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NICOLA, A. Dicionário de Filosofia. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

EU (lat. Ego; in. /, Self; fr. Moi; ai. Ich; it. Io). Este pronome, com que o homem se
designa a si mesmo, passou a ser objeto de investigação filosófica a partir do momento
em que a referência do homem a si mesmo, como reflexão sobre si ou consciência, foi
assumida como definição do homem. Foi isso que aconteceu com Descartes, que foi o
primeiro a formular em termos explícitos o problema do eu. "O que sou eu então?",
perguntava Descartes. "Uma coisa que pensa. Mas o que é uma coisa que pensa? É uma
coisa que duvida, concebe, afirma, nega, quer ou não quer, imagina e sente. Certamente
não é pouco que todas essas coisas pertençam à minha natureza. Mas por que não lhe
pertenceriam?... É de per si evidente que sou eu quem duvida, entende e deseja, e que não
é preciso acrescentar nada para explicá-lo" (Méd., II). Como se vê, aqui o problema do
eu é imediatamente acompanhado pela sua solução: o eu é consciência, relação consigo
mesmo, subjetividade. Esta é a primeira das interpretações historicamente dadas do eu.
Podem ser enumeradas as outras interpretações seguintes: eu como autoconsciência; eu
como unidade; eu como relação. (p. 388)

A definição cartesiana do eu como consciência foi imediatamente acolhida e incorporada


à tradição filosófica. Locke adotou-a e a reelaborou com o fim de justificar uma
característica formal do eu: unidade ou identidade. Dizia: "Quando vemos, ouvimos,
cheiramos, provamos, tocamos, meditamos ou queremos uma coisa, percebemos que a
fazemos. O mesmo ocorre com nossas sensações e percepções atuais, e nesse caso cada
um é para si mesmo o que ele chama de si mesmo, não se levando aqui em conta o fato
de que o mesmo eu continue nas mesmas substâncias ou em substâncias diferentes. E
como o pensamento é sempre acompanhado pela consciência do pensamento, sendo ela
que faz que cada um seja aquilo que cada um chama de si-mesmo, distinguindo-se assim
de todas as outras coisas pensantes, nisso apenas consiste a identidade pessoal" {Ensaio,
II, 27, 11). Em outros termos, segundo Locke, a identidade do eu não se funda na unidade
ou na simplicidade da substância-alma, mas unicamente na consciência, e é, aliás, essa
consciência que se reconhece na diversidade das suas manifestações. Leibniz, embora
insistisse na importância daquilo que ele chamava de consciência ou sentimento do eu,
não acreditava que ela apenas constituísse a identidade pessoal, e lhe acrescentava "a
identidade física e real" {Nouv. ess., II, 27, 10). Este ponto de vista encontra-se
freqüentemente expresso na filosofia moderna e contemporânea, que às vezes acentuou o
caráter ativo ou volitivo da consciência. Foi o que fez, p. ex., Maine de Biran: "A
causalidade ou a força (ou seja, o eu), que se manifesta para si mesma só por meio de seu
efeito ou do sentimento imediato do esforço que acompanha todo movimento ou ato
voluntário, é precisamente como 0 primeiro raio, a primeira luz captada pela visão interior
da mente" (Nouv. ess. d'anthropologie, II, 1). Assim, para Maine de Biran, o eu é a
consciência originária do esforço. Mas a melhor expressão da doutrina do eu como
consciência foi dada por Kant, que dizia: "Eu, como pensante, sou um objeto do sentido
interno, e me chamo alma. O que é objeto do sentido externo se chama corpo. Portanto, a
expressão eu, como ser pensante, designa já o objeto da psicologia que se pode chamar
de doutrina racional da alma, quando eu não quero saber mais da alma do que aquilo que,
independentemente da experiência (que me determina mais de perto e concretamente), se
pode concluir a partir desse conceito do eu, presente em cada pensamento" (Crít. R. Pura,
Dialética, II, cap. 1). Ao lado desse eu como "objeto do sentido interno", ou seja,
consciência (cf. Prol., 1 46), Kant admite uma outra espécie de eu, que marca a transição
para uma segunda interpretação desse conceito. A interpretação do eu como consciência
foi freqüente na filosofia moderna e contemporânea. Rosmini dizia: "A palavra eu une ao
conceito geral de alma a relação da alma consigo mesma, relação de identidade; contém,
portanto, um segundo elemento, distinto do conceito de alma: é uma alma que se apercebe
de si mesma, se pronuncia, se exprime" (Psicoi, § 6). (p. 388-389)

2a A interpretação do eu como Autoconsciência nasce da distinção que Kant fizera entre


o eu como objeto da percepção ou do sentido interno e o eu como sujeito do pensamento
ou da apercepção pura, isto é, o eu da reflexão (Antr, I, § 4, nota; cf.
AUTOCONSCIÊNCIA). Esta distinção, que, em Kant, jamais teria conduzido à
substancialização metafísica do eu, dada a funcionalidade que Kant atribui ao eu, deveria
ser assumida por Fichte como ponto de partida para a doutrina do Eu absoluto. Segundo
Kant, o eu da reflexão ou da apercepçâo pura é a condição última do conhecer; Fichte faz
dele o criador da realidade. "Por ser absoluto", diz ele, "o Eu é infinito e ilimitado. Ele
dispõe tudo o que é; e o que ele não dispõe não é (para ele; mas fora dele nada existe).
Mas tudo o que dispõe, ele dispõe como Eu; e dispõe o eu como tudo o que dispõe.
Portanto, nesse aspecto, o Eu abarca em si toda a realidade, uma realidade infinita e
ilimitada" (Wissenschaftslehre, 1794, III, § 5, II; trad. it., p. 207). Essas teses foram
adotadas e ampliadas por Schelling, graças a quem se tornaram expressões características
do romantismo. Na obra O eu como princípio da filosofia ou o incondicionado no saber
humano (1795), ele identifica o Eu de Fichte com a Substância de Spinoza. "Nessa
época", Schelling escreveu a Hegel, "tornei-me adepto de Spinoza. Quer saber como?
Para Spinoza o mundo é tudo, para mim tudo é o Eu." E embora Hegel negasse essa tese,
considerando como saber absoluto (e, portanto, também como realidade absoluta) o saber
em que desapareceu a distinção entre Eu e nâo-Eu, entre subjetivo e objetivo, também ele
compartilha da tese do caráter infinito do Eu. Disse: "O Eu, essa consciência imediata de
si, aparece em primeiro lugar, por um lado, como imediato, por outro como conhecido
em sentido muito mais elevado do que qualquer outra representação. Todas as outras
coisas conhecidas pertencem de fato e certamente ao Eu, mas ao mesmo tempo são
diferentes dele e, portanto, ganharam conteúdo acidental; o Eu, porém, é a simples certeza
de si. Mas o Eu em geral é também, ao mesmo tempo, um concreto, ou melhor, o Eu é o
concretíssimo, a consciência de si como de um mundo infinitamente múltiplo"
(Wissenschaft derLogik, I, livro I; trad. it., I, pp. 65-66). Gentile apenas repetia a
colocação fichtiana e romântica quando dizia: "O eu é certamente o indivíduo, mas o
indivíduo como sujeito que nada tem a contrapor a si mesmo e que encontra tudo em si;
por isso, é o concreto atual e universal. Ora, esse Eu, que é o próprio absoluto, é enquanto
se põe; é causa sui" (Teoria generale dello spirito, XVII, § 7). (p. 389)

3a Já na interpretação do eu como consciência e como autoconsciência insiste-se às vezes


no caráter formal do eu, ou seja, em sua unidade ou identidade. Viu-se que, para Locke,
o eu é a consciência que funda a identidade pessoal, e para Kant o eu da reflexão é "a
unidade da apercepção pura" (Crít. R. Pura, § 16; v. APERCEPÇÂO). O próprio Hume
vira em certa forma de unidade, ainda que fictícia, o caráter fundamental do eu, que ele
comparara a uma república em que podem ocorrer mudanças nos homens que a
governam, em sua constituição e em suas leis, sem que por isso ela perca a identidade. O
homem, do mesmo modo, pode mudar suas impressões e suas idéias, permanecendo o
mesmo eu (Treatise, I, 4, 6). Todavia para Hume, como se vê por essa mesma imagem, a
unidade não é absoluta nem rigorosa: é formal e aproximativa, fundada na constância
relativa de certas relações entre as partes ou momentos do eu. Esse ponto de vista, talvez
mais do que o outro que afirma a rigorosa unidade do eu, evidencia os limites e os perigos
aos quais o eu está sujeito na experiência efetiva. (p. 389-390)
4a O conceito do eu como inter-relação nasce do reconhecimento do caráter mais
evidente com que o eu se apresenta nessa experiência: o caráter de problematicidade, em
virtude do qual ele é uma formação instável que pode estar sujeita à doença e à morte. A Commented [JB1]: E é aqui que a perspectiva freudiana
noção de interrelação é, de fato, mais genérica e menos comprometedora do que a noção entra em jogo, mais especificamente a partir da noção de
de unidade. A unidade é uma forma de inter-relação necessária, imutável e absoluta, uma desamparo..

inter-relação pode ser mais ou menos firme e romper-se. Foi sob o ângulo da "doença
mortal" do eu, a desesperação, que Kierkegaard definiu o eu como "relação que se
relaciona consigo mesma". O homem é uma síntese de alma e corpo, de infinito e finito,
de liberdade e necessidade, etc. Síntese é inter-relação, e a reversão dessa inter-relação,
ou seja, a relação da relação consigo mesma, é o eu do homem (Die Kmnkheit zum Tode,
1849, cap. I). Kierkegaard acrescentava que precisamente por relacionar-se consigo
mesmo, o eu é relacionar-se com outro: com o mundo, com os outros homens e com Deus.
É nesta segunda inter-relação que por vezes os filósofos contemporâneos insistem.
Santayana dizia: "Quando digo eu, esse termo sugere um homem, um entre os muitos que
vivem em um mundo que está em conflito com o seu pensamento, mas que o domina"
(Scepticism and Animal Faith, 1923, ed. 1955, p.22). De um ponto de vista diferente,
Scheler chega a um conceito análogo do eu: "À palavra eu está associada a alusão ao tu,
por um lado, e a um mundo externo, por outro. Deus, p. ex., pode ser uma pessoa, mas
não um eu, já que para ele não há tu nem mundo externo" (Formalismus, etc, p. 405). É
precisamente da inter-relação que Heidegger lança mão para definir o eu. "A assunção
'Eu penso alguma coisa' não pode ser adequadamente determinada se o 'alguma coisa'
ficar indeterminado. Se, porém, o 'alguma coisa' for entendido como ente intramundano,
então trará em si, não expressa, a pressuposição do mundo. E é justamente esse o
fenômeno que determina a constituição do ser do eu, quando pelo menos ele deve poder
ser algo, como em 'Eu penso alguma coisa'. Dizer eu refere-se ao ente que eu sou enquanto
sou-no-mundo" (Sein undZeit, § 64). De forma só aparentemente paradoxal, Sartre
afirmava, num ensaio de 1937, que "o eu não está, nem formal nem materialmente, na
consciência; está fora, no mundo. É um ser do mundo, assim como o eu de um outro"
(Rechercbes Philosophiques, 1936-37; trad in., The Transcendence of the Ego, Nova
York, 1958, p. 32). No mesmo sentido, afirma Merleau-Ponty: "A primeira verdade é,
sem dúvida, 'eu penso', mas sob a condição de que com isso se entenda 'eu sou para mim
mesmo' sendo no mundo" (Phenoménologie de Ia perception, 1945, p. 466). Considerado
em sua relação com o mundo, o eu às vezes é determinado a partir do seu caráter ativo,
da sua capacidade de iniciativa, do seu poder projetante ou antecipador. Dewey diz:
"Dizer de modo significante 'Eu penso, creio, desejo', em vez de dizer somente 'Pensa-se,
crê-se, deseja-se', significa aceitar e afirmar responsabilidades e expressar pretensões.
Não significa que o eu é a origem ou o autor do pensamento ou da afirmação nem que é
sua sede exclusiva. Significa que o eu, como organização concentrada de energias,
identifica-se (no sentido de aceitar as conseqüências) com uma crença ou sentimento de
origem exterior e independente" (Experience and Nature, p. 233). São exatamente esses
caracteres que constituem hoje o esquema geral para o estudo experimental da
personalidade, que é um dos principais objetos da psicologia. O eu só se distingue da
personalidade (que é a organização dos modos como o indivíduo inteligente projeta seus
comportamentos no mundo) por ser a parte da personalidade conhecida pelo indivíduo
interessado e à qual, portanto, ele faz referência ao dizer "eu". A personalidade, por outro
lado, é mais vasta: inclui também as zonas escuras ou de penumbra, as esferas de
ignorância mais ou menos voluntária ou involuntária, que caracterizam o projeto total das
relações do indivíduo com o mundo (v. PERSONALIDADE). (p. 390)

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