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A Sociedade do Individualismo: das Raízes Hobbesianas à Crise do Paradigma Moderno

Daniella Fernandes Ferrari

Seja na práxis do convívio cotidiano, seja na construção teórico-política que as embasam, as


sociedades contemporâneas ocidentais foram marcadas pela ascensão do individualismo como um dos
sustentáculos dos Estados liberais democráticos.1 Apesar do termo individualismo abarcar uma gama
diversa de significados, a princípio entendemos por este a orientação moral, social e política com ênfase
no indivíduo em oposição à associação ou grupos sociais. Como veremos, tal noção foi utilizada para
legitimar a formação e poder do Estado e se demonstra indissociável do conceito de liberdade, sendo
uma condição necessária para a manutenção da ideologia do liberalismo – essencial na atual conjuntura
dos Estados modernos capitalistas.
Desse modo, o objetivo do presente artigo consiste em lançar luz sobre a construção filosófica do
individualismo especificamente a partir da matriz teórica de Hobbes e o seu desenvolvimento ao
individualismo moral e à necessidade de neutralidade Estatal nos termos formulados por Michael Sandel,
para refletirmos sobre as consequências desse conceito dentro do paradigma da modernidade e sua crise
atual. Para isso, descreveremos a Teoria do Estado de Hobbes à luz da importância do indivíduo, as
características principais desse indivíduo e de que modo este se adequa ao liberalismo, individualismo
moral e à exigência de um Estado neutro. Por fim, consideraremos o papel do individualismo no
paradigma da modernidade, enquanto parâmetro do imaginário atual, e a crise a qual este enfrenta.

O Nascimento do Indivíduo

“O individualismo, como posição teórica básica, começa, no mínimo, há tanto tempo quanto tem
Hobbes.”2 Contextualizando Hobbes à história da humanidade, atesta-se que a ótica individualista tem
suas raízes na modernidade: a transição econômica do feudalismo medieval para o capitalismo mercantil,
englobada pela passagem mais ampla da Idade Média ao Renascimento, trouxe consigo mudanças
significativas em termos de cosmologia e perspectiva humana. O humanismo renascentista e a guinada
ao antropocentrismo em oposição à centralidade inquestionável da ordem divina previamente instituída
promoveram o reposicionamento do ser humano enquanto figura central das novas concepções científicas,

1
MACPHERSON, C.B. A Teoria Política do Individualismo Possessivo de Hobbes até Locke. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1979, p. 13.
2
Idem.
morais e políticas, desse modo definindo o homem como observador e intérprete por excelência da
natureza tanto exterior a ele quanto referente a si próprio.
É justamente a partir do homem e de uma concepção específica de natureza humana que Hobbes
vai construir sua teoria política. Em seu projeto político-filosófico de buscar uma nova linguagem para a
legitimidade monárquica, inevitavelmente esvaziada pelas disputas políticas e religiosas da guerra civil
inglesa,3 o homem ganhará tanto relevo que o próprio corpo político de Hobbes será erguido em analogia
ao corpo humano, em comparação a um homem artificial.4 Nesse sentido, a primeira parte de sua obra
mais relevante, “O Leviatã,” é inteiramente dedicada ao homem – suas sensações, imaginação,
linguagem, paixões – e, para Hobbes, esse homem é o indivíduo.5
Inserido no contexto da produção de conhecimento científico materialista e mecanicista das
ciências naturais do século XVII, legitimada através de fórmulas matemáticas, deduções geométricas e
da razão humana, Hobbes vai se utilizar desse racionalismo para fundamentar uma nova concepção de
Estado e poder, se afastando decisivamente da Escolástica medieval.6 Desse modo, ao libertar a filosofia
política dos obstáculos teológicos e morais ortodoxos, vai aplicar o método científico e inserir o homem
como parte do sistema mecânico da natureza,7 equiparando o indivíduo ao átomo: unidade básica de
matéria, isto é, aquilo que é indivisível – a atomização do indivíduo,8 por excelência.
Partindo, então, da unidade mais simples de todas em direção à mais complexa, o sistema dessas
unidades, a organização política, a teoria da soberania de Hobbes é edificada de baixo para cima, de
modo que o Estado seja concebido como a unidade de todos os indivíduos, através da representação única
destes pela figura do soberano.9 Dessa forma, começamos a compreender de que maneira a noção do
indivíduo teria sido essencial à construção teórica de Hobbes – de acordo com sua concepção materialista

3
CHATELET, François et al. Dicionário de Obras Políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993, p. 492.
4
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria Forma e Poder de uma República Eclesiástica e Civil. 3a ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2014, p. 9.
5
WEFFORT, Francisco C. Os Clássicos da Política. Vol. 1. 13a ed. São Paulo: Ática, 2000, p. 59.
6
“Hoffding diz que Hobbes “estabeleceu a tentativa melhor pensada dos tempos modernos para tornar nosso conhecimento
da ciência natural o fundamento de todo nosso conhecimento da existência. O sistema que ele construiu é o sistema
materialista mais profundo” do mundo moderno e ocasionou uma ruptura com “o escolasticismo, parecida com aquela
inaugurada por Copérnico em Astronomia, Galilei na Física, e Harvey em Fisiologia”. Desta maneira, ele colocou o
estudo da ética e política sobre uma “base naturalista”. Novamente, Sabine sugere que as concepções formais do homem,
da ética e da política em Hobbes pretendem ser parte de “um sistema abrangente da filosofia formado sobre princípios
científicos”; de forma que a filosofia política é tratada “como parte de um corpo mecanicista de conhecimento científico”
e elaborada através da aplicação dos princípios gerais do pensamento matemático. E há inúmeros outros estudos curtos
ou muito curtos que, num alto grau, expressam o mesmo ponto de vista.”
HOFFDING, H. (1900); SABINE, G.H. (1949) apud QUIRINO, C.G; SADEK, M.T. O Pensamento Político Clássico:
Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau. São Paulo: Taq, 1980, p.51.
7
QUIRINO, C.G; SADEK, M.T. O Pensamento Político Clássico: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau. São
Paulo: Taq, 1980, p. 52.
8
BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Rio de Janeiro: Campus, 1991, p. 135.
9
CHATELET et al, op. cit, p. 497.
do mundo, poderão se tornar objetos de investigação filosófica apenas os indivíduos reais,10 e estes, por
sua vez, serão utilizados para fundamentar o sistema. É o indivíduo enquanto matéria do Estado, na
medida em que é constitutivo deste e, portanto, anterior a este.

O Indivíduo Egoísta, Amoral e Associal Fundador do Estado

A importância desse indivíduo é universal – inteiramente abstrato, representaria todos os seres


humanos independentemente de categorizações biológicas ou sociais como sexo, classe econômica ou
raça. Tal homogeneidade é consagrada pelo estado de natureza, onde todos os indivíduos são igualados
pelas suas paixões, desejos e medos e assegurados à liberdade plena e o direito à autopreservação.11 É
assim que o estado de natureza de Hobbes se torna o desenfreado estado de guerra do homo homini lupus,
à medida que esses indivíduos absolutamente iguais e detentores de direitos ilimitados terão todos o
mesmo desejo pelo poder, logo, o mesmo medo e desconfiança em relação a seus pares. A competição
então se torna necessária, pois o estado de natureza de Hobbes é esvaziado de qualquer moralidade, noção
de justo ou injusto, certo ou errado, uma vez que todas as ações seriam regidas pela única máxima da
necessidade à sobrevivência. Em outras palavras, o indivíduo pré-social Hobbesiano é dominado pelas
paixões: pelo amor-próprio, pela vaidade e o desejo de levar vantagem sobre o vizinho, o que resulta na
rivalidade de todos contra todos e transforma os homens em máquinas amorais de destruição.12
Em meio ao caos, a única maneira de estabelecer regras para a convivência social pacífica será
através da passagem do estado de natureza ao Estado social, caracterizada pela eleição consensual do
soberano através do livre acordo; o contrato.13 Se os indivíduos são unidades de poder, será necessário
constituir uma unidade de poder diversa que seja incomparavelmente superior a cada poder individual,
materializada na figura do soberano e legitimada pelo consentimento de todos.14 Logo, esses indivíduos,
que a princípio eram unidades de poder ilimitado, terão de individualmente renunciar uma parcela de seu
poder e cedê-la em favor dessa figura suprema, nova detentora exclusiva dos poderes ilimitados, além de
se vincularem ao compromisso de não resistir contra os mandamentos do soberano – condição
imprescindível para a manutenção da paz, e, assim, da vida.
Compreende-se então que é o próprio indivíduo através de sua vontade, manifestada pelo

10
QUIRINO, C.G; SADEK, M.T. O Pensamento Político Clássico: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau. São
Paulo: Taq, 1980, p. 63.
11
CHATELET, François et al. Dicionário de Obras Políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993, p. 496.
12
Ibidem, p. 495.
13
Ibidem, p. 496.
14
Ibidem, p. 498.
consentimento, que pessoalmente se tornará fundador originário do Estado:
“(…) ao aceitar o contrato, ao renunciar por um ato arbitrário, isto é, não natural, ao
exercício natural das forças naturais, cada homem cumpriu seu primeiro ato de
indivíduo humano autêntico, ele se fez propriamente homem. O Estado não existiria
sem essa decisão individual fundamental: ele é a emanação e a obra dos indivíduos.”15

Logo, o indivíduo conhece no Estado sua mais completa realização, e, a partir disto, o próprio Estado
passa a viver em um indivíduo, o soberano. O indivíduo é o ponto de referência de todos os cálculos de
Hobbes, uma vez que a sociedade civil se desenvolve para este, ou até contra este, mas sempre em relação
e este.16
Nesse sentido, é essencial a percepção de que o indivíduo só entrará neste acordo, só trocará sua
liberdade natural pela segurança garantida pelo soberano, visando ao seu interesse próprio de preservação
da sua vida individual. Essa é a inauguração do individualismo egoístico fundamentado sobre
pressuposições naturais e não morais, uma vez que oriundo de um estado de natureza amoral. 17 O
individualismo em Hobbes é a consequência de seu racionalismo18 – a decisão individual de erguer o
Estado e fazer parte dele advém de um cálculo racional orientado ao bem individual. A inserção do
homem em sociedade, isto é, na sociabilidade inter-relacional com os demais homens, é posterior ao
cálculo de utilidades individualista, pois existe somente enquanto fruto deste. A identidade do homem
enquanto homem é o seu egoísmo primário e irredutível.19
Isso nos leva a outra característica essencial do individualismo Hobbesiano: sua teoria implica
que a sociabilidade humana seja artificial, pois no estado de natureza os indivíduos são isolados e
desassociados (reafirmando mais uma vez sua natureza egoísta). Ainda que o estado de natureza seja
uma circunstância hipotética e não histórica, a partir de sua construção teórica Hobbes desconstrói
aqueles laços de afetividade e lealdade anteriores à organização política. Ao afirmar isto, Hobbes se
coloca em contraposição direta com Aristóteles e inverte o modelo da filosofia-política clássica: se, para
Aristóteles, a polis emerge naturalmente enquanto complexificação da primeira comunidade humana, a
família, para Hobbes é o estado de natureza individualista que se constitui em cidade, portanto,
comunidade, de maneira artificial; por intermédio da convenção. 20 O estado pré-político clássico é a
família e o estado pré-político moderno é o estado de natureza, oposto daquele enquanto condição não-

15
QUIRINO, C.G; SADEK, M.T. O Pensamento Político Clássico: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau. São
Paulo: Taq, 1980, p. 108.
16
Ibidem, p. 107.
17
Ibidem, p. 50.
18
Ibidem, p. 111.
19
WOOD, Ellen Meiksins. Mind and Politics – an Approach to the Meaning of Liberal and Socialist Individualism.
Berkeley: University of California Press, 1972, p. 83.
20
BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Rio de Janeiro: Campus, 1991, p. 11.
relacional, contrariando a célebre máxima Aristotélica de que o homem seria um animal político, e, por
conseguinte, social. Para Hobbes, o homem não é naturalmente cidadão, não é pertencente a qualquer
grupo social naturalmente, nem mesmo à família.21

Direitos Individuais e Liberalismo

No entanto, se por um lado afirmamos que o individualismo Hobbesiano é essencialmente


egoístico, associal e amoral, características que inevitavelmente nos remetem a uma conotação negativa
daquele conceito, por outro lado deve-se destacar a importância deste no tocante aos direitos individuais.
A singularização do indivíduo em meio ao grupo social desencadeada por Hobbes é diametralmente
contrastante à herança do imaginário medieval, oriundo de uma sociedade extremamente dividida e
segregacionista, no qual os indivíduos eram somente pensados coletivamente enquanto pertencentes aos
estamentos sociais ditos “naturais'”. Nesse sentido, o indivíduo do contratualismo inaugurado por Hobbes
adquire uma autonomia ímpar, estabelecendo o pacto social através de sua vontade individual e não por
meio de sua representação social.
Além disso, a ruptura Hobbesiana com Aristóteles destacada acima revela ainda outra
consequência de suma importância ao indivíduo moderno em termos de sua igualdade natural: se para
Aristóteles a polis é natural e faz parte da natureza humana, a desigualdade entre os homens só poderá
ser natural também, para poder justificar o fato de alguns homens “naturalmente” comandarem sobre os
outros na ordem política. Já a ordem política de Hobbes é artificial justamente porque essa lógica é
invertida – no estado de natureza reina a igualdade absoluta, a tal ponto de não existirem razões naturais
que pudessem justificar a obediência de uns homens aos outros, motivo pelo qual se faz mister tal decisão
ser concebida de maneira convencional através do consentimento.22
Portanto, muito embora a teoria de Hobbes não tenha se desenvolvido ao ponto de considerar o
indivíduo enquanto sujeito de direito, 23 seu imaginário com base no indivíduo abstrato detentor de
vontade própria produziu grandes efeitos. O indivíduo Hobbesiano nasce com liberdade para ingressar
em contratos, em igualdade plena em relação aos demais indivíduos e legitimado a buscar o objetivo
último da sobrevivência, assim resultando na libertação revolucionária do indivíduo de suas castas sociais
e gerando a primeira noção dos direitos individuais inalienáveis anteriores à formação do Estado, tal

21
CHATELET, François et al. Dicionário de Obras Políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993, p. 494.
22
CHATELET et al, op. cit., p. 497.
23
QUIRINO, C.G; SADEK, M.T. O Pensamento Político Clássico: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau. São
Paulo: Taq, 1980, p. 111.
como o direito humano à vida. Além disso, as noções de igualdade e liberdade naturais se demonstrarão
cruciais ao desenvolvimento da teoria do Estado, e ultimamente às concepções de democracia e
liberalismo do Estado burguês.
Há ainda outra diferença essencial entre Aristóteles e Hobbes que trará consequências
ambivalentes para o individualismo do último. Para Aristóteles, o sentido da vida do homem no mundo
é o de atingir os seus fins morais; o homem deverá seguir o caminho da virtude e a ética é vista como
natural, uma vez que a moralidade seria a realização da natureza humana.24 Já para Hobbes, há uma
ausência de metas hierarquizadas na natureza e uma inexistência completa da moralidade nesta, posto
que tal noção virá definida apenas através das leis do soberano, já no estado da sociedade civil. 25 Esse
pensamento pavimenta o caminho para o surgimento do direito individual do homem à busca de sua
própria concepção de felicidade, uma vez que a formulação do que é a felicidade e os meios necessários
para atingi-la não viriam previamente estipulados pela natureza. Isso deve ser conjugado ao fato de que
a função primordial do Estado Hobbesiano não é a de garantir a felicidade, mas sim a segurança da
convivência pacífica, sendo esta uma condição para que cada indivíduo possa buscar a felicidade de
acordo com seus próprios termos.
É justamente este inter-relacionamento específico entre segurança e liberdade de escolha que vai
ser promovido pela interpretação liberal da lei, sustentada pela ideologia do liberalismo. Hobbes funda
tal interpretação na medida em que, à luz da sua concepção da moralidade exposta acima, a razão de ser
da lei não poderá mais ser a de refletir metas hierarquizadas pela natureza. Por conseguinte, ele visualiza
a lei promulgada pelo soberano como um artifício humano que serve apenas para impedir que os homens-
átomos em sociedade – cada qual entregue a seu próprio modo de vida e felicidade – se choquem, isto é,
entrem em colisão uns com os outros. Ao se encarregar apenas dessa esfera de colisão, assim garantindo
a segurança necessária à manutenção da vida, tudo que está fora da obediência da lei é livre aos homens.26
É a noção da segurança enquanto promotora da liberdade na medida em que delimita um espaço real no
qual a liberdade poderá ser efetivamente exercida – a norma representaria a redução da liberdade para
garantir a liberdade. A instabilidade da liberdade plena e ilimitada do estado de natureza é substituída
voluntariamente pela liberdade segura e garantida do Estado social, por interesse individual do homem.
Percebe-se então como, para que essa concepção de liberdade faça sentido e não se torne

24
CHATELET, François et al. Dicionário de Obras Políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993, p. 494.
25
Ibidem, p. 495.
26
“Hobbes é o fundador do liberalismo porque ele elaborou a interpretação liberal da lei. A lei é um artíficio humano;
rigorosamente exterior a cada um, ela não se transforma, não informa os átomos individuais dos quais ela se limita a garantir
a coexistência pacífica.”
Ibidem, p. 499.
inconciliável com o Estado de direito, é necessário que esse Estado deixe de fora de seu escopo
regulamentador matéria o suficiente para que o homem possa adquirir liberdade de escolha no silêncio
da lei. Mais especificamente, a matéria que não poderá ser regulamentada e absorvida pelo direito é
justamente a matéria moral que envolve determinada concepção dos objetivos da vida humana.

Individualismo Moral e o Estado Neutro

É nesse sentido que o contratualismo e liberalismo de Hobbes guardam estreita relação com o
individualismo moral, conforme descrito por Sandel, e que esses três elementos, por sua vez, se vinculam
diretamente ao modelo atual de Estado experimentado pelas sociedades ocidentais de um modo geral.
Para este autor, o individualismo moral, para além de presumir que o indivíduo seja egoísta, é também
uma concepção individualista da liberdade, trazendo consigo uma declaração intrínseca sobre esta: ser
livre é submeter-se apenas às obrigações assumidas voluntariamente, ou seja, através do consentimento27.
Essa concepção é extremamente atraente ao indivíduo da sociedade moderna e vai ao encontro de sua
autopercepção como uma pessoa “livre e independente” – legado do contratualismo Hobbesiano e do
aprofundamento das noções de liberdade e direitos individuais promovido pela teoria contratualista de
Locke.28 É libertador ao indivíduo acreditar que escolhe sua própria submissão a deveres, além de ser
livre para escolher o significado do que é “bom” por si próprio.
É por isso que, em contraposição ao modelo de governo promotor de virtudes oferecido por
Aristóteles, o individualismo moral e o liberalismo contido neste exigem que o Estado seja neutro do
ponto de vista moral, não devendo definir determinada concepção do que seria uma “boa vida” ou em
que consiste o disputado conceito de felicidade:
“Assim, a liberdade de escolha e o Estado neutro caminham de mãos dadas: é
justamente porque somos seres livres e independentes que precisamos de uma estrutura
de direitos que seja neutra quanto às finalidades, que se recuse a tomar partido em
controvérsias morais e religiosas, que deixe os cidadãos livres para escolher os próprios
valores.”29

Sandel afirma que a opinião majoritária considera estranha ou perigosa a noção de que a política deve
cultivar virtudes, uma vez que seria necessário que alguém definisse as virtudes que valeriam para todos
– tal noção geralmente é associada imediatamente ao fundamentalismo religioso, e não à polis virtuosa

27
SANDEL, Michael J. Justiça – o que é fazer a coisa certa? 2ª Ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 264.
28
Importante notar que Sandel não menciona Hobbes na obra citada por nós, construindo historicamente a teoria do
individualismo moral sobretudo a partir de Locke, Kant e Rawls. No entanto, certamente podemos traçá-la de volta a
Hobbes, enquanto precursor de Locke, pelos motivos desenvolvidos no presente.
29
SANDEL, op.cit. p. 268.
de Atenas pretendida por Aristóteles.30 De qualquer forma, o atrativo de uma estrutura Estatal neutra
reside no fato de que esta se abstém de determinar qualquer preferência em relação à melhor maneira de
viver e à concepção do que é o bem, deixando a cargo do indivíduo tais escolhas vinculadas a sua
identidade enquanto um ser livre.
Ocorre que essa concepção de liberdade a partir do individualismo não oferece resposta para
diversos deveres sociais e dilemas de lealdade com os quais os indivíduos se deparam cotidianamente.
Segundo Sandel, a concepção liberal voluntarista admite apenas duas categorias de deveres: os deveres
naturais, que são aqueles deveres universais que não dependem de consentimento, tais como as máximas
de evitar crueldade e tratar as pessoas com respeito; e as obrigações voluntárias, que são aqueles deveres
particulares existentes entre contratantes, pois dependem de consentimento mútuo. No entanto, há ainda
uma terceira categoria de obrigações, as quais seriam particulares, porém independentes do
consentimento: as obrigações de solidariedade. Essas são aquelas responsabilidades advindas da família
ou da nação em que o indivíduo nasceu, por exemplo. A linguagem do individualismo moral não explica
estas obrigações costumeiramente encaradas como legítimas, uma vez que transcendem a ética do
consentimento – é o acaso quem determina o parentesco e a nacionalidade dos indivíduos, e não a sua
vontade.31Também não seriam deveres universais, já que dizem respeito a vínculos sociais específicos.
Ademais, além de não oferecer fundamentação para certas obrigações de solidariedade, a cultura
do individualismo provoca resistência na aceitação de outras: devemos nos responsabilizar por injustiças
históricas cometidas por nossos antepassados a determinado credo ou etnia, por exemplo? Como explicar
a existência de obrigações particulares que os indivíduos não aceitaram por meio da convenção, seja ela
real ou hipotética? A resposta certamente gira em torno de valores. Mas qual seria, então, o papel de um
Estado neutro em relação a estes?

O Individualismo e a Crise do Paradigma da Modernidade

Além de invocar a proposta de Sandel, vamos tentar esclarecer as questões colocadas a partir do
paradigma da modernidade e sua crise atual. Primeiramente, convém explicitar brevemente o que é e no
que consiste tal paradigma.
“Um paradigma é um conjunto de perspectivas dominantes em torno da concepção do
ser, do conhecer e do homem que, em períodos de estabilidades paradigmática,
adquirem uma autoridade tal que se “naturalizam”(…) Entretanto, um paradigma é
uma construção teórica e como tal é inseparável do conjunto da vida social no qual se

30
Ibidem, p. 267.
31
SANDEL, Michael J. Justiça – o que é fazer a coisa certa? 2ª Edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 277.
insere.”32

Tendo isso em vista, percebe-se que o conceito de um paradigma vem atrelado a três aspectos do
conhecimento, trazendo consigo uma ontologia, epistemologia e antropologia específicas que se tornam
indissociáveis. No caso do paradigma da era moderna, esses três saberes reuniram-se a partir de uma
convergência comum caracterizada pela ascensão do racionalismo como fonte única e forma prioritária
de organização do conhecimento. É um paradigma determinista, mecanicista e próprio das ciências duras,
eis que surgido no contexto do despontamento da atividade científica, a qual privilegiou a forma de
conhecimento racional através da observação de relações de causalidade, e, nesse sentido, reprimiu
qualquer outra forma de acesso ao saber. 33 Sua ontologia é o materialismo, sua epistemologia é a
quantificação racional e sua antropologia se define pela razão humana.
Nesse contexto de racionalização absoluta, é importante destacar que tal paradigma se fundou a
partir de um conceito-chave imprescindível: a cisão radical entre a natureza e o ser humano, assim dando
origem a outros dualismos como natureza/cultura e sujeito/objeto enquanto desdobramentos destes.
Importante notar que essa dualidade não é equilibrada; vem acompanhada de um forte cunho de
dominação do homem em relação à natureza. Isso porque, com base em sua premissa racionalista, “a
natureza foi concebida como possuidora de uma essência inteiramente organizada conforme uma lógica
racional e o ser humano foi definido pela sua racionalidade”,34 sendo possível, então, que a natureza fosse
inteiramente apreendida, e, por conseguinte, dominada, pelo ser humano e sua razão.
A explicação para isso perpassa a história humana: o paradigma moderno teve sua emergência
nos séculos XVI e XVII e foi produzido no “bojo de um ambicioso projeto que tinha como objetivos
fundamentais a emancipação do homem e da sociedade” frente aos caprichos até então incontroláveis e
devastadores da natureza. Como exposto no início deste artigo, é justamente este o contexto renascentista
em que Hobbes formula sua Teoria do Estado, dando origem ao nascimento de um individualismo
racional e egoísta, cuja repercussão e aprofundamento através dos filósofos políticos subsequentes vão
acompanhar o próprio processo de amadurecimento e expansão gradual do paradigma em questão.
Podemos dizer, deste modo, que subjacente ao paradigma da dominação está a afirmação do
individualismo humano tal como engendrado por Hobbes.
Vejamos como estes coincidem. O indivíduo de Hobbes, a princípio controlado inteiramente por

32
PLASTINO, Carlos Alberto. O Primado da Afetividade – A Crítica Freudiana ao Paradigma Moderno. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2001, p. 22.
33
PLASTINO, Carlos Alberto. O Primado da Afetividade – A Crítica Freudiana ao Paradigma Moderno. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2001, p. 26.
34
Ibidem, p. 23.
suas paixões irracionais, mas dotado de racionalidade, deverá se utilizar desta para fazer o cálculo
racional da fundação do Estado social, assim dominando suas paixões. Ora, não poderia ser mais clara a
ilustração da superioridade da razão enquanto única solução para salvar a natureza humana passional de
sua própria sucumbência, além de evidenciar o projeto de dominação da razão sobre a natureza. A
concepção atual de “Estado” é herdeira da noção do governo enquanto produto da vontade
exclusivamente racional dos indivíduos, razão esta justificada pelo fato de que o pacto teria sido feito em
benefício próprio e egoísta desses indivíduos – a razão humana infalível não cometeria o erro de engajar
em qualquer coisa que lhe fosse contraprodutiva, premissa fundamental à consolidação do capitalismo.
Vemos então que a razão humana do paradigma moderno é ela em si própria individualista, ou no mínimo
utilizada para fins individualistas, não sobrando espaço para o reconhecimento do “outro”. Especialmente
porque esse mesmo indivíduo racional de Hobbes desconhece tanto a ética quanto a sociabilidade, e, por
conseguinte, a afetividade inerente a esta.
Ocorre que, conquanto a razão possa até ser a fonte criadora de contratos, não é ela quem cria os
valores éticos.35 Aliás, é justamente por isso que o paradigma da modernidade se encontra em crise.
Caracterizada por evidências cada vez mais gritantes que assinalam pela insuficiência da razão pura para
dar conta das complexidades da vida humana,36 o paradigma moderno se tornou insustentável a partir de
seus próprios termos, enredado na contradição de produzir resultados muitas vezes irracionais e até
mesmo incompatíveis com a vida humana na Terra, tal como a destruição progressiva do habitat natural
do homem. Contrariamente à tese Hobbesiana, é preciso reconhecer que a identidade do homem se
constitui numa relação intersubjetiva atravessada por processos afetivos,37 estes sim criadores de valores
éticos, e que tal afetividade requer maior legitimidade nas organizações sócio-políticas.
É nesse sentido que o desenvolvimento do individualismo de Hobbes enquanto valor
eminentemente desafetivo no bojo do paradigma moderno da dominação aliou-se à ascensão do
capitalismo, assim legitimando a fundação das sociedades modernas com base na propriedade
exclusivista e no objetivo da máxima obtenção de lucro, conforto e status pessoal. Nas sociedades
capitalistas modernas, só há espaço para os valores individuais: o indivíduo orientado por seus próprios
interesses, atuando no âmbito do mercado capitalista, inviabiliza a ideia de uma comunidade democrática
cooperativa, uma vez que transforma a figura do outro em competidor e inimigo, 38 muitas vezes a

35
PLASTINO, Carlos Alberto. Do paradigma da dominação ao paradigma do cuidado. In. Revista Divulgação em Saúde
para Debate, CEBES: Rio de Janeiro, n. 53, janeiro 2016. p. 31.
36
PLASTINO, Carlos Alberto. O Primado da Afetividade – A Crítica Freudiana ao Paradigma Moderno. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2001, p. 31.
37
Tal noção é afirmada especificamente pela área do saber da psicanálise e por seu fundador, Sigmund Freud.
Ibidem, p. 167.
38
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva. 4a ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 76.
despeito dos demais valores sociais. Talvez esteja precisamente aí a dificuldade de encaixar as obrigações
provenientes do valor da solidariedade no imaginário liberal atual.
Se concordarmos que as obrigações de solidariedade existem e exercem peso na vida humana,
devemos também concordar que valores como a solidariedade nos obrigam moralmente e produzem
efeitos jurídicos, muito embora não sejam legitimados politicamente pelo Estado “neutro”. Isso nos leva
ao questionamento colocado por Sandel relativo à suposta neutralidade Estatal quanto à hierarquização
de valores e concepção de uma “boa vida”. Se as teorias críticas ao capitalismo, como o marxismo,
afirmam que a falsa noção de uma neutralidade Estatal encoberta sua real razão de ser enquanto
instrumento a favor da ideologia dominante, Sandel oferecerá um argumento similar, porém sem aderir
a um viés ideológico específico. Ele afirma que um Estado neutro talvez não seja possível e nem mesmo
desejável, uma vez que o fingimento de uma neutralidade a qual jamais poderá ser alcançada equivale a
um impasse para as decisões orientadas pela justiça, culminando numa fórmula em direção ao
retrocesso.39
“Muitas das questões mais ardentemente contestadas de justiça e direitos não podem
ser discutidas sem que sejam consideradas controversas questões morais e religiosas.
(…) Uma política sem um comprometimento moral substancial resulta em uma vida
cívica pobre.” 40

Certamente a mudança da concepção de um Estado neutro em relação a valores envolveria


simultaneamente a transformação das concepções de liberalismo, liberdade individual e, ultimamente,
do individualismo. Se o paradigma moderno racional-individualista da dominação não se sustenta, é
preciso pensar de que maneira transformá-lo em um novo paradigma afetivo-coletivo do cuidado, 41
focado na cooperação social em oposição à vantagem pessoal, na empatia em contraposição à
competitividade e no reconhecimento da individualidade dos sujeitos políticos em lugar do
individualismo. “O sujeito racional solitário está morto, e são os valores culturais, os mundos plurais, as
diversas concepções sobre vida digna os temas com os quais se defronta a filosofia política
contemporânea.”42

Considerações Finais

Em síntese, demonstramos como Hobbes teria inaugurado o conceito do indivíduo, e, portanto, o

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SANDEL, Michael J. Justiça – o que é fazer a coisa certa? 2ª Edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 296.
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Ibidem. p. 296.
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PLASTINO, Carlos Alberto. Do paradigma da dominação ao paradigma do cuidado. In. Revista Divulgação em Saúde
para Debate, CEBES: Rio de Janeiro, n. 53, janeiro 2016. p. 30.
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CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva. 4a ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 76.
individualismo, sendo tais noções essenciais a sua teoria político-filosófica, posto que é o indivíduo quem
vai fundar e legitimar o Estado social. Nesse sentido, procuramos explicitar as peculiaridades principais
do individualismo concebido – de um lado, seu egoísmo, amoralidade e associabilidade, e de outro, seu
direito natural à vida, à liberdade e à igualdade. A partir da sua liberdade em relação ao Estado,
destacamos o conceito de liberalismo, a concepção do individualismo moral daí advinda e a exigência
deste em relação a um Estado neutro em termos de valores morais, questionando a legitimidade das
obrigações de solidariedade dentro desse modelo. Por fim, foi explicitado o conceito e conteúdo do
paradigma da modernidade, demonstrando a influência incontestável do individualismo Hobbesiano
dentro daquele e sua crise atual, concluindo que não há mais espaço para tal individualismo no contexto
das limitações destruidoras do paradigma da sociedade contemporânea.

Referências

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2009.

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MACPHERSON, C.B. A Teoria Política do Individualismo Possessivo de Hobbes até Locke. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1979.

PLASTINO, Carlos Alberto. O Primado da Afetividade – A Crítica Freudiana ao Paradigma Moderno.


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___________. Do paradigma da dominação ao paradigma do cuidado. In. Revista Divulgação em Saúde


para Debate, CEBES: Rio de Janeiro, n. 53, janeiro 2016.

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SANDEL, Michael J. Justiça – o que é fazer a coisa certa? 2ª Edição, Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2011.

WEFFORT, Francisco C. Os Clássicos da Política. Vol. 1. 13a ed. São Paulo: Ática, 2000.

WOOD, Ellen Meiksins. Mind and Politics – an Approach to the Meaning of Liberal and Socialist
Individualism. Berkeley: University of California Press, 1972.

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