor seu direito a partir de sua
“consciência jurídica revolucionária”. Contudo, ao tentar encontrar o conceito geral de
direito, todo o edifício teórico de Reisner rui ― e em última instância também o de
Stutchka ―, tendo o próprio autor que admitir o direito como relacionado à economia,
i.e, a suposta “consciência jurídica” é determinada, em última instância, pela posição de
cada classe nas relações de produção e troca. A tentativa desesperada de Reisner e
Stutchka de achar um fundamento ideológico para o direito lança-lhes contra o real: a
estrutura econômica.
Se Pachukanis é julgado pelas suas frequentes recaídas, deve-se ter cuidado: fê-
lo exatamente por ter sido muitas vezes incapaz de prever as consequências teóricas da
sua tentativa de superação do horizonte ideológico de sua época. E é tendo isso em vista
que, a partir de uma discussão prévia acerca do método pachukaniano e da exposição de
conceitos marxianos importantes para o tema, analisar-se-á a polêmica aproximação
realizada pelo autor soviético entre “relação jurídica” e “relação econômica” e, valendo-
se de uma leitura específica de Thomas Hobbes, tentar-se-á apontar as raízes
ideológicas do pensamento positivista como já parcialmente presentes na tese do citado
teórico jusnaturalista.

KARL MARX: O DIREITO COMO IDEOLOGIA E A SUA RELAÇÃO COM O


CARÁTER FETICHISTA DA FORMA-MERCADORIA

Bem antes de Pachukanis expor a correspondência entre relações jurídicas e


relações econômicas mercantis, Karl Marx, base teórica do jurista soviético, já havia
tratado de tema semelhante em seus compostos políticos, econômicos e filosóficos.
Portanto, o objetivo da presente seção é resgatar as linhas gerais do pensamento
marxiano no que tange ao assunto supracitado, conferindo um corpo teórico mais teso a
este trabalho. Como dito anteriormente, valermo-nos-emos dos conceitos de forma-
mercadoria, fetichismo da mercadoria e ideologia, sendo este último apoiado em uma
leitura para aquém d’A ideologia alemã sem deixar de lado, por óbvio, os demais
escritos do filósofo alemão sobre a matéria.
Antes de aventuramo-nos pelo mundo das mercadorias, qual exposto no capítulo
I do primeiro volume d’O capital, faz-se necessário um retorno às considerações
marxianas sobre ideologia, donde é possível perceber a relação entre economia e formas
de consciência em Marx. Precisamos lembrar, ainda, que o Prefácio de 1859 ―
apresentado em Contribuição à crítica da economia política ― é extremamente mal
interpretado no que toca à relação entre estrutura e superestrutura, terreno fértil para o
florescimento de críticas desarrazoadas, em geral, com seu cerne no crédito de um
6 Ibidem, p. 34.

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suposto “economicismo” ou “mecanicismo” à filosofia marxiana. É, então,


indispensável demolir tais equívocos a fim de que se compreenda a relação entre campo
jurídico e economia para Marx.
O materialismo marxiano não parte exclusivamente da experiência. O filósofo
alemão, na verdade, estabelece um caráter dialético de totalidade para a realidade
efetiva [Wirklichkeit]: o concreto, o real efetivo, não é algo plasmado ― como querem
as concepções do materialismo contemplativo de Feuerbach7 ―, mas um produto de
múltiplas determinações, sejam elas advindas de características naturais da matéria, de
formas ideológicas ou da produção humana ― que transforma a natureza com uma
finalidade e, também, a própria natureza do homem. O que se tem em Marx, portanto, é
uma noção de que o processo histórico forma-se numa confluência entre a objetividade
do real [Wirklichkeit] e a subjetividade humana. Então, não há espaço para
interpretações “mecanicistas”, “economicistas” ou “deterministas” da filosofia
marxiana. Perceber que há uma autarquia relativa da realidade sobre as formas de
consciência é afirmar que sem o contato com as determinações da natureza não há
homem, mas também é entender que os homens fazem a sua própria história8. Há de se
dizer, consequentemente, que o ser humano, para Marx, adquire consciência da
realidade [Wirklichkeit] tanto pela experiência quanto pela atividade humana em sentido
mais amplo, a saber, desde o trabalho até às formas ideológicas e de consciência.
A interdependência entre a subjetividade humana e a objetividade [Wirklichkeit],
bem como a relação supracitada entre realidade e formas de consciência, torna-se clara
nas palavras do próprio Karl Marx:
O modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida depende, antes de
tudo, da própria constituição dos meios de vida já encontrados e que eles têm
de reproduzir. Esse modo de produção não deve ser considerado meramente
sob o aspecto de ser a reprodução da existência física dos indivíduos. Ele é,
muito mais, uma forma determinada de sua atividade, uma forma
determinada de exteriorização da vida, um determinado modo de vida desses
indivíduos. Tal como os indivíduos exteriorizam sua vida, assim são eles. O
que eles são coincide, pois, com sua produção, tanto com o que produzem
como também com o modo como produzem. O que os indivíduos são,
portanto, depende das condições materiais de sua produção.
MARX; ENGELS, 2016, p. 87.

Mas o que são essas formas ideológicas? Diferentemente do que muitos pensam,
devido a uma leitura apressada d’A ideologia alemã, ideologia não é simples “falsa
consciência”, interpretação esta que pode levar um equívoco crasso à filosofia
marxiana, i. e., que em Marx a ideologia é irrelevante para o movimento do real efetivo
[Wirklichkeit] e, portanto, deve-se desconsiderar as consequências, e.g., da arte, da
religião e do direito na transformação do mundo ― donde nasce o espantalho do
“economicismo” em sua aparência mais usual. Contudo, o filósofo alemão tem essa
questão em um âmbito mais quisto. Para ele, pode-se dizer que formas ideológicas são
aquelas pelas quais os homens são capazes de tomar consciência das contradições postas

7 “O principal defeito de todo materialismo existente até agora (o de Feuerbach incluído) é que o objeto
[Gegenstand], a realidade, o sensível, só é apreendido sob a forma do objeto [Objekt] ou da
contemplação, mas não como atividade humana sensível, como prática; não subjetivamente. Daí o lado
ativo, em oposição ao materialismo, [ter sido] abstratamente desenvolvido pelo idealismo”. MARX;
ENGELS, 2016, p. 533.
8 Cf. MARX, 2016, p. 25.

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na realidade [Wirklichkeit]9. Torna-se claro, assim, que, apesar do caráter limitado de


transformação da ideologia ― pois esta atua objetivamente sobre os alicerces materiais
dados na própria realidade ―, não há de se descartá-la em Marx, tendo em vista que
para compreendermos o movimento do real [Wirklichkeit] qual ele é, de fato, não basta
analisarmos o desenvolvimento das forças produtivas, mas também é preciso dar
atenção às formas de consciência, pois a influência da subjetividade humana é
fundamental para a transformação histórica.
De toda a exposição anterior, pode-se concluir que a superestrutura é composta
por formas sociais de consciência que possuem um papel ativo na transformação da
estrutura, relação análoga à autarquia relativa da realidade sobre as formas de
consciência. Para a filosofia marxiana, é na relação dialética entre homem e natureza,
entre objetividade e subjetividade, que reside a compreensão da História10, donde se
afere que a consciência deixa de ser entendida de forma autônoma e passa a ser
compreendida como parte do homem, como resultado das interações sociais11. Em
outras palavras, o homem conhece na medida em que atua, e atua na medida em que
conhece.
Sobre isso, dizem os progenitores do materialismo histórico:
A consciência [Bewusstsein] não pode jamais ser outra coisa do que o ser
consciente [bewusste Sein], e o ser dos homens é o seu processo de vida real.
Se em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem de cabeça para
baixo como numa câmara escura, este fenômeno resulta do seu processo
histórico de vida, da mesma forma como a inversão dos objetos da retina
resulta de seu processo de vida imediatamente físico.
MARX; ENGELS, 2016, p. 94.

Dada a questão da ideologia em Karl Marx, podemos, enfim, tratar


especificamente da relação entre direito ― clara forma de consciência de caráter
ideológico12 ― e economia. Há de se lembrar, antes de tudo, que o campo jurídico qual
expresso na sociedade civil-burguesa deve cumprir alguns pressupostos para assumir
suas propriedades oponíveis ao privilégio medieval, tornando-se, assim, o promotor de
normas gerais e abstratas capazes de garantir a igualdade formal a todos os indivíduos e,
consequentemente, de regular o âmbito das trocas voluntárias de mercadorias através da
entidade fundamental do Direito Privado, a saber, a figura do contrato13.
Quais são, pois, esses pressupostos necessários para se tratar o direito em uma
sociedade capitalista? O próprio Marx os expõe sem enredar-nos numa teia de palavras
vazias:
Antes de tudo, o primeiro pressuposto é a relação de escravidão ou de
servidão ser abolida. A capacidade de trabalho viva pertence a si mesma e
dispõe, por meio da troca, da manifestação de sua própria energia. As duas

9 Cf. MARX, 2017a, p. 50.


10 “Toda concepção histórica existente até então ou tem deixado completamente desconsiderada essa base
real da história, ou a tem considerado apenas como algo acessório, fora de toda e qualquer conexão com o
fluxo histórico. A história deve, por isso, ser sempre escrita segundo um padrão situado fora dela; a
produção real da vida aparece como algo pré-histórico (...) Com isso, a relação dos homens com a
natureza é excluída da história, o que engendra a oposição entre natureza e história”. MARX; ENGELS,
2016, p. 43-44.
11 Cf. MARX; ENGELS, 2016, p. 94.
12 Cf. MARX, 2017a, p. 50.
13 Cf. MARX, 2017b, p. 159.

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partes se defrontam como pessoas. Formalmente, sua relação é a relação igual


e livre de trocadores. Que essa forma seja aparência, e aparência enganosa,
apresenta-se considerada a relação jurídica, como algo situado fora desta. O
que o trabalhador vende é sempre só uma medida determinada, particular, de
manifestação de energia; acima de toda a manifestação particular está a
capacidade de trabalho como totalidade. O trabalhador vende a manifestação
de força particular a um capitalista particular, com quem se defronta como
indivíduo independente.
MARX, 2011, p. 381.

Sobre a relação entre direito e economia, expressa a partir do vínculo contratual,


diz Marx:

As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se umas


pelas outras. Temos, portanto, de nos voltar para seus guardiões, os
possuidores de mercadorias. Elas são coisas e, por isso, não podem impor
resistência ao homem (...) Para relacionar essas coisas umas com as outras
como mercadorias, seus guardiões têm de estabelecer relações uns com os
outros como pessoas cuja vontade reside nessas coisas e que agir de modo tal
que um só pode se apropriar da mercadoria alheia e alienar a sua própria
mercadoria em concordância com a vontade do outro, portanto, por meio de
um ato de vontade comum a ambos. Eles têm, portanto, de se reconhecer
mutuamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é
o contrato, seja ela legalmente desenvolvida ou não, é uma relação volitiva,
na qual se reflete a relação econômica.
MARX, 2017b, p. 159.

Porém, o filósofo alemão não considera apenas os produtos do trabalho humano


útil14 ao tratar de mercadoria, nesse assunto. Ele também nos revela outro tipo de
mercadoria, esta capaz de gerar mais-valor: a força de trabalho15. Portanto, disso
conclui-se que a relação jurídica no Direito Privado, expressa pelo contrato, regula a
compra e venda da força de trabalho, ou, se preferirem, os vínculos empregatícios e
trabalhistas que regem a sociedade civil-burguesa, ao lado de múltiplas determinações,
como supracitado.
Afirma Marx:
A troca de mercadorias por si só não implica quaisquer outras relações de
dependência além daquelas que resultam de sua própria natureza. Sob esse
pressuposto, a força de trabalho só pode aparecer como mercadoria no
mercado na medida em que é colocada à venda ou é vendida pelo seu próprio
possuidor, pela pessoa da qual ela é a força de trabalho. Para vendê-la como
mercadoria, seu possuidor tem de poder dispor dela, portanto, ser o livre
proprietário de sua capacidade de trabalho, de sua pessoa. Ele e o possuidor
de dinheiro se encontram no mercado e estabelecem uma relação mútua como
iguais possuidores de mercadorias, com a única diferença de que um é
comprador e o outro, vendedor, sendo ambos, portanto, pessoas juridicamente
iguais.
MARX, 2017b, p. 242.

Tendo em vista os trechos anteriores, faz-se evidente a relação imbricada entre


direito e economia, donde se afere um caráter duplo intrínseco ao campo jurídico da

14 Cf. MARX, 2017b, p. 118-119.


15 Ibidem, p. 242.

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sociedade civil-burguesa: sua forma política, que promove a ilusão de que a lei baseia-
se na vontade livre, “separada de sua base real”16; e sua forma desvelada, i.e., seu
vínculo necessário com o processo histórico e com as demandas econômicas ― de
propriedade privada ― do capitalismo. Se, para a filosofia marxiana, “o Estado é a
forma na qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses
comuns e que sintetiza a sociedade civil inteira de uma época”17, os próprios pais do
materialismo histórico concluem que “todas as instituições coletivas são mediadas pelo
Estado, adquirem por meio dele uma forma política”18. Mas o que isso significa?
Primeiramente, que a política e o Estado são indissociáveis às vistas do filósofo alemão.
Em segundo lugar, que a política e o direito pressupõem, necessariamente, a sociedade
civil-burguesa e, por isso, mesmo que percebam as contradições inerentes à ela, não são
capazes de destruí-las19. Por fim, que “o direito nunca pode ultrapassar a forma
econômica e o desenvolvimento cultural, por ela condicionado, da sociedade”20.
É a partir do mencionado caráter duplo do direito burguês que essa forma
ideológica comunica-se com o fetichismo da forma-mercadoria, qual exposto por Karl
Marx no capítulo I do primeiro volume d’O capital. Contudo, para que a semelhança
entre ambos apresente-se de forma mais palatável, viajaremos ao mundo das
mercadorias a fim de resgatar alguns conceitos importantes na própria obra marxiana.
No que consiste, então, o caráter fetichista da mercadoria? O filósofo alemão
responde a essa pergunta a partir de um retrospecto da noção de forma-mercadoria.
Tendo estas ― as mercadorias ― uma dupla identidade frente às relações de troca entre
elas mesmas, a saber, valor de uso e valor21, graças à exclusão das diferenças
qualitativas de atividades humanas diversas para que se obtenha uma unidade de medida
similar a todas as mercadorias22 e, portanto, seja possível equipará-las, os produtos do
trabalho humano aparecem, de imediato, como entidades capazes de refletir aos homens
“os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios
produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas”23. Esse
véu ilusório, que surge da forma-mercadoria per si, faz com que “uma relação social
determinada entre os próprios homens”24 acabe assumindo “a forma fantasmagórica de
uma relação entre coisas”25. Em outras palavras, a forma-mercadoria mostra-se
incontinenti como uma “coisa viva” que se relaciona com outras mercadorias devido às
suas propriedades naturais.
Portanto:

16 Cf. MARX; ENGELS, 2016, p. 76.


17 Ibidem.
18 Ibidem.
19 Cf. MARX, 2010, p. 41.
20 Cf. MARX, 2012, p. 31.
21 Enquanto o valor de uso deriva da utilidade da mercadoria em questão, sendo tal utilidade

“condicionada pelas propriedades do corpo da mercadoria” (MARX, 2017b, p. 114), valor é uma
condição que só aparece na relação de troca entre mercadorias, uma vez que depende do trabalho humano
abstrato, i.e., conceito que ignora as propriedades qualitativas de diferentes objetos com a finalidade
última de igualá-los em uma equação quantitativa (MARX, 2017b, p. 116).
22 Trabalho humano abstrato.
23 Cf. MARX, 2017b, p. 147.
24 Ibidem.
25 Ibidem.

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A igualdade dos trabalhos humanos assume a forma material da igual


objetividade de valor dos produtos do trabalho; a medida do dispêndio de
força humana de trabalho por meio de sua duração assume a forma da
grandeza de valor dos produtos do trabalho; finalmente, as relações entre os
produtores, nas quais se efetivam aquelas determinações sociais de seu
trabalho, assumem a forma de uma relação social entre os produtos do
trabalho.
MARX, 2017b, p. 147.

Conhecidas as revelações acima, tem-se a primeira relação entre o direito


burguês e o caráter fetichista da forma-mercadoria. Ora, se a troca voluntária de
mercadorias é mediada, no capitalismo, através do contrato, do Direito Privado,
impossível concluir outra coisa senão que o campo jurídico qual exposto nesta seção
serve, portanto, à sistemática de uma relação ilusória entre produtos do trabalho
humano. O direito, camuflado pelo xale da vontade livre, tem seu conteúdo limitado
pela relação econômica26 justamente porque seu conteúdo vincula-se às esferas da
economia27, ainda que sob uma forma política. Ademais, os contratos trabalhistas, que
envolvem a compra e venda da força de trabalho como mercadoria28, são objeto
constante do Direito Privado na sociedade civil-burguesa. Daí infere-se que a força de
trabalho, única mercadoria sobre as quais os trabalhadores têm propriedade29, também
aparece como “coisa viva” quando se relaciona com o possuidor de dinheiro; a relação
entre pessoas, capitalista e trabalhador, coloca o anel de Nibelungo30 para dar lugar a
uma relação travestida de igualdade jurídica.
A outra relação entre o direito e o caráter fetichista da forma-mercadoria diz
respeito, especialmente, à forma política daquele, i.e., à “ilusão de que a própria
propriedade privada descansa na simples vontade privada, na disposição arbitrária das
coisas”31. Se, por um lado, a forma-mercadoria possui uma dupla identidade quando
inserida nas relações de troca com outras mercadorias, assim também é o direito privado
para Marx ― como visto anteriormente: além dessa manifestação ilusória, o campo
jurídico burguês leva consigo “o fato de que a propriedade privada tornou-se
plenamente independente da comunidade”32. É assim que o direito, qual a forma-
mercadoria, assume papel em uma relação que passa às costas dos indivíduos, com a
diferença que aquele na figura da vontade e esta na das “coisas vivas”. Em outras
palavras, enquanto o caráter fetichista da forma-mercadoria aparece como uma relação
entre coisas, alheias às pessoas que estabelecem as trocas, a forma política do direito
mascara seu vínculo com a economia por meio da vontade livre, seja ela geral ou
individual.

EVGUIÉNI B. PACHUKANIS: O MÉTODO, A IDEOLOGIA, A RELAÇÃO, O


SUJEITO

26 Cf. MARX, 2017b, p. 159.


27 “O direito privado se desenvolve simultaneamente com a propriedade privada, a partir da dissolução da
comunidade natural”. MARX; ENGELS, 2016, p. 76.
28 Cf. MARX, 2017b, p. 242.
29 Ibidem, p. 243-244.
30 Segundo Der Ring des Nibelungen, ciclo de quatro óperas do alemão Richard Wagner, o anel de

Nibelungo foi um artefato místico capaz de tornar invisível o seu portador.


31 Cf. MARX; ENGELS, 2016, p. 76.
32 Ibidem.

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“[...] o leitor que se dispuser a me seguir terá que se decidir a se elevar do particular ao geral.” (MARX,
2017a, p.50).
Evguiéni B. Pachukanis tenta elaborar sua Teoria Geral do Direito marxista
tendo em consideração o método marxiano de análise da forma econômica e, também,
as próprias análises marxianas da forma jurídica. Neste ponto, Pachukanis não precisou
“ter descoberto a América”33. Sua abordagem, que intenta aproximar a forma do direito
da forma da mercadoria, se por um lado é corajosa e brilhante, é confessamente não
original. Na verdade, para o jurista soviético, a filosofia do Direito, cuja base é a
categoria do sujeito, é a própria filosofia da economia mercantil realizada abstratamente
a prover as condições mais gerais pelas quais as trocas possam ocorrer, como já
ressaltado, em função da lei do valor e, em última instância, também a fornecer as
condições pelas quais a exploração do trabalho, então transformado em mercadoria,
aconteça sob a forma do “contrato livre”34.
A já explorada concepção de Stutchka, e mesmo a concepção imperativista do
Direito de Karl Renner (PACHUKANIS, 2017, p.73-74), peca por não perceber a
autonomia formal do direito em relação à política ― assim como outros pecam por
submeter completamente a superestrutura jurídica à superestrutura política. Em razão da
estreiteza dessas análises, o direito sempre passa como uma espécie de momento estatal
coercitivo, ou como mero interesse de classe. Isso ocorre ao mesmo tempo em que,
como já tratado no tópico precedente, simplificações grosseiras do conceito marxiano de
“ideologia” são levados à baila, dificultando o trabalho da crítica. Em verdade, o
princípio da subjetividade jurídica, tomado por muito desses teóricos do direito
pretensamente marxistas como simples produto da hipocrisia burguesa, ideológico e
destituído de importância para a análise crítico-teórica, não existe num vácuo: ele atua
estruturalmente incorporado à sociedade burguesa no momento em que ela nasce como
que da cabeça do sistema feudal-patriarcal e o aniquila; sua elaboração doutrinária é
necessária para uma sociedade que rompe os laços de servidão e cria uma sociedade
[civil-burguesa] atomizada, donde se faz possível precisamente que os homens se
reconheçam como proprietários de mercadorias e não como partes de um todo orgânico
e harmônico da medievalidade. O movimento histórico da forma econômica e da forma
jurídica ― ou mais precisamente, das formas embrionárias de ambas em direção às suas
“formas realizadas” ― sugere a Pachukanis que “a forma do direito, expressa por meio
de abstrações lógicas, é um produto da forma jurídica real ou concreta, uma mediação
real das relações de produção”35. Na verdade, na transação comercial, mediada pela
forma jurídica do contrato, não é nenhuma “ideia” que se forma sobre algo, mas um fato
econômico objetivo a que se liga uma forma jurídica objetiva sob o imperativo da lei do
valor.
Mas quais seriam os objetos par excellence de uma Teoria Geral do Direito? Os
conceitos jurídicos mais fundamentais e abstratos, ou o seu desenvolvimento, mais
acertadamente36. Tais conceitos são aplicados a todos os ramos do direito, independente
do conteúdo. São produtos posteriores de uma criação consciente. Porém, o que fazem
Piotr Stutchka, Mikhail Reisner e Karl Renner com seus enfoques conteudístico-
psicológicos ou imperativistas do direito? Qualquer coisa que não uma Teoria Geral do
Direito! A pergunta pertinente, então, não se encerra num questionamento vazio sobre

33 Cf. PACHUKANIS, 2017, p. 60.


34 Ibidem, p.60-61.
35 PACHUKANIS, 2017, p. 64.
36 Ibidem, p. 67.

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qual seria o objeto de uma hipotética Teoria Geral do Direito marxista, mas sim se tal
empreendimento seria viável. Ocorre que o direito é conceito complexo, não podendo
ser definido, ao menos sem que com isso se colabore com a ideologia burguesa,
segundo as regras da lógica escolástica ― i.e., não pode ser apreendido, tal qual
conceito atemporal, per genus et differentia specifica. Na verdade, a Teoria Geral do
Direito pachukaniana não toma, como em Stutchka, a função de reformular conceitos
gerais e abstratos para um posterior “direito proletário”, esse não é o seu intento. Seu
objetivo é:
Adentrar no território do inimigo, ou seja, não [se] deve deixar de lado as
generalizações e as abstrações que foram trabalhadas pelos juristas burgueses
e que se originaram de uma necessidade histórica de sua própria época e de
sua própria classe, mas, ao expor a análise dessas categorias abstratas, revelar
seu significado verdadeiro, demonstrar as condições históricas da forma
jurídica.
PACHUKANIS, 2017, p. 80 (grifos nossos).

O desaparecimento da ideologia ocorre junto ao desaparecimento das relações


sociais que a construíram, mas esse desaparecimento é precedido pelo franco ataque a
ela dirigido pela crítica. É quando a sua capacidade de ocultar as relações sociais se
perde que o fim dessas mesmas relações sociais se aproxima37.
É por isso que Pachukanis acredita estar legitimado a proceder com o direito,
qual Marx procedeu com a economia política. Assumindo que nas Ciências Sociais não
é possível decompor a realidade em seus mais simples elementos a partir do
“microscópio”, recorre-se à ajuda das abstrações, que quão mais perfeitas forem, maior
será a maturidade de dada ciência social38. A reconstrução da realidade deve partir, por
um lado, das categorias mais simples em direção àquelas mais complexas e, por outro
lado, das categorias mais abstratas em direção às mais concretas. Fazer o caminho
inverso, como pretendem Renner, Stutchka, Reisner e muitos economistas políticos
burgueses, i.e., começar as elaborações teóricas pelo “conjunto concreto”, leva a
pesquisa a um todo indiferenciado e caótico ― e.g., a tentativa escolástica de encontrar
uma definição de direito a-histórica, geral, que começa por uma definição
frequentemente focada no momento imperativo do direito e não resiste à passagem da
fórmula inerte para os “movimentos” da forma jurídica; para lidar com esses
desdobramentos, logo nos presenteiam os juristas burgueses com explicações sobre
dicotomias inicialmente não previstas no conceito: Direito Privado e Direito Público, jus
agendi e norma agendi etc.39. Na verdade as totalidades concretas devem ser o resultado
final de nossa pesquisa, não nosso ponto de partida. Os conceitos das ciências sociais
não só descrevem formas históricas, como os conceitos mesmos; diferentemente
daqueles das ciências naturais, possuem uma história40. É possível delimitar, a partir da
idealidade de um conceito como “sujeito de direito”, sua realização concreta e suas
formas históricas embrionárias. Mais: exatamente porque fomos capazes de precisar sua
realização concreta, e isso porque se abstrai do ente concreto um conceito abstrato,
podemos reconstruir suas formas embrionárias. Não seria possível a um indivíduo que
analisa tão somente a obligatio no direito romano precisar o conceito de sujeito, mas é

37 Cf. PACHUKANIS, 2017, p. 80.


38 Ibidem, p. 81.
39 Ibidem, p. 74-75.
40 Ibidem, p. 82-83.

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plenamente possível a um indivíduo moderno, contemporâneo à universalização de tal


conceito, analisar “o que há de sujeito” em tal relação.
Quer Pachukanis defender que não seja o direito fenômeno ideológico?
Obviamente não! O problema identificado por ele na doutrina de juristas como Mikhail
Reisner está na insistência em tratar o direito como fenômeno meramente psicológico41.
E com isso não quer Pachukanis negar o momento psicológico do direito e de outras
instituições: como dirá o próprio Engels, em passagem mal interpretada por Mikhail
Reisner, o “conceito” de feudalismo jamais correspondeu ao feudalismo na prática, sem
que, em razão disso, tenha deixado de existir objetivamente o próprio feudalismo. O que
se quer dizer com tal menção é que o direito possui momentos psicológicos óbvios e
que esses momentos são sim distorções do real [Wirklichkeit], sem, contudo, perder-se
de vista que o direito é reflexo de uma relação social objetiva, i.e., não produto da
hipocrisia burguesa. Ora, a constatação do caráter ideológico de um conceito não nos
exime do trabalho de explorar a realidade, aquilo que existe para além da consciência.
Exemplo disso é o profundo e icônico estudo de Marx das categorias da economia
política: por algum momento em sua vida, Karl Marx negou o caráter ideológico a
conceitos como “valor”, “mercadoria” ou “relação econômica”? É precisamente por
serem conceitos ideológicos, que a sua pretensão de universalidade e a-temporalidade é
aniquilada pelo olhar historicizante da boa crítica. Do ponto de vista de definição de
“Estado” para Reisner, como momento psicológico imperativo-atributivo, poderíamos
sem qualquer exagero dizer que não está o autor tão perto de Karl Marx quanto está do
paroxismo da cegueira neokantista, Hans Kelsen, para quem o conceito puramente ideal
de Estado está expurgado de quaisquer “momentos psicológicos” e de qualquer
substância material42.
Por outro lado, só objetar-se-á que o fato do “direito regular relações sociais”
torna-se tautológico diante da nossa assunção de que “o direito é reflexo de uma relação
social objetiva” acaso se incorra no erro metodológico de homens como Renner,
Stutchka ou Reisner: buscar um conceito a partir de sua “totalidade concreta”. Na
verdade, como no caso da economia política, ao dizermos que “o direito regula relações
sociais” estamos somente dizendo que a regulamentação das relações sociais assume
caráter jurídico em determinadas condições43. Além disso, a própria forma como isso é
assumido varia de intensidade: no clássico exemplo pachukaniano, as leis que regulam o
movimento dos trens em dada ferrovia, “regulam” em um sentido diferente do que o
fazem as leis de responsabilidade pelas estradas, que regulam a relação destas junto aos
expedidores de mercadorias44, sendo a primeira “regulamentação” de caráter
preponderantemente técnico, caracterizada pela unidade de finalidades dos sujeitos
interessados, e a segunda, de caráter preponderantemente jurídico, caracterizando-se por
um antagonismo de interesses entre os sujeitos envolvidos.
Findas as nossas considerações sobre a problemática da “ideologia” em
Pachukanis e nos debates nos quais o autor está inserido, passamos à análise da relação
jurídica, categoria especialmente quista pelo autor. É que, para Pachukanis, “do mesmo
modo que a riqueza da sociedade capitalista assume a forma de uma enorme coleção de
mercadorias, também a sociedade se apresenta como uma cadeia ininterrupta de

41 PACHUKANIS, 2017, p.87.


42Ibidem, p. 89.
43 Ibidem, p. 91-92.
44 Ibidem, p. 92.

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relações jurídicas”45. Uma sociedade atomizada, pressuposto da troca de mercadorias,


exige um médium, que é precisamente o contrato, célula central do tecido jurídico por
meio da qual o direito realiza seu real movimento46. O conjunto de normas
estaticamente tomado não é, portanto, nada além de uma abstração sem vida. Um estudo
honestamente marxista do direito não se esgota na norma nem na regra: a norma em seu
conteúdo deriva diretamente de uma relação já existente ou representa tão só uma
expectativa de surgimento de relações sociais a ela correspondentes num futuro
próximo. Se essas relações não aparecem, houve apenas uma tentativa falha de criar
direito47. Um mero exercício mental, para Pachukanis, revela a primazia da relação
jurídica sobre a norma: basta abstrair o aparato estatal garantidor das expectativas
sociais para notarmos que a relação jurídica persevera, se bem que seus sujeitos não têm
o benefício da quase absoluta estabilização de expectativas que só o Estado moderno é
capaz de fornecer. Contudo, se abstrairmos uma das partes a relação desaparece48. Toda
essa insistência que cheira a mofo poderia ser remontada a uma leitura mecanicista ―
provavelmente possibilitada por um contato pouco compromissado com a introdução da
Contribuição à crítica da economia política. Trata-se da visão de superestrutura política
como fenômeno puramente ideológico que se ergue da sociedade civil, e da
superestrutura jurídica como um momento abstrato secundário, portanto, determinado
pela primeira superestrutura. Nada mais reducionista! Em verdade, o direito se realiza
em todo seu movimento real justamente num momento em que é expressão jurídica
direta de uma relação social objetiva: as relações de produção, exprimidas juridicamente
pelas relações de propriedade49. Nesse ponto, não há quem, de bom senso, duvide que a
burguesia organizada no Estado apoia a injustiça nas relações de propriedade, mas não
foi ela definitivamente quem a criou: o homem que produz em sociedade é tomado
como premissa da teoria econômica, e também a deve tomar, para o jurista soviético, a
Teoria Geral do Direito. Assim, a própria relação econômica de troca deve existir para
que nasça a relação jurídica contratual de compra e venda. Em passagem extremamente
controversa, Pachukanis alude a um acoplamento em tese entre o “sujeito de direito” e o
“sujeito econômico egoísta”, abstrato e meramente atômico50. Contudo, segundo a
mencionada leitura, está ainda a forma jurídica demasiado atrelada à forma econômica
na relação contratual, sendo que a plena realização da forma se dá somente no litígio:
quando, por meio do processo judicial, o momento jurídico é abstraído do momento
econômico51, já que o traço próprio da sociedade burguesa reside precisamente no fato
de os interesses gerais se destacam do privado e a eles se opõe52. A relação jurídica nos
fornece, portanto, as categorias lógicas básicas a partir das quais podemos caminhar
para o todo do direito sem que, por meio desse trajeto, nos percamos num pandemônio
difuso e indiferenciado.

THOMAS HOBBES: O CONTRATO SOCIAL COMO AFIRMAÇÃO DA


LÓGICA ECONÔMICA NO SEIO DO ESTADO

45 Ibidem, p. 97.
46 Ibidem.
47 Ibidem, p. 99.
48 Cf. PACHUKANIS, 2017, p. 100.
49 PACHUKANIS, 2017, p. 102.
50 Ibidem, p. 103-104.
51 Ibidem, p. 104.
52 Ibidem, p. 113.

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Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a


consciência. No primeiro modo de considerar as coisas, parte-se da
consciência como do indivíduo vivo; no segundo, que corresponde à vida
real, parte-se dos próprios indivíduos reais, vivos, e se considera a
consciência apenas como sua consciência.
MARX; ENGELS, 2016, p. 94.

Como visto nas seções anteriores, a filosofia marxiana, enquanto materialista,


dialética e ontológica, atêm-se à influência que a realidade exerce sobre as formas de
consciência, as concepções de mundo dos seres humanos. Cabe dizer, portanto: as
contingências ― materiais e históricas ― dispostas a determinado grupo ou indivíduo
têm caráter fundamental na gênese de sua apreensão do real efetivo [Wirklichkeit]. Com
base nesses pressupostos já explicados, pretendemos analisar o pensamento jurídico-
liberal à forma do contratualismo hobbesiano, i.e., propomos um estudo do direito
positivo moderno ― e de suas consequências no desenrolar do capitalismo ― presente
em Hobbes a partir do momento histórico no qual o filósofo inglês estava inserido, bem
como da sua biografia. Assim, visamos ao entendimento de como a metáfora do
contrato social e a interpretação mecanicista da natureza humana impuseram-se triviais
ao desenvolvimento do Direito Privado na sociedade civil-burguesa e ao
estabelecimento de uma lógica econômica ao Estado.
Sabe-se que a figura do contrato social já estava em voga entre os intelectuais
europeus do século XVII, sendo, pois, a obra hobbesiana nada original nesse aspecto53.
Também não é segredo que Hobbes, nascido em Malmesbury, adotou as críticas aos
métodos escolásticos do ensino religioso à época de sua formação em Magdalen Hall e
as noções modernas de ciência graças ao seu interesse ímpar em física e matemática54.
A atividade política do filósofo inglês fê-lo, ainda, buscar exílio na França durante “a
guerra civil entre puritanos e monarquistas”55 e, posteriormente, “devido a seus ataques
ao papado”56, abandonar a Cidade das Luzes.
Que nos ensina essa breve biografia? Ora, evidencia-nos imediatamente não só a
inspiração direta de Hobbes para formular suas considerações de “homem-máquina”,
movido por uma natureza estática que seria feita de três elementos ― “competição,
desconfiança e glória”57 ―, mas também as origens de sua explicação contratualista
para o surgimento do Estado58. Contudo, em uma análise mais profunda, voltando-se os
olhos às circunstâncias sob as quais é feita a História, percebemos o estabelecimento
teórico de dois conceitos importantíssimos para a ascensão burguesa ― estes, além de
gestados pelo ancien régime, amamentados por ele até o estopim das revoluções: o
indivíduo, agora independente da pólis clássica, possuidor de liberdade e vida privadas,
e a igualdade formal, mote utilizado anos mais tarde para a fixação de uma justificativa
jurídica no seio da sociedade civil-burguesa.
Hobbes, apesar de não ter vivido a ascensão e o apogeu da burguesia, sem
dúvidas presenciou a construção da base do capitalismo liberal, influenciando
diretamente esse modelo de sociedade ao unir, de forma clara e honesta, o indivíduo e

53 Cf. MATOS, 2006, p. 12-13.


54 Ibidem, p. 11.
55 Ibidem.
56 Ibidem.
57 Cf. HOBBES, 2015, p. 108.
58 Ibidem, p. 113.

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as consequências jurídicas da igualdade formal. Portanto, opôs-se não só ao zoon


politikon aristotélico como à teologia escolástica ao afirmar que o indivíduo, axioma
imprescindível da modernidade, seria anterior à comunidade59. Mais: que a volição
desses indivíduos seria capaz de criar um homem artificial, um Estado regulador das
condutas humanas60 “levadas pela ambição, pelo egoísmo e pela maldade insípida à
natureza”61 dos próprios homens.
Tal volição, como tratado nas outras seções, não poderia ser outra senão a
manifesta pelo dispositivo basilar do Direito Privado: o contrato62. Mas qual a
substância desse pacto cujo filho é o Estado? Segundo Hobbes, é a percepção de que o
exercício pleno do direito natural [jus naturale] perpetuaria a condição humana de “uma
guerra de todos contra todos”63, impedindo, assim, um dos fins mais quistos pelos
homens: a preservação da própria vida64. Por isso, os indivíduos alienam sua liberdade
em prol de uma segurança garantida pelo Estado e, consequentemente, de um espaço de
exercício de liberdade negativa65. Em outras palavras, a sociedade organizada pelo
Estado caracteriza-se pela restrição de uma liberdade plena, derivada do direito natural
[jus naturale], a favor de uma liberdade restrita, regulada, mas passível de se concretizar
em acordo com os fins delegados pela razão e pelas paixões humanas66, e.g., “o medo
da morte, o desejo das coisas que lhe dão conforto e a esperança de obtê-las por meio de
seu trabalho”67.
Esclarece o filósofo inglês:
Da lei fundamental da Natureza, que ordena aos homens que procurem a paz,
deriva esta segunda lei: o homem deve concordar com a renúncia a seus
direitos sobre todas as coisas, contentando-se com a liberdade que permite
aos demais, na medida em que considerar tal decisão necessária à
manutenção da paz e de sua própria defesa. Se cada qual fizer tudo aquilo a
que tem direito, reinará a guerra entre os homens. Entretanto, se todos os
outros homens não renunciarem a seus direitos, não haverá razão para que
alguém se prive daquilo a que tem direito, pois isso significaria oferecer-se
como presa (ao que ninguém é obrigado), e não dispor-se à paz. Esta é a lei
do Evangelho: “Tudo que queres que os outros te façam, faça-o tu a eles”, e
esta é a lei de todos os homens: Quod tibi fieri non vis, alteri ne feceris.
HOBBES, 2015, p. 111-112.

E prossegue, explicitando que o Estado político é consequência direta de um


contrato:
Um Estado é considerado instituído quando uma multidão de homens
concorda e pactua que a um homem qualquer ou a uma qualquer assembleia
de homens seja atribuído, pela maioria, o direito de representar a pessoa de
todos eles (ou seja, de ser seu representante), todos sem exceção, tanto os que
votaram a favor (...) como os que votaram contra, devendo autorizar todos os
atos e decisões desse homem ou dessa assembleia de homens, como se

59 Cf. MATOS, 2006, p. 16.


60 Cf. HOBBES, 2015, p. 113.
61 Cf. MATOS, 2006, p. 13.
62 Cf. HOBBES, 2015, p. 113-114.
63 Ibidem, p. 108.
64 Ibidem, p. 107 e 110.
65 Ibidem, p. 111-112.
66 “Dessa maneira, a liberdade natural (...) se transmuta em liberdade civil”. MATOS, 2006, p. 16.
67 Cf. HOBBES, 2015, p. 110.

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fossem seus próprios atos e decisões, a fim de poderem conviver


pacificamente e serem protegidos dos restantes homens.
HOBBES, 2015, p. 143.

Findas as considerações básicas acerca do contratualismo hobbesiano, faz-se


mister um retorno à passagem que deu início à presente seção. Se é a vida o ente
determinante da consciência, e não o contrário68, conclui-se: Hobbes nunca teria
produzido sua magnum opus se as contingências históricas e materiais dispostas a ele
não o favorecessem a tal. Contudo, a História não é uma via de mão única, mas uma
relação dialética ― como visto anteriormente ― entre subjetividade humana e
objetividade do real [Wirklichkeit]. Isso significa que os escritos do filósofo de
Malmesbury, enquanto produtos do trabalho humano, também foram de fundamental
importância para os rumos que a futura sociedade civil-burguesa tomaria, tanto
intelectual quanto empiricamente. Portanto, pretende-se expor, através de uma leitura
jusfilosófica do Leviatã, as semestes hobbesianas do positivismo jurídico e da
subordinação do Estado e do direito burgueses aos interesses privados, de matriz
econômica, das quais rebentaram os espinhos do capitalismo, exemplificando assim as
inferências já apresentadas nas demais seções.
Primeiramente, voltemo-nos ao proto juspositivismo de Thomas Hobbes a fim
de mantermos uma sequência lógica de argumentos.
Um dos passos iniciais para se compreender a relação da filosofia hobbesiana
com o positivismo jurídico é atentar-se à própria figura do contrato social, explicitada
acima. Através da ideia de que os homens, por sua vontade, são capazes de estabelecer
uma sociedade política de talhe estatal, Thomas Hobbes descarta a “racionalidade
político-jurídica teológica, de matriz medieval, por outra de feição moderna, técnico-
racionalista e laical”69. Em outras palavras, o teórico de Malmesbury define uma
fronteira espessa entre direito natural [jus naturale]70 ― próprio de um período histórico
contrafactual, anterior à sociedade e, também, regido por uma lei natural [lex naturalis]
71
da qual derivam outras duas de maior relevância72 ― e as leis impostas pelo Estado,
que, sendo “mais potente que qualquer indivíduo (...), é capaz de exigir que as leis
naturais sejam cumpridas, ao mesmo tempo em que pune aqueles que as transgridem”73.
Portanto, afere-se em Hobbes a atribuição de uma racionalidade instrumental,
utilitarista, ao homem, pois “o respeito à lei natural não se deve (...) à sua majestade
intrínseca ou à sua suposta obrigatoriedade inata, mas a um cálculo interesseiro de lucro
e prejuízo social”74.
Torna-se nítida, então, a supremacia das normas jurídicas positivas, i.e., criadas
e aplicadas pelo Estado, sobre o direito natural [jus naturale]. Ora, se “a razão humana é
capaz de constituir, por si só, a mecânica estrutural da comunidade”75 não há motivos

68 Cf. MARX; ENGELS, 2016, p. 94.


69 Cf. MATOS, 2006, p. 14-15.
70 “O direito natural (...) é a liberdade que cada homem tem de utilizar seu poder como bem lhe aprouver,

para preservar sua própria natureza, isto é, sua vida”. HOBBES, 2015, p. 110-111.
71 “A lei natural (lex naturalis) é a norma ou regra geral estabelecida pela razão que proíbe o ser humano

de agir de forma a destruir sua vida ou privar-se dos meios necessários a sua preservação”. HOBBES,
2015, p. 111.
72 Cf. HOBBES, 2015, p. 111 e 120.
73 Cf. MATOS, 2006, p. 16.
74 Cf. MATOS, 2006, p. 16.
75 Ibidem, p. 17.

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para se pressupor elementos transcendentais cuja função seria justificar moralmente o


ordenamento jurídico posto. Em outras palavras, os homens são os responsáveis pela
elaboração da sociedade estatal e, consequentemente, das únicas normas jurídicas
realmente eficazes: o direito positivo76.
Sobre o tema, diz Andityas Matos:
Constituído o Estado, Hobbes deixa de fazer qualquer referência ao direito
natural, o que prova, uma vez mais, a sua modernidade. Com efeito, se
apenas o indivíduo ― e não a comunidade ― possui direitos naturais, é
inconcebível transplantá-los para a sociedade política, já que serviram
unicamente para a sobrevivência do homem enquanto ser natural,
desvinculado dos demais da espécie.
MATOS, 2006, p. 18.

E continua, mostrando-nos o caráter centralizador que o direito, em sua forma


prematura de juspositivismo burguês, assume nos compostos do filósofo anglo-saxão:
Não há lugar no sistema hobbesiano para o antigo direito natural, que fazia a
ordem terrestre depender da divina (...) Tal demonstra a clarividência de
Hobbes, que, séculos antes do positivismo jurídico, compreendeu que o poder
político-jurídico deve monopolizar a coerção, inadmitindo qualquer ordem
normativa concorrente. Com efeito, a independência entre Estado e religião
― que corresponde à emancipação do direito positivo em relação ao direito
natural ― conforma uma das maiores vantagens do positivismo jurídico
instituído por Hobbes e levado às últimas consequências por Kelsen.
MATOS, 2006, p. 21.
Expostos os argumentos que validam Thomas Hobbes como precursor do
positivismo jurídico, cabe a nós relacionar essa nova guisa de se encarar o direito com o
estabelecimento da lógica econômica no seio do Estado capitalista. Não é mistério que o
juspositivismo levado a cabo pelas revoluções burguesas determinou uma série de
invólucros jurídicos cuja função social era a de permitir e perpetuar o modo de produção
agora vigente. O rompimento com o privilégio medieval, a igualdade formal entre os
homens e a regulação da propriedade privada foram, sem dúvidas, elementos
importantíssimos para a concretização de um sistema capaz de abranger as trocas
voluntárias e as relações trabalhistas, i.e., a compra e venda da força de trabalho como
mercadoria77. O repúdio ao domínio normativo clerical e à interferência generalizada do
Estado na vida dos indivíduos criou, em primeira instância, uma esfera de liberdade
negativa e, depois, uma subordinação da própria burocracia estatal frente à letra da lei.
O Estado de Direito Liberal, expressão máxima das conquistas burguesas, nada mais é
que a mostra da soberania pública enquanto títere do Direito Privado.
Como visto nas seções anteriores, “o direito nunca pode ultrapassar a forma
econômica”78 justamente porque a relação jurídica burguesa é a relação contratual, a
lógica econômica mascarada pelo caráter político do direito, i.e., a vontade livre79.
Portanto, não há de se concluir outra coisa senão que o Direito Privado, ao cantar o
chicote nas costas do Estado, transfere-lhe a mesma sujeição à estrutura econômica da

76 “Ao direito positivo repugna qualquer metafísica ou consideração axiológica capaz de obscurecer os
limites reais, efetivos e empíricos da experiência jurídica, que se resume no direito posto, ou seja,
existente”. MATOS, 2006, p. 17.
77 Cf. MARX, 2017b, p. 242.
78 Cf. MARX, 2012, p. 31.
79 Cf. MARX; ENGELS, 2016, p. 76.

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qual é cativo. Em outras palavras, os interesses privados dos proprietários e dos


possuidores de dinheiro, por constituírem-se como os interesses do próprio capital, são
feitores tanto dos indivíduos quanto da sociedade civil-burguesa.
Depois de reavivar as primeiras conclusões deste trabalho, foquemo-nos,
finalmente, na metáfora do contrato social hobbesiano e em sua importância para a
solidificação do capitalismo na consciência geral.
A princípio, deve-se notar que o contratualismo estabelece o instrumento básico
do Direito Privado, i.e., a igualdade de condições jurídicas e racionais, como o ventre da
sociedade política. Mas o que essa obviedade quer dizer? Ora, que o Estado é fruto da
vontade de todos, ou pelo menos da maioria, dos indivíduos que o constituem, pois esse
mesmo Estado é uma necessidade para a sobrevivência dos homens e para a
concretização dos fins delegados pela razão e pelas paixões humanas80. Portanto, o
Estado torna-se um axioma, algo inquestionável; não é um produto histórico81, um filho
das contingências objetivas e subjetivas dispostas na realidade [Wirklichkeit]. Pelo
contrário: é algo natural e eterno82 como as divindades que o juspositivismo relegou ao
vale da sombra da morte83.
Com a ascensão da burguesia, a sociedade capitalista tornou-se tão indubitável
quanto o Estado. A acumulação primitiva [previous accumulation], portanto, assume o
papel de “pecado original econômico”84, donde se afere uma lenda na qual há dois tipos
de protagonistas incipientes: “por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo
parcimoniosa, e, por outro, uma súcia de vadios a dissipar tudo o que tinham e ainda
mais”85. Assim, segundo Karl Marx, estaria justificado, aos olhos da sociedade civil-
burguesa, o enriquecimento de alguns ― “embora há muito tenham deixado de
trabalhar”86 ― e a venda da força de trabalho por parte dos pobres, incapazes de
enriquecer “apesar de todo seu trabalho”87.
Esta é, pois, a afirmação da lógica econômica no seio do Estado por parte da
mitologia do contrato social: a conformidade com o status quo, a oposição entre
natureza e História88, o ouro reluzente que esconde o sangue dos expropriados desde o
século XV89. Enfim, a solidificação do capitalismo através da ilusão de que o Estado, a
política e o direito são necessários para que não matemos uns aos outros.

80 Cf. HOBBES, 2015, p. 110.


81 Cf. MATOS, 2006, p. 23.
82 “Qualquer contrato tem que prever a possibilidade de dissolução do vínculo (...) Sem dúvida, quando

cumprimos nossos acordos, eles deixam de existir, já que são simples meios para se alcançar determinada
finalidade. Entretanto, Hobbes acaba por transformar o instrumento em fim: o contrato social que mantém
o Estado-Leviatã jamais se extingue, a não ser para dar lugar a outro”. MATOS, 2006, p. 23-24.
83 De acordo com a tradição judaico-cristã, o vale da sombra da morte era um local onde se

abandonavam os leprosos à própria sorte. No Novo Testamento (Lc. 10:30-35), era o caminho que levava
de Jerusalém a Jericó.
84 Cf. MARX, 2017b, p. 785.
85 Ibidem.
86 Ibidem.
87 Ibidem.
88 Cf. MARX; ENGELS, 2016, p. 44.
89 Cf. MARX, 2017b, p. 788-790.

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2015.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2016.

MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão


Popular, 2017a.

MARX, Karl. Crítica do programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.

MARX, Karl. Glosas críticas ao artigo “O rei da Prússia e a reforma social’. De um


prussiano”. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Lutas de classes na Alemanha. São
Paulo: Boitempo, 2010. p. 25-52.

MARX, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011.

MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2016.

MARX, Karl. O capital. São Paulo: Boitempo, 2017b. v. I.

MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Thomas Hobbes, avatar do positivismo


jurídico: uma leitura jusfilosófica do Leviatã. PHRONESIS Revista do Curso de
Direito da FEAD-Minas, [S.I.], v. 1, n. 1, p. 9-28, jan. 2006. Disponível em:
<http://revista.fead.br/index.php/dir/article/view/241/182>. Acesso em: 24 maio 2018.

NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito. São Paulo: Boitempo, 2008.

PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo:


Boitempo, 2017.

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

Acerca da prioridade ontológica do econômico-social sobre o jurídico

Vitor Bartoletti Sartori


Universidade Federal de Minas Gerais
vitorbsartori@gmail.com

O momento em que vivemos, de certo modo, é sui generis. Para qualquer pessoa
honesta, não há dúvida do fato segundo o qual o (des)governo atual é aquele das camadas
mais corruptas do aparelho estatal brasileiro; não há como deixar de perceber também
que a manobra utilizada para convencer acerca da “legitimidade” do vice é bastante
tecnocrática: passa pela apologia dos “amargos remédios” a serem trazidos com as
chamadas “reformas”, supostamente necessárias. Claro, isto faz bastante sentido se a
reprodução do capital é a única alternativa colocada ao presente. No entanto, não é o caso,
em verdade. O caráter civilizatório desta “relação social mediada por coisas” (Marx) é tal
que, para a manutenção da normalidade, defende-se importantes “reformas”, que
ninguém com mente sã deixa de perceber se tratar de contrarreformas. Tratar-se-iam de
modificações substanciais na previdência social e na CLT, de modo que grande parte
daqueles “freios racionais” (Marx) trazidos pela legislação social seriam derrubados de
um golpe só. Este sempre foi o desejo burguês e, em verdade, os “freios racionais” são
também uma exigência do capitalismo mesmo.
O momento, porém, é de bastante difícil compreensão porque as manobras
políticas – como a derrubada de Dilma – que trouxeram o vice ao planalto, geralmente,
ocorrem em um cenário defensivo por parte das camadas mais conservadoras da
sociedade. Hoje, acreditamos, tem-se o oposto: trata-se de uma ofensiva por parte do
capital contra o trabalho, e ela somente é possível depois de anos de governismo e de
“governabilidade” por parte daqueles que chamavam para si de “esquerda”. Ou seja, o
terreno foi fertilizado para o “golpe”. E isto aconteceu por meio das mãos de uma
“esquerda” que realizou o trabalho sujo da direita: fez com que movimentos sociais
aderissem à governabilidade, acabou com o caráter combativo do novo sindicalismo e
trouxe consigo um cenário em que, de um modo ou de outro, o MST é somente uma
sombra do que já foi. Ou seja, o cenário é aquele em que o petismo é derrotado pelos seus
deméritos e pela sua ausência de radicalidade. Diante dos imperativos de valorização do
valor, o moralismo petista não foi só a “impotência colocada em ato” (Marx e Engels),
mas o verniz por meio do qual se solapou aqueles que poderiam se colocar contra o modo
de produção capitalista e, portanto, contra a lei do valor.
É neste cenário em que radicalização da direita se torna bastante clara: de
Bolsonaro ao discurso conservador que permeia partidos da ordem como o PSDB e o
PMDB, a questão se mostra de modo direto e, até agora, não foi possível à esquerda
aparecer com uma alternativa real ao petismo. Sequer parece ser possível enterrar os
mortos – o grito esperançoso de “Lula 2018” atesta isso. O real morto-vivo, porém, há
tempos, não é problematizado, o capital. Diante deste ponto cego da política, é que é
necessário nos colocarmos, até mesmo porque somente com uma mudança substantiva é
possível que busquemos o “controle racional e planejado” (Marx), necessário para nos
opormos aos mais diversos fetichismos, da mercadoria, do dinheiro, do capital, entre
outros.

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

Neste pequeno texto, pretendemos abordar rapidamente estas questões: 1) o


cenário de derrota dos trabalhadores diante do contexto posterior à queda do “socialismo
real”; 2) a derrota dos trabalhadores no Brasil diante da “redemocratização”; 3) o papel
do petismo no solapamento de uma esquerda institucional que realizou o trabalho do
capital; 4) o modo pelo qual se tem uma volta dos que não foram no que toca a direita
mais tacanha neste cenário.

II

O cenário imediatamente anterior ao fim da URSS é aquele em que o próprio


capitalismo entra em uma crise violenta; o processo de realização do valor, colocado na
esfera de circulação, mas dependente da produção social, é tematizado pelos mais
diferentes teóricos, como Baran, Sweezy, Mandel, dentre outros. Trata-se da dificuldade
de se gerar aquilo que Keynes chamou de “demanda efetiva”, de modo que, tudo mais
constante, no limite, é possível até mesmo a “estaginflação” (Mandel). Depois da década
de 70, com o choque do petróleo e com a reorganização das relações de trabalho no campo
fabril, certamente, tem-se o fim dos “anos dourados” do capitalismo. Eles, que vieram
com o fim da Segunda Guerra, e com a necessidade de “reconstrução” da Europa
trouxeram grande impulso ao capital na medida em que a expansão do processo de
valorização do valor foi facilitado por esta circunstância política, a guerra. (Harvey) Tais
tempos tiveram também como pano de fundo a guerra fria e o panorama em que políticas
econômicas de matriz keynesiana deram a tônica da economia nos países centrais do
capitalismo.
Neste momento, mesmo autores bastante críticos (como aqueles da chamada
escola de Frankfurt), acreditaram que o capitalismo conseguiria resolver, em seu bojo, de
modo bastante contraditório, por certo, a questão do acesso a bens materiais básicos por
meio de uma situação em que a irracionalidade do mercado seria gerida de modo político.
Ou seja, a irracionalidade do capital e do processo de produção e reprodução do valor
parecia poder ser contrabalançada com uma racionalidade “instrumental”. Esta última, no
limite, impondo-se, levaria a uma unidimensionalidade (Marcuse) em que qualquer
perspectiva, por assim dizer, “utópica” parecia, de imediato, estar bastante longe. Mesmo
que isto não fosse verdadeiro, a aparência seria acachapante.

III

Os anos 70, porém, com sua efervescência, trouxeram, na esteira de 1968, as mais
diversas revoltas e demandas qualitativas que pareciam ser incompatíveis com a
sobrevivência do próprio capitalismo e da “equalização” (Marx) trazida pela imposição
da lei do valor. No plano da produção, a demanda por autogestão, bastante forte
principalmente em solo italiano, parecia poder romper com o domínio do capital,
colocado em sua figura fordista. Com ela, a participação do trabalhador na produção trazia
o virtual desaparecimento de uma figura que corporificava a repressão à classe
trabalhadora, aquela do contramestre. E, assim, certo ganho da organização dos
trabalhadores frente à esquerda oficial (ligada aos PCs) era evidente; ao mesmo tempo,
há de se reconhecer que, uma questão essencial – a supressão da própria relação-capital
e, com ela, do assalariamento – parecia ter sido deixada em segundo plano, de modo que
a história das décadas de 70 e de 80 é também aquela de gestão da crise do sistema
capitalista por meio da autorganização dos trabalhadores no nível da fábrica. Ou seja, a

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

chamada acumulação flexível traz, dentre outras coisas, o envolvimento muito maior (se
compararmos com o fordismo) do trabalhador com a produção capitalista, de maneira que
a introjeção dos imperativos de “autovalorização do valor” (Marx) aparecesse ao passo
que a atividade fabril incorporava de modo muito mais pungente a personificação de uma
espécie de “sujeito automático” (Marx). Neste sentido, tais questões, tratadas por Karl
Marx no primeiro livro de O capital, e ligadas à sua teoria do valor, em verdade, aparecem
de modo muito mais avassalador com a assim chamada “acumulação flexível”.
A figura daquela classe trabalhadora adaptada, pelo hábito e pela educação, à
reprodução do capital colocada pela “autovalorização do valor” - questão tratada por
Marx no capítulo sobre a “assim chamada acumulação primitiva” - aparece como uma
realidade de modo muito mais direto. No momento em que muitos (como André Gorz,
por exemplo) apontavam a falência da lei do valor tratada no capítulo I da obra magna de
Marx, ela se mostra, em verdade, de modo muito mais evidente. E, assim, a crise da
década de 70 trouxe, depois de diversas lutas sociais e ajustes, uma reorganização das
relações de trabalho; com isto, demandas pontuais da classe trabalhadora são
incorporadas na medida em que o essencial à luta desta classe – a própria supressão do
capital – fica subordinada às lutas imediatas e setorizadas que aparecem depois de maio
de 1968 com muito mais destaque que antes. Ou seja, o processo de valorização do valor
acaba sendo deixado intocado.
Claro, este processo não é simples. E, para que ele se implementasse, foi preciso
que após um momento breve de lutas ascendentes dos trabalhadores, estes fossem
derrotados por meio dos mais vis modos que o capitalismo é capaz. O neoliberalismo de
Tatcher e de Reagan foi uma resposta neste cenário e significou não só a financeirização
da economia, mas a derrota dos sindicatos e das camadas historicamente mais combativas
da classe trabalhadora. Ou seja, o processo que começa com a incorporação pontual de
demandas dos trabalhadores e, assim, com um “reconhecimento oficial” (Marx) pelo
Direito de reivindicações pontuais - e, portanto, de um modo meandrado, de “conquistas”
- termina, de certo modo, com a repressão brutal dos instrumentos mediante os quais os
trabalhadores organizaram suas lutas historicamente. A crise da URSS, bem como a
burocratização dos PCs, fez isso no que toca a forma partido político. A situação do
capitalismo mundial associada a uma ofensiva espoliativa neoliberal tornou infinitamente
mais fracos os sindicatos. A questão que preocupa, porém, diz respeito ao modo pelo qual
esta derrota havia sido imposta à classe trabalhadora: por meio da incorporação de suas
demandas em um primeiro momento e a partir do reconhecimento oficial e jurídico de
aspectos parciais de suas críticas ao modo de produção capitalista. De certo modo, mesmo
que de maneira bastante meandrada, a desregulação que começa a ser implementada na
década de 70 aparece como uma espécie de autogestão às avessas; trata-se de uma
“autogestão” subsumida ao processo de valorização do valor. Trata-se de uma luta
legítima (pelo controle da produção) que, ao não se colocar de modo radical o suficiente,
viu-se refém daquilo que deixou entre parênteses. Ao passo que a posição socialista
“tradicional” foi deixada de lado, também deixou-se de criticar do modo devido o
verdadeiro alvo, o capital e, com ele, a autovalorização do valor. Este, de certo modo, é o
percurso da derrota dos trabalhadores nos países centrais.

IV

No âmbito internacional, portanto, embora não só, a derrota dos trabalhadores que
se consolida com o neoliberalismo mais vil de um Reagan e de uma Tatcher parte de um

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

processo que começa com o reconhecimento de demandas bastante legítimas por meio,
também, de lutas “por direitos”, e termina com o solapamento dos meios para estas
próprias lutas. Ou seja, a falta e uma radicalização socialista – falta esta também possível
devido ao papel subserviente dos PC s – teve um preço muito destacado aos trabalhadores.
E, com isso, a crise do movimento comunista (Claudin) tem sua face também no âmbito
europeu e americano com a crise de representatividade dos partidos e dos sindicatos
tradicionais da esquerda comunista e socialista.
No caso da América latina e do Brasil em especial, claro, a questão é bastante
diferente, embora passe pelo processo de valorização do valor; não só porque falar de
“anos de ouro do capitalismo” é, de imediato, uma piada ruim...mas também porque a
crise dos anos 70 nos atinge de modo que é a ditadura militar que, com o tempo, entra em
crise sem que qualquer demanda dos trabalhadores seja atendida de imediato; antes, a
base mesma do regime militar é o arrocho salarial (Chasin). E, deste modo, pode-se
mesmo dizer que a busca por democracia só poderia aparecer quando “param as
máquinas”; ou seja, neste momento, as demandas imediatas dos tralhadores colocavam
em xeque a própria base da existência da ditadura e, assim, a luta pela “redemocratização”,
que teve como principal combustível as greves de 1978-79 continha um potencial bastante
grande, no limite, contrário à própria conformação do capitalismo no Brasil, um
capitalismo em que a reprodução do capital nunca trouxe os trabalhadores ao cenário
político e em que a radicalidade foi, de certo modo, condição para a sua sobrevivência
enquanto classe.
O cenário da redemocratização, pois, efetivamente, poderia trazer muito. No
entanto, sob o ímpeto “primeiro democracia e depois o resto” (Chasin), esvazia-se
justamente aquilo de mais interessante na derrocada da ditadura. A constituinte que
redunda na constituição de 88 se dá de tal modo que a transição “lenta, gradual e segura”
é sacramentada e o modo pelo qual o capitalismo se conforma no Brasil resta intocado:
tanto é assim que praticamente todas as pessoas que fizeram parte do governo militar
permaneceram em posições públicas de relevo. Da ditadura, pois, restava “tudo, menos a
ditadura” (Thales Ab Saber) de modo que a “esfera pública” brasileira estava fechada às
demandas populares. O aparato político e jurídico da ditadura eram mantidos no que toca
a organização do Estado, de tal feita que, da mesma maneira que antes, embora com
nuances, a institucionalização reconhece oficialmente o modo pelo qual as lutas dos
trabalhadores não foram tidas como centrais e uma demanda supostamente transclassista
(“democracia”) significou o abandono das maiores potencialidades de 1978-79. O
resultado é a “nova república” (sic), que nasce velha e traz, na, letra, uma constituição
bastante progressista, que parece abrir espaço para as mais diversas demandas da
“sociedade civil”. Com o aparato político e jurídico da ditadura – e, claro, com o processo
de reprodução do capital subjacente a isto - tem-se uma constituição inspirada na
constituição dirigente portuguesa e na constituição da república de Weimar (o fato de que
ambos os modelos terem redundado em derrotas retumbantes não pode ser analisado aqui,
infelizmente, e é sempre esquecido…). Ou seja, diante disto, a esfera jurídica parecia
oferecer a porosidade que a política não oferecia: MST, PT, CUT utilizaram-se muito da
“luta por direitos” para se opor ao neoliberalismo que veio depois da “redemocratização”
com Collor e com FHC; usos “contrahegemônicos” do Direito pareciam ser uma solução
possível, de modo que o “terreno do Direito” parece ser bastante progressista no caso
nacional. A luta, pois, ainda se coloca como política, certamente, mas o “atalho” jurídico,
com a ajuda da “sociedade civil” e de juristas progressistas, parece ser bastante plausível,
inclusive, estrategicamente. No ponto cego de tudo isto está a reprodução do próprio

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capital, claro; a produção e a realização do valor, assim, restam sem qualquer


problematização quando o que se busca é a “politização” crítica do Direito.
Como aponta Marx, o Direito não pode ser outra coisa que o “reconhecimento
oficial do fato”. Tem-se, ontologicamente – trata-se da “prioridade ontológica do
econômico” (Lukács) -, uma dependência desta esfera diante das lutas econômicas e
sociais; e mais, se, pela política, no limite, é possível uma política que negue a política e
o Estado (Chasin), o mesmo não acontece com o campo jurídico, que precisa de modo
muito mais direto da existência do Estado e, portanto, das sociedades classistas. Com a
política, portanto, seria possível buscar a crítica ao próprio capital, com o Direito, não.
Novamente, no entanto, no cenário brasileiro, tal questão central, aparece, no melhor dos
casos, somente como um tema de fundo...mas com um agravante sério: a esfera política
brasileira nunca retirou de cena o “entulho autoritário”, até mesmo porque a estrutura
social defendida pela ditadura nunca foi para a “lata de lixo da história”. A consolidação
da “redemocratização”, pois, trouxe o reconhecimento das bases do capitalismo brasileiro,
de “extração colonial” (Chasin) e, é bom dizer, dependente do mercado externo, e incapaz
de romper com o que Caio Prado Jr. chamou de “sentido da colonização”. Assim, o modo
como se firma a institucionalidade pós-ditadura implica, também, em uma derrota. Trata-
se de algo de grande monta: nada menos que jogar no lixo um dos movimentos mais
radicais da história brasileira é o que estava em questão; se a normalidade significasse
jogar para escanteio a radicalização, a busca desta significaria a aceitação acrítica do pior
de um capitalismo periférico.

Muitos acreditaram sinceramente que o petismo significa um rompimento com


este parâmetro. A subida de um ex-operário ao poder simbolizaria justamente o
rompimento com o modelo subordinado de capitalismo vigente desde que o “sentido da
colonização” foi colocado sobre os pés. As ilusões – agora, percebemos que elas se
colocavam como tais - quanto ao partido não se colocaram no sentido de uma crença na
superação do capitalismo, é preciso que fique claro – antes, parece que a falta de “vontade
política” seria suprida e, finalmente, um projeto de desenvolvimento nacional seria
colocado em cena. Ou seja, no surgimento mesmo da militância do PT, havia certa dose
de “politicismo” (Chasin), que, como tal, deixa de problematizar o essencial. É certo que
a questão é bastante mediada e o processo mediante o qual foi se moldando uma “esquerda”
que aceitasse o essencial do capitalismo de via colonial só se consolida com a famigerada
“carta aos brasileiros”. No entanto, pode-se dizer: os governos petistas, mesmo que com
diferenças entre si – principalmente no que diz respeito ao primeiro governo Dilma -, não
tocaram nos alicerces mais basilares do capitalismo de extração colonial: mesmo com
programas sociais voltados à erradicação da pobreza (algo também apoiado pelo FMI) e
com o aumento real do salário mínimo, como disse Lula, “os bancos nunca lucraram
tanto”; no que toca a matriz produtiva, é bastante claro também o apoio dos governos do
PT ao agronegócio e, neste sentido, não deixa de ser, de certo modo, cômico que Kátia
Abreu tenha sido uma das principais oposições ao impeachment de Dilma. Ou seja, sequer
uma reforma agrária digna de tal nome foi uma pauta real.
Tudo, em nome da governabilidade, claro. A “base parlamentar” para a
implementação de medidas de governo fora mantida deste modo, o mesmo que estava
vigente nos governos Collor e FHC, aquele dos acordos e das negociatas com os partidos,
e, claro, com o PMDB dando sustentação. Aliás, como apontou Marcos Nobre, o

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PMDBismo é uma constante na “nova república”; isso mesmo: o partido mais fisiológico
do cenário político brasileiro foi a maior constante nos governos da atual “república”...e,
com isso, questões estruturais mínimas foram deixadas de lado para que os interesses
locais e patrimonias de caciques políticos não fossem afetados. Ou seja, diante do modo
pelo qual se tem a reprodução brutal do capitalismo no Brasil – e, portanto, da valorização
do valor -, colocou-se a política institucional. Esta última ficou de joelhos ao capitalismo
de extração colonial. Sequer problemas bem básicos foram questionados, como é o caso
da taxação de grandes fortunas e a progressão tributária mais cuidadosa. A maneira pela
qual se deu o crescimento dos anos do petismo não podia ser menos sólida: com base, de
um lado, na contínua exportação de commodities (repetindo, portanto, a espoliação que
vem sendo realizada desde 1500); doutro, com a concessão de crédito subsidiado às
famílias, principalmente as mais pobres, e ao “campeões” do capital nacional, que
usufruíram de muitos benefícios via BNDS.
No que se nota que o “crédito”, claro, não vem das árvores. Obviamente,
relaciona-se ao capital financeiro, e fortalece este setor. Ou seja, o
“neodesenvolimentismo” não tocou em nada da produção, da distribuição e da circulação
e, assim, manteve intacta uma forma agressiva de autovalorização do capital; não gerou
sequer um novo equilíbrio de classes incentivando a proatividade dos “de baixo”; antes,
com o incentivo ao consumo e, portanto, ao endividamento, fortaleceu o capital financeiro
e só conseguiu melhores condições materiais aos mais pobres devido ao modo pelo qual,
com o superciclo das commodities, desenvolveu-se certo fluxo de capital para o Brasil.
No limite, portanto, o modo pelo qual o melhor do petismo veio foi o prenúncio do que
vivemos agora: tratava-se da renovação daquilo de mais velho no Brasil, da subordinação
ao mercado externo e ao endividamento. Isso se dá até mesmo porque o mercado interno
foi incentivado somente com o crédito, e não com qualquer redistribuição real e efetiva
da renda.
A pobreza diminuiu nos anos do petismo, não há dúvidas. Mas a própria
distribuição de renda restou intocada. Isto não seria tão grave se, para isso, não tivessem
sido mobilizadas todas as energias da “esquerda”. O petismo as retirou – para fazer um
trabalho que o próprio FMI aprovou – das esquerdas e da reorganização do aparato
sindical. Aliás, com isso, fez com que os sindicatos, não só se envolvessem na gestão de
fundos e, portanto, do capital financeiro (Francisco de Oliveira), mas também, para isso,
deixassem de lado toda a combatividade do novo sindicalismo. Assim, aquele que tinha
sido o grande responsável pela derrocada da ditadura acopla-se à ordem em que resta tudo
da ditadura, menos ela mesma. Com isso, claro, o petismo se transforma em uma forma
política que sequer questiona a distribuição de renda nacional; ela busca o “investiment
grade” e, com ele, procura uma política de conciliação de classes que tenha como
momento preponderante a remuneração do capital financeiro. Se é possível que isso se
sustente em determinadas circunstâncias, passadas estas últimas, é necessário que haja
uma reconfiguração da política econômica. Em verdade, foi o que aconteceu a partir de
2015. E o pior: um ministro da fazenda como Joaquim Levy acabou se tornando alguém
defendido pela “esquerda”. O petismo conseguiu fazer o que nenhuma direita conseguiria:
fez com que a militância politizada defendesse, mesmo que com ressalvas, um salgado
“ajuste fiscal”. Novamente, a autovalorização do valor se impõe. Agora, com as vestes de
um trabalhismo que estava pronto para se colocar contra os trabalhadores sempre que
necessário à governabilidade. Neste cenário, a esquerda está destroçada e aí que aparecem
as contrarreformas trabalhista e previdenciária.

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VI

Somente nessa situação é possível chamar o ataque frontal à classe trabalhadora


de “reforma”. A espoliação que está para ser realizada sob o nome de “reforma trabalhista”
e “da previdência” só é possível em um cenário em que um golpe não é defensivo, mas
ofensivo. Noutro momento, em que a classe trabalhadora estava em uma espiral
ascendente, foi preciso um golpe old fashion; a ditadura militar sai do terreno do Direito
e se coloca no terreno da contrarrevolução, mesmo que, como disse Golbery, tivessem em
mente uma contrarrevolução preventiva. Agora, isso não é necessário e o impeachment
pode permanecer no terreno do Direito, mesmo que com artifícios hermenêuticos muito
discutíveis. O trabalho duro – a derrota da classe trabalhadora no campo político e social
- já foi feito pelo petismo e, nos tempos em que a fragilização da classe trabalhadora veio
dos defensores nominais destes, um ataque frontal vem por parte daqueles que nunca
foram suprimidos: trata-se da volta dos que não foram. Se aquilo de pior da ditadura não
foi solapado, sendo colocado “debaixo do tapete”, a direta brucutu que volta neste
momento é também o resultado das insuficiências de uma esquerda que não foi capaz de
um mínimo de radicalidade.
O cotidiano mesmo expressa tal situação, em que o senso comum não é só um
“metafísico de pior espécie” (Engels), mas aquele que está pronto para apoiar a
normalidade da ordem do capital, não importando quão brutal isso possa ser. Se é
necessário que o “desenvolvimento” do capitalismo se dê de formas antedeluvianas, ok.
E, caso, para isso, seja posto que a aposentadoria se torne praticamente impossível, não
há problemas também. O cenário é bastante sombrio; com uma derrota estrondosa das
forças de esquerda, a direita mais vil está na dianteira e não tem vergonha de expor seus
objetivos de modo direto. A espoliação das contrarreformas representa isso, um ataque
direto aos trabalhadores, uma espoliação violenta e brutal. O cinismo dos defensores
destas políticas só pode, porém, ser combatido com uma posição que não repita os erros
do passado. Contra tal ataque, no longo prazo, há alternativas, claro. Mas, para que as
compreendamos, é preciso que retiremos das sombras questões que pareciam poder estar
em segundo plano mas que não podem: hoje, diante de tudo isto, trata-se de defender uma
posição abertamente socialista. Buscar menos que isso, na melhor das hipóteses, é algo
ingênuo e ilusório. É muito mais realista pretender uma mudança substancial no
“metabolismo social” (Mészáros) que se apoiar nesta potência que já não traz nenhum
progresso em parte alguma do mundo. Trata-se da necessidade da supressão do capital.

Bibliografia:

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GT 3

Trabalho, Crise e Financeirização

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
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TRABALHO NO CÁRCERE E A LIVRE EXPLORAÇÃO DO CAPITAL:


UM ESTUDO DO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO

Paula Cristina de Moura Fernandes


Universidade Federal de Minas Gerais
mgpcmf@gmail.com

Jéssica Alves Maciel


Universidade Federal de Minas Gerais
jessicaamaciel95@gmail.com

Resumo

No presente ensaio nos propusemos analisar como o sistema prisional brasileiro contribui
para a acumulação de capital por meio do sistema financeiro. Partimos da crítica a
economia política, com o intuito de tecer a crítica sobre os estudos do encarceramento no
Brasil. A discussão se construirá através da teoria marxiana, com o auxílio de observação
in loco e entrevistas semiestruturadas a fim de realizar o movimento de superação da
aparência de um sistema público de segurança e adentrar nas reais contradições da relação
capital-trabalho. Neste movimento, observamos que o Estado exerce um papel duplo no
processo de valorização do valor do trabalho encarcerado na medida que, além de ditar
as regras quanto à produção de valor por esses indivíduos, também possui controle quanto
à esfera da circulação, visto que toda a remuneração a estes trabalhadores encarcerados é
depositada em um banco público. Dessa forma, este ensaio se desdobra na compreensão
sobre as mediações que perfazem o sistema prisional, especialmente pela sua relação,
cada vez mais estreita, com a reprodução do capital mediado pelo Estado, além de lançar
luz sobre os interesses reais que movem o encarceramento no Brasil.

Palavras-chave: Trabalho Encarcerado; Sistema Prisional; Capital; Sistema Financeiro.

WORK IN THE PRISON AND THE FREE CAPITAL EXPLOITATION:


A STUDY OF THE BRAZILIAN PRISON SYSTEM

Abstract

On this essay we sought to analyze how the brazilian prison system contributes for the
accumulation of capital by making use of the financial system. We come from a critic to
the political economy point of view, with the intention of making critics over the studies
on incarceration in Brazil. This discussion will take form based on the marxian theory,
with the support of an in loco observation and semi-structured interviews aiming to make
a movement that will overcome the appearances of a public safety system and penetrate
in the real contradictions of this capital-labour relation. On this movement, we’ve
observed that the State has a double role in the valorisation of the labour-value of
incarcerated individuals as it dictates the rules over the value production of these
individuals, it also has control over the circulation sphere since all the pay given to these
imprisoned individuals is deposited in a public bank. On that, this essay unfolds in the
direction of a comprehension over the mediations that complete this very prison system,

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especially on its relationship, each day closer, with the reproduction of capital mediated
by the State, aside that to unveil the true intentions that lay underneath the incarceration
process in Brazil.

Keywords: Incarcerated Labour; Prison System; Capital; Financial System.

1. Introdução

Neste ensaio teórico-empírico nos propusemos a analisar como o sistema


prisional brasileiro contribui para a acumulação de capital por meio do sistema
financeiro. Partimos da crítica a economia política de Marx, que dentre outras categorias
e mediações, explica o processo de transformação da força de trabalho e meios de
produção em mercadoria e posteriormente em dinheiro, caracterizando a fórmula
M...P...M’-D’, pois, no sistema prisional, há indícios que tal ciclo tenha se desenvolvido
às margens da legalidade burguesa operando mediado pelo Estado para explorar o
trabalho da população encarcerada e alavancar o sistema financeiro, especialmente para
atender os interesses particulares daqueles que empregam a força de trabalho desses
indivíduos.
Atualmente, a população carcerária brasileira ultrapassa 658 mil presos
(INFOPEN, 2017), alcançando o terceiro lugar no ranking de aprisionamento, apenas
atrás dos Estados Unidos e China. A lei 7210/84 apresenta o trabalho encarcerado como
um meio ressocializador dos privados de liberdade para uma nova reinserção à
sociabilidade humana, contudo, têm sido recorrentes às constatações de que a
operacionalização desta lei acaba se distanciando de seus objetivos primeiros. A lei de
execução penal prevê que a cada três dias trabalhados, o preso possa abreviar um dia de
sua sentença. Todavia, nossa investigação suscita a desconfiança de que o trabalho
encarcerado se torna uma forma de extração de mais-valor para capitalistas que aparecem
como parceiros do sistema prisional, e que o fazem por meio da relação com o Estado.
O trabalho encarcerado é utilizado para manutenção das próprias unidades
prisionais, como também por empresas privadas e públicas que recebem vantagens ao
empregar força de trabalho carcerária, tais como a isenção de encargos trabalhistas e a
necessidade de baixo investimento em termos de infraestrutura e materiais de trabalho
para mobilização de capital e extração de mais-valor e lucro, visto que algumas unidades
penitenciárias disponibilizam meios de produção para a realização do trabalho.
Do lado dos trabalhadores, a remuneração paga, por sua vez, fica dentro dos cofres
públicos sendo acessada pelos indivíduos encarcerados apenas mediante uma série de
restrições, a partir dessa premissa, assumimos que este salário depositado tem sido
utilizado para rentabilização bancária, assim como todas as poupanças.
Em síntese, o trabalho encarcerado é analisado sob o olhar de três epistemes
diferentes, a funcionalista, a foucaultiana e a marxista. Em comum, temos que tais estudos
buscam compreender as transformações pelas quais passam o sistema prisional, mas cada
uma aborda de maneira diferente o universo deste objeto, de modo que as análises
influenciam os resultados encontrados e a dissipação dessas informações nas ciências
administrativas.
Segundo Fernandes e Ribeiro (n.d) os trabalhos acadêmicos apresentados nas
ciências administrativas, independentemente da episteme utilizada, chegam a conclusões
semelhantes, de que a ressocialização não acontece por meio do trabalho encarcerado,

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nem tão pouco, a humanização destes indivíduos, como pode ser vistos nos trabalhos
empíricos apresentados pelos autores Costa (2001), Costa e Bratkowski (2007), Pires e
Palassi (2008), Barbalho e Barros (2010), Wanderer (2012), Rocha, Lima, Ferraz e Ferraz
(2013), Lauermann e Guazina (2013), Cordeiro, Silva Coelho, Kanitz e Gonçalves
(2014), Gonçalves e Ferreira (2014), Neto (2015), Biar (2015), Souza, Correa e Rezende
(2015), Silva e Saraiva (2016), Correa e Souza (2016), Amaral, Barros e Nogueira,
(2016).
A discussão apresentada por esses autores perpassam na produção de sentidos e
significados do trabalho, o encarceramento em massa, a má utilização do ordenamento
jurídico e a facilitação da mediação do estado nessas relações trabalhistas. As respostas
encontradas pelos autores a respeito do trabalho, são concentradas e o que os autores
Costa e Bratkowski (2007), Pires e Palassi (2008), Cordeiro, Silva Coelho, Kanitz e
Gonçalves (2014) e Silva e Saraiva (2016), e estes autores trazem o que este trabalho
representa aos privados de liberdade, em suma são fugas do ambiente carcerário, para eles
são trabalhos sem sentidos e exercidos apenas pela remição de pena e o ganho financeiro
( quando há), e alienantes aos que querem sobreviver no mundo fora dos muros
carcerários. Por outro lado, temos também a produção de autores que seguem uma linha
mais crítica e conseguem apontar a essência dos problemas do atual sistema prisional
brasileiro como Herivel (2013), Salla (2004) e Brant (1994), quando argumentam que
para mudar a realidade social no qual o indivíduo está inserido é necessário fornecer a ele
uma forma alternativa de subsistência e, assim, não será necessário cometer crimes.
Amparados principalmente pelas perspectivas qualitativas da psicodinâmica do
trabalho e da sociologia clínica, os estudos que assumem a ótica do trabalhador
encarcerado ainda não se debruçaram sobre o contexto de (re)articulação do capital e de
que forma as novas adaptações impactam no ambiente laboral, tanto para os privados de
liberdade como para os trabalhadores do sistema prisional.
Este ensaio se propõe analisar como o sistema prisional brasileiro contribui para
a acumulação de capital por meio do sistema financeiro. Nossa contribuição para o debate
sobre o tema reside na inserção da teoria marxiana para a compreensão do fenômeno e o
desvelar da contradição da relação capital-trabalho num campo que, hegemonicamente,
aparta o olhar crítico de suas reflexões.
A discussão aqui apresentada se construirá a luz da teoria marxiana, com vistas a
superar a aparência de um sistema público de segurança e adentrar nas reais contradições
da relação capital-trabalho. Segundo Ferraz e Ferraz (2016) utilizar a ciência burguesa
em seu devir social é apenas reforçar a lógica funcionalista e a reprodução do capital,
enquanto a ciência crítica adota um discurso que defende os interesses das classes
trabalhadoras. Diante disso, utilizamos o método dialético por ser capaz de emanar as
contradições apresentadas na discussão e na coleta de dados, que ocorreu por meio de
visitas em 17 unidades prisionais no estado de Minas Gerais, entrevistas semiestruturadas
com agentes penitenciários, presos, gestores prisionais, gerentes de produção e um
analista do Banco do Brasil. A partir dessas coletas e de sua contraposição à materialidade
das relações do Sistema Prisional Brasileiro, nos comprometemos a ir à essência do
fenômeno e demonstrar que, por meio da mediação do Estado, o trabalho encarcerado é
utilizado para a alavancagem do sistema de acumulação capitalista por meio do sistema
financeiro.
Dessa forma, este ensaio se justifica por contribuir para a compreensão sobre as
mediações que perfazem o sistema prisional, especialmente pela sua relação cada vez

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mais estreita com a reprodução do capital mediado pelo Estado, além de lançar luz sobre
os interesses reais que movem o encarceramento no Brasil.
O trabalho está organizado em três partes, a contar por esta introdução. Na
segunda parte, apresentamos uma breve explanação sobre o funcionamento do sistema
prisional brasileiro e o trabalho encarcerado, os desdobramentos acerca da
(não)remuneração do trabalhador encarcerado; em sequência é realizada a discussão
sobre o Estado como mediador entre o trabalho encarcerado e o capital, e os impactos
dessa mediação na circulação de capital ao se pensar a seguinte questão: “para onde foi o
valor produzido pelo trabalho dos indivíduos encarcerados?”. Por fim, tem-se as
considerações finais acerca das discussões apresentadas neste ensaio.

2. O sistema prisional brasileiro e o trabalho encarcerado

Este capítulo contém uma breve explanação do funcionamento do sistema


prisional brasileiro, através do estudo do sistema prisional mineiro, estado brasileiro onde
os dados foram coletados. Ao apresentar a aparência do fenômeno do encarceramento,
indagamos algumas práticas e discutiremos a contradição intrínseca ao processo.
Mobilizamos a categoria trabalho como ato fundante da sociabilidade humana e
não como fator ressocializador no encarceramento. Apontamos a seguir quais são as
formas de trabalhos dentro das unidades prisionais e quais são os desdobramentos desse
labor intramuros carcerários.

2.1 Considerações acerca do trabalho nas unidades prisionais

O sistema prisional brasileiro é regido pela lei de execução penal 7210/84 e a partir
dela existem vários desdobramentos revestidos de políticas públicas para capacitar,
empregar e regular a força de trabalho carcerária. No entanto, a materialidade dessas
relações revela um interesse oculto na execução desta lei, isto é, do Estado burguês em
que tudo se transforma em mercadoria.
Acerca da categoria trabalho, Marx aponta:
O trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a
natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação,
medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza [...]
A fim de apropriar da matéria natural de uma forma útil para sua
própria vida põe em movimento as forças naturais pertencentes
a sua corporeidade [...] Agindo sobre a natureza externa e
modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao
mesmo tempo, sua própria natureza. (MARX, 2013, p. 255)

Assim, o trabalho possui um duplo caráter visto que o ser humano, ao transformar
a natureza, transforma a si próprio. O trabalho é categoria central para a compreensão da
história da humanidade (MARX, 2010), todavia, na sociedade hodierna, este se apresenta
de forma alienada, cuja precarização das condições de vida e trabalho dos trabalhadores
ocorre devido e simultaneamente ao desenvolvimento do sistema capitalista de produção.
A forma de trabalho assalariado, tal qual conhecemos, surgiu em decorrência das
mutações do mundo do trabalho ao longo dos séculos e obtém como mediador o mercado
de trabalho, isso porque até mesmo o trabalho humano se reduz à categoria de mercadoria,
quando a força de trabalho é vendida em troca de sua forma preço, o salário. Segundo
Marx (2013), a criação do trabalhador livre e assalariado foi concebida por meio de uma

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violenta disputa sanguinária, na qual o Estado mediou por meios dos aparatos legais a
regulamentação e exploração desses trabalhadores, alavancando a exploração do trabalho
pelo capital diante da submissão dos assalariados aos capitalistas. Tal submissão ou, nas
palavras de Marx, a subsunção, é fruto da desapropriação dos meios de produção dos
trabalhadores.
Cabe ressaltar que há indivíduos "fora" do mercado, visto que mesmo aqueles que
não ocupam um posto formal de trabalho também atuam de uma forma ou de outra na
circulação do valor, ou seja, mesmo os indivíduos encarcerados fazem parte do ciclo
produtivo do capital. Os autores Melossi e Pavarini (2006) defendem que para cada
sistema de produção se descobre um sistema de punição que corresponde diretamente às
relações produtivas, sendo que o capital, em sua lógica destrutiva de expansão, também
se apropria de força de trabalho encarcerada. Uma das formas aparentes do trabalho no
sistema prisional é a denominada laborterapia - o trabalho como um meio ressocializador
dos privados de liberdade para uma nova reinserção à sociabilidade humana. Porém,
quando analisamos a concreticidade da lógica da socialização pelo trabalho observamos
alguns desdobramentos que nos permitem questionar o interesse último da lei que o
regula. O que a reprodução da vida no cárcere tem revelado é a utilização da força de
trabalho dos presos como exploração de mão de obra barata (senão escrava) e, com a
superpopulação carcerária, forma-se um exército industrial de reserva para as iniciativas
privadas e públicas.
Quanto à questão da superpopulação, ocorre tanto pela desigualdade social e pela
falta do tratamento judiciário, quanto pela falta de estrutura para acolhimento dos
indivíduos encarcerados, acarretando más condições de sobrevivência que culminam, por
sua vez, na promoção de relações sociais desumanizantes, à despeito de medidas que
deveriam preparar esses indivíduos à ressocialização com condições dignas de
reprodução da própria vida. Diante de precárias condições de sobrevivência nos presídios,
a possibilidade de conseguir um trabalho dentro do sistema prisional se apresenta como
se fosse uma “conquista” aos encarcerados, dada a possibilidade de utilizarem da
circulação propiciada pelo trabalho como forma de ocupar o ócio, realizar trâmites ilegais
para obtenção de artigos de consumo, ao mesmo tempo em que estão abreviando suas
sentenças (SALLA, 2006). Nesse sentido, os indivíduos encarcerados são atraídos para a
realização do trabalho pelo discurso remição de pena, conforme descrito no artigo 126º
da LEP, §1º, que dispõe: três dias trabalhados equivalem a remissão de um dia de pena
(BRASIL, 1988).
Os trabalhos dentro das unidades prisionais possuem naturezas distintas como a
de manutenção da unidade prisional, ou do município; trabalhos intramuros, isto é, os
presos são contratados para trabalharem em empresas privadas dentro do complexo
penitenciário; e trabalhos externos, no qual estes podem ter vínculos empregatícios
mediante autorização judicial. No que se refere às oficinas de trabalho que existem dentro
das unidades prisionais, estas são de três tipos: agropecuária, industrial e serviços, ou
como denominado pelo Departamento Penitenciário (Depen), primeiro, segundo e
terceiro setor, respectivamente. Atualmente são empregados 14.408 mil presos no
primeiro setor, 17.511 mil presos no segundo setor e 17.099 mil presos no terceiro setor,
além de 46.901 mil presos nos trabalhos enquadrados como manutenção no sistema
prisional, segundo dados do Depen (2017).
De acordo com o que está disposto na lei 7210/84, os presos devem atender a uma
série de medidas para execução do trabalho externo, como ter cumprido ⅙ da pena,
atendimento de medidas de cautela sobre fuga e disciplina e também prévia autorização

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da direção da unidade prisional, após o preenchimento desses requisitos. Quanto aos


meios utilizados pelos presos para conseguirem os trabalhos externos, estes podem
ocorrer de três formas: por meios próprios, como contratos de trabalhos de prestação de
serviço autônomos, para familiares e/ou amigos; por intermediação da administração
prisional; ou por interesse da iniciativa privada (INFOPEN, 2017). Atualmente, em todo
o país são 12.698 mil pessoas privadas de liberdade executando trabalhos externos nos
setores primários, secundários e terciários (DEPEN, 2017).
Quanto aos trabalhos internos, na área do primeiro setor, a agropecuária, os presos
desenvolvem habilidades e recebem capacitações para as atividades de horticultura,
bovinocultura, suinocultura, avicultura e piscicultura. Ademais, essas atividades apoiam
o governo nos programas de alimentação nutricional e sustentável, com a doação dos
alimentos produzidos para as entidades carentes do município onde a unidade está
localizada. Atualmente são empregados 14.408 trabalhadores no primeiro setor, sendo
12.824 internos e 1.584 externos (DEPEN, 2017).
Já no segundo setor, a área Industrial, os presos são capacitados para as atividades
como mecânica, construção civil, corte e costura, padaria e confeitaria, confecção de
bolas, marcenaria, fabricação de circuitos eletrônicos e artesanatos em geral (MINAS
GERAIS, 2013). Essas atividades laborativas são acompanhadas por um gerente de
produção da empresa contratante, normalmente o mesmo que efetuou a formação e a
capacitação da mão de obra dos detentos e um gerente de produção da unidade prisional,
normalmente um agente penitenciário de segurança. A esta supervisão infere-se a
responsabilidade da cobrança sobre produtividade, vigilância dos detentos, bem como a
garantia de funcionamento do processo produtivo. No segundo setor atualmente
trabalham 17.511 presos, sendo 11.577 referentes ao trabalho interno e 5.934 referentes
ao trabalho externo (DEPEN, 2017).
E no terceiro setor, o setor de serviços, são considerados todas as oficinas que
estão relacionadas com a prestação de serviços de baixa complexidade, como faxina,
cabeleireiro, barbeiro, garçom, manicure, cozinheira, entre outros. Essas oficinas são as
profissões que algumas entidades se disponibilizam para o treinamento dos presos, sendo
que após a progressão da pena ou ao se tornar egresso do sistema prisional, o preso pode
se manter com tal capacitação. No terceiro setor estão empregados atualmente 17.099
presos, sendo 11.919 referentes ao trabalho interno e 5.180 referentes ao trabalho externo.
Como citado por Fernandes, Ferraz e Ferraz (2018) a atuação nos setores
primários, secundários e terciários possuem participação de algumas instituições como
parcerias para capacitação e captação da mão de obra carcerária, como:

(...) os programas de treinamento e desenvolvimento para a capacitação da mão


de obra do cárcere são estabelecidos por convênios e parcerias formais e
informais com os programas como SENAR (Serviço Nacional de
Aprendizagem Rural), SENAI (Serviço Nacional de Aprendizagem
Industrial), SENAC (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial),
EMATER (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural), entre outros
órgãos como o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis) e SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e
Pequenas Empresas) por meio de um termo de parceria, em que a unidade
viabiliza o espaço e a população encarcerada “interessada” e a instituição
privada oferecerá o curso, e posteriormente essa mão de obra qualificada passa
a ser exército ativo de trabalhadores encarcerados contratados pelas próprias
instituições, ou empresas filiais.

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Quanto aos trabalhos de manutenção nas unidades prisionais, estes são relatados
pelos presos como os melhores lugares para se ocupar, pois assim podem circular sem
interferências entre as diversas áreas da prisão (SALLA, 2006). As atividades de
manutenção estão ligadas à limpeza, recolhimento e separação do lixo, lava-jato das
viaturas oficiais, dos agentes e da comunidade, cozinha e entrega de marmitex (MINAS
GERAIS, 2013), entre outras atividades como pedreiro, bombeiro hidráulico, eletricista
e serviços gerais. Essa atividade laborativa em especial é obtida como um prêmio dentro
do cárcere, pois só podem executá-las aqueles que têm bom comportamento, sendo a
responsabilidade de seleção e capacitação incubida aos trabalhadores da administração
local.

2.2 Considerações quanto a (não)remuneração do trabalhador encarcerado

O regime de remuneração do trabalhador carcerário (interno e externo) é


selecionado pelo capitalista que pode optar entre duas possibilidades de pagamento ao
trabalhador: remuneração fixa ou remuneração por produtividade. A escolha do regime a
ser adotado é feita no preenchimento dos formulários de parcerias estabelecidos pela
Secretaria de Administração Prisional (SEAP), de forma que o trabalhador esteja ciente
do regime de pagamento, todavia ainda lhes permanece obscuro o salário nominal que
efetivamente irão receber.
É importante ressaltar que pela LEP 7210/84 Art. 29º, o valor a ser pago para o
presidiário deve ser no mínimo ¾ de um salário mínimo, ou seja, R$ 2,92 de salário bruto
por hora1 ou R$ 1,46 se considerado o salário líquido na base de cálculo2:

1
O cálculo foi feito da seguinte maneira (R$ 702,75 / 30 dias) / 8 horas por dia.
2
O cálculo foi feito da seguinte maneira (R$ 351,37 / 30 dias) / 8 horas por dia.

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Figura 1: Demonstrativo de módulo de pagamento

Fonte: Imagem fotografada em visita in loco pelas autoras (2018)

A imagem acima apresenta a seguinte memória de cálculo:

1. Valor bruto: ¾ de salário mínimo exigidos por lei, ou seja, R$ 702,65;


2. Pecúlio3 - desconto de 25% do valor bruto, exemplo: (R$702,75 x 25% =
R$175,69);
3. Ressarcimento para a manutenção da unidade - desconto de 25% do valor
bruto, independente do regime de progressão da pena que o preso estiver
a cumprir;
4. Valor líquido: valor bruto deduzido os descontos disponibilizado no
cartão-benefício do penitenciário, ou seja, R$ 351,37.

Todavia, grande parte dos detentos recebem valores inferiores ao demonstrado


acima devido, sobretudo, um adendo na LEP que autoriza demais descontos em folha
como o horário das refeições (1 hora); finais de semana - sábados e domingos não
trabalhados (8 horas x 8 dias), visitas ou gozo do descanso semanal; ou até mesmos as
pausas para descanso, como o café ou a contagem dos presos (aproximadamente 15
minutos). Todas essas pausas são contabilizadas e descontadas em folha. Cabe ressaltar
que estes descontos podem variar muito dependendo da relação pessoal do preso com o
agente penitenciário responsável pela produção ou com o gerente de produção.

3
É a soma de dinheiro descontada do valor bruto do pagamento do preso, retido em fonte como imposto.
fazendo uma analogia, é como se fosse o FGTS do preso, mas ele só pode gastar esse dinheiro se
comprovado judicialmente os gastos com tratamentos médicos do preso e da família na ausência do SUS
(sistema único de saúde), ou após a prescrição completa de sua condenação.

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Vale ressaltar, que além da privação da liberdade resultante da pena legal pelo
delito cometido, esses indivíduos são novamente punidos na medida em que as regras de
remuneração da venda de sua força de trabalho são diferentes e mais precárias que as
concernentes aos demais trabalhadores assalariados no país, ao não receberem pelas
pausas no trabalho, pelo horário das refeições e nos finais de semana. Dentre os descontos,
tem-se ainda o custo da manutenção da unidade que pode ser deduzido dos salários. Aqui,
o "pagar para trabalhar" não é apenas uma anedota.
Na condição de trabalho interno e externo há 95 mil presos no país, representando
15% da população carcerária empregada nos complexos fabris intramuros carcerários.
Segundo os dados do Depen (2017), há presos que recebem menos que o estabelecido em
lei, e em raras exceções presos que recebem mais, conforme a tabela 1.

Tabela 1: Faixa salarial dos trabalhadores

Fonte: DEPEN, elaborado pelas autoras (2018)

A partir dos dados da tabela 1, é possível perceber que embora a lei de execução
penal preveja um mínimo salarial de remuneração ao trabalhador encarcerado, tem-se que
mais de 74,6 mil presos não recebem o mínimo estipulado, o que corresponde a
aproximadamente 75% de presos na modalidade supracitada. Ainda de acordo com os
dados, apenas 22% dos presos recebem entre ¾ e 1 salário mínimo e pouco mais de 3%
recebem mais de 1 salário, sendo estes últimos os pequenos empresários ou autônomos,
cuja declaração de imposto de renda é obrigatória, entraremos em pormenores no item
seguinte.
Aos trabalhadores da manutenção das unidades prisionais, que atualmente são
46.901 mil presos em todo o território nacional, é vedada a remuneração, segundo o Art.
30º4 da LEP 7210/84, o mesmo vale para os trabalhadores internos que desenvolvem
trabalhos sociais como as oficinas de agroindústrias, cujos produtos de seu trabalho, de
forma geral, são direcionados às entidades carentes do município, e aos trabalhadores
externos que estão envolvidos com trabalhos de manutenção referentes à reformas de
escolas em períodos de férias, serviços de limpeza externa nos prédios públicos, reformas
de hospitais, e batalhões de polícia e, no geral, a limpeza da cidade.
Nas penitenciárias agrícolas todo o trabalho é considerado de manutenção,
levando em consideração que os presos que possuem a responsabilidade pela produção
em massa dos alimentos e dos animais, cabendo aos agentes penitenciários a venda da
produção. Todo o dinheiro gerado com a venda dos produtos é repassado para o Estado
via recolhimento DAE.
Outro trabalho que é considerado como manutenção são as várias formas de
artesanatos em cela, porém, estas possuem um diferencial, visto que não são incentivadas
4
Art. 30. As tarefas executadas como prestação de serviço à comunidade não serão remuneradas.

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nas unidades prisionais. Segundo Ribeiro e Cruz (2002, p. 12) “a lei reconhece a limitação
econômica que o artesanato apresenta e, por isso, postula que o estabelecimento deve
procurar limitar sua realização tanto quanto o possível, salvo em regiões de turismo”. O
que os autores deixam implícito nas suas explanações é que o artesanato gera renda para
a família e não para o Estado, diferentemente da produção agrícola, por exemplo. A
limitação econômica gerada é intrinsicamente relacionada com a perda do controle da
circulação do que é produzido intramuros carcerários.
Diante das distintas modalidades de trabalho nas penitenciárias do país, podemos
inferir os interesses particulares do Estado ao mediar ou propriamente utilizar o trabalho
encarcerado para gerar e se apropriar do valor produzido pelos presidiários, dado a
natureza do encarceramento, na qual estes, desprovidos de liberdade, são submetidos a
condições de vida e subsistência precárias e desumanas. Assim, num local onde as leis
trabalhistas não perpassam seus muros, o Estado e capitalistas parceiros valorizam seu
capital às custas de um trabalho muitas vezes não remunerado dos presidiários,
devolvendo a estes, em contraposição ao senso comum sobre o tema, muito menos do que
proporcionam ao sistema.
Ao passo que vamos desvendando como o Estado se beneficia em sua mediação
nas relações sociais do Sistema Prisional, vamos indagando também seus interesses
ínfimos na esfera da circulação do que é produzido e recolhido. A seguir discutiremos a
mediação do Estado no que tange ao trabalho encarcerado e como o mais valor produzido
por este se torna capital.

2.3 O Estado como mediador entre o trabalho encarcerado e o capital

O panorama aqui exposto até pode ser resumido na existência da superpopulação


carcerária no Brasil - decorrente de uma série de relações sociais pautadas pela
sociabilidade burguesa - e no trabalho encarcerado que aparece como "prêmio" ao preso
e como força de trabalho ainda mais barata ou mesmo gratuita para os donos dos meios
de produção. Nesse sentido, um outro fenômeno emerge que é a entrada do sistema
financeiro, por meio dos bancos, nesta relação.
Recentemente, a forma de pagamento da remuneração do trabalho do presidiário
foi modificada. A partir de 2011, passou a ser executado como arrecadação DAE -
Documento de Arrecadação do Simples Doméstico ou Documento de Arrecadação do
eSocial -, ou seja, o empregador expede a folha, e o pagamento é creditado em uma conta
bancária criada especificamente para esse tipo de recebimento nas agências do Banco do
Brasil, um programa de ressocialização chamado de “cartão trabalhando a cidadania”.
Esse novo formato de pagamento possibilita novas incursões possíveis para extrair ainda
mais o valor produzido pelos indivíduos encarcerados.
Diferentemente de um trabalhador livre, o preso não tem fácil acesso ao seu saldo
bancário, pois não pode ir ao banco, e o banco, por sua vez, não disponibiliza um
funcionário para ir às unidades prisionais. Quando o preso egressa do sistema prisional
após ter cumprido sua pena, existe a possibilidade de conferência dos valores depositados
ao longo do encarceramento, todavia o mesmo acesso é dificultado, visto a necessidade
de atendimento pessoal nas agências para a extratificação do montante disponibilizado
em conta, a depender do período para a conferência solicitado. Outro agravante se refere
a irregularidade dos documentos dos presidiários e ex-presidiários. Para que se tenha
acesso aos cartões, é indispensável a regularização dos documentos individuais, todavia,
em Minas Gerais, mais de 85% dos detentos possuíam CPF’s (Cadastro de Pessoas

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Físicas) irregulares (Minas Gerais, 2013), e segundo os dados do DEPEN (2017) apenas
58.419 mil pessoas privadas de liberdade obtém a posse do seu CPF, este número
representa apenas 8% da população encarcerada em todo o território brasileiro, sem
mencionar nos demais documentos que são necessários para abrir uma conta no banco.
Quando questionado aos presos se já haviam, em algum momento, feito tal
solicitação de apuração dos salários recebidos em conta, a resposta foi ‘não’, e podemos
atribuir isso a falta de informação, ou a burocracia criada para dificultar o acesso de
pessoas que fazem pouco uso do sistema bancário, isso sem trazer para nossa discussão
que essas pessoas evitam serem submetidos à julgamentos sociais e maus olhares por
carregarem o estigma social de ex-presidiário. Então, tudo que resta é sacar o que estiver
disponível, sem que seja feita a validação do saldo em conta.
Ao mesmo tempo, contudo, o Estado cobra mensalmente que as empresas façam
esses repasses via DAE, caso não o façam, os presos são impedidos de sair da unidade
prisional, impedindo assim a produção e a valorização do capital do empregador. Esta
política de punição aos capitalistas faz com que eles cumpram rigorosamente os
pagamentos. No entanto, esta verba não é repassada aos presos com tanta rigorosidade,
como exemplo, em uma visita feita em unidades do Estado de Minas Gerais no verão de
2018, o último pagamento feito pelo Estado havia sido efetuado em julho de 2017. E
então fica o questionamento, para onde foi este dinheiro neste meio tempo? Outros
autores como Ribeiro e Cruz (2002) já haviam problematizado este assunto
anteriormente, o que nos leva a indagar a mediação do Estado na esfera da circulação
desse dinheiro.
Segundo a LEP, o dinheiro (do salário) recolhido pelo Estado e depositado no
banco só pode ser retirado pelo preso quando estiver o regime progredido para semi-
aberto ou liberto interino, ou ainda em outras ocasiões de extrema necessidade mediante
a autorização judicial, o preso pode utilizar desse dinheiro para tratamentos médicos dele
ou da família (1º grau, definido pelo Código Civil), desde que comprovem os gastos, não
sendo permitido a utilização da quantia para pagamento da fiança ou indenização ao
Estado, em outras palavras, ele não pode comprar sua própria liberdade.
Na prática observada, as regras não valem a todos, uma vez que, durante as visitas
e as entrevistas foram interrogadas as pessoas privadas de liberdade sobre o recebimento,
e elas informam que é o agente penitenciário que faz tudo, desde a contratação de sua
força de trabalho - fazendo a mediação Estado/Capitalista - até o recebimento, que muitos
não têm acesso ao cartão porque não foram buscar, porque as unidades não disponibilizam
um carro para tal, porque a empresa que leva para fazer o cartão, não oferece a mesma
“gentileza” para buscar, há muitos que estão com os documentos irregulares e por isso
não podem abrir a conta no banco, mas iniciam os trabalhos recebendo apenas a folha de
remição e em seguida começam a receber os salários que lhes é de direito, contudo,
podemos prever as demoras em realizar todos estes processos burocráticas a uma parcela
da classe trabalhadora que é esquecida no meio social ou relegada às margens da
sociedade.
Em teoria, a família ou a pessoa que possua a procuração legítima responsável
pelo preso pode realizar o saque, no entanto, deve ser portador do cartão, e como
explicado anteriormente, a realidade é um pouco mais complicada.
Como mencionamos a pouco, a (baixa ou inexistente) remuneração paga aos
indivíduos encarcerados é administrada pelo Estado. O preso não pode fazer uso do
salário e tampouco possui fácil acesso à consulta do saldo de sua conta. Dessa forma,
pensemos aqui em todos os problemas de lentidão dos processos, como o fato de muitos

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desses presos não serem devidamente representados por defensores público e etc. Nesse
caminho, a maior permanência de um encarcerado que trabalha pode significar mais
tempo de dinheiro capitalizado no sistema financeiro, então, indagamos o interesse do
Estado em mediar essas relações, uma vez que os bancos passam a utilizar esse dinheiro
entesourado como capital.
Sobre o entesouramento, como explana Marx (2014, p. 265).
Trata-se de uma distribuição constantemente variável do tesouro existente na
sociedade, que ora funciona como meio de circulação, ora se aparta
novamente, como tesouro, da massa de dinheiro circulante. Com o
desenvolvimento do sistema de crédito, que segue necessariamente um curso
paralelo ao desenvolvimento da grande indústria e da produção capitalista, esse
dinheiro atua não como tesouro, mas como capital, porém não nas mãos de seu
proprietário, e sim de outros capitalistas, a cuja disposição ele é colocado.

Assim, indaga-se o que seria o interesse último sobre a adaptação a respeito do


pagamento e da problematização levantada neste tópico sobre como o Estado utiliza as
verbas do sistema prisional para outros fins, que não o do preso-trabalhador, com a
finalidade de discutir no próximo tópico a viabilização da mediação do Estado nas esferas
produtivas e na circulação do que é produzido intramuros carcerários. Lembrando que a
pena que os presos estão cumprindo é a privação de liberdade, estão privados de vender
por si só a sua força de trabalho e não a exploração da mão de obra, no qual as unidades
prisionais se tornaram.

2.4 Circulação de capital: para onde foi o valor produzido pelo trabalho dos
indivíduos encarcerados?

Antes de passarmos ao exame do caso concreto, precisamos retomar algumas


explicações acerca do ciclo do capital. Marx (2013) demonstra que o dinheiro possui
função ímpar no processo de circulação das mercadorias, visto que, como medida de
valor, é forma necessária de manifestação do tempo de trabalho. As mercadorias tornam-
se comensuráveis ao expressarem seu valor em sua forma-dinheiro, ou seja, seu preço.
Dessa maneira, o “preço das mercadorias é a denominação monetária do trabalho
objetificado” (MARX, 2013, p. 176). Em termos da função do dinheiro como meio de
circulação, também deriva sua figura como moeda, cuja determinação e cunhagem é papel
do Estado.
No interior da esfera da circulação é necessário que o processo de troca das
mercadorias tenha-se consumado nas duas metamorfoses, “conversão da mercadoria em
dinheiro e reconversão do dinheiro em mercadoria” (MARX, 2013, p. 242). Essas duas
metamorfoses são complementares, por um lado o dinheiro pode ser convertido em
mercadoria a qualquer momento, por outro, a mercadoria deve se converter em dinheiro
para assumir sua forma cambiável, selando assim o processo de troca em seus dois
momentos: M-D-M (MARX, 2013 e 2014). Durante as metamorfoses do processo de
troca, o dinheiro possui um curso e este, por sua vez, se transforma em uma constante
repetição do processo: “ele transfere a mercadoria das mãos do vendedor para as do
comprador, enquanto, ao mesmo tempo, afasta-se das mãos do comprador para as do
vendedor, a fim de repetir o mesmo processo com outra mercadoria” (MARX, 2013, p.
256).
O próprio curso do dinheiro trouxe de forma latente a possibilidade de substituir
o dinheiro metálico por outros símbolos de seu conteúdo metálico oficial. Com o

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desenvolvimento da sociedade burguesa, a dominância da forma moeda presente na


circulação simples cede lugar ao denominado dinheiro creditício, vigente no capitalismo
sob dominância do sistema de crédito (GERMER, 1994).
O dinheiro creditício surge diretamente da função do dinheiro como meio de
pagamento, condição na qual a alienação da mercadoria é apartada de seu preço (MARX,
2013). Nessa função, o dinheiro “assume formas próprias de existência nas quais circula
à vontade pela esfera das grandes transações comerciais” (MARX, 2013, p. 213). Assim,
a riqueza capitalista cresce na medida em que o sistema de crédito se desenvolve, visto a
elevação funcional da capacidade monetária operante já que o processo social de
produção se realiza, em grande parte, sem a intervenção de dinheiro real; o crédito, na
medida em que possibilita, acelera e aumenta a concentração de capital numa só mão,
contribui para abreviar o período de trabalho e, com ele, o tempo de rotação do capital
(MARX, 2013).
Isto é, nem mesmo durante a período de entesouramento (da poupança) o dinheiro
está "parado", pois nas mãos do outro capitalista, o banco, o dinheiro é emprestado como
capital adicional para um terceiro capitalista ou, atualmente, emprestado em forma de
títulos da dívida pública para o Estado. Esse movimento acelera o tempo de rotação do
capital e, consequentemente, o sistema de crédito impulsiona diretamente a acumulação
capitalista, "seja permitindo que grande parte do processo social de produção e de trabalho
se realize sem qualquer intervenção de dinheiro real, seja elevando a capacidade funcional
da massa monetária efetivamente operante" (MARX, 2013, p. 493).
Assim, tem-se que a função dos bancos é atuar enquanto intermediador financeiro,
ou seja, ser o elo entre os agentes superavitários (com excesso de ativos financeiros) e os
entes deficitários (com escassez de ativos financeiros). Esta função presume que os
bancos realizam a canalização de depósitos que não seriam utilizados no tempo presente
para os agentes que precisam de determinado montante de forma imediata, seja para uso
individual ou mesmo como investimento no sistema produtivo, observando os limites de
compulsório estabelecidos pelos entes reguladores da atividade bancária. No Brasil, o
percentual de recolhimento de compulsório é estabelecido pelo Banco Central do Brasil
– BCB, como uma ferramenta de política monetária, na medida em que alterações nas
alíquotas de recolhimento influenciam a quantidade de moeda disponível na economia. O
compulsório representa a parte da parcela dos depósitos captados pelos bancos que devem
ser mantidos compulsoriamente “esterilizados” no Banco Central (BCB, 2018). Porém,
esse tradicional instrumento tem servido outras funções, como instrumento auxiliar para
garantir a liquidez dos pagamentos, visto que as instituições podem movimentar
livremente os valores correspondentes às exigibilidades de compulsório durante o dia,
devendo efetuar o recolhimento apenas no final do dia.
Visto o adiantamento de recursos aos entes deficitários, estes remuneram aos
bancos um valor superior ao captado, excedente representado pelos juros. Assim, os
bancos obtêm receitas tanto sobre as taxas por seus serviços, tais como conta correntes,
cobrança, serviços de custódia, administração de fundos e etc., quanto sobre as operações
de crédito, empréstimos e operações de títulos e valores mobiliários e derivativos. Com o
avanço tecnológico dos aparatos financeiros e a influência dos bancos sobre o ambiente
produtivo, a relação capitalista assume a sua forma mais fetichizada, mais irracional do
capital, por ser a que mais esconde o nexo entre a origem do lucro (o trabalho) e ele
próprio (MARX, 2017). “Aqui deparamos com D - D’, dinheiro que engendra mais
dinheiro, valor que valoriza a si mesmo, sem o processo mediador entre os dois extremos”
(MARX, 2017, p. 381).

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Assim, de acordo com Carcanholo (2013), o desenvolvimento do sistema de


crédito permite que o dinheiro e o capital apareçam cada vez mais desmaterializado, ou
seja, que a riqueza real se distancie cada vez mais da riqueza patrimonial (ativos reais,
títulos e também dinheiro na forma papel-moeda ou depósitos bancários). Tem-se assim
a produção de um capital fictício, “parte da riqueza nominal ou patrimonial, não
constituída diretamente por bens reais, que se comporta como capital” (CARCANHOLO,
2013, p. 147). Os bancos, dessa forma, tanto criam crédito adicional, ou seja, aquele que
têm por detrás uma riqueza substantiva por estar atrelada a esfera da produção, quanto
capital que nada possui de substantivo, como por exemplo, quando financiam a
especulação.
Tivemos que fazer tal digressão para demonstrar com se dá a complexa relação
entre indivíduos encarcerados, Estados, sistema bancário e capitalistas. A remuneração
dos trabalhadores carcerários é depositada via DAE no Banco do Brasil, instituição
brasileira de economia mista com participação majoritária da União sobre as ações. Tal
fato amplia o controle e diminui os limites impostos para a realização do valor pelo Estado
extraído do trabalho dos presos visto que, direta ou indireta, a remuneração destes
trabalhadores pode ser transformada em capital financeiro e utilizada das mais diversas
formas. Diante do exposto e realizando um paralelo com o trabalho carcerário, temos que
o Estado, a partir de trabalho humano dos presos extraído em condições degradantes,
possui não apenas um papel importante na esfera da produção, como também da
circulação do valor produzido por esses indivíduos.

3. Considerações Finais

Neste ensaio teórico-empírico nos propusemos analisar como o sistema prisional


brasileiro contribui para a acumulação de capital por meio do sistema financeiro, a partir
da análise do sistema prisional mineiro, o qual atualmente é o que mais utiliza do trabalho
encarcerado no país.
Numa sociedade regida pelo capital, percebemos que sua natureza imanente de
contradição e de luta de classes atravessa os muros das penitenciárias e ali também exerce
sua violenta força contra a natureza humana. Temos então que, a superpopulação de
encarcerados se torna meio para a acumulação de capital, visto que estes indivíduos são
alvos fáceis para a superexploração da força de trabalho e através de um discurso de
ressocialização, profissionalização dos detentos para que estes possam se reinserir na
sociedade após o cumprimento da pena, o capital também se apropria de mão de obra
encarcerada, desafiando cada vez mais os limites impostos à sua destrutiva lógica de
expansão.
Marx (2013) salienta que um dos elementos que caracteriza o processo de trabalho
no modo de produção capitalista é que tanto o possuidor de dinheiro, isto é, o capitalista,
quanto o possuidor da força de trabalho, isto é, o trabalhador, estabeleçam uma relação
mútua como iguais possuidores de mercadorias no mercado de trabalho . Nesse sentido,
para que tal relação seja efetivada, tem-se que dois pressupostos devem ser observados,
quais sejam: que a mercadoria força de trabalho seja vendida pelo seu possuidor, ou seja,
o trabalhador, e que para vendê-la este possa dispor-se dela, portanto, ser livre
proprietário de sua capacidade de trabalho. Porém nesta relação há uma terceira base que
é o Estado (burguês).
Diante do exposto, observamos que, na medida em que o Estado media a relação
entre capital e trabalho no sistema prisional, temos que o detento tem, além da privação

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de sua liberdade, também privado o direito de vender por si só sua força de trabalho,
tornando-se uma própria mercadoria que produz outras mercadorias (ISSA, 2017), muitas
vezes através de um trabalho precariamente remunerado, ou mesmo gratuito.
Assim o que a materialidade do fenômeno estudado nos mostra é a utilização da
força de trabalho dos presos como exploração de mão de obra abaixo do seu valor mínimo
necessário para reprodução da força de trabalho, assemelhando-se, portanto, à escravidão
moderna e, com a instituição de um sistema punitivo estrutural (RUSCHE;
KIRCHHEIMER, 2004), enfatizando que a superpopulação carcerária e as péssimas
condições e relações de trabalho postas, propiciam a formação de um exército industrial
de reserva para as iniciativas privadas e públicas.
Entendemos, portanto, que o trabalho encarcerado representa uma importante
engrenagem ao capital e a extração de mais valor, tanto pelo Estado, quanto por
capitalistas parceiros ao sistema prisional, à despeito de medidas que deveriam preparar
os detentos à ressocialização com condições dignas de reprodução da própria vida.
Todavia, fica obscuro a estes e a sociedade que, além da privação da liberdade
resultante da pena legal pelo delito cometido, esses indivíduos são novamente punidos na
medida em que as regras de remuneração da venda de sua força de trabalho são diferentes
e muito mais precárias que as concernentes aos demais trabalhadores assalariados no país.
Nesse contexto, o trabalho carcerário, como já apontado por Antero (2008), se transfigura
em trabalho escravo temporário pois, muito mais que um descumprimento das leis
trabalhistas, essa relação de trabalho não concede ao preso nem ao menos o direito de
vender por si só a sua força de trabalho.
Neste movimento, ainda observamos que o Estado exerce um duplo papel sobre o
processo de valorização do valor através do trabalho encarcerado na medida que, além de
ditar as regras quanto à produção de valor por esses indivíduos, também possui controle
quanto à esfera da circulação, visto que toda a remuneração, quando existente, a estes
trabalhadores encarcerados é depositada em um banco de economia mista, com
participação majoritária da União sobre as ações. Uma vez dentro desta instituição
bancária, a remuneração destes trabalhadores, cujo controle e acesso é dificultado, pode
ser transformada em capital financeiro e utilizada das mais diversas formas, assim como
quaisquer outras poupanças.
Por fim, pontuamos algumas limitações inerentes à pesquisa e que podem
representar questões potenciais para futuros estudos. A primeira refere-se ao
entendimento aprofundado de como a superpopulação carcerária forma um exército
industrial de reserva, através da mediação do Estado, para iniciativas públicas e privadas.
Em segundo lugar, faz-se necessário debruçar-se sobre o papel do Estado na esfera da
circulação, visto às dificuldades encontradas em evidenciar a utilização precisa da
remuneração dos trabalhadores encarcerados, depositadas em um banco estatal, através
apenas da utilização de entrevistas e dados secundários. Posteriormente, aconselhamos
que na agenda de pesquisa para estudos futuros seja contemplado outros estados a fim de
maximizar o olhar crítica para a realidade concreta do sistema prisional brasileiro, nos
desvencilhando dos números expostos pela mídia e pelo ordenamento jurídico atual.

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

A FINANCEIRIZAÇÃO EM PERSPECTIVA COMPARADA:


COMPREENDENDO O CENÁRIO JURÍDICO-POLÍTICO BRASILEIRO A
PARTIR DO BREXIT

Bruno Rodrigues Vieira


Universidade de Brasília
rivieirabruno@gmail.com

Resumo
O presente trabalho analisa o cenário econômico do Reino Unido no período anterior ao
plebiscito que culminou na saída do Estado da União Europeia, bloco econômico de
tendências notadamente neoliberais. A análise vislumbra explicitar o papel da
financeirização como fator que influenciou a população a ser favorável ao “BREXIT”. A
partir disso, é mostrada a semelhança dos impactos da financeirização no Reino Unido
com o cenário jurídico-político brasileiro nos últimos anos. Através da suscitação dos
impactos da financeirização e da liberalização nas economias nacionais, propõe-se a
questionar como é imperativo que o Brasil observe as experiências do Reino Unido, no
âmbito da política econômica, como exemplo a não ser seguido, evitando assim replicar
os erros lá introduzidos.

Palavras-chave: FINANCEIRIZAÇÃO; REINO UNIDO; BREXIT; NEOLIBERALI;


BRASIL.

FINANCIALIZATION IN A COMPARATIVE PERSPECTIVE:


UNDERSTANDING THE BRAZILIAN JURIDICAL POLITICAL SCENARIO
FROM THE “BREXIT”.

Abstract
This paper analyses the economic scenario of the United Kingdom in the years before the
referendum that culminates in the exit of the state from the European Union, economic
bloc that has clear neoliberal tendencies. The analysis aims to enlighten the role of the
financialization, as a factor of influence to the population favorable to the “BREXIT”,
being displayed from this aspect the similarities between the impacts of the
financialization and the liberalization in the United Kingdom in comparison to Brazil’s
political-juridical scenario in the latest years.

Keywords: FINANCIALIZATION, UNITED KINGDOM; BREXIT; NEOLIBERAL;


BRAZIL.

A ENTRADA DO REINO UNIDO NA UNIÃO EUROPEIA


A União Europeia surge no contexto europeu como uma das consequências da
Segunda Guerra Mundial. Nesse sentido, no primeiro momento, a manutenção da paz
entre os estados europeus era um dos objetivos do bloco econômico (ou melhor, na então
comunidade europeia) que atuava principalmente através da adoção de políticas
econômicas unificadas referentes à produção e venda de carvão e aço na instituição
denominada CECA (Comunidade Europeia do Carvão e do Aço), tendo seis países
fundadores. Posteriormente, outros países europeus aderem à união, dentre estes o Reino
Unido em 1º de janeiro de 1973 (EUROPEIA).

527
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

Destaca-se que desde os momentos iniciais do Reino Unido no bloco houve


setores da sociedade civil desfavoráveis à ideia de deixar assuntos das esferas política e
econômica nacional serem tratados por instituições internacionais. Portanto, torna-se
relevante destacar que a motivação para o plebiscito acontecido em 1975, que consultava
a população sobre seu interesse na renegociação das cláusulas de ingresso do país no
bloco, foi promessa de campanha do governo trabalhista eleito (MILLER, 2015).
Os críticos da permanência na CEE atacavam principalmente a perda de
soberania nacional. Diante da redução do peso internacional do
Commonwealth, os britânicos haviam aderido à Comunidade Europeia
sobretudo por motivos econômicos. A persistente crise econômica – com taxas
de inflação de 20% ao ano –, porém, não pôde ser superada com o ingresso na
CEE. Por isso, um dos principais objetivos do primeiro-ministro Harold
Wilson na renegociação era reduzir as contribuições da Grã-Bretanha aos
cofres europeus. (GESSAT, 2014)

Evidentemente existiram grupos sociais favoráveis a renegociação das condições


de entrada/permanência do Estado no bloco, que pautavam sua opinião, dentre outros
fatores1 em perspectiva otimista em relação a adoção de políticas econômicas unificadas,
sendo benéficas para o país e sua prosperidade em diversos âmbitos (MILLER, 2015).
Apesar do partido dos trabalhadores ser maioria no governo à época também era favorável
à renegociação das cláusulas de adesão ao bloco, o plebiscito, que resultou em 17.378.581
votos favoráveis a internacionalização, representando 67.2% da população do Estado
soberano.

PERSPECTIVA CRÍTICA AO ALINHAMENTO AO PARADIGMA LIBERAL


DA GLOBALIZAÇÃO

Nos anos posteriores a consulta popular realizada no Reino Unido a União


Europeia passou por diversas fases de acentuação da integração, superando a esfera
econômica e política e alcançando níveis integrativos de magnitude jamais vistos, se
assemelhando a figura de um estado nacional composto por vários estados soberanos
com, até mesmo, moeda comum. No entanto, a intensificação não deve ser considerada
como fenômeno majoritariamente positivo.
Em relação à União Europeia especificamente, são alvos de críticas a ineficiência
das políticas econômicas voltadas a setores com baixa produtividade, a exemplo da
Agricultura, e o auto custo de manutenção das instituições que compõem o bloco
(LUXEMBURG, 2010). O Reino Unido, por sua vez, ilustra os impactos perversos de
blocos econômicos regionais nas economias locais e suas sociedades; e críticas são feitas
superando a mera indicação de que haveria no Bloco uma insuficiência gerada
exclusivamente pela observância de preceitos econômicos liberais (JESSOP, 2016).
These policies privilege opportunities for monetary profit over the provision of
substantive use-values that meet social needs, facilitate human flourishing,
protect the environment, and safeguard planet earth. In particular, they
privilege interest-bearing capital and transnational profit-producing capital
over other fractions of capital and the interests of subaltern classes, marginal
communities, and oppressed social categories. In the UK, such privileging goes

1 De acordo com relatos da época, as principais questões sobre as quais os eleitores se basearam para votar
no plebiscito foram a economia, a defesa, o papel do Reino Unido em assuntos internacionais, a segurança
e a paz futuras. (O dia em que os britânicos, com apoio de Thatcher, decidiram permanecer na Europa,
2014)

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well beyond support for the commercial and financial dominance of the City
of London as it operated until its deregulation in the mid-1980s to promote it
as the leading international centre for international financial capital. (JESSOP,
2016, p. 3)

Em 2016 o país realizou outra consulta popular visando verificar o interesse da


sociedade em sua continuidade na União Europeia. A ideia surgiu em 2015, durante a
eleição de um governo majoritariamente composto por integrantes do partido
conservador, que tinha como uma das suas promessas de campanha a realização da
consulta. É importante destacar que o protagonismo do partido conservador é entendido
como resultado da insatisfação com políticas relacionadas à minimização da intervenção
do estado na ordem econômico-social.
Tal minimização foi consagrada através do fomento à livre atuação dos mercados,
ênfase da ação governamental2, favorecendo portanto os setores populacionais
beneficiados pelo mercado financeiro, visando através deste promover a expansão real3
da renda produzida e consequentemente uma melhoria no desempenho macroeconômico.
Nesse sentido, a ação estatal foi avaliada negativamente, já que suas intervenções
têm efeitos distintos do que o mercado tem definido como ideal. Também fica claro o
protagonismo atribuído ao setor financeiro na economia do Reino Unido e o alinhamento
da sua política econômica ao pensamento neoliberal. Nesse paradigma o mercado de
fundos de empréstimo – o mercado financeiro – é fonte principal de recursos a serem
utilizados em investimentos, otimizadores da atividade econômica (MANKIW, 2001).
Este mercado é fundamental na concepção liberal porque, para esta, deve haver
poupança prévia suficiente para financiar o investimento. A poupança, vista
como abstinência de consumo presente, é remunerada pela taxa de juros e
financia o investimento, que por sua vez, gerará os aumentos de renda da
economia. Neste tipo de raciocínio, portanto, uma taxa de juros elevada é
importante para garantir um comportamento frugal dos indivíduos,
comportamento este adequado e suficiente para prover o financiamento do
investimento. Este, por sua vez, tenderá a ser “sadio”, segundo os neoclássicos,
se financiado por decisões voluntárias de não consumo dos indivíduos. Assim,
as decisões de poupança estabelecem as preferências de consumo a cada data
e, ao mesmo tempo, fornecem o financiamento para o investimento que
disponibilizará os bens a serem consumidos no futuro, daí o equilíbrio garantia
a longo prazo (MOLLO; AMADO, 2001, p.130).

O posicionamento associado ao pensamento neoliberal preponderante na União


Europeia mostrou-se, como apresentado por Stutzle (2013) em Jessop (2016), forma de
incentivo a competitividade, estabilidade, crescimento e apresentou respostas imediatas a
crises de liquidez e bolhas especulativas que apareceram ao longo dos anos (JESSOP,
2016). Ou melhor, como apontado por Jessop (2016), esse alinhamento aparentemente
benéfico, na verdade mascarou interesses do capital e das forças de mercado, causando
uma constante deflação, desvalorização da economia interna e a expansão de políticas
econômicas de austeridade.
Assim, lembrando-se da ideia de que se vivia em um mundo de necessidades
infinitas e recursos escassos (MANKIW, 2001) e visando enfatizar e fomentar o mercado
financeiro, as medidas no plano econômico foram voltadas para a otimização do

2 Em relação ao mercado financeiro "Thanks to ‘light touch regulation’, these policies have made
the City the home for many of the most egregious financial scandals in 2007–2015, regardless of the
nationality or primary seat of the financial institutions involved" (JESSOP, 2016, p. 3)
3 O aumento efetivo da produtividade não apenas o aumento no índice de preços

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

funcionamento autônomo deste mercado em detrimento de investimento em outros


mercados e regiões do Reino Unido, o que por sua vez, como o apresentado por Williams
(2016) em Jessop (2016), causou a intensificação do desenvolvimento desigual
beneficiando Londres e a região sudeste do Estado nacional, não apenas em prejuízo da
região norte, mas também aumentando as desigualdades dentro das zonas privilegiadas
(JESSOP, 2016) .
A continuidade no bloco econômico é vista como forma de manutenção de um
crescimento artificial da economia, com potenciais efeitos análogos a momentos como
1929 e 2008, associados com respostas governamentais distintas a estes episódios.

“A remain vote would have consolidated an authoritarian neoliberal


Conservative regime committed to enduring austerity; the Brexit vote might
produce a J-curve depression with eventual recovery below long-term trend-
line growth, at best, with secular stagnation or long-term depression and more
austerity as the more likely outcome (JESSOP, 2016, p.5).

Por fim, ressalta-se a instabilidade inerente ao comportamento da economia


capitalista destinado aos mercados, sendo perceptível ainda uma agravação do cenário
apresentado levando em consideração a perspectiva alternativa de economia nacional
keynesiana apresentada por Mollo e Amado (2001).
Nessa concepção é destacada a maior instabilidade e desigualdade inerentes à
abertura do mercado interno ao livre movimento de capitais, sendo verificada a perda do
controle destes mercados financeiros ampliados problema agravado para governos
nacionais que passam por dificuldades muito maiores para implementação de políticas
locais, além da ausência de mecanismos de regulação que protejam o andamento da
economia frente a insuficiências do mercado (ARESTIS, 1999; MINSKY, 1994 apud
MOLLO; AMADO, 2001, p.140).

BLOCOS ECONÔMICOS: PERSPECTIVA MARXISTA E A POLÍTICA DE


AUSTERIDADE

Autores de influência marxista, Chesnais (1994) e Gutmann (1996) em Mollo e


Amado (2001), mostram como o desenvolvimento do capital fictício, fundamento dos
mercados financeiros, representa o progressivo descolamento da economia real que
resultam em crises já que a organização financeira não se sustenta sem o desenvolvimento
do setor produtivo
Genericamente a globalização funciona como movimento de concentração e
centralização de capitais com consequências muito mais negativas, com o aumento de
desigualdades, do que quaisquer resultados positivos. Também se ressalta que o impacto
prejudicial a economia é ainda mais acentuado nos países menos desenvolvidos
economicamente (MOLLO; AMADO, 2001), o que por sua vez não é parte da análise
feita neste momento. De toda forma, o pensamento de Marx (1971) em Mollo e Amado
(2001) deixa claro que mesmo em países desenvolvidos, como Reino Unido, a
globalização — e consequentemente a acumulação — acarreta em uma população
trabalhadora que ultrapassa as médias de expansão do capital, ou seja, um excedente de
mão de obra que torna-se desempregada.

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

No interior dos próprios países desenvolvidos: a geração de massa crescente


de trabalhadores desocupados. Os novos métodos de trabalho que buscam
aumentar a produtividade tendem a modificar a composição técnica do capital,
reduzindo a parte variável que corresponde ao trabalho vivo, relativamente à
parte constante dos meios de produção. Isto ocorre como decorrência da busca
de maior controle do processo de trabalho, pelo capitalista, visando à obtenção
de maior taxa de mais valia, implicando introduzir cada vez mais rápido os
métodos de produção novos em substituição aos antigos, e assim, aumentando
a participação do capital constante no total do capital empregado. (MOLLO;
AMADO, 2001, p.146)

É possível visualizar a observância do fenômeno mencionado ao se analisar as


taxas de desemprego no período pré e pós-crise de 2008 no Reino Unido, momento em
que, como apontado por Marx, resta de forma clara o descompasso entre o crescimento
artificial e real da economia. Os dados4 obtidos pelo departamento nacional de estatísticas
(Office for National Statistics) da região apontam que em 2007 a taxa de desemprego se
mostrava constante, havendo apenas ligeiras oscilações em seu valor. Por sua vez, abril
de 2008 marcou o início da elevação da porcentagem populacional desempregada que se
manteve crescente até atingir seu ápice em 2011, sendo, em primeira análise, evidente a
coincidência da ocorrência da crise financeira imobiliária com repercussão mundial
acontecida em 2008 e as variações na taxa de desemprego (STIGLITZ, 2017).
Cumpre destacar que não apenas o desemprego, ser por ser intrinsecamente
negativo para sociedade, a imposição de políticas liberais alinhadas com a lógica do bloco
econômico apresentou também como consequência a vulnerabilização das classes mais
pobres, dada a relação inversamente proporcional entre o menor nível de qualificação e
aumento do desemprego e a piora das condições de trabalho daqueles que permanecem
empregados (BRUNHOFF, 1999 apud MOLLO; AMADO, 2001). Dessa forma, fica
clara a relação entre luta de classes e financeirização uma vez que a segunda implica no
aumento do desemprego e piora nas condições de trabalho em benefício dos capitalistas.
Ademais, outra consequência das diminuições das prestações positivas e
intervenções do estado na ordem econômica são a adoção de políticas de austeridades
tomadas, sobretudo em momentos de crise econômica entendidas na perspectiva
neoliberal como remédios para as situações, que seu próprio modelo econômico originou,
através da oneração dos grupos sociais por ele fragilizados.
Os economistas neoliberais, chamados ortodoxos defendem que do ponto de
vista monetário, o Estado tem um viés inflacionário, porque para gastar mais
do que arrecada precisa emitir moeda e, assim fazendo, gera inflação. A
inflação, nesta visão (e somente nesta), é vista como a única consequência
deste tipo de comportamento, porque esses economistas acham que a moeda
ou o crédito injetado na economia não estimula de forma duradoura o
crescimento da produção, da renda e do emprego. Do ponto de vista
qualitativo, a ortodoxia acha que os governos são ineficientes e é preferível
que os investimentos sejam privados. São esses os argumentos usados para
pedir austeridade da política econômica. Trata-se, então, de pedir a redução
dos gastos dos governos, que tais economistas acham que são ineficientes, ou
inflacionários. (MOLLO, 2015)

Em contraposição ao pensamento ortodoxo, destacam-se principalmente o


heterodoxo e dentre este o Marxista, que será aqui discutido. Para este (MOLLO, 2015)

4 Trata-se da taxa de desemprego para pessoas a partir de 16 anos de idade.

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

as medidas de austeridade não são alternativas aceitáveis para superação de crises


econômicas, uma vez que estas significam a redução dos gastos governamentais,
sobretudo em políticas sociais e investimentos visando o interesse público, onerando
portanto a parcela populacional que depende diretamente dessas ações, ou seja, os mais
pobres. Assim sendo, a mudança social por ele defendida torna-se novamente dificultada,
já que as condições materiais do sistema econômico vigente precisam melhorar para que
sua superação seja possível.
Isso é visível na realidade do Reino Unido. Em 2010, dois anos após o deslanche
da crise financeira de repercussão global, o governo nacional passou a solucionar a
questão do déficit fiscal através da redução dos gastos públicos (YORK, 2017). Antes de
explorar as ações realizadas é de indispensável reforçar a ideia de que a diminuição dos
gastos governamentais tem como principais prejudicados os mais pobres e vulneráveis da
sociedade, sendo perceptível no caso em análise que a intensificação das desigualdades
causadas pelo governo é até mesmo vista, nessa ação neoliberal, como favorável ao
funcionamento do sistema econômico mesmo que, na prática, seja clara a ineficiência do
modelo adotado (COHEN, 2017). A redução dos gastos foi pautada, além do déficit
orçamentário, pela pretensa ineficiência do Estado como gestor da economia:
There is no evidence that the privatized industries have performed better than
when they were in public ownership. Indeed, rather the opposite – with results
that have been catastrophic. But the costs of privatization are not confined to
the appalling consequences of the government’s failure to meet housing needs.
It is everywhere that there has been privatization – railways, energy, water and
sewage, telecommunications, bus services, airport management and so on. We
are only too aware of the failures of many of the private companies that now
own and manage these services and of the price gouging that has happened
over many years. (COHEN, 2017).

Como apresentado por Cohen (2017), no período ficou consolidado o aumento


dos custos de vida de maior proporção em relação ao aumento na renda. Ainda, houve
cortes de gastos de agentes públicos essenciais, como bombeiros e policiais, dificultando
o atendimento a emergências, a exemplo dos atentados terroristas. Também diminuição
dos gastos com educação e saúde, acarretando a piora da qualidade do ensino e serviço
de saúde pública (WATTS, 2017).
Ressalta-se que os funcionários públicos são altamente instruídos e capacitados e,
ainda assim, foram sujeitos ao congelamento de seus salários, resultando na redução do
salário real5. Por fim, destaca-se que se no curto prazo houver uma redução dos
investimentos em setores com potencial para capacitação da mão-de-obra, como a
educação, no longo prazo, potencialmente haverá uma diminuição da capacidade futura
para contribuição com o crescimento econômico daqueles atingidos pela redução de tais
gastos, uma vez que, estes serão potencialmente menos instruídos (STIGLITZ, 2017).
Além de reforçar o argumento marxista apresentado, em perspectiva Keynesiana
o modelo econômico adotado é também ineficiente. Keynes defende que em momentos
de crise econômica o governo deve aumentar seus gastos visando incentivar o
aquecimento em cadeia de toda a economia, eventualmente superando o cenário de crise
(MOLLO; AMADO, 2001). Nessa perspectiva a ação governamental é feita de maneira
positiva, ou seja, através de intervenções estatais. Além dessa forma de intervenção,
outros meios podem ser eficazes na superação das crises econômicas:

5 O salário que considera os efeitos da inflação sobre o seu valor.

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There’s a long list of investments that governments could and should be


making. There is strengthening infrastructure, such as transport and
communications; there is investment in education; there is investment in
families, particularly putting measures in place that free women from having
to make the choice between raising a family and work. If that is done, it
increases the labour supply. And that is not only better for society – it’s better
for the economy. (STIGLITZ, 2017).

Considerando a possibilidade de ação estatal diversa — a atualmente praticada —


e ainda os efeitos não satisfatórios da política de austeridade aplicada (YORK, 2017),
torna-se explícito o aspecto perverso de tais medidas, a viabilização da concentração de
renda e a expansão das desigualdades pré-existentes, sobretudo no âmbito da tributação
que tornou-se cada vez mais favorável a população mais rica, medidas com traços comuns
a aplicação do Direito tributário no Brasil, notadamente regressivo (GASSEN;
D’ARAÚJO; PAULINO, 2013). Portanto, isso mostra o porquê da insatisfação
populacional com o modelo vigente ao notar o BREXIT como alternativa a realidade do
momento em análise.
Discretionary tax increases and spending cuts by Government since April 2008
are around 10.6 % of national income – some £200 billion at 2017 prices. Of
this fiscal tightening, 16% were net tax changes and 84% reductions in public
spending, with some two-thirds of the fiscal contraction achieved by 2016-
2017. Policy decisions were taken which loaded the fiscal adjustment on
expenditure cuts with a much smaller role for tax changes in the conduct of
fiscal adjustment. Most of the tax changes benefitted the rich, especially the
cut in the top rate of income tax. During this period the share in total
government receipts rose sharply for council tax, VAT and NICs, and fell for
Business Rates and Corporation Tax. The increase in VAT and council tax
were highly regressive with the impact much greater on those with lower
incomes. (COHEN, 2017).

ESTUDO DE CASO: DESEMPENHO ELEITORAL X DESEMPENHO


ECONÔMICO
Destacamos que a análise empírica corrobora com as assunções teóricas
apresentadas, ao fazer uma breve análise qualitativa a partir de dados quantitativos6
disponibilizados pelo Departamento Nacional de Estatísticas (Office for National
Statistics) do contexto econômico posterior ao plebiscito acontecido em 2016, visando
compreender se o desempenho econômico foi uma das variáveis que se relaciona com o
resultado eleitoral, ou seja, entender se uma piora, ou melhora, no desempenho
econômico teve relação com os votos da população terem sido favoráveis ou contrários a
permanência do Reino Unido na União Europeia.
As zonas eleitorais analisadas são especificamente aquelas com resultados mais
expressivos para ambas as possibilidades de voto. Representando as zonas de maioria
significativa favorável a permanência no bloco econômico destaca-se a área de Londres,
reconhecida como importante centro financeiro mundial, e especificamente, as zonas de

6 Os dados analisados como parâmetro do desempenho econômico


são a variação no PIB a partir de 2007 até 2016. Em relação ao desempenho eleitoral,
utilizou-se como parâmetro os percentuais finais dos votos na zonais eleitorais
analisadas.

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Camden and City of London, Westminster, Kensignton & Chelsea and Hammersmith &
Fulham e Wandsworth, onde cerca de 75% dos eleitores de cada uma das zonas foram
favoráveis a permanência no bloco econômico (BARR, 2016). Por sua vez, nas zonas
eleitorais majoritariamente contrárias à permanência do Reino Unido na União Europeia
destacam-se os resultados obtidos em Ashfield (69,8%), Boston (75,6%), Great Yarmouth
(71,5%) e Stoke-on-Trent (69,4%) (BARR, 2016).

Em relação à primeira zona mencionada dentre as quais a população era em sua


maioria contrária ao “BREXIT”, preliminarmente destaca-se que no período analisado7 o
setor financeiro e de seguros correspondia a aproximadamente 47% do produto total da
região.
Assim, fica clara a forte submissão da economia local ao mercado financeiro que,
com exceção ao ano de 2008, apresentou crescimento constante passando de £24.377
milhões contabilizados em 2007 para £30.447 milhões em 2015. Por outro lado, setores
relacionados à produção industrial e à manufatura apresentaram, ao longo do período,
crescimento instável marcado, ainda, por períodos de decrescimento, passando
respectivamente de £612 mil para £780 em 2015 e £312 mil para £314 mil em 2014.
Vislumbra-se portanto a correlação entre melhoria no desempenho econômica do
setor financeiro, beneficiário primário da internacionalização do mercado de capitais, e a
vontade popular de permanência no bloco econômico, que tem a internacionalização das
economias como fundamento com potencial negativo a outros setores e grupos sociais
mais vulneráveis — como mencionado previamente.
Em relação às zonas onde a maioria da população foi favorável ao “BREXIT”
destaca-se que em Boston o setor de finanças e seguros tem representado
aproximadamente 2% do total do produto da região, sendo clara a pouca
representatividade do setor diante a setores como a manufatura, educação, saúde e
administração pública.
Na região fica destacado cenário oposto a Camdem and the city of London,
havendo crescimento de aproximadamente 25% dos valores adicionados pela manufatura
e pelo poder público e desempenho próximo a estagnação no setor de finanças e seguros.
Ademais, nota-se também que apesar de setores específicos apresentarem crescimento
relativo considerável, tal realidade foi menos proporcional em relação ao crescimento
aglomerado da região, apresentando em 2015 desempenho econômico aproximadamente
22% maior do que em 2007.
A partir dos dados apresentados vislumbra-se a possível correlação entre o
desempenho econômico e o resultado eleitoral. A pouca relevância do setor financeiro na
região não foi fator responsável pela demanda por contínuas políticas de
internacionalização da economia local, uma vez que o crescimento econômico regional
autônomo é visto como suficiente para um bom desempenho econômico, que estava cada
vez mais ameaçado pelas políticas de austeridades adotadas e relacionada ao alinhamento
a União Europeia.
Entretanto, para que seja possível afirmar com maior grau de certeza a correlação
apresentada deve-se ainda realizar uma análise com maior número de zonas eleitorais
possível e/ ou ainda uma regressão linear múltipla, agregando outras variáveis
macroeconômicas, que possibilitam uma análise empírica mais rente a realidade fática.

7 O período de análise dessa seção foi a partir do ano de 2007 até 2015, anos que antecederam
respectivamente a crise financeira de repercussão mundial iniciada nos Estados Unidos e o "BREXIT".

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A ASCENSÃO DO NEOLIBERALISMO NO BRASIL PÓS DITADURA

O final dos anos 80 no Brasil marcou o fim do paradigmático período militar. Nos
anos 90 o país teve pela primeira vez, desde a ditadura, representantes governamentais
eleitos diretamente através do voto, universalizado a partir da então recente constituição
de 1988. Aquele momento na realidade brasileira foi influenciado pelas consequências do
regime militar ditatorial, dessa forma durante as campanhas dos candidatos e governos
dos cargos eletivos à época, visava-se reestabelecer o país a partir da nova ordem
institucional democrática.
No âmbito da economia nacional eram manifestamente perversos os impactos
econômicos da ditadura, devido à política econômica adotada pelo governo autoritário
caracterizada pelo largo controle e repressão estatal.

[…] o grande legado deixado pela ditadura, além é claro, da ausência de


políticas públicas e sociais sem contar a censura, torturas, concentração de
renda e da riqueza, atos institucionais etc., foram também, os constantes
constrangimentos externos e forte processo inflacionário em ascensão. A crise
da dívida externa desestruturou profundamente a economia brasileira,
desestruturação essa, que sentimos e vivemos seus resquícios até os dias atuais.
(DANIEL, 2012).

Logo, a população eleitoral do período demandava representantes e políticas


estatais que sanassem os problemas do país – dentre eles destacava-se a inflação, cada
vez mais alta. Tal demanda materializou-se na eleição de governos notadamente
alinhados ao pensamento neoliberal, presente de forma mais acentuada, sobretudo a partir
de 1994, mantendo-se presente no país até 2006 (MOLLO; SAAD-FILHO, 2006).
Houve diversas tentativas de melhora do desempenho econômico e eliminação
das altas taxas de inflação, que só foi controlada efetivamente a partir da introdução do
plano real em 1994, responsável não apenas pela estabilização geral dos preços, mas
também pela adoção de políticas de redução da intervenção estatal na ordem econômica.

The most significant achievement of the neoliberal decade was the elimination
of high inflation [...] However, the 1994 real plan was not only an anti-inflation
programme. It also included policies consolidating the neoliberal transition.
These policies, explained in the previous section, included high interest rates,
financial, trade and capital account liberalisation, the privatisation or closure
of state-owned productive and financial enterprises, fiscal and labour market
reforms, de-indexation, currency overvaluation and the closure of several state
agencies and departments. (MOLLO, SAAD-FILHO, 2006, p.103)

No entanto, a continuidade de tais políticas neoliberais que, no primeiro momento


foram eficazes na reversão do cenário econômico, acarretaram efeitos perversos sentidos
novamente e sobretudo pela população pobre.
Além de impactar negativamente o mercado de trabalho, o desempenho
ineficiente do mercado financeiro teve no país seu efeito acentuado pela elevação da
concentração decorrente do período da alta inflacionária, uma vez que a população mais
rica sempre dispôs de meios de conservação de seu patrimônio e renda enquanto a
população pobre tinha sua renda deteriorada pela desvalorização monetária. Assim, a

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redução da intervenção do estado e suas decorrências foram fatores decisivos para


aumento das desigualdades socioeconômicas no país.

Economic underperformance over long periods, high interest rates, excessively


rapid import liberalisation and the structural transformation of Brazilian
industry through mergers and acquisitions and the ‘flexibilisation’ of the
workforce have led to a significant deterioration of the labour market. The
capacity of the economy to create new jobs has been declining, and national
levels of unemployment and underemployment have risen, even when
compared to the ‘lost decade’ of the 1980s. (MOLLO; SAAD-FILHO, 2006,
p.110)

UMA ANÁLISE DA RECENTE LIBERALIZAÇÃO NO BRASIL A PARTIR DO


“BREXIT”

Apesar de recentemente ter se vivido no Brasil momentos onde a autor regulação


do setor financeiro e a ainda, a mitigação da intervenção estatal e a decorrente redução de
investimentos públicos fossem valores fundamentais da política econômica nacional, que
além de ocasionar um mau desempenho econômico corroboraram com a perpetuação das
desigualdades socioeconômicas presentes no país, percebe-se na atualidade a retomada
de medidas governamentais alinhadas ao pensamento neoliberal.
Nos últimos anos, sobretudo a partir de 2016, houve a intensificação da discussão
normativa tendente a reduzir prestações estatais positivas e modificar as garantias
consolidadas dos trabalhadores sob o pretexto de promover a recuperação da economia
nacional.
Em relação a redução da atividade financeira estatal, destaca-se a aprovação da
emenda constitucional 95/2016 que estabeleceu o novo regime fiscal, atualmente em
vigor. A partir dessa medida sedimenta-se a política de austeridade que prevalece no
Brasil desde 2016, com vigência de 20 anos.
A política de austeridade, apresentada como única alternativa ao déficit das
despesas públicas presentes no país à época (PERES; SANTOS, 2016), acarreta no
desaquecimento da economia, que pode ser compreendido através de uma explicação
simplificada: se os gastos governamentais representam renda para o setor privado fica
clara a relação de proporcionalidade entre os dois, assim, uma diminuição do primeiro
implica na redução do segundo, que confiaria seu desempenho na sua pretensa capacidade
de autor regulação.
Em síntese, o novo regime fiscal implica um congelamento real das despesas
totais do Governo Federal que pressupõe uma redução do gasto público
relativamente ao Produto Interno Bruto (PIB) e ao número de habitantes. Ou
seja, de acordo com a regra proposta, os gastos públicos não vão acompanhar
o crescimento da renda e da população [...] do ponto de vista macroeconômico,
a reforma fiscal é desastrosa ao impor à demanda pública um caráter
contracionista por um longo período e por retirar do Estado os instrumentos
fiscais capazes de enfrentar crises econômicas. No entanto, os efeitos sociais
do novo regime fiscal são ainda mais críticos. (ROSSI; DWECK, 2016).

No âmbito social os impactos do atual regime fiscal são também alarmantes, pois
fomentam a perpetuação da desigualdade que historicamente caracteriza a sociedade
brasileira. A perpetuação justifica-se, pois, a partir da sua instauração do novo regime
fiscal houve a redução de despesas com educação e saúde públicas, que tem como

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principal usuário a população mais pobre do país onerada também com a redução da
possibilidade de aumento de sua renda, através da nova metodologia de reajuste do
salário-mínimo (ALESSI, 2016).

No Brasil, o mínimo para os gastos públicos com educação, estabelecido pelo


Artigo 212 da Constituição Federal, é de 18% da Receita Líquida de Impostos
(RLI). Já o mínimo para a saúde foi modificado recentemente por meio
da Emenda Constitucional 86, que estabelece um percentual da Recente
Corrente Líquida (RCL) de forma escalonada, 13,2% da RCL em 2016, 13,7%
em 2017, 14,2% em 2018, 14,7% em 2019 e 15% a partir de 2020. Já a PEC
55 prevê que em 2017 o gasto com educação será 18% da RLI, o gasto com
saúde será 15% da RCL e, a partir de então, ambos terão como piso o gasto em
2017 reajustado pela inflação. Ou seja, o gasto federal real mínimo com saúde
e educação será congelado no patamar de 2017. Comparando as regras atuais
com o mínimo estipulado pela PEC, percebe-se que o piso previsto por ela é,
na verdade, um piso deslizante. Isto é, ao longo do tempo o valor mínimo
destinado à educação e saúde cai em proporção das receitas e do PIB. (ROSSI,
DWECK, 2016).

O modelo econômico adotado no Brasil não apenas ignora o passado recente do


país, mas também, os impactos da adoção de medidas semelhantes em outros países.
Como apresentado, o Reino Unido desde 2010 passou a adotar medidas de austeridade
fiscal que ocasionaram além do congelamento de gastos públicos, sobretudo na saúde e
educação públicas8, também a expansão da concentração da renda na região (COHEN,
2017).
Dessa forma, questiona-se mais uma vez a adoção da Emenda Constitucional
95/2016: como se pôde esperar levando em considerando as projeções feitas (ROSSI;
DWECK, 2016) e ainda a experiência comparada (STIGLITZ, 2017) que uma política de
diminuição dos gastos públicos poderia ocasionar uma melhoria do cenário econômico?
e ainda assim, mesmo que vislumbrada à possibilidade de acerto de tal política como se
pode considerar quaisquer efeitos benéficos de adoção de medidas, que na prática,
acarretam na redução da possibilidade do exercício de direitos sociais consagrados no
ordenamento jurídico brasileiro, em detrimento de medidas alternativas existentes com
efetivo potencial de resolução do cenário de crise ? (PERES; SANTOS, 2016).
A perversão dessa medida é ainda agravada considerando a estrutura tributária
notadamente regressiva (GASSEN; D’ARAÚJO; PAULINO, 2013) do Brasil. Assim
além de ser atingida diretamente pelas últimas decisões de política econômica adotada a
população pobre ainda contribuem mais que proporcionalmente para manutenção da
estrutura estatal, que mantém os privilégios da população rica, que contribui menos que
proporcionalmente através da tributação e alheia aos impactos negativos da política
econômica neoliberal.
Enquanto no Reino Unido a financeirização — manifestação do pensamento
neoliberal — mostrou influenciar no aumento das taxas de desemprego no Brasil, fica
claro que a adoção de políticas nesse sentido, vide a redução dos gastos públicos nos
moldes apresentados, influenciam não apenas no desemprego da população, mas ainda na
flexibilização das condições de trabalho e nas garantias da parcela populacional que
mantém-se empregada.

8 Setores que promovem diretamente a expansão da capacidade produtiva no curto e longo prazo.

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Em relação ao desemprego, observa-se que a partir de 20149, houve um


crescimento da proporção da população a partir de 14 anos desempregada que se manteve
crescente até 2018, representando 13,1% da população do país. Fica clara portanto, a
relação inversamente proporcional entre diminuição dos gastos públicos e aumento na
taxa de desemprego.
Já as condições de trabalho da população empregada é por sua vez alvo de
tentativas de flexibilização sendo destacado o projeto de Lei nº 6.787 de 2016, alterado
aprovado e sancionado em 2017 como a lei nº 13.467 de 13 de julho deste ano,
vulgarmente conhecida como “reforma trabalhista”. Tal norma instaurou diversas
mudanças no âmbito do direito do trabalho brasileiro, como por exemplo, condições do
trabalho, organização sindical, negociações coletivas e a justiça do trabalho (DIEESE,
2017).
Dentre as flexibilizações, destacamos duas de absurdas dimensões: a possibilidade
de estipulação de um “comum acordo” para demissão entre empregado e empregador e a
permissão para demissão sem motivação.
Sobre esses pontos se crítica a retomada ao paradigma de igualdade formal, já
superado pelo ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo no âmbito de contratos e
especialmente nos contratos de trabalho, ao acreditar que haveria alguma possibilidade
de liberdade negocial, mesmo que o empregado e sindicatos sejam notadamente
hipossuficientes em relação ao empregador.

Em cenário de ampliação das negociações individuais, sem considerar que as


relações de poder entre patrão e empregado são assimétricas, o estabelecimento
de “comum acordo” é uma opção que pode significar perdas para o trabalhador,
que será levado, em muitos casos, a aceitar essa modalidade de rescisão
contratual. Haverá perda de 50% em algumas verbas indenizatórias, redução
do valor que poderá ser sacado na conta vinculada no FGTS e não existirá
pagamento do seguro-desemprego […]
Facilita a demissão individual, mas, principalmente, as coletivas, definindo que
não há necessidade de negociação com as entidades sindicais. Em um projeto
de lei que visa, supostamente, à promoção da negociação entre as partes, esse
dispositivo, na realidade, enfraquece essa negociação em um dos momentos
mais conflituosos da relação de trabalho. (DIEESE, 2017, p.5)

A reforma trabalhista além de vislumbrar reduzir garantias consolidadas pela atual


legislação trabalhista brasileira, visa ainda mitigar a possibilidade de atuação jurisdicional
da justiça do trabalho, que atua de forma eficaz e autônoma em relação a outras
competências jurisdicionais, promovendo a materialização dos direitos do trabalhador
constantemente violados.
A redução das garantias é vista, por exemplo, na possibilidade de estipulação de
cláusula compromissória, a requerimento do futuro empregado, para resolução de
eventuais conflitos no contrato de trabalho firmado entre empregadores e profissionais
com ensino superior ou que receba altos salários, afastando assim a possibilidade de
intervenção da justiça especializada para solução dos conflitos. Assume-se novamente a

9 No Brasil, a virada para a austeridade é a marca do segundo governo Dilma Rousseff, que iniciou
adotando a estratégia econômica do candidato derrotado no pleito de 2014, ou seja, realizando um duro
ajuste fiscal e monetário na esperança de que o setor privado retomasse a confiança e voltasse a investir
[...] o corte de gasto em conjunturas como a de 2015 não é garantia de melhores indicadores fiscais, pelo
contrário, as contas públicas pioraram por conta da própria interrupção de investimentos públicos e
contingenciamento de verbas para áreas importantes como saúde e educação. (ROSSI; DWECK, 2016).

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existência de uma liberdade, ainda que pré-contratual, originada da igualdade formal e


desconsiderando a assimetria real existente entre as partes.

Essa mentalidade está fincada na cultura escravista do início do século


passado, do pensamento da elite dominante do país, que desde os primórdios
da história do trabalho se empenha com firmeza e determinação para manter
em patamares elevados os lucros e a supremacia do capital e do mercado […]
Os números publicados anualmente comprovam os altos lucros do setor
financeiro no Brasil, e esse é o segmento que investe contra a Justiça do
Trabalho, já pela segunda vez em menos de 20 anos, pela sua extinção e pela
precarização e flexibilização do Direito do Trabalho. (ARANTES; LEMOS,
2017, p.92).

As flexibilizações da atuação estatal, na gestão da política econômica e prestação


da competência jurisdicional no Brasil, encontram-se sujeitas as vontades do setor
privado restando inequívoca ainda, a influência do setor financeiro atuando ainda de
forma a institucionalizar a maior oneração da população pobre no país, atendendo os
desejos da elite sendo essa então mais uma maneira de materialização da sua posição de
superioridade e privilégio dentro da sociedade brasileira.
O neoliberalismo estabelecido pelos países capitalistas no final do século XX
e início do século XXI incorporou práticas como a flexibilização e a
desregulamentação de direitos trabalhistas, desestabilizando o trabalho
enquanto meio de consolidação da identidade individual e coletiva do
trabalhador e instrumento de sua emancipação […] O rebaixamento da
proteção social e a precarização trabalhista são apresentados como única saída
para a crise econômica mundial, mantras repetidos à exaustão para
convencimento dos próprios trabalhadores. (ARANTES; LEMOS, 2017,
p.100).

Comparativamente, as flexibilizações no mercado de trabalho brasileiro são ainda


mais flagrantes que aquelas observadas no Reino Unido uma vez que o atual ordenamento
jurídico brasileiro é fruto da luta ocorrida durante os anos da ditadura militar, onde
trabalhadores não tinham seus direitos respeitados e ainda arcavam com os impactos
negativos da gestão da política econômica do país; conseguir portanto alcançar a
constitucionalização e positivação de garantias inclusive no âmbito das relações de
trabalho implica também na atuação combinada da sociedade civil e agentes estatais para
sua manutenção, ainda que em cenários de crise, considerando as alternativas
possibilidades de atuação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do presente artigo foi suscitada a complexa relação estabelecida entre o


pensamento neoliberal e as políticas econômicas em dois distintos modelos democráticos:
Reino Unido e Brasil. É clara a sujeição das políticas econômicas às vontades do
mercado, que nos momentos analisados sempre foram distintos a materialização de
condições dignas de vida para população de cada modelo.
Ao contrário, em momentos em que os instrumentos teorizados pelo pensamento
neoliberal para gestão da economia apresentaram crises, visou-se sua superação através
de medidas que oneravam a população mais pobre, naturalmente atingida pelas
desigualdades inerentes ao sistema capitalista vigente nos contextos estudados.
Embora o Brasil não tenha a liberalização resultada da adoção a integração
causadas por Blocos econômicos, como Reino Unido ficam claro os ganhos de capital da
elite financeira, beneficiária da adoção de políticas de “estado mínimo” em contraposição

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às perdas da maioria das populações locais. O ponto a ser observado a partir do paralelo
traçado é perceber como a financeirização age em contextos distintos de forma análoga
mesmo considerando as particularidades locais, especificamente, considerando o
ordenamento jurídico brasileiro e suas provisões que, em tese, tem potencial para retardar
a atuação desarrozoada do livre mercado.
Por fim, como apresentado por Mollo e Saad-filho (2016) destaca-se na realidade
brasileira a severidade e a complexidade dos problemas socioeconômicos, o que mais
uma vez reforça a incapacidade de o mercado solucionar tais questões espontaneamente.
Nesse sentido, cumpre ao país, de forma urgente, observar os impactos da
liberalização decorrentes da financeirização em perspectiva comparada, sobretudo do
Reino Unido, pois este adotou políticas semelhantes às adotadas/ pretendidas a serem
aplicadas na realidade nacional servindo como fonte empírica do insucesso das medidas
adotadas nesse tocante, fomentando assim a perspectiva crítica sobre a ascensão da
financeirização.

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

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SUPREMACIA FINANCEIRA NO BRASIL:


ANÁLISE COMPARATIVA DOS MONTANTES E TAXAS DE LUCRO DOS
SETORES FINANCEIRO E INDUSTRIAL NACIONAIS ENTRE 1998 E 2014

Victor de Castro Almeida


Universidade Federal de Juiz de Fora
victor.almeida@facc.ufjf.br

Resumo
Mediante as teorias que observam no desenvolvimento das finanças a origem para um
estágio do sistema capitalista em que estas exercem hegemonia, dominação ou autonomia
em relação ao capital produtivo, apresenta-se aqui a comparação dos montantes de lucros
dos setores financeiro e industrial nacionais, como forma de questionar a consideração
abstrata das taxas de lucro como meios suficientes para a afirmação da suposta hegemonia
entre as mencionadas frações do capital.
Palavras-chave: Acumulação de Capital; Hegemonia Financeira; Taxa de Lucro.

FINANCIAL SUPREMACY IN BRAZIL:


COMPARATIVE ANALYSIS OF THE AMOUNTS AND PROFIT RATES OF
THE NATIONAL FINANCIAL AND INDUSTRIAL SECTORS BETWEEN 1998
AND 2014

Abstract
Through the theories that observe in the development of finance the origin for a stage of
the capitalist system in which they exercise hegemony, domination or autonomy in
relation to productive capital, here is presented the comparison of the amounts of profits
of the national financial and industrial sectors, as question of the abstract consideration
of rates of profit as sufficient means for the assertion of the supposed hegemony between
the mentioned fractions of capital.
Keywords: ; Financial Hegemony; Profit Rate.

Introdução

O presente trabalho tem como objetivo interpretar a dinâmica dos setores financeiro
e produtivo no Brasil, durante os anos de 1998 a 2014, especificamente no que concerne
ao comportamento de suas respectivas taxas anuais de lucro, bem como, aos montantes
destes em relação ao PIB, com vistas a contribuir para a discussão a respeito da existência
de uma suposta hegemonia financeira incidente sobre a ordem produtiva nacional.

2 TEORIAS ADERENTES À FINANCEIRIZAÇÃO E ALTERNATIVAS

2.1 Gérard Duménil e Dominique Lévy

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Para Duménil e Lévy (2014) o neoliberalismo corresponde à fase do capitalismo


contemporâneo - capitalismo a partir do século XX – inaugurada após a crise estrutural
da década de 1970, em que, por meio de uma ordem social estabelecida mediante aliança
entre as classes gerenciais e capitalistas (dentro de sua concepção tripolar de classes),
estabeleceu-se um compromisso voltado à redistribuição da renda em favor das camadas
mais altas da sociedade. Nessa perspectiva, as finanças aparecem como mecanismo em
que manifesta-se a dominação econômica e, antes, como associação de classes portadora
de interesses e objetivos específicos – pormenorizadamente: o controle das classes altas
sobre as instituições financeiras, com apoio da administração de alto escalão (camadas
mais altas das classes gerenciais).
Em suas palavras,
Hegemonia financeira, tal como usamos aqui, refere-se ao fato de as classes
capitalistas – ou seja, as finanças e a camada superior das classes capitalistas e
das instituições financeiras – se beneficiarem de uma capacidade ilimitada de
comandar a economia e a sociedade em geral, de acordo com interesses
próprios ou o que percebam como tal (DUMÉNIL E LÉVY, 2014, p. 24)

Ainda, consideram que “a mesma noção – hegemonia – é usada (...) para se


referir tanto às relações hierárquicas de classes, como no neoliberalismo, quanto,
internacionalmente, ao imperialismo” (DUMÉNIL E LÉVY, 2014, p. 19-20). Desta
resultam as camadas superiores da classe capitalista apoiadas pelas instituições
financeiras, como líderes no cerne do grupo mais amplo das classes altas, bem como os
Estados Unidos no bojo dos países imperialistas, ambos exercendo uma dominação
conjunta, consubstanciada em cooperação e rivalidade, da qual resultam alianças
hierárquicas fundadas em compromissos que fazem prevalecer os interesses destes sobre
os dos demais participantes.
Com isso, tem-se que,
Na determinação das tendências reais e financeiras no capitalismo
contemporâneo, esses dois componentes – hegemonias de classe e
internacionais – mantêm efeitos interativos. A crise atual [2007-8] manifesta
as contradições de uma trajetória histórica criadas em conjunto por essas duas
linhas de fatores típicos daquilo que pode ser chamado de “neoliberalismo sob
hegemonia dos Estados Unidos” (DUMÉNIL E LÉVY, 2014, p. 20).

Como fase mais recente do capitalismo, o neoliberalismo é circunscrito no


âmbito mais amplo do capitalismo moderno, isto é, do capitalismo após as revoluções
corporativa, financeira e gerencial, engendradas a partir das contradições imanentes
despertadas pela crise estrutural de 1890, e que se desenvolveram a partir do início do
século XX, sobretudo, implicando na expansão das empresas e bancos, e desta o
surgimento da gestão empresarial posta a cargo de pessoal administrativo assalariado.
Como critério para a periodização do capitalismo, os autores propõem a
consideração de ordens sociais, atreladas a configurações do poder de classe, que por sua
vez dão origens a compromissos sociais resultantes do desdobramento maior das lutas de
classes posicionadas no tempo e nas condições materiais disponíveis. Estas ordens se
vinculam à noção de crises estruturais, consideradas aqui como duradouras e profundas,
tais como “resultados combinados das contradições internas de cada ordem social e da
luta de classes (...) [portanto, marcos dos] rompimentos violentos na história do
capitalismo” (DUMÉNIL E LÉVY, 2014, p. 29).
Dessa maneira, reconhecendo a taxa de lucro como uma importante variável de
análise para as crises estruturais do capitalismo, propõem que somente as crises ocorridas

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nas décadas de 1890, 1930, 1970 e 2000 podem ser reconhecidas como tais, e estabelecem
que aquelas que originaram-se a partir de momentos de queda desta taxa – a saber, a
primeira e a terceira – corresponderam ao surgimento subsequente de hegemonias
financeiras, enquanto, as demais - não correlacionadas a esta tendência -, expressam os
desdobramentos implicados pela corrida para fora da economia real, isto é, pelo
distanciamento em relação à acumulação de capital. Essa percepção é evidenciada pela
Figura 1, a seguir.

Figura 1 – Taxa de lucro da economia não residencial privada dos Estados Unidos

Fonte: retirado de Duménil e Lévy (2014, p. 284)


Por esta razão afirmam,
A Grande Depressão e a crise atual [2007-8] têm em comum o fato de cada
uma delas ter marcado o fim de um período de hegemonia financeira. A Grande
Depressão pode ser denominada de “a crise da primeira hegemonia financeira”.
Essa denominação expressa diretamente seus aspectos em comum com a crise
do neoliberalismo, ele próprio “a crise da segunda hegemonia financeira”.
Ambas foram consequência do exercício da hegemonia, a expressão irrestrita
das exigências das classes altas que forçaram os mecanismos econômicos até
os limites da sustentabilidade, extrapolando-os por fim (DUMÉNIL E LÉVY,
2014, p. 29).

Partindo desta percepção, pontuam que “o neoliberalismo é uma ordem social


destinada a gerar rendimentos para as faixas superiores da renda, não para investimentos
na produção, muito menos para o progresso social” (DUMÉNIL E LÉVY, 2014, p. 32),
e apontam para tendências, tais como a desterritorialização da produção nos países
centrais, e seu desenvolvimento como economias de serviço, ou mais especificamente
como centros financeiros, além do endividamento familiar norte-americano e a expansão
dos mercados de derivativos e das operações financeiras – todas estas convergindo para
a edificação da busca por rendimentos dessa natureza, tal como instrumento da
financeirização.
Ademais, preconizam a macrotrajetória econômica única dos Estados Unidos,
chamando atenção para o desprendimento em relação ao controle da balança comercial e
a posição do dólar como moeda internacional – estes associados à queda das taxas internas
de acumulação, por sua vez acompanhada do avanço da demanda de consumo sustentada
pelo aumento das importações e dos déficits comerciais –, fatores dos quais, abstraem o
forte estímulo da demanda interna, baseado no endividamento familiar e na inovação
financeira, como arrimo da financeirização, e desta o sustento para seu crescimento
econômico.

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Sobre estas bases, procuram, então, estabelecer o neoliberalismo como


fenômeno de classe, considerando, para tanto, a transformação histórica da distribuição
de renda e o avanço da desigualdade nos períodos em que perduraram as hegemonias
financeiras – conforme demonstrado pela Figura 2, a seguir.
Não obstante, considerando as dificuldades de medição das taxas de lucro das
instituições financeiras e não financeiras, apresentam sua evolução comparativa –
conforme a Figura 3, a seguir –, apontando para uma grande transferência de renda das
primeiras para as últimas nos anos de inflação, sobretudo na década de 1970, bem como
para o oposto durante as décadas neoliberais.
Figura 2 – Evolução da renda do percentil mais alto das famílias norte-americanas

Fonte: retirado de Duménil e Lévy (2014, p. 54)

Figura 3 – Comparação entre as taxas de lucro das corporações norte-americanas

Fonte: retirado de Duménil e Lévy (2014, p. 76)

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2.2 François Chesnais


Para Chesnais (2002) o capitalismo, em sua expressão contemporânea, está
atrelado a uma configuração em que o processo de acumulação e seu conteúdo econômico
e social encontram-se moldados pela existência e a influência do capital portador de juros
– isto é, de acordo com Marx (s.d. apud Chesnais, 2002), uma forma de capital em que
os juros se destacam dos lucros como forma independente de manifestação do mais-valor
–, a qual concebe como regime de acumulação com dominação financeira, ou
simplesmente regime de acumulação financeirizado.
A este respeito,
O “regime de acumulação com dominância financeira” designa, em uma
relação estreita com a mundialização do capital, uma etapa particular do
estágio do imperialismo, compreendido como a dominação interna e
internacional do capital financeiro (CHESNAIS, 2003, p. 46).

Para o autor, a opção pelo uso da expressão “regime de acumulação” se dá em


virtude do reconhecimento das contribuições da Escola da Regulação, as quais, em boa
medida, servem de substrato para o desenvolvimento de sua interpretação marxista a
respeito do lugar das finanças no contexto econômico analisado. Considerado assim, o
regime de acumulação compreende a materialização, sob forma particular de construção
social, da superação dos limites imanentes da relação capitalista, em que restam
temporariamente estabilizadas as condições de acumulação e, portanto, a reprodução
social baseada na propriedade privada. Desta definição, ressalta-se a importância
conferida à existência de uma esfera de construção institucional e de relações deliberadas,
voltadas para a contenção das contradições e conflitos subjacentes ao sistema, em que
pesem compromissos sociais e políticos (CHESNAIS, 2002).
Para tanto, entende-se a acumulação como intrínseca a três distintos
mecanismos, a saber: o “aumento dos meios e da capacidade de produção através do
investimento”, semelhante ao descrito por Marx; a “extensão das relações de propriedade
e de produção capitalistas para países ou setores e atividades sociais ainda não
submetidos”, associado ao trabalho de Rosa Luxemburgo em “A Acumulação de
Capital”; e sua apreensão própria, por meio da qual “a acumulação pode acontecer (...)
mediante uma forma desmaterializada de ‘nova forma de investimento’, pela apropriação,
punção e centralização em direção a centros de acumulação mais fortes (...), de frações
do valor e da mais-valia” (CHESNAIS, 2002, p. 7-8).
Neste escopo, o autor reconhece, apoiando-se em Marx, a possibilidade de
existência, ainda que momentânea, de uma configuração em que o capital dinheiro exerça
domínio sobre suas demais formas, ressaltando, sobretudo, sua dependência em relação
ao capital industrial, tal como fonte inequívoca da produção de mais-valor, entretanto,
considerando a eventual vertigem da busca pela valorização através de meios em que a
produção reste apartada (MARX, s.d. apud CHESNAIS, 2002).
Por este entendimento, associado à reconstituição das finanças como força
autônoma – uma vez considerada a cristalização de partes do lucro bruto sobre a forma
de juros, da qual resultaria a oposição entre o capitalista financeiro e o capitalista
industrial, ou “o juro como a forma independente da mais-valia que corresponde a este
capital específico”, portanto, o juro como gerado por capital retirado de seu processo
(MARX, s.d. apud CHESNAIS, 2002, p. 9-10) – afirma-se que a autonomia das finanças
é, em parte, fruto de uma construção institucional galgada no fortalecimento dos
mercados financeiros e da liquidez, como também uma miragem.

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Apoiado no fato de que, “D-D’ representa (...) a inversão das relações de


produção elevada à potência máxima: (...) a capacidade do dinheiro de frutificar (seu)
próprio valor, independentemente da reprodução, é a mistificação capitalista em sua
forma mais brutal” (MARX, s.d. apud CHESNAIS, 2002, p. 10), o autor considera,
Por maiores que sejam os meios utilizados para garantir sua perenidade, a
dominação dos mercados financeiros não pode transcender as restrições e as
contradições cuja esfera “real” consiste no terreno imediato. A “autonomia”
permite que o capital de aplicação financeira ou, ainda, a “poupança
concentrada” coloque-se diante do capital envolvido na produção e, portanto,
diante do trabalho, para exigir e impor uma participação na repartição
legitimada apenas pela posse patrimonial e cujos beneficiários determinam eles
mesmos os termos. A forma imediata é uma punção nos lucros e a origem
efetiva, uma taxa de mais-valia aumentada. Mas para que o valor e a mais-valia
possam ser apropriados, estes devem ter sido previamente gerados em escala
suficiente. (CHESNAIS, 2002, p. 10-11).

Ainda, recorre à noção de capital fictício apontando para sua fundamentação em


promessas sobre atividades produtivas futuras, bem como, sua posterior negociação em
mercados peculiares, em cuja determinação de seu preço se dá através de mecanismos e
convenções muito especiais. Para o autor “a constituição de um ‘patrimônio’ ou de um
‘capital’ desse tipo pode ser relacionada também (...) com a criação prévia de capital
fictício assumindo a forma de crédito”, isto é, a criação de cadeias de dívidas voltada à
comercialização de títulos, da qual resulta “o poder econômico particular (...) do fato de
os mercados deterem títulos sobre a atividade produtiva e uma simples bolha”
(CHESNAIS, 2002, p. 12).
De forma mais concreta,
(...) o termo [regime de acumulação] exprime a possibilidade teórica da
existência de configurações político-econômicas nas quais a importância
assumida pela forma D... D’, e pela formação de importantes camadas sociais
que dependem de retiradas financeiras sobre o valor, incide pesadamente sob
a forma D-M... P...M’-D’ (CHESNAIS, 2003, p. 47)

Entretanto, em alguns momentos esta clareza argumentativa, dedicada à


apreensão do capital em sua integralidade, aparenta ceder lugar a interpretações confusas,
que acabam permitindo interpretações dúbias a respeito da relação entre o capital
produtivo e sua expressão em forma dinheiro. Este é o caso da seguinte afirmação, em
que o capital, no cerne do conceito do regime de acumulação, é definido: “como valor –
quer dizer, massa de dinheiro centralizada – que busca crescer por intermédio de um
processo de valorização, podendo recorrer tanto à forma ‘abreviada’ D... D’ quanto à ‘via
longa’ D-M... P...M’-D’” (CHESNAIS, 2003, p. 47).
Para ele,
No centro do regime de acumulação, que tenta impor-se mundialmente,
situam-se as novas formas de concentração do capital-dinheiro (em primeiro
lugar, os fundos de pensão e os fundos de aplicação financeira), os mecanismos
de captação e de centralização de frações do valor e da mais-valia a sua
disposição e, enfim as instituições que garantem segurança política, mas
também financeira, das operações de investimento financeiro (CHESNAIS,
2003, p. 48)

Em trabalho posterior, esta percepção é levada à análise das etapas históricas do


desenvolvimento da assim chamada acumulação financeira – isto é, “a centralização em
instituições especializadas de lucros industriais não reinvestidos e de rendas não

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consumidas, que têm por encargo valorizá-los sob a forma de aplicação em ativos
financeiros (...) mantendo-os fora da produção de bens e serviços” –, através da qual faz-
se notar sua determinação parcial enquanto “subproduto da acumulação industrial do
período da ‘idade de ouro’”, considerando o fato de que parcelas dos lucros não
reinvestidos da indústria, bem como das rendas familiares não consumidas, foram
capacitadas à valorização por tais meios (CHESNAIS, 2005, p. 37).
No que concerne a tais etapas, observa movimentos incipientes já nas décadas
de 1950 e 1960, chamando atenção para os investimentos de excedentes líquidos de
rendas familiares em títulos de seguro de vida e o avanço dos depósitos salariais em conta
corrente, nas economias avançadas. Ressalta também a criação do mercado de
eurodólares em 1958, do qual resulta a “City” de Londres como “primeira base de
operação internacional do capital portador de juros” (CHESNAIS, 2005, p. 38)
Considerando a reciclagem dos petrodólares em 1976 e sua decorrente
abundância de capital líquido, reconhece a condição para o endividamento público dos
países do terceiro mundo, e deste a crise da dívida instaurada pela alta repentina das taxas
de juros norte-americanas e pela elevação do dólar, o que por sua vez, acarretou a
imposição de políticas de ajuste estrutural a estas economias. Especificamente em relação
à dívida pública, reconhece-se sua função enquanto mecanismo de transferência de
recursos reprodutível no tempo, dada sua capacidade de recriar-se sem cessar sobre as
contas nacionais, de sorte que para sua liquidação seja sempre necessário emitir novos
títulos. Todavia, é nas economias centrais que o autor reconhece a contribuição maior
para o desenvolvimento do capital portador de juros, já que por esta o financiamento
público pôde servir como meio de valorização para os excedentes dos investidores
financeiros estrangeiros, à época, montantes vultosos centralizados nas mãos dos
investidores institucionais. Disso resulta sua configuração como meio rentável, senão,
mais seguro, para a acumulação financeira (CHESNAIS, 2005).
Com isso, afirma que os recursos centralizados pela dívida passam a ser
dominados pelos mercados financeiros, nos anos 1980, dada sua capacidade de “garantir
aos investidores (...) a possibilidade, em tempo normal, de revender seus ativos a qualquer
momento” (CHESNAIS, 2005, p. 42), o que, em outras palavras, equivale à “plena
restituição da liquidez enquanto instituição” (CHESNAIS, 2003, p. 49).
Desta, passa-se a uma nova etapa da acumulação financeira consubstanciada nos
mercados de ações, em que a pressão impessoal das finanças começa a incidir sobre os
grupos industriais, criando novas normas de rentabilidade e pressões acentuadas sobre os
salários, sejam estas relativas à produtividade e flexibilidade do trabalho ou às formas de
determinação dos salários propriamente ditos (CHESNAIS, 2005).
Coadunando com o estabelecido, pontua que o poder da finança concentrada
pôde ser reconstituído e munido de capacidade para impor-se frente aos demais governos,
passando a ditar a repartição de renda e o ritmo e a orientação do investimento. Em suas
palavras: “os investidores financeiros receberam como presente dos governos (...) um
recurso importante para o financiamento dos déficits orçamentários. O sistema lhes
ofereceu taxas de juros elevadas e uma grande segurança de rendas”, com isso “recursos
financeiros imensos permaneceram, em grande parte, reféns da finança e conduziram à
acumulação de ativos financeiros muito elevados pelas instituições financeiras não-
bancárias” (CHESNAIS, 2003, p. 48-9).
Como medida da amplitude destes eventos, o autor aponta para a evolução do
volume de ativos financeiros possuídos pelos investidores institucionais, conforme
evidenciado pela Figura 4, a seguir.

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Figura 4 – Ativos financeiros dos países da OCDE, por tipo de investidor institucional.

Fonte: retirado de Chesnais (2005, p. 43)

De acordo com este,


No fim dos anos 90, o volume de ativos em posse do conjunto dos investidores
institucionais ultrapassava US$ 36 trilhões. Esses haveres representam em
torno de 140% do PIB dos países da zona da OCDE. Mas em alguns países a
relação entre os ativos financeiros e o PIB – que representa as pretensões de
apropriação da produção econômica presente e futura – é muito mais elevada:
226% no caso do Reino Unido, 212% nos Países Baixos, 207% nos Estados
Unidos, 200% na Suíça. Ao longo da década, o crescimento do valor dos ativos
dos investidores institucionais se fez a um ritmo sustentado, mais de 11% em
média durante o período. (CHESNAIS, 2005, p. 43-44).

Para o autor, o anunciado regime configura-se então, como “uma ‘produção’ dos
países capitalistas avançados, com os Estados Unidos e o Reino Unido à frente”, em que
o seu laço com a globalização dá-se, não pela apreensão da economia mundial em sua
totalidade sistêmica, mas antes, pela generalização ampliada das políticas de liberalização
e desregulamentação dos fluxos de capital e relações comerciais, através de um processo
comandado pelos Estados Unidos, em que a adesão dos demais países se torna
compulsória e inflexível (CHESNAIS, 2003, p. 52).
Nesse sentido, destaca-se,
A “mundialização financeira” possui, de modo evidente, a função de garantir
a apropriação, em condições tão regulares e seguras quanto possível, das
rendas financeiras – juros e dividendos – numa escala mundial. Sua arquitetura
(...) tem a finalidade de permitir a valorização de um capital de investimento
financeiro em todos os países capazes de acolher capitais de investimento
estrangeiro. Foi, portanto, preciso levar esses países a se dobrar frente às
injunções da liberalização financeira capitaneadas pelo FMI. (...) A nova
interpenetração entre “finança” e “indústria” exige que os grupos possam
usufruir de uma liberdade total de localização de áreas de abastecimento, de
produção e de comercialização, portanto, de uma liberalização completa do
IDE e das trocas (CHESNAIS, 2003, p. 53).

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Diante de tal perspectiva, afirma-se que a mundialização do capital possui um


expressivo caráter seletivo, do qual resulta uma hierarquia de relações internacionais –
mais robusta do que aquela observada entre os anos de 1950 e 1978 –, em que os Estados
Unidos assumem posição particular e exclusiva na captação dos fluxos de capital
internacional – tal como potência hegemônica –, uma vez considerada a sua trajetória
histórica enquanto formação social. (CHESNAIS, 2003).

2.3 Costas Lapavitsas


De acordo com Lapavitsas (2009) a crise engendrada, a partir de 2007, nos
Estados Unidos, é própria do capitalismo financeirizado, portanto, sua origem não está
relacionada a problemas de ordem produtiva, mas sim ao processo de financeirização da
renda pessoal desenvolvido ao longo do período de 1989 a 2009, em que destaca-se o
avanço da expropriação financeira dos particulares, associado ao distanciamento das
instituições financeiras, bancárias e não bancárias, em relação ao capital industrial e
comercial.
A respeito do movimento de financeirização, identifica quatro aspectos
importantes, a saber: as transformações sociais concernentes ao surgimento do rentista
moderno que, diferentemente de outrora, se apóia agora em rendas advindas de sua
posição no amplo espectro do sistema financeiro, tal como formas de remuneração pelos
serviços que prestam; as alterações das relações entre o Estado e a economia, em que os
bancos centrais se apresentam como instituições centralizadoras das políticas
econômicas, a quem delega-se a responsabilidade pelo controle da inflação, bem como,
pela mobilização de recursos sociais em prol da salvaguarda sistema financeiro; as
mudanças das relações internacionais no mercado mundial marcadas pelo aumento da
complexidade do imperialismo, das quais resultam imposições cambiais aos países
subdesenvolvidos, e até mesmo aos desenvolvidos, em termos da manutenção de maiores
reservas internacionais de divisas, portanto o dólar, uma vez considerada sua posição
enquanto meio de pagamento internacional; e finalmente, o aprofundamento das posições
éticas, morais e de pensamento desta vertente financista no cerne da sociabilidade e da
vida individual, em que destacam-se os financistas como calculistas, constantemente
preocupados com a liquidez, a despeito das questões produtivas, por sua vez, os rentistas
como passivos e indiferentes à esta, os quais enfrentam o capital como função, e não
menos importante, a insurgência da gestão de risco como oriente para o desempenho
financeiro.
Para este, a financeirização do capitalismo está circunscrita no movimento
próprio da era neoliberal, cujo surgimento atribui-se à combinação de três aspectos
históricos: o crescimento questionável da produtividade entre meados das décadas de
1970 e 1990; a alteração das condições de trabalho, das quais ressalta a possibilidade do
aumento da intensidade e da taxa de exploração; bem como o avanço da centralização de
capital no contexto global do comércio e da produção, ao passo que esta se deslocava para
as economias orientais e os principais países capitalistas se convertiam em economias
fundadas na prestação de serviços, sobretudo, no setor financeiro.
Destes, abstrai as condições para o surgimento de novas atividades bancárias,
uma vez que tendências como a capitalização direta em mercado, acompanhada da
desregulamentação das taxas de juros e atividades de empréstimos, impactaram no
abandono da estrutura clássica de financiamento das atividades empresariais como um
todo. Com isso, os bancos se voltaram para a renda individual dos trabalhadores e da
população em geral, bem como, para a intermediação nos mercados financeiros, fazendo

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

surgir e expandir mecanismos, tais como as hipotecas, o crédito para o consumo, as


operações com cartões de crédito, além das operações com valores mobiliários e
derivativos, fundos monetários, seguros, dentre outros.

Figura 5 – Empréstimos bancários, em razão da dívida financeira das empresas

Fonte: retirado de Lapavitsas (2009, p. 36)


A respeito da expropriação financeira, diz que esta incide sobre a renda
individual de trabalhadores e outras camadas sociais, implicando a conversão da
poupança em endividamento para o consumo. Sobre este aspecto, ressalta-se a
importância da titularização destas dívidas e sua transformação em ativos financeiros
comercializáveis, portanto, suscetíveis à especulação financeira.
Em suas palavras,
A extração direta de resultados financeiros a partir da renda individual é parte
da expropriação financeira. Não se deve confundir isto com a exploração, que
tem lugar sistemático na produção e segue sendo a pedra fundamental das
economias capitalistas contemporâneas. A expropriação financeira é melhor
definida como uma fonte adicional de lucro que tem sua origem na esfera da
circulação. Por se referir à renda individual, está mais voltada para a
mobilização de fluxos já existentes de dinheiro e valor, do que para novos
fluxos de mais-valor. Porém, ainda que tenha lugar na circulação, como é
produzida de forma sistemática e mediante processos econômicos, também
tem um aspecto de exploração (LAPAVITSAS, 2009, p. 40, tradução minha).

Para ele, existem maiores vantagens no relacionamento entre as instituições


financeiras e os particulares do que com as empresas capitalistas, já que com estas, são
obrigadas a enquadrar-se nas imposições ditadas pelo capital social total - isto é, estão
limitadas, quanto aos encargos e volumes de capital a serem transacionados, conforme as
necessidades reais da produção e circulação. Quanto à renda pessoal, não há relação direta
com a acumulação de capital, mas com o consumo - com a parte do valor que é destinada
à reprodução, seja do trabalhador e sua força de trabalho ou do capitalista e sua existência
como tal. Assim, enquanto as empresas podem recorrer a outros meios de financiamento
rumo à ampliação de valor, os particulares veem-se com poucas alternativas para suprir
suas necessidades básicas, senão aquelas ofertadas pelo setor financeiro, o que, observa,
intensificou-se sobremaneira mediante a crescente escusa estatal em cumprir com a
seguridade social. Para o autor, esse cenário revela a existência de genuínos mecanismos
de dominação e subordinação, como os descritos por Marx.
Nesse sentido, considera,
Para a economia política marxista, o capital bancário surge do capital mercantil
e se especializa na gestão do dinheiro e na concessão de crédito. Os bancos

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

operam na esfera de circulação, porém mobilizam dinheiro ocioso que advém


de fora desta. Em consequência, os bancos possuem uma posição ambivalente
frente à rotação do capital social em seu conjunto: são necessários para a
produção capitalista desenvolvida, porém mantêm para com ela uma postura
desapegada, quando não agressiva.
Mais concretamente, os bancos ofertam seus serviços de gestão e empréstimo
de dinheiro, o que eleva a rentabilidade do capital produtivo ao reduzir os
custos de circulação e acelerar a rotação, diminuir as reservas de dinheiro e
aumentar o capital disponível para expandir a criação de mais-valor. Porém, os
bancos são empresas capitalistas peculiares que não produzem valor nem mais-
valor. Basicamente o que fazem é adquirir ativos (ou promessas que os outros
fazem de devolver seu dinheiro) e criar passivos (promessas de pagar a outros
por parte dos bancos). Portanto, são logicamente vulneráveis a tudo que possa
perturbar o fluxo de seus passivos (LAPAVITSAS, 2009, p. 44-45, tradução
minha).

A partir do exposto, o autor sintetiza suas considerações finais a respeito da


possibilidade de existência de uma nova era do capital financeiro, dentre as quais destaca
a impossibilidade de afirmar que houve uma aproximação entre o capital industrial e o
capital financeiro, sequer a existência de uma relação de liderança dos últimos em relação
aos primeiros.
Sobre esta base, conclui,
Em suma, a financeirização não significa o domínio dos bancos sobre o capital
industrial e comercial. Significa antes, a crescente autonomia do setor
financeiro. Os capitais industriais e comerciais podem conseguir empréstimos
no livre mercado, porquanto se envolvam progressivamente com as transações
financeiras. Por sua vez, as instituições financeiras têm buscado novas fontes
de rendimento através da renda pessoal e da intermediação nos mercados
financeiros. Este tem sido um período de baixo e instável crescimento,
interrompido repetidamente por bolhas financeiras. Na esfera financeira são
produzidos booms e crises que às vezes têm impacto restrito na acumulação
real, e em outras geram perturbações significativas na vida econômica e social.
Há uma necessidade urgente por alternativas que permitam organizar a
atividade econômica de tal forma que esta deixe de estar submetida a crises e
possa ser realizada em prol dos interesses dos trabalhadores (LAPAVITSAS,
2009, p. 80-81, tradução minha).

2.4 Alternativas à Financeirização e Considerações Adjacentes


Conquanto as taxas de lucro apareçam como forte indicador nestas análises, e
também ao longo da economia política com tradição marxista, sobretudo no que concerne
à lei da queda tendencial da taxa de lucro e das causas contra-arrestantes - conforme
descrito por Marx (2017) -, há que se ressaltar que, em boa medida, as perspectivas
arroladas acima se distanciam, em maior ou menor grau, da apreensão deste processo, em
que as finanças assumem maior relevância na economia como um todo, tal qual um
movimento próprio da busca pela dissolução dos efeitos engendrados por esta tendência.
Nesse sentido, Prado (2017), ao perscrutar a quase estagnação econômica
brasileira vigente, afirma que a explicação marxista autêntica a respeito deve partir da
compreensão deste país enquanto espaço regional indissociável do comportamento
abrangente do sistema e, no qual, imperam a ausência de independência tecnológica e
financeira - causa última da exportação sistemática de excedentes monetários. Como tal,
deve pautar-se na análise da taxa de lucros, dita: principal determinante do investimento
na produção; e que acompanha a tendência mundial denunciada pelos demais autores.
Em suas palavras,

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

A financeirização, segundo ela, não resultou de uma tomada do poder pelos


“rentistas”; configurou-se como uma forma histórica geral de dominação do
capital sobre o trabalho assalariado quando o capital industrial fracassara já na
geração de uma taxa de lucro “satisfatória”. Assim, a valorização persistente
do câmbio e a punção sistemática do lucro na forma de dividendos, juros, etc.
são decorrências “normais” de um modelo de crescimento possível nas atuais
circunstâncias históricas (PRADO, 2017, p. 499).

A taxa de lucro, posta em si, como mera razão, pretensa a uma utilização
simples, pouco revela a respeito da existência da hegemonia financeira. Assim, sem
descartar a sua influência sobre a dinâmica da acumulação e da circulação, deve-se somar
a esta, a análise dos montantes de lucro aferidos como proporção do produto interno bruto,
visando a contemplar o real impacto da atuação das instituições capitalistas frente à
economia como um todo, possibilitando com isso novas considerações a respeito da
existência ou não de uma relação hegemônica entre o que na verdade representa parcelas
do capital social total.

3 DESENVOLVIMENTO
Os dados utilizados tomam por base a “Pesquisa Industrial Anual – Empresa”,
realizada pelo IBGE, bem como, os “Relatórios Contábeis Anuais de Entidades
Supervisionadas” divulgados pelo Banco Central do Brasil, dos quais extraem-se as
rubricas necessárias para o cálculo dos montantes e taxas de lucro de cada segmento
econômico. Opta-se aqui por utilizar duas metodologias para o cálculo da taxa de lucro,
uma como expressão do resultado contábil anual – baseada nas demonstrações de
resultado do exercício -, e a outra, como a razão entre o resultado aferido e montante de
capital próprio. Esta ambivalência analítica se dedica a apurar eventuais distorções que
possam surgir em consequência das diferentes estruturas de capital adotadas pelas
empresas de cada setor, uma vez que ocupam funções distintas na ordem capitalista.
Para a comparação dos montantes de lucro, utilizou-se como medida a expressão
percentual destes sobre o produto interno bruto nominal, análise a partir da qual põe-se
em questionamento a existência fática da hegemonia financeira na economia brasileira.
Os resultados são evidenciados conforme as figuras 6 e 7, a seguir, pelos quais
apreende-se que quando, calculados os montantes de lucro em razão das receitas, a curva
individual do setor financeiro sobrepõe-se à do setor industrial. Entretanto, quando
confrontados os seus respectivos montantes de lucro frente ao PIB, esta sobreposição se
inverte, demonstrando o maior peso das massas de lucros industriais em relação ao setor
financeiro.

Figura 6 – Taxas de resultado em razão da receita dos setores financeiro e industrial

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25.0%
22.5%
20.0%
17.5%
15.0%
12.5%
10.0%
7.5%
5.0%
2.5%
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2010

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2012

2013

2014
Resultado SFN/Receita SFN Resultado IND/Receita IND

Fonte: elaborado a partir de dados do IF.data (BC, 2018) e da Pesquisa Industrial Anual (IBGE, 2017)

Figura 7 – Montantes de lucro dos setores financeiro e industrial em razão do PIB


25.0%
22.5%
20.0%
17.5%
15.0%
12.5%
10.0%
7.5%
5.0%
2.5%
0.0%
1998

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008

2009

2010

2011

2012

2013

2014
Resultado SFN / PIB Resultado IND / PIB

Fonte: elaborado a partir de dados do IF.data (BC, 2018) e da Pesquisa Industrial Anual (IBGE, 2017)

Conclui-se assim, que, ainda que o setor financeiro tenha aferido taxas de resultado
maiores que as da indústria, enquanto fração da economia geral, seus resultados foram
menores. Essa situação coloca em questão os reais dimensionamentos que podem assumir
o termo hegemonia financeira. Mediante tais resultados e tomando por base as asserções
feitas por Lapavitsas (2009) e Prado (2017), entende-se aqui que o sistema financeiro
exerce forte influência sobre a ordem produtiva, porém, é ainda a produção, o setor
econômico que absorve em maior grau os montantes de valor realizados.

Referências
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DUMÉNIL, Gérard; LÉVY, Dominique. A crise do neoliberalismo. tradução de Paulo


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CHESNAIS, F. Teoria do regime de acumulação financeirizado: conteúdo, alcance e


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LAPAVITSAS, Costas. El capital financiarizado: expansión y crisis. tradução de Diego


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PRADO, Eleutério Fernando da Silva. Das explicações para a quase estagnação da


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A IDEOLOGIA DO EMPREENDEDORISMO COMO DESDOBRAMENTO DA


PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO

David Silva Franco


Instituto Federal de Minas Gerais
Universidade Federal de Minas Gerais
davidf.jf@gmail.com

Janaynna de Moura Ferraz


Universidade Federal do Oeste da Bahia
Universidade Federal de Minas Gerais
janaynna.ferraz@ufob.edu.br

Resumo

O objetivo deste ensaio é analisar as diversas transformações do ambiente produtivo e


institucional do contexto sociopolítico brasileiro que permitem constatar a manifestação
de uma ideologia pautada no conceito amplo de empreendedorismo, voltada à
conformação do trabalhador em relações de trabalho precárias. Na evolução conceitual
do empreendedorismo, temos inicialmente o empreendedor enquanto um “inovador”
representante da classe capitalista; posteriormente, o intraempreendedor, referente aos
empregados formais engajados em melhorias destinadas às organizações onde trabalham;
até os atuais ditos empreendedores que se encontram na situação de informalidade, em
pequenos negócios instáveis e/ou em relações de trabalho precárias. Este último estágio
é o qual concentramos nossa análise, percebendo a influência ideológica dos valores
propagados a partir do toyotismo, da atuação do Sebrae pelo Estado, da promulgação da
Lei do Microempreendedor Individual e da aprovação da recente Reforma Trabalhista
Brasileira. Assim, a ideologia do empreendedorismo cumpre o papel de conformar os
trabalhadores em trabalhos precários: de um lado, ao valorizar a autonomia, a liberdade
de horário, a naturalização dos riscos, possibilidade de mobilidade social, e, por outro
lado, ao atuar na intensificação do trabalho, na perda de seguranças jurídicas e na
manutenção da subsunção do trabalhador, permitindo a exploração em variadas formas
de relações de trabalho.

Palavras-chave: Precarização do Trabalho; Ideologia do Empreendedorismo; Relações


de Trabalho.

THE IDEOLOGY OF THE ENTREPRENEURSHIP AS AN UNFOLDING OF


THE WORKER PRECARIOUSNESS

Abstract

The objective of this essay is to analyze the diverse transformations of the productive and
institutional environment of the Brazilian sociopolitical context that allow to verify the
manifestation of an ideology based on the broad concept of entrepreneurship, focused on
the conformation of the worker in precarious working relations. In the conceptual

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evolution of entrepreneurship, we initially have the entrepreneur as an "innovator"


representative of the capitalist class; subsequently, the intrapreneur, referring to the
formal employees engaged in improvements to the organizations where they work; to the
current entrepreneurs who find themselves in the situation of informality, in small
unstable businesses and / or in precarious working relationships. This last stage is where
we concentrate our analysis, perceiving the ideological influence of the values propagated
from the toyotism, the action of the Sebrae by the State, the promulgation of the law of
the Individual Microentrepreneur and the approval of the recent Brazilian Labor Reform.
Thus, the ideology of entrepreneurship fulfills the role of shaping workers in precarious
work: on the one hand, by valuing autonomy, freedom of time, naturalization of risks,
possibility of social mobility; and, on the other hand, intensification of work, loss of legal
security and maintenance of the subsumption of the worker, allowing the exploitation in
various forms of labor relations.

Keywords: Precariousness of Work; Ideology of Entrepreneurship; Labor Relations.

Introdução
Na atualidade, não há um consenso quanto à definição do que sejam o
empreendedorismo e o agente empreendedor. No ambiente social, muitos se referem ao
empreendedorismo como sinônimo de abertura de um novo negócio. Nesse sentido,
seriam empreendedores todos aqueles que assumissem como atividade produtiva a
condução de um negócio por eles mesmos concebidos. Os relatórios do Serviço Brasileiro
de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), por exemplo, adotam este conceito
padrão para apresentar a evolução do número de empreendedores no Brasil.
Já para outros, a abertura de uma empresa (ou inauguração de uma atividade
produtiva equivalente) não é suficiente para que uma pessoa seja considerada
empreendedora. Além disso, é necessário que este novo negócio apresente alguma
inovação relevante, considerada principalmente em se tratando de algum componente de
marketing ou de produção – inovação do produto, do nicho de mercado, do
relacionamento com o cliente, dos serviços agregados e/ou da organização do processo
produtivo. Este conceito se aproxima mais da contribuição consolidada de Schumpeter
(1934) sobre o tema.
Uma terceira vertente trata da atitude empreendedora, caracterizada como algo
que prescinde da condução centralizada de alguma atividade produtiva. Nesta definição,
até mesmo empregados e prestadores autônomos de serviço podem ser considerados
empreendedores, desde que ajam motivados para a realização pessoal, busquem
continuamente novas formas de ganhar dinheiro, sejam criativos e mobilizem esforços
para a excelência no trabalho – independentemente dos estímulos externos. Partindo dessa
definição, surgiu o conceito de intraempreendedor, conforme veremos mais adiante.
Cada uma dessas três vertentes é utilizada pelos emissores comunicacionais de
acordo com a conveniência situacional, podendo variar displicentemente no discurso de
um único emissor. Em comum, elas reforçam que o empreendedor deve ser capaz de
“agregar valor” – a si mesmo ou à entidade organizacional –, o que se mostra de grande
conveniência à dinâmica capitalista. Sobretudo, precisamos salientar que o que se
convencionou chamar de empreendedorismo, aparentemente cumpre uma função
“coringa” de representar os desígnios do capital em diferentes graus de desenvolvimento
das forças produtivas.

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Deste modo, o empreendedorismo é apresentado nas diversas instâncias que


moldam o imaginário social – mídias de comunicação, instituições de qualificação
profissional, organizações estatais, livros empresariais, guias de autoajuda, empresas,
escolas, universidades, etc. – como um conceito ao mesmo tempo diverso e
autoexplicativo, deslocado de historicidade e de finalidade na dinâmica de acumulação.
Além disso, o discurso do empreendedorismo desconsidera as relações sociais que
condicionam e são condicionadas pelo trabalho subsumido ao capital, trabalho este que
se encontra gradativamente mais às margens do pacto social da esfera do "formal", e,
assim, a aparência do empreendedor segue como parte obscura da realidade, embora não
apartada dela.
Ser empreendedor seria irrevogavelmente necessário ao bom emprego, à boa
remuneração, ao negócio bem-sucedido, às possibilidades de ascensão social, à
manutenção da riqueza. E assim seria porque sempre foi assim, porque hoje não poderia
ser de outra forma, porque não há expectativa de que seja diferente no futuro. Assim,
como se fosse uma ética destes tempos (BOAVA; MACEDO, 2017), o
empreendedorismo torna-se um conceito totalitário, indispensável a todos. Transcende
classe social, nível hierárquico organizacional e relação de trabalho na qual o sujeito se
encontra. Buscando desnaturalizar tais concepções, perguntamo-nos: como o
empreendedorismo assumiu tais contornos na dinâmica sócio-política da particularidade
do capitalismo brasileiro? Sobre os trabalhadores informais e de pequenos negócios
instáveis, especificamente, de que forma o fenômeno do empreendedorismo se manifesta
e o que ele oculta?
O objetivo deste ensaio, portanto, é analisar as diversas transformações do
ambiente produtivo e institucional do contexto sociopolítico brasileiro que permitem a
constatação da manifestação de uma ideologia pautada no conceito de
empreendedorismo, voltada à conformação do trabalhador em relações de trabalho
precárias. Por trabalho precário, assumimos a definição de Kalleberg (2009, p. 21), ou
seja, como
[...] trabalho incerto, imprevisível, e no qual os riscos empregatícios são
assumidos principalmente pelo trabalhador, e não pelos seus empregadores ou
pelo governo. Exemplos de trabalho precário incluem atividades no setor
informal e empregos temporários no setor formal.

Como Marx (2008) explica, é por meio das ideologias que os indivíduos tomam
consciência das contradições, de maneira que é relevante compreender como um
fenômeno tão abrangente como o empreendedorismo atua sobre a produção do
pensamento social – antes condicionado pelas próprias relações materiais, contudo,
dialeticamente, sobre tais relações as ideologias exercem influência. Defendemos, assim,
que como causa e consequência de uma ideologia do empreendedorismo, voltada à classe
trabalhadora, há uma mudança valorativa quanto ao que é ser um trabalhador informal,
que de sujeito antes tido por excluído e fracassado, passa a ser visto como perseverante e
desbravador (FRANCO; FERRAZ, 2017). Isto, de certo modo, contribui à generalização
da informalidade no ambiente produtivo, à intensificação da exploração da força de
trabalho, à redução da distância das condições de trabalho formal e informal, além de
eximir do Estado o papel de garantir uma ocupação minimamente digna a todos os
trabalhadores, isto é, que possibilite ao menos a reprodução da própria força de trabalho.
O ensaio está estruturado em outras cinco partes. Na segunda, apresentamos uma
breve teorização acerca da ideologia. Na terceira, situamos a apreensão conceitual acerca

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do empreendedorismo. Na quarta, fazemos uma revisão do contexto histórico de


formação do mercado de trabalho brasileiro. A quinta parte contempla, efetivamente,
nossa análise da ideologia do empreendedorismo enquanto desdobramento da
precarização do trabalhador. Na sexta, apresentamos as considerações finais da pesquisa.

Ideologia na perspectiva marxiana


Com o desenvolvimento da propriedade privada dos meios de produção e da
liberdade da forma dos trabalhadores enquanto força de trabalho, regulada por uma
instância jurídica estatal, são estabelecidas as duas principais classes do capitalismo:
aquela que detém tal propriedade e compra força de trabalho de outrem
(capitalistas/burguesia) e aquela que vende a própria força de trabalho para a
autossubsistência (trabalhadores/proletariado), conforme tratado por Marx (2011).
Na complexidade da sociedade atual e expansão do mercado financeiro, não se
identifica facilmente quem são os burgueses e os trabalhadores. Diversos detentores do
capital também trabalham no gerenciamento dos negócios, todavia, o fazem para a
valorização do próprio negócio que produzem (sejam bens ou serviços), portanto, não são
vendedores da própria força de trabalho. Por outro lado, há trabalhadores que de fato
vendem a força de trabalho e, com o salário adquirido, tornam-se acionistas de grandes
companhias, assim, tomam a aparência de detentores de capital.
É importante reconhecermos, contudo, que o pequeno acionista não adquire a
capacidade de determinação do modo de organização do trabalho tampouco de
contratação ou demissão de trabalhadores. Eles compram papeis com a promessa de
retorno monetário futuro – são, portanto, rentistas. Na concretude material, continuam
necessitando vender sua força de trabalho para reproduzir a subsistência. Semelhante
situação ocorre com os gestores contratados que, embora assumam a aparência de
representantes do capital, são, na verdade, proletários capacitados e vendedores da força
de trabalho, ou, como se tem convencionado designar, seriam gestores do capital.
Tomamos como classe capitalista, por conseguinte, aquela que detém o controle dos
domínios político-econômicos da produção social e como classe trabalhadora aquela que
está constrangida à venda da própria força de trabalho.
Frequentemente, os membros dessas duas classes efetivamente se enfrentam
para a defesa dos próprios interesses, sendo o principal da classe burguesa a expansão do
capital e o da classe trabalhadora a melhoria de suas condições de vida e/ou superação do
modo de produção que a oprime. Na materialidade da reprodução social, todavia, as
classes nem sempre se encontram coesas e organizadas para a luta por seus próprios
interesses, visto que a complexidade da mobilização política encontra a influência de
múltiplos fatores. Os capitalistas, como se poderia supor, criam meios materiais e
espirituais para impedir a formação da consciência dos trabalhadores e ainda que tal
barreira não seja completa e que seja igualmente objeto de disputa, quem comanda os
meios de produção comanda também a produção das ideias (MARX; ENGELS, 2007). A
divisão técnica do trabalho é uma condição para isto, pois, além de elevar a produtividade
e a exploração, atua na especialização dos indivíduos, intensificando o individualismo –
já propagando por outras esferas sociais do capitalismo – e dificultando a identificação
do indivíduo com sua classe (MÉSZÁROS, 2014).
É importante considerarmos, todavia, que a questão da consciência de classe não
é o que determina a relação econômica materialmente estabelecida de compra e venda da
força de trabalho – mas tal relação, invariavelmente, irá refletir na subjetividade dos
indivíduos inseridos na sociedade de classes. Como assevera Paço-Cunha (2017, p. 60),

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Com o materialismo se revelam as determinações das classes, mas também as


múltiplas interações entre o ser da classe, as condições da classe, as condições
individuais e os espelhamentos da consciência que opera de modo
absolutamente diferente de um mero epifenômeno. É a relação entre
objetividade e subjetividade mediada pela prática concreta que quebra as
leituras mecanicistas que se afastam da realidade.

A classe capitalista age na manutenção do status quo, para garantir o


autoprestigio social e a continuidade de sua posição de exploradora da força de trabalho,
isto é, a objetividade produz uma subjetividade que naturaliza a sociabilidade capitalista
– reificada e estranhada. Isso não se trata de falsa consciência, de veracidade ou falsidade
dos discursos, trata-se, pois, de desdobramentos da relação capital-trabalho, que desde
sua gênese encontra-se alienada. Para muitos autores, a ideologia foi considerada
estritamente no contexto da ilusão propagada pelas classes dominantes para enganar as
classes subjugadas, como em Mannhein (1972). Com efeito, a reprodução ideológica
frequentemente se dá pelo falseamento da realidade, entretanto, não necessariamente as
ideologias são construções equivocadas. A simples naturalização da propriedade privada
dos meios de produção, por meio do Direito, já pode ser considerada um princípio
ideológico voltado aos interesses da classe dominante. Também a possibilidade de
ascensão de membros da classe trabalhadora à classe burguesa é, de fato, uma
possibilidade real. Todavia, a propagação de tal possibilidade assume contornos
ideológicos quando se volta para a universalização da capacidade de ascensão social,
provocando a desintegração dos trabalhadores enquanto classe, conformando-os à
condição de vendedores da força de trabalho, individualizando-os na busca de uma
ascensão respaldada pelo discurso da meritocracia.
A ideologia destaca os interesses da classe dominante, apresentando-os como se
fossem interesses de toda a coletividade. Conforme apresentada por Marx e Engels
(2007), ela pode se manifestar por meio da moral, da religião, da filosofia, da arte ou
do direito; contudo, é importante considerarmos que as diferentes formas de consciência
que dão origem a estas diversas instituições não são dotadas de efetiva autonomia em
relação os meios de reprodução social, pois a subjetividade (o conjunto de perguntas e
respostas que os indivíduos conseguem formular durante a vida) e a objetividade
(materialidade com a qual os indivíduos lidam) são dois polos de uma única totalidade
indissociável. Dessa forma, para ser ideologia, um pensamento não deve
necessariamente ser uma “falsa consciência”; aliás, para Marx e Engels (2007), uma
consciência não pode ser considerada falsa, mas sim a própria consciência real do
indivíduo que subjetiva a materialidade com a qual se depara. O que distingue esse
pensamento, para que se torne ideologia, seria a sua efetiva influência para que a
sociedade materialize práticas que favoreçam a perpetuidade de possíveis desigualdades
entre os indivíduos – e suas respectivas classes.
Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias e assim
por diante, mas os homens reais, ativos, tal como são condicionados por um
determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio
que a ele corresponde, até chegar às suas formações mais desenvolvidas. A
consciência [Bewusstsein] não pode jamais ser outra coisa do que o ser
consciente [bewusste Sein], e o ser dos homens é o seu processo de vida real.
Se, em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem de cabeça para
baixo como numa câmara escura, este fenômeno resulta do seu processo

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histórico de vida, da mesma forma como a inversão dos objetos na retina


resulta de seu processo de vida imediatamente físico (...) Quer dizer, não se
parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, tampouco
dos homens pensados, imaginados e representados para, a partir daí, chegar
aos homens de carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos e, a partir
de seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos
reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida (MARX; ENGELS,
2007, p.94).

Assim, não basta que um sistema de pensamento surja apenas idealmente


favorecedor de determinados grupamentos humanos para que seja considerado
ideologia. Sobretudo, para que um conjunto de representações e ideias se constitua
enquanto ideologia, tem que advir da materialidade (realidade) e causar impactos
concretos sobre a conformação desta materialidade. Assim, a ideologia pode também
estar embasada em argumentos falaciosos, contudo, ela deve ser capaz mobilizar as
ações dos indivíduos, a partir dos estímulos de tal conjunto de ideias (verdadeiras ou
não). Complementando tal argumento, Vaisman (2010, p. 51) declara que um sistema
de pensamento “transforma-se em ideologia, não nasce necessariamente ideologia, e
essa transformação depende de vir a desempenhar uma função precisa junto às lutas
sociais em qualquer nível destas”. A ideologia, portanto, considerada enquanto
instrumento de conformação social que age para a perpetuação da dominação das
classes dominantes, só se efetiva no capitalismo quando perpetua a manutenção e/ou
expansão do capital.

Empreendedorismo: a ascensão de um conceito do capital para o capital


A produção do conhecimento é um importante meio para legitimação da
ideologia, nesse sentido, os debates acerca do empreendedorismo têm crescido
mundialmente, tanto no que se refere às pesquisas quanto às esferas do ensino, ao
reproduzir o conteúdo em cursos de qualificação, faculdades, associações fomentadas
pelo Estado ou mesmo financiadas por iniciativas privadas. Elencamos aqui algumas
dessas considerações, visando delinear o estado da arte, assim como apontar algumas
limitações de tais concepções.
Aproveitando a rica revisão da literatura elaborada por Boava e Macedo
(2011), elaboramos o Quadro 1, que apresenta as principais contribuições teóricas de
autores notadamente vinculados ao desenvolvimento econômico liberal.

Quadro 1: Contribuições dos principais autores para a definição de empreendedorismo


Autor (ano da
Principais contribuições teóricas sobre empreendedorismo
publicação)
Define empreendedor como aquele que paga certo preço em um produto para
revendê-lo a um preço incerto, tendo que tomar decisões sobre a obtenção e
Cantillon (1755) utilização dos recursos, por conseguinte, assumindo o risco do negócio. Os
empreendedores conscientemente tomam decisões sobre alocações de recursos. O
autor classifica as pessoas em dois tipos: as empreendedoras e as assalariadas.
Não utiliza o termo entrepreneur (ou algum correspondente etimológico), mas
utiliza as palavras: aventureiro, projetor e empresário. Aventureiro é quem corre
Smith (1776)
riscos; projetor especula e projeta; empresário é o homem prudente, acumula capital
e obtém um progresso lento, mas constante.
Consagrado como o primeiro autor a caminhar no sentido de criar uma teoria para
Say (1803) o empreendedorismo, busca estudar a função do empreendedor, que consiste em ser
um agente da produção, objetivando coisas úteis, de valor. Dele também deriva a

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noção de inovação, ao buscar conciliar o conhecimento científico com a aplicação


deste conhecimento e sua produção.

Identifica as funções do empreendedor como sendo direção, controle e


superintendência. Ademais, não faz uma separação clara entre o capitalista e o
Mill (1848) empreendedor. Basicamente, o autor discute brevemente a temática empreendedora,
não fazendo quaisquer distinções aprofundadas entre as atividades dos capitalistas
e dos empreendedores.
Observa que o empreendedorismo (organização) é o quarto fator de produção, além
da terra, trabalho e capital. O empreendedor interfere na organização, tendo a tarefa
de coordenar os outros fatores, sendo o responsável pela inovação. Descreve que as
Marshall (1890)
habilidades de empreendedor são raras e limitadas no ambiente social, estando
presente em poucas pessoas. Porém, pode-se ensinar empreendedorismo. Analisa
ainda o empreendedorismo familiar, particularmente a sucessão nos negócios.
Decisivo para a consolidação do empreendedorismo como área de estudos da
economia, o autor apresenta a teoria do desenvolvimento econômico, demonstrando
que o empreendedor é o agente responsável por romper o equilíbrio existente entre
a oferta e demanda, utilizando para isso a inovação. Assim, o empreendedorismo
Schumpeter (pautado na inovação) torna-se o motor da economia. O empreendedor promove a
(1911) inovação, sendo essa radical, pois destrói e substitui os modos de produção e suas
tecnologias operantes. Por isso, surge o conceito de destruição criativa. A
necessidade de inovar é ditada pelo ambiente externo e o empreendedor só existe
no momento da inovação, não podendo ser profissão, nem classe social, mas que
pode desenvolver um sistema de valores.
Fonte: Elaborado pelos autores a partir de Boava e Macedo (2011)

Devemos lembrar que todos esses autores mencionados designam o


“empreendedor” a partir de economias desenvolvidas (ou imperialistas, se preferirem).
Assim, inquirimos, será que estas definições explicariam os milhares de brasileiros que
se enveredam pela condução de uma atividade produtiva em pequenos negócios por
“conta própria”? Se tomarmos por primazia o conceito, Hisrich, Peters e Shepherd (2014,
p. 30) resumem o que se plasmou por empreendedorismo como “o processo de criar algo
novo, assumindo os riscos e as recompensas”. Contudo, qual é o real agente da inovação
no ambiente produtivo? Qual o caráter da inovação para que os gestores-proprietários de
negócios possam ser ou não classificados como empreendedores? E qual seria o papel das
diversas inovações que partem dos trabalhadores e, posteriormente, são corporificadas à
entidade organizacional?
Analisando a evolução temporal das teorias acerca do empreendedorismo até a
marcante contribuição de Schumpeter para o início de uma orientação conceitual
predominante, percebemos que a figura do agente empreendedor se atrela a representantes
da classe capitalista que atuam individualmente em atividades produtivas privadas,
promovendo alguma inovação que impacta o espaço institucional das empresas. Portanto,
é visto como aquele que assume o risco por um negócio, o sujeito mais motivado e mais
comprometido para com os resultados da organização criada, aquele que se liga à imagem
mitificada do líder inspirador. Luta de classes, desigualdades sociais, lobbies do capital
junto à política, degradação ambiental decorrente da competitividade exacerbada, dentre
outros debates mais acurados acerca da complexidade do real, não aparecem nos estudos
que buscam compreender a realidade dos empreendedores e desvendar os “segredos de
sucesso” dos seus negócios.
A partir da década de 1970, com a expansão dos valores do toyotismo e das suas
práticas de “empoderamento” dos trabalhadores – maior autonomia, liberdade de criação

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e redução da supervisão –, passa a ser esperado dos empregados dessas empresas as


características de “sentimento de dono”, multifuncionalidade, participação nas decisões,
alto comprometimento e vontade de contribuir aos processos inovativos – aquelas
mesmas qualidades tradicionalmente atribuídas aos empreendedores. Nesse sistema de
pensamento que se molda, os empregados devem ser “apaixonados pelos negócios e pelos
desafios”, assim, os trabalhadores são incentivados a assumirem uma “postura
empreendedora”, que seria benéfica para si e para sua empresa. Nesse ínterim, surge o
conceito de intraempreendedorismo, o qual é explicitado no trecho a seguir, extraído de
uma pesquisa divulgada pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
(Sebrae):
Em relação ao intraempreendedorismo, não basta mais ter somente diploma de
graduação e especialização para se destacar no mercado de trabalho. As
empresas querem cada vez mais profissionais que tragam soluções inusitadas
para seus problemas, sejam pró-ativos e inovadores, ou seja, que tenham um
perfil intraempreendedor. Basicamente, eles querem que esses funcionários
apliquem o comportamento empreendedor em prol da própria empresa. Se, em
sua forma tradicional, o empreendedorismo é realizado por empreendedores,
que agem de forma independente e são os únicos responsáveis pelos riscos e
beneficiário da ação empreendedora, no intraempreendedorismo, a ação
empreendedora é realizada por intraempreendedores, que são colaboradores de
uma organização – diretores, gerentes e demais funcionários-, que agem como
empreendedores. Essa ação empreendedora é feita em consonância com os
objetivos da organização, que também sofrem a conseqüência dos riscos e
benefícios das ações empreendedoras, e cujo ambiente e recursos podem
facilitar ou dificultar essa ação. O ambiente intraempreendedor nasce e se
expande em função da natureza da cultura das organizações. Na maioria, a
estrutura de poder e as teias hierárquicas sufocam a liberdade dos
colaboradores, calando também a sua capacidade de inovar (MONTENEGRO,
2015).

Ser intraempreendedor é diferente de ser um trabalhador compelido a aperfeiçoar


o valor de uso da sua mercadoria força de trabalho? A princípio, não. Por que uma
empresa pode se ver na condição de exigir empregados intraempreendedores? Ora,
porque caso os atuais empregados não se enquadrem em tal perfil, elas podem perder sua
posição frente à concorrência, portanto, esses empregados devem ser substituídos por
outros. O contingente do exército industrial de reserva cumpre bem esse papel de acirrar
a competitividade entre os trabalhadores, regular o preço da mão-de-obra e criar o
sentimento de gratidão àqueles sujeitos empregados (FERRAZ, 2013). O
intraempreendedorismo, portanto, cumpre o papel de fazer com que os funcionários
entendam que as metas do capital devem ser interiorizadas como suas metas individuais,
do contrário, podem repostos por sujeitos desempregados ou que estão em ocupações de
compensação menos atrativa.
Na explanação apresentada pelo consultor do Sebrae no trecho transcrito, a
situação de subordinação dos empregados ao sistema do capital é apresentada sem
quaisquer reflexões críticas, deixando claro que os interesses que devem ser supridos são
os das “organizações” – como se não existissem grupos de pessoas que tivessem criado
tais organizações e que auferem ganhos econômicos desproporcionalmente acima do que
os trabalhadores seriam capazes de obter ao se tornarem intraempreendedores. A partir
do conceito de “empregabilidade”, torna-se difundido que os trabalhadores, ao assumirem
a postura empreendedora, não estarão mais do que investindo na própria carreira,

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reacendendo o individualismo dos interesses instrumentais e os responsabilizando


integralmente pela sua qualificação contínua, sob o risco de ficarem desempregados.
Entretanto, quando partimos para o cenário de grande parte dos trabalhadores da
informalidade, tal conceito se torna esvaziado de sentido. Ora, o que fazem os
trabalhadores que ficaram às margens das grandes empresas que fizeram o
“enxugamento” do quadro de empregados em sua estrutura organizacional?
Podemos conjeturar que se o discurso voltado para a "empregabilidade"
incide sobre trabalhadores diretamente vinculados ao cotidiano da grande
indústria, ele perde grande parte de sua eficácia diante do número extenso de
trabalhadores fora do mercado formal. É aí que a noção de
"empreendedorismo" – originalmente ligada à atividade e à figura do
pequeno empresário – consegue cingir tipos distintos de trabalhadores,
envolvendo, desta forma, toda a sociedade na atividade produtiva. Os agentes
e agências da sociedade civil que difundem esta ideia irão articular de forma
pouco lógica a figura do pequeno empresário, do "intraempreendedor"
(empregado que detém iniciativa para inovar dentro da corporação) e do
trabalhador autônomo ou informal, demandando deles, unanimemente, as
mesmas habilidades (DIAS; WETZEL, 2010, p. 100).

Como hegemônico, o discurso do empreendedorismo não deixa de fora o


contexto que abrange uma população cada vez mais numerosa, que está na informalidade
e no que era conhecido como subemprego. Tendo uma postura empreendedora, os
empregados terceirizados têm a chance de ser absorvidos pela empresa contratante. Os
desempregados e os trabalhadores informais também podem (e devem) se tornar
“empreendedores” para garantir alguma renda, o que ameniza a sua condição de excluído
da grande indústria – mas jamais do sistema do capital – e passem a se esforçar
individualmente para reproduzir sua existência. Assim, fugindo da concepção inicial de
capitalistas inovadores, grande parte dos agentes comunicacionais (incluindo autores
acadêmicos) passam a considerar como empreendedores todos aqueles que se aventuram
a assumir os riscos dos negócios, seja por necessidade (não conseguem ser absorvidos
pelo mercado de trabalho formal), seja por oportunidade (identificaram alguma
possibilidade de ganhar dinheiro atendendo ao mercado consumidor, com algum bem ou
serviço com potencial de sustentar a viabilidade do negócio).
A inovação, que era requisito essencial para alguém ser considerado
empreendedor, é deslocada ao papel de diferencial competitivo, a fim de melhor assegurar
a sobrevivência ou o crescimento dos negócios. Nesse sentido, percebe-se um
deslocamento qualitativo referente ao conceito de empreendedor, na medida em que as
relações capital-trabalho se modificam. Sem uma reflexão aprofundada, as discussões
sobre o papel do empreendedor ficam restritas à sua aparente visão diferenciada acerca
do ambiente produtivo, ratificando o ideal de meritocracia que pouco leva em conta a
concorrência desigual do pequeno empreendedor com o grande capitalista. O conceito
tem abarcado, então, desde os pequenos negócios “por conta-própria” (trabalhador
informal) até os de startups do Vale do Silício, homogeneizando agentes produtivos
intrinsecamente distintos entre si. Aliás, grande parte das atuais startups, conduzidas
pelos “brilhantes empreendedores”, usualmente dependem de um grande aporte de capital
para que efetivamente garantam a sua sobrevivência (D’AVINO et al., 2015).
Tal transformação no conceito de “empreendedor” ganha mais força a partir da
década de 1970 nos países centrais, influenciados por políticas neoliberais – como as
Reagan nos Estados Unidos e as de Thatcher no Reino Unido. No Brasil, por sua vez, o

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avanço neoliberal se dá a partir de década de 1990. A partir de então, o empreendedorismo


surge mais intensamente como alternativa para a fuga do desemprego, como integração
dos pequenos negócios ao movimento de acumulação do grande capital, assim como
função ideológica de conformação das relações de trabalho precárias. Os próprios
ideólogos do capital recomendam, por exemplo, o reconhecimento social da atitude
empreendedora para que haja apelo político nas decisões que os favoreçam (HISRICH;
PETERS; SHEPHERD, 2014) e, complementarmente, atuam na divulgação da mídia para
exaltar os casos de sucesso específicos, que tanto inspiram quanto massificam a
possibilidade de se tornar um grande empreendedor. Antes de prosseguirmos com o
argumento principal deste ensaio, optamos por situar a constituição do mercado de
trabalho brasileiro, para que avancemos na compreensão do real papel da ideologia do
empreendedorismo em sua relação dialética com a precarização do trabalho.

A precarização do sempre precário mercado de trabalho brasileiro?


Frequentemente, vemos o debate sobre a precarização do trabalho no Brasil,
sobre a perda da função social do trabalho, como se fosse algo inédito ou como se
situações anteriores fossem generalizadamente mais satisfatórias. Na história da formação
do mercado de trabalho no Brasil, parte significativa dos trabalhadores de base sempre
transitou na informalidade, desde que o sistema formal de trabalho foi instaurado.
Conforme destaca Pochmann (2016), foram raras as situações em que o percentual de
trabalhadores formais ultrapassou a metade da população economicamente ativa no país.
Assim, para situar o atual momento de precarização do trabalho no país, consideramos o
resgaste histórico aqui conduzido como algo necessário, diferenciando a precarização
vigente de momentos anteriores, nos quais a superexploração do trabalho foi frequente.
Considerando que o modo de produção capitalista pressupõe a existência de três
elementos fundantes – capital (personificado pelo capitalista), trabalho (personificado
pelo trabalhador livre, atendendo aos interesses de mobilidade do capital) e Estado
(agente regulador representado pelas instituições públicas e governamentais) –, no
contexto brasileiro, relembramos que a escravidão foi abolida apenas em 1888. Esse
período coincide com o início das primeiras indústrias no Brasil, as quais surgem
aproximadamente um século após a industrialização de países europeus, sendo o setor
têxtil o mais representativo desta época (GIANOTTI, 2007). Assim, tomamos a análise
do mercado de trabalho no país, efetivamente, após esse período.
O modo de objetivação do capitalismo que se instalou no país é reconhecido por
Chasin (1978) como de via colonial, um capitalismo hipertardio. Assim, a particularidade
brasileira é caracterizada como um capitalismo subordinado (aos países centrais), sendo
a sua produção econômica de maior expressividade aquela destinada ao comércio
exterior. A principal característica que irá acompanhar por um longo período o
desenvolvimento da formação industrial brasileira é a da superexploração da força de
trabalho, sendo o motor do modo de acumulação predominante no país (QUEIROZ,
2017). “Se é da própria natureza do capital apropriar-se da mais-valia produzida pelo
trabalhador, no Brasil este sofre uma dupla exploração: da burguesia autóctone e,
principalmente, do imperialismo internacional” (ASSUNÇÃO, 2002, p. 9).
De acordo com Queiroz (2017, p. 796, grifo do autor), a superexploração da
força de trabalho designa “o pagamento da mão-de-obra abaixo do seu valor real, ou
seja, abaixo do necessário ao consumo reprodutivo normal da classe trabalhadora”.
Assim, a superexploração da força de trabalho, enquanto instrumento de acumulação,
favorecia a produção de produtos voltados à exportação e causava a miséria generalizada

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da classe trabalhadora. Este cenário impossibilitava a formação de um mercado


consumidor interno que impulsionasse o desenvolvimento industrial em setores mais
avançados da economia – que até 1930 era basicamente de produtos agrários, como o café
e cana-de-açúcar. Com a crise mundial de 1929, tornou-se insustável ao país manter sua
base econômica agroexportadora, considerando que a demanda internacional foi
profundamente afetada pelo colapso iniciado nos EUA e que avançou sobre todos os
principais países capitalistas. Neste sentido, no início da Era Vargas, a “Revolução de
1930 marca o fim de um ciclo e o início de outro na economia brasileira: o fim da
hegemonia agrário-exportadora e o início da predominância da estrutura produtiva de
base urbano-industrial” (OLIVEIRA, 2003, p. 35).
Conforme argumenta Oliveira (2003), a reconhecida política de “substituição de
importações” representa antes uma necessidade de produção do que de consumo. Para o
autor, um dos fatores decisivos para a instauração de novos ramos da indústria nacional
foi a criação das leis trabalhistas, de forma que grande parte da população pudesse ser
transformada em exército industrial de reserva. Oliveira (2003) defende que com o
estabelecimento do salário mínimo, a classe capitalista se viu liberta de ter que lidar com
a concorrência por força de trabalho, homogeneizando os salários de trabalhadores
qualificados e não-qualificados, de modo que a legislação trabalhista nivelava o preço da
força de trabalho abaixo do que a competição pelo uso de fatores poderia impor. A
Consolidação das Leis Trabalhistas, embora também seja em parte fruto da luta de classes
no Brasil, sob esta perspectiva, visou atender ao desenvolvimento e avanço do capitalismo
industrial no país. Por isso o argumento de Assunção (2002, p. 8), que defende que “as
grandes tarefas da burguesia nacional acabaram sendo levadas a cabo não por ela, mas
pelo Estado – algumas vezes, até contra seus interesses imediatos, embora sempre em seu
favor”.
A despeito do importante papel da legislação trabalhista para a mudança do eixo
econômico nacional para o cenário urbano, ela não extinguirá a relevância das relações
de produção agrária no país, pois o modo de acumulação primitiva neste, antes de
concorrer com o novo modo de acumulação em ascensão, complementará ao mesmo no
processo de acumulação global (OLIVEIRA, 2003). Destarte, apenas em 1956 a
participação da indústria urbana ultrapassa a hegemonia agroexportadora, embora o
aumento do trabalho assalariado não impedisse que a superexploração do trabalho
persistisse, sendo a dificuldade de formação de um mercado interno um dos principais
entraves à maior industrialização do país (ASSUNÇÃO, 2002). Este entrave à expansão
industrial, por outro lado, não impede a intensa acumulação e concentrada classe
industrial emergente, de forma que os modos antigos de organização do trabalho exerciam
uma relevante função para este fim.
Conforme ressalta Oliveira (2003), as dualidades geralmente levantadas sobre o
desenvolvimento do sistema produtivo capitalista não refletem a realidade brasileira.
Desta maneira, as atividades centrais da indústria urbana e as atividades rurais de
acumulação primitiva não foram polos desconexos – o segmento produtivo rudimentar
não estava à parte do processo de acumulação global. O crescimento do setor terciário
não contrasta com o crescimento do setor secundário, ao contrário, o desenvolvimento da
indústria de bens demandava a expansão de serviços agregados que pudessem
complementar a distribuição de mercadorias e suprir as necessidades que se agregam à
expansão da população urbana. Tampouco o que ficou conhecido como trabalho informal
(não abrangido pela legislação trabalhista) estava fora do movimento de valorização do
valor, conforme destacam Abílio e Paulani (2014, p. 12-13).

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Talvez se seguíssemos o fio que tece o trabalho das costureiras de fundo de


quintal – empreendedoras e capacitadas por algum programa social –,
chegássemos ao tecido das empresas multinacionais. Nestes fios poderíamos
também tropeçar nos bolivianos que trabalham como escravos no centro de
São Paulo. Ou, como nos deparamos ao longo da pesquisa, com a costureira
que aluga uma salinha em um edifício do velho centro de São Paulo, milita no
movimento de moradia e costura os vestidos das formaturas – novo filão do
mercado – das novas estudantes das novas faculdades do desenvolvimento
brasileiro; ela vive à beira do despejo.

Oliveira (2003) exemplifica que a agricultura destinada ao consumo interno


(também baseada em altas taxa de exploração do trabalho) fornecia alimentos de baixo
custo à classe trabalhadora urbana, o que possibilitava a manutenção do baixo valor de
reprodução dessa força de trabalho e, consequentemente, dos salários. Além disso,
acrescentamos que o contingente do exército industrial de reserva das cidades
frequentemente exerce atividades informais que possibilitam o baixo custo de reprodução
do trabalhador industrial. A partir dos comércios locais (reduzindo o tempo de
deslocamento do trabalhador para o acesso a produtos básicos) e das diferentes formas de
redução do tempo de circulação das mercadorias (camelôs, feirantes, revendores “porta-
a-porta”, etc.), mantém-se a superexploração em vigência no país, ainda que uma nova
classe média paulatinamente emergisse dos novos ramos da indústria que exigiam um
grau mais elevado de qualificação do trabalhador. Diante deste cenário, a classe
trabalhadora não assistiu passivamente ao modelo de superexploração do trabalho,
contudo, o contínuo apoio do Estado à burguesia representou o poder de coerção para a
repressão de movimentos sindicais.
Entremeadamente com os “milagres” econômicos - cana-de-açúcar, café e
tantos outros -, a sociedade conviveu com sucessivas políticas autocráticas: a
monarquia, baseada na escravidão; a República Velha, cuja fachada liberal-
democrática não escondia a sua realidade ditatorial a serviço das oligarquias
rurais; o Estado Novo também ditatorial, surgido depois de irrelevantes e
pouquíssimos anos constitucionais; o governo constitucional de Dutra, sob o
patrocínio da Constituição de 46 e a política imperialista da guerra fria,
marcado pela repressão geral, particularmente aos comunistas; só com o
segundo governo Vargas e até o golpe de 64 temos uma relativa democracia,
que assistiu ao suicídio de um presidente, à renúncia de outro, a toda uma série
de golpetes e aos dois golpes contra Jango (ASSUNÇÃO, 2002, p. 13).

O período da ditadura militar não só não amenizou superexploração da força de


trabalho, como primordialmente a asseverou. O “milagre econômico” do período,
amparado pela grande entrada de capital estrangeiro (empréstimos e investimentos) e pelo
reforço da industrialização brasileira, camuflava o arrocho salarial e a grande repressão
que o país vivia, camuflagem essa reforçada pelas mídias de comunicação cooptadas pelo
governo (GIANOTTI, 2007). A desigualdade salarial brasileira, nesse período, atingiu
uma das maiores discrepâncias no mundo, o que indica que o “milagre econômico”,
eliciador da concentração de renda, oferecia as suas “bênçãos” desproporcionalmente à
classe capitalista; ainda que o índice econômico do desemprego tenha sido
significativamente reduzido, a desigualdade social se intensificou. O arrocho salarial não
é algo incomum ao que ocorre em outros contextos da dinâmica do capital, conforme se
nota na obra de Marx.

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A baixa salarial dizima pouco a pouco a população trabalhadora, de modo que,


em relação a ela, o capital se torna novamente superabundante, ou, como outros
o explicam, a baixa salarial e a correspondente exploração redobrada do
trabalhador aceleram, por sua vez, a acumulação, ao mesmo tempo que o
salário baixo põe em xeque o crescimento da classe trabalhadora (MARX,
2011, p. 435).

Em 1974, foi promulgada a lei 6.019/74, que dispõe sobre o trabalho temporário
nas empresas urbanas. Tal lei pode ser considerada como um importante marco para a
flexibilização e desregulamentação das relações de trabalho no país, partindo da
interpretação de que o trabalho temporário pode ser considerado como uma das
modalidades de terceirização (CHAMBERLAIN, 2012). Essa lei sofreu profundas
modificações ao longo do tempo e, no ano de 2017, foi aprovada o aumento do prazo
máximo do contrato temporário, passando de 90 para 180 dias – conforme veremos em
seção posterior deste ensaio.
Partindo para a década de 1980, muitos analistas econômicos, quando fazem uma
análise da conjuntura macroestrutural deste período no Brasil, a tratam como a “década
perdida”. Isso se deve em função das baixas taxas de crescimento produtivo, inflação
descontrolada e grande dependência do país em relação aos órgãos de controle financeiro
mundial. Nesse contexto, como se é possível supor, piora a situação das condições de
trabalho precárias para a maior parte da classe trabalhadora.
Entre 1980 e 2005, o Brasil ceifou 1/5 do poder aquisitivo do trabalhador, e a
produtividade praticamente não se expandiu fortemente, o que termina
revelando a clara opção pela manutenção do atraso nas relações de trabalho.
Menos tempo de trabalho na empresa combina com menor salário, insuficiente
formação profissional, contida inovação técnica e produtividade estancada
(POCHMANN, 2016, p.409).

Após vitória de Collor em 1989, o Brasil incorporou uma agenda de ajustes


econômicos que trouxe em seu bojo a abertura comercial e as privatizações, rompendo
com a política de substituição de importações que vigorava desde 1930. A entrada da
fechada economia brasileira na circulação da rede global fez com que, forçosamente,
fossem expandidos os processos de reestruturação produtiva, ocasionando no fechamento
de diversas fábricas (em função da concorrência internacional), aumento das
terceirizações, flexibilização do sistema de proteção ao trabalho e adoção de diversas
práticas do toyotismo nas organizações produtivas (COSTA, 2005). Com a implantação
do Plano Real na primeira metade da década de 1990, houve a estabilização da inflação e
aumento da rigidez salarial. Todavia, no âmbito do mercado de trabalho formal, viu-se
uma redução dos postos ocupacionais e compressão dos rendimentos do trabalhador
médio.
Atuando num plano de governo também pautado na agenda neoliberal, os
governos de Fernando Henrique Cardoso que se seguiram ao longo da década
contribuíram para consolidar a fragilização dos vínculos ocupacionais, concentração de
riqueza e privatização de empresas estatais. Nesse período, o então presidente
encaminhou ao congresso o Projeto de Lei 5.843/01, propondo o que veio a ser conhecido
pelo termo “negociado sobre o legislado” das relações de trabalho. Embora tal projeto
não tenha tido prosseguimento nos governos imediatamente seguintes, tal proposta

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representava um guia quanto aos rumos que o empresariado deveria seguir para a
descaracterização da CLT.
Num âmbito geral, os governos petistas subsequentes não só não foram capazes
que conter os processos de reestruturação produtiva e precarização das relações laborais,
como contribuíram para o avanço a mitigação das forças das centrais sindicais, haja vista
a proliferação de “sindicatos fantasmas” e cooptação das centrais sindicais ao aparato
governamental. Deste modo, os sindicatos dos trabalhadores seguiram como um fim em
si próprio, atuando quase sempre dentro das margens permitidas pela classe burguesa
(SOARES, 2013).
Em 2012, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) apresentou em Brasília
um relatório denominado “101 Propostas para Modernização Trabalhista”, cujo objetivo,
segundo o seu portal online, era o de “abrir as discussões para reduzir os altos custos do
emprego formal, que a CNI vê como um dos mais graves gargalos ao aumento da
competitividade das empresas brasileiras”. Como se fossem os trabalhadores que
impedissem a inovação, quando são as mãos e cérebros que a realizam. As propostas
enunciadas pela CNI, que não encontraram o aval da então presidente da república Dilma
Rousseff, seguem a passos largos no congresso nacional após a destituição da chefe de
Estado via processo de impeachment – incentivado fervorosamente pelo capital nacional
e internacional. Neste sentido, Michel Temer assume o governo em 2016 levando a cabo
as resolutivas legais de flexibilização trabalhista. Ofensivas por diversas frentes
percorrem numa velocidade incomparável nos trâmites do aparato político, com a
aprovação da terceirização das áreas-fim das empresas e da Reforma Trabalhista.
Pelo exposto, percebemos que o formal e o informal, o moderno e o arcaico, o
urbano e o rural, o centro e a periferia, ao longo da formação do mercado de trabalho
brasileiro, constituíram-se como polos indissociáveis, complementares, reciprocamente
influenciados. Contudo, defendemos neste ensaio a existência de uma nova
particularidade da precarização no mercado de trabalho no Brasil e acreditamos ser
necessário demarcar a diferença dessa precarização das situações anteriores. Até então, a
transição de trabalhadores entre esfera do formal e do informal era mais frequente entre
os estratos de rendas mais baixos. Atualmente, amparada por uma ideologia do
empreendedorismo, a precarização vigente segue a tendência de crescimento
generalizado da instabilidade nas relações de trabalho, que se pauta em novos valores
sociais, contribuindo ao movimento de redução das ocupações formais e das próprias
diferenças qualitativas entre o formal e o informal, conforme aprofundamos na próxima
seção.

A ideologia do empreendedorismo e as relações de trabalho precarizadas


Com o objetivo de reduzir a taxa de mortalidade das Micro e Pequenas Empresas
(MPE), o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) foi criado
em 1972 pelo governo brasileiro, num cenário de poucos cursos de ensino superior
voltados à gestão empresarial. Oferecendo cursos de qualificação profissional e
disseminando a lógica capitalista voltada ao discurso do empreendedorismo, as injustiças
sociais são redirecionadas para as estratégias que os trabalhadores precisam adotar para
não necessitarem do amparo integral do Estado (que raramente chega, de fato) em caso
de desemprego. Assim, criar um negócio passa a ser exaltado como uma importante
alternativa de se evitar a pobreza e/ou ascender socioeconomicamente.
Segundo Sarfati (2013), mais de 70% da receita do Sebrae vêm das contribuições
obrigatórias que as empresas de médio e grande porte pagam – alíquota de 0,3% sobre o

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salário do trabalho. Presente em todos os estados brasileiros, emprega mais de 4,5 mil
funcionários, tem mais de 12 mil consultores, 336 postos de atendimento próprio e mais
452 em parceria. O Sebrae “apoia as empresas com cursos, palestras, treinamentos,
promoção de feiras de negócios, publicações e consultoria” (SARFATI, 2013, p. 33).
A entidade é sustentada pelo fundo público, que direciona sua atuação e
corrobora com a reprodução dos objetos discursivos acerca do empreendedorismo,
enquanto contribui com o combate ao desemprego, visto que busca atuar na redução da
mortalidade dos micros e pequenos negócios e no estímulo aos novos negócios. Todavia,
o fato de 60% das novas empresas não ultrapassarem os cinco anos de existência (IBGE,
2014) talvez não tenha como principal motivo os “problemas de gestão”, como é apontado
em relatórios sobre a mortalidade dessas empresas, mas a própria dinâmica capitalista na
qual as grandes corporações têm vantagens esmagadoras sobre as menores – compras em
escala, aporte de capital, influência política etc.
Não obstante toda essa estrutura, ao se ampliar o escopo e observar as condições
concretas de vida dos indivíduos que são restringidos a empreender, apenas uma camada
dos que centralizam a condução de atividades produtivas efetivamente procuram o Sebrae
– normalmente, os com maior escolaridade e maior gama recursos (GEM, 2017). Ou seja,
as franjas de trabalhadores “conta-própria” mais pauperizadas usualmente não acessam
tal apoio.
Com a agenda neoliberal fortificada pelo estado brasileiro após 1990, a redução
do emprego formal na indústria de bens, aliada à nova forma de organização do trabalho
neste setor, houve o crescimento do número de pessoas atuando em formas diversas de
organizações laborais. Exemplos são: trabalhadores em contratos temporários de
empresas terceiradas; freelancers; trabalhadores impelidos a se transformarem em pessoa
jurídica (o fenômeno da “pejotização”); trabalhadores “sócios” em cooperativas de
fachada; trabalhadores atuando como consultores independentes do marketing multinível;
e, mais recentemente, trabalhadores semiautônomos motoristas de aplicativos de
mobilidade urbana.
Os índices de desemprego e de informalidade, de certa forma, puderam ser
mascarados a partir da iniciativa criada pelo governo, em 2008, do cadastro de
Microempreendedor Individual (MEI), numa estratégia de “formalização do informal”.
Ao mesmo tempo em que o MEI pode significar um sistema mínimo de proteção às
pessoas que atuavam na informalidade (oferecendo benefícios como auxílio maternidade,
auxílio doença e aposentadoria), ele ratifica o consentimento do Estado com o trabalho
precário, visto que estes trabalhadores apresentam grande instabilidade em suas
atividades laborais (sofrendo maiores impactos com a sazonalidade das demandas) e, em
geral, auferem baixa rentabilidade com o trabalho.
Wissmann e Leal (2017, p. 7) também levantam a hipótese de que “a política de
institucionalização do MEI como uma tentativa de redução da informalidade pode, na
verdade, ter como efeito um movimento de formalização da precariedade do trabalho”, o
que contribui “para o consentimento social quanto à vulnerabilidade crescente da classe
trabalhadora”. Basta destacar que o teto de faturamento anual do MEI até 2017 era de
R$60.000 anuais (atualmente, é de R$ 81.000,00) e a renda familiar média de 59% deles
não chegava a quatro salários mínimos (SEBRAE, 2018). Considerando as baixas taxas
rentabilidade dessas atividades, essa aparente política pública acaba deslocando o
problema estrutural do mercado de trabalho para a esfera individual, enquanto as
mobilizações coletivas permanecem abafadas.

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A notícia de que o número de empreendedores que formalizaram já ultrapassou


o número de 5 milhões vem sendo ampla e recorrentemente veiculada pela
mídia. Contudo, os resultados reais proporcionados pela lei são mascarados, os
dados não são contestados. O fato de que mais da metade dos
microempreendedores individuais não estão cumprindo efetivamente com as
contribuições tributárias, estando inadimplentes e, portanto, formalizados
parcialmente, não é divulgado na mesma proporção. (...) constatou-se a
existência de dois grupos de MEI. Um formado por empreendimentos que
buscam o reconhecimento social e almejam tornar-se dotados de direito. Na
busca pela legitimação, passam a integrar formalmente a sociedade,
registrando-se em todas as instâncias necessárias, e passam a pautar suas ações
na legislação vigente. Um segundo grupo é formado por indivíduos que não
são empreendedores de fato, são cidadãos que enxergam na lei uma
oportunidade de burlar as regras trabalhistas vigentes e acessar direitos
previdenciários e bancários (CAMPANHA, et al. 2017).

Para além da atuação do Sebrae e da instauração do MEI, temos como terceiro


elemento institucional da esfera estatal a aprovação da Reforma Trabalhista, em 2017.
Tal alteração no Direito do Trabalho se constitui o último estágio na transformação da
moral vigente, legitimando politicamente o avanço da extração do mais-valor tanto por
meio do aumento da jornada de trabalho (mais-valor absoluto) como por meio do aumento
da produtividade que barateia o custo da força de trabalho (mais-valor relativo).
Foram mais de 80 alterações no código trabalhista, 70 deles favorecendo aos
empregadores. A despeito da propagada possibilidade de redução do desemprego (até
então não identificada), o que se vê é o aumento da exploração e intencionada ação para
desmobilização da classe trabalhadora. Dentre as novas regras, destacam-se a
predominância do acordo sindical em relação à legislação trabalhista (ainda que este
acordo seja inferior à atual garantia legal), possibilidade de terceirização das áreas-fim,
flexibilização do trabalho de prazo determinado, trabalho intermitente (contratação sem
jornada de trabalho mínima ou “bico profissional”, como tem sido chamado) e imposição
de oneração financeira ao trabalhador em caso de perda na ação trabalhista.
Com a terceirização das áreas-fim, as grandes empresas veem uma oportunidade
de retomar sua rentabilidade. Vale ressaltar que, entre 1950 e 1980, as taxas médias de
crescimento econômico no Brasil giraram em torno dos 7,4% ao ano; deste período em
diante (1980- 2015), a média foi de cerca 2,5% ao ano, reduzindo, a reboque, as taxas de
lucro (PRADO, 2017). Este cenário explica, em parte, as contrarreformas político-
econômicas em curso no país. A terceirização das áreas-fim abre brecha para que as
grandes indústrias contem com um quadro ainda mais enxuto de empregados (podendo
chegar ao limite de ter apenas aqueles que são gestores de contratos das empresas
terceirizadas). Assim, os pequenos negócios (usualmente conduzidos pelos
empreendedores) constituem-se cada vez mais como recurso a ser utilizado para a
ampliação dos lucros dos grandes negócios.
Com o trabalho intermitente, o Estado passa a formalizar os conhecidos bicos –
atividades esporádicas que os trabalhadores prestam apenas de acordo com a demanda
dos contratantes. Já a ampliação do contrato de trabalho temporário para até seis meses
facilita a demissão e contratação de empregados de acordo com a sazonalidade de
produção e/ou consumo. Assim, temos uma maior parte da classe trabalhadora que migra
de ocupação em ocupação, contudo, podendo contar com os novos bicos de trabalho
precário – como os de motoristas de aplicativos urbanos, com proteção jurídica quase
ausente. Se a insegurança aparentemente se torna o principal aspecto negativo dessas
relações de trabalho, a ideologia do empreendedorismo não deixa de exaltar a liberdade

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de horário, a aparente ausência de chefe e a suposta autonomia na execução do trabalho


– sem que o trabalhador, muitas vezes, se dê conta de que deve seguir uma série de
padrões para que se mantenha até mesmo nas ocupações mais precárias, como a de
motorista intermediado por aplicativo, que pode ser desligado a qualquer momento, caso
não atenda às exigências impostas.
Anteriormente, a precarização do trabalho atingia com maior força a classe
trabalhadora informal e aqueles trabalhadores formais dos estratos de renda mais baixos.
A partir de então, argumentamos que ela caminha para alcançar generalizadamente a
maior parte classe trabalhadora, mesmo aqueles dos estratos de renda mais altos que
permanecem na esfera do formal e não contam com a estabilidade no trabalho (exceção
assegurada ao funcionalismo público, ao menos até agora). Temos, então, um novo
cenário de precarização do sempre precário mercado de trabalho brasileiro. Agora, sob os
valores da ideologia do empreendedorismo.

Considerações finais
Nosso objetivo neste ensaio consistiu em analisar as diversas transformações do
ambiente produtivo e institucional do contexto sociopolítico brasileiro que permitem a
constatação da manifestação de uma ideologia pautada no conceito amplo de
empreendedorismo, voltada à conformação do trabalhador em relações de trabalho
precárias. Dentre as principais conclusões, podemos indicar que o conceito de
empreendedorismo, para além da plurissignificação ainda pouco aprofundada pelos
pesquisadores (isso não é por acaso), se manifesta materialmente de modos particulares
nas diversas franjas de classe.
No Brasil, onde o fenômeno se relaciona, em maior medida, com os trabalhadores
informais (conta-própria) e com os micros e pequenos negócios, o empreendedorismo
contribui com a reestruturação produtiva do capital, na medida em que os pequenos
empreendimentos servem de substitutos aos empregados anteriormente contratados pelas
grandes empresas e que a redução das garantias institucionais de proteção ao trabalho se
traduz em força de trabalho mais barata. No contexto de atuação do Sebrae, da Lei do
MEI e da Reforma Trabalhista, torna-se institucionalizado que os trabalhadores devem se
acostumar com a falta de segurança jurídica, conformando-se com a assunção de riscos,
trabalhos temporários, inconstantes e/ou terceirizados.
Se a esfera do formal não deve tomar a aparência explícita de estar cada vez mais
escassa, as forças político-econômicas têm atuado para a própria redução da distância
entre o formal e o informal. Assim, no novo contrato social, passam a ser valorizadas as
supostas autonomia, liberdade de horário e ausência de chefe. Todos, de um jeito ou de
outro, podem tomar a aparência de empreendedores, enquanto a subsunção ao grande
capital, a desigualdade social e a exploração do trabalho se camuflam e permanecem
constantemente presentes.
A produção do conhecimento nacional segue enaltecendo o empreendedorismo
como importante fator para combate ao desemprego e para o desenvolvimento econômico
do país, embora não haja evidencias empíricas de que os pequenos negócios, mesmo
absorvendo a maior parte do mercado de trabalho, sejam suficientes para a melhoria das
condições de vida do trabalhador, em geral. Não se trata de defender o retorno da mão de
obra à grande indústria, mas de demostrar o modo como a ideologia do
empreendedorismo tem contribuído à precarização do trabalho, tal como propomos na
tese que embasou este ensaio.

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Neste sentido, nosso intuito não consistiu em exaltar o trabalho formal em


detrimento do informal, mesmo porque, tomados de modo imediato, é o Estado – uma
mediação necessária para a manutenção da sociabilidade capitalista – que define este
limite, mas que em nada muda a relação de expropriação do mais-trabalho feito pelo
capitalista ao trabalhador. Grosso modo, a formalização, na melhor das hipóteses,
materializa a contradição do movimento de luta dos trabalhadores, pois ao clamar por
direitos, a venda da força de trabalho e das horas de vida à acumulação ao capitalista vêm
a reboque. Não obstante, o horizonte de precarização em tela tanto reduz os salários
abaixo do valor da mercadoria oferecida, como também se constitui em mais um
obstáculo à consciência de classe, visto a atuação solitária e envolta da ideologia do
empreendedor.
Por fim, sugerimos que estudos científicos futuros avancem na compreensão do
fenômeno, buscando, por exemplo, analisar as possibilidades de formação de consciência
de classe entre atores que conduzem pequenos negócios, as formas de resistência dos
trabalhadores em trabalhos precários, assim como elucidar com maior profundidade o
papel dos pequenos negócios para ampliação da rentabilidade das grandes empresas –
estas, vinculadas intrinsecamente ao sistema financeiro. Com o comprometimento da
ciência junto à emancipação humana, devemos nos aprofundar nas camadas que revestem
o empreendedorismo como valor social neutro, enquanto sua essência revela uma nova
faceta do capital para continuar valorizando o valor.

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais
UMA ANÁLISE MARXISTA ACERCA DO TRABALHO DOMÉSTICO NO
BRASIL

Nádia Aparecida Magalhães Duarte


Universidade Federal de Minas Gerais
nadia.mduarte@hotmail.com
RESUMO
O trabalho humano impulsiona o processo de formação, reprodução, transformação e da
existência enquanto gênero; constituindo-se assim como atividade criadora. O complexo
das relações de trabalho, na atualidade, perpassa questões pertinentes à prestação de
serviços, trabalho produtivo, trabalho improdutivo, trabalho que é intermediado por um
capitalista (ou vários) e também trabalho que é ofertado de forma direta pelo trabalhador.
Nos propomos, por meio deste ensaio teórico, discutir a problemática do trabalho
doméstico, no Brasil contemporâneo, e entender as determinações econômicas e sociais
que implicam nas formas de exploração desse tipo de trabalho. O desenvolvimento da
pesquisa teve como base bibliografia selecionada e dados secundários. Conclui-se, na
linha de argumentação trabalhamos com a hipótese de que o trabalho doméstico é
importantíssimo na reposição e reprodução da força de trabalho da classe trabalhadora e
assim possui implicações na produção e circulação do capital.
Palavras-chave: trabalho doméstico, marxismo,

ABSTRACT
Human labor drives the process of formation, reproduction, transformation and existence
as a gender; thus constituting creative activity. The complex of labor relations, at present,
pervades issues pertaining to the provision of services, productive work, unproductive
labor, work that is intermediated by a capitalist (or several) and also work that is offered
directly by the worker. We propose, through this theoretical essay, to discuss the problem
of domestic work in contemporary Brazil and to understand the economic and social
determinations that imply the forms of exploitation of this type of work. The development
of the research was based on selected bibliography and secondary dice. It is concluded,
in the line of argument, with a hypothesis that domestic work is important in the
replacement and the workforce of the working class and thus thematic on the production
and circulation of capital.

Key-words: domestic work, marxism

INTRODUÇÃO
A compreensão do atual estágio histórico-social, e por consequência a
compreensão do movimento real, passa fundamentalmente por categorias que expliquem
como se dão as relações sociais de trabalho. O trabalho humano impulsiona o processo

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de formação, reprodução, transformação e da existência enquanto gênero; constituindo-
se, assim, como atividade criadora. Marx analisa que “o que diferencia as épocas
econômicas não é ‘o que’ é produzido, mas ‘como’, ‘com que meios de trabalho’[...]”
(MARX, 2013, p.257). Nesta perspectiva, cabe refletir sobre o atual estágio do sistema
capitalista e como o avanço tecnológico implica na relação capital-trabalho de modo
concreto.
Marx chama atenção para o caráter ontológico do trabalho e como o processo de
trabalho se dá por meio de intercâmbio entre o ser humano e a natureza. O trabalho, em
Marx (2013), remete à transformação da natureza pelo ser humano ao mesmo tempo em
que transforma a si próprio. Ainda sobre o trabalho, na perspectiva marxiana, compete
destacar as condições sociais determinadas, por meio das quais ocorre a exploração do
trabalho. Partindo da centralidade do trabalho para compreensão do modus operandi do
sistema capitalista, cabe determinar as categorias e os níveis de abstrações capazes de
explicar e transformar o real.
Na formação histórico-social do Brasil, o trabalho doméstico constitui uma fonte
de emprego para os extratos mais pauperizados da classe trabalhadora. A sociedade
brasileira é fortemente marcada pelo processo e colonização para exploração de bens
naturais e escravidão, o trabalho doméstico, no país, constituiu ao longo da história, um
dos exemplos mais marcantes da perpetuação do trabalho em condições análogas à
escravidão.
Muitos marxistas brasileiros dedicam espaço em livros, comentários em textos
sobre o trabalho doméstico em um nível de abstração que não abarca as nuances
nacionais. São exemplos Iasi (2011) e Carcanholo (2007). Um estudo de orientação
marxista que trata do tema, trabalho doméstico no Brasil, de forma a observar mais de
perto as particularidades do país e essa forma particular de trabalho, foi realizado pela
Saffioti e publicado em 1978.
Na produção cientifica estudos quantitativos e descritivos das condições para
execução do trabalho doméstico e aspectos subjetivos das trabalhadoras que executam
esse tipo de trabalho são encontrados com facilidade, tais estudos geralmente são de
caráter positivista e até mesmo pós-moderno.

Assim, se faz importante academicamente e de relevância social desenvolver


estudos como este que reúnam elementos de níveis estruturantes com elementos da ordem
de particularidades da categoria trabalho doméstico e especificidades do capitalismo
brasileiro de modo geral e em relação a essa forma de trabalho em específico. E, ainda
referendar que a análise e metodologia marxista da conta de trabalhar com
particularidades sem, contudo, cair na aparência dos fenômenos.
Diante do exposto nos propomos, por meio deste ensaio teórico, discutir a
problemática do trabalho doméstico, no Brasil contemporâneo, e entender as
determinações econômicas e sociais que implicam nas formas de exploração desse tipo
de trabalho.

METODOLOGIA

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais
Este estudo é fruto de uma empreitada para compreender o trabalho doméstico no
Brasil contemporâneo. A presente pesquisa constitui o primeiro escrito dessa tarefa e
reúne algumas inquietações, perspectivas de análise e acúmulos sobre a temática.
Para alcançar o objetivo proposto foi preciso, em um primeiro momento,
caracterizar o trabalho doméstico no Brasil atual e pontuar alguns aspectos histórico-
econômicos. A caracterização das condições, atuais, de execução do trabalho doméstico
remunerado se deu por meio de dados secundários obtidos do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) divulgados na Síntese de Indicadores Sociais no eixo
Trabalho, do ano de 2016. Sobre a questão do trabalho doméstico sempre surge a
polêmica se este gera ou não valor e mais-valor, se pode ser enquadrado na categoria
econômica de trabalho improdutivo e ou trabalho produtivo. Nesse sentido, iniciou-se
essa discussão por meio de elementos apresentados na bibliografia selecionada a respeito
dos pontos elencados.
Na fundamentação, dessa pesquisa, trabalhou-se com bibliografia, selecionada e
artigos. A bibliografia que dispomos, contou com Marx, mais especificamente d’o
Capital: Critica da Economia Política, livro I O processo de produção e capitalista; Cotrim
(2012) que é a publicação de sua dissertação mestrado Carcanholo identificado dois
textos, na modalidades de artigo. Tanto Carcanholo (2007) quanto Cotrim (2012)
empenharam-se em estudar a opinião de vários autores de orientação marxista sobre as
categorias econômicas trabalho produtivo e improdutivo, capital social, valor e mais-
valor. Saffioti (1978 e 2013). Saffioti (1978), trata-se da apresentação e discussão de
dados sobre a realidade e características de trabalhadoras domésticas do município de
Araraquara interior de São de Paulo, pesquisa realizada entre aos anos de 1974 e 1976.
Saffioti (2013) discute questões pertinentes aos sujeitos na formação econômica do
sistema capitalista e no Brasil. Iasi (2011), capítulo de livro, um texto que aborda a
polemica entorno da geração de valor ou não do trabalho doméstico.
A Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad, 2018) adota o
conceito de trabalho doméstico estabelecido pela legislação brasileira, “[...] é uma pessoa
maior de 18 anos que presta serviços a uma pessoa ou família de uma forma continuada
e sem fins lucrativos. Sua atuação acontece em uma residência ou ‘casa de família’”
(Fenatrad, 2018). A realidade de trabalho das trabalhadoras domésticas se dá por meio de
contratos diários, semanais e mensalistas, geralmente em casas e ou apartamentos com e
sem carteira de trabalho assinada.
Para fins deste estudo o trabalho doméstico é entendido como um conjunto de
tarefas da ordem do cuidado, limpeza e higiene realizadas na esfera privada do lar.
Servindo a uma família ou indivíduo. E uma atividade que exercida de forma remunerada.
Enquanto atividade concreta, o trabalho doméstico, consiste em: limpeza de ambientes;
preparo de alimentos e cuidado direto de indivíduos que não são explorados como força
de trabalho, isso em função da idade ou consequência de adoecimento.

DISCUSSÃO
O trabalho doméstico tem por função geral contribuir para a reposição e
manutenção humana, por consequência da mulher trabalhadora e do homem trabalhador.
Em uma sociedade regida pelo modo de produção capitalista, o trabalho doméstico, foi
condenado pela divisão social do trabalho à individualização, ou seja, restrição da

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais
responsabilidade das atividades domésticas à indivíduos (IASI, 2012 e SAFFIOTI, 2013).
São expressões da responsabilização do indivíduo para com o trabalho doméstico a
precariedade de serviços públicos como creches, restaurantes populares e políticas para
idosos. Todos esses exemplos de serviços que ganham descaso social têm sua
responsabilização imputada sob os ombros da mulher trabalhadora.
Ainda, analisando como o trabalho doméstico, no arranjo de sociedade onde
impera o modo de produção capitalista, é atribuído aos indivíduos Marx pondera como
isso é vantajoso para o capitalista. Dado que, “a manutenção e reprodução constantes da
classe trabalhadora continuam a ser uma condição constante para a reprodução do capital.
O capitalista pode abandonar confiadamente o preenchimento dessa condição ao impulso
de autoconservação e procriação dos trabalhadores” (MARX, p,647, 2013). E é isso que
ocorre desde o surgimento desse sistema até os dias atuais, e de forma desempenhada
quase que totalitariamente pelas mulheres da classe trabalhadora.
O trabalho doméstico constitui parte importante na reposição e manutenção da
força de trabalho. Segundo Iasi (2011), o trabalho concreto que produz o valor
corporificado na manutenção e reposição da força de trabalho é o trabalho doméstico. E
isso vale para a força de trabalho que é empregada tanto de forma produtiva quanto
improdutiva. Por sua vez, a força de trabalho reposta é vendida ao capitalista na forma de
mercadoria.
Marx, no capítulo 13 Maquinaria e grande indústria, ao discutir o crescimento do
contingente de operários na grande indústria apresenta em números que ao somar “[...]
os ocupados em todas as fábricas têxteis [...] ao pessoal das minas de carvão e de metais
teremos 1.208.0442 (MARX, p.519, 2013)”. Dando sequência aos cálculos “[...] se
agregarmos o pessoal de todas as metalúrgicas e manufaturas de metais, o total será de
1.039.605; em ambos os casos, pois um número menor do que o de escravos domésticos
modernos (MARX, p.519, 2013)”. Os dados que Marx apresenta provem do censo de
1861 da Inglaterra e do País de Gales. À época havia cerca de 1,208,648 desempenhando
tipos de trabalho enquadrado como trabalho doméstico, denominado por Marx como
“escravos domésticos modernos”.
Marx, conclui que
“[…] o extraordinário aumento da força produtiva nas esferas da grande
indústria, acompanhado como é de uma exploração intensiva e
extensivamente ampliada da força de trabalho em todas as outras esferas da
produção, permite empregar de modo improdutivo uma parte cada vez maior da
classe trabalhadora, e desse modo, reproduzir massivamente os antigos
escravos domésticos, agora rebatizados de ‘classe serviçal’, como criados, damas de
companhia, lacaios, etc” (MARX, p.518, 2013).

De fato até os dias atuais o trabalho doméstico representa uma saída de


empregabilidade ou muitas vezes uma forma pontual de trabalhar entroca de remuneração
para mulheres dos extratos mais vulnerabilizados da classe trabalhadora.

Ponderações a cerda da questão de trabalho doméstico gerar ou não valor


Carcanholo (2007, p.08) ao examinar o trabalho doméstico exercido, de forma não
assalariada, no âmbito do lar de famílias trabalhadoras produtivas, levantou o seguinte

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais
questionamento: “[…] e se parte desses serviços ou mercadorias produzidas não é
comprada no mercado e é produzida no seio da própria família?” Como resposta chegou
à conclusão de que o trabalho doméstico estrito à reposição da força de trabalho de
famílias de trabalhadoras produtivas, é por consequência serviço produtivo. “[…] o labor
realizado para obtê-los constitui trabalho produtivo, produz valor e esse valor vai em parte
ser apropriado pelo capital que empregar aquela família de trabalhadores produtivos”
(CARCANHOLO, 2007, p.08). O trabalho não remunerado interlar significa maior
quantidade de lucro para o capitalista. No texto que dispomos, até o momento, o autor
não problematiza de forma específica o trabalho doméstico diretamente assalariado.
Fazemos o questionamento e trabalho doméstico que é vendido no mercado?
Saffioti (1978 e 2013) no entanto, não considera que o trabalho doméstico como
produtivo e isso para quaisquer espécie, seja vendido pela própria prestadora ou pela
intermediação de um capitalista. Cabe destaque que, à época em que Saffioti escreve, as
relações de trabalho eram diferentes e era pouco usual a presença de um intermediário na
venda de trabalho do trabalho doméstico para residências. Contudo, Saffioti mostra-se
como uma fonte relevante e demonstra ser um movimento interessante a busca por
entender as categorias e níveis de abstração com que trabalha; além do fato do rico dos
aspectos de gênero e questões raciais que pode ser encontrada em suas obras.
Cotrim (2012, p.156), compreende o trabalho doméstico como “[...] algo
imaterial, que satisfaz necessidades e que é veículo de valor”. A autora ainda alerta para
o aspecto de que, mesmo que parte do valor produzido pelo trabalho doméstico, seja
agregado a uma mercadoria quaisquer e, por conseguinte, trocado no mercado isso não
altera em absoluto a característica do trabalho de que partiu, desse modo, continua a ser
improdutivo. Pelas inferências da autora, entendemos, a defesa do pensamento que o
trabalho doméstico não pode incidir na geração de mais valor, mesmo que esse seja
prestado para um trabalhador produtivo.
Ainda segundo Cotrim (2012) o fato de um serviço ser vendido e consumido de
forma individual implica em esse serviço assumir um determinado preço, contudo isso
não caracteriza geração de valor. A autora exemplifica que “[…] o caso dos serviços
pessoais realizados por trabalhadores domésticos, cuidadores de crianças,
acompanhantes, etc. Essas atividades advêm da forma social capitalista de produção que
geram um contingente de indivíduos excluídos do trabalha assalariado [...]” (COTRIM,
p.171, 2012). Cabe atentar para o aspecto de que é afirmado que a disponibilidade para
execução de tais tarefas de cuidados de forma assalariada ocorre em função de extratos
da classe trabalhadora não encontrarem empregabilidade de outra forma, e não diz
respeito à necessidade desses tipos de serviços por parte das pessoas.
Dando sequência ao pensamento, a autora, acrescente um elemento à questão
“além dos serviços consumidos individualmente, há também mercadorias e serviços sem
valor consumidos pelo capital” (COTRIM,p.171, 2012). Da mesma forma esses serviços
e mercadorias não são socialmente necessários, assim não implicam em valor de uso
social. De modo que,
quando realizado sob o comando do capital, as empresas capitalistas que empregam esse trabalho
improdutivo gerador de mercadorias ou serviços sem valor tomam parte na distribuição da mais-
valia social de modo análogo, embora não idêntico, ao capital comercial: ao vendê-los,
aproximam-se da taxa média de lucro proporcional ao capital desembolsado para sua produção,
incorporando mais-valia contida em outras mercadorias” (COTRIM,p.171-2, 2012).

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais
Partindo dos elementos apresentados por Cotrim, 2012, pode-se depreender que o
trabalho doméstico quando ofertado de forma direta para o consumidor não gera valor e
é improdutivo. E quando é intermediado por empresas capitalistas gera valor mas
permanece improdutivo.
A manutenção e a reposição da força de trabalho é o produto do trabalho
doméstico. Iasi (2011) e Cotrim (2012), concordam que a categorização de uma forma de
trabalho como produtivo ou improdutivo não é algo fixo. Tendo em vista que, o fator
diferenciador dos processos de trabalho não diz respeito à forma concreta de trabalho,
mas sim ao complexo de circunstancias produtivas. Fato que já alertado por Marx.
Para Iasi o trabalho doméstico gera valor e esse valor incorpora-se à força de
trabalho. E assim expressasse no valor da força desse trabalho. Ainda diz que “[...]
existem vários serviços que, ao serem vendidos como mercadorias, revelam seu valor”
(IASI, 2011, p.139). Por fim, Iasi (2011, p.140), defende que “[...] gera novo valor, ainda
que não gere mais-valor [...]”. Entende-se que o trabalho doméstico cria e transfere valor.
Compreensão desse trabalho particular a depender das relações as quais esta
inserido. Carcanholo defende que o trabalho doméstico está relacionado diretamente com
o tipo de trabalho que a família exerce, podendo até assumir geração de mais-valor caso
trate-se de uma família operária. Compete pontuar que Marx aponta que família não é um
conceito fechado, mas sim um arranjo estabelecido conforme as condições sociais
vigentes.

Breve caracterização do trabalho doméstico no Brasil atual


O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, sigla IBGE, por meio da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios, PNAD, gera um banco de dados, já tabulados,
chamado Síntese de Indicadores Sociais. Vamos trabalhar com esses dados no que foi
divulgado referente ao segmento trabalho do ano de 2016, que são os dados mais recentes.
Nos dados do IBGE o trabalho domestico recebe a nomenclatura de serviço doméstico e
sua definição se dá de acordo com preceitos da Organização Internacional do Trabalho,
OIT, definição essa muito próxima do que versa a legislação nacional referente a categoria
e adotada pela Fenatrad.
O trabalho doméstico é exercido no Brasil se dá de forma preponderante por
mulheres, essas representam 92% do contingente que realizam esse tipo de trabalho de
forma assalariada. Dessas mulheres 63% são pretas ou pardas. O trabalho doméstico bem
como agropecuária e construção cível são as categorias de trabalho que apresentam os
mais baixos níveis de escolaridade. Sendo que no ano de 2016, 53,5% das trabalhadoras
domésticas apresentavam grau de nenhuma instrução formal e ensino fundamental
incompleto ou equivalente (IBGE, 2016).
Das trabalhadoras domésticas apenas 31,8% trabalhavam com carteira assinada,
restando 67% dessa categoria exercendo o trabalho sem carteira assinada. A questão da
carteira assinada impacta no valor da remuneração recebido pela trabalhadora, sendo que
as trabalhadoras doméstica que possuíam carteira assinada recebiam em media
R$1.127,00 mês e as que não possuíam carteira assinada cerca de R$679,00 mês. Os
dados demonstram que o fato de possuir carteira assinada impacta em quase o dobro de

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remuneração. A maioria das trabalhadoras que tinham sua carteira assinada eram brancas
representando 43,3% do total (IBGE, 2016).
Salta aos olhos que o trabalho domestico e uma ocupação laboral exercida
predominantemente por mulheres, sendo majoritariamente composta por mulheres pretas
e pardas. O fato de predominar as mulheres nesse tipo de trabalho se dá, segundo Saffioti
(1978 e 2013), e Iasi (2011), em função do sistema capitalista ter incorporado e
intensificado aspectos da divisão social do trabalho de organizações patriarcais de
sociedade. Assim, a predominância de mulheres nada tem a ver com questões biológicas,
mas sim sociais. Aspectos patriarcais são propagados e intensificados no capitalismo por
meio de uma ideologia em que a moral sexual sociabiliza as mulheres para a pratica do
cuidado e para o ambiente privado e do lar. No que diz respeito `a quantidade de mulheres
negras em tal tipo de trabalho ocorre em função da formação histórico-social do
capitalismo brasileiro. O Brasil, é marcado pelo processo de colonização para extração
de riquezas naturais e escravização de povos africanos. O trabalho doméstico, no país,
constituiu ao longo da história, um dos exemplos mais marcantes de perpetuação de
trabalho em condições análogas à escravidão.

CONCLUSÕES
Podemos observar certas tendências, na sociedade capitalista contemporânea
como: a redução da responsabilidade social e aprofundada particularização da
responsabilidade pela velhice; o não uso de certas tecnologias disponíveis em função do
baixo preço da mão de obra; grande presença do setor financeiro nas relações de trabalho.
O que acaba, por resultar em novas formas de estabelecer a exploração do trabalho. Todos
os elementos listados impactam muito na categoria trabalho doméstico e nas condições
de vida da mulher pertencente à classe trabalhadora.
Carcanholo e Cotrim preocupam-se de onde vem o dinheiro para pagar a
trabalhadora doméstica, esses autores apresentam que é por meio da transferência de
renda. Consideramos que essa é uma questão de grande importância para compressão da
questão do trabalho doméstico dentro do modo de produção capitalista.
Reflexões sobre o trabalho doméstico gerar ou não valor interessantes foram
apresentadas como a ideia de que determinantes do trabalho doméstico estariam
atrelados/condicionados ao tipo de trabalho realizado pelas famílias servidas. Uma
reflexão que merece ser aprofundada e amadurecida em estudos futuros.
Tendo em vista o atual estágio do capital e o avanço/expansão do setor do
financeiro Cotrim chama atenção para como empresas capitalista têm aparecido como
intermediadoras de algumas relações de oferta de serviços e mercadorias improdutivos.
E como esse fato incide na distribuição da taxa média de lucros.
Para linha de argumentação trabalhamos com a hipótese de que o trabalho
doméstico é importantíssimo na reposição e reprodução da força de trabalho da classe
trabalhadora e assim possui implicações na produção e circulação do capital. Que o
trabalho doméstico constitui importante fonte de empregabilidade para mulheres
pertencentes aos extratos mais pauperizados da classe trabalhadora.. E que pela questão
histórica-econômica da colonização brasileira as mulheres que recorrem ao trabalho
remunerado no trabalho doméstico são majoritariamente pretas e pardas.

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A presente pesquisa constitui um importante ponto de partida na empreitada de
compreensão da problemática do trabalho doméstico, no Brasil contemporâneo, e
entender as determinações econômicas e sociais que implicam nas formas de exploração
desse tipo de trabalho. Muitas questões foram equacionadas e outras surgiram. Resta
seguir nessa perspectiva e desenvolver mais estudos sobre a temática.

REFERÊNCIAS

CARCANHOLO, R. Capitalismo contemporâneo e trabalho produtivo. Revista de Economia, v. 34, n.


especial, p. 205-221, 2008. Disponível em: <revistas.ufpr.br/economia/article/download/17195/11330>.
Acesso: 27 de fevereiro de 2018.
CARCANHOLO, R. O Trabalho Produtivo na Teoria Marxista. V Colóquio Internacional Marx e Engles,
2006. Disponível em:
<http://www.unicamp.br/cemarx/anais_v_coloquio_arquivos/arquivos/comunicacoes/gt1/sessao7/Reinald
o_Carcanholo.pdf>. Acesso: 23 de fevereiro de 2018.
COTRIM, V. Trabalho Produtivo Em Karl Marx: velhas e novas questões. São Paulo: Alameda Casa
Editorial, 2012.
Federação Nacional de Trabalhadoras Domésticas. Disponível em: <http://www.fenatrad.org.br/site/>.
Acesso em: 13 de março de 2018.
IASI, M. Trabalho Domestico e Valor. In. Ensaios Sobre Consciência e Emancipação. São Paulo:
Expressão Popular, ed. 2, 2011.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Síntese de Indicadores Sociais: trabalho.
Disponível em:<
ftp://ftp.ibge.gov.br/Indicadores_Sociais/Sintese_de_Indicadores_Sociais/Sintese_de_Indicadores_Sociais
_2017/indice_das_tabelas_sis2017.txt>. Acesso em: 24 de marco de 2018.
MARX, K. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013.
SAFFIOTI, H. Emprego Doméstico e Capitalismo. Campinas: Sociologia Brasileira, nº09, 1978.
SAFFIOTI, H. A Mulher na Sociedade de Classes: mito e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 3 ed.,
2013. //1969

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TRABALHO NO CÁRCERE E A LIVRE EXPLORAÇÃO DO CAPITAL:


UM ESTUDO DO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO

Paula Cristina de Moura Fernandes


Universidade Federal de Minas Gerais
mgpcmf@gmail.com

Jéssica Alves Maciel


Universidade Federal de Minas Gerais
jessicaamaciel95@gmail.com

Resumo

No presente ensaio nos propusemos analisar como o sistema prisional brasileiro


contribui para a acumulação de capital por meio do sistema financeiro. Partimos da
crítica a economia política, com o intuito de tecer a crítica sobre os estudos do
encarceramento no Brasil. A discussão se construirá através da teoria marxiana, com o
auxílio de observação in loco e entrevistas semiestruturadas a fim de realizar o
movimento de superação da aparência de um sistema público de segurança e adentrar
nas reais contradições da relação capital-trabalho. Neste movimento, observamos que o
Estado exerce um papel duplo no processo de valorização do valor do trabalho
encarcerado na medida que, além de ditar as regras quanto à produção de valor por esses
indivíduos, também possui controle quanto à esfera da circulação, visto que toda a
remuneração a estes trabalhadores encarcerados é depositada em um banco público.
Dessa forma, este ensaio se desdobra na compreensão sobre as mediações que perfazem
o sistema prisional, especialmente pela sua relação, cada vez mais estreita, com a
reprodução do capital mediado pelo Estado, além de lançar luz sobre os interesses reais
que movem o encarceramento no Brasil.

Palavras-chave: Trabalho Encarcerado; Sistema Prisional; Capital; Sistema


Financeiro.

WORK IN THE PRISON AND THE FREE CAPITAL EXPLOITATION:


A STUDY OF THE BRAZILIAN PRISON SYSTEM

Abstract

On this essay we sought to analyze how the brazilian prison system contributes for the
accumulation of capital by making use of the financial system. We come from a critic to
the political economy point of view, with the intention of making critics over the studies
on incarceration in Brazil. This discussion will take form based on the marxian theory,
with the support of an in loco observation and semi-structured interviews aiming to
make a movement that will overcome the appearances of a public safety system and
penetrate in the real contradictions of this capital-labour relation. On this movement,
we’ve observed that the State has a double role in the valorisation of the labour-value of
incarcerated individuals as it dictates the rules over the value production of these
individuals, it also has control over the circulation sphere since all the pay given to

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

these imprisoned individuals is deposited in a public bank. On that, this essay unfolds in
the direction of a comprehension over the mediations that complete this very prison
system, especially on its relationship, each day closer, with the reproduction of capital
mediated by the State, aside that to unveil the true intentions that lay underneath the
incarceration process in Brazil.

Keywords: Incarcerated Labour; Prison System; Capital; Financial System.

1. Introdução

Neste ensaio teórico-empírico nos propusemos a analisar como o sistema


prisional brasileiro contribui para a acumulação de capital por meio do sistema
financeiro. Partimos da crítica a economia política de Marx, que dentre outras
categorias e mediações, explica o processo de transformação da força de trabalho e
meios de produção em mercadoria e posteriormente em dinheiro, caracterizando a
fórmula M...P...M’-D’, pois, no sistema prisional, há indícios que tal ciclo tenha se
desenvolvido às margens da legalidade burguesa operando mediado pelo Estado para
explorar o trabalho da população encarcerada e alavancar o sistema financeiro,
especialmente para atender os interesses particulares daqueles que empregam a força de
trabalho desses indivíduos.
Atualmente, a população carcerária brasileira ultrapassa 658 mil presos
(INFOPEN, 2017), alcançando o terceiro lugar no ranking de aprisionamento, apenas
atrás dos Estados Unidos e China. A lei 7210/84 apresenta o trabalho encarcerado como
um meio ressocializador dos privados de liberdade para uma nova reinserção à
sociabilidade humana, contudo, têm sido recorrentes às constatações de que a
operacionalização desta lei acaba se distanciando de seus objetivos primeiros. A lei de
execução penal prevê que a cada três dias trabalhados, o preso possa abreviar um dia de
sua sentença. Todavia, nossa investigação suscita a desconfiança de que o trabalho
encarcerado se torna uma forma de extração de mais-valor para capitalistas que
aparecem como parceiros do sistema prisional, e que o fazem por meio da relação com o
Estado.
O trabalho encarcerado é utilizado para manutenção das próprias unidades
prisionais, como também por empresas privadas e públicas que recebem vantagens ao
empregar força de trabalho carcerária, tais como a isenção de encargos trabalhistas e a
necessidade de baixo investimento em termos de infraestrutura e materiais de trabalho
para mobilização de capital e extração de mais-valor e lucro, visto que algumas
unidades penitenciárias disponibilizam meios de produção para a realização do trabalho.
Do lado dos trabalhadores, a remuneração paga, por sua vez, fica dentro dos
cofres públicos sendo acessada pelos indivíduos encarcerados apenas mediante uma
série de restrições, a partir dessa premissa, assumimos que este salário depositado tem
sido utilizado para rentabilização bancária, assim como todas as poupanças.
Em síntese, o trabalho encarcerado é analisado sob o olhar de três epistemes
diferentes, a funcionalista, a foucaultiana e a marxista. Em comum, temos que tais
estudos buscam compreender as transformações pelas quais passam o sistema prisional,
mas cada uma aborda de maneira diferente o universo deste objeto, de modo que as
análises influenciam os resultados encontrados e a dissipação dessas informações nas
ciências administrativas.

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

Segundo Fernandes e Ribeiro (n.d) os trabalhos acadêmicos apresentados nas


ciências administrativas, independentemente da episteme utilizada, chegam a
conclusões semelhantes, de que a ressocialização não acontece por meio do trabalho
encarcerado, nem tão pouco, a humanização destes indivíduos, como pode ser vistos nos
trabalhos empíricos apresentados pelos autores Costa (2001), Costa e Bratkowski
(2007), Pires e Palassi (2008), Barbalho e Barros (2010), Wanderer (2012), Rocha,
Lima, Ferraz e Ferraz (2013), Lauermann e Guazina (2013), Cordeiro, Silva Coelho,
Kanitz e Gonçalves (2014), Gonçalves e Ferreira (2014), Neto (2015), Biar (2015),
Souza, Correa e Rezende (2015), Silva e Saraiva (2016), Correa e Souza (2016),
Amaral, Barros e Nogueira, (2016).
A discussão apresentada por esses autores perpassam na produção de sentidos e
significados do trabalho, o encarceramento em massa, a má utilização do ordenamento
jurídico e a facilitação da mediação do estado nessas relações trabalhistas. As respostas
encontradas pelos autores a respeito do trabalho, são concentradas e o que os autores
Costa e Bratkowski (2007), Pires e Palassi (2008), Cordeiro, Silva Coelho, Kanitz e
Gonçalves (2014) e Silva e Saraiva (2016), e estes autores trazem o que este trabalho
representa aos privados de liberdade, em suma são fugas do ambiente carcerário, para
eles são trabalhos sem sentidos e exercidos apenas pela remição de pena e o ganho
financeiro ( quando há), e alienantes aos que querem sobreviver no mundo fora dos
muros carcerários. Por outro lado, temos também a produção de autores que seguem
uma linha mais crítica e conseguem apontar a essência dos problemas do atual sistema
prisional brasileiro como Herivel (2013), Salla (2004) e Brant (1994), quando
argumentam que para mudar a realidade social no qual o indivíduo está inserido é
necessário fornecer a ele uma forma alternativa de subsistência e, assim, não será
necessário cometer crimes.
Amparados principalmente pelas perspectivas qualitativas da psicodinâmica do
trabalho e da sociologia clínica, os estudos que assumem a ótica do trabalhador
encarcerado ainda não se debruçaram sobre o contexto de (re)articulação do capital e de
que forma as novas adaptações impactam no ambiente laboral, tanto para os privados de
liberdade como para os trabalhadores do sistema prisional.
Este ensaio se propõe analisar como o sistema prisional brasileiro contribui para
a acumulação de capital por meio do sistema financeiro. Nossa contribuição para o
debate sobre o tema reside na inserção da teoria marxiana para a compreensão do
fenômeno e o desvelar da contradição da relação capital-trabalho num campo que,
hegemonicamente, aparta o olhar crítico de suas reflexões.
A discussão aqui apresentada se construirá a luz da teoria marxiana, com vistas a
superar a aparência de um sistema público de segurança e adentrar nas reais
contradições da relação capital-trabalho. Segundo Ferraz e Ferraz (2016) utilizar a
ciência burguesa em seu devir social é apenas reforçar a lógica funcionalista e a
reprodução do capital, enquanto a ciência crítica adota um discurso que defende os
interesses das classes trabalhadoras. Diante disso, utilizamos o método dialético por ser
capaz de emanar as contradições apresentadas na discussão e na coleta de dados, que
ocorreu por meio de visitas em 17 unidades prisionais no estado de Minas Gerais,
entrevistas semiestruturadas com agentes penitenciários, presos, gestores prisionais,
gerentes de produção e um analista do Banco do Brasil. A partir dessas coletas e de sua
contraposição à materialidade das relações do Sistema Prisional Brasileiro, nos
comprometemos a ir à essência do fenômeno e demonstrar que, por meio da mediação

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do Estado, o trabalho encarcerado é utilizado para a alavancagem do sistema de


acumulação capitalista por meio do sistema financeiro.
Dessa forma, este ensaio se justifica por contribuir para a compreensão sobre as
mediações que perfazem o sistema prisional, especialmente pela sua relação cada vez
mais estreita com a reprodução do capital mediado pelo Estado, além de lançar luz
sobre os interesses reais que movem o encarceramento no Brasil.
O trabalho está organizado em três partes, a contar por esta introdução. Na
segunda parte, apresentamos uma breve explanação sobre o funcionamento do sistema
prisional brasileiro e o trabalho encarcerado, os desdobramentos acerca da
(não)remuneração do trabalhador encarcerado; em sequência é realizada a discussão
sobre o Estado como mediador entre o trabalho encarcerado e o capital, e os impactos
dessa mediação na circulação de capital ao se pensar a seguinte questão: “para onde foi
o valor produzido pelo trabalho dos indivíduos encarcerados?”. Por fim, tem-se as
considerações finais acerca das discussões apresentadas neste ensaio.

2. O sistema prisional brasileiro e o trabalho encarcerado

Este capítulo contém uma breve explanação do funcionamento do sistema


prisional brasileiro, através do estudo do sistema prisional mineiro, estado brasileiro
onde os dados foram coletados. Ao apresentar a aparência do fenômeno do
encarceramento, indagamos algumas práticas e discutiremos a contradição intrínseca ao
processo.
Mobilizamos a categoria trabalho como ato fundante da sociabilidade humana e
não como fator ressocializador no encarceramento. Apontamos a seguir quais são as
formas de trabalhos dentro das unidades prisionais e quais são os desdobramentos desse
labor intramuros carcerários.

2.1 Considerações acerca do trabalho nas unidades prisionais

O sistema prisional brasileiro é regido pela lei de execução penal 7210/84 e a


partir dela existem vários desdobramentos revestidos de políticas públicas para
capacitar, empregar e regular a força de trabalho carcerária. No entanto, a materialidade
dessas relações revela um interesse oculto na execução desta lei, isto é, do Estado
burguês em que tudo se transforma em mercadoria.
Acerca da categoria trabalho, Marx aponta:
O trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a
natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação,
medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza [...]
A fim de apropriar da matéria natural de uma forma útil para
sua própria vida põe em movimento as forças naturais
pertencentes a sua corporeidade [...] Agindo sobre a natureza
externa e modificando-a por meio desse movimento, ele
modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. (MARX,
2013, p. 255)

Assim, o trabalho possui um duplo caráter visto que o ser humano, ao


transformar a natureza, transforma a si próprio. O trabalho é categoria central para a
compreensão da história da humanidade (MARX, 2010), todavia, na sociedade
hodierna, este se apresenta de forma alienada, cuja precarização das condições de vida e

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trabalho dos trabalhadores ocorre devido e simultaneamente ao desenvolvimento do


sistema capitalista de produção.
A forma de trabalho assalariado, tal qual conhecemos, surgiu em decorrência das
mutações do mundo do trabalho ao longo dos séculos e obtém como mediador o
mercado de trabalho, isso porque até mesmo o trabalho humano se reduz à categoria de
mercadoria, quando a força de trabalho é vendida em troca de sua forma preço, o
salário. Segundo Marx (2013), a criação do trabalhador livre e assalariado foi concebida
por meio de uma violenta disputa sanguinária, na qual o Estado mediou por meios dos
aparatos legais a regulamentação e exploração desses trabalhadores, alavancando a
exploração do trabalho pelo capital diante da submissão dos assalariados aos
capitalistas. Tal submissão ou, nas palavras de Marx, a subsunção, é fruto da
desapropriação dos meios de produção dos trabalhadores.
Cabe ressaltar que há indivíduos "fora" do mercado, visto que mesmo aqueles
que não ocupam um posto formal de trabalho também atuam de uma forma ou de outra
na circulação do valor, ou seja, mesmo os indivíduos encarcerados fazem parte do ciclo
produtivo do capital. Os autores Melossi e Pavarini (2006) defendem que para cada
sistema de produção se descobre um sistema de punição que corresponde diretamente às
relações produtivas, sendo que o capital, em sua lógica destrutiva de expansão, também
se apropria de força de trabalho encarcerada. Uma das formas aparentes do trabalho no
sistema prisional é a denominada laborterapia - o trabalho como um meio
ressocializador dos privados de liberdade para uma nova reinserção à sociabilidade
humana. Porém, quando analisamos a concreticidade da lógica da socialização pelo
trabalho observamos alguns desdobramentos que nos permitem questionar o interesse
último da lei que o regula. O que a reprodução da vida no cárcere tem revelado é a
utilização da força de trabalho dos presos como exploração de mão de obra barata
(senão escrava) e, com a superpopulação carcerária, forma-se um exército industrial de
reserva para as iniciativas privadas e públicas.
Quanto à questão da superpopulação, ocorre tanto pela desigualdade social e
pela falta do tratamento judiciário, quanto pela falta de estrutura para acolhimento dos
indivíduos encarcerados, acarretando más condições de sobrevivência que culminam,
por sua vez, na promoção de relações sociais desumanizantes, à despeito de medidas
que deveriam preparar esses indivíduos à ressocialização com condições dignas de
reprodução da própria vida. Diante de precárias condições de sobrevivência nos
presídios, a possibilidade de conseguir um trabalho dentro do sistema prisional se
apresenta como se fosse uma “conquista” aos encarcerados, dada a possibilidade de
utilizarem da circulação propiciada pelo trabalho como forma de ocupar o ócio, realizar
trâmites ilegais para obtenção de artigos de consumo, ao mesmo tempo em que estão
abreviando suas sentenças (SALLA, 2006). Nesse sentido, os indivíduos encarcerados
são atraídos para a realização do trabalho pelo discurso remição de pena, conforme
descrito no artigo 126º da LEP, §1º, que dispõe: três dias trabalhados equivalem a
remissão de um dia de pena (BRASIL, 1988).
Os trabalhos dentro das unidades prisionais possuem naturezas distintas como a
de manutenção da unidade prisional, ou do município; trabalhos intramuros, isto é, os
presos são contratados para trabalharem em empresas privadas dentro do complexo
penitenciário; e trabalhos externos, no qual estes podem ter vínculos empregatícios
mediante autorização judicial. No que se refere às oficinas de trabalho que existem
dentro das unidades prisionais, estas são de três tipos: agropecuária, industrial e
serviços, ou como denominado pelo Departamento Penitenciário (Depen), primeiro,

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segundo e terceiro setor, respectivamente. Atualmente são empregados 14.408 mil


presos no primeiro setor, 17.511 mil presos no segundo setor e 17.099 mil presos no
terceiro setor, além de 46.901 mil presos nos trabalhos enquadrados como manutenção
no sistema prisional, segundo dados do Depen (2017).
De acordo com o que está disposto na lei 7210/84, os presos devem atender a
uma série de medidas para execução do trabalho externo, como ter cumprido ⅙ da pena,
atendimento de medidas de cautela sobre fuga e disciplina e também prévia autorização
da direção da unidade prisional, após o preenchimento desses requisitos. Quanto aos
meios utilizados pelos presos para conseguirem os trabalhos externos, estes podem
ocorrer de três formas: por meios próprios, como contratos de trabalhos de prestação de
serviço autônomos, para familiares e/ou amigos; por intermediação da administração
prisional; ou por interesse da iniciativa privada (INFOPEN, 2017). Atualmente, em todo
o país são 12.698 mil pessoas privadas de liberdade executando trabalhos externos nos
setores primários, secundários e terciários (DEPEN, 2017).
Quanto aos trabalhos internos, na área do primeiro setor, a agropecuária, os
presos desenvolvem habilidades e recebem capacitações para as atividades de
horticultura, bovinocultura, suinocultura, avicultura e piscicultura. Ademais, essas
atividades apoiam o governo nos programas de alimentação nutricional e sustentável,
com a doação dos alimentos produzidos para as entidades carentes do município onde a
unidade está localizada. Atualmente são empregados 14.408 trabalhadores no primeiro
setor, sendo 12.824 internos e 1.584 externos (DEPEN, 2017).
Já no segundo setor, a área Industrial, os presos são capacitados para as
atividades como mecânica, construção civil, corte e costura, padaria e confeitaria,
confecção de bolas, marcenaria, fabricação de circuitos eletrônicos e artesanatos em
geral (MINAS GERAIS, 2013). Essas atividades laborativas são acompanhadas por um
gerente de produção da empresa contratante, normalmente o mesmo que efetuou a
formação e a capacitação da mão de obra dos detentos e um gerente de produção da
unidade prisional, normalmente um agente penitenciário de segurança. A esta
supervisão infere-se a responsabilidade da cobrança sobre produtividade, vigilância dos
detentos, bem como a garantia de funcionamento do processo produtivo. No segundo
setor atualmente trabalham 17.511 presos, sendo 11.577 referentes ao trabalho interno e
5.934 referentes ao trabalho externo (DEPEN, 2017).
E no terceiro setor, o setor de serviços, são considerados todas as oficinas que
estão relacionadas com a prestação de serviços de baixa complexidade, como faxina,
cabeleireiro, barbeiro, garçom, manicure, cozinheira, entre outros. Essas oficinas são as
profissões que algumas entidades se disponibilizam para o treinamento dos presos,
sendo que após a progressão da pena ou ao se tornar egresso do sistema prisional, o
preso pode se manter com tal capacitação. No terceiro setor estão empregados
atualmente 17.099 presos, sendo 11.919 referentes ao trabalho interno e 5.180 referentes
ao trabalho externo.
Como citado por Fernandes, Ferraz e Ferraz (2018) a atuação nos setores
primários, secundários e terciários possuem participação de algumas instituições como
parcerias para capacitação e captação da mão de obra carcerária, como:

(...) os programas de treinamento e desenvolvimento para a capacitação da


mão de obra do cárcere são estabelecidos por convênios e parcerias formais e
informais com os programas como SENAR (Serviço Nacional de
Aprendizagem Rural), SENAI (Serviço Nacional de Aprendizagem
Industrial), SENAC (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial),

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EMATER (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural), entre outros


órgãos como o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis) e SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às
Micro e Pequenas Empresas) por meio de um termo de parceria, em que a
unidade viabiliza o espaço e a população encarcerada “interessada” e a
instituição privada oferecerá o curso, e posteriormente essa mão de obra
qualificada passa a ser exército ativo de trabalhadores encarcerados
contratados pelas próprias instituições, ou empresas filiais.

Quanto aos trabalhos de manutenção nas unidades prisionais, estes são relatados
pelos presos como os melhores lugares para se ocupar, pois assim podem circular sem
interferências entre as diversas áreas da prisão (SALLA, 2006). As atividades de
manutenção estão ligadas à limpeza, recolhimento e separação do lixo, lava-jato das
viaturas oficiais, dos agentes e da comunidade, cozinha e entrega de marmitex (MINAS
GERAIS, 2013), entre outras atividades como pedreiro, bombeiro hidráulico, eletricista
e serviços gerais. Essa atividade laborativa em especial é obtida como um prêmio dentro
do cárcere, pois só podem executá-las aqueles que têm bom comportamento, sendo a
responsabilidade de seleção e capacitação incubida aos trabalhadores da administração
local.

2.2 Considerações quanto a (não)remuneração do trabalhador encarcerado

O regime de remuneração do trabalhador carcerário (interno e externo) é


selecionado pelo capitalista que pode optar entre duas possibilidades de pagamento ao
trabalhador: remuneração fixa ou remuneração por produtividade. A escolha do regime
a ser adotado é feita no preenchimento dos formulários de parcerias estabelecidos pela
Secretaria de Administração Prisional (SEAP), de forma que o trabalhador esteja ciente
do regime de pagamento, todavia ainda lhes permanece obscuro o salário nominal que
efetivamente irão receber.
É importante ressaltar que pela LEP 7210/84 Art. 29º, o valor a ser pago para o
presidiário deve ser no mínimo ¾ de um salário mínimo, ou seja, R$ 2,92 de salário
bruto por hora1 ou R$ 1,46 se considerado o salário líquido na base de cálculo2:

1
O cálculo foi feito da seguinte maneira (R$ 702,75 / 30 dias) / 8 horas por dia.
2
O cálculo foi feito da seguinte maneira (R$ 351,37 / 30 dias) / 8 horas por dia.

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Figura 1: Demonstrativo de módulo de pagamento

Fonte: Imagem fotografada em visita in loco pelas autoras (2018)

A imagem acima apresenta a seguinte memória de cálculo:

1. Valor bruto: ¾ de salário mínimo exigidos por lei, ou seja, R$ 702,65;


2. Pecúlio3 - desconto de 25% do valor bruto, exemplo: (R$702,75 x 25% =
R$175,69);
3. Ressarcimento para a manutenção da unidade - desconto de 25% do
valor bruto, independente do regime de progressão da pena que o preso
estiver a cumprir;
4. Valor líquido: valor bruto deduzido os descontos disponibilizado no
cartão-benefício do penitenciário, ou seja, R$ 351,37.

Todavia, grande parte dos detentos recebem valores inferiores ao demonstrado


acima devido, sobretudo, um adendo na LEP que autoriza demais descontos em folha
como o horário das refeições (1 hora); finais de semana - sábados e domingos não
trabalhados (8 horas x 8 dias), visitas ou gozo do descanso semanal; ou até mesmos as
pausas para descanso, como o café ou a contagem dos presos (aproximadamente 15
minutos). Todas essas pausas são contabilizadas e descontadas em folha. Cabe ressaltar
que estes descontos podem variar muito dependendo da relação pessoal do preso com o
agente penitenciário responsável pela produção ou com o gerente de produção.

3
É a soma de dinheiro descontada do valor bruto do pagamento do preso, retido em fonte como imposto.
fazendo uma analogia, é como se fosse o FGTS do preso, mas ele só pode gastar esse dinheiro se
comprovado judicialmente os gastos com tratamentos médicos do preso e da família na ausência do SUS
(sistema único de saúde), ou após a prescrição completa de sua condenação.

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Vale ressaltar, que além da privação da liberdade resultante da pena legal pelo
delito cometido, esses indivíduos são novamente punidos na medida em que as regras
de remuneração da venda de sua força de trabalho são diferentes e mais precárias que as
concernentes aos demais trabalhadores assalariados no país, ao não receberem pelas
pausas no trabalho, pelo horário das refeições e nos finais de semana. Dentre os
descontos, tem-se ainda o custo da manutenção da unidade que pode ser deduzido dos
salários. Aqui, o "pagar para trabalhar" não é apenas uma anedota.
Na condição de trabalho interno e externo há 95 mil presos no país,
representando 15% da população carcerária empregada nos complexos fabris intramuros
carcerários. Segundo os dados do Depen (2017), há presos que recebem menos que o
estabelecido em lei, e em raras exceções presos que recebem mais, conforme a tabela 1.

Tabela 1: Faixa salarial dos trabalhadores

Fonte: DEPEN, elaborado pelas autoras (2018)

A partir dos dados da tabela 1, é possível perceber que embora a lei de execução
penal preveja um mínimo salarial de remuneração ao trabalhador encarcerado, tem-se
que mais de 74,6 mil presos não recebem o mínimo estipulado, o que corresponde a
aproximadamente 75% de presos na modalidade supracitada. Ainda de acordo com os
dados, apenas 22% dos presos recebem entre ¾ e 1 salário mínimo e pouco mais de 3%
recebem mais de 1 salário, sendo estes últimos os pequenos empresários ou autônomos,
cuja declaração de imposto de renda é obrigatória, entraremos em pormenores no item
seguinte.
Aos trabalhadores da manutenção das unidades prisionais, que atualmente são
46.901 mil presos em todo o território nacional, é vedada a remuneração, segundo o Art.
30º4 da LEP 7210/84, o mesmo vale para os trabalhadores internos que desenvolvem
trabalhos sociais como as oficinas de agroindústrias, cujos produtos de seu trabalho, de
forma geral, são direcionados às entidades carentes do município, e aos trabalhadores
externos que estão envolvidos com trabalhos de manutenção referentes à reformas de
escolas em períodos de férias, serviços de limpeza externa nos prédios públicos,
reformas de hospitais, e batalhões de polícia e, no geral, a limpeza da cidade.
Nas penitenciárias agrícolas todo o trabalho é considerado de manutenção,
levando em consideração que os presos que possuem a responsabilidade pela produção
em massa dos alimentos e dos animais, cabendo aos agentes penitenciários a venda da
produção. Todo o dinheiro gerado com a venda dos produtos é repassado para o Estado
via recolhimento DAE.
Outro trabalho que é considerado como manutenção são as várias formas de
artesanatos em cela, porém, estas possuem um diferencial, visto que não são
4
Art. 30. As tarefas executadas como prestação de serviço à comunidade não serão remuneradas.

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incentivadas nas unidades prisionais. Segundo Ribeiro e Cruz (2002, p. 12) “a lei
reconhece a limitação econômica que o artesanato apresenta e, por isso, postula que o
estabelecimento deve procurar limitar sua realização tanto quanto o possível, salvo em
regiões de turismo”. O que os autores deixam implícito nas suas explanações é que o
artesanato gera renda para a família e não para o Estado, diferentemente da produção
agrícola, por exemplo. A limitação econômica gerada é intrinsicamente relacionada com
a perda do controle da circulação do que é produzido intramuros carcerários.
Diante das distintas modalidades de trabalho nas penitenciárias do país,
podemos inferir os interesses particulares do Estado ao mediar ou propriamente utilizar
o trabalho encarcerado para gerar e se apropriar do valor produzido pelos presidiários,
dado a natureza do encarceramento, na qual estes, desprovidos de liberdade, são
submetidos a condições de vida e subsistência precárias e desumanas. Assim, num local
onde as leis trabalhistas não perpassam seus muros, o Estado e capitalistas parceiros
valorizam seu capital às custas de um trabalho muitas vezes não remunerado dos
presidiários, devolvendo a estes, em contraposição ao senso comum sobre o tema, muito
menos do que proporcionam ao sistema.
Ao passo que vamos desvendando como o Estado se beneficia em sua mediação
nas relações sociais do Sistema Prisional, vamos indagando também seus interesses
ínfimos na esfera da circulação do que é produzido e recolhido. A seguir discutiremos a
mediação do Estado no que tange ao trabalho encarcerado e como o mais valor
produzido por este se torna capital.

2.3 O Estado como mediador entre o trabalho encarcerado e o capital

O panorama aqui exposto até pode ser resumido na existência da superpopulação


carcerária no Brasil - decorrente de uma série de relações sociais pautadas pela
sociabilidade burguesa - e no trabalho encarcerado que aparece como "prêmio" ao preso
e como força de trabalho ainda mais barata ou mesmo gratuita para os donos dos meios
de produção. Nesse sentido, um outro fenômeno emerge que é a entrada do sistema
financeiro, por meio dos bancos, nesta relação.
Recentemente, a forma de pagamento da remuneração do trabalho do presidiário
foi modificada. A partir de 2011, passou a ser executado como arrecadação DAE -
Documento de Arrecadação do Simples Doméstico ou Documento de Arrecadação do
eSocial -, ou seja, o empregador expede a folha, e o pagamento é creditado em uma
conta bancária criada especificamente para esse tipo de recebimento nas agências do
Banco do Brasil, um programa de ressocialização chamado de “cartão trabalhando a
cidadania”. Esse novo formato de pagamento possibilita novas incursões possíveis para
extrair ainda mais o valor produzido pelos indivíduos encarcerados.
Diferentemente de um trabalhador livre, o preso não tem fácil acesso ao seu
saldo bancário, pois não pode ir ao banco, e o banco, por sua vez, não disponibiliza um
funcionário para ir às unidades prisionais. Quando o preso egressa do sistema prisional
após ter cumprido sua pena, existe a possibilidade de conferência dos valores
depositados ao longo do encarceramento, todavia o mesmo acesso é dificultado, visto a
necessidade de atendimento pessoal nas agências para a extratificação do montante
disponibilizado em conta, a depender do período para a conferência solicitado. Outro
agravante se refere a irregularidade dos documentos dos presidiários e ex-presidiários.
Para que se tenha acesso aos cartões, é indispensável a regularização dos documentos
individuais, todavia, em Minas Gerais, mais de 85% dos detentos possuíam CPF’s

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(Cadastro de Pessoas Físicas) irregulares (Minas Gerais, 2013), e segundo os dados do


DEPEN (2017) apenas 58.419 mil pessoas privadas de liberdade obtém a posse do seu
CPF, este número representa apenas 8% da população encarcerada em todo o território
brasileiro, sem mencionar nos demais documentos que são necessários para abrir uma
conta no banco.
Quando questionado aos presos se já haviam, em algum momento, feito tal
solicitação de apuração dos salários recebidos em conta, a resposta foi ‘não’, e podemos
atribuir isso a falta de informação, ou a burocracia criada para dificultar o acesso de
pessoas que fazem pouco uso do sistema bancário, isso sem trazer para nossa discussão
que essas pessoas evitam serem submetidos à julgamentos sociais e maus olhares por
carregarem o estigma social de ex-presidiário. Então, tudo que resta é sacar o que
estiver disponível, sem que seja feita a validação do saldo em conta.
Ao mesmo tempo, contudo, o Estado cobra mensalmente que as empresas façam
esses repasses via DAE, caso não o façam, os presos são impedidos de sair da unidade
prisional, impedindo assim a produção e a valorização do capital do empregador. Esta
política de punição aos capitalistas faz com que eles cumpram rigorosamente os
pagamentos. No entanto, esta verba não é repassada aos presos com tanta rigorosidade,
como exemplo, em uma visita feita em unidades do Estado de Minas Gerais no verão de
2018, o último pagamento feito pelo Estado havia sido efetuado em julho de 2017. E
então fica o questionamento, para onde foi este dinheiro neste meio tempo? Outros
autores como Ribeiro e Cruz (2002) já haviam problematizado este assunto
anteriormente, o que nos leva a indagar a mediação do Estado na esfera da circulação
desse dinheiro.
Segundo a LEP, o dinheiro (do salário) recolhido pelo Estado e depositado no
banco só pode ser retirado pelo preso quando estiver o regime progredido para semi-
aberto ou liberto interino, ou ainda em outras ocasiões de extrema necessidade mediante
a autorização judicial, o preso pode utilizar desse dinheiro para tratamentos médicos
dele ou da família (1º grau, definido pelo Código Civil), desde que comprovem os
gastos, não sendo permitido a utilização da quantia para pagamento da fiança ou
indenização ao Estado, em outras palavras, ele não pode comprar sua própria liberdade.
Na prática observada, as regras não valem a todos, uma vez que, durante as
visitas e as entrevistas foram interrogadas as pessoas privadas de liberdade sobre o
recebimento, e elas informam que é o agente penitenciário que faz tudo, desde a
contratação de sua força de trabalho - fazendo a mediação Estado/Capitalista - até o
recebimento, que muitos não têm acesso ao cartão porque não foram buscar, porque as
unidades não disponibilizam um carro para tal, porque a empresa que leva para fazer o
cartão, não oferece a mesma “gentileza” para buscar, há muitos que estão com os
documentos irregulares e por isso não podem abrir a conta no banco, mas iniciam os
trabalhos recebendo apenas a folha de remição e em seguida começam a receber os
salários que lhes é de direito, contudo, podemos prever as demoras em realizar todos
estes processos burocráticas a uma parcela da classe trabalhadora que é esquecida no
meio social ou relegada às margens da sociedade.
Em teoria, a família ou a pessoa que possua a procuração legítima responsável
pelo preso pode realizar o saque, no entanto, deve ser portador do cartão, e como
explicado anteriormente, a realidade é um pouco mais complicada.
Como mencionamos a pouco, a (baixa ou inexistente) remuneração paga aos
indivíduos encarcerados é administrada pelo Estado. O preso não pode fazer uso do
salário e tampouco possui fácil acesso à consulta do saldo de sua conta. Dessa forma,

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pensemos aqui em todos os problemas de lentidão dos processos, como o fato de muitos
desses presos não serem devidamente representados por defensores público e etc. Nesse
caminho, a maior permanência de um encarcerado que trabalha pode significar mais
tempo de dinheiro capitalizado no sistema financeiro, então, indagamos o interesse do
Estado em mediar essas relações, uma vez que os bancos passam a utilizar esse dinheiro
entesourado como capital.
Sobre o entesouramento, como explana Marx (2014, p. 265).
Trata-se de uma distribuição constantemente variável do tesouro existente na
sociedade, que ora funciona como meio de circulação, ora se aparta
novamente, como tesouro, da massa de dinheiro circulante. Com o
desenvolvimento do sistema de crédito, que segue necessariamente um curso
paralelo ao desenvolvimento da grande indústria e da produção capitalista,
esse dinheiro atua não como tesouro, mas como capital, porém não nas mãos
de seu proprietário, e sim de outros capitalistas, a cuja disposição ele é
colocado.

Assim, indaga-se o que seria o interesse último sobre a adaptação a respeito do


pagamento e da problematização levantada neste tópico sobre como o Estado utiliza as
verbas do sistema prisional para outros fins, que não o do preso-trabalhador, com a
finalidade de discutir no próximo tópico a viabilização da mediação do Estado nas
esferas produtivas e na circulação do que é produzido intramuros carcerários.
Lembrando que a pena que os presos estão cumprindo é a privação de liberdade, estão
privados de vender por si só a sua força de trabalho e não a exploração da mão de obra,
no qual as unidades prisionais se tornaram.

2.4 Circulação de capital: para onde foi o valor produzido pelo trabalho dos
indivíduos encarcerados?

Antes de passarmos ao exame do caso concreto, precisamos retomar algumas


explicações acerca do ciclo do capital. Marx (2013) demonstra que o dinheiro possui
função ímpar no processo de circulação das mercadorias, visto que, como medida de
valor, é forma necessária de manifestação do tempo de trabalho. As mercadorias
tornam-se comensuráveis ao expressarem seu valor em sua forma-dinheiro, ou seja, seu
preço. Dessa maneira, o “preço das mercadorias é a denominação monetária do trabalho
objetificado” (MARX, 2013, p. 176). Em termos da função do dinheiro como meio de
circulação, também deriva sua figura como moeda, cuja determinação e cunhagem é
papel do Estado.
No interior da esfera da circulação é necessário que o processo de troca das
mercadorias tenha-se consumado nas duas metamorfoses, “conversão da mercadoria em
dinheiro e reconversão do dinheiro em mercadoria” (MARX, 2013, p. 242). Essas duas
metamorfoses são complementares, por um lado o dinheiro pode ser convertido em
mercadoria a qualquer momento, por outro, a mercadoria deve se converter em dinheiro
para assumir sua forma cambiável, selando assim o processo de troca em seus dois
momentos: M-D-M (MARX, 2013 e 2014). Durante as metamorfoses do processo de
troca, o dinheiro possui um curso e este, por sua vez, se transforma em uma constante
repetição do processo: “ele transfere a mercadoria das mãos do vendedor para as do
comprador, enquanto, ao mesmo tempo, afasta-se das mãos do comprador para as do
vendedor, a fim de repetir o mesmo processo com outra mercadoria” (MARX, 2013, p.
256).

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O próprio curso do dinheiro trouxe de forma latente a possibilidade de substituir


o dinheiro metálico por outros símbolos de seu conteúdo metálico oficial. Com o
desenvolvimento da sociedade burguesa, a dominância da forma moeda presente na
circulação simples cede lugar ao denominado dinheiro creditício, vigente no capitalismo
sob dominância do sistema de crédito (GERMER, 1994).
O dinheiro creditício surge diretamente da função do dinheiro como meio de
pagamento, condição na qual a alienação da mercadoria é apartada de seu preço
(MARX, 2013). Nessa função, o dinheiro “assume formas próprias de existência nas
quais circula à vontade pela esfera das grandes transações comerciais” (MARX, 2013,
p. 213). Assim, a riqueza capitalista cresce na medida em que o sistema de crédito se
desenvolve, visto a elevação funcional da capacidade monetária operante já que o
processo social de produção se realiza, em grande parte, sem a intervenção de dinheiro
real; o crédito, na medida em que possibilita, acelera e aumenta a concentração de
capital numa só mão, contribui para abreviar o período de trabalho e, com ele, o tempo
de rotação do capital (MARX, 2013).
Isto é, nem mesmo durante a período de entesouramento (da poupança) o
dinheiro está "parado", pois nas mãos do outro capitalista, o banco, o dinheiro é
emprestado como capital adicional para um terceiro capitalista ou, atualmente,
emprestado em forma de títulos da dívida pública para o Estado. Esse movimento
acelera o tempo de rotação do capital e, consequentemente, o sistema de crédito
impulsiona diretamente a acumulação capitalista, "seja permitindo que grande parte do
processo social de produção e de trabalho se realize sem qualquer intervenção de
dinheiro real, seja elevando a capacidade funcional da massa monetária efetivamente
operante" (MARX, 2013, p. 493).
Assim, tem-se que a função dos bancos é atuar enquanto intermediador
financeiro, ou seja, ser o elo entre os agentes superavitários (com excesso de ativos
financeiros) e os entes deficitários (com escassez de ativos financeiros). Esta função
presume que os bancos realizam a canalização de depósitos que não seriam utilizados
no tempo presente para os agentes que precisam de determinado montante de forma
imediata, seja para uso individual ou mesmo como investimento no sistema produtivo,
observando os limites de compulsório estabelecidos pelos entes reguladores da
atividade bancária. No Brasil, o percentual de recolhimento de compulsório é
estabelecido pelo Banco Central do Brasil – BCB, como uma ferramenta de política
monetária, na medida em que alterações nas alíquotas de recolhimento influenciam a
quantidade de moeda disponível na economia. O compulsório representa a parte da
parcela dos depósitos captados pelos bancos que devem ser mantidos compulsoriamente
“esterilizados” no Banco Central (BCB, 2018). Porém, esse tradicional instrumento tem
servido outras funções, como instrumento auxiliar para garantir a liquidez dos
pagamentos, visto que as instituições podem movimentar livremente os valores
correspondentes às exigibilidades de compulsório durante o dia, devendo efetuar o
recolhimento apenas no final do dia.
Visto o adiantamento de recursos aos entes deficitários, estes remuneram aos
bancos um valor superior ao captado, excedente representado pelos juros. Assim, os
bancos obtêm receitas tanto sobre as taxas por seus serviços, tais como conta correntes,
cobrança, serviços de custódia, administração de fundos e etc., quanto sobre as
operações de crédito, empréstimos e operações de títulos e valores mobiliários e
derivativos. Com o avanço tecnológico dos aparatos financeiros e a influência dos
bancos sobre o ambiente produtivo, a relação capitalista assume a sua forma mais

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fetichizada, mais irracional do capital, por ser a que mais esconde o nexo entre a origem
do lucro (o trabalho) e ele próprio (MARX, 2017). “Aqui deparamos com D - D’,
dinheiro que engendra mais dinheiro, valor que valoriza a si mesmo, sem o processo
mediador entre os dois extremos” (MARX, 2017, p. 381).
Assim, de acordo com Carcanholo (2013), o desenvolvimento do sistema de
crédito permite que o dinheiro e o capital apareçam cada vez mais desmaterializado, ou
seja, que a riqueza real se distancie cada vez mais da riqueza patrimonial (ativos reais,
títulos e também dinheiro na forma papel-moeda ou depósitos bancários). Tem-se assim
a produção de um capital fictício, “parte da riqueza nominal ou patrimonial, não
constituída diretamente por bens reais, que se comporta como capital”
(CARCANHOLO, 2013, p. 147). Os bancos, dessa forma, tanto criam crédito adicional,
ou seja, aquele que têm por detrás uma riqueza substantiva por estar atrelada a esfera da
produção, quanto capital que nada possui de substantivo, como por exemplo, quando
financiam a especulação.
Tivemos que fazer tal digressão para demonstrar com se dá a complexa relação
entre indivíduos encarcerados, Estados, sistema bancário e capitalistas. A remuneração
dos trabalhadores carcerários é depositada via DAE no Banco do Brasil, instituição
brasileira de economia mista com participação majoritária da União sobre as ações. Tal
fato amplia o controle e diminui os limites impostos para a realização do valor pelo
Estado extraído do trabalho dos presos visto que, direta ou indireta, a remuneração
destes trabalhadores pode ser transformada em capital financeiro e utilizada das mais
diversas formas. Diante do exposto e realizando um paralelo com o trabalho carcerário,
temos que o Estado, a partir de trabalho humano dos presos extraído em condições
degradantes, possui não apenas um papel importante na esfera da produção, como
também da circulação do valor produzido por esses indivíduos.

3. Considerações Finais

Neste ensaio teórico-empírico nos propusemos analisar como o sistema prisional


brasileiro contribui para a acumulação de capital por meio do sistema financeiro, a partir
da análise do sistema prisional mineiro, o qual atualmente é o que mais utiliza do
trabalho encarcerado no país.
Numa sociedade regida pelo capital, percebemos que sua natureza imanente de
contradição e de luta de classes atravessa os muros das penitenciárias e ali também
exerce sua violenta força contra a natureza humana. Temos então que, a superpopulação
de encarcerados se torna meio para a acumulação de capital, visto que estes indivíduos
são alvos fáceis para a superexploração da força de trabalho e através de um discurso de
ressocialização, profissionalização dos detentos para que estes possam se reinserir na
sociedade após o cumprimento da pena, o capital também se apropria de mão de obra
encarcerada, desafiando cada vez mais os limites impostos à sua destrutiva lógica de
expansão.
Marx (2013) salienta que um dos elementos que caracteriza o processo de
trabalho no modo de produção capitalista é que tanto o possuidor de dinheiro, isto é, o
capitalista, quanto o possuidor da força de trabalho, isto é, o trabalhador, estabeleçam
uma relação mútua como iguais possuidores de mercadorias no mercado de trabalho .
Nesse sentido, para que tal relação seja efetivada, tem-se que dois pressupostos devem
ser observados, quais sejam: que a mercadoria força de trabalho seja vendida pelo seu
possuidor, ou seja, o trabalhador, e que para vendê-la este possa dispor-se dela,

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portanto, ser livre proprietário de sua capacidade de trabalho. Porém nesta relação há
uma terceira base que é o Estado (burguês).
Diante do exposto, observamos que, na medida em que o Estado media a relação
entre capital e trabalho no sistema prisional, temos que o detento tem, além da privação
de sua liberdade, também privado o direito de vender por si só sua força de trabalho,
tornando-se uma própria mercadoria que produz outras mercadorias (ISSA, 2017),
muitas vezes através de um trabalho precariamente remunerado, ou mesmo gratuito.
Assim o que a materialidade do fenômeno estudado nos mostra é a utilização da
força de trabalho dos presos como exploração de mão de obra abaixo do seu valor
mínimo necessário para reprodução da força de trabalho, assemelhando-se, portanto, à
escravidão moderna e, com a instituição de um sistema punitivo estrutural (RUSCHE;
KIRCHHEIMER, 2004), enfatizando que a superpopulação carcerária e as péssimas
condições e relações de trabalho postas, propiciam a formação de um exército industrial
de reserva para as iniciativas privadas e públicas.
Entendemos, portanto, que o trabalho encarcerado representa uma importante
engrenagem ao capital e a extração de mais valor, tanto pelo Estado, quanto por
capitalistas parceiros ao sistema prisional, à despeito de medidas que deveriam preparar
os detentos à ressocialização com condições dignas de reprodução da própria vida.
Todavia, fica obscuro a estes e a sociedade que, além da privação da liberdade
resultante da pena legal pelo delito cometido, esses indivíduos são novamente punidos
na medida em que as regras de remuneração da venda de sua força de trabalho são
diferentes e muito mais precárias que as concernentes aos demais trabalhadores
assalariados no país. Nesse contexto, o trabalho carcerário, como já apontado por
Antero (2008), se transfigura em trabalho escravo temporário pois, muito mais que um
descumprimento das leis trabalhistas, essa relação de trabalho não concede ao preso
nem ao menos o direito de vender por si só a sua força de trabalho.
Neste movimento, ainda observamos que o Estado exerce um duplo papel sobre
o processo de valorização do valor através do trabalho encarcerado na medida que, além
de ditar as regras quanto à produção de valor por esses indivíduos, também possui
controle quanto à esfera da circulação, visto que toda a remuneração, quando existente,
a estes trabalhadores encarcerados é depositada em um banco de economia mista, com
participação majoritária da União sobre as ações. Uma vez dentro desta instituição
bancária, a remuneração destes trabalhadores, cujo controle e acesso é dificultado, pode
ser transformada em capital financeiro e utilizada das mais diversas formas, assim como
quaisquer outras poupanças.
Por fim, pontuamos algumas limitações inerentes à pesquisa e que podem
representar questões potenciais para futuros estudos. A primeira refere-se ao
entendimento aprofundado de como a superpopulação carcerária forma um exército
industrial de reserva, através da mediação do Estado, para iniciativas públicas e
privadas. Em segundo lugar, faz-se necessário debruçar-se sobre o papel do Estado na
esfera da circulação, visto às dificuldades encontradas em evidenciar a utilização precisa
da remuneração dos trabalhadores encarcerados, depositadas em um banco estatal,
através apenas da utilização de entrevistas e dados secundários. Posteriormente,
aconselhamos que na agenda de pesquisa para estudos futuros seja contemplado outros
estados a fim de maximizar o olhar crítica para a realidade concreta do sistema prisional
brasileiro, nos desvencilhando dos números expostos pela mídia e pelo ordenamento
jurídico atual.

600
I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

GESTÃO DE RISCO E O SISTEMA DE SEGUROS NO MOVIMENTO DE


REPRODUÇÃO DO CAPITAL

Rossi Henrique Soares Chaves


Universidade Federal de Minas Gerais
rossichaves@hotmail.com

Fernanda Venturato Roquim


Universidade Federal de Lavras
fer_venturato@yahoo.com.br

Resumo
O objetivo deste ensaio foi realizar algumas considerações sobre a gestão do risco, que
inclui avaliar como ela acontece atualmente e sua função na produção capitalista. Para
tanto, inicialmente, apresentamos uma definição do termo ‘risco’ e expomos brevemente
como a literatura trata o termo, adiante é realizada uma contextualização ao mercado
segurador brasileiro. Adiante, discutimos introdutoriamente a função do risco e do
mercado segurador na reprodução do capital a partir da crítica da economia política
marxiana. O principal apontamento que pudemos constatar com este trabalho é o
questionamento da maneira como a gestão do risco é abordada nas literaturas existentes
específicas ao tema, como um elemento intrínseco à natureza humana sem levar em
consideração sua particularidade no modo de produção capitalista. Para o capitalista
individual, os custos da prevenção das principais causas de perdas é, geralmente,
associado à diminuição do lucro. Mas na prática, Marx demonstra que este custo vem da
repartição da massa de mais-valor produzido. Marx também ressalta que, neste sistema
de produção, os trabalhadores são a parcela que estão mais expostas aos riscos e é a porção
menos protegida pelo mercado segurador. Por fim sugerimos a necessidade de pesquisas
futuras que aprofundem a temática.
Palavras-chave: Gestão de risco; seguros; crítica da economia política.

Notes on risk management and the insurance system in capital reproduction


movement

Abstract
The aim of this paper is to clarify some considerations about risk management, evaluating
how it actually occurs and its function in capitalist production. Initially, we present a
definition of the term 'risk' and we briefly explain how the literature treats the term. Also,
we bring a contextualization to the brazilian insurance market. Later, we discussed the
role of risk and the insurance market in the reproduction of capital according to the
marxian critique of political economy. The main point that we can observe with this work
is the questioning of how risk management is approached in existing literature, specific
to the theme, as an intrinsic element to human nature without taking into account its
particularity in the capitalist mode of production. For the individual capitalist, the costs
of preventing the major causes of losses are usually associated with a decrease in profit.
However, in practice, Marx demonstrates that this cost comes from the distribution of the
mass of plus-value produced. Marx also points out that, in this production system,
workers are the most exposed to risks and they are the portion less protected by the

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I Seminário Crítica da Economia Política e do Direito
21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

insurance market. Finally, we suggest the need for future research that deepens the theme.
Keywords: Risk management; insurance; critique of political economy.

INTRODUÇÃO
Atualmente existem inúmeras definições para a palavra “risco”. Uma delas, que
consideramos apropriada para a compreensão do presente ensaio, é que o risco é
caracterizado pela sua forma quantificável de estabelecer a probabilidade de um
acontecimento em um determinado evento futuro e sua gravidade, capaz de causar perdas
financeiras ou de vidas (DAMODARAM, 2008). Esta definição nos leva ao objetivo deste
trabalho, que é realizar algumas considerações acerca da gestão do risco atual e sua função
na produção capitalista.
O artigo está divido em três seções. Na primeira, expomos a forma como o risco
é abordado na literatura, incluindo um breve histórico sobre o assunto. Na segunda,
trouxemos um panorama do mercado segurador brasileiro, com o intuito de contextualizar
melhor e exemplificar a dinâmica dos mercados seguradores. Na terceira, abordamos a
função da gestão do risco a partir da crítica da economia política marxiana. Por fim,
apresentamos as principais conclusões e algumas propostas de estudos futuros.

RISCO E REPRODUÇÃO DO CAPITAL


A gestão do risco aparece em algumas bibliografias específicas ao tema
(BERNSTEIN, 1997; GONZÁLEZ, 2003; GARCIA e GIAMBIAGI, 2010), como
existente desde antigas civilizações, ao apresentar o ser humano como apreensivo diante
as incertezas do futuro. Consequentemente, este fato acarretou na necessidade de se criar
e desenvolver técnicas para se resguardar de danos ao seus patrimônios ou à entes
familiares. Bernstein (1997) chega a apontar que a preocupação com os riscos remonta-
se além do século XVIII a.C com o “Código de Hamurabi” e suas cláusulas sobre a
bodemeria1.
Segundo González (2003), os comerciantes mesopotâmicos e fenícios foram os
primeiros a criar um sistema de reposição de cargas de navios, em caso de eventuais
roubos ou naufrágio de suas embarcações durante a atividade comercial, dando origem
ao princípio dos seguros como conhecemos hoje. O autor também descreve que, em 1347,
na cidade de Gênova, era firmada a primeira apólice2, referente à um seguro marítimo,
sendo este o marco do início das atividades seguradoras comerciais. Entretanto, a
atividade seguradora ganhou impulso apenas por volta dos anos 1600, estimulada pelas
Grandes Navegações, pela Revolução Industrial e pelo desenvolvimento da teoria das
probabilidades associada à estatística (ENS, 2018).
Marx (2017) aponta que os princípios das atividades marítimas, ainda na idade
média, foram importantes na formação dos preços (que viria a ser determinado de forma
mais incisiva pelo capital industrial). A navegação e sua expansão pelo comércio seria
impossível sem o emprego de marinheiros, ou seja, de trabalhadores assalariados3. Com
isso Marx (2017) aponta que desde os primórdios da formação capitalista do mais-valor,

1 “Empréstimo ou hipoteca contraída pelo proprietário de um navio para financiar sua viagem.”
(BERNSTEIN, 1997, p. 95)
2 Contrato de seguro.
3 Marx (2017) ressalta que no período de expansão das navegações, as relações salariais ainda
variavam bastante, inclusive pela existência do trabalho escravo.

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os armadores4 incluíam na sua taxa de lucro o custo adicional para cobrir o seguro, assim
como os desgastes do navio, dado o grande risco de suas atividades e necessidade de se
garantir os lucros obtidos.
Em linhas gerais, muitos estudiosos reafirmam a importância dos mercados
seguradores para o desenvolvimento capitalista. Kugler e Ofoghi (2005) trazem um dado
interessante, em 1964 foi realizada a primeira conferência da UNCTAD (United Nations
Conference on Trade and Development), onde foi reconhecido que os mercados de
seguros são essenciais para o crescimento e desenvolvimento econômico dos países.
Além disso, o Comitê Europeu de Seguros (CEA, 2006) traz algumas informações
interessantes. Com alguns dados, eles demonstram a interdependência da economia e do
mercado de seguros que, concomitantemente, de acordo com a referência, são capazes de
produzir desenvolvimento e estabilidade, na medida em que proporciona a redução do
capital necessário para funcionamento das empresas e promove um ambiente de trabalho
mais seguro.
Nesse mesmo sentido, Arena (2008) irá dizer que as atividades de seguro, tanto
como intermediário financeiro, quanto transferidor de riscos e indenizações, contribuem
para o desenvolvimento econômico ao gerenciar os riscos de maneira eficiente e por
mobilizar a formação de poupança que, segundo ele, gera investimentos. Han et al.
(2010), além dos fatores já supracitados, apontam que uma das contribuições do mercado
de seguros para a economia está na possibilidade de substituição dos programas de
seguridade social por repartição simples5.
Além de fatores socioeconômicos, essenciais para a reprodução do capital, como
podemos ver nos autores acima citados, não podemos excluir da análise o crescente
desenvolvimento das técnicas estatísticas ligadas aos cálculos de probabilidade que
proporcionam avanços essenciais para auxiliar na gestão do risco. Tanto é que Berstein
(1997) afirma que o desenvolvimento da análise de risco permite ao usuário optar entre
alternativas e facilita a tomada de decisões, sendo, ainda para o autor, o seu
desenvolvimento um dos principais catalisadores que impulsionam a sociedade ocidental
moderna. Na posição de Berstein (1997) é possível perceber o patamar decisivo que as
técnicas estatísticas possuem neste cenário.
Para compreender um pouco mais sobre os mercados seguradores e suas
dinâmicas, trazemos a seguir algumas informações do mercado segurador nacional, de
forma que podemos perceber algumas características deste mercado já trabalhadas nesta
seção.

MERCADO SEGURADOR BRASILEIRO


De acordo com a Superintendência de Seguros Privados (SUSEP, 2018) a
atividade seguradora no Brasil teve início em 1808, com o surgimento da Companhia de
Seguros BOA-FÉ, que começou a operar em seguros marítimos, logo após a abertura dos
portos ao comércio internacional. Entretanto, tais atividades ainda eram reguladas pelas
leis portuguesas e foi apenas com a promulgação da lei n° 556, de 25 de junho de 1850,
que tratava do “Código Comercial Brasileiro”, sendo esta lei fundamental para o incentivo
à atividade seguradora nacional, que as seguradoras passaram a operar não só em seguros
marítimos, mas também, em seguros terrestres. Foi também nesta época que muitas
seguradoras estrangeiras se instalaram no país.

4 Responsáveis pelas atividades comerciais marítimas.


5 Sistema de financiamento previdenciário em que não há geração de fundos. Todo o montante
arrecadado é utilizado no pagamento dos benefícios. Conhecido por propor um “pacto entre gerações”.

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

Em 1966 foram reguladas todas as operações de seguros e resseguros6 no Brasil,


com a instituição do Sistema Nacional de Seguros Privados, que se divide pelo Conselho
Nacional de Seguros Privados (CNSP); Superintendência de Seguros Privados (SUSEP);
Instituto de Resseguros do Brasil (IRB); sociedades autorizadas a operar em seguros
privados; e corretores habilitados (SUSEP, 1997). Podemos destacar ainda, que, em 2007,
ocorre a abertura do mercado brasileiro de resseguros, antes monopólio do IRB, que
possibilitou a atuação de resseguradoras estrangeiras no país (SILVA, 2015).
Desde então, o mercado segurador brasileiro tem avançado de forma acelerada.
Atualmente este mercado é dividido em 4 setores: ramos elementares, que trata dos
seguros do ramo não-vida, como seguros de automóveis e imóveis; cobertura de pessoas,
que trata dos planos de previdência e pensões; capitalização, que trata do comércio de
títulos de capitalização e; saúde suplementar, que trata dos planos de saúde privados.
Em 2001, o montante total de prêmios7 em ramos elementares equivalia
aproximadamente R$ 24 bilhões de reais e representava 1,84% do PIB, enquanto que, em
2015, este montante chegou à R$ 184 bilhões de reais participando em 3,12% do PIB, um
aumento bruto de 662% neste período (SILVA, 2015). Além disso, o autor traz outro dado
instigante. A arrecadação emitida8 para o segmento de seguros rurais, em 2001, foi um
pouco mais de R$ 81 mil reais, enquanto que, em 2015, este valor sobe para mais de R$ 3
milhões de reais, o que caracteriza uma variação exata de 3931% no período (SILVA,
2015, p.9). O Gráfico 1 mostra a arrecadação do mercado segurador em todos os ramos,
em bilhões, para os anos de 2012 a 2016.

Gráfico 1: Arrecadação do mercado segurador em bilhões (CNseg, 2016, p.33)

6 Seguro realizado por empresa seguradora, no qual o segurador se responsabiliza, total ou


parcialmente, pelo risco de uma operação já coberta por outro segurador.
7 Pagamento à companhia seguradora pela cobertura contratada.
8 Prêmio emitido líquido.

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

O crescimento nominal neste período foi de 35,5% em ramos elementares, 60,8%


em cobertura de pessoas, 27,1% em capitalização e 68,6% em saúde suplementar. O
mercado de seguros teve um aumento de 56,5% neste período, representando 6,4% do
PIB em 2016, movimentando R$ 620 bilhões de reais do PIB, e arrecadando R$ 403
bilhões, quando em 2012 representava 5,4% do PIB, movimentava R$ 480 bilhões de
reais e arrecadou R$ 257 bilhões de reais (CNseg, 2016, p.33). Somente a saúde
complementar obteve de arrecadação nominal R$ 164 bilhões de reais em 2016.
O relatório da CNseg (2016, p.85) traz ainda a arrecadação das seguradoras
associadas à FenaSaúde, do total arrecadado pelo mercado segurador de saúde em 2016,
apenas 68,24 bilhões são de seguradoras associadas à FenaSaúde. Entre elas, a que mais
arrecadou foi a Bradesco Saúde S.A., R$1,9 bilhões, seguido da Amil Assistência Médica
Internacional S.A, R$1,69 bilhões.
Félix (2011), afirma que existem dois fatores principais que justificam tais
avanços. O primeiro, diz respeito à própria estabilidade econômica do país, que
proporciona aos consumidores e empresas maior capacidade de planejamento, o que
reflete no interesse em produtos de seguro. E o segundo fator, e talvez o mais significativo
de acordo com ele, é a diversidade do mercado interno brasileiro, advinda da elevação do
poder de consumo de grande parte da sociedade. “A chamada “nova classe média”, (...),
busca agora meios para preservar seus bens adquiridos e garantir segurança e um futuro
mais estável para sua família” (FÉLIX, 2011, p.6).
No Gráfico 2 podemos ver os impostos recolhidos por todo o mercado segurador
também nos anos de 2012 à 2016.
Gráfico 2: Tributos do mercado segurador em bilhões (CNseg, 2016, p.39)

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

O percentual de impostos recolhidos sobre a arrecadação total foi de 3,9% para


2012, 3,6% para 2013, 4,3% para 2014, 2015 e 2016. Mesmo este mercado mostrando
um crescimento expressivo com relação ao valores arrecadados, mostrados no Gráfico 1,
os tributos pagos não aumentam proporcionalmente. Podemos constatar isto focando nos
anos de 2014 à 2016. Neste período as arrecadações aumentaram 23,4% mas a tributação
se manteve 4,3% do montante das arrecadações. Além disso, de 2015 para 2016, houve
uma redução de 0,8% em valores nominais de outros tributos (CNseg, 2016, p. 39). Em
2016 foram recolhidos R$17,3 bilhões em impostos.
A CNseg (Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência
Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização) é uma associação civil, fundada em
2008, que congrega as federações dos quatro diferentes mercados de seguros: FenSeg
(Federação Nacional de Seguros Rurais); FenaPrevi (Federação Nacional de Previdência
privada e Vida); FenaSaúde (Federação Nacional de Saúde Complementar); FenaCap
(Federação Nacional de Capitalização), sendo assim é um órgão fundamental para o
mercado segurador. Ela foi criada com o intuito de promover o desenvolvimento do
mercado segurador nacional. Dentre algumas de suas atribuições está o encaminhamento
de propostas do mercado segurador ao governo. Em 2016,
“por conta da assunção de Michel Temer à Presidência da República, na
sequência do impeachment de Dilma Rousseff em 2016, a CNseg encaminhou
as propostas do mercado segurador brasileiro aos Ministérios da Fazenda
(Tarcisio Godoy), do Planejamento (Dyogo de Oliveira), ao secretário
executivo do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da
República (ministro Wellington Moreira Franco) e a assessoria do Presidente
(Roberto Brant)”(CNseg, 2016, p.107).

No mesmo ano esta confederação entrou com uma ação no Supremo Tribunal
Federal, alegando inconstitucionalidade da Lei 13.169/15, que propõe o aumento da
alíquota da contribuição social de 15% para 20% para as seguradoras, sociedades de
capitalização e instituições financeiras. Eles alegaram que já existia a Lei 11.727/08, que
no passado, aumentou a alíquota da Contribuição Social Sobre Lucro Líquido (CSLL) de
8% para 15% para as instituições financeiras (CNseg, 2016, p.123). Ainda de acordo com
a confederação,
“a prevenção é um instituto processual aplicável quando há coincidência total
ou parcial de objetos e visa evitar o risco de decisões contraditórias ou

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21 e 23 de Maio de 2018, Universidade Federal de Minas Gerais

conflitantes. Entre os argumentos jurídicos utilizados, destaca-se o fato de os


bancos e as seguradoras possuírem modelos de negócios distintos com
capacidade contributiva distinta” (CNseg, 2016, p.123).

Ou seja, ainda realiza mediações políticas para a manutenção e ampliação da arrecadação


das seguradoras, como nesse caso da ação contra o aumento de impostos. Segundo dados
da presidenta da FenaSaúde Solange Beatriz9, apesar da crise econômica por qual o país
passou no ano de 2016, com cerca de 12 milhões de desempregados, e com a redução de
1,4 milhões de contribuintes aos planos de saúde suplementar, os dados revelam que a
arrecadação geral continuou aumentando.
Outro dado interessante que pode ser encontrado no site da CNseg é a composição
do conselho diretor que é o órgão dirigente da CNseg:
⚫ Presidente: Márcio Serôa de Araujo Coriolano - Bradesco Saúde S/A
⚫ 1º vice presidente: Jayme Brasil Garfinkel - Porto Seguro Companhia de Seguros
Gerais
⚫ Vice-presidentes: Gabriel Portella Fagundes Filho - Sul América Companhia
Nacional de Seguros; Mário José Gonzaga Petrelli - Icatu Seguros S/A; Osvaldo
do Nascimento - Itaú Vida e Previdência S/A;
Como pode ser visto na composição diretiva, a CNseg é um órgão patronal que congrega
as principais seguradoras do Brasil. Que também possui um sindicato patronal, a Fenaseg
(Federação Nacional das Empresas de Seguros Privados, de Capitalização e de
Previdência Complementar Aberta), possuindo diversos sindicatos filiados.

PENSANDO A FUNÇÃO DO RISCO E DO SEGURO NA REPRODUÇÃO DO


CAPITAL A PARTIR DA CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA MARXIANA

Para uma análise atenta a realidade, consideramos ser preciso ir além da análise
fenomênica da gestão de risco e de seguro, entendendo esses elementos como um
desdobramento da sociabilidade burguesa e do movimento de acumulação do capital, que,
por um lado, visa antecipar riscos e reduzir perdas às custas das taxas de mais-valor, e por
outro, revela a potencialidade da ciência estatística em demonstrar tendências do
movimento de acumulação do capital. Diante disso, indicamos ser necessário analisar o
desenvolvimento do mercado de seguros sob dois prismas, o primeiro que é enquanto
forma das classes capitalistas em preservar bens adquiridos, e segundo enquanto um
mercado autônomo e lucrativo que contribui para o movimento de reprodução do capital.
Marx (2017), n’O Capital volume III, relaciona o desenvolvimento do mercado
de seguros com o desenvolvimento da produção capitalista. Como se não bastasse ser o
próprio Estado uma forma de assegurar o grande capital (MARX e ENGELS, 1978), seja
através das mediações políticas e do direito ou pelo fundo público, em relação ao segundo,
Marx (2013), n’O Capital volume I, diz que a dívida pública tornou-se uma das principais
alavancas da acumulação primitiva e que, podemos dizer, ainda hoje é fonte de rentismo
financeiro. Marx (2014), n’O Capital volume II chega a apontar que as seguradoras
podem distribuir, entre a classe capitalista, as perdas de capitalistas individuais, mas sem
impedir que as perdas se caracterizem como perdas sob o ponto de vista do capital social
total. Em uma crítica dirigida à Girardin, Marx e Engels (1978) tratam de apontar a não
“independência” do seguro frente a produção capitalista.
Marx (2011, p.394), nos Grundrisse, é categórico quando diz que “os riscos da

9 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=eNyLCOcjiJE&feature=youtu.be>

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produção têm de ser compensados.”. Na própria dinâmica do capital, são várias as


ocasiões que aparecem como momentos de risco, seja nas oscilações de preço ou pela sua
desvalorização pelo aumento da força produtiva. Mas como Marx aponta, todos esses
riscos devem ser compensados no processo de valorização. Nos economistas vulgares, o
risco aparece como determinante do lucro, quando na verdade é a ameaça de que o capital
fique estagnado em uma das fases de seus ciclos (MARX, 2011). É nesse cenário que o
seguro cumpre a importante função “de cobrir o perigo da desvalorização que ocorre nas
metamorfoses do processo total” (MARX, 2011, p.965).
Uma parte do lucro adicional se apresenta ao capital somente como uma
compensação pelo risco que corre para fazer mais dinheiro; um risco em que o
próprio valor pressuposto pode evaporar-se. Nessa forma, o lucro adicional
aparece perante o capital como lucro a ser necessariamente realizado para
garantir sua reprodução. As duas relações naturalmente não determinam o
mais-valor, mas fazem com que seu pôr apareça como uma necessidade externa
para o capital, e não só como satisfação de sua tendência ao enriquecimento.
(MARX, 2011, p.965)

O que Marx está nos dizendo é que o risco é tratado pelos economistas vulgares
como algo externo ao próprio movimento de valorização, e não como a necessidade do
capitalista em reduzir suas perdas. A partir de Marx é possível enxergar a gestão do risco
como potencializada a partir das relações sociais capitalistas. É no processo de
valorização do valor que as “perdas” devem ser antecipadas e prevenidas.
Para Marx (1980), no primeiro volume das Teorias do Mais Valor, na concepção
burguesa o lucro é o prêmio do risco. Isso porque, para o capitalista, o salário é o
adiantamento seu ao trabalhador. Para Marx (1980) o que acontece é exatamente o
contrário, o capitalista sempre se apropria da mercadoria trabalho antes de remunerá-la.
Marx (1980) aponta que o capitalista acredita correr dois riscos a partir do
“adiantamento” que ele supostamente realiza. O primeiro, é o risco de não vender as
mercadorias produzidas no mercado de trabalho e, consequentemente, não transformá-
las em dinheiro. O segundo, é precisar vender as mercadorias produzidas a baixo do
preço de custo. Acontece que o capitalista, ao comprar a força de trabalho, a compra
abaixo do seu valor, sendo assim, o suposto risco que ele corre ao tentar transformar
mercadorias em dinheiro, tem como maior ensejo, vender as mercadorias acima de seu
valor.
Vale retomar que Marx (2017, p. 63), n’O Capital III, aponta que “o mais-valor
contido na mercadoria não se realiza mediante sua venda, mas emana da própria venda.”.
Ou seja, no quadro de não venda da mercadoria, é o trabalhador que será despedido. Ou
ainda, na hipótese de venda da mercadoria abaixo do preço de mercado, a tendência é a
retração do salário abaixo da média. Nesse quadro o risco com que corre o trabalhador,
é muito mais elevado que o suposto risco do capitalista.
Marx (1985), no terceiro volume das Teorias do Mais Valor, faz uma análise à
decomposição do lucro proposta de Ramsay. Ramsay que diz que é “possível decompor
o lucro do empresário em: (1) salário do empresário; (2) seguro contra o risco; (3) ganho
suplementar.” (RAMSAY apud MARX, 1985, p.1400). Marx (1985) irá apontar que, no
que se refere à (2), ele não se decompõem do lucro do empresário. Para tanto, ele cita
Corbet que, como Ramsay, aponta que, “o seguro que cobre o risco apenas reparte as
perdas dos capitalistas por igual ou de maneira mais geral pela classe toda” (MARX,
1985, p.1400). Entretanto Marx ressalta que
Desse prejuízo repartido por igual tem de deduzir-se o lucro das companhias
de seguros, dos capitais que, empregados no negócio de seguros, encarregam-

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se dessa repartição. Essas companhias recebem parte da mais-valia, como os


capitalistas comerciais ou financeiros, sem ter participado diretamente na
produção dela. (MARX, 1985, p.1400)

Marx (1985) aponta que a apropriação de mais-valor pelas companhias de seguro


é resultado da repartição do mais-valor entre as diversas formas de capitalistas, e das
deduções destes com os capitalistas particulares. Sendo assim, para Marx, o seguro
contra o risco não deduz da produção de excedente, como em Corbet e Ramsay, pois “o
trabalhador naturalmente não pode fornecer mais que seu trabalho excedente” (MARX,
1985, p. 1400). A garantia da posse do fruto do trabalho excedente pelo capitalista, da
riqueza acumulada e da prevenção de acidentes, em vez de ser garantido pelos próprios
capitalistas, através do dispêndio do seu trabalho ou dos produtos de seu trabalho na
produção capitalista, Marx (1985, p. 1401) afirma que o capitalista “emprega método
mais garantido e mais barato, deixando para um ramo do capital o negócio de seguro.”.
Para Marx (1985, p. 1401) “o seguro é pago com parte da mais-valia, cuja repartição - e
garantia - pelos capitalistas, nada tem a ver com a origem e magnitude dela.”. No que se
refere ao item (3) apontado por Ramsay, Marx (1985) aponta que o ganho suplementar,
que abrange a possibilidade de ocorrência do risco, ou seja, a possibilidade de perda dos
ganhos e do capital, apresenta-se como um seguro com participação, na mais-valia geral,
de “determinados capitais de um ramo particular” (MARX, 1985, p. 1401).
Vejamos que a consolidação de uma sociedade baseada na troca de mercadorias e
na valorização do valor torna capaz o avanço da gestão do risco, a tal ponto de gestar
um próprio ramo do capital que é o mercado de seguros. Neste cenário, o conhecimento
científico produzido por campos como a matemática, estatística e atuarial, é utilizado
para garantir e ampliar a acumulação de capital em campos ainda não explorados, ou
seja, como mediação para o fim baseado na expansão da acumulação de capital.
A gestão de riscos aparece também como mercadoria no mercado de seguros na
medida em que é revelada a potencialidade da estatística em perceber tendências no
processo de valorização na sociabilidade capitalista, ou seja, é possível, a partir de
uma análise particular, se perceber peculiaridades de cada caso a ser gestionado o risco,
assim como do movimento universal, que é a relação social capitalista. Hoje, isso fica
cada vez mais fácil, pois vivemos a era da produção de bancos de dados, por exemplo,
informações sobre gostos culinários, lugares que frequentamos e etc. A gestão destes
dados revelam tendências, que sob a ótica capitalista, podem ser mercantilizadas.
Nesse quadro os seguros operam na dinâmica de prever o futuro para antecipar
possíveis perdas, em todos os âmbitos em que atua. Exemplo, um plano de saúde privado
é uma face da mercantilização da saúde, pois passa a quantificar doenças e etc. O seguro
de vida é a mercantilização da esperança e da incerteza da vida, geralmente restrita a
estratos mais ricos da sociedade, que tem condição de acumular grandes margens de
capital próprio. Um proletário não consegue acumular dinheiro para sobreviver e ainda
pagar um seguro de vida.
Em análises como a de Félix (2011), justamente esses elementos são de certa
forma escamoteados, mas o autor aponta para uma tendência interessante (restringido à
classe média) de o seguro ser um forma de garantir segurança e preservação a bens
adquiridos. Se ampliarmos essa visão para as classes burguesas e capitalistas, certamente
veremos que elas têm muito mais a preservar do que as classes médias e pobres, no que
se refere à bens adquiridos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Nosso objetivo neste trabalho, como sugere o próprio título, foi trazer alguns
apontamentos, ainda que incipientes e aqui reconhecemos, a respeito da gestão do risco e
do sistema de seguros atualmente e qual a sua função na lógica do sistema de produção
capitalista. Para tanto trouxemos algumas definições do termo ‘risco’ que são encontradas
na literatura, uma contextualização abordando um pouco do mercado de seguros nacional,
e a potencialidade de se abordar, em pesquisas futuras, de modo mais profundo, tais
temáticas a partir de alguns conceitos presentes na crítica da economia política marxiana.
A principal consideração realizada é justamente o questionamento de como o risco
e a gestão de risco são tratados hoje, na literatura específica ao tema, como um elemento
que está intrínseco a natureza humana, e quando analisado no contexto do modo de
produção capitalista relega ao capitalista a personificação da assunção do risco no
processo produtivo. Do ponto de vista do processo de produção capitalista, é preciso
dizer, existem sim alguns riscos que se caracterizam dessa forma, como por exemplo, um
terremoto que tenha destruído uma indústria. Mas o capitalista, do ponto de vista do
individual, trata de se prevenir de alguns riscos essenciais para a valorização do valor,
como por exemplo, a não venda de mercadorias, sendo esse o seu principal risco no
processo de valorização. Tal risco tende a ser abordado como um custo que reduz o lucro
do capitalista individual, quando, na realidade, como demonstrou Marx, este custo vem
da repartição da massa de mais-valor produzido. Por fim chamamos atenção também que,
no modo de produção capitalista, os trabalhadores são a parcela que, na verdade, estão
mais expostos à riscos e são a porção menos protegida pelos mercados seguradores.
Analisar mais profundamente e particularmente o contexto segurador brasileiro
sob a luz da crítica da teoria política marxiana é uma proposta para estudos futuros, que
pelo estágio ainda incipiente da pesquisa aqui exposta, não pôde ser realizado. É
importante e, por isso, necessária uma abordagem a respeito dessa importante temática
que revela sua real função, indo até a raiz, no movimento de reprodução do capital.

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FINANÇAS E GESTORES DO CAPITAL:


DÚMENIL & LÉVY E OS PROBLEMAS DA CLASSE E DA ROTAÇÃO1

Victor da Silva Castro


Universidade Federal de Juiz de Fora
victor.scastro@hotmail.com

RESUMO
Neste ensaio, será apresentado o pensamento de Duménil e Lévy, acerca das finanças e
dos gestores, e se discutirá o que é estabelecido pelos autores, procurando-se também
colocar assuntos que não são tão explorados por eles. Os autores franceses elaboram uma
discussão sobre o capitalismo no período neoliberal, apresentando um panorama anterior
ao período e desenvolvendo uma discussão acerca da financeirização, que foi estabelecida
a partir dos anos 1970. Para os autores, um fato essencial para o desenvolvimento do
capitalismo atual é a atuação dos gestores, sendo que a partir dos anos 1970 os gestores
financeiros se sobressaíram. Os gestores são vistos pelos autores como uma nova classe,
formando uma configuração tripolar de classe, junta às classes capitalista e popular, e
detendo uma posição relevante na sociedade. A partir disso, a discussão, aqui apresentada,
converge a problematização da classe gerencial e do desenvolvimento que os autores dão
aos gestores e às finanças. Junto a isso, adiciona-se a discussão sobre os gestores no
Estado e a sua rotação, transitando entre o setor privado e o governo, que não é visada
pelos autores, mas coloca-se como importante para a identificação da realidade atual do
capitalismo.

PALAVRAS-CHAVE: Duménil e Lévy; Finanças; Gestores do Capital; Rotação.

FINANCE AND MANAGERS OF CAPITAL:


DÚMENIL & LÉVY AND THE CLASS AND ROTATION PROBLEMS

ABSTRACT
In this essay, the thought of Duménil and Lévy, about finance and managers, will be
presented, and will be discussed what is established by the authors, trying also to put
subjects that are not so explored by them. The French authors elaborate a discussion on
capitalism in the neoliberal period, presenting a panorama before the period and
developing a discussion about the financialization, which was established from the 1970s.
For the authors, an essential fact for the development of current capitalism is the
performance of managers, and from the 1970s financial managers excelled. Managers are
seen by the authors as a new class, forming a tripolar class configuration, joined to the
capitalist and popular classes, and holding a relevant position in society. From this, the
discussion, presented here, converges the problematization of the managerial class and
the development that the authors give to the managers and to the finances. Alongside this,
we add the discussion about managers in the State and their rotation, transiting between
the private sector and the government, which is not targeted by the authors, but it is
important to identify the current reality of capitalism.

1
Agradeço à Fapemig – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais, pelo apoio ao projeto
que tornou possível a presente publicação.

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KEYWORDS: Duménil e Lévy; Finance; Capital Managers; Rotation.

1. INTRODUÇÃO

Acerca do capitalismo atual ocorrido a partir dos anos 1970, Duménil e Lévy
contribuíram fazendo um apanhado de como o neoliberalismo, a financeirização e a
globalização surgiram como consequência deste processo. Junto a isso, os autores
exploram também como os gestores aumentaram sua influência junto aos grupos no
poder, transformando-se em uma nova classe.
Após a crise dos anos 1970, o capitalismo buscou uma nova adaptação, que
segundo Duménil e Lévy se deu com a segunda hegemonia do capital financeiro,
adaptando a economia de forma a beneficiá-lo. Assim, a financeirização da economia
buscou criar uma maior liberdade para que o capital conseguisse acelerar o processo de
acumulação, cabendo ao neoliberalismo um aprofundamento destes mecanismos ao fazer
com que a globalização tornasse os mercados interligados e de maior liberdade
econômica.
Após a crise de 1929, com o keynesianismo primando pela regulação do capital,
o neoliberalismo se contrapôs procurando o aumento da acumulação sem que houvesse
interferências impostas. Portanto, Duménil e Lévy exploram como a busca pelo mercado
livre e o combate a intervenção do Estado aos negócios fizeram com que o neoliberalismo
ganhasse força a partir dos anos 1970, pela queda da lucratividade sofrida anteriormente.
O capital financeiro esteve em uma melhor posição no neoliberalismo, após a
crise de lucratividade dos anos 1970, quando ocorreu a financeirização da economia pela
busca contínua de acumular o capital cada vez mais, buscando nos gerentes uma
adaptação na sua forma acumulativa, o que traz a esfera financeira uma contribuição em
sua administração. Assim, no neoliberalismo, para os autores, as faixas mais altas da dos
gestores formaram este novo aparelho administrativo visando às altas remunerações e
serem proprietários ativos, sendo impossível o desenvolvimento do neoliberalismo sem a
aliança destes com os proprietários.
Através deste novo panorama, houve a separação da cúpula administrativa,
representada por estes gerentes de alto escalão, dos administradores comuns das
empresas. Com a servidão dos gerentes aos proprietários, para os autores em debate, há o
surgimento da classe gerencial, pois estes gerentes começam a ter objetivos e interesses
próprios que determinam suas ações em seu campo de influência. Os autores veem o
controle saindo das mãos dos proprietários e indo para as dos gerentes, fazendo com que
os gerentes adquirissem autonomia em relação aos negócios das empresas.
Porém, existem problemas a serem colocados, quando os autores colocam os
gestores como uma nova classe, e ao não colocarem a rotação dos gestores do capital do
Estado com o setor privado com devida importância neste cenário. Duménil e Lévy
acabam por não explorar o aspecto representativo destes gestores de alto escalão no
Estado e como se dá sua volta às empresas, ocorrendo outra forma de beneficiação do
capital. Assim, apesar dos autores contribuírem com o aspecto da financeirização, da crise
financeira decorrida em 2008 e da posição dos gerentes no capitalismo contemporâneo,
há que se apontar problemáticas em aspectos de classe e da rotação dos gestores.
Portanto, neste trabalho, procurar-se-á mostrar e discutir as contribuições e
limitações no pensamento de Duménil e Lévy. Para tanto, através deste ensaio, indicar-
se-á como se dá o desenvolvimento da obra dos autores apontando conjuntamente a
relação dela com outras contribuições existentes na literatura, não tirando o foco dos dois

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autores franceses, e também se apontará suas teorias e suas contribuições, discutindo-se


as problemáticas apresentadas e não desenvolvidas pelos autores.

2. UMA DISCUSSÃO ACERCA DA OBRA DE DUMÉNIL E LÉVY


Panorama geral estabelecido
Em uma de suas obras principais, Duménil e Lévy (2014) preocupam-se em
analisar, nos países capitalistas mais avançados principalmente, o decorrer histórico-
econômico a partir do início do século XX que acaba na crise de 2008, ou crise do
neoliberalismo, como denominado por eles. Tem-se, também, como um ponto central da
obra a queda de hegemonia dos antigos centros, como os Estados Unidos, e crescimento
do desenvolvimento dos países emergentes comparados a estes países.
Nesta obra, os autores apontam que:
Aqui, a investigação usa a noção de capitalismo moderno, no sentido de
capitalismo após as revoluções corporativa, financeira e administrativa, ou
seja, a partir do início do século XX até o presente, e o neoliberalismo é
descrito como a terceira e mais recente fase desse capitalismo moderno (p. 20).

Segundo Duménil e Lévy (2014), no capitalismo do final do século XIX, as


empresas se expandiram com seus processos técnicos e organizacionais se sofisticando,
com o desenvolvimento dos transportes e das comunicações as empresas conseguiram a
sua expansão nacional e começaram a se expandir internacionalmente. Além disso, houve
a transformação e expansão dos mecanismos monetários e financeiros, o
desenvolvimento de bancos, empréstimos e dinheiro fiduciário.
Os autores apontam três revoluções que determinam a passagem para o
capitalismo moderno, que são: a revolução corporativa, que se deu quando houveram
incorporações de empresas por volta de 1900, com novas leis corporativas que as
incentivaram; a revolução financeira, que veio do sistema bancário em rápida expansão,
já que os bancos financiaram as novas corporações; e a revolução gerencial, em que se
teve a separação entre proprietários e administradores, com a delegação da administração
das empresas a estes assalariados.
Atenta-se aqui que Marx (2013) já colocava que havia uma concentração de
capital visto a concorrência das empresas, pela busca por maior acumulação do capital
ser um aspecto fundamental do capitalismo, com a quebra das menores e o
engrandecimento das maiores. Corroborado por Lenin (2012), com a monopolização do
capital, que indicou como o momento em que a concentração de capital se faz presente,
há o desenvolvimento de grandes corporações que resultam no que Duménil e Lévy
indicam como revolução corporativa.
Sobre a revolução financeira, para Duménil e Lévy (2011), deu-se quando foi
estabelecido um novo sistema bancário, como os Morgans, os Rockefeller e similares,
financiando as grandes empresas emergentes da revolução corporativa, dessa forma
apoiando as incorporações. A revolução gerencial indica um terceiro aspecto, segundo os
autores, a transposição de tarefas tradicionais dos capitalistas para os trabalhadores
assalariados em funções administrativas e comerciais. Ainda, através da revolução
corporativa e da financeira, Duménil e Lévy (2014) apontam que os capitalistas
começaram a depender mais das instituições financeiras, pois seu poder como acionistas
das grandes corporações vinha de um caráter financeiro.
Duménil e Lévy (2011; 2014) consideram que as crises de 1890 e de 1970
estariam relacionadas a queda da taxa de lucro, já a Grande Depressão, em 1929, e a crise

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do neoliberalismo, de 2008, não se relacionam com a taxa de lucro, sendo duas crises de
hegemonia financeira. Os autores continuam dizendo que, apesar do período da Grande
Depressão ter uma baixa lucratividade, ele não teve queda da taxa de lucros, e por isso,
como a crise atual (de 2008), não pode ser tida como uma crise de lucratividade,
comportando-se como crises estruturais.
Nas crises anteriores, de 1890, 1929 e 1970, duram cerca de uma década, cinco
anos depois da crise de 2008, ela ainda não acabou, ocupando-se agora da “crise da dívida
soberana” que vem dos passivos dos governos dispararem (DUMÉNIL; LÉVY, 2014).
Os países ao norte da Europa, segundo os autores, conseguiram manter um crescimento
forte após a crise, porém, os localizados ao sul acabaram sofrendo um impacto grande
com a crise, com a principal política europeia sendo o corte de gastos com a política de
bem-estar, limitando o poder de compra dos trabalhadores.
Em seu texto, Duménil e Lévy (2014) apontam que, pela tendência neoliberal, o
mercado financeiro continua a atuar de modo a distribuir dividendos a acionistas, levando
a expansões que levam a desequilíbrios crescentes, ao mesmo tempo que países possuem
déficits insustentáveis levando a governos através da política keynesiana também ter
déficits.

A financeirização e a “crise do neoliberalismo”


Com base no panorama geral estabelecido por Duménil e Lévy, a
financeirização, estabelecida a partir da década de 1970, torna-se um elemento importante
de seu estudo. Pois, junto ao neoliberalismo e a globalização, fatores atuantes adjacentes,
a financeirização é tida pelos autores como o momento da segunda hegemonia financeira,
aonde o sistema capitalista se organiza de forma diferente do período pós-guerra, mas
também tem especificidades que a diferenciam da primeira hegemonia financeira, período
do início do século XX em que os autores indicam que se teve a revolução financeira.
Após a Grande Depressão, como visto por Duménil e Lévy (2014), houve maior
regulação do setor financeiro, visto que a crise se deu por conta de sua liberdade. No pós-
guerra, segundo os autores, as políticas keynesianas foram postas a prova com o controle
macroeconômico sendo estabelecido pelo governo. Assim, Políticas de bem-estar social
foram aplicadas, contemplando aos trabalhadores no período pós-guerra.
Duménil e Lévy (2004) indicam que, no início dos anos 1970, houve a crise do
dólar junto a um declínio da taxa de lucro no pós-guerra, levando a atuação keynesiana
perder força e os mercados financeiros começarem a serem desregulamentados. Portanto,
o neoliberalismo, para Duménil e Lévy (2014), apareceu como resposta à crise do dólar
na década de 1970, instalando-se primeiro nos Estados Unidos e no Reino Unido.
Segundo Duménil e Lévy (2014), enquanto as taxas de lucro do setor financeiro
no período pós-guerra sofreram uma queda, as do setor não financeiro aumentaram, já
após 1980, no período neoliberal, isto se inverteu e enquanto as taxas de lucro das
corporações financeiras aumentaram, devido a ganhos no mercado de ações e inovações
financeiras, as taxas das não financeiras sofreram uma queda.
Também aumentaram no neoliberalismo, segundo os autores, as divisões de
dividendos e as taxas de juros, que limitaram a capacidade de corporações não financeiras
investirem. Os lucros distribuídos dessas corporações não financeiras acabam não
voltando a elas, levando-as a uma baixa acumulação. Duménil e Lévy (2014) ainda
demonstram que os juros pagos pelo governo e pelas famílias aumentaram
constantemente desde 1980, indicando a hegemonia financeira se fazendo presente.

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Os autores destacam que o neoliberalismo é uma nova fase da evolução do


capitalismo:
O neoliberalismo é um novo estágio do capitalismo que surgiu na esteira da
crise estrutural da década de 1970. Ele expressa a estratégia das classes
capitalistas aliadas aos administradores de alto escalão, especificamente no
setor financeiro, de reforçar sua hegemonia e expandi-la globalmente
(DUMÉNIL; LÉVY, 2014, p. 11).

Portanto, no neoliberalismo a classe capitalista se aliou aos gestores que estariam


no comando das empresas, para obterem um maior lucro. Duménil e Lévy (2004) ainda
veem que o neoliberalismo buscou, através da liberdade de movimentação do capital
internacionalmente, restaurar os ganhos do capital e sua renda pelas classes mais altas. O
que coloca o setor financeiros em evidência, fazendo com que a financeirização seja vista
pelos autores como quem daria aos capitalistas um maior lucro, já que as taxas de lucro
do setor produtivo estavam baixas.
Neste estudo, “financeirização” significa sempre, de um lado, a expansão das
instituições e mecanismos financeiros (e as massas correspondentes de ativos
e passivos), levando em conta os procedimentos inovadores, e, de outro, a
imposição de critérios gerenciais, como a criação de valor para o acionista.
Nela estão envolvidos o tamanho comparativo e a taxa de lucratividade do
setor financeiro. O mesmo se pode dizer da expansão do componente
financeiro da administração no interior das instituições financeiras e no interior
das corporações não financeiras, bem como o aumento espetacular da renda
paga aos administradores financeiros (DUMÉNIL; LÉVY, 2014, p. 43).

Assim, os autores observam o período neoliberal como de fato um novo


liberalismo, pois utiliza o livre mercado, livre mobilidade de capital e livre comércio em
busca de maior lucro.
Duménil e Lévy (2014) apontam que, nos Estados Unidos, a renda total do grupo
de 1% das famílias com renda mais alta teve um declínio no período pós-guerra, sendo
que a partir da década de 1970 voltou a crescer atingindo praticamente o mesmo valor de
antes. No mesmo trabalho, os autores mostram que nos Estados Unidos, a renda real dos
99% de renda inferiores aumentou do período pós-guerra até a década de 1970, a partir
de quando se estagnou; já os 1% mais altos teve sua renda real estagnada até 1980, quando
começou a ter um enorme aumento. Ou seja, no período pós-guerra até a década de 1970,
enquanto as rendas inferiores tiveram um grande aumento as superiores estiveram
estagnadas, durante a década de 1970 em meio à crise tanto as superiores quanto as
inferiores ficaram estagnadas, e após 1980, no período neoliberal as superiores tiveram
um grande aumento enquanto as inferiores estagnaram.
Observando a globalização, Duménil e Lévy (2014) apontam que, no período
neoliberal vê-se que o comércio internacional, através das exportações, e o investimento
estrangeiro direto cresceram durante o período, sendo que no período do pós-guerra até a
década de 1970 as exportações estavam constantes.
No que comporta os títulos do tesouro e de corporações dos Estados Unidos,
Duménil e Lévy (2014) destacam que estes foram cada vez mais controlados por
estrangeiros no período neoliberal, com aumentos significativos. Já, os mercados de
câmbio de 1989 a 2007 tiveram um aumento na movimentação, mostrando que as trocas
de moedas foram grandes durante o período. Os ativos estrangeiros controlados pelos
Estados Unidos e os ativos americanos controlados pelo resto do mundo cresceram
simultaneamente no período neoliberal, segundo os autores, porém, a partir dos anos
1980, os estrangeiros começaram a ter mais ativos americanos que os americanos a ter

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deles, aumentando a diferença cada vez mais. Ou seja, a globalização foi um fator
essencial para o setor financeiro, levando as classes altas conseguirem maior lucro com a
liberalização dos mercados financeiros.
Financeirização e globalização foram instrumentos para a obtenção de altas
rendas. Em nítido contraste com as limitações impostas aos mecanismos
financeiros após a Segunda Guerra Mundial, o neoliberalismo teve forte
impacto de estímulo sobre a expansão dos mecanismos financeiros.
Fundamental para a análise da crise é o fato de esses mecanismos terem entrado
numa fase de expansão ainda mais extraordinária após o ano 2000. Essa
explosão foi o efeito combinado do crescimento dos mecanismos já existentes
e da introdução de procedimentos inovadores. O livre comércio, a livre
movimentação de capitais em todo o mundo (investimentos externos) e a
globalização dos mecanismos monetários e financeiros são os pilares da
globalização neoliberal. Essas tendências para a globalização foram tão
ameaçadoras quanto a financeirização. No geral, financeirização e
globalização significaram a construção de uma estrutura financeira frágil e
pouco funcional. Um efeito combinado adicional desses mecanismos foi o
potencial estabilizador prejudicado das macropolíticas. Num mundo do livre
comércio e livre movimentação do capital, é difícil controlar taxas de juro,
empréstimos e taxas de câmbio (DUMÉNIL; LÉVY, 2014, p. 44).

Duménil e Lévy (s/d) ainda colocam que, a classe capitalista sempre busca
maximizar sua renda, porém, com o neoliberalismo houve uma grande transformação
social, aonde o livre comércio fez com que os trabalhadores competissem consigo
mesmos em todo o mundo e os capitais se dispunham com liberdade para circularem ao
redor do mundo.
Assim, a desregulamentação agiu de forma a contribuir com a financeirização e
a globalização no período neoliberal. Chesnais (2005) indica que a acumulação
financeira, através de crédito, mercado de ações, entre outras formas, foi requisitada como
forma de aumentar o capital, e esta liberdade financeira era necessária para que isto
ocorresse. Já Kliman (2015) atenta que a transição de investimento do capital produtivo
para o capital financeiro se deu pela taxa de lucro no setor produtivo estar baixa, o que
mostra que a configuração do capitalismo se alterou vista a atender a requisição de maior
acumulação de capital, por um panorama social.
Segundo Duménil e Lévy (2014), os anos de 1980, 1990 e 2000 vieram com uma
sequência de eventos até desembocar na crise de 2008. Primeiro com recessões e baixas
taxas de crescimento, que foram combatidas com investimentos principalmente nas
tecnologias da informação. Porém, através desse investimento todo também foi criada
uma bolha no mercado de ações que levou a recessão norte-americana de 2001. Brenner
(2003) corrobora na análise deste período mostrando, a partir de um panorama histórico,
o desenvolvimento das consecutivas crises conforme as bolhas foram sendo criadas como
tentativa de ultrapassar cada uma. Para a recuperação da recessão de 2001, segundo
Duménil e Lévy (2014), novo investimento foi feito, só que agora no setor imobiliário,
enquanto o investimento na produção estava baixo ainda, o que levou ao aumento das
dívidas com empréstimos hipotecários, que causou inadimplências, colapsando
instituições financeiras e falindo bancos.
Isto ocorreu porque, segundo os autores, com o acesso a empréstimos fáceis, o
valor das casas começou a aumentar. Consequentemente, o aumento das residências levou
a um aumento dos empréstimos por três motivos: primeiro, devido ao aumento dos preços
dos imóveis era preciso aumentar os empréstimos; segundo, com o valor mais alto das
residências gerando garantia, novos empréstimos em refinanciamentos eram possíveis; e

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terceiro, os emprestadores viam no aumento do preço das casas uma garantia viável por
inadimplência. Com a expansão nesse mercado de construção de residências, houve uma
quantidade enorme de casas a venda que abaixou o preço das casas, e quando não haviam
mais compradores para elas houve o colapso financeiro.
Assim, para Duménil e Lévy (2014), a “crise do mercado imobiliário e o
correspondente colapso da pirâmide de instituições financeiras foram como uma onda
sísmica que desestabilizou uma frágil estrutura financeira global. Foram o gatilho, e não
a causa da crise” (p. 46). Porém, conforme visto por Duménil e Lévy (s/d), não é uma
crise de financeirização ou somente financeira, mas é a “crise do neoliberalismo”, aonde
os aspectos da globalização estão incluídos nos aspectos da financeirização, incluindo-se
também a busca por altas rendas. “As causas da crise podem, assim, ser descritas em
termos de ‘excesso’: excesso de financeirização significou uma estrutura financeira frágil;
e excesso de globalização, uma economia mundial incontrolável” (DUMÉNIL; LÉVY,
2014, p. 45).
Portanto, vê-se que a análise de Duménil e Lévy detém muitas contribuições
acerca de todo o panorama criado e a partir do desenvolvimento da financeirização e do
neoliberalismo, colocando como a globalização teve uma função importante. Os autores
mostram, através de análises, todo o teor que o período neoliberal teve na sociedade
capitalista com modificações sociais e econômicas na realidade mundial. Porém, Prado
(s/d) mostra que é preciso ter cuidado com o apontamento dos autores sobre a importância
política do capital financeiro, pois existem explicações mais plausíveis que indicam as
mudanças no processo de acumulação do capital, acerca também no modo de produção
com indústrias indo para países com mão-de-obra mais barata por exemplo, como fatores
importantes desta mudança de configuração do capitalismo.

A classe gerencial e os novos gestores


A partir da revolução gerencial ocorrida, junto a revolução corporativa e a
financeira, no início do século XX, para Duménil e Lévy (2014) ocorre a configuração
tripolar de classe com o surgimento da classe gerencial, na qual entre seus componentes
não estão o pessoal administrativo que junto aos trabalhadores estão na classe popular, e
a classe capitalista sendo a outra. Os autores explicam que:
A partir da revolução gerencial, o principal campo de atividade dos gerentes é
a organização das empresas. Assim, gerentes podem ser classificados em
várias categorias. Pode-se tipicamente distinguir entre, de um lado, os
segmentos técnicos, os mais estritamente organizacionais e os comerciais de
gerência e, de outro, as esferas financeiras (DUMÉNIL; LÉVY, 2014, p. 86).

Isto está relacionado ao desenvolvimento do capitalismo e de sua organização,


pois, Justen et al (2017) verificam que, com o crescimento e a concentração de empresas,
os capitalistas individuais transferem funções de direção, em nome do capital, a
trabalhadores assalariados. Granemann (2006) também aponta que os proprietários
renunciaram o exercício da gestão de suas propriedades, passando a ser gerida por um
“corpo técnico-político”, com salários altos, mas também com formação técnica melhor,
conseguindo, assim, a gerir o capital com maior eficácia. Com isso, a expansão dada ao
capital colocou os gestores, como um meio especializado, com uma importância
relevante, visto que o capital precisaria ser administrado de forma a continuar seu
caminho de acumulação.

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Para Duménil e Lévy (2011), neste panorama, constituiu-se uma nova burguesia
distante da produção, aonde a propriedade se relaciona apenas a retenção de ações e
títulos, com um caráter financeiro. Assim, segundo eles, com a revolução gerencial houve
como divisão de tarefas uma concentração de poder, renda e inciativa por parte dos
gerentes, enquanto a execução ficava a cargo de funcionários de menor escalão. Duménil
e Lévy dizem que as “classes superiores” passam a se comportar como as capitalistas e
as gerenciais. Ainda, segundo Duménil e Lévy, os funcionários do governo também
tiveram um grande papel em políticas como o New Deal, fazendo com que eles possam
ser inseridos na classe gerencial.
Duménil e Lévy vão na mesma direção, com a determinação do maior poder dos
gerentes e o surgimento da classe gerencial, que autores como Galbraith, Berle e
Burnham, que indicam o estabelecimento dos gestores em uma nova posição indicando
uma diferenciação tamanha que os faz diferente das classes capitalista e popular.
Galbraith (1983), por exemplo, identifica uma passagem do controle dos proprietários
para os administradores, que ficaram com um poder relacionado a sua ação dentro da
empresa, como acerca da distribuição de lucros. Berle (s/d) coloca que os gestores passam
a ter poderes como dar ou negar emprego, influenciar os padrões de salário, determinar
em que local implementará as atividades da empresa e determinar em que ritmo
acontecerá o aumento do capital da empresa. Por sua vez, Burnham (1967) aponta os
gestores como os novos diretores das empresas, levando-os a concentração do poder e do
controle, dominando a sociedade segundo seus interesses.
A classificação dos gestores como classe se torna problemática quando se vê
questões como, por exemplo, uma função diferente das outras duas classes, colocando os
gestores com interesses próprios e identidade própria. Paço Cunha (2016) indica que não
existem identidades diretas entre a classe e a fração de classe, e coloca que:
Em outras palavras, o fato de os gestores atuarem tendencialmente ao lado das
classes dominantes e portarem uma consciência por vezes contraditória aos
interesses da classe do trabalho não os constitui objetivamente “fora” da classe
do trabalho, da categoria força do trabalho. Isso é particularmente
correspondente na medida em que reflete a grande massa dos mais de 700.000
formandos anualmente em administração no Brasil, sem falar de outras
formações correlatas. Estaria toda essa massa circunscrita a uma “elite” que
gerencia as coisas do Estado e do capital? Em parte, sim; na maior parte, não
(p. 55).

Ou seja, para o autor, enquanto o administrador comum apenas medeia o


trabalho, tornando-se sujeito ao capital assim como o próprio trabalhador, diferenciasse
do “gestor do capital” que é quem detém o controle do próprio capital. Além disso, Zeitlin
(2016) mostra que estes gestores do capital se preocupam com o lucro igualmente aos
proprietários, pois são encarregados de garantir tal lucro pelo capital, fazendo com que
sua posição não afete a rentabilidade. Assim, os gestores do capital são meros
“representantes do capital”, como Mészáros denomina, com muitos ligando-se ao lucro
não só por sua função, mas também por seu próprio salário estar condicionado a ele.
Para Duménil e Lévy (2014), as classes populares conseguiram nas primeiras
décadas do pós-guerra políticas favoráveis, como o aumento do poder de compra, a
política de bem-estar social, educação, saúde, entre outras. Porém, segundo eles, os
trabalhadores não estavam no poder e os gerentes eram quem detinha o controle da
sociedade, assim, os gerentes deram aos trabalhadores estas políticas em um tipo de
aliança. Além disso, os autores apontam que os gerentes detinham certa liberdade para
reter parcela dos lucros da corporação e não repassar seus lucros aos proprietários.

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Assim, segundo Duménil e Lévy (2014), no período pós-guerra, houve o ganho


de autonomia dos gerentes para o controle das corporações. Para eles, neste período houve
uma aliança das classes gerenciais e populares, dada a autonomia das classes gerenciais
junto as políticas do Estado, a contenção dos interesses capitalistas se deu para que as
populares tivessem ganhos após a guerra em busca da reestruturação. Duménil e Lévy
(s/d) ainda apontam que, neste período, houve uma procura pelo investimento produtivo,
sendo que eram conservados lucros nas corporações não financeiras para o investimento.
Já no período do neoliberalismo, Duménil e Lévy (2014) indicam que surgiu a
governança corporativa como a nova administração de alto escalão. Os autores dizem que
houve uma aliança entre os gestores e os capitalistas, com os interesses dos capitalistas
agora sendo buscados e com a financeirização dando grandes rendas no setor financeiro
em meio a dívidas dos governos. Duménil e Lévy (s/d) dizem ainda que a união entre as
classes capitalista e gerencial que tornaram essa nova configuração possível.
Assim, nesse novo arranjo, Duménil e Lévy (2014) dizem que os gerentes não
só buscariam uma alta lucratividade, mas também são orientados a maximizar o valor das
ações e distribuição dos lucros. Esta formação dos “novos gestores” é vista também por
Chesnais (2005), que coloca o gestor financeiro em uma posição relevante, já que este é
quem controla os investimentos e operações financeiras que são de extrema importância
para a configuração atual do capitalismo. No mesmo sentido, Lapavitsas (2009) diz que
nesta nova configuração o gestor financeiro se orienta no “valor para o acionista”, visando
a gestão da empresa pela sua imagem na Bolsa e a resultado de curto prazo.
Administração financeira no neoliberalismo ganhou tanta importância que uma
relação muito específica se estabeleceu entre os administradores financeiros
das empresas financeiras e não financeiras e a classe capitalista. A ascensão da
administração financeira significou a penetração da alta gerência nos
mecanismos mais íntimos em que se expressa a propriedade. Uma colaboração
íntima está implícita, mas pode-se também afirmar que, no neoliberalismo, os
proprietários capitalistas estão em posição de dependência crescente com
relação à competência dos gerentes, em particular, dos gerentes financeiros
(DUMÉNIL; LÉVY, 2014, p. 94-95).

Com isso, a administração financeira ganhou uma posição relevante nesse novo
cenário, sujeitando os proprietários aos gestores financeiros. Além disso, Duménil e Lévy
(2014) colocam que os gerentes buscam altas remunerações para que se transformem em
proprietários, indicando que estes participam deste novo panorama com interesses
próprios também.
Ainda, diferenciando os momentos tidos pelos gestores, os autores colocam que:
Os objetivos dos gerentes dependem da ordem social em que opera a gerência.
Depois da Segunda Guerra Mundial, a gerência visava basicamente ao
crescimento (nas corporações e nas definições de políticas) e à mudança
técnica. No neoliberalismo o objetivo principal tornou-se o mercado de ações
e a renda do capital. Consequentemente, existe uma relação recíproca entre a
prevalência de uma configuração específica de poder e a preeminência de um
ou outro componente de gerência. A conjuntura histórica do New Deal
conferiu certo grau de preeminência aos funcionários do governo. Orientou o
desenvolvimento da gerência para essa direção particular. O compromisso do
pós-guerra estimulou as capacidades gerenciais sob todos os aspectos, mas
com ênfase particular na tecnologia e na organização. O neoliberalismo
influenciou as tendências gerenciais em favor do componente financeiro da
gerência (DUMÉNIL; LÉVY, 2014, p. 87).

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Já Mészáros (2011) aponta, a partir da leitura do capitalismo estabelecida por


Marx, que o capitalismo se mostra incontrolável por buscar a expansão e acumulação do
capital a qualquer preço:
“não é a “intenção” ou “motivação para acumular” dos capitalistas individuais
que decide a questão, mas o imperativo objetivo da expansão do capital. Sem
conseguir realizar seu processo de reprodução expandida, o sistema do capital
desmoronaria – mais cedo ou mais tarde, mas com certeza absoluta. No que
diz respeito às motivações e “intenções subjetivas”, cada uma das
personificações do capital “deve pretender”, por assim dizer, os fins delineados
pelas determinações expansionistas do próprio sistema e não seus próprios
“fins egoístas”, como indivíduos particulares” (p. 138).

Assim, há a busca do próprio capital por sua expansão, sendo que o controlador
do capital, antes tido pelo capitalista individual, mas agora pelo gestor, comporta-se
apenas como uma ferramenta do capital, personificando-se como ele para que busque sua
sobrevivência, acumulando-o e expandindo-o. Visto isso, o capital busca por sua
expansão por si próprio, e o seu controlador, seja o capitalista ou o gerente, será apenas
um meio para seu próprio fim.
Com isso, os gestores se justificam, mesmo com um novo posicionamento na
sociedade, como representantes do capital, sendo orientados para perseguir sua expansão.
O gestor veio de um processo de expansão do capital, que requereu por um controlador
mais especializado que o próprio capitalista, levando a sociedade se adaptar nesses novos
parâmetros sociais visto a nova organização do capital. Junto a isso, a financeirização se
demonstra como uma nova configuração do capital, visto que este solicitou uma maior
forma de expansão, já que as taxas de lucro do setor produtivo estavam em baixa, o que
levou ao gestor financeiro ser a nova ferramenta, com devida importância, do capital.
Prosseguindo, Duménil e Lévy (2011) dá três cenários para o desenrolar do
capitalismo após a crise do neoliberalismo:
(1) a third financial hegemony, in continuation of the second but with the
required adjustments; (2) neomanagerialism, the continuation of the alliance at
the top of social hierarchies, but under the leadership of managerial classes,
and (3) a scenario similar to the postwar compromisse (p. 12).

Ou seja, os autores colocam os gestores como chave fundamental, com opções


que indicam ou os gestores no comando da sociedade, sendo aliados dos capitalistas ou
dos populares, ou ajustes do período neoliberal para uma terceira hegemonia financeira,
aonde a regulação seria aumentada, com um papel técnico dos gestores maior, porém com
os capitalistas ainda no comando. Porém, Duménil e Lévy (2014) colocam o “capitalismo
neogerencial” como a mais provável alternativa, que seria a aliança da classe capitalista
com a classe gerencial com a liderança da gerencial, porém não haveria espaço para
políticas de bem-estar, como na época do pós-guerra.
No pós-neoliberalismo, essas ligações privilegiadas poderiam operar no curto
prazo, para atrasar a realização das mudanças radicais urgentemente
necessárias, caso os gerentes e funcionários hesitem em prejudicar por meio de
medidas drásticas os interesses dos seus “primos” sociais, os proprietários
capitalistas. Desde 2009, esses acordos parecem prevalecer. Mas, em prazo
mais longo, essas configurações ocultas no topo das hierarquias sociais
também oferecem bases robustas para uma estratégia conjunta das classes
altas, independentemente da distribuição de poder e das consequências sobre
os padrões de renda. Isso significa um grande potencial de mudança, embora
não favorável às classes populares.

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Assim, em geral, as tendências sociais indicam o estabelecimento no topo das


hierarquias sociais de um novo compromisso de centro-direita, e não de centro-
esquerda. Dado o que o capítulo anterior chama de “fator nacional” e a
fraqueza das lutas populares, essa nova estratégia do capitalismo neogerencial
parece ser o resultado mais provável da crise do neoliberalismo nas próximas
décadas (DUMÉNIL; LÉVY, 2014, p. 348)

Portanto, para os autores as classes populares não estariam fortes o suficiente


para se aliarem aos gestores e darem a eles algo em troca, como os capitalistas teriam a
dar. Mesmo que tratem como o “capitalismo neogerencial” como o mais provável,
Duménil e Lévy, ao indicar como outra alternativa o retorno à relação no pós-guerra,
colocam os gestores no centro da sociedade, estabelecendo uma nova configuração do
capitalismo por estes estarem ou no comando dela ou numa posição relevante.
Contudo, Mészáros (2011) atenta que:
Seja lá como for, a crítica socialista nada tinha a ver com o maior ou menor
número de ações pertencentes às personificações individuais do capital –
fossem estas “empresários aventureiros” ou “humildes administradores de
carreira” – mas com a subordinação estrutural do trabalho ao capital (e
precisamente este era e continua a ser o significado não fetichista das relações
de propriedade estabelecidas e o centro da crítica socialista), que não mudou
coisa alguma em toda a celebrada “revolução administrativa”. Em outras
palavras, a questão é e continua a ser a permanência da dominação e da
dependência das classes e não a relativa mudança formal em algumas das
partes constituintes do pessoal que dirige o capital em sua estrutura hierárquica
de comando essencialmente inalterada – mudança formal que se fez necessária
pela atual centralização e concentração de capital, e que não poderia eliminar,
mas apenas intensificar os antagonismos internos do sistema do capital (p.
162).

Mostrando que a configuração fundamental do capitalismo, mesmo que com os


gestores do capital em uma posição relevante na sociedade, não é alterada, pois a relação
capital-trabalho permanece com a dominação do primeiro (capital) sobre o segundo
(trabalho). Isto indica que a resolução do problema da incontrolabilidade do capital, não
ocorreria com a transferência do controle para os gestores, pois é visto que com eles no
controle a dominação do capital conseguiu prosperar após dificuldades impostas a ele.
Assim, Paço Cunha (2018) coloca que:
a realidade objetiva não permite a confusão entre a alteração das
personificações e de suas funções com o surgimento de uma nova classe. A
função do capital pode ser repartida entre frações do trabalhador coletivo e do
capitalista coletivo sem que, com isso, forme-se uma nova classe fundamental
ao lado do capital e do trabalho. Por isso, chamo de gestores do capital essa
fração de vanguarda do capitalista coletivo e que ocupa as posições estratégicas
na produção e na realização do valor (grande capital produtivo, bancos e
empresas de ativos financeiros, fundos de pensão, grandes firmas ligadas à
distribuição de mercadorias e setores dominados por bigtechs). Eles
rotacionam para a estrutura do Estado e afetam decisões importantes sem
deixar de ser “vanguarda dos proprietários” (como disseram Baran e Sweezy).
E quando deixam a estrutura do Estado, migram para as empresas financeiras
e produtivas quando não fundam suas “consultorias”. Pode-se imaginar as
profusas consequências desse movimento, considerando que se trata de uma
ampla articulação entre essas posições estratégicas.

O papel do governo e os gestores no Estado

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Duménil e Lévy indicam em sua obra o papel do governo nas relações


capitalistas existentes, como no desenvolvimento da financeirização e perante as crises
financeiras, principalmente a crise do neoliberalismo. Retornando ao desenvolvimento do
período neoliberal que desemboca na crise deste período, os autores apontam como o
governo atuou perante os acontecimentos, demonstrando toda sua influência e relevância
durante o período. Sobre isso, os autores colocam que:
Os Estados foram os agentes de desregulação e imposição do livre comércio e
da livre movimentação internacional de capitais. Mas, além deles, as
instituições financeiras são agentes do neoliberalismo. Bancos centrais
impõem políticas que favorecem a estabilidade de preços e não o pleno
emprego, com o objetivo de aumentar a renda de capital. Administradores de
ativos manipulam enormes massas de capital (inclusive de fundos de pensão),
impondo normas neoliberais às corporações financeiras. Instituições
financeiras mais restritas concentram as mais inovadoras operações
financeiras, acessíveis às camadas superiores das classes capitalistas
(DUMÉNIL; LÉVY, 2014, p. 64-65).

Ou seja, o Estado foi uma peça importante para que o neoliberalismo tivesse as
desregulações financeiras e outros fatores necessários para seu desenrolar, levando as
classes altas uma maior renda. Duménil e Lévy (2014), continuam dizendo que:
Não se pode negar o fato de que, no neoliberalismo, grande ênfase é dada aos
mecanismos do "mercado livre", mas em todos os países, os Estados agiam em
favor do estabelecimento da nova ordem social, uma condição necessária para
a imposição do neoliberalismo. Os defensores do neoliberalismo se opõem a
excessiva intervenção do Estado sempre que os governos coloquem limites à
liberdade dos negócios, protejam os direitos dos trabalhadores, imponham
impostos sobre as altas rendas, e assim por diante. O neoliberalismo rejeitou o
Estado do compromisso social-democrático, não o Estado em geral. Estados
neoliberais – como emanações e instrumentos das hegemonias e compromissos
prevalentes no topo das hierarquias sociais - negociaram deliberadamente
acordos visando à liberdade de comércio e à livre movimentação de capital que
limitavam sua capacidade política (p. 98).

O que mostra que o neoliberalismo precisou do Estado para colocar seus


instrumentos necessários, porém somente tudo aquilo que fosse relevante para o domínio
das classes altas. Porém, atribui-se, por Duménil e Lévy (2014), que a responsabilidade
pelo boom financeiro mundial se deu pela perda de controle e regulação do mercado
financeiro por parte do governo americano, que não impôs limites para transações e
deixou o setor livre para atuar. O que mais tarde deixou o governo com dificuldades de
frear a crise por não deter tanto mais o controle e a regulação do setor financeiro.
Devido as inadimplências e as desvalorizações do mercado imobiliário, segundo
Duménil e Lévy (2014), a crise financeira atingiu os EUA, levando aos bancos uma crise
de liquidez que forçou o Federal Reserve intervir. Mesmo assim, os autores indicam que
houveram falências de instituições financeiras por suas perdas enormes, espalhando-se
pelo mundo a crise e as falências, contraindo a produção mundial e despencando as taxas
de crescimento de importantes economias. A Federal Reserve continuou dando suporte a
economia, o que trouxe uma diminuição do nível da crise e uma pequena estabilização da
macroeconomia em 2009, segundo os autores.
Duménil e Lévy (2014) colocam que as altas perdas financeiras levaram a
falência de várias corporações financeiras, mas, ao mesmo tempo, a salvação e
reorganização de outras. O que mostra a atuação do governo de modo a sustentar não só
o neoliberalismo, mas também o capitalismo que predomina no momento.

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Apesar da crença profundamente enraizada na economia de livre mercado e na


chamada disciplina dos mercados, a crise deu início a uma cadeia de
intervenções por parte das instituições centrais. Não há nada de surpreendente
nessa reversão súbita dos princípios básicos do credo neoliberal. O
neoliberalismo não se trata de princípios ou ideologia, é uma ordem social que
busca o poder e a renda das classes mais altas. Ideologia é um instrumento
político. Considerado desse ângulo, não houve mudança de objetivos. No
neoliberalismo, o Estado (tomado aqui no sentido mais amplo que inclui o
banco central) sempre trabalhou a favor das classes altas. O tratamento da crise
não é exceção, só diferem as circunstâncias e, consequentemente, os
instrumentos. A possibilidade de uma crise estrutural profunda e duradoura
gerar uma nova ordem social, expressão de compromissos e hierarquias de
classe diferentes, é outra história (DUMÉNIL; LÉVY, 2014, p. 241).

Assim, o Estado se coloca como um importante instrumento de sustentação do


panorama colocado pelo neoliberalismo, mas das classes altas e não em busca de melhorar
as condições das mais baixas.
Duménil e Lévy (2014) dizem que o governo atuou de diversas formas em busca
de combater a crise, com a quebra das instituições financeiras, por exemplo, os governos
foram interviram, injetando dinheiro nas compras de ações, o que levou a um aumento de
suas dívidas. As agências regulatórias, a Federal Reserve e as instituições do governo
também atuaram, segundo os autores, como forma de contornar a crise.
Isto demonstra o quanto o Estado é uma peça fundamental para a sustentação do
capitalismo, mesmo que no neoliberalismo indica-se a busca por menos Estado, vê-se que
ele se constitui como uma base para sua ratificação e correção.
Porém, um fator que não é tão trabalhado por Duménil e Lévy, porém é
discorrido durante a sua obra, muitas vezes através de apontamentos apenas, são os
gestores no Estado. Duménil e Lévy (2014), por exemplo, apontam que os funcionários
do governo também tiveram um grande papel em políticas como o New Deal, fazendo
com que eles possam ser inseridos na classe gerencial pela posição que ocupam. Os
autores mostram a presença de Paul Volcker, por exemplo, na Federal Reserve:
An emblematic moment in the assertion of neoliberalism was Carter’s
appointment of Paul Volcker to head the Federal Reserve. With the backing of
finance capital, Volcker hoisted interest rates to unprecedented levels in what
we have called the ‘1979 coup’—with severe consequences for the core
economies and catastrophic effects for the debt-laden countries of the
periphery (DUMÉNIL; LÉVY, 2004, p. 127).

Ou seja, os gestores no Estado também são importantes ferramentas para o


neoliberalismo. Mas ainda, Duménil e Lévy (2014) colocam os gestores como a solução
para os males estabelecidos pelo neoliberalismo, impondo-os como quem precisa utilizar
da regulação no Estado e o controle para que o capitalismo fique novamente nos eixos.
A progressão nas tendências globais também aumenta a necessidade de
governança global, uma questão política. No provável estabelecimento de um
mundo multipolar, e no caso do não surgimento de uma nova potência
econômica, será necessário um exercício fortalecido de poder global. Mais
uma vez, “não há alternativa”, governança global ou o caos. No campo de
mecanismos monetários e financeiros, transformações muito necessárias são a
criação de uma moeda verdadeiramente internacional, a regulamentação e
supervisão internacional de mecanismos financeiros, a provisão de créditos a
países que enfrentam dificuldades e uma nova forma de controle das tendências
macroeconômicas globais (DUMÉNIL; LÉVY, 2014, p. 329-330).

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Assim, os gestores no Estado são vistos, por Duménil e Lévy, como importantes
na esfera de sua governança, porém não é atribuída nenhuma identificação de como ele é
atribuído socialmente, mas somente é vista pelos autores sua posição social.
Lenin (2012), por exemplo, verifica no início do século XX, no período que
Duménil e Lévy indicam como a fase da primeira hegemonia financeira, que os gestores
de grandes empresas financeiras acabam indo para o Estado, conquistando benefícios para
as empresas financeiras. Dreiffus (1981) mostra a presença de gestores ligados a empresas
bancárias e industriais no Brasil durante a ditadura militar iniciada em 1964, mostrando
que com os representantes do capital se encaminhando para o Estado é visto a
consolidação de interesses próprios do capital.
A partir dessa presença de gestores do capital no Estado, é visto em diversos
trabalhos, como de Dulci (2009), Dowbor (2009), Stiglitz (2002), Shive e Forster (2016),
Dias et al (2015), Monteiro (2007), Coroado (2014), Boschi e Ravena (s/d) e Bastos
(2016), algo intitulado como “porta-giratória”, que seria um movimento de rotação do
gestor entre o setor privado e o governo, levando-o a ir da empresa privada para o governo
e depois retornando para o setor privado. Esta rotação é vista como a capacidade das
empresas utilizarem seu representante dentro do Estado, e após sua saída haveria a
conquista de todo o conhecimento e as relações adquiridas na sua atuação lá. Shive e
Forster (2016), por exemplo, indicam que uma experiência anterior no governo não só foi
procurada mais de 2001 para 2015, como também estes gestores que passaram pelo
governo costumavam ter seus salários mais altos. Além disso, os autores viram que as
empresas que contratavam estes gestores tiveram menor riscos perante ao mercado
financeiro, o que demonstra a valorização destes gestores pelas empresas.
No que comporta a representação do capital pelos gestores, Mészáros (2015)
coloca que o meio político é utilizado em favor da expansão do capital, levando a atuarem
no Estado quem está condizente com os interesses do capital e que será um verdadeiro
representante dele. Portanto, vê-se que os gestores do capital se fazem presentes também
no Estado, levando para lá a sua mesma função, representar o capital perante seus
interesses. A rotação destes gestores, através da “porta-giratória”, mostra-se como um
instrumento que satisfaz ainda mais o capital, pois leva os gestores a colaborarem tanto
na hora de ir para o Estado o representar, como também em sua volta, trazendo benefícios
ao capital adquiridos durante sua estadia no Estado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Duménil e Lévy se mostram como autores que buscam pesquisar a fase atual do
capitalismo, para isso colocam a financeirização e o neoliberalismo como elementos
fundamentais. Os autores possuem méritos quando enxergam a posição dos gestores no
cenário atual, com a financeirização levando os gestores financeiros a terem maior
prestígio. Além disso, os dados que trazem apontando as questões sobre a crise de 2008,
a crise do neoliberalismo como intitulam, também se mostram benefícios trazidos em suas
análises.
Assim, os autores franceses demonstram como se desenvolveu a financeirização
e o neoliberalismo, trazendo dados, principalmente da economia dos Estados Unidos, que
identificam ainda mais este processo. Mostrando também, como a crise se desenrolou o
como o governo se comportou através de políticas aplicadas ou não aplicadas durante o
período neoliberal.

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Porém, haja o desenvolver feito por eles sobre a posição adquirida pelos
gestores, existem certas problematizações a serem feitas sobre esta posição dos gestores
e principalmente sobre a dita classe gerencial. Isto porque, Duménil e Lévy não se
atentam nos gestores como ferramenta técnica do capital, levando-os a adquirirem a
posição de seu controlador, no lugar dos proprietários, porém como forma de beneficiar
o próprio capital, buscando sua acumulação e expansão. O que os mostra condizente aos
interesses dos próprios proprietários, já que estes gestores buscam pelo lucro, sendo
muitos gestores com salários ligados a lucratividade, e não afetam a relação capital-
trabalho, que é uma relação de dominação capitalista fundamental.
Também, a partir da identificação pelos autores da classe gerencial, eles não
veem que esta classe possui interesses semelhantes a classe capitalista, já que representam
o capital e visam ao lucro. Além de a divergência de interesses entre a massa
administrativa e os gestores do capital não ser tão observada pelos autores.
Os gestores no Estado é outra questão mal explorada por Duménil e Lévy e são
importantes para a identificação da atuação dos governos. A rotação dos gestores do
capital no Estado se comporta como uma ferramenta importante para que o capital seja
plenamente representado, fazendo com que estes gestores tragam ao capital maior
acumulação. Assim, os gestores do capital se comportam como representantes do capital
no Estado, além de serem seus representantes na manutenção das empresas.
Por fim, é evidente a contribuição de Duménil e Lévy para a discussão do cenário
atual do capitalismo. A identificação da financeirização, do neoliberalismo e dos gestores
pelos autores contribui para a compreensão da realidade e a sua discussão. Porém, é
importante colocar que, para que haja uma contribuição aperfeiçoada, é preciso identificar
a mudança da configuração do capital como primordial, com no período de
financeirização o capital se encaminhando para as finanças pela sua busca por maior
expansão. Assim, a relação capital-trabalho e a identificação da acumulação do capital e
suas formas de atuação, no Estado e nas empresas através de seus representantes, devem
ser levadas em consideração para a melhor compreensão da realidade.

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