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EDITORIAL Há alguns mêses atrás resolvi contatar uma psicanalista que muito

EXPEDIENTE
REVISTA CRIANÇAS:
Uma Abordagem Psicanalítica Transdisciplinar.
admiro, e muitas pessoas que se interessam pela clínica com bebês e crianças já Ano I - número I - Volume I - Outubro de 2019
devem ter lido algum de seus livros, ou já tenham ouvido falar sobre ela. Marca-
Distribuição gratuita - Periodicidade Semestral
mos no seu consultório e ao chegar, para minha surpresa, encontro outra colega a
quem devo hoje a paixão por atender crianças. Na saída fechando a porta, Adela Revista Crianças é uma publicação cujo
objetivo é produzir conhecimento acerca da
Stopel de Gueller me pergunta o que estava fazendo indo ao seu consultório. Digo Clínica, divulgar a prática transdisciplinar,
incentivar as trocas e o acesso entre os leitores e
que estava vindo conversar com Julieta Jerusalinsky, coincidências a parte, pois os profissionais em suas respectivas áreas de
não sabia que estas duas pessoas, que são referência na clínica psicanalítica com trabalho.

crianças, trabalhavam juntas, digo para Adela que iria conversar com a Julieta pois Editor-chefe e jornalista Responsável:
Janaina Maria Walter Bahia
estava querendo produzir uma revista e gostaria que elas participassem com um janawalter@gmail.com
artigo acerca da Clínica com Crianças.
Direção de arte e design
Quando falei da ideia de criar uma revista digital não esqueço olhar da Alberto Múscaria - Caracool Design Studio
Adela, em um misto de desafio e alegria, diz: “- É, a ideia é boa, mas vai dar muito Agradecimentos:
trabalho!”. Logo depois chega a Julieta e conto da proposta, ao ouvir-me começa Alberto Muscária; Andréa Spacek
Lucas George de Almeida; Milton Bahia
a disparar nomes de várias pessoas importantes na atualidade e mandar para elas Osni Tadeu Dias; Paula Medeiros
uma mensagem dizendo que eu iria contatá-las. Sai do consultório destas duas Revisão: Paula Medeiros; Lucas George Pedroso
grandes figuras pensando: “não é que a ideia parece ser legal mesmo!”. de Almeida

Pois é, a ideia de publicar uma revista digital sobre CRIANÇAS NUMA Ilustração:
ABORDAGEM PSICANALÍTICA TRANSDISCIPLINAR, sorriu a todos os Ana Rosa Bahia

colegas preocupados em tornar nossa prática, próxima do público em geral. Os Diagramação:


Alberto Muscária
temas são bastante variados: Adoção; Gênero; O trabalho em UTIs Neonatais;
Música e Autismo; Autismo; Inclusão; Estimulação Precoce; Novas Formas de Colaboradores deste número:
Adela Stopel de Gueller ; Alfredo Jerusalinsky
Concepção ; Psicomotricidade; A Linguagem com os Bebês; A Clínica Psicanalíti- Alberto Muscária; Ana Del Grande
Ana Rosa Bahia; Betânia Parizzi
ca com Bebês; O Brincar; O Protocolo de Prevenção de Risco- IRDI nas Creches, Caroline Lucírio; Cristina Seguin
Duas Entrevistas com Erika Parlato-Oliveira e Alfredo Jerusalinsky e a apresen- Denise Feliciano; Erika Parlato-Oliveira
Fernando Lamano; Fátima Gonçalves
tação de três trabalhos práticos. Além das colunas com indicação de Livros para Ivone Alves ; Kelly Brandão
Kelly Macedo; Lucas George de Almeida
Crianças e adultos lerem juntos, filmes sobre Crianças, Cursos e Eventos em Maria Lúcia Amorim; Maribél de Salles de Melo
algumas cidades. Maria Eugênia Pesaro; Milena Tudisco
Milton Bahia; Rosely Gazire
A Revista terá formato digital com edições semestrais. Inicialmente com Severina Silva Ferreira; Vitória Regis Gabay de Sá
duas editorias: Bebês e Crianças. O objetivo é incentivar a produção de conheci- Anúncios:
mento em torno da Psicanálise e outros saberes, além da divulgação dos trabalhos revistadigitalcrianca@gmail.com

clínicos promover trocas entre os colegas e demais leitores, aproximar as pessoas Os artigos assinados são de responsabilidade
de acordo com seus interesses ou atendimento. dos autores

A ideia de fazer uma revista digital se apoia no objetivo de tornar este NOTA DA EDITORA
Você pode reproduzir nossos textos e artigos
meio acessível a todos que fazem uso dos meios digitais, de forma ecológica, e sem prévia autorização, desde que cite a fonte:
tornar-se, quiçá, esta clínica próxima aos leitores que a desconhecem. Revista Criança: Uma Abordagem Psicanalítica
Transdisciplinar, e o autor do Artigo.
Agradeço a todos os colegas que acreditaram no projeto e se dispuseram Ao final de cada trabalho há o contato dos
participantes, você pode entrar em contato
a escrever os artigos que compõe esta Revista. diretamente com eles.
Em nome de todos que participaram desta edição desejamos uma ótima
Para sugerir pautas, temas, entrevistas envie
leitura. e-mail para a Revista

Jana Walter

Psicanalista. Jornalista. Admistradora. Especialista em Teoria Psicanalítica


pela PUC São Paulo e Psicanálise com Crianças do Sedes Sapientiae. São Paulo.
Master Business em Gestão e Empreendedorismo Social pela FIA São Paulo.
Pós-graduada em Avaliação de Programas e Projetos Sociais pela FIA e
Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela mesma Instituição. Membro da
Rede Bebê. SP; Membro do Departamento de Psicanálise com Crianças do
Sedes Sapientiae. SP; Trabalhou muito tempo no Terceiro Setor e em pesquisa
com Ricardo Voltoline na Revista Ideia Sustentável. Mãe do Caio e Igor
SUmÁRIO

06
A CRIANÇA COM DIAGNÓSTICO DE AUTISMO:
QUEM É QUE CONTA A SUA HISTÓRIA?
KELLY MACEDO
16 ADOÇÃO: UMA TRAJETÓRIA FEITA DE
ENCONTROS E DESPEDIDAS.

CRISTINA SEGUIN

08 18
AUTISMO, UMA PREOCUPAÇÃO ADOÇÃO: UM PROJETO DE
PRESENTE NOS PAIS ATUAIS? CONSTRUÇÃO COLETIVA.
MARIA LÚCIA AMORIM JULIANA DEVITO

10 20 NA PRÁTICA
ENLACES TERAPÊUTICOS: ALIMENTO PARA O
A CLÍNICA
AUTISMO E ESCOLA DE MÚSICA:
VÍNCULO ENTRE PAISE CRIANÇAS
ESTA RELAÇÃO É POSSÍVEL?
NO INÍCIO DA VIDA.
BETÂNIA PARIZZI MARIÂNGELA MENDES.

12 A INCLUSÃO EM DEBATE:
UMA EDUCAÇÃ PARA TODOS?
KELLY BRANDÃO
22 MAMÃE! QUERO SER UMA BARBIE!
AS CRIANÇAS E AS QUESTÕES ATUAIS DE GÊNERO.

ADELA STOPEL DE GUELLER

14 24
NA PRÁTICA

A CONSIDERAÇÃO DA SUBJETIVIDADE DO BEBÊ


A CLÍNICA

ESPAÇO AMARELINHA: UM LUGAR DE COMO UMA FERRAMENTA FORMATIVA NA


ACOLHIMENTO E TRATAMENTO. EDUCAÇÃO INFANTIL: O USO DA METODOLOGIA IRDI.
MARIBÉL DE SALLES DE MELO MARIA EUGÊNIA PESARO
26 36

NA PRÁTICA
A CLÍNICA
COMO SABER SE O BEBÊ ESTÁ SE ESTIMULAÇÃO PRECOCE COM BEBÊS
DESENVOLVENDO BEM? EM UTI NEONATAL E ABRIGOS RESIDENCIAIS.

FÁTIMA GONÇALVES IVONE ALVES E ANA DEL GRANDE

28 TELAS: UM RISCO PARA A CONSTITUIÇÃO


DA MENTE DA CRIANÇA.
DENISE FELICIANO
38 UM PSICANALISTA NA UTI NEONATAL:
À ESCUTA DE BEBÊS E SEUS PAIS.
CAROLINE LUCÍRIO

30 O BRINCAR DA CRIANÇA:
DENTRO E FORA DA ESCOLA.
VITÓRIA REGIS GABAY DE SÁ
40 O HUMANO, A IMPORTÂNCIA DE SER,
NAS UNIDADES NEONATAIS.

FERNANDO LAMANO

32 A CONCEPÇÃO DE UM FILHO,
UM ENCONTRO (IM)PREVISÍVEL ENTREVISTAS
42
ROSELY GAZIRE

ENTREVISTA
COM ERIKA PARLATO-OLIVEIRA
SOBRE A CLÍNICA COM BEBÊS E SEUS PAIS.

34 FALANDO MANHÊS
COM O BEBÊ.
SEVERINA SILVA FERREIRA
44 ENTREVISTA. COM DR. ALFREDO JERUSALINSKY.
PROTOCOLO DE IDENTIFICAÇÃO DE RISCO
AO DESENVOLVIMENTO. IRDI

COLUNAS
46 49
A VIDA COMO ELA É:
RELATOS DO COTIDIANO.
CRISE NA DECOLAGEM. LIVROS PARA CRIANÇAS
MILENA TUDISCO

47 50
CONTOS PARA CONTAR:
O LOBO MAU DA BARRIGA VAZIA. CURSOS
MILTON BAHIA

48 FILMES SOBRE CRIANÇAS


60 EVENTOS
A CRIANÇA COM DIAGNÓSTICO DE AUTISMO:

quem é que conta


a sua história?
O autismo e seu espectro, É recorrente na escuta va, no contato olho a olho, no brincar
como complexo quadro que ocupa aos pais, que o tempo anterior junto, na espera por ouvir qualquer
lugar de nossa atenção na cena ao diagnóstico seja referido palavra que conte como é aquela voz
contemporânea da infância, nos convi- como um tempo de não-sabe- tão esperada, começam a trazer aos
da sempre a um olhar para a criança. É res, em que as dificuldades do pais uma sensação de que os seus
verdade que há também empenho em filho, ainda bebê, na interação não-saberes precisam de resposta,
ouvir as narrativas das mães e pais de com o outro e na insistência da uma resposta que está em outro
crianças que recebem o diagnóstico de linguagem em tardar, são lugar e não mais na sua história com
autismo, embora haja pouco espaço de percebidos pelos pais como o filho.
escuta e cuidado para eles, corajosos indicativos de que algo não Mesmo para as crianças que
caminhantes dessa tortuosa estrada da estava bem. apresentam os sinais do quadro
busca por respostas que favoreçam o As experiências de insistên- autístico mais tardiamente e que
desenvolvimento do filho. cia na busca por reciprocidade afeti- escreveram com sua família um

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enredo sem as marcas do que a medi- futuro, determinando o que se pode falar, do lugar “daquele que sabe”,
cina chama de critérios diagnósticos esperar dela, numa triste previsibili- através dos nossos critérios, avalia-
até por volta de 12 meses, o diag- dade que pode apagar muitas expec- ções e métodos. É preciso sempre
nóstico parece ter poder retroa- tativas sobre a sua subjetividade, lembrar do “saber dos pais sobre seu
tivo pela narrativa parental: os tendo então o autismo como único filho (a)”, escutar sobre o que só a
sinais do espectro passam a ser destino. mãe e o pai podem saber e dar um
procurados em cada gesto do Merlleti (2018) nos chama a lugar para a história, que só eles
bebê guardado na memória dos atenção para o que ela chama de podem contar e escrever. E, está
pais. “objetalização da criança”, que apri- visceralmente conectada com a
As características do autis- siona a criança em lugares certeza de que existe muito mais
mo se dão principalmente no campo discursivos que limitam sua possibilidades para um sujeito do
do encontro com o outro, com impli- subjetivação tanto nas relações que seu diagnóstico.
cações que se manifestam especial- familiares, quanto nas vivên- Com o desejo de atender à
mente na recusa. O desvelamento da cias escolares e do próprio toda angústia familiar, promessa
causalidade dessa recusa não tem o desenvolvimento. Objetalizar a impossível de sustentar, muitas
poder de cessá-la e nem à angústia criança pode tornar objeto vezes o profissional se desencontra
por ela causada, mas é poderosa também a subjetividade dos com a possibilidade de oferecer um
como forma de explicação. pais e da escola, que nessa rela- lugar que transcenda seu fazer regu-
Respondido o enigma do ção com o diagnóstico tradu- lador dos comportamentos. Relem-
diagnóstico, tudo ganha um zem como manifestação do brar aos pais que há, para além
“porquê”: todos os comportamentos autismo, todas as manifesta- de todos os critérios diagnósti-
da criança são traduzidos numa ções da particularidade da cos, uma inexorável subjetivi-
lógica organizada pelos manuais criança. Os profissionais das dade, particular a cada criança
diagnósticos do campo médico, áreas terapêuticas não estão e inclusive ao seu filho autista,
repleto de saberes até então desco- imunes a esta objetificação, devolve a eles e à criança a
nhecidos pela família. Traduzir respondendo a essa lógica atra- possibilidade de protagonismo
tantas coisas que antes escancara- vés da classificação e condutas no enredo dessa história, na
vam o desconhecido dos pais parece de normalização. qual o discurso médico-científi-
tão apaziguador, mas também pode Sobre o efeito retroativo do co pode ser um importante
ter efeitos que colocam em risco a diagnóstico sobre a história da crian- verbete, mas sempre insuficien-
subjetividade. ça, me lembro de um caso em que o te para falar sobre a imensidão
pai contou, emocionado, como o do encontro, para o qual deve
Resguardar aos pais e à entristeceu receber aquela notícia de existir memória e futuro para
própria criança o que sua filha era autista, especial- além do autismo.
protagonismo de mente quando soube que o balançar
sua história. das mãozinhas dela, tão bonito para
ele, presentes sempre que ele a
Ao discurso dos pais é entre- percebia empolgada com alguma
laçado o discurso médico-científico, brincadeira eram “apenas estereoti-
que privilegia explicações fundamen- pias”. Ressalto aqui que não discurso
tadas em critérios diagnósticos, que contra o diagnóstico e nem contra o
embora pareça oferecer uma explica- fazer de qualquer profissional da
ção sobre alguns aspectos do “como é saúde, mas discurso em favor da
aquela criança”, comumente deter- questão: como garantir a singulari-
mina seu destino respondendo à dade da criança autista e a autoria de
questão “quem é a criança autista”. sua história quando tudo dela passa a
Vorcaro (2011), em seu texto ser autismo?
Kelly Cristina G. Macêdo Alcantara
sobre os efeitos do diagnóstico Em que tempo dessa
classificatório de crianças, narrativa contemporânea os
avaliadas sob a referência de pais poderão se reapropriar de Professora do Curso de Psicologia da
uma psicopatologia que passou seu saber sobre aquele filho, tão Universidade São Francisco. Mestre
por uma objetivação sistemati- único, tão particular, tão seu, em Saúde, Interdisciplinaridade e
Reabilitação pela Faculdade de
zada em manuais diagnósticos, apesar do autismo e seu espec- Ciências Médicas da Unicamp,
nos diz que esse tipo de olhar tro? Acredito que nós, profis- programa pelo qual cursa o doutora-
resulta numa visão reducionis- sionais, convocados a sermos do. Tem experiência em Psicologia
ta da criança, que faz com que ela aqueles que falam desse nas áreas clínica, social e da saúde
com ênfase nos temas: autismo,
passe a pertencer ao saber médico e “suposto lugar de saber” temos
psicanálise, deficiência e relações
perca sua linhagem cultural originá- um papel fundamental nessa familiares.
ria. Essa redução da criança a um ser reapropriação, que requer,
pertencente a linhagem médica faz sobretudo, nossa desapropria- Contato:
com que o prognóstico de autismo ção. kemacedo@gmail.com
(11) 976460714
seja referência do que será o seu Quando somos chamados a

REVISTA CRIANÇAS - ANO I - EDIÇÃO I 7


AUTISMO
UMA PREOCUPAÇÃO PRESENTE NOS PAIS ATUAIS?

COMO SABER QUANDO


ALGO NÃO VAI BEM?

Atualmente, a ideia de que um uma real importância na eventualidade riais intensas que caracterizam o
filho possa apresentar sintomas ligados de ele surgir ou não. Uma das hipóteses é início da vida pós-natal e necessita-
ao diagnóstico de autismo preocupa os que possa ter havido um desencontro rá de ajuda. Por isso se deve observar
pais, e a compreensão desse trans- muito inicial entre o cuidador, isto é, o bem o bebê em seu desenvolvimento. O
torno aponta para uma multiplici- ambiente de forma ampla, e o recém-nas- bebê deve, de alguma forma, se interes-
dade de fatores em sua constitui- cido provocando comportamentos na sar pelo outro e estar ativo para o encon-
ção, pois há diversas hipóteses para que tentativa de lidar com esta desarmonia. tro, ter curiosidade pelo rosto de outro
isso ocorra. Além de características Em alguns casos, o bebê, devido a humano.
determinadas geneticamente, sabe-se diversos fatores, sejam eles genéti- As Criançcas têm em seu desen-
que no desenvolvimento cerebral, os cos e/ou ambientais, não consegue volvimento a tendência a se interessar ao
estímulos provenientes do ambiente têm dar conta de estimulações senso- escutar a voz humana, olhar nos olhos

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dos cuidadores, enfim, interagir para por isso se observa seu comportamento atentos para entender cada gesto
poder advir já que dependem do outro em uma avaliação microscópica das da pequena criança que não fala,
para a sobrevivência física e psíquica. É sessões em conjunto com a dinâmica mas que comunica através de sua
dessa interação do seu corpo, que fala por transferência/contratransferência, pois presença, muitas vezes sem brin-
meio do choro, dos movimentos motores acreditamos que toda a manifestação tem car e com a apresentação de rituais
em seus pequenos gestos, que o outro um sentido que deve ser compreendido, com objetos, algo de seu sofrimen-
responde com seu toque e seu cuidado, apesar da grande dificuldade de comuni- to que devemos desvendar. Essa
que aos poucos vai se desenvolver os cação das crianças com autismo. aprendizagem na experiência do atendi-
balbucios que levarão ao desenvolvimen- O transtorno afeta as pessoas na mento ajuda na aquisição de referências
to da linguagem falada e à construção de interação com o outro, isto é, no laço para que ela se desenvolva como sujeito
uma subjetividade. social, e prejudica a comunicação com desejante.
Considera-se a existência do ausência ou fala peculiar e pode apresen- Essa criança precisa que se
balbucio já um movimento de entrar em tar comportamentos repetitivos (DSM V converse com ela. Precisamos falar com ela
contato com o outro. Quando a mãe ouve, e CID 101). Ele produz o fechamento e não sobre ela. Narrar seu comportamen-
ela responde a esta comunicação primiti- de outras áreas do desenvolvimen- to e escutar suas respostas, mesmo que
va e começa uma interação, mas se o to se não for atendido prontamente sejam em movimentos e gestos corporais,
balbucio não existe ou é fraco, os dois em sua totalidade, e traz profundo para promover o desenvolvimento da
lados podem começar a se desinteressar e sofrimento aos pais e familiares, intersubjetividade. Falar com a criança
aí teremos um grande problema. Esse que muitas vezes percebem algo de ajudará na construção do seu mundo
movimento prazeroso, ficará prejudicado diferente no bebê, mas por uma simbólico. Se não se fala com ela, não a
e necessitará ser construído. É impres- defesa de que a criança não corres- estamos considerando como um sujeito
cindível que o bebê seja cativado, ponde ao que foi sonhado por eles, que pode desejar, e é necessário desejar
pois em algum ponto de seu desen- ocorre uma negação do que estão para entrar em contato com o
volvimento isso se perdeu. Muratori, vendo. outro.
em sua pesquisa, mostrou que muito
cedo pode-se observar comportamentos O futuro é o momento de
que indicam o risco de um fechamento encontro com o outro.
autístico que muitas vezes só aparece
para os pais no momento em que a fala Atualmente, frente ao
não se desenvolve (Muratori, 2019). aumento de diagnósticos,
Pode haver um fracasso na incrementou-se mudanças
constituição da intersubjetividade. nas políticas públicas que
Relacionar-se com o outro é sentido regulam as possibilida-
como uma ameaça de perigo. Existe um des e os direitos dessas
privilégio do sensorial por uma “dessin- pessoas. É imprescin-
cronização" dos fluxos de sensações, que dível a constituição
levaria ao prejuízo da relação com o de uma rede de
outro, que implica em suportar o impre- atenção frente a
visível e o diferente. estas crianças que
apresentam riscos no
A Clínica que dá lugar desenvolvimento emocional.
ao sujeito Necessita-se atender tanto aos pais,
para ajudá-los no convívio com o filho,
A Psicanálise pensada como a escola nos movimentos de inclu-
como uma terapêutica, “cura pela são, e nos diversos serviços de saúde,
palavra”, tem mostrado que pode portanto é uma ação implicada no social.
ajudar as pessoas com autismo, Na prática clínica devemos
entre outros saberes, tais como a estar abertos ao que os autistas têm
psicologia do desenvolvimento, a a nos ensinar com sua lingua-
neurociência e a etologia. Entende- gem corpórea, não verbal, pois
mos nossa terapêutica como um fazer a neste quadro de sofrimento
dois na relação intersubjetiva. Compre- retraído há um ser que tem algo
endemos que cada um é um ser único e a nos dizer. Precisamos estar

Psicóloga pela Instituto de Psicologia da UFRJ – Especialização em Psicologia Clínica e Adolescentes pelos Institutos de
Psiquiatria e Psicologia da UFRJ. Formação em Psicanálise pela SBPRJ. Mestrado em Psicologia pela USM /SP.
Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Psicanalista de crianças e adolescentes pela IPA - Associa-
ção Psicanalítica Internacional e Membro da FEPAL – Federação Latino Americana de Psicanálise. Membro do GPPΔ
– Grupo Prisma de Pesquisa em Autismo. Membro do MPASP – Movimento Psicanálise e Saúde Pública . Membro da
Clínica de Atendimento Psicanalítico da SBPSP e do Clínica 0 a 3 – Intervenção nas relações iniciais pais-bebê do Centro
de Atendimento Psicanalítico da SBPSP. Grupo de estudos sobre transtornos do espectro do autismo com Vera Regina
Fonseca, Izelinda Garcia de Barros e Paulo Duarte. Publicou diversos livros em parceria com colegas.

Contato:
marialucia.g.amorim@gmail.com
Maria Lúcia Gomes de Amorin (11) 99466-7040 3865-1156

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CID 10 – Manual de classificação internacional das doenças.

REVISTA CRIANÇAS - ANO I - EDIÇÃO I 9


AUTISMO E
ESCOLA DE MÚSICA
ESTA RELAÇÃO É POSSÍVEL?
A associação entre autismo e mento geral da criança, ocorre de “equipamento fisiológico” necessário
uma escola de música parece, a forma inconsciente, através de uma à fala e ao canto, através da imitação
princípio, improvável e até impensá- série de expressões faciais, falas, obstinada dos gestos, sonoridades e
vel porque, quase sempre, a relação gestos e outras ações e intervenções da mímica facial dos adultos.
que as pessoas estabelecem com a de caráter puramente intuitivo, A principal ferramenta
música é de entretenimento e lazer. todos voltados para o estabelecimen- operacional da Parentalidade Intuiti-
É muito pouco comum que se perce- to de comunicação com o bebê. va é a Musicalidade Comunicativa,
ba a música em suas dimensões mais outra habilidade inata que se ativa ao
profundas: como um dos elementos nascimento, caracterizada pela capa-
fundantes do humano ou como cidade de combinar vocalizações com
instrumento terapêutico (Trevar- gestos (movimentos de cabeça,
then e Malloch, 2017; Freire et rosto e de membros), que
al, 2018). Serão esses os proporcionam uma rica
assuntos abordados neste interação entre as
texto. mães/pais/cuidadores e
seus bebês e é a base da
comunicação verbal e
A p a r e n t al i d a d e gestual entre seres
i n t u i t i va e a humanos, um dos
musicalidade principais canais
c o m u n i c a t i va simbólicos da vida
adulta. Em decorrên-
cia da Musicalidade
A compreensão da Comunicativa, pais e
música como um dos elementos bebês compartilham um
mais importantes para o desenvol- “alfabeto pré-linguístico” com
vimento das competências comuni- características próprias da
cativas e simbólicas do ser humano música, como timbres, alturas
se tornou mais clara com o surgi- Estimulados pela Parentali- (contornos melódicos), intensi-
mento dos conceitos de “Parentali- dade Intuitiva, os bebês, antes dades (sons mais intensos e
dade Intuitiva” (Papousek, 1996) e mesmo de completarem três menos intensos) e padrões
de “Musicalidade Comunicativa” meses, já são capazes de desen- rítmico-temporais, peculiares
(Malloch e Trevarthen, 2009). volver protoconversas expressi- desta forma de comunicação
A Parentalidade Intuitiva é vas com seus pais ou cuidadores (Malloch e Trevarthen, 2009).
um comportamento instintivo dos que, por sua vez, ajustam suas A dimensão semântica da pala-
adultos que os habilita a proteger, manifestações vocais, visu- vra não importa nesta forma de
alimentar, estimular e ensinar a seus ais, gestuais e táteis de forma a interação; o que importa é a
bebês sua língua e sua cultura e é por ir ao encontro das capacidades carga afetiva incrustrada nas
isso que, desde seus primeiros perceptuais e cognitivas do sonoridades e nos gestos troca-
contatos com o bebê, pais ou cuida- bebê (Malloch e Trevarthen, 2009). dos pela díade adulto/bebê.
dores atuam inconscientemente Os recém-nascidos parecem buscar Neste engajamento, mães (adultos) e
como protetores, nutridores e “pro- ativamente essa forma de comunica- bebês oferecem e captam pistas
fessores” da língua e da cultura ção, essencial para seu desenvolvi- acerca de seus estados mentais e
(Papousek, 1996). Esta atuação, mento cognitivo, e nesse processo, o afetivos, o que permite que as subje-
imprescindível para o desenvolvi- bebê começa o “treinamento” de seu tividades dos membros da díade

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sejam compartilhadas (Nogueira; sobre a música (Sampaio et al, 2015, terapeuta, ou seja, é necessária a
Moura, 2007). p. 149). presença física desses profissionais
Se este engajamento comu- A Escola de Música da para que o processo evolua. O edu-
nicativo é comprometido ao longo do UFMG, instituição que forma educa- cador/terapeuta engaja a
desenvolvimento, como acontece dores musicais e musicoterapeutas, música ou os estímulos sonoros
com as crianças autistas (ou com sedia o Ambulatório de Musicotera- que toca ou improvisa ao estado
Transtorno do Espectro do Autismo pia que atende crianças autistas de emocional da criança, a qual,
– TEA), a música tem se configurado todas as idades, e o Centro de Musi- aos poucos, passa a deixar a
como um instrumento importante calização Integrado - CMI, que ofere- marca de seu humor, de sua
para incentivar o afloramento e a ce aulas de musicalização e instru- personalidade e de sua subjeti-
potencialização da Musicalidade mento para crianças autistas entre vidade nas suas respostas a
Comunicativa dessas crianças, o que dois e quinze anos de idade. Alunos estes estímulos. Quando isso
tem permitido o resgate da capacida- de Graduação e Pós-graduação, acontece, a Musicalidade Comunica-
de de comunicação desta população. orientados por professores da insti- tiva daquele autista, que estava ador-
É justamente aí que entram as esco- tuição, atendem essa população e os mecida, é mobilizada, atiçada e
las de música... resultados têm sido animadores. potencializada pela atividade musi-
Além disso, pesquisas têm sido cal. Rompe-se a barreira de comuni-
E d u c a ç ã o M u s i c al E s p e c i al conduzidas no sentido de aprofundar cação e integram-se as subjetivida-
e M u s i c o t e r a p i a n a E s c ol a o conhecimento acerca das relações des que passam a ser compartilha-
de Música da UFMG da música com o autismo, visando o das. E é desta relação intersub-
aprimoramento de sua aplicabilidade jetiva que brota a palavra!
A Educação Musical voltada pedagógica, pela Educação Musical, Assim, ao favorecer a criação
para pessoas com algum tipo de e da sua aplicabilidade terapêutica, deste modelo explicativo, a partir de
deficiência é denominada Educação pela Musicoterapia. pesquisas e da prática, a Escola de
Musical Especial e tem como objetivo Nosso envolvimento direto Música da UFMG coloca a música em
investigar e praticar o ensino e a com este trabalho na UFMG, tanto outro patamar, agregando a esta
aprendizagem da música para pesso- na orientação de pesquisas, quanto manifestação artística dimensões até
as com deficiências. O “objetivo na supervisão de atividades práticas a pouco impensáveis, e que possibili-
primário da educação musical espe- envolvendo crianças autistas tem tarão avanços em prol do desenvolvi-
cial é estimular e desenvolver habili- mobilizado nossa atenção para resul- mento da pessoa autista.
dades musicais acessíveis ao aluno tados impressionantes, obtidos
que possui limitações motoras e/ou principalmente em relação à melhora
mentais” (Oliveira et al, 2017). A da capacidade de comunicação social
educação musical pode promover dessas crianças. E na busca por
efeitos tão benéficos quanto os da explicações bem fundamentadas que
Musicoterapia, mas não deve ser justificassem tais resultados, chega-
considerada um processo terapêuti- mos aos dois conceitos apresentados
co, “uma vez que seus objetivos no início deste texto.
primários são pedagógicos e não O efeito benéfico da
reabilitacionais” (Louro, 2006, música na pessoa autista está
p.66). diretamente relacionado à
Betânia Parizzi
Por outro lado, a Musicote- Musicalidade Comunicativa,
rapia consiste “em um processo siste- primórdio da comunicação
Betânia Parizzi é Professora Associada
mático de intervenção no qual o humana, anterior à música e à
da Escola de Música da UFMG. É
terapeuta ajuda o paciente a promo- palavra, que se manifesta desde Doutora em Ciências da Saúde pela
ver sua saúde utilizando experiências o início da vida. A atividade Faculdade de Medicina da UFMG;
Mestre e especialista em Educação
musicais e a relação terapêutica” musical tem o poder de instigar Musical e Bacharel em Piano também
(Bruscia, 2000 apud Sampaio et al, a musicalidade inata do autista, pela Escola de Música da UFMG. Atua
2015, p. 148). No processo musicote- seja ele criança, adolescente, ou na Graduação e na Pós-graduação
onde desenvolve pesquisas sobre
rapêutico, são oferecidas ao paciente adulto, abrindo janelas de música e cognição com ênfase no
experiências musicais diversas por comunicação com essas pesso- desenvolvimento cognitivo-musical
meio de atividades de audição, as, sem a necessidade da pala- nos primeiros anos de vida e nas
relações da música e o autismo.
performance, composição e improvi- vra. Mas para que isso aconteça, a
sação, determinadas pelas necessida- musicalidade da pessoa autista tem Contato:
des clínicas do paciente e por suas que ser provocada pela Parentali- betaniaparizzi@hotmail.com
(31) 997094641
habilidades, gostos, histórico e ideias dade intuitiva do educador ou do

REVISTA CRIANÇAS - ANO I - EDIÇÃO I 11


Há mais de três décadas discu- forasteiro interessado na recompensa deficientes. A deficiência como lugar de
tem-se as possibilidades de uma educa- chegou à cidade, com sua flauta, e come- exceção, a qual não se conforma ao todo.
ção para todos. Leis, decretos e declara- çou a tocar uma melodia maravilhosa. Os Algo na alteridade deficiente serviria de
ções, nacionais e internacionais, foram ratos, encantados, saíam dos seus escon- anteparo a uma pretensão totalizante.
instituídos. Apesar do tempo, debates derijos e seguiam o flautista, hipnotiza-
acerca da inclusão continuam na ordem dos. O flautista levou-os até o rio da
Educação para todos ou
do dia e o imperativo de uma educação cidade, onde os ratos morreram afoga-
para todos mantém-se atual. dos. controle de todos?
Certamente há um encanto na Apesar de livrar a cidade dos
expressão para todos. Encanto melodio- ratos, os habitantes não cumpriram a O para todos, globalizado, é um
so, hipnotizador, que faz lembrar um promessa e não pagaram o flautista. imperativo nos discursos oficiais acerca
conto folclórico alemão, O flautista de Este, furioso, deixou a cidade, mas retor-
da inclusão escolar. Seria efetivamente
Hamelin. Vale apresentar aqui um breve nou semanas depois. Enquanto os
habitantes estavam na igreja, o forasteiro educação para todos ou governo e
relato desse conto a fim de provocar uma
discussão acerca dos perigos dessa melo- tocou novamente sua flauta, atraindo controle de todos? Para controlar, é
dia encantadora. desta vez as crianças de Hamelin. Tal necessário conhecer, regular e normati-
como os ratos, as crianças seguem-no zar. Dessa forma, a gestão - palavra tão
Realmente é possível que encantadas com a melodia e se afogam
no rio. Apenas três crianças sobrevivem:
em voga atualmente - se torna eficaz.
todos estejam no mesmo uma cega, que não consegue seguir o
Administrar todos é mais fácil do que
lugar? flautista e se perde no caminho; uma gerenciar cada um. Conhecer o que será
surda, que não consegue ouvir a flauta, e governado torna-se fundamental e, por
Há muitos e muitos anos a uma deficiente física, que usa muletas e isso, entram em cena, revigorados, os
cidade de Hamelin sofria com uma cai no caminho. diversos saberes especializados, os quais
invasão de ratos. Seus ricos habitantes Interessante destacar dessa
teriam como função descrever os chama-
não sabiam mais o que fazer, até que história, inicialmente, a impossibilidade
de que todos estejam na mesma posição. dos incluídos (ou laudados, termo muito
decidiram oferecer uma boa recompensa
O tal forasteiro – o estrangeiro no lugar recorrente nos meios escolares). De
em dinheiro àquele que livrasse a cidade
desses animais. Pouco tempo depois, um da exceção – não fazia parte do todo e, acordo com Lockmann (2013), “Há,
justamente por isso, pôde trazer uma portanto, a necessidade de tornar os
ideia inédita. Outro aspecto importante sujeitos conhecidos, de capturá-los
é a formação da massa, como bem
analisou Freud (1921), sedenta por um dentro de classificações e diagnósticos
líder hipnotizador. Ao se transfor- que lhe atribuam um nome, ou de uma
mar em todos, a massa corre o síndrome, ou de uma deficiência, mas,
sério risco de ser em qualquer um dos casos, fazem desse
afogada no rio! O sujeito alguém menos estranho, mais
final do conto é
conhecido e, por isso, mais governável”.
revelador: os
únicos sobrevi-
ventes são

12
lado, há a necessidade de conservação e e privilegia a dimensão técnica.
transmissão do mundo como um bem A exacerbação do tecnicismo
imaterial construído pelos nossos significa o predomínio do caráter replicá-
antepassados e, por outro, há seres novos vel e serial, oriundo da fabricação de
Afinal, qual é o sentido que vão se relacionar de forma sempre objetos, em uma tarefa eminentemente
inesperada com essa transmissão. Isso humana, a educação. Considerá-la como
da educação? determina um trabalho que torna impos- arte, e não meramente como técnica a ser
sível a padronização e a garantia. aplicada (e replicada), requer uma
Refletir sobre os paradoxos Diante dessa dificuldade mudança subjetiva – tanto do professor
concernentes à pretensão totalizante e estrutural, torna-se imperioso um quanto do aluno – a partir de uma
estandardizada de uma empreitada para trabalho artesanal, para cada um. experiência em conjunto.
todos, não significa defender uma educa- Enfrentar essa empreitada exige Isso não ocorre na massa, dada
ção para alguns, elitizada. Em contrapar- que professores e alunos possam se sua dimensão artesanal. Menos ainda
tida, propõe-se um deslocamento da sentir minimamente acolhidos. Os quando se trata do chamado aluno
questão a fim de argumentar que o primeiros, em sua árdua tarefa de trans- especial, o qual não se dilui no todo.
sentido da educação tem que ser compar- missão, e os segundos, no incerto (e Lembremos, afinal, que os chamados
tilhado com todos. Afinal, em nome do incômodo) trabalho de dar significado à deficientes foram os únicos a se salvar do
que educamos? Se não recuperarmos o inserção em um mundo comum. O resul- destino funesto arquitetado pelo flautista
sentido da educação, continuaremos tado dessa operação é sempre incerto, de Hamelin. Justamente a partir de seu
submissos aos encantos hipnóticos, tal imprevisível, visto que não é possível lugar de exceção, foi possível resistir ao
como os ratos de Hamelin, de um ideal determinar a priori como o aluno vai se apelo hipnótico.
de inclusão e controle total. relacionar com os fragmentos do passado
Custódio (2011), alinhada à que lhe são apresentados.
perspectiva da filósofa Hannah Arendt Cabe sublinhar que todo ideal
(2009), sublinha que o “mundo é, para a pedagógico que não levar em considera-
educação, o significado fundamental de ção a dimensão impossível do ato educa-
seus esforços”. Esse deveria ser o sentido tivo, está fadado ao fracasso. De acordo
universal, para todos, da educação. O com Voltolini (2011), na essência da
conceito de mundo, tal como a referida educação existe um dilema que a define,
filósofa o concebe, refere-se ao acesso aos “cuja solução é impossível: como
bens culturais públicos e realizações atingir o bom termo entre unificar
históricas, ou seja, conhecimentos, sem aniquilar as diferenças e
linguagens, expressões artísticas, permitir as diferenças sem que isso
Kelly Cristina Brandão da Silva
práticas sociais e morais que desejamos ameace a conservação de um
transmitir às novas gerações. mínimo solo comum?”.
Historicamente o sentido da Admitir essa dimensão impossí- Psicanalista, Doutora em
escolarização dos chamados alunos vel também significa abrir espaço para Educação pelo Departamento
especiais, devido à extrema influência uma experiência tecida a partir do encon- de Filosofia da Educação e
dos campos da Medicina e da Psicologia, tro, sempre imprevisível, entre professo- Ciências da Educação, na
nunca foi o acesso aos bens culturais. res e alunos. O grande problema, atual- linha de pesquisa Educação
Dessa forma, aos chamados especiais mente, é que o campo da Educação cada Especial, da Faculdade de
estaria vedada a possibilidade de partici- vez mais prescinde da dimensão artística Educação da Universidade de
São Paulo (FEUSP); especialista
pação na polis. A educação se restringiria
em Transtornos Globais do
aos aspectos instrumentais, o que possi- Desenvolvimento, pelo Instituto de
bilitaria talvez um pouco de autonomia Psicologia da Universidade de São
para que se perpetuasse a vida na esfera Paulo (IPUSP) e graduada em
privada. Psicologia pela Universidade
Diante dessa perspectiva, não é Metodista de São Paulo (UMESP).
possível apoiar uma educação para Docente do Departamento de
todos na qual a alteridade seja Desenvolvimento Humano e
controlada, examinada e pasteuri- Reabilitação da Faculdade de
Ciências Médicas da UNICAMP.
zada, mas sim reivindicar esforços
Autora do livro, finalista do prêmio
educacionais que possibilitem a Jabuti 2017, "Educação Inclusiva:
introdução de todos no mundo para todos ou para cada um?
comum. Alguns paradoxos (in)convenientes.
Editora Escuta/ FAPESP, 2016"
Por uma educação mais
artesanal Contato:
kcbsilva@unicamp.br
A educação é, por excelência,
um campo tenso e imprevisível. Por um

REVISTA CRIANÇAS - ANO I - EDIÇÃO I 13


ESPAÇO AMARELINHA
P R Á T I C A

UM LUGAR DE ACOLHIMENTO E TRATAMENTO

O saber sobre a ções importantes).


h i s t ó r i a fa m i l i a r Mas isso é muito
N A

diferente da
Atualmente as famílias estão transmissão
muito sozinhas nos cuidados com os familiar que fala do
C L Í N I C A

filhos às vezes encontram-se sós por saber singular de


estar longe de pais e parentes ou por não cada família, que
considerar importante a transmissão do promove uma
saber familiar, mesmo tendo um compa- identificação dos
nheiro ao lado, ou alguns familiares, não pais com o bebê
podem contar com sua ajuda. possibilitando o
O período da gestação também exercício das
é vivido de modo muito solitário, consi- funções materna e
derando-se que ao longo da história, a paterna responsá-
A

construção da maternidade já foi envolvi- veis pela estrutura-


da por uma transmissão de conhecimen- ção de um sujeito.
tos realizada em momentos gostosos de Esse contato é muito
troca, rodas de conversa entres várias diferente de falar
gerações de mulheres, incluindo sobre os cuidados
vizinhas, em que cada uma falava de sua com as necessidades
vivência. básicas ou de qual é a melhor cadeirinha de Espaço de
Nesses encontros, as mulheres balanço com música que deve ser compra- convivência:
teciam as mantas, roupinhas, sapatinhos da. lugar de encontro
e junto eram tecidos também os planos, É importante resgatar esse e s o c i al i z a ç ã o
os sonhos, a escolha dos nomes. As avós, saber valioso dos avós e bisavós
com sua experiência, discorriam sobre pois essa sabedoria possibilita que A proposta desse espaço de
como deviam ser os cuidados com o os pais construam o seu conheci- convivência foi idealizada com base na
bebê: como dar o primeiro banho, tratar mento sobre a maternidade e a experiência da pediatra e psicanalista
do umbigo, identificar os chorinhos. Essa paternidade, esse saber não pode Fraçoise Dolto, que criou a Maison Verte
mãe contava como a futura mãe tinha ser transmitido via internet ou (ou Casa Verde, em português), aberta
sido quando nasceu, como gostava de através dos livros, ele precisa ser em 1979, em Paris, na França, como um
dormir, quais músicas preferia ouvir ao pautado nos significantes familia- lugar de encontro e socialização. A fim de
ser ninada e, com esses relatos preciosos, res que de geração em geração reconhecer essa importância, gostaria de
apareciam igualmente a necessidade dos apostam e antecipam as produções compartilhar essa experiência que vem
cuidados que devemos ter com a mulher da criança, de acordo com o signifi- sendo desenvolvida em Londrina, no
no pós-parto: o repouso, a tranquilidade, cado próprio de cada família, o que Paraná, desde março de 2016, Em uma
a segurança. Ser cuidada para poder permite que o bebê realize o que é instituição do terceiro setor (OSCIP)
cuidar do bebê. proposto. Só assim ele pode se Espaço Escuta, projeto vinculado ao SUS.
apropriar de suas competências e se O espaço de convivência é
Desamparo desenvolver como sujeito apoiado em também um local para brincadei-
uma rede simbólica, essa transmissão ras, e como brincar é um consti-
O saber familiar tem dado lugar deve ser perpetuada. Em um reconheci- tuinte importante do sujeito,
ao conhecimento encontrado nas redes mento dos pais para com seu filho demos a ele o nome de 'Espaço
sociais, na internet, nos médicos (sim, permeado por um prazer compartilhado. Amarelinha’. A origem do jogo inven-
devemos reconhecer que eles têm informa- tado pelos romanos, marca a passagem

14
do homem pela vida. As gravuras quase não participavam e muitos não frustrações. A importância da presen-
mostram crianças pulando amarelinha sabiam mesmo como brincar. Aos ça dos pais faz com que as histórias
nos pavilhões de mármore nas vias da poucos, foram aprendendo, gostando e se familiares circulem e sejam transmiti-
Roma Antiga. divertindo. Outro momento interessante, das para os filhos. Permite também
O Projeto Espaço Amareli- que acontece espontaneamente, são as que se identifiquem com o semelhan-
nha semelhante da proposta inicial conversas entre os pais sobre questões te e aprendam a lidar com a separação
da Maison Vert, visa proporcionar fundamentais para o desenvolvimento, em presença, pois aos poucos podem
um lugar de convivência para as como os horários de sono e o lugar onde se distanciar sabendo que os pais
famílias com seus bebês e crianças o bebê dorme, as mamadas, a introdução estão por perto. Sabemos que essas
de até três anos, mas é também uma de novos alimentos, a seleção ou a recusa experiências não são sem sofrimento,
proposta clínica de intervenção alimentar, as dificuldade para estabele- envolvem dificuldades e descobertas,
precoce. cer limites, o desmame e a entrada na encenadas pelo brincar que marcam a
No Espaço Amarelinha, escola, entre outros temas que os profis- passagem do homem pela vida como
como há esse objetivo de interven- sionais escutam, acolhem e trabalham na Amarelinha.
ção clínica com um olhar para a com efeitos significativos, pois podem
relação mãe-bebê e também para a reconhecer o saber desses pais que já
constituição subjetiva, oferecemos elaboraram algumas questões importan-
um lugar para cuidar dos pais, onde tes e podem servir de espelho para os
eles podem se escutar na construção outros pais. Há momentos de troca, em
dessa relação e compartilhar suas que as crianças brincam entre elas e os
histórias, contando e recontando, adultos, com os filhos dos outros; há
fazendo um resgate ou escrevendo e também ocasiões em que os pais procu-
inscrevendo sua própria história, ram os profissionais para trabalhar
sua relação de cuidados com o bebê. algum assunto específico, são grupos de
A equipe que atende, avalia e inter- trabalho com duas horas de duração e as
vém quando necessário fazendo um vezes existem vários desdobramentos.
reconhecimento das produções da
criança, tanto nos aspectos psíqui- M o m e n t o d e c o n cl u i r Maribél de Salles de Melo
cos como no que diz respeito à cons-
trução da inteligência, na exploração Após três anos e meio, obser-
Psicóloga (PUC- PR, 1991), especialista
dos objetos, nos aspectos psicomoto- vamos que essa prática possibilita um em Estimulação Precoce (2015); e em
res, de hábitos e de linguagem. cuidado com os pais e um reconheci- “Clínica interdisciplinar dos problemas
O grupo tem um funcionamento mento do seu saber sobre a criança, e do desenvolvimento infantil”(2008 -
muito interessante: montamos uma sala isso os autoriza a se reposicionar Centro Lydia Coriat); Diretora clínica e
ampla com tatames e deixamos alguns frente às funções parentais, e a desen- terapeuta em Estimulação Precoce no
Espaço Escuta Londrina PR e do Centro
brinquedos à vista, tais como carrinhos, volver um brincar e um cuidado Mãe Paranaense (2013 a 2017); Docente
blocos de lego, bonecos, panelinhas e envolvidos por um prazer comparti- do Centro Lydia Coriat na especialização
arcos. O objetivo é construir brincadeiras lhado, sentindo-se menos sozinhos. Se em Estimulação Precoce (2018) da
e dar vida aos brinquedos. Por isso os identificam percebendo muitas questões Faculdade Inspirar, na Pós- Graduação
objetos são simples, nada de apertar comuns e alguns pais que já elaboraram em Enfermagem e saúde neonatal; na
Pós-Graduação em Saúde Mental na APS.
botões com música, pois esses são suas questões servem de espelho para os PELA SESA, FUNDSAUDE-ESPP-CFRH;
brinquedos que não exigem criatividade. que estão vivenciando conflitos e angústias Membro da REDE BEBÊ psicanalista
Os responsáveis pelo grupo similares, nessa convivência conseguem membro e membro fundador APC
(dois profissionais) apresentam a supor possibilidades nos filhos e fazer (Associação Psicanalítica de Curitiba-
proposta aos pais e, inicialmente, os planos para esses, construindo valores PR). artigos publicados: nos livros
Travessias e travessuras no acompanha-
profissionais se envolvem nas brincadei- para sua família.
mento terapêutico (Ágalma, 2017) e
ras, buscando ver o que desperta o As crianças que chegam com Psicanálise e Ações na Primeira Infância
interesse das crianças, partindo do indicadores de risco para o desenvol- (Escuta, 2012) Marcas da Singularidade e
desejo delas e, aos poucos, incluem os vimento, vivem trocas diferentes das da diferença: o que as crianças e adoles-
pais no processo. A partir do envolvi- propostas pela escola, pois há mais de centes nos revelam (Instituto Langage,
2018) entre outros.
mento dos pais, os profissionais se um adulto para cada criança, e pode-
retiram para que eles construam e mos avaliar, identificar e nomear para Contato:
compartilhem as brincadeiras com seus elas o que vivem, permitindo que se maribelmelo@hotmail.com
filhos. reconheçam e se apropriem dessas (43) 99661-0261
No início era muito difícil, eles vivências, lidando com limites e

REVISTA CRIANÇAS - ANO I - EDIÇÃO I 15


A criança separada visão reducionista do abandono é preciso expostas a várias separações, rupturas e
de sua família dar testemunho que as famílias que entre- descontinuidade nos vínculos. Como os
gam seus filhos são famílias abandonadas profissionais das instituições de Acolhi-
O acolhimento institucional é pelas políticas públicas. mento podem atuar nestes momentos
uma medida protetiva prevista no ECA No trabalho de supervisão nos junto às crianças?
para as crianças e adolescentes que foram Serviços de Acolhimento temos acompa-
separados de suas famílias biológicas, por nhado casos de destituição familiar, de O abrigo: lugar de abandono
estas não reunirem, temporariamente, aproximação de crianças e pais candidatos
ou de cuidado?
condições para cuidar de maneira integral à adoção e, por vezes, desistências destes
de seus filhos. pais candidatos durante o período mesmo
O entendimento que as equipes dos
Retirar uma criança da de convivência inicial. Cada uma destas
Serviços de Acolhimento têm do período
família de origem, embora seja uma etapas produz fortes impactos na criança; a
em que a criança permanece na instituição
medida de proteção é, de certa atuação dos profissionais dos Serviços será
produz efeitos na forma como a criança
maneira, uma violência. A entrada decisiva em cada uma delas, por serem
representará o período vivido na institui-
na instituição é momento de separa- etapas que mudam o destino de cada
ção. Conceber o SAICA como um mal
ção e afastamento de todo o univer- criança.
necessário é diverso de pensá-lo como
so conhecido: família, vizinhança, Neste artigo gostaria de reunir
lugar de cuidado e crescimento para as
lugares, amizades e, implica em algumas intervenções necessárias junto a
crianças e produzirá efeitos diferentes nas
rupturas de vínculos. Assim que a essas crianças neste momento repleto de
criança é acolhida, o Serviço de Acolhi- tantos sentimentos: o luto pela separa-
mento deve iniciar um trabalho junto à ção da familia biológica, a abertura
família visando criar condições de supera- para novos vínculos e talvez uma
ção da situação que gerou o acolhimento e nova família e, com a adoção, a
a reintegração da criança à família biológi- saída do Acolhimento que
ca ou família substituta. representa uma nova ruptu-
A reintegração familiar não é um ra de vínculos para as
processo fácil nem rápido; para evitar uma crianças que nele
viveram. São crianças

16
crianças que ali habitam. Os profissionais despedida nela?”) uma história.
que lá trabalham precisam se dar conta da (T, de 6 anos diz aos irmãos que “A criança não deve se sepa-
importância de seu trabalho junto às estão na mesma instituição: “não vou rar bruscamente das crianças que
crianças. deixar ninguém separar a gente”, frente a conheceu por ter sido adotada. Essa
D.W.Winnicott, pediatra e perspectiva de adoção dele e dos irmãos separação de seu meio, de seus
psicanalista, coordenou lares para por famílias diferentes.). amiguinhos, é uma violação, um
crianças evacuadas durante a Segun- Para haver elaboração são rapto, uma violência abominável.
da guerra mundial que foram sepa- necessárias palavras, conversas, Deve-se proceder introduzindo mediações
radas de suas famílias. Para Winni- disponibilidade da parte dos adul- e etapas. (...) É preciso que a relação se
cott, a estabilidade ambiental e a tos; é importante oferecer oportuni- mantenha por certo tempo; não convém
continuidade dos cuidados ofereci- dades para a criança falar de seu separar-se de tudo e fazer como se estives-
dos nos primeiros anos de vida de passado, perceber qual a compreen- se acabado. A adoção não é um nascimen-
uma criança são fundamentais para são que ela tem do mesmo, deixá-la to, nem o meio de Acolhimento- uma
a constituição do sentimento de perguntar aquilo que não entende, placenta. A placenta só existe uma vez, ao
segurança e confiança em si mesma, oferecer informações sobre seu passo que a vida depois do nascimento é
em relação ao outro e ao meio; para processo, permitir que ela acompa- feita incessantemente de mediações na
o desenvolvimento de autonomia e nhe as decisões que definirão seu linguagem”
auto-estima e da capacidade para futuro. A suposição de que quanto menos (Françoise Dolto)
tolerar frustrações e angústias, se falar, melhor, pois evita sofrimento, não (M, de 11 anos vive um período de
dentre outros aspectos. funciona neste caso. aproximação que termina na desistência
Winnicott tem uma concepção do A criança precisa construir uma da adoção pelos pais candidatos. Na
abrigo como um lugar de cuidado e não de narrativa sobre sua nova condição; este é primeira sessão após a desistência ele se
abandono, capaz de promover experiên- um momento muito delicado, pois não senta e desenha uma banda de 10 amigos
cias fundantes e reparatórias no psiquismo estamos falando da verdade factual, mas com os respectivos nomes e os lê para mim.
da criança. Quando a família, por algum da forma como a criança constrói uma São os amigos da escola. Após falar sobre a
motivo, não pode oferecer estas condições, narrativa própria, integrando os fatos desistência dos candidatos e chorar um
outros adultos podem ocupar o lugar de vividos, as fantasias e a preservação afetiva pouco me diz: o lado bom é que não vou ter
atenção e cuidado e assim oferecer à dos pais biológicos. que mudar de escola e posso continuar
criança condições de subjetivação. (D., 10 anos: “meu pai punha a com meus amigos.”)
gente ajoelhado no milho, meu irmão Embora entristecido pela
A destituição e suspensão apanhava muito; ele era nervoso, mas a desistência dos pais candidatos, ele sente
das visitas dos pais educação das antigas era assim” - vemos o que tem um lugar para onde voltar, como
esforço para manter uma boa imagem do ele me disse neste dia: “eu tenho casa”.
pai) A preparação para adoção é um
No caso de destituição dos pais,
(T de 8 anos dizia: “minha mãe processo delicado que exige intenso traba-
haverá a suspensão das visitas dos mesmos
não vem me visitar porque não sabe o lho psíquico das crianças e adultos envolvi-
à criança, que será considerada, a partir de
caminho” - tentativa de manter uma boa dos. Por maiores que sejam as idealizações
então, disponível para a adoção. Este
imagem da mãe) em torno da adoção, na realidade trata-se
momento demanda da equipe do SAICA
de um processo que se dá em várias etapas
uma atenção aos efeitos emocionais da
separação na criança, normalmente inten- Os pais são o território de e a construção de novos laços de filiação
sos e desestabilizadores. Peitter afirma que origem da criança envolve muitos desafios e intempéries.
“o percurso que vai da separação da
família até a adoção é um período de luto Os pais fazem parte do eixo de
e reconstrução”. sustentação narcísica da criança: sua
E como podem os profissionais se autoestima e valor pessoal. Alguns profis-
oferecerem como apoio para estas sionais tem, em relação às famílias, uma
crianças? Quais recursos são facilitadores posição de culpabilização e desmerecimen-
de elaboração psíquica para as mesmas? to das mesmas; no entanto, os pais foram
De início é preciso reconhecer durante um tempo as referências da
que este é um momento de grande vulnera- criança e os laços que ligam a criança a eles
bilidade para a criança. Parece óbvio mas são parte de sua identidade.
não é; lidar com o sofrimento destas No tempo vivido na instituição
Cristina Banduk Seguim
crianças afeta profundamente o profissio- criam-se novos laços e referências, tanto
nal que, no limite tolerável de contato com com os adultos quanto entre as crianças. O
Psicóloga pela PUC-SP, especialização em
a dor da criança, lança mão de defesas apressamento das adoções desconsidera psicanálise pelo Instituto Sedes Sapientiae,
como retraimento e distanciamento que a saída do Serviço de Acolhimento é membro do Departamento de Psicanálise
emocional, naturalizando as rupturas e mais uma ruptura na vida da criança e, com Crianças do Instituto Sedes Sapien-
tiae, membro do Núcleo Acesso- Estudos,
quebras de continuidade na vida da portanto, deveria ser feito aos poucos,
Intervenções e Pesquisa sobre Adoção da
criança. Além disso, existe uma concepção respeitando o tempo da criança se despedir Clínica Psicológica do mesmo instituto,
muito idealizada da adoção que desconsi- daqueles com quem, até então, ela compar- atuando na equipe Abrigos. Trabalho de
dera os fortes laços de afeto da criança com tilhou sua vida. formação com grupo de professores da
Escola Miguilim de Educação Infantil
seus pais biológicos e o sofrimento e luto A preparação dos pais candidatos desde 2009. Atendimento clínico de
que se segue à destituição. à adoção é parte essencial de todo o proces- crianças, adolescentes e adultos em consul-
(No metrô Y., de 9 anos, após so e precisa incluir a sensibilização dos tório particular desde 1986.
saber da destituição dos pais biológicos e mesmos em relação aos laços construídos
Contato:
suspensão das visitas, pergunta para a pela criança no Serviço de Acolhimento, no cris.seguim@gmail.com
educadora que a acompanha numa consul- território (escola, esportes) e com os padri- (11) 55795490
ta médica: “ tia, se eu visse aqui a minha nhos e madrinhas afetivos. A adoção não é
mãe, você ía me deixar dar um abraço de um nascimento, a criança é portadora de

REVISTA CRIANÇAS - ANO I - EDIÇÃO I 17


ADOÇÃO
UM PROJETO DE CONSTRUÇÃO COLETIVA
A adoção é uma forma de Os técnicos irão procurar no dessa seleção para quem decide adotar.
filiação instituída por lei, que tem cadastro de crianças disponíveis na No entanto, os profissionais que têm
caráter irrevogável e coloca pais e comarca ou foro regional aquelas que experiência com os processos de adoção
filhos em condições jurídicas idên- atendam ao perfil pretendido pelos consideram que a seleção de candidatos,
ticas à filiação e à paternidade candidatos a pais, respeitando sua quando bem conduzida, aumenta as
biológica (Peiter, 2012). Mas existem posição na ordem de inscrição. Uma possibilidades de sucesso na adoção.
alguns tipos que exigem atenção especial entrevista é marcada para que o preten-
e acabam sendo chamadas de “adoções dente obtenha as informações sobre a O D e s ej o d e s e r p a i s
difíceis”, justamente por requererem criança e, em caso de aceite, o encontro
mais cuidados, como é o caso das tardias, será acertado na Vara ou no abrigo. A A ansiedade vivida por pais que
como são chamadas as adoções de crian- partir desse momento, respeitando as buscam a adoção é significativa, pois se
ças com mais de dois anos. Nesses casos, condições da criança, a qual pode neces- veem na necessidade de enfrentar mais
as crianças vivenciaram algum tempo de sitar de uma aproximação mais gradati- esse processo, muitas vezes precedido
desligamento da família biológica até a va, o pretendente poderá ficar com a por um longo e angustiante percurso de
colocação na família adotiva. Na maior criança sob o regime de guarda. A guarda tentativas frustradas de ter filhos
parte dessas adoções, a criança passou pode ser mantida por até um ano, segun- naturalmente. Assim, enfrentar mais um
por instituições de abrigo (Serviço de do determinação do juiz, ao fim do qual período de avaliações e incertezas sobre a
Acolhimento Institucional Para Crianças deve sair a sentença de adoção. Esse possibilidade de exercer a desejada
e Adolescentes - SAICA) e isso constitui período, chamado de estágio de convi- paternidade pode tornar-se muito
um tema importante para os que lidam vência, é acompanhado pela equipe desgastante e toda a abordagem junto
com o assunto, pois remete diretamente psicossocial, por meio de entrevistas aos candidatos precisa levar em conta
ao problema do abandono. periódicas. essas delicadezas.
A partir da destituição do poder A ideia de seleção de candidatos As motivações dos adotantes
familiar, a criança encontra-se sob a costuma gerar desconforto e questiona- podem ter grande importância quando
responsabilidade do Estado em uma mentos por parte de muitos adotantes já interferem no lugar de inserção que a
instituição a quem cabe a devida cautela que, para tornarem-se pais biológicos criança adotada ocupará no psiquismo
sobre seu destino. E nesse futuro deve não há necessidade de avaliação, trazen- dos pais. Para Ozoux-Teffaine (1987), a
haver um mínimo de garantias de que do indagações sobre a obrigatoriedade adoção, mesmo que de crianças maiores,
seu encaminhamento para uma nova pode trazer com frequência o desejo
família não incorra no risco de uma outra subjacente de um herdeiro que propor-
exposição a rompimentos e abandonos. cione o sentimento de continuidade à
A experiência mostra que a ocor- própria vida, vindo também atender
rência de desistência do processo aspirações de completude narcísica. Para
de adoção de fato ocorre, trazendo Peiter (2011), as concepções do filho
situações de muita angústia não como continuidade de si, como herdeiro
somente às crianças, mas também e prolongamento da própria existência,
aos pais que se veem decepciona- que trazem resíduos do narcisismo dos
dos com seu projeto de adotar. pais, podem facilitar o processo de
Dessa forma, o processo de avaliação identificação entre eles e a criança.
serve também como um cuidado com os Assim, exercem função essencial no
próprios candidatos a pais, no sentido de estabelecimento de um período
entrar em contato com suas reais motiva- idílico, de ilusão primordial
ções e até mesmo conhecer melhor as inerente ao papel da família
dificuldades da adoção de uma criança, como anfitriã da criança
evitando possíveis decepções e reiteran- recém-chegada.
do seu desejo de adotar. O processo de Numa sessão com os pais
habilitação deve estar baseado na adotivos de C. de 6 anos, que
ajuda aos pais que querem adotar, já era atendida por mim antes
prestando-lhes apoio em sua do processo de adoção,
busca. contam como a menina tem

18
características parecidas com o existência humana.
pai, pois é bastante curiosa e gosta A questão que surge aqui No caso de adoção de crianças
de aprender coisas novas. diz respeito a um difícil manejo maiores este é um desafio redobrado
Ao falarmos de pais que entre o que esperam os pais e a para os pais. Ajudar a criança na organi-
desejam muito adotar bebês com necessidade da criança de ser zação emocional que inclua sua pré-his-
aparência e biotipo mais próximos acolhida em sua individualidade. tória pessoal e o próprio psiquismo em
possíveis do padrão de suas famí- Tocamos em um aspecto paradoxal processo de construção é essencial. Os
lias, percebemos a necessidade de das funções parentais que deve cuidados parentais adquirem um papel
um filho que possa vir a atender a apropriar-se narcisticamente do de suma importância na busca pelo
desejos narcísicos. Este é um filho, mas também permitir sua acolhimento e reconhecimento da crian-
desejo genuíno e frequentemente existência singular como um ça em suas particularidades.
presente na vontade de ter filhos, indivíduo separado. Tal inserção familiar nos
sejam eles biológicos ou não. Freud (1914) postulou a remete à necessidade de a criança
Já em relação às crianças maio- existência do narcisismo como um receber um tipo de olhar que lhe
res, existe uma série de receios na adoção estágio absolutamente necessário ao ofereça um sentido de existência e
manifestada por medo das sequelas desenvolvimento emocional do indiví- a demova do estado de abandono.
deixadas pelo abandono e pela institucio- duo, e compreende que restos dessa O abandono aqui mencionado diz
nalização; das influências provocadas etapa persistem ao longo da nossa vivên- respeito a essa ausência do olhar
pelo ambiente de origem; das dificulda- cia, revelando-se em diversos aspectos de um outro, capaz de dar à criança
des de adaptação; da criança guardar da vida adulta. sentido a sua existência. Esse olhar
ressentimentos de sua pré-história e de Assim, a construção do se faz necessário tanto com filhos
que as lembranças da família de origem psiquismo humano deve passar, biológicos quanto adotados.
impeçam a criação de novos vínculos em algum momento, por um tipo No momento da desilusão
familiares. de inserção narcísica da criança algumas dificuldades podem surgir. Na
K. e A. candidatos a pais de diante dos olhares paterno e adoção, há dores narcísicas a mais a
M. de 7 anos, que já fora devolvida materno, e isso é muito bem-vindo serem elaboradas, tanto por parte das
duas vezes, me perguntam preocu- durante um certo momento de crianças quanto dos pais, que não
pados se as angústias que a futura vida. A organização do psiquismo tiveram atendido seu desejo por um filho
filha viveu quando ficou alguns requer momentos iniciais primor- biológico. O luto perdido do narcisismo
dias com eles nas festas de fim de diais de ilusão narcísica e onipo- dos pais é muito importante para a
ano passariam com o tempo. Nessa tente (Winnicott, 1967), em que o aceitação da individualidade de qualquer
sessão pudemos falar sobre a narcisismo incipiente da criança se filho. A adoção de crianças maiores
importância do acolhimento que mescla ao dos pais, para que numa implica uma capacidade maior de
eles puderam dar para o seu sofri- etapa posterior, haja a possibilida- tolerância a dores narcísicas, pois a
mento e que a partir disso o laço de de lidar com as desilusões criança que está chegando também tem
entre os três se fortaleceu. inerentes ao encontro humano. seu próprio processo de elaboração de
Ocupar esse lugar no narcisismo perdas para superar, e a ajuda dos pais é
Conhecemos nosso filho, dos pais, para mais tarde desocu- fundamental.
e a g o r a , o q u e fa z e r ? pá-lo, constitui questão crucial da

Juliana Devito

Psicanalista, Psicóloga e Mestre em


Psicologia Clínica pela PUC/SP.
Membro do Departamento de
Psicanálise com Crianças dos Institu-
to Sedes Sapientiae. Coordenadora
Clínica do Núcleo Acesso do Instituto
Sedes Sapientiae.

Contato:
devitoju@gmail.com
(11) 99869-5265

REVISTA CRIANÇAS - ANO I - EDIÇÃO I 19


Enl aces
P R Á T I C A

Terapêuticos:
ALIMENTO PARA O VÍNCULO ENTRE PAIS
E CRIANÇAS NO INÍCIO DA VIDA.
N A
C L Í N I C A

O vínculo pais-bebês é o berço


do desenvolvimento emocional,
nutrindo o indivíduo para a vida toda.
Vitalizar vínculos, fortalecer compe-
tências, acolher vulnerabilidades tem
sido o trabalho de profissionais, que
A

em situações de necessidade, são


convocados a acompanhar este
momento da vida familiar.
Demandas emocionais inten-
sas podem trazer ansiedades para pais
e bebês em vulnerabilidade. Impactos
frente a transformações e estados de
sensibilidade podem necessitar acolhi- As competências do bebê se também a partir das relações atuais
mento, reconhecimento, autorização e evidenciam desde os primeiros com cada bebê. Ana Vitória e sua
compreensão para facilitar desenvolvi- momentos, em olhares, convocações, mãe, por exemplo, precisaram de
mentos singulares. necessidades de se colocar como muito suporte para se “desprende-
Importa favorecer a prática agente de suas intenções sob a legiti- rem” das relações aprisionadas por
integrada entre vários profissionais de mação do adulto. Encontrar um um difícil luto de uma gravidez
ritmo conjunto nem sempre é fácil! gemelar com perda de uma das
saúde, valorizando o acompanhamen-
O bebê também se nutre do gêmeas logo após o nascimento.
to inicial pediátrico como porta de
contato compartilhado, da possibili-
entrada. Desenvolvemos ensino,
dade de mostrar suas escolhas e
pesquisa e prática clínica psicodinâmi-
formas próprias de se relacionar com
ca em uma universidade federal de
o que lhe é oferecido. Ele também
medicina e saúde e hospital geral de quer ter vez no vai e vem das inten-
alta complexidade. Acompanhamos ções!
famílias com bebês e crianças nos Como terapeutas, acompa-
primeiros 3 anos de vida, em Interven- nhamos em nossa fala a voz interna
ção nas relações iniciais e em Grupos do bebê, amplificando a possibilida-
de atendimento conjunto, a partir da de de construção de uma autonomia
abordagem de consultas terapêuticas com sustentação compartilhada.
psicanalíticas. Histórias antigas e desafios
O encontro clínico com profis- emocionais com sofrimentos não
sionais pode ajudar na sintonia, no elaborados ao longo da vida, gesta-
contato pais-bebês e na aproximação ção e nascimento podem demandar
acompanhamento sensível nos
para o compartilhamento de estados
primeiros tempos para que as
afetivos em situações de fragilidade e
ligações possam se construir
necessidades mútuas de proteção.

20
Ana Vitória aos poucos foi se
diferenciando da irmã gêmea que
não pode ter vida. Ao dar voz às
iniciativas e mudanças da bebê, a
terapeuta facilita a flexibilização do
olhar da mãe para a filha em uma
relação menos permeada por culpas.
A partir das primeiras
relações alimentares se demonstram
as qualidades e vulnerabilidades no
vínculo. No Grupo semanal de aten-
dimento conjunto, ficamos atentas às
comunicações não verbais dos bebês
e seus pais/mães, comentando sobre
suas dificuldades alimentares.
Amplificam-se os canais de contato.
O grupo se beneficia do espaço multi-
-dimensional para compartilhar
experiências.

Reminiscências parentais de seus


próprios cuidados quando crianças
Nem tão bebê, mas ainda embalam nossos encontros. O conta-
pequena criança, Luís chega aos dois to com aspectos infantis integrando
anos, como alguns, com um diagnós- crianças, pais e terapeutas favorecem
tico de sério transtorno de desenvol- o compartilhar de experiências emo-
vimento. A vivência lúdica no atendi- cionais.
mento vincular e no grupo de
pais-bebês/crianças nos mostra seu
desejo de interação, comunicação e
capacidade de simbolização. No Mariângela Mendes de Almeida
grupo, em que manifestações singu-
lares buscam olhares coletivos,
percebemos e amplificamos o “faz de Psicóloga e psicoterapeuta, mestre pela
Tavistock Clinic e University of East
conta” de cada um. London e doutora pela Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp).
Improvisação, prosódia, Associada Clínica do Departamento de
Criança e Família da Tavistock Clinic
melodia, co-construção, ritmo, inter- (de 1988 a 1993). Membro Filiado à
ludicidade, trabalho conjunto, parce- Sociedade Brasileira de Psicanálise de
São Paulo (SBPSP). Especialista em
rias, prazer compartilhado, encon- Psicopatologia do Bebê pela Universida-
tros e despedidas, possíveis retornos de de Paris XIII. Coordenadora do
Núcleo de Atendimento a Pais e Bebês
e elaborações... ingredientes do no Setor de Saúde Mental do Departa-
desenvolvimento da parentalidade e mento de Pediatria da Unifesp. Membro
do Departamento de Psicanálise com
Com Gabriela (e sua mãe Lia) do se tornar sujeito em relação. Crianças e Docente do curso Relação
compartilhamos muitos “presentes Pais-Bebê: da Observação à Intervenção
imaginários” na despedida do grupo do Instituto Sedes Sapientiae.
após a expansão de uma redução Contato:
seletiva de alimentos e de contato
social. Atividades em que transfor- mamendesa@hotmail.com
3842 8839
mamos o “concreto”e literal em
Unifesp 5576 4984, Núcleo de
psíquico e simbólico são contribui- Atendimento a Pais e Bebês, Setor de
ções importantes do olhar psicanalí- Saùde Mental, Pediatria.
tico para a evolução no tratamento.

REVISTA CRIANÇAS - ANO I - EDIÇÃO I 21


Embora não me pareça feliz a O testemunho de uma mãe
escolha da palavra gênero, porque
escamoteia as questões referentes à Arrumando seu armário, Lori
sexualidade: o desejo e o gozo - devemos encontrou uma antiga boneca Barbie, que
reconhecer que ela se instalou em nossa fizera parte de suas brincadeiras de infân-
língua e que hoje está no centro das cia. Seu filho, C. J., então com dois anos e
discussões políticas, seja na voz de seus meio, viu a boneca e imediatamente ficou
defensores ou na de seus detratores. encantado; tomou-a para si e não a largou
Dias atrás, por exemplo, por meses: “Eu via minha criança
diplomatas brasileiros receberam instru- absorta brincando com a Barbie,
ções do governo de Jair Bolsonaro para esse era o momento em que ele
vetar nos textos e resoluções da ONU estava verdadeiramente feliz. Era
qualquer uso da palavra “gênero”, quando o sorriso em seu rosto
contradizendo os mesmos tratados estava mais iluminado. Era
internacionais que os governos quando tudo parecia certo no
brasileiros vêm assinando desde os mundo” (Duron, 2013, p. 15).
anos 1990. (Chade, 2019). Absur- Chamou a atenção da mãe a
dos como esse nos tornam paixão crescente de C. J. por brinquedos
imediatamente simpatizantes
cons ide rados “de m e n i n a ”, algo
das questões de gênero já que
não podemos compactuar que não acontecia quando ele ganhava
com a tentativa de abolir presentes “de menino”. Isso intrigou a
um termo que carrega mãe e preocupou o pai, que, inicialmente,
uma luta política de estabeleceu regras sobre onde e como os
segregação e extermínio brinquedos “de menina” seriam permiti-
histórico. dos (primeiro, dentro de casa; depois, fora
Dito isso, de casa, mas apenas em locais onde não
também precisamos houvesse conhecidos; por fim, em casas
nos posicionar em de parentes próximos). Mais tarde, os pais
relação às crianças
passaram a aceitar que ele brincasse
ditas “transgênero”
publicamente com o que quisesse porque
e, para isso, gosta-
ria de comentar o fazia feliz.
um breve relato C. J. começou a se interes-
publicado por Lori sar também por roupas femininas e
Duron (2013) pedia para vesti-las. Um dia, pegou o
contando o top laranja da mãe e não quis devolvê-lo.
processo de De outra feita, estava na casa da avó
transição de seu cozinhando, quando pôs seu avental preto
filho. e branco de bolinhas e se recusou a tirá-lo
na hora de ir para casa. Usou-o para ir
dormir e ficou com ele dentro da casa
durante duas semanas seguidas. Combi-
nava-o com os sapatos da mãe, de salto
alto Mary Jane de couro vermelho, com
um de seus braceletes prateados e tomou
uma calculadora que usou como seu
celular: dizia que era “mamãe indo
trabalhar” (Duron, 2013, p. 28).

22
Por trás das questões nos mostra que, paradoxalmente, isso O brincar é de faz de conta
de gênero produz novas formas de sofrimento, e que
nunca houve tanta depressão como nos Se o brincar torna-se uma
Tomando como disparador tempos atuais. Por isso precisamos fala que revela uma verdade sobre o
esse recorte do testemunho de Lori, gosta- questionar a educação que damos a nossos ser e que ainda garante a felicidade,
ria de extrair três questões de nossa época filhos: o esforço dos pais por agradá-los e perde-se a dimensão do faz de conta.
que me parecem sintomáticas: deixá-los escolher e decidir, inclusive, o O interesse e a curiosidade do menino por
(1) o biologicismo, que fundamenta as nome que recebem no nascimento, pode um objeto precioso da mãe, um brinquedo
questões do ser dissociando-as da lingua- não ter um bom desfecho. carregado de lembranças de sua infância,
gem, Escutar as crianças é funda- tornar-se desse modo um fetiche adquirin-
(2) a posição dos pais que se situam como mental e bem diferente de ter que do consistência e fixidez. Se lemos o
garantidores da felicidade do filho e obedecer a seus pedidos, já que isso brincar ao pé da letra, perdemos sua
(3) a leitura literal que se faz das brincadei- implica confirmá-las num lugar de onipo- dimensão metafórica, ou seja, a importân-
ras, que supõe eliminar a dimensão tência do qual não terão como, em algum cia de que ali se opere uma substituição.
metafórica do jogo. momento, não cair e se espatifar. Dar um A infância, então, deixa de ser um
Num trabalho anterior, falei de “lugar de fala” às crianças é diferente de tempo em que é fundamental brincar e
minha surpresa ao ler que o determinismo fazer lugar para que elas possam falar. explorar todas as possibilidades do faz-de-
do Outro (Stoppel de Gueller, 2018) – ou A terceira questão sintomática – -conta para tornar-se um tempo de revela-
seja, as questões culturais que dão forma que decorre de escutar as crianças – é fazer ção do verdadeiro ser. São os adultos que
aos papéis masculinos e femininos – uma interpretação literal de suas brinca- podem estabelecer as diferenças que
defendido por Judith Butler (2007, 2009) deiras. Isso supõe que a linguagem seja separam imaginário, simbólico e real. Se
estivesse sendo lido pelos pais que defen- transparente e que o jogo -como expressão superpomos esses três registros da experi-
dem o desejo de transição de seus filhos de linguagem – possa ser lido como uma ência humana, eliminamos o tempo do
com a lente do determinismo biológico. declaração do ser. Essa é uma questão que ensaio, transformando a infância num
Sem essa suposição, não tem sentido insiste quando lemos testemunhos de pais tempo de “é para agora”, “é pra valer”, quer
pensar que uma criança de dois anos e sobre o processo de transição de crianças. dizer, acabamos com o que caracteriza o
meio já tem condição de exprimir sua Destaca-se neles “não tanto a tomada de ser de uma criança.
desconformidade com o gênero que lhe foi consciência das crianças de sua identidade
atribuído ao nascer. Então, vale a pena se de gênero; mas o processo de abertura à 1
Ela usa a expressão gender non-conforming (ou “não
conformidade de gênero”) para se referir-se a ele, com base
perguntar: será que essa posição de cunho escuta, dos pais, da verdade que seus filhos numa página da Wikipedia: “phenomenon in which

endogenista, que considerávamos supera- já sabiam e afirmavam convictamente” pre-pubescent children do not conform to expected
gender-relates sociological or psychological patterns, and/or
da, garante uma maior liberdade de (Ferreira Lima, 2018, p. 6, grifo nosso). identify with the opposite gender [...]” (Duron, 2013, p. 61).

escolha para as crianças?


A segunda questão diz respeito ao educar.
É papel do adulto dizer o que é brincadeira
e o que não é numa dada cultura, marcan-
do as proibições que regem o lugar onde se
vive e que variam com o tempo e com as
línguas. É papel do adulto diferenciar
para a criança o que é simbólico do que
é imaginário.
É papel do adulto também
assinalar para a criança o que é possível e o
que é impossível, marcando a diferença
entre o que é imaginário e o que é real.
Cada cultura e cada época apresentam
novos desafios à simbolização. Isso
Adela Judith Stoppel de Gueller
significa que o real não é uma
categoria inatingível,
Psicanalista. Pós-doutora em Psicanálise
mas que depende do pela UERJ. Professora e Coordenadora
que pode ser pensado do departamento de Psicanálise com
crianças no Instituto Sedes Sapientiae.
em cada época e em Professora do curso de Teoria Psicanalí-
cada cultura. Como já tica na COGEAE-PUC-SP. Co-Autora de
perguntaram meus Atendimento psicanalítico com
crianças e Atendimento psicanalítico
filhos: “Mãe, como era de gêmeos. Zagodoni Ed. Psicanálise
viver sem celular?” com crianças: perspectivas teórico-
-clínicas. Ed. Casa do psicólogo entre
É da nossa outras publicações.
época tomar a felicidade
como um valor funda- Contato:
e-mail: adela@gueller.com.br
mental, tentar eliminar a (011) 3865-2370
dor, a tristeza e o
sofrimento. Mas a clínica

REVISTA CRIANÇAS - ANO I - EDIÇÃO I 23


A CRECHE COMO UM LUGAR PROMOTOR DE SAÚDE.
A CONSIDERAÇÃO DA SUBJETIVIDADE DO BEBÊ COMO
UMA FERRAMENTA FORMATIVA NA EDUCAÇÃO INFANTIL:

o uso da Metodologia IRDI


Acompanhamos o aumento importância das interações humanas Por que foi proposta está
pela procura por creches ou de para a construção do aparelho mental adaptação?
Centros de Educação Infantil no – um grupo de pesquisadores propôs
Brasil nas últimas décadas. Sabemos um conjunto de procedimentos de Parte-se da concepção de que
também, por meio de estudos em intervenção denominado Metodologia a professora pode trabalhar na direção
várias áreas, que a primeira infân- IRDI (Indicadores de Risco ao Desen- de manter em andamento a constitui-
cia é um período precioso do volvimento Infantil) para uso nos ção da subjetividade, iniciada pela mãe
desenvolvimento infantil: é a Centros de Educação Infantil. O IRDI é ou por quem cuida do bebê. Desta
época da neuroplasticidade cerebral um conjunto de 31 indicadores construí- forma, além das funções de cuidar e
na qual as conexões neurais se forma- dos a partir de quatro eixos teóricos educar, já certamente bem discutidas
rão a partir da interação do bebê com o considerados fundamentais para a no campo educacional, destaca-se que
meio ambiente, que inclui os huma- constituição do psiquismo, ou do apare- a professora de creche também
nos. É neste período portanto, que se lho mental, e é deles considerado uma participa do processo de huma-
estabelecem as bases para o funciona- expressão fenomênica (Kupfer et al., nização do seu pequeno aluno: o
mento do aparelho mental. 2009). O IRDI foi proposto inicialmente, ambiente da creche é um espaço
Considerando esses dois para uso pelos pediatras e, portanto, foram privilegiado para o trabalho de
aspectos – a entrada cada vez maior de adaptados para uso com as professoras promoção pensada como a
bebês nos centros de educação e a nos Centros de Educação Infantis. garantia das condições mínimas

24
para que se instaurem as estru- esse trabalho, que citamos acima, de calidade – a musicalidade está
turas que dão suporte ao funcio- sustentação e continuação da subjeti- presente na forma particular que
namento psíquico (Mariotto, vação do bebê. Por isso, é fundamental os adultos se endereçam aos
2009). que ocorram conversas das professo- bebês e que transmite não só a
ras com esse profissional para que, o sonoridade das palavras, mas a
Como seria essa intervenção que ocorre entre a professora e cada musicalidade da fala. Nesses
subjetivante da professora bebê seja posto em pauta, discutido. momentos, a professora estará ocupa-
proposta na metodologia IRDI? São indicadores que podem ser acom- da em ouvir as vocalizações dos bebês
panhados do lado do bebê, apontando como sendo o princípio da comunica-
as expressões que indicam que o bebê ção e as bases para o nascimento das
(1) - Em primeiro lugar, as obser- está caminhando no seu desenvolvi- futuras palavras.
vações dos bebês por meio dos IRDIs mento subjetivo e do lado da professo- São 31 indicadores que entre-
não devem ser feitas pela professora, ra, as interações que ela pode estabele- laçam o bebê e a professora, ora são
mas por um outro profissional, geral- cer com esse bebê visando promover a apreendidos do lado do bebê, ora do
mente a coordenadora ou orientadora sua subjetividade. São interações lado da professora e destacam que a
(que precisarão conhecer o IRDI, ter que podem ser exercidas, por professora, na sua rotina, necessita de
uma formação para o seu uso). O IRDI exemplo, nos momento dos momentos (simples e pontuais) de
Não é autoaplicável pelas professoras. cuidados, como na troca de contatos corporais, de palavras, de
fraldas que é justamente uma afeto e de endereçamento, particulares
ocasião muito fértil para a estru- com cada bebê.
(2) - Em segundo lugar, por meio turação psíquica dos bebês: é ali
dos IRDIs, a coordenadora ou orienta- que a professora fala com ele,
dora, acompanhará como se dá, o que brinca com ele e lhe dirige a pala-
chamamos de laço entre a professora e vra de modo particularizado
cada um dos bebês que está sob o seu (Kupfer et. al, 2012). Outro momen-
cuidado. Trata-se de um exercício de to importante são as trocas de
colocar em cena, valorizar, destacar linguagem carregadas de musi-

Para saber mais sobre o Protocolo IRDI Maria Eugênia Pesaro


(Indicadores de Risco ao Desenvolvimento Infantil)
veja também a entrevista com o Coordenador Científico. Psicóloga; Psicanalista; Doutora em
Prof. Dr. Alfredo Jerusalinsky, na página 44 Psicologia Escolar e do Desenvolvi-

mento Humano pelo Instituto de

Psicologia da USP; Sócia membro da

equipe do Lugar de Vida – Centro de

Educação Terapêutica; membro do


CLIQUE AQUI!
Grupo Nacional da Pesquisa Multi-

cêntrica IRDI, membro do grupo de

pesquisa Metodologia IRDI nas

creches.

Contato

meugeniapesaro@gmail.com

REVISTA CRIANÇAS - ANO I - EDIÇÃO I 25


COMO SABER SE O BEBÊ ESTÁ SE
DESENVOLVENDO BEM?
UMA LINGUAGEM PARA SER OBSERVADA NA
INTERAÇÃO DA CRIANÇA COM SEU MUNDO
Os mecanismos sensoriais Então, o bebê vai construir, resposta de uma organização cerebral
humanos já são ativos desde o nasci- nessa relação, agarramentos, aderên- que se inicia com as informações
mento, sendo que alguns, como o cias ao outro com o olhar, com o corpo, sensoriais que são analisadas, inter-
auditivo, por exemplo, já iniciam sua com a palavra. E a partir daí, por meio pretadas e processadas, e devolvidas
função dentro do útero. Assim, de explorações sensoriais com a boca, ao meio externo como movimentos
quando o bebê nasce, ele já ouviu e com as mãos, com contrações e relaxa- práxicos, tais como: falar, segurar o
sentiu muita coisa da experiência mentos tônicos, o bebê vai adquirir as lápis, escovar os dentes, correr para
imediata com seu meio. Essas experi- posturas, as orientações, as focaliza- não tomar chuva, e outras inúmeras
ências sensoriais precoces concedem ções, realizando esquemas, que se ações que fazemos o tempo todo
ao bebê mecanismos para se relacio- integrarão formando o esquema (LURIA, 1986); e segundo, como
nar comunicativamente com os pais e corporal. Esse esquema é a percepção linguagem, de um corpo que (re)age,
todos que fazem parte da sua vida. Ele dos espaços do corpo (BULLINGER, na interação com o outro (LEVIN,
usa o olhar, a imitação, o choro, os 2008) - frente, atrás, os lados, o 1997).
movimentos reflexos para demonstrar dentro, o fora do corpo – e sua capaci- Nessa premissa, a clínica
seus desconfortos, suas necessidades e dade de reagir e interpretar os fluxos psicomotora, aposta nas brincadeiras
seu prazer. Pelas reações corpo- sensoriais (os cheiros, os sons, os que favorecem os contrastes tônicos,
rais iniciais do bebê, os pais ou gostos, à luz, o calor, a dor e o movi- os equilíbrios e desequilíbrios, a varia-
aqueles que dele cuidam, mento). No entanto, no bebê humano, bilidade sensório-motora, os balaços,
também chamados de “Outros a interação comunicativa com os os jogos simbólicos e de faz de conta,
primordiais”, vão “interpretan- outros primordiais (os pais ou aqueles permitindo que a criança explore o
do” suas necessidades e se que dele cuidam) é que vai favorecer prazer do seu corpo em movimento e
formando entre eles (pais e essas explorações e construir um bom possa, pela plasticidade neural e pela
bebê), uma comunicação, que esquema corporal. Sem o OUTRO não ativação de memórias afetivas, instru-
Ajuriaguerra (1986) chamou de há EU... (WALLON, 2005). mentalizar corpos incontidos, inibi-
“diálogo tônico-emocional”. Por Essa comunicação será dos, desintegrados e esquecidos. Mais
exemplo: quando o bebê chora e a mãe determinante para a estrutura do que inabilidades corporais, a
o toma nos braços, contornando-o, o psíquica da criança, favorecendo psicomotricidade considera a
corpo da mãe se ajusta tonicamente a aprendizagem, a aquisição dos construção da identidade de um
para receber o corpo do bebê, ou seja, sistemas simbólicos (linguagem sujeito que habita um corpo,
ambos – mãe (outro) e bebê – são falada e escrita) e a cognição. modelado por sua história, por
afetados fisicamente, e o bebê encon- seus afetos, pelas suas experiên-
tra estabilidade nesse colo, nesse A relevância do trabalho cias com o outro.
invólucro e se apazigua. Assim, os do psicomotricista.
outros primordiais (quem cuida do Quando indicar um psicomo-
bebê) aprendem muito rapidamente a A psicomotricidade é uma modalidade tricista para atendimento
distinguir os diferentes choros e clinico-terapêutica que considera o com a criança?
comportamentos, e o bebê, também corpo e suas reações como uma forma
aprende rápido como ter a atenção de comunicação e interação com os A aplicação clínico-terapêuti-
desses Outros, criando o que chama- outros. Ou seja, o corpo é portador de ca da psicomotricidade no Brasil ainda
mos de diálogo tônico-emocional linguagem por meio de seus gestos (ou é pouco compreendida e diferenciada
(Ajuriaguerra, 1986). Esse momen- na falta deles), de suas expressões (ou de outras intervenções que lidam com
to de diálogo tônico- emocial se na ausência delas) e de suas posturas e questões ligadas ao corpo, pois, a
dá quando a mãe entende que o comportamentos. O corpo comunica cultura de atendimento infantil que se
bebê precisa naquele momento os estados emocionais do sujeito muito estabeleceu por aqui é da escola ameri-
do seu colo para se sentir seguro antes de qualquer palavra. cana, onde o processo terapêutico é
e o bebê, se acalma na hora que é Então, a psicomotricidade focado no sintoma, então, um profis-
acolhido, contornado nos braços considera o corpo em ação, em movi- sional trata da linguagem, outro dos
da mãe se estabelece um diálo- mento como tendo uma dupla polari- comportamentos, outro da interação,
go, uma comunicação. dade. Primeiro, a motricidade como etc. Existe uma fragmentação da crian-

26
ça, onde a meta é que o corpo funcione. Essa criança é autista! seu repertório. O terapeuta pressupõe
A psicomotricidade está atenta à Essa criança é hiperativa! um saber no outro, e não, submeter o
instrumentalização para dar subsídios Essa criança é desatenta outro ao seu saber. Logo, na clínica
para a criança brincar com seus pares; Essa criança não aprende! psicomotora, como na psicanalítica, a
sentar para ouvir uma história; enten- aposta é na presença do sujeito, na
der o que lhe é pedido; brincar de Na psicomotricidade, a antecipação de que não é só corpo é
boneca dando comidinha a ela; comu- importância do sujeito (criança) na corpo de um sujeito, único e
nicar-se por mímica, gestos, pela fala, construção da identidade deve ser o particular.
pela escrita, etc. Ou seja, ajudar a foco da terapia. Ou seja, não se vai Assim, manifestações como
criança a adquirir repertório ensinar a criança como se alterações tônico-posturais, lentidão
cognitivo, motor, social e afetivo, conter, ou melhorar uma habili- na movimentação corporal, pobreza
para usar na aprendizagem dade, ou comunicar-se com os de repertório para soluções de proble-
escolar, na vida social, nas ativi- outros, a função do terapeuta é mas, comportamentos motores repeti-
dades cotidianas e nos relaciona- de mediador, de trazer a tona o tivos, apatia, ausência de linguagem
mentos. Contudo, não apenas que há de próprio desse sujeito, visual e gestual, entre outras, podem
isso, o atendimento pressupõe de promover a relação na trans- ser sinais precoces que sugerem que
antes de tudo: saber quem é ferência. A partir daí, gerar situações algo não esteja bem no desenvolvi-
aquele do qual se fala, antes de sensório–motoras, perceptivas, mento da criança. A ausência de movi-
dar nomes como vemos habitu- simbólicas, nas quais a criança age e se mento intencional, de seu planeja-
almente. conecta com a situação com o repertó- mento e de sua harmonia devem ser
rio que possui, e, pela experiência sinais de alerta para pais, professores,
afetiva, prazerosa, desafia- cuidadores, etc., pois, a intervenção
dora, enfim, faz novas precoce pode favorecer, sem preceden-
conexões e amplia tes, o melhor prognóstico.

Fátima Gonçalves

Doutora e Mestre em Ciências:


Educação e Saúde pela Universidade
Federal de São Paulo (UNIFESP-
-2012/2017); Educadora Física
(ESEF, 1985), Especialista em
Psicomotricidade (FMU, 2007) e com
formação em Distúrbios de Aprendi-
zagem (Instituto Langage, 2009);
autora dos livros “Do Andar ao Escre-
ver, um caminho Psicomotor”(2009)
; “Psicomotricidade & Educação
Física – quem quer brincar põe o
dedo aqui”(2010); “Caderno de
escrita infantil – progressão grafomo-
tora para a aprendizagem da
escrita”(2014), “Matematizando –
prática psicomotora na Educação
Matemática”(2014) e “A neurociência
sob o olhar da psicomotricidade”
(2019).

Contato:
fafapsico.goncalves@gmail.com
(11) 3483-4846 94579-8989

REVISTA CRIANÇAS - ANO I - EDIÇÃO I 27


Foi com alívio que nós, falar na presença maciça da TV nessa
Cuidados
psicanalistas dedicados à primeirís- relação, deixada ligada como uma
sima infância, recebemos as reco- tecnológicos constante presença, numa espécie de
mendações da OMS sobre o uso de x antídoto contra uma suposta ameaça
telas por crianças pequenas. Até 2 O olhar de solidão.
anos a criança não deve ter dos pais Na início de vida e constitui-
contato com telas e após essa ção de sua mente o bebê vive como se
idade com tempo regulado de acordo Apesar da medida protetora da OMS sua mãe fosse uma parte de si e seus
com sua fase de desenvolvimento. com as crianças, escapa à medida a cuidados atentos e acolhedores
Esperamos com certo otimismo não atenção às telas dirigidas aos pais contribuem para a ilusão vivida pelo
vermos mais televisões colocadas em com toda a gama de aplicativos que bebê em que o mundo o satisfaz
berços para o bebê dormir ou celula- visam auxiliá-los nos cuidados com o incondicionalmente de acordo com
res presos no sutiã para acalmar o bebê. Estão disponíveis APPs suas necessidades primordiais. Só
bebê enquanto mama. Cenas que para mensurar o tempo de um pouco mais tarde e com mais
foram compartilhadas por colegas ao mamar, troca de fraldas, qua-
longo dos últimos anos. lidade do sono, etc. Isso implica
A acelerada evolução da numa substituição da possibilida-
tecnologia e a inclusão dos chamados de dos pais olharem para seus
gadgets no cotidiano das famílias, filhos e compreendê-los, pois
imprimiu mudanças significativas julgam prescindir da tecnolo-
nas interações. As gerações passa- gia para essas funções. Sem
ram a ser diferenciadas por Y, Z e
atualmente a geração alpha parece
ser o extremo oposto do que o psica-
nalista inglês Wilfred Bion chamou
de função alpha da mãe como
condição primordial para a
constituição da mente do bebê.
Em linhas gerais, seria a capacidade
dos cuidadores, sobretudo a mãe, de
compreender e dar significados aos
incômodos e choros do bebê numa
etapa de vida em que o desconforto é
vivido por ele como uma sensação de
desamparo e ameaça à sua existên-
cia.
Atualmente temos visto que
em lugar de oferecer um olhar cuida-
doso, um colo ou uma voz que possa
assegurar ao bebê e às crianças
pequenas uma presença confortável,
as famílias tentam distraí-las com
telas repletas de imagens agitadas e
coloridas, que são um excesso ao seu
desenvolvimento neurológico.
Psiquicamente as telas impedem que
se constitua uma qualidade interati-
va e essa falta é um risco à saúde
mental desta criança.

28
recursos psíquicos o bebê entende sua tela mostrasse de fato o que Assim como o olhar da mãe para o
que a mãe está separada de si e vive um bebê. A mais terrorífica bebê indica sua condição de atender
começa a se dar conta que tem um sensação de não ser uma unidade. O suas demandas, compreender suas
terceiro, em geral o pai, que pode ser Eu ainda não foi constituído e ele angústias e traduzi-las em lingua-
objeto do interesse de sua mãe e conta com um cuidador atento para gem. Tudo o que um bebê precisa é
afastá-la. Cria-se uma tensão nessa não se sentir fragmentado. É essen- de uma mãe atenta. Que não se
relação inicialmente dual que antes cial os cuidados maternos afetuosos, distraia ou se perca em telas vazias
era totalmente satisfatória e confor- com um pai dando retaguarda à essa de significados afetivos. O bebê
tável, impondo ao bebê doses grada- relação. Uma mãe que não se distraia suporta e se estrutura com
tivas de frustração que vão ajuda-lo a numa tela qualquer. eventuais incertezas e falhas de
desenvolver condições mentais para Em 1967 a psicanalista ingle- uma mãe que esteja fundamen-
lidar com ela e fortalecer suas capaci- sa Esther Bick publicou um importan- talmente presente.
dades psíquicas. É o que a psicanáli- te estudo sobre as etapas mais precoces
se chama de Complexo de Édipo, da vida mental e abriu campo para
trama constitutiva da mente muitas outras pesquisas. Hoje
humana. contarmos com uma vastíssima
Esse processo é fundamen- bibliografia sobre as etapas primiti-
tal, mas precisa ser a seu tempo. O vas da mente, e uma possibilidade de
distanciamento precoce da mãe é intervir psicanaliticamente cada vez
sentido pelo bebê como uma ameaça mais cedo nas relações entre os
à sua existência, um desamparo bebês e seus cuidadores primários
aterrorizante cujo sofrimento é supe- que apresentem riscos de perturba-
rior à sua capacidade de processa- ções mentais, resultado de falhas
mento mental. Estamos diante do nessa interação precocíssima. Denise de Sousa Feliciano
risco de transtornos graves no desen- O olhar é o principal
volvimento que inclui o tão temido indicador de saúde em um Psicóloga e Psicanalista pela IPA.
espectro do autismo, que cada vez bebê. A fuga ou opacidade no conta- Membro Associado na Sociedade de
Psicanálise de SP. Mestre e doutora
mais vem sendo motivo de alerta to visual do bebê comunica o risco de pelo IPUSP/SP em psicologia clínica e
pelo aumento estatístico de sua encapsulamento em si mesmo, do desenvolvimento humano.
Especialista em Psicopatologia do Bebê
incidência. impossibilidade ou indisposição pela USP/Paris 12. Membro efetivo do
Na chamada geração alpha a para interação. Departamento de Psicanálise com
‘dupla’ mãe-bebê dá lugar à uma Crianças do Sedes Sapientiae.Docente
do Curso Relação Pais-Bebê: Da
‘tríade’ muitíssimo anterior àquela Observação à Intervenção - Sedes
constitutiva do Complexo de Édipo - Sapientiae. Membro e atual presidente
do Departamento de Saúde Mental da
mãe-gadget-bebê. Como se fosse Sociedade de Pediatria de São Paulo
imprescindível um tradutor que a (SPSP). Membro do Departamento de
Aleitamento Materno da SPSP
livrasse da angústia do não-saber: Membro da Sociedade Brasileira de
por que seu filho chora, quanto e Pediatria.
quando mamou, quando sujou as Contato:
fraldas, se tem cólicas ou manha. denisefeliciano@uol.com.br
Tudo para tentar o absoluto conforto (11) 98904-8424

e imediatismo das respostas que


possam calar os bebês de seus
resmungos e choros, que é sua
linguagem.
Seria preciso que o
tablet ou smartphone pudesse
se estilhaçar no chão para que

REVISTA CRIANÇAS - ANO I - EDIÇÃO I 29


Brincar é um direito da criança! constituição psíquica, física e social, a brincar.
Previsto no Estatuto da Criança e do escola muitas vezes cai no dilema de que A escola é um espaço de
Adolescente, esse direito aponta à garan- brincar rouba o tempo de aprender. construção de saber coletivo e isso
tia de liberdade, respeito e dignidade. Então, o que a criança aprende enquanto não vale só para os alunos, vale
Embora pareça óbvio que crianças brinca? Ao brincar sozinha, a crian- para os adultos também! Por isso,
possam brincar, infelizmente algumas ça aprende a tomar iniciativa de numa escola em que os gestores têm
são convocadas a trabalhar precocemen- buscar o que quer. Isso vale para o convicção de que brincar é importante,
te e outras, mais privilegiadas economi- bebê que encontra seu próprio pé há mais tolerância para uma aparente
camente, muitas vezes têm agenda cheia em seu campo de visão e o leva à bagunça na sala de aula, para barulho,
com atividades como curso de línguas, boca repetidas vezes, até a criança risada e até improviso, pois o brincar
robótica, esportes entre outras, então maior que monta um cenário em envolve ação e criação. Escola deve ser
sobra bem pouco tempo para brincadeira. seu quarto para uma brincadeira um ambiente que potencializa a aprendi-
Brincar é a maneira mais de princesa ou de viagem espacial. zagem, a criatividade, a possibilidade de
espontânea que a criança tem de Ao brincar acompanhada, aprende a a criança pesquisar, conhecer, aprender
conhecer o que se passa ao seu compartilhar experiências, negociar por meio da brincadeira.
redor e consigo mesma. Não há vontades, resolver conflitos e entra em Em primeiro lugar, na
nada que a criança faça com mais contato com o saber do outro, seja adulto escola precisamos planejar tempo
empenho, determinação, esforço e ou criança, por meio da fala, do gesto, da e espaço para que a brincadeira
prazer do que brincar. Brincar é própria organização do cenário, amplian- aconteça. Se na rotina diária são previs-
uma atividade completa e comple- do seu repertório simbólico. tas somente atividades dirigidas, com
xa, que envolve o corpo, a lingua- conteúdos e objetivos preestabelecidos,
gem, a cognição, as emoções e Escola é lugar de brincar aulas com professores especialistas
interações. E a criança vai apren- (inglês, educação física, artes, informáti-
der a brincar mais e melhor na Se brincar é uma forma de ca...), sobrando apenas 20 minutos ou
medida em que brinca. Então, compartilhar experiências e meia hora para o recreio, colocamos a
quanto mais brincar, melhor. ampliar o universo simbólico da brincadeira como atividade secundária.
A importância do brincar tem criança, é papel da escola promo- Para brincar, as crianças
sido bastante difundida entre educado- ver o brincar, especialmente na precisam de tempo. Tempo de
res, pediatras e demais profissionais educação infantil, mas também nos observar o cenário e descobrir um
dedicados à infância. No entanto, na anos subsequentes. Para que isso seja graveto no jardim, um novo buraco
prática, parece se instaurar um dilema possível, é muito importante que os no muro, as flores que caíram da
entre brincar e educar, entre brincar e gestores da escola abracem essa convic- árvore e que podem virar comidi-
aprender. Ainda que se fale muito da ção e possam trabalhar no sentido de nha, poção mágica, perfume;
importância do brincar para o desenvol- ampliar a compreensão dos pais e dos tempo para explorar os brinquedos
vimento integral da criança, para sua professores a respeito da importância do e outros objetos que foram disponi-

30
bilizados no ambiente – é impres- Também é um problema quando duas nio da situação e se colocar numa posição
sionante como algumas sucatas, meninas querem ser a mesma princesa mais ativa da que costumam ter na
um novo toco de madeira ou até as da brincadeira e é possível observar se relação com os adultos. No entanto,
mudanças da natureza convidam a conseguem negociar, se uma sempre nessa repetição devem surgir brechas
novas brincadeiras, novas abre mão de sua vontade pela outra, ou se para novas ideias, participação dos
criações. precisam de uma mediação para chegar a colegas e inserção de novos brinquedos.
As crianças também levam um um acordo. Quando a repetição é muito rígida e
bom tempo planejando a brincadeira, a mudança causa muita angústia e
distribuindo papeis, montando o cenário, O que observar enquanto as irritação na criança, também há
um sinal de alerta para certa
o que demanda alguma colaboração dos
crianças brincam na escola ?
professores para viabilizar a amarração dificuldade de vivenciar a brinca-
de uma cabana, a oferta de uma mesa que deira como experiência de criação
1 - Interação: com a professora e com
sirva de suporte para uma construção ou, e elaboração.
os amigos: fica muito apegada ao adulto
ao contrário, abrir espaço na sala de aula As crianças apresentam em suas
ou vai brincar e só solicita eventualmen-
para que as crianças montem algo grande brincadeiras temas que podem preocu-
te; brinca sozinha, acompanhada dos
– uma pista, uma fazenda, um castelo. par os adultos - “vou te matar/ eu tenho
amigos ou ambos; varia as parcerias;
Quero destacar aqui que há uma faca!”, “a gente é namorado” ou se
2 – Repetição: as brincadeiras variam
diferença entre brincar na escola e um menino diz “vou passar batom ou
ou são sempre iguais? A criança consegue
brincar em outros lugares, como a praça, vestir uma saia”. É importante que o
negociar suas posições com os colegas ou
a casa ou o clube. O tipo de intervenção adulto possa tolerar tais experimenta-
é muito rígida em relação ao que quer e
que uma professora ou professor faz na ções na brincadeira, pois funcionam
não aceita nenhuma interferência dos
brincadeira da criança, desde que adver- como uma investigação sobre o outro e
colegas ou professor; quer brincar
tida/o das potencialidades do brincar, sobre si mesmos, o que vale para
sempre do mesmo jeito ou aceita novos
pode colaborar intencionalmente para qualquer tema.
elementos na brincadeira;
uma extensão simbólica desse brincar a Por fim, atividades como
3 – Simbolização: em cada idade,
partir de ações que encorajem a experi- desenhar, pintar, cantar, dançar,
predomina um tipo de brincadeira, mas é
mentação e a interação com o outro. ou seja, qualquer ação que permita
possível observar se a criança imita cenas
Uma vez garantidos espaço e a livre expressão da criança, desde
cotidianas dos adultos, se entra no faz de
tempo para brincar, o papel dos profes- que realizada de forma voluntária e
conta, incluindo personagens e elemen-
sores é observar e intervir na medida da com liberdade, pode ser considera-
tos da cultura infantil (histórias, canções,
necessidade. Observar a brincadeira das da brincadeira. Se a criança está
parlendas entre outros) em seu brincar;
crianças nos fornece uma série de dados brincando bem, significa que está
se faz uso da fala, cria narrativas.
sobre o grupo e sobre cada criança, o que tranquila, disponível para aprender, para
4 – Uso da linguagem: essa observa-
nos permite planejar tanto intervenções se relacionar com o outro, para desfrutar
ção diz respeito à aquisição de vocabulá-
na brincadeira em si, como planejar da convivência social com todos os
rio e repertório verbal, mas principal-
atividades que enriqueçam o repertório desafios e conquistas que essa experiên-
mente da forma como se faz compreen-
delas no que se refere aos elementos da cia pode promover.
der e se interessa pela interação com o
cultura e aos conteúdos escolares. Se
outro; ou seja, se há uma comunicação,
percebemos que todos os dias as crianças
ainda que pela imitação, troca de olhares,
estão organizando brincadeiras de cavar
gestos.
a terra, catar folhas e pedrinhas, pode-
Quando uma professora ou
mos convidá-las a cuidar mais ativamen-
professor trazem uma queixa sobre um
te da horta, promovendo uma sequência
aluno – “João está muito agitado, não
didática voltada para a área de ciências
consegue permanecer na roda/ Joaquim
naturais. Se estão muito envolvidas em
está muito paradinho, só quer ficar deita-
brincadeiras de luta, que incluem ações
do / Marina está batendo muito nos
que geram conflitos e machucados,
amigos...” - algumas perguntas podem
planejamos apresentar uma brincadeira
nortear nossa ação: “Ele/ela está
corporal, com música, ritmo, massagem,
brincando? Como é a brincadeira? O que
ou histórias que possam trabalhar esses
está aparecendo no brincar? Está
elementos em grupo, articulados a conte- Vitória Regis Gabay de Sá
brincando bem?”
údos de linguagem, corpo e movimento.
A brincadeira também coloca a
criança diante de uma série de problemas E o que é brincar bem? Formada em Pedagogia pela PUC-SP, fez
especialização em Psicopedagogia - Atendi-
a resolver e é muito interessante observar mento Clínico e Institucional pelo Instituto
como cada criança se organiza diante Brincar bem é quando a Sedes Sapientiae e formação em Psicanáli-
criança toma iniciativa de interagir se com Crianças no NEPPC. É Coordenado-
desses problemas. Estou chamando de
ra Pedagógica da Jacarandá Berçário e
problema, por exemplo, quando um bebê com alguma coisa, está entregue de Educação Infantil, em SP, desde 1994 e
quer colocar um tubo comprido dentro corpo e alma àquilo que está fazen- atualmente cursa Psicanálise no Departa-
de uma caixa quadrada e o tubo não cabe. do, encontrando ali um sentido e mento de Psicanálise do Instituto Sedes
Sapientiae.
Ele fica um longo tempo tentando? Ele algum prazer. Qualquer ação ou
Autora do livro Infância, liberdade e
desiste de cara e vai procurar outra comportamento só é chamado de brinca- Acolhimento: Experiências na Educação
coisa? Ele já procura a professora com o deira se realizado com real engajamento Infantil em parceria com Tânia Rezende,
do sujeito que brinca. Não dá para publicado em 2018, pela Summus
olhar para pedir ajuda? Ele se frustra e
Editorial.
chora? E isso é uma experiência física e brincar sem vontade, sem interesse, para
matemática, que será mediada pela corresponder à expectativa do outro. Contato:
linguagem quando a professora disser, É importante ressaltar que as vitoria@escolajacaranda.com.br
(11) 3666-1688 (11) 99272-1792
por exemplo, “Ah, tá muito pequena essa crianças gostam de repetir brincadeiras,
caixa, será que tem alguma maior?”. pois é uma forma de alcançar certo domí-

REVISTA CRIANÇAS - ANO I - EDIÇÃO I 31


A CONCEPÇÃO DE UM FILHO, UM ENCONTRO

(IM)PREVISÍVEL
A concepção de um filho se Particularmente naque- O imprevisível e o mal-en-
inicia bem antes dele ser gerado, pois les que buscam ter um filho tendido estão sempre presentes no
já está presente, há tempos, nas com ajuda de especialistas, tal processo de concepção de uma crian-
fantasias dos pais, genitores ou não. fenômeno pode apresentar-se ça, também, na conjugação das
E tal decisão sempre apresenta com elementos mais intensos variáveis inconscientes e irrepresen-
singulares aspectos psíquicos, que do novo e do desconhecido, do táveis que permeiam o psiquismo
tocarão profundamente os que se real que surpreende e assusta. humano. As novas formas de
aventuram nessa escolha. De alguma procriação que se anunciam através
forma, as vertentes da origem, sexua- Gerar Hoje da Ciência têm apresentado procedi-
lidade e morte aqui serão reveladas. mentos que pretendem o controle da
É comum neste processo, que os pais Na atualidade, estamos sob o concepção, e vão assim, na contra-
se deparem com ambivalências e impacto de biotecnologias, aparatos mão do caminho da imprevisibilida-
estranhezas que fazem parte do e aplicativos que abrem novas pers- de traçado até então.
cenário que ali se constrói. Freud já pectivas no campo da procriação Com a descoberta de
falava deste fenômeno em 1919 – humana. Provocam fascínio e, ao métodos anticoncepcionais,
Estranho Familiar – que mesmo tempo, nos arremessam em fez-se um corte entre sexo,
representa tudo aquilo que direção a desconfortáveis e estranhas casamento e reprodução, sexu-
é familiar, mas, ao questões. O gerar uma criança alidade e procriação.
mesmo tempo, causa não depende apenas, das Hoje, outros contextos surpreen-
estranheza – manifes- contingências do encontro dem: novas configurações de concep-
tação do que deveria sexual de um homem e uma ção, inclusive com a opção de conge-
ter permanecido mulher. Estamos em um novo lar e descongelar óvulos ou esperma-
secreto e oculto, tempo, arrebatados por vertigens tozoides em data escolhida. É possí-
mas veio à luz. tecnológicas, como diz François vel gerar um filho à partir de projeto
Ansermet, com situações inéditas independente ou com três genitores,
que produzem um não-saber, e através de doador, barriga solidária,
diante do qual é necessário
elaborações.

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no ventre de um homem transgênero, pode estar comprometida com emara-
e até mesmo com a inscrição em um nhados inconscientes na busca de
site de coparentalidade. E, ainda, a soluções. Se o bebê ocupa um lugar no
possibilidade de anonimato de doado- desejo de alguém que se interessa por
res de óvulos e espermatozoides defla- ele, como um ser particular, um sujeito
gra que segredos, não-ditos e silêncios existente e importante, as portas
podem tornar-se, equivocadamente, estarão abertas para relaçoes afetivas
alternativas na construção da história entre ele e seu entorno.
de uma criança. Longe de negar ou combater
No passado, o ser humano se os valiosos avanços e conquistas da
distanciou da condição estritamente ciência, e de todos os ganhos que ela
reprodutora e construiu uma sexuali- permite, trata-se de neles incluir a
dade que, no momento, sofre abalos, fundamental escuta do psiquismo dos
quando se vê convocada a submeter- sujeitos ali envolvidos. Daí, as
-se, em certas circunstâncias, a ciclos palavras, sentimentos, angústias,
biológicos. Assim, testemunhamos medos, dúvidas, podem ser expressas e
o sofrimento de casais em proce- trabalhadas. O silêncio, o segredo
dimentos para fecundação, com e o ocultamento afetam a criança
o desejo já dilacerado, diante de desde antes de seu nascimento –
inúmeras tentativas de mapear o um abismo simbólico, que, como
período fértil com datas e horas sabemos, tem evidentes conse-
interessantes para ter relações quências para sua
sexuais. constituição
A ciência pode ser colocada psíquica.
como a mãe potente que tudo pode e
tudo sabe sobre o que dar a um bebê,
contrapondo-se à mãe e ao pai real,
que se apresentam com esterilidades,
impotências e fragilidades para conce-
ber e criar um filho. Nessas circustân-
cias, é frequente que os sentimentos
que naturalmente emergem fiquem
amordaçados, silenciados, impedidos
de ter voz.

A Concepção inclui
a palavra

Os profissionais interessados
em escutar o psiquismo e o desejo têm
o compromisso ético de pensar as
consequências decorrentes do que
acontece no campo da Reprodução
Assistida, e de criar condições para que
as palavras referentes às situações
vividas pelos participantes tenham
chance de expressar-se. Não se trata
de experiências banais e quais-
quer: ter um filho, congelar ou
descartar embriões, viver o luto
de abortos e perdas em consecu-
tivas gestações.
É importante elucidar qual
desejo sustenta a demanda de
um filho. Tornar-se pai, ser mãe, não
é o mesmo que querer ter um filho.
Este pode, inclusive, ser colocado pelos
pais no lugar de um objeto de consu-
mo, na modalidade da imitação social,
ou até de um negócio contratual. Essa
escolha nem sempre é consciente –

REVISTA CRIANÇAS - ANO I - EDIÇÃO I 33


Nas várias culturas do mundo, Um chamamento ao bebê fala materna ainda durante a sua realiza-
com raras exceções, as mães “conver- ção, antes, portanto, do final da enuncia-
sam” com seus bebês empregando um Um bebê de um mês e doze ção. Mas, logo depois, na medida em que
registro de fala chamado manhês1 . O dias, mostrando-se sonolento é chamada a participar, as respostas da
manhês é constituído de desvios e modi- durante a mamada, abre a fecha os criança vão se situando cada vez mais
ficações da fala dirigida aos adultos, proximamente do ponto em que a enun-
olhos seguidamente, até a boca
cujos efeitos se revelam na simplificação ciação é concluída, até atingi-lo. Obser-
desprender-se do seio materno.
do vocabulário, da sintaxe e da forma das va-se também que o bebê não somen-
Atenta às manifestações da crian-
palavras endereçadas à criança, mas te responde aos chamamentos
ça, a mãe lhe lança um convite
também nas modulações da prosódia e
(demanda): “Vamu arrotá, vamu”. maternos, mas ele próprio convo-
da voz materna (FERNALD, 1985;
A enunciação se caracteriza pela simpli- ca a participação do seu cuidador
FERREIRA, 1990, 2004).
ficação da frase, pela repetição de primordial (Outro) tal como o
A prosódia apresenta-se marca-
damente acentuada no tocante à entona- palavra, pela velocidade lenta de emissão falante que propõe uma conversa-
ção (variações de altura da voz) e ao e por uma ondulação melódica e ritmada ção ou dá início a ela. Nos termos
ritmo (variações de duração da cadeia com uma entonação que decresce no de Vivès (2012), a criança deman-
falada), elementos que conferem às final da fala - traços prosódicos típicos da um ouvido não surdo para escu-
enunciações maternas uma característi- do registro manhês, ao que se segue uma tá-la.
ca melódica que atrai o bebê. Fisgado vocalização da criança.
pela voz da mãe (possuidora de uma Estudos realizados nesse campo vão O trabalho materno de
identidade ou assinatura vocal única) o mostrar como o bebê leva em considera- enlaçamento do bebê
bebê a distinguirá entre outras vozes e ção algumas “pistas” para entrar em
mostrará preferi-la. É por exercer cena como “falante”, ou seja, para ofere- A análise da construção de
uma espécie de sedução sobre a cer uma resposta num determinado conversações desenvolvidas entre mãe e
criança que o manhês a chama a ponto, que não é aleatório. No caso do bebê mostra que, embora se produzam
responder aos apelos da fala a ela alterações na fala à qual a criança é
nosso bebê, a “pista” é fornecida pela
dirigida e a aproximar-se daquela exposta, tanto no que diz respeito aos
queda da entonação no final da cadeia
que lhe endereça a palavra, a ela segmentos linguísticos como aos
falada, uma queda esperada uma vez que
particularmente, sua mãe. É assim elementos suprassegmentais (prosódia),
a curva entonacional vai decrescendo até
que a voz materna tem poder de a base da organização da estrutura dialó-
invocação sobre o bebê, cujo se interromper (MARCUSCHI, 2004). gica adota o funcionamento discursivo
efeito, pelo gozo que causa, é A resposta da criança ao qual o adulto está submetido. Ora,
o assujeitamento da crian- durante as primeiras esse funcionamento depende da colabo-
ça à linguagem. (DIDIER- interações (primeiros ração de, pelo menos, dois protagonistas
-WEILL, 2015) dias de vida do bebê) (dois falantes), condição para a construção
parece sobrepor-se à do enlaçamento mãe-bebê, gênese do que
mais tarde se constituirá como
laço social.
É assim que,
apesar de a

34
mãe se revelar uma “transgressora” do quando é o bebê quem dá início ao alcance e a importância desse testemu-
léxico e da sintaxe da língua, quando ela processo conversacional, como na nho. Mas é justamente a experiência
se endereça ao bebê ela o faz a partir da seguinte cena: de satisfação mútua (gozo) entre
hipótese de que ele é um falante, seu No final do segundo mês de vida, o bebê mãe e criança, revelada no
interlocutor privilegiado, portanto, um choraminga (turno de fala 1) enquan- manhês, que vai chamar a atenção
sujeito, ainda que suposto. Será esta to a mãe prepara o seu banho. Dirigindo- de psicanalistas (FERREIRA, 1990,
hipótese ou esta suposição antecipada -se a ele, a mãe o acalenta: “Não, 2004).
que vai garantir ou propiciar o advento mainha tá aqui, pontu” (turno de A observação de diversas
futuro de um “verdadeiro” sujeito, ou fala 2). Nota-se um alongamento na situações em que o bebê está acompa-
seja, a constituição subjetiva da criança e primeira palavra, alongamento que se nhado do seu Outro primordial (a mãe
a estruturação psíquica esperada (FER- repete na última, sílabas proferidas com ou sua substituta) mostra como o
REIRA, 1990, 2004)2. uma intensidade maior em relação às manhês se intensifica em momentos de
O trabalho materno de sílabas vizinhas, elisão de encontro intenso prazer compartilhado (gozo). A
enlaçamento do bebê consiste consonantal tornando suave a sonorida-
mãe fala ao bebê em manhês
então não somente em falar ao de da fala e uma entonação que ora se
bebê mas, também, em falar por porque sua criança lhe causa
eleva ora se abaixa causando uma ondu-
ele, emprestando-lhe voz e signifi- lação musical. Quando a mãe conclui sua prazer (gozo), lhe satisfaz; o bebê
cantes para responder às deman- mensagem a criança interrompe seu choro responde porque sente prazer com
das que ela lhe faz ou para respon- (turno de fala 3). Em seguida, a mãe o prazer materno bem assim em
der a perguntas que ela também indaga: “Pontu?” (turno de fala 4). causar prazer à mãe. Ele não
(se) faz a ele, interpretando suas Da sequência de turnos de fala, somente responde à fala (e ao
manifestações, gestos, movimen- da alternância de falantes na ocupação olhar) gozoso da mãe, mas ele
tos ou mesmo seu “desinteresse” dos turnos e dos modos de ocupação ativamente se coloca como causa
em iniciar ou manter sua partici- pode se extrair a seguinte conclusão: o do gozo materno.
pação no diálogo. Nesse trabalho manhês é uma produção compar- O manhês passa a ser concebi-
ininterrupto de interações e negociações tilhada. Realizando-se como do em estudos de psicanálise como um
está a origem e desenvolvimento do coprodução, dela emergem o lugar importante instrumento de análise
enlaçamento mãe-bebê, cuja organiza- discursivo que conjuntamente acerca da relação mãe-bebê (FERREI-
ção é modelada de acordo com o padrão cada um dos sujeitos constrói para RA, 1990) e do seu papel na estruturação
discursivo da linguagem. psíquica da criança. Grande parte das
o outro.
Esse modelo discursivo se pesquisas sobre autismo também
A estrutura discursiva das
revela na organização sequencial dos são beneficiadas pelo estudo psica-
conversações das quais o bebê participa
turnos de fala, ocupados alternadamente nalítico do manhês, com desdo-
muito cedo graças à operação de aliena-
por um e por outro falante, em obediên-
ção (primeiro momento lógico de consti- bramentos e fortes repercussões
cia à regra universal das conversações
tuição da subjetividade) determina a na prática clínica.
“fala um de cada vez”. Submetida à
tomada da criança na dupla articulação
linguagem e às leis que regem seu
da linguagem (eixos sintagmático e
funcionamento, a mãe aponta o lugar do
paradigmático), assujeitamento que
bebê no discurso (na estrutura conversa-
depende de uma segunda operação
cional), conforme a seguir:
(separação). Se no primeiro momento a
criança se deixa alienar ao universo dos
Turno de fala 1 - É a mãe
significantes e ao gozo materno dizendo
quem fala, do seu lugar de
“sim” ao Outro, a passagem para o
interlocutor do bebê.
segundo momento lógico de constituição
da subjetividade depende de que o bebê
Turno de fala 2 - É o bebê
possa enunciar “sim, mas nem tanto”
quem fala, seja por si Severina Sílvia Ferreira
(LACAN, 1998).
mesmo, através dos modos
de comunicação que l h e Psicanalista, doutora em Linguística,
são próprios (vocalizações,
Por que mãe e bebê pós-doutorado em Ciências da
Linguagem. Membro de Intersecção
direcionamento do olhar,
sorriso etc.), validados pela
“conversam”? Psicanalítica do Brasil, cofundadora
do NINAR - Núcleo de Estudos
interpretação materna, seja Psicanalíticos. Professora dos cursos
Um dos primeiros estudiosos
porque a mãe fala por ele. de Pós-graduação Psicanálise e
do registro de fala endereçado às crian- Clínica com Bebês e O autismo e
ças pequenas, C. Ferguson (1964), outras psicopatologias da infância e
Turno de fala 3 - A mãe
sempre se mostrou curioso acerca das adolescência (Faculdade Frassineti
volta a ocupar o turno de do Recife). Coorganizadora do livro
possíveis razões que levavam as mães a
fala. As interfaces da clínica de bebês
falarem “baby-talk”3 com seus filhos.
(2011) e organizadora do livro O
Muito interessado, Ferguson decidiu autismo e a questão da detecção
Turno de fala 4 - Turno
conduzir uma série de entrevistas, precoce (2019). Autora de vários
de fala do bebê ou atribuído
durante as quais as mães eram convida- artigos publicados.
ao bebê.
das a responder a seguinte indagação:
“Por que você fala desse modo com sua
Esse modelo pode ser alterado Contato:
criança?” Uma resposta prevaleceu: falar ninarrecife@yahoo.com.br
sem que se produza uma mudança de
baby-talk causava prazer à mãe. Como
estrutura no funcionamento discursivo,
sociolingüísta, Ferguson não percebeu o
1
Manhês é o termo utilizado por De Lemos (1986) para traduzir motherese. Embora outras traduções tenham sido propostas, o uso do termo manhês acabou prevalecendo. 2 O emprego do registro manhês
pelas mães se dá de modo inconsciente. 3Baby-talk era como C. Ferguson chamava, em seus primeiros estudos, a fala (infantilizada) dos pais dirigida à criança.

REVISTA CRIANÇAS - ANO I - EDIÇÃO I 35


P R Á T I C A

O Trabalho com Estimulação No acompanhamento aos processo de reconstrução não se esgota na


N A

Precoce, começou no ano de 1992, em pais, é muito importante que eles internação e, por isso mesmo, realiza-
um hospital materno infantil da rede possam falar sobre seu filho e, assim, mos o encaminhamento para serviços
pública e, em abrigos residenciais na escutamos como está se dando o especializados após a alta.
C L Í N I C A

cidade de Porto Alegre/RS. De lá pra estabelecimento do seu laço com o


cá tem sido ampliado, ao longo dos bebê. Oportunizamos espaços de
Estimulação Precoce no
anos, para outros espaços do hospital. escuta em relação às suas expectativas,
hospital. Do que se trata?
O acompanhamento dos bebês e suas temores e dificuldades quando algo Acreditamos que mesmo durante o
famílias vem sendo pensado em inesperado acontece e seu bebê neces- período de internação neonatal é
momentos cada vez mais precoces, sita de uma internação hospitalar possível realizar intervenções que
com gestantes de alto risco, diagnósti- prolongada. produzem efeitos sobre a subjetivação
cos pré-natais, adolescentes, usuárias Um nascimento prematuro, a e desenvolvimento dos bebês. No
A

de drogas e, a partir do nascimento, na notícia de uma má formação ou de um entanto, podem ocorrer interferências
UTI Neonatal e no alojamento conjun- prognóstico reservado, são alguns no exercício da função materna como,
to. É importante estarmos aten- exemplos do dia a dia de uma UTI por exemplo, a notícia de uma patolo-
tos fazendo uma leitura sobre o Neonatal, onde os pais vivenciam uma gia, síndrome, dano neurológico ou de
que um bebê é capaz de manifes- diferença entre o filho idealizado uma cirurgia. Diante disso, talvez a
tar acerca de sua condição durante a gestação e o filho que mãe (os pais) não consiga ter
psíquica e desenvolvimento nasceu. Os cuidados médicos e da expectativas e, assim, experi-
neste momento de sua constitui- enfermagem, assim como os procedi- menta um apagamento das idea-
ção, onde está em posição de mentos necessários para a sobrevivên- lizações que gestou durante a
receber as inscrições primor- cia, também causam uma separação gravidez, ocasionando uma
diais de quem exerce as funções entre os pais e o bebê, desorganizando sensação de fragilidade e impo-
parentais. os pais quanto às suas referências e tência frente à possibilidade de
expectativas. se ocupar deste filho. Temos
Acompanhando os bebês e As intervenções em Estimula- convicção de que isso compro-
seus pais no hospital ção Precoce na UTI Neonatal são funda- mete a subjetivação e o desenvol-
mentais porque entendemos que será vimento do bebê e, então, traba-
Ao acompanharmos um bebê durante
necessário aos pais reconstruírem seu lhamos a fim de realizar a detec-
a internação, estamos atentas às suas
saber em relação ao filho que, ao nascer, ção precoce deste sofrimento
reações ao escutar a voz da mãe,
fez emergir algo de inesperado. Por isso que afeta ambos – o bebê e seus
seu tônus muscular, os ritmos
é necessário que se ofereça este pais.
biológicos, os reflexos inatos e,
espaço de escuta, auxiliando a O trabalho em EP (Estimula-
desta forma, avaliamos o encon-
mãe (os pais) e seu bebê nestes ção Precoce) no hospital busca identi-
tro entre o crescimento físico, a
momentos iniciais e decisivos ficar as questões que citamos acima,
maturação do sistema nervoso, o
para o desenvolvimento e consti- bem como intervir orientando e
desenvolvimento e a constitui-
tuição psíquica. Obviamente este escutando os familiares. Em relação
ção psíquica.

36
aos bebês, avaliamos e acompanha- sendo uma referência para este e mento e elaboração. A presença
mos seu desenvolvimento e, quando auxiliando na construção de sua de um adulto de referência é
tem alta, encaminhamos para atendi- história. fundamental à medida que sua
mento em EP para auxiliar que se dê o disponibilidade e desejo em rela-
estabelecimento das inscrições O trabalho da Estimulação ção a cada criança vão inscreven-
primordiais na relação com seus pais Precoce nos abrigos do um lugar singular para cada
(na função materna e paterna) e o residenciais um no coletivo da instituição.
desenvolvimento siga seu curso. Já em Desta forma, o acompanhamento da
relação aos pais, abre-se a possibilida- A primeira experiência no EP pode acontecer nos abrigos,
de de reconstruir a filiação e um senti- trabalho com abrigos foi através da escutando as narrativas que venham a
do para as questões inesperadas que solicitação de uma psicóloga que se produzir como inscrições, auxilian-
emergiram com o nascimento do filho. atuava em uma casa que acolhia bebês do na construção da história de cada
Em nosso trabalho e crianças pequenas, preocupada em sujeito.
também buscamos a interlocu- relação ao atraso no desenvolvimento As situações cotidianas são
ção com profissionais da área da que algumas crianças apresentavam momentos de encontro com o bebê,
saúde, a fim de ressignificar e sem haver causas orgânicas que as onde o olhar e a palavra colocam em
construir um novo olhar quanto justificassem. A partir daí iniciamos evidência a qualidade dos cuidados
ao diagnóstico e prognóstico do um trabalho que consistia em que tem efeitos constituintes. Não se
bebê (detecção precoce). Assim, idas ao abrigo, participação de trata de oferecer ao bebê um ambiente
no âmbito do hospital muitos são os momentos da rotina, brincar rico em estímulos ou objetos, mas de
espaços onde se podem realizar ações com as crianças, conhecer os quem está lhe apresentando o mundo,
em EP, em parceria com outros profis- cuidadores, oferecer momentos oportunizando estas experiências e
sionais que ali atuam. Na interlocução de formação e encaminhamento transformando as atividades diárias
com os profissionais estamos atentas à das crianças para atendimento em um cuidado que produz marcas
identificação de sinais que indiquem em EP, quando necessário. simbólicas. A cada situação, buscamos
que algo não vai bem no desenvolvi- Além do acompanhamento colocar palavras que possam ser trans-
mento e/ou constituição do sujeito. durante os atendimentos, as idas ao formadas em demandas dirigidas ao
Nossa conduta vai ao encontro de uma abrigo são momentos importantes do outro. Acreditamos que o cuidado
lógica em que acreditamos que a trabalho com observações e interven- que necessitam os bebês refere-se às
detecção destes sinais possibilita inter- ções em situações onde questões no marcas, aos significantes que vão
venções cujos efeitos redimensionem o desenvolvimento precisam ser cuidadas. compondo a história de cada um, são
risco de se estruturar um quadro Observação do espaço cuidados banhados de palavras que
psíquico grave ou um descompasso no oferecido ao bebê, dos momen- possibilitam que esse pequeno ser se
desenvolvimento. tos de alimentação, sono, banho, constitua um sujeito.
onde fica, o que gosta, quem
Do hospital ao abrigo. Por prefere, como é sua rotina ou,
onde andamos? ainda, o laço com o outro. Nestes
Ivone Montenegro Alves
encontros surgem muitas ques-
Com o trabalho na UTI Neo e aloja- tões sobre o desenvolvimento,
mento conjunto, nos aproximamos de preocupações, dúvidas, novida-
uma pediatra que estava fazendo o des, relatos da semana, graci-
Pedagoga- Educação Especial, Psicóloga
Clínica, Especialista em infra e superdota-
acompanhamento e avaliação de bebês nhas, conquistas, fotos de dos- PUC-RS e em Problemas do desenvol-
que foram expostos a substâncias diferentes momentos, visita de vimento infantil- Centro Lydia Coriat de
psicoativas (drogas) na gestação. Poa, Mestre em Educação - UFRGS.
algum familiar. Membro da equipe do centro Lydia Coriat
Acompanhávamos alguns bebês que Neste trabalho, foi muito de Poa; Professora do Centro de estudos
ficavam aguardando para serem enca- significativo participar da organização,
Paulo César Dávila Brandão, Terapeuta em
Estimulação Precoce.
minhados para uma instituição ou junto com os cuidadores para a cons- Contato:
para algum familiar. Esta realidade de trução de um álbum com fotos, regis- ivone_alves@yahoo.com.br
acolhimento de bebês é algo que nos tros da história de cada um. Isto acon- (51) 99982-6271
deparamos cada vez mais, devido a um tece juntamente com a equipe técnica
número crescente de mulheres sem da instituição, que além da organiza- Ana Cristina
condições de cuidar de seu filho devido ção, contribui com as narrativas sobre
Del Grande Guaraldo

à dependência da droga e fragilidade cada criança.


psíquica. Assim, esta pediatra solicitou Outra questão que surge Psicóloga, Mestre em Educação, Especialis-
que pudéssemos atender e acompa- é o trabalho sobre a separação e ta em Educação Especial e Processos
nhar os bebês em EP a partir da alta. inclusivos e Intervenção Psicanalítica na
o que acontece nos momentos de clínica com crianças e adolescentes.
‘ Em alguns casos, quando os chegada, de retorno à família ou Integrante do serviço de EP/PI da Prefeitu-
bebês foram acolhidos, iniciamos adoção, pois são momentos onde
ra Municipal de Poa, realizando atendimen-
tos em Estimulação Precoce. Professora do
um trabalho com os profissio- deixam pessoas queridas, Centro de Estudos Paulo César Dávila
nais dos abrigos, escutando suas amigos, objetos, histórias. Falar Brandão(Centro Lydia Coriat de Poa)
preferências e a possibilidade de destes momentos com as crian- Contato
virem aos atendimentos, espe- ças e com os cuidadores é funda-
anacris@universolivre.com.br
(51) 999943317
cialmente quem estava mais mental para que a palavra possa
próximo do bebê e, por isso, circular auxiliando no entendi-

REVISTA CRIANÇAS - ANO I - EDIÇÃO I 37


Um psicanalista
na UTI neonatal
À ESCUTA DE BEBÊS E SEUS PAIS.

38
Intervenção psicanalítica sobre as competências destes. De deixar que ele se apresente e
acordo com Erika Parlato-Oliveira que nós estejamos dispostos a
A intervenção psicanalítica (2011), o bebê desde o seu nascimen- aprender a interpretá-lo,
na UTI neonatal se caracteriza entre to, apresenta formas específicas de sustentando que, mesmo frente
outras coisas, por um atendimento comunicação para com o outro. a uma limitação no corpo, natu-
de urgência que acontece frente a É possível oferecer ao rais ao bebê, somadas a uma
uma situação aguda, na qual se bebê palavras que lhe contem dificuldade imposta por uma
encontra o bebê e seus pais. A inter- sua história, que contém aquilo doença orgânica, o bebê é capaz
nação do recém-nascido, se apresen- que lhe acontece falar ao bebê e de se apresentar de forma ativa
ta aos pais como uma abrupta sepa- oferecer-lhe tempo para e produtiva na relação com o
ração e como uma possível ruptura resposta, um tipo de interação outro.
no percurso simbólico construído até que permitirá que ele se reorga- A escuta aos bebês e seus
o momento do nascimento. Estamos nize e se “sustente” pela pala- pais, permite por meio da construção
atentos aos possíveis efeitos dessa vra. A comunicação entre o de um discurso para além do evento
experiência e quais os desdobramen- bebê e outro (pais e equipe), é traumático, o reconhecimento de um
tos para a relação pais-bebê. Por esta que vai permitir que este bebê lugar simbólico para o bebê, e a
razão, considerar o bebê um ocupe um lugar de sujeito e não partir da reanimação dessa relação,
sujeito em constituição a ser de objeto. (Szejer, 2019) em um processo de dupla constitui-
escutado em sua própria ção, ainda que em situações extre-
linguagem, faz com que o traba- Intersubjetividade mas, possam emergir pais e sujeito.
lho possa ser realizado, nem do bebê
antes ou depois de qualquer
sinal de risco ou sofrimento A teoria da intersubjeti-
psíquico, que eventualmente vidade inata proposta por
possa se instalar, mas a tempo Colwyn Trevarthen, postula
de se ocupar da reanimação dos que o bebê nasce com uma
laços simbólicos. consciência receptiva dos esta-
Mathelin (1999), aponta que dos subjetivos de outras pesso-
o trabalho de reanimação da criança as, e busca interagir com elas.
está para além da reparação de um (Trevarthen, 2019). Ressalta que
funcionamento orgânico deficitário, a resposta reflexa se difere dos Caroline Lucirio
pois os procedimentos clínicos com comportamentos expressivos duran-
vistas à normalização das funções te uma conversa, quando as intera- Psicóloga e psicanalista; Especialista em
Psicanálise, Perinalidade e Parentalida-
vitais do organismo, não devem ções são calmas e agradáveis, e de, e com formação em intervenção
ignorar as funções simbólicas que dependem da manutenção de uma psicanalítica com bebês em risco psíqui-
co. Capacitada à aplicação do protocolo
presidem a estruturação da criança atenção recíproca com sincronização PREAUT (Programme Recherche
rítmica de expressões vocais curtas, Evaluation Autisme); Aprimoramento
como sujeito. em Psicologia e Psicanálise na Materni-
Segundo Myriam Szejer bem como de movimentos e gestos. dade pelo Hospital São Luiz Rede D’Or
Essas expressões são reguladas atuando em UTI neonatal, perinatologia
(2016), no seu nascimento, o bebê e centro obstétrico. Atuou no CRIA
passa para uma forma de autonomia mutuamente, realizadas por cada um (Centro de Referência da Infância e
Adolescência) – UNIFESP - com bebês
de sujeito, já desejante e sensível à na sua vez, e assim adultos e bebês de 0 a 3 anos. Atualmente, atende em
linguagem na qual ele vai ocupar seu exprimem uma intersubjetividade consultório particular, participa da
Clínica Pais- Bebê do Instituto Langage
lugar, com sua própria subjetividade mútua e os pais sentem que “falam” (SP) supervionada pela Profa Dra. Erika
carregada de história que lhe precede com um ser humano. (Trevarthen, Parlato-Oliveira e é membro fundador
da Associação La Cause des Bébés
e lhe atravessa. Esta história que ele 2019). Brasil.
herda de seus antecedentes é feita O corpo do bebê tem um
Contato:
também de palavras, e com base nas modo privilegiado de expressão carol_lucirio@hotmail.com
teorias psicanalíticas que preconi- com sua linguagem multimo- (11) 97611-4171

zam falar com os bebês e a percepção dal, neste sentido, precisamos

REVISTA CRIANÇAS - ANO I - EDIÇÃO I 39


O HUMANO
A IMPORTÂNCIA DE SER, NAS UNIDADES NEONATAIS.

TECNOLOGIAS AVANÇADAS X VALORIZAÇÃO DO HUMANO

A Humanização nas niente dos avanços tecnológicos, não há nada mais “humano”
UTIs Neonatais, hoje é assunto maior conhecimento da fisiologia e que as novas tecnologias
de utilidade pública. Em 2003 o das patologias e a entrada de novos empregadas dentro das unida-
Ministério da Saúde tornou o profissionais como fisioterapia, des neonatais uma vez que
programa de humanização uma psicologia, fonoaudiólogos, entre tecnologia é marca registrada
Política Nacional. O objetivo é outros, trouxe uma mudança signifi- do homo sapiens. Paradoxal-
valorizar a dimensão humana cativa na morbimortalidade dos mente, quanto mais recursos
nas práticas voltadas a área de recém-nascidos, quer seja os prema- tecnológicos utilizamos,
saúde. turos ou aqueles que apresentam menos “humanos” nos torna-
A melhoria da qualidade no quadros de síndromes ou malforma- mos já que delegamos as
atendimento das unidades de terapia ções. máquinas boa parte do traba-
intensiva neonatais (UTIN) prove- E se pararmos para pensar, lho a ser feito.

40
Nesse sentido, houve uma mento materno exclusivo, nais podem exercitar a renún-
crescente demanda pela questão da crescimento ascendente, con- cia do “saber tudo” sobre o
humanização dentro das UTIN ao trole térmico efetivo, bom bebê e convocar e autorizar os
longo do tempo. Essas práticas controle de frequência respi- pais a contribuírem com o que
foram se tornando instrumentos de ratória e oxigenação, controle eles sabem sobre sua cria.
grande valia no acolhimento e no da glicemia, sono mais tran- Saber escutar e ter
tratamento dos bebês e suas famílias. quilo, melhor desenvolvimen- empatia com os familiares é
E o melhor de tudo é que, além de to neuropsicomotor, benefí- um grande passo dentro deste
trazerem enormes benefícios, as cios sociais e redução das taxa processo de tornar a humani-
estratégias de humanização em geral de mortalidade, morbidade e zação uma realidade. Saber
são de baixo custo quando compara- nos custos da saúde. reconhecer e acolher emoções
das a outras estratégias de promoção e sentimentos que de certa
de saúde com impactos semelhantes. A valorização da família forma são comuns para pais
nas UTIN de bebês que permanecem na
Método “Mãe Canguru” UTIN: ansiedade com relação
Ao inserir a família dentro da ao futuro do bebê, além de
Um grande exemplo disso é unidade neonatal, há uma sensação de fracasso, de
o método Canguru criado e implan- diminuição na quantidade de incompetência, de incapacida-
tado, em 1979, na Colômbia por procedimentos (principal- de, de insuficiência, de inade-
Edgar Rey Sanabria e Hector Marti- mente os dolorosos) com o quação e sentimento de culpa
nez, no Instituto Materno-Infantil de recém-nascido, a mãe ou os que assolam as mães nessa
Bogotá. Na época a falta de incuba- cuidadores são colocados situação. É preciso lembrar que
doras, situações de abandono, como protagonistas no trata- além de estar diante de bebês prema-
infeções cruzadas, altas taxas de mento das crianças e isso favo- turos, esses profissionais também
mortalidade e falta de recursos rece o vínculo mãe-bebê facili- estão lidando com pais prematuros.
tecnológicos foram mobilizadoras tando assim a construção da Por fim, é fundamental
para pensar numa alternativa. parentalidade e ajudando a que os profissionais de saúde,
Surgiu, então, a técnica chamada: reconstruir a imagem da independentemente da área
“Mãe Canguru” inspirada numa maternidade que foi destruída de atuação, possam se reco-
subclasse de mamífero, os marsu- ou alterada pelo parto prema- nhecer como protagonistas e
piais. Estes são desprovidos de turo. corresponsáveis por qualquer
placenta completa, dotados de Além do Método Canguru estratégia ou programa adota-
marsúpio, uma espécie de bolsa que outras estratégias e ações foram do.
contém as glândulas mamárias e sendo desenvolvidas nos últimos
serve para carregar e proteger os anos. São exemplos: envolvimento
filhotes. A técnica de baixo custo e dos pais e familiares como parceiros,
excelentes resultados clínicos, foi visita de irmãos e avós, momento
utilizada em atenção ao recém-nas- PSIU (diminuição dos ruídos e luzes
cido em situação de baixo peso ao e respeito ao sono dos bebês),
nascer e/ou prematuridade. Funda- manejo adequado da dor, forneci-
menta-se no contato da pele do mento de cuidados contingentes etc.
cuidador, não necessariamente a Mas além dos progra-
mãe, numa espécie de rede aderida mas e projetos de humaniza-
ao corpo onde o bebe é instalado. ção, como os citados acima,
Estudos mostram que o como os profissionais podem Fernando Lamano
tempo de hospitalização de recém- trabalhar individualmente
-nascidos submetidos ao método para ajudar a tornar os servi- Pediatra – Neonatologista. Membro do
Departamento de Saúde Mental da
Mãe-Canguru é mais curto compara- ços mais humanizados?
Sociedade de Pediatria de São Paulo.
do aos recém-nascidos com trata- Uma dificuldade que os pais Membro do Núcleo de Desenvolvimento
mento convencional. Além do encontram dentro da UTIN é quanto e Aprendizagem da Sociedade de
Pediatria de São Paulo.
tempo de permanência na a “competência” para cuidar de seu
UTIN, outros benefícios são bebê. Como se colocar no papel Contato:
drfernandolamano@gmail.com
diminuir o estresse físico e de cuidador uma vez que há Instituto Conceive
psicológico tanto dos bebês profissionais que sabem fazer (11) 30572885 (11) 30573003
Casa Curumim
como de seus familiares, isso “melhor” do que eles? (11) 38039459
aumento da duração do aleita- Nesse sentido, os profissio-

REVISTA CRIANÇAS - ANO I - EDIÇÃO I 41


ENTREVISTA
ERIKA PARLATO-OLIVEIRA FALA SOBRE A CLÍNICA
COM BEBÊS E SEUS PAIS
bebê, pensamos que ele nunca está
sozinho, é sempre a criança com seu
cuidador, que geralmente é a mãe,
mas não só ela. E, para um bebê, um
cuidador disponível e responsável é
alguém presente no seu dia a dia,
pronto para dialogar, independente-
mente de qual seja o grau de paren-
tesco.

Revista Crianças - Mas, o que é um


bebê em sofrimento?

Erika Parlato-Oliveira - A criança


pode sofrer de várias maneiras:
fisicamente, psiquicamente ou pode
ter uma vulnerabilidade social. Tudo
isso precisa ser considerado, pois
pode afetar o bebê, e quando isso
acontece, precisamos pensar numa
intervenção clínica.

Revista Crianças - Mas como


saber se um bebê está sofrendo?

Erika Parlato-Oliveira - Para isso,


é preciso conhecê-lo muito bem!
Hoje, próximo de 2020, há muitas
pesquisas, nacionais e internacionais,
que buscam descobrir as competên-
cias do bebê. Então, muitas coisas
que antes pensávamos que os bebês
não faziam, hoje sabemos que eles
são capazes de fazer. Estamos num
momento em que é necessário divul-
gar e difundir o quanto bebê é compe-
tente!
Por exemplo, antigamente
acreditava-se que os bebês nasciam
sem condições de ver, enxergar o
mundo. Atualmente, sabemos que
eles são capazes de focar a 30 centí-
Revista Crianças – Para começar- como psicanalista, pesquisadora e metros, o que, coincidentemente, é a
mos nossa entrevista você poderia professora e é sobre eles, na necessi- distância entre o olhar da mãe e o
falar sobre o bebê e o seu cuidador no dade de uma clínica de intervenção a olhar do bebê durante a amamenta-
trabalho clínico. tempo, que eu gostaria de falar. Mas, ção, seja no seio materno, seja na
para pensar nisso, é preciso pressu- mamadeira. E essa troca de olhar
Erika Parlato-Oliveira - por um bebê (e seus familiares) em prazerosa já é um diálogo, mesmo
Os bebês são o foco do meu trabalho sofrimento. Quando pensamos no nesse início da vida. Podemos dizer

42
que isso acontece desde o momento observar se o bebê está ou não se bebê, para ajudar a superar suas
em que ele é colocado próximo à sua desenvolvendo bem. Se ele está se dificuldades, trabalhando em parce-
mãe, numa sala de parto. Sabemos constituindo bem como sujeito ou se ria com os seus familiares. É essa a
também que o bebê é capaz de escu- mostra sinais de sofrimento. Claro clínica do bebê a tempo: no momen-
tar a partir da 26a semana de gesta- que para tanto pressupomos que os to que esse sinal é descoberto. Esse é
ção. Se ele escuta, ele também acom- profissionais estejam capacitados hoje o foco do meu trabalho e é o que
panha os diálogos que ocorrem ao para observar esse bebê. eu tenho divulgado, produzido e
seu redor: as falas que lhe são publicado para que possamos ter,
direcionadas, a voz da mãe que Revista Crianças - E como o bebê cada vez mais, profissionais aptos,
conversa com ele e que também nos mostra o sofrimento? tanto na França, quanto no Brasil,
dialoga com outras pessoas. Ele como em outras regiões.
participa de tudo isso. Então, a gente Erika Parlato-Oliveira - O bebê Eu acabo de voltar da Universidade
pode pensar nesse bebê, ainda no pode mostrar seu sofrimento de Pequim, onde fui convidada a
período gestacional, já como alguém dormindo pouco ou muito, chorando capacitar profissionais, para realiza-
que tem condições de fazer trocas muito ou não chorando nunca. Ele rem um trabalho em torno de crian-
conosco. mostra seu sofrimento quando se ças muito pequenas e seus familia-
Hoje, temos também bebês recusa a comer, por exemplo. Então, res.
que nascem a partir da reprodução o bebê que ainda não fala, mas que já
assistida, bebês que contam com se comunica, vai dando sinais de que Revista Crianças – Este trabalho
ajuda médica para serem concebi- algo não está bem. O profissional é o está fundamentado em quais pers-
dos, e tudo isso acontece no mundo responsável por reconhecer esses pectivas?
de tal forma que temos de procurar sinais, por entender que o bebê está
entender para que possamos reco- tentando dizer algo. Tanto o profis- Erika Parlato-Oliveira – A clínica
nhecer se o bebê e seus familiares sional da área da saúde, quanto o com o bebê deve sustentar que o
estão indo bem, se ele está crescendo profissional da área da educação tem bebê está falando, está comunican-
bem, se está desenvolvendo todas as essa responsabilidade. Há bebês que do, e é a partir daquilo que ele traz,
potencialidades que ele tem ou se há passam 12 horas na creche, das sete que nós vamos, junto com os seus
algum sinal de sofrimento. Quando horas da manhã às sete horas da familiares, sempre em parceria,
encontramos esse sinal é o momento noite, e quando chegam em casa, sempre na presença do bebê e dos
de pensar numa intervenção clínica. dormem. Esse bebê compartilha seus cuidadores, sempre trabalhan-
muito mais horas por dia com o do juntos, favorecer que ele supere as
Revista Crianças - Quem pode profissional da educação do que com dificuldades que apresenta. A nossa
encontrar um sinal de sofrimento no os próprios familiares. Esses profis- proposta é, a partir do reconheci-
bebê? sionais são responsáveis por reco- mento de sinais de sofrimento,
nhecer um sinal de sofrimento no oferecer ao bebê em conjunto com a
Erika Parlato-Oliveira - Os bebê. sua família uma clínica que favoreça
profissionais que estão na linha de ao bebê superar essas dificuldades.
frente, quem trabalha diretamente Revista Crianças – E a partir do Este trabalho tem por embasamento
com eles. Pediatras, enfermeiros e reconhecimento do sofrimento a teoria psicanalítica lacaniana como
auxiliares de enfermagem são os psíquico, qual é o próximo passo? fio condutor do trabalho clínico
profissionais que se ocupam de mantendo um diálogo profícuo com
bebês nas Unidades Básicas de os campos que desenvolvem pesqui-
Saúde. Por exemplo, o responsável Erika Parlato-Oliveira – O passo sas e conhecimentos sobre as capaci-
pela vacina no bebê. Esses profissio- seguinte é pedir ajuda para profissio- dades dos bebês.
nais têm a responsabilidade de nais formados para trabalhar com o

ERIKA PARLATO-OLIVEIRA
Psicanalista. Mestre em linguística (UNICAMP). Doutora em Comunicação e Semiótica (PUC-SP). Doutora em Ciências Cognitivas e Psicolin-
guística (EHESS/Paris). Pós-doutora em Psiquiatria Infantil (Hôpital Pitié-Salpetrière).. Maître de Conférence em Psicologia -HDR (Paris VII).
Professora do Programa de Pós-graduação em Saúde da Criança e do Adolescente (Faculdade de Medicina - UFMG) e do Programa de Pós-gra-
duação Psicanálise e Medicina da Universidade Paris Diderot (Paris7). Co-coordenadora do DU-Diploma Universitário em « Psychisme face à la
Naissance » da Universidade Paris Descartes (Paris V). Co-coordenadora regional PREAUT Brasil. Coordenadora nacional da Associação « La
Cause des bébés ». Coordenadora da Coleção "Começos e tropeços na linguagem " ( Instituto Langage).

Contato:
eparlato@hotmail.com

REVISTA CRIANÇAS - ANO I - EDIÇÃO I 43


ENTREVISTA COM PROFESSOR DR. ALFREDO JERUSALINSKY

ENTREVISTA CONCEDIDA PELO PROFESSOR DR. ALFREDO JERUSALINSKY A EDITORA-CHEFE DA REVISTA DIGITAL CRIANÇA, JANA
WALTER. JERUSALINSKY FOI O COORDENADOR CIENTÍFICO DA PESQUISA REALIZADA DE 2000 À 2009 EM 11 CENTROS HOSPITALARES
PÚBLICOS SITUADOS EM 10 CIDADES CAPITAIS DO PAÍS QUE RESULTOU EM UM PROTOCOLO PARA
PREVENÇÃO DE DOENÇAS MENTAIS PARA BEBÊS EM RISCO.

Como saber se um bebê apresenta sinais caminho uma célula nervosa com problemas. 1.Revista Crianças: Professor Alfredo Jerusa-
de risco ao desenvolvimento? Contudo, após essa idade em que as conexões linsky, por que se iniciou esta pesquisa?
neurais se estabelecem com maior facilidade
Jerusalinsky: Existia um consenso sobre a
Atualmente há uma epidemia de (novas conexões aparecem durante a vida toda
importância da detecção precoce, havia apenas
crianças diagnosticadas com os mais diversos embora nunca em tal velocidade e proporção), os
instrumentos na pediatria para verificação do
transtornos. Alguns deles muito conhecidos como neurônios que não foram utilizados ficam sem
desenvolvimento e maturação orgânicos. Instru-
TEA (Transtorno do Espectro Autista), TDAH utilização e diminuem suas conexões devido a
mentos de ordem biológica, orgânica, física, de
(Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperativida- Poda Neural, quando as atividades de transmis-
detecção de risco no desenvolvimento, das
de) e mais recentemente ,TOD ( Transtorno são diminuem permanecendo aquelas que foram
funções cerebrais: a percepção, a motricidade, os
Opositivo Desafiador). Estes diagnósticos na sua estabelecidas até então.
hábitos, os ritmos: fome e saciedade, sono e
maior parte, acontecem após os 3 anos de idade, Na corrida contra o tempo, o que fazer
vigília. Contudo não havia, até então, um
quando já existe um quadro estabelecido. Neste para saber se um bebê apresenta sinais de que
instrumento no qual fosse possível observar que
momento a criança é submetida à intervenção de algo não vai bem? Convidamos o professor Dr.
algo não estava bem do ponto de vista mental,
diversos especialistas: psicólogos, fonoaudiólogos, Alfredo Jerusalinsky, psicanalista, Especialista e
especialmente no concernente aos processos de
neurologistas, psiquiatras, fisioterapeutas, Mestre em Psicologia Clínica e doutor em
constituição do sujeito psíquico. Então o lógico
psicopedagogos, terapeutas ocupacionais. Cada Psicologia da Educação e Desenvolvimento
era que construíssemos esses instrumentos. Em
um cuida de um pedaço e se ocupa da criança para Humano pela Universidade de São Paulo, para
1990 já havia um consenso internacional de que
torná-la funcional. nos esclarecer sobre o assunto. Natural da
era necessário abordar as crianças com proble-
As pesquisas sobre Epigenética e Argentina veio para o Brasil e fixou-se em Porto
mas de desenvolvimento e ou com risco psíquico
Neuroplasticidade fundamentam o trabalho na Alegre onde há mais de 40 anos atende crianças
e problemas mentais com anterioridade à
Clínica com Bebês em Intervenção Precoce com problemas no desenvolvimento. Trabalha
consolidação de um quadro psicopatológico ou à
perante Riscos no seu Desenvolvimento. De um com uma equipe interdisciplinar na Fundación
produção de danos ou inibições para a aquisição
lado a epigenética demonstra que a expressão para el Estudio de los Problemas de la Infancia
das funções próprias do desenvolvimento. Havia
dos genes depende de fatores ambientais, isto (FEPI – Argentina) e no Instituto Lydia Coriat,
que abordá-las quanto mais cedo melhor,
quer dizer, que mesmo que uma pessoa tenha no onde também forma profissionais no campo da
justamente porque os resultados das interven-
seu código genético, DNA, o genoma de determi- saúde mental.
ções precoces eram muito mais eficazes e de
nada patologia, ela só irá expressar-se depen- No ano de 1999, por solicitação da
grande resultado do que as intervenções tardias.
dendo de fatores externos. O ambiente de forma Pediatra psicanalista Dra. Josenilda Brandt, na
As descobertas científicas no campo do neurode-
geral, passa à ser determinante para que o gen se época representante do Ministério da Saúde, foi
senvolvimento, no campo da genética e no
expresse ou não, ou, ainda quando se trata de convidado a coordenar uma pesquisa em todo
campo da psicanálise, depois de 120 anos de
genes portadores eles mesmos de síndromes território nacional que envolveu mais de 250
prática clínica com crianças vinham a dar razão e
patológicos, o modo em que essa criança seja profissionais da área da saúde, em 10 capitais
fundamento sobre importância de abordar essas
abordada e orientada vai determinar a propor- brasileiras. Esta pesquisa além de contar com o
manifestações com potencialidade patogênica bem
ção de expressão fenotípica de sua patogenia. apoio do Ministério da Saúde, contou também
precocemente. Os resultados dessas intervenções
Outro fator é a Neuroplasticidade. As pesquisas com o apoio do CNPQ, da FAPESP e do Instituto
precoces eram muito melhores comparadas com
em neurociência revelam a capacidade adaptati- de Psicologia da USP. Essa pesquisa tinha como
os efeitos das intervenções tardias.
va do sistema nervoso para solucionar proble- objetivo construir um protocolo com indicadores
mas. Até um ano e meio de vida as células capazes de ajudar a detectar risco psíquico para o 2.Revista Crianças: Quanto tempo durou este
nervosas são capazes de fazer milhões de desenvolvimento durante a consulta pediátrica estudo?
conecções sinápticas. Para estabelecer comuni- de rotina e habilitar para isso também à diferen-
cação, os neurônios se ligam facilmente a um tes agentes de saúde e cuidados primários que Jerusalinsky: Este estudo durou aproximada-
outro neurônio, mesmo que tenha em seu lidam com o atendimento de bebês. mente 10 anos, de 1999 a 2009 , contou com a

44
participação de Paulina Schmiedt, Leda Bernar- Jerusalinsky: Se é um indicador extremamen- vivem é o celular. É tão fascinante que apertando
dino, Cristina Kupfer, Domingos Infante e eu te rígido, como são os indicadores orientados dois botões eu entro em um mundo totalmente
mesmo na direção científica. Inicialmente pela via comportamental, isso faz obstáculo para novo e totalmente estranho. É uma porta de
participaram do estudo cerca de 1300 crianças que as questões subjetivas possam emergir. Se entrada a um mundo no qual não há nenhuma
na faixa etária de 0 a 3 anos. Ao final da pesquisa, você pergunta a criança costuma subir e descer diferença entre o simbólico, o imaginário e o real.
foram validados 31 Indicadores Clínicos de Risco escadas de forma repetitiva, a resposta é sim ou A criança quando aprende este caminho não
para o Desenvolvimento Infantil- IRDI, utilizan- não. Ela gira sobre si mesma frequentemente ou quer sair nunca mais. Mas acontece que ela não vai
do uma amostra de 726 crianças entre 0 a 18 da saltinhos frequentemente? A resposta é sim viver lá dentro dessa tela, ela vai viver no mundo,
meses e o seguimento dessas crianças durante ou não. Não há, nesse modo de enunciar esses que tem gente, e as pessoas são imprecisas e menos
quatro anos possibilitou a construção de outro indicadores, uma interrogação que permita às infinitas que um celular na significação.
mapa: o AP3, Avaliação Psicanalítica a partir dos pessoas envolvidas nessa avaliação aportar as
8.Revista Crianças: Existe alguma implicação
3 anos. razões eventuais, os significados, os motivos
para a criança pelo uso das telas?
circunstâncias, o contexto, a série em que esses
3.Revista Crianças: Já existia alguma referên-
comportamentos acontecem. Certamente, Jerusalinsky: A tela eletrônica, independente-
cia sobre a importância da detecção e interven-
embora em nosso estilo de indagar privilegiemos mente de suas variantes enquanto os artefatos
ção precoce?
a subjetividade, precisamos, também, de certa em que ela se apresenta sempre funciona como
Jerusalinsky: Desenvolvemos e já tínhamos objetividade para que o aplicador do instrumen- um espelho. Um espelho cuja particularidade
instrumentos bem desenvolvidos enquanto to não se sinta perdido, e ter, ao mesmo tempo consiste em que quem nele falta é precisamente
intervenção precoce. A estimulação precoce uma certa flexibilidade, para que as questões o sujeito que nele se contempla. Paradoxalmente
enquanto uma perspectiva psicanalítica vem subjetivas possam emergir e serem registradas, é precisamente sua ausência que exige desse
sendo desenvolvida desde o início da década de caso contrário você não estaria em um terreno de sujeito que ele se identifique aos personagens
70. Então havia a Dra Coriat que foi a minha prevenção , mas estaria em um terreno de que nela se apresentam para evitar a confirma-
mestre, o Dr. Julian de Ajuriaguerra, do Hospital registro com finalidade diagnóstica. Não se ção de sua ausência mediante o recurso de
Henri Rousell, em Paris já trabalhávamos com tratava de construir um instrumento hábil para figurar projetivamente no elenco que habita esse
isso naquela época e junto com uma vanguarda estabelecer critérios ou medidas epidemiológicas outro mundo. Eis aí que reside o formidável
neuropediátrica em Barcelona, no Hospital de onde o dado precisa ser objetivo, mas, de um poder da tela, sendo que quando ela é interativa
Paralíticos cerebrais de Mont Blanc, em Londres instrumento capaz de detectar se as operações sua capacidade de sucção do sujeito é tal que ele
com uma incipiente equipe interdisciplinar necessárias para a formação de um sujeito estão fica capturado do outro lado da superfície de
orientada pelo Dr. Brinkwuort no campo da acontecendo, um instrumento capaz de manifes- projeção (precisamente pela ilusão de poder que
pediatria, o neuropediatra Dr. Antonio Lefevre tar o significado que tem para o bebê as coisas e as manobras interativas lhe prestam). O efeito na
em São Paulo junto com a Psicóloga Beatriz as pessoas. Ou seja, se estas operações de forma- pequena criança é de substituição parcial ou total
Lefevre trabalhando em estimulação precoce ção de isso que nós chamamos de sujeito psíqui- dos personagens de sua vida real pelos persona-
com crianças com síndrome de Down. Enfim co estão ocorrendo. Sujeito quer dizer alguém gens de sua vida virtual, e também a substituição
havia um terreno rico tanto clínico, como experi- capaz de compreender em que mundo ele vive, o das linguagens. E devemos apontar que essas
mental e de pesquisa, o que colocou em jogo uma que ele pode esperar do outro e o que o outro consequências não são privativas da pequena
série de critérios e de conceitos consolidados de espera dele; por mais que esta compreensão seja criança já que registramos a crescente extensão
modos de intervenção clínicos na estimulação elementar, claro, nesta idade precoce. dos efeitos coletivos das adições eletrônicas.
precoce e na intervenção precoce, antes de se
6.Revista Crianças: Qual o objetivo destes 9.Revista Crianças: Como os indicadores de
configurarem quadros psicopatológicos em
protocolos? risco podem ajudar na prevenção?
crianças que já apresentavam risco orgânico ou
situações de vulnerabilidade psíquica. Jerusalinsky: O que esses instrumentos Jerusalinsky: A psicanálise descobriu em 120
efetuam é indagar e pesquisar em cada criança anos de pesquisa, de trabalho clínico, com
4.Revista Crianças: O Senhor poderia
se ela está recebendo o estímulo , a compreen- centenas de milhares de pacientes, milhares de
explicar como foram desenvolvidos estes indica-
são, a autorização , a capacidade, o impulso por casos publicados, descobriu como se deve
dores?
parte de seus cuidadores a entrar, justamente proceder, o que precisa a criança que seja feito
Jerusalinsky: A equipe de pesquisa utilizou-se ,na linguagem, nas significações, no mundo; para que sua inscrição como sujeito no campo da
dos dados obtidos durante os atendimentos de entrar no mundo da fantasia que é fundamental linguagem aconteça. Esses instrumentos o IRDI
rotina da pediatria e construiu instrumentos que para apreender que significam as coisas. Porque e o AP3 são para vigiar, para perceber se estas
fossem flexíveis e facilmente aplicados pelo enquanto para macacos uma banana é somente operações que precisam ser feitas estão sendo
médico durante as consultas de rotina do bebê. algo a ser comido, para nós humanos uma levadas a cabo ou não. Se não estão tem que
Para tanto a escala geral de 0 a 18 meses de vida, banana tem infinitos significados e forma parte restitui-las e nessas épocas precoces tanto desde
foi dívida em 4 faixas etárias distribuindo os de inúmeras fantasias. Podemos transformar o ponto genético , pelas descobertas da epigené-
indicadores em intervalos de quatro meses: de 0 uma banana e o ato de comer em uma brincadei- tica, quanto do ponto de vista neurológico pelas
a 4 meses incompletos, de 4 a 8 meses incomple- ra, uma piada, uma aventura. Uma mãe descobertas da neuroplasticidade, nosso
tos, de 8 a 12 meses incompletos e finalmente de habilidosa transforma a massa, enfim a batata cérebro, nosso sistema nervoso central está
12 a 18 meses. Estes indicadores foram construí- em um aviãozinho que vai entrar na boca e é por aberto a estas inscrições, o que permite corrigir
dos a partir da observação das crianças com seu esta via de atribuições de significações que rumos equivocados na medida em que nessa
cuidador, geralmente a mãe, mas não sempre naturalmente as coisas não têm, pelo percurso no época da vida o cérebro aceita modificações
nem somente restrito à esta, e também um mundo da fantasia que nós entramos no mundo do muito facilmente.
rastreamento de consultoria mediante a colabo- humano, ou seja, no mundo da linguagem.
Prof. Dr. Alfredo Jerusalinsky.
ração de experts. Inicialmente eram 51 indicado- Psicanalista. Doutor em Educação e Desenvolvimento Humano
7.RDC: Se a interação com o adulto- cuidador é pela Universidade de São Paulo (2006). Mestre e Especialista em
res e, mediante 3 experiências piloto foram
fundamental, o que devemos pensar se hoje Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
selecionados finalmente 31 para participar da Grande do Sul. Graduado em Psicologia pela Universidade de
adultos e até bebês vivem mergulhados nas telas
pesquisa de acordo com os critérios de sensibili- Buenos Aires. Lecionou na Universidade de Buenos Aires, foi
dos telefones celulares? professor convidado na PUCRS, UNISINOS e USP, Fundador da
dade, especificidade, pertinência, capacidade de Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), Analista
registro e facilidade de aplicação. Jerusalinsky: Vivemos imersos em um mar de Membro da Association Lacaniènne Internationale (ALI) Faz
direção, assessoramento e supervisão da Fundación para el
palavras, tanto escrita como nas cenas teatrais, Estudio de los Problemas de la Infância da República Argentina
5.Revista Crianças: Qual a diferença deste
nas telas eletrônicas, ou no celular. Este pequeno (FEPI) e no Centro Clínico Interdisciplinar Dra. Lydia Coriat.
protocolo em relação aos que existem atualmen- Assessor de Clínica e Pesquisa do IPREDE (Instituto de
pedaço de matéria, é fantástico, causa fascínio. Prevenção no Desenvolvimento e da Desnutrição Infantil –
te e são aplicadovvs as crianças que apresentam
Uma das condições de risco que hoje as crianças Ceará)
algum sinal de sofrimento?

REVISTA CRIANÇAS - ANO I - EDIÇÃO I 45


COLUNA
dois casos me aborreciam. Lembrei-me
CRISE NA DECOLAGEM que com a experiência da maternidade,
acostumei com gritos e choro. E passei a
não repudiá-los.
Hoje presenciei uma situação que Poucos minutos até que se confir-
me deixou triste. Não conheço os protago- masse. Era a familinha que deixaria a
nistas, mas meu coração foi tocado por aeronave. Quando se levantaram, senti o
eles. Estava embarcada num voo com clima do avião relaxar. Eu caí em choro.
destino a BH, para encontrar minha Chorei pelo possível esgotamento dos pais.
família. Esperava informações do voo, Pela viagem que não farão no final de
naquele clima tenso antes da decolagem. semana. Pelo menino consolado pela

COMO ELA É Os comissários esforçando-se para enfiar


as numerosas malas de mão no bagageiro
superior.
Havia uma família que logo me
chamou a atenção. Tamanho padrão, casal
com dois filhos entre sete e onze anos.
decisão drástica dos pais. Pelo irmão
pequeno e madurinho que falava baixinho
com a mãe enquanto esperava o desembar-
que. "Mamãe, a gente vai mesmo sair do
avião?". Minhas lágrimas também foram
pela mãe que estava visivelmente desvitali-
Acontecia que o filho mais velho estava zada e pelo pai entregue. Cruzei meu olhar
muito agitado. Eu imaginei que poderia ser com a vizinha de assento e choramos
um quadro de autismo ou esquizofrenia, juntas.
A VIDA
pois ele não articulava a linguagem. Assim que a família levantou-se e
Gritava, chorava e se debatia entre os pôs-se em fila na porta dianteira, um
assentos. homem pulou num golpe para os assentos
À medida que o menino intensifi- vazios. Não esperou nem um minuto de
cava os gritos, fui percebendo no ar a luto. Poderia, afinal, desfrutar o voo
tensão dos passageiros crescendo. Olhares sozinho na fileira e em silêncio. O olhar da
de curiosidade, silêncio para além do minha vizinha se entregou em dor.
usual. Eu observava o pai e o filho mais Fiquei pensando o quanto o ideal
novo umas cinco cadeiras à frente. Estava das coisas nos impede de realizar o que é
atenta, tentando entender como a possível. Eu não conheço as circunstâncias
movimentação ruidosa mexia comigo. A do quarteto familiar, mas depreendi que o
primeira coisa que senti foi medo. Seria um mundo está ainda em busca de uma perfei-
prenúncio de um desastre? ção, ou alternativamente, de uma norma. E
O pai acolheu o filho mais novo pode ser insuportável permanecer, quando
no colo, enquanto o gritante ficou do outro se acha que está incomodando.
lado do corredor com a mãe. Carinha triste A decisão pareceu-me dura
do caçula. Quando se dirigia ao pai, nas demais e visualizei alguns finais opcionais.
suas costas, sorria discretamente. Num E se eles pudessem sentir-se acolhidos e
intervalo de segundos, olhava para o irmão desejados em meio ao desespero do filho?
ao lado e o seu rosto se fechava um pouco E se em lugar de um olhar curioso,
assustado. Seu aspecto era maduro, apesar oferecêssemos um olhar cuidadoso, um
da pouca idade. O pai chorava silenciosa- sorriso, um abraço, uma pergunta frater-
mente, lágrimas que o pequeno não podia na? Poderiam ter insistido na viagem e ter
ver. a oportunidade de dar parabéns para a
Tudo pronto para decolar, o avião coragem do seu filho ao desembarcar em
taxiando e o comandante informa: "Senho- BH? Poderia isso ser transformador? Não
res, uma família pediu para desembarcar. sei.
Por isso voltaremos ao finger para deixá- Pareciam precisar de apoio para
-los. Teremos que completar o tanque do permanecer, mas não lhes foi oferecido e
avião antes de partir novamente." Fiquei tampouco se autorizaram a causar descon-
na dúvida se era a família que eu observava forto. Nem ao filho e nem aos colegas
que desejava sair. Talvez alguém tivesse se passageiros. E o avião, comigo incluída,
incomodado com o barulho do menino, silenciou. Longe de ser um acidente aéreo,
que a esta hora já estava mais silente. Os foi, de fato, um desastre social.

Milena Beltrami Tudisco

Contato:
milenatudisco@gmail.com

46
COLUNA
O LOBO MAU DA alimentar direito, tão pequeno que
sou.”
BARRIGA VAZIA. O lobo exausto, sem forças para respon-
der ouviu o anão. “Então é você o

CONTOS
famoso lobo mau da barriga
Havia na floresta um lobo muito vazia??? Era você mesmo que
conhecido por suas maldades, era tão procurava. Ninguém consegue
feroz e insaciável que ganhou o nome: entender essa sua voracidade, por
Lobo mau da barriga vazia, tal era sua
voracidade.
Não importava se ele tivesse
que come tanto e nunca se enche?
Pertenço a um grupo de protetores
da floresta e seus animais, e cons-
PARA
CONTAR
acabado de devorar 10 cabritos, pois se tatamos que nessa área houve um
apareciam ovelhas ele se lançava sobre grande desaparecimento de vidas.
elas com tal ferocidade, que parecia Dos veados aos coelhos, aves e até
sempre faminto. serpentes, isso aqui está virando
Um dia surgiu na mata um pequeno anão um deserto. Nem um passarinho
com uma barbinha branca e andar muito pia mais por aqui... e agora sei que
leve. Quando o lobo o viu, pensou: “oba, a razão é você.”
chegou meu aperitivo do dia!” e E o pequeno Anão continuou...
partiu para cima do anão com sua conhe- “você se parece com aquelas criatu-
cida ferocidade. ras que sempre querem mais e mais,
Mas qual não foi sua surpresa nunca se contentando com o que tem.
ao ver que o anãozinho nem aparentava Ganham uma coisa e já querem outra
preocupação. Só entendeu quando se e mais outra e por aí vai... Nem tem
lançou em cima dele e o pequeno anão tempo de aproveitar e desfrutar o que
com habilidade surpreendente, simples- ganharam!!! Sempre um vazio, um
mente esquivou deixando-o passar como
buraco sem fim, como sua barriga. Escritor
uma flecha, e para humilhar ainda mais,
Sabe seu lobo, a vida não é só comer e
lhe deu uma tapinha no bumbum.
engolir, é desfrutar os sabores e apro- Milton Bahia
Vocês podem imaginar a raiva
veitar cada aperitivo. Olhe a sua
sentida pelo lobo? Uivava como louco, e Economista, pai do Caio e Igor.
saltava sobre o anão com raiva redobra- volta, não tem mais vida e agora sua
da, e a cena se repetia com o maldito própria vida está em risco.”
tapinha na bunda. Não sei quantas vezes Depois disso o pequeno Anão
os saltos se repetiram, mas só posso dizer tirou do bolso um balão vazio e disse:
que no final o lobo já não se aguentava, “- Vou colocar este balão em sua barri-
todo machucado com as cabeçadas que ga e enchê-lo de ar de e você sempre
dava em pedras e árvores. sentirá sua barriga cheia.” E assim fez.
Assim o pequeno anão se O lobo depois disso ficou mais
aproximou dele e disse: “- por que tanta tranquilo, e a floresta voltou a ter mais
ferocidade para cima de um ser tão vida...
pequeno? Eu nem serviria para te Fim.
Ilustradora
Ana Rosa Bahia
Futura Arquiteta. Sobrinha

REVISTA CRIANÇAS - ANO I - EDIÇÃO I 47


COLUNA ASSUNTO DE FAMÍLIA
Não recomendado para menores de 14 anos

Depois de uma de suas sessões de furtos, Osamu (Lily


Franky) e seu filho se deparam com uma garotinha. A
princípio eles relutam em abrigar a menina, mas a esposa
FILMES SOBRE de Osamu concorda em cuidar dela depois de saber das
dificuldades que enfrenta. Embora a família seja pobre e
mal ganhem dinheiro dos pequenos crimes que cometem,
eles parecem viver felizes juntos até que um incidente
revela segredos escondidos, testando os laços que os unem.
CRIANçAS PELOS OLHOS DE MAISIE

L - Livre para todos os públicos.

Em meio ao conturbado divórcio dos pais, Maisie (Onata


Aprile), uma garotinha de sete anos, tenta entender o que
se passa. De um lado a mãe, Susanna (Julianne Moore),
uma estrela do rock. Do outro o pai, Beale (Steve Coogan),
um influente galerista. Unindo os dois, a menina, que logo
descobre um novo significado para a palavra "família".

SETE MINUTOS DEPOIS DA MEIA-NOITE

Não recomendado para menores de 12 anos

Conor é um garoto de 13 anos de idade, com muitos proble-


mas na vida. Seu pai é muito ausente, a mãe sofre um câncer
em fase terminal, a avó é uma megera, e ele é maltratado na
escola pelos colegas. No entanto, todas as noites Conor tem o
mesmo sonho, com uma gigantesca árvore que decide contar
histórias para ele, em troca de escutar as histórias do garoto.
Embora as conversas com a árvore tenham consequências
negativas na vida real, elas ajudam Conor a escapar das
dificuldades através do mundo da fantasia.

EXTRAORDINÁRIO

Não recomendado para menores de 10 anos

Auggie Pullman (Jacob Tremblay) é um garoto que nasceu


com uma deformação facial, o que fez com que passasse por
27 cirurgias plásticas. Aos 10 anos, ele pela primeira vez
frequentará uma escola regular, como qualquer outra
criança. Lá, precisa lidar com a sensação constante de ser
sempre observado e avaliado por todos à sua volta.

CRÍA CUERVOS...

Sem indicação de idade.

Ana (Geraldine Chaplin) é uma mulher de tristes lembran-


ças. Duas décadas antes, quando tinha nove anos, ela
acreditava ter em suas mãos um misterioso poder sobre a
vida e a morte de seus familiares. Assim teria causado a
morte inesperada do pai, o militar franquista Anselmo
(Héctor Alterio), logo após o doloroso martírio da mãe.

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A VACA QUE BOTOU UM OVO

A Vaca Mimosa andava meio deprimida, coitada – é que ela não


COLUNA
sabia fazer nada de muito especial, como andar de bicicleta ou
plantar bananeira como as outras vacas da fazenda. Mas Mimosa era
uma vaca legal pacas, amigona das galinhas – e por isso, numa
madrugada cheia de cocoricós, elas tiveram uma super ideia para
animar a amiga.

LIVROS PARA LER


CHAPEUZINHO AMARELO

COM CRIANÇAS
Chapeuzinho Amarelo conta a história de uma garotinha amarela de
medo. Tinha medo de tudo, até do medo de ter medo. Era tão medrosa
que já não se divertia, não brincava, não dormia, não comia. Seu maior
receio era encontrar o Lobo, que era capaz de comer “duas avós, um
caçador, rei, princesa, sete panelas de arroz e um chapéu de sobreme-
sa”. Ao enfrentar o Lobo e passar a curtir a vida como toda criança,
Chapeuzinho nos ensina uma valiosa lição sobre coragem e superação
do medo. Já em sua 40º edição, este clássico de nossa literatura infantil
vem encantando gerações e gerações de leitores. O livro de Chico
Buarque recebeu, em 1979, o selo de “Altamente Recomendável”, da
Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), e, em 1998,
Ziraldo conquistou o Prêmio Jabuti na categoria Ilustração.

A ÁRVORE GENEROSA

Todos os dias um menino vai até uma árvore para se pendurar em seus
galhos, comer suas maçãs e descansar sob sua sombra. O menino ama
a árvore; e ela, feliz, o ama também. Porém, à medida que o tempo
passa, o garoto cresce e começa a desejar mais do que a simples compa-
nhia de sua amiga para brincar e repousar. Ele passa a querer dinheiro,
uma casa, uma esposa... E a árvore, sem muitos recursos para ajudá-lo,
mas disposta a qualquer coisa para vê-lo feliz, vai se desfazendo aos
poucos, mostrando que, pelo amor do menino, pode abrir mão de sua
própria vida.

QUEM SOLTOU O PUM?


A história é simples, mas a sacada é das boas: imagine um cachorrinho
de estimação que se chama Pum! Daí dá para tirar diversos trocadilhos,
criando frases e situações realmente hilárias. É um tal de não conseguir
segurar o Pum, que é barulhento e atrapalha os adultos, que dizem que
o Pum molhado, em dia de chuva, fica mais fedido ainda, o que faz o
menino passar muita vergonha. Pobre Pum. E pobre dono do Pum!
Mas não tem jeito, com o Pum é assim mesmo: simplesmente ninguém
consegue evitar que ele escape e cause certos inconvenientes.

HISTÓRIAS PARA CRIANÇAS DE 1 ANO

Quando está na hora de uma história, não há melhor lugar para encontrar
uma do que nesta maravilhosa coleção de contos originais, escritos especial-
mente para crianças a partir de um ano. Contadas de maneira delicada e
bem-humorada, as histórias são belamente ilustradas e cheias de personagens
encantadores que as crianças vão adorar. Conheça os animais que passeiam
em um pequeno ônibus vermelho, os ursos que se divertem e um cãozinho que
canta para a lua. Venha fazer parte da diversão e faça da hora da historinha um
momento especial para as crianças de um ano.

REVISTA CRIANÇAS - ANO I - EDIÇÃO I 49


CURSOS

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EVENTOS

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REVISTA CRIANÇAS - ANO I - EDIÇÃO I revistadigitalcrianca@gmail.com

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