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A ignorância letrada:

ensaio sobre a mediocrização do ambiente acadêmico


Paulo Roberto de Almeida*

Resumo: Ensaio sobre a crescente deterioração da qualidade da produção


acadêmica brasileira na área de humanas, examinando a natureza do problema,
suas causas, suas consequências mais evidentes e as evidências disponíveis, de
modo indireto. Ademais das pedagogias freireanas, que estão na raiz da
tragédia educacional nos dois primeiros ciclos de ensino, o sistema de
educação superior padece de viseiras mentais criadas por ideologias
supostamente progressistas que deformam a percepção da realidade e
contribuem para a erosão de qualidade nos diferentes ciclos de ensino.
Palavras-chave: Academia brasileira. Mediocrização. Pedagogias
equivocadas.

Nota preliminar 1: Sempre me lembro de ostentada na “parte alta” da sociedade, isto


um aforismo de Ferreira Gullar quando vou é, naquela supostamente dedicada ao
escrever um texto a partir do zero, sem conhecimento de alto nível. No meu
notas e sem preparação: “A crase não foi conceito, porém, essa ignorância não
feita para humilhar ninguém”. Pois bem: merece a caracterização “ilustrada”, pois se
este ensaio não foi feito para humilhar trata mesmo, apenas e tão somente, de
nenhum acadêmico, nem para ofender a cultura “letrada”, na sua acepção mais
categoria, de modo geral. Apenas desejei elementar. Com estes “avisos” a toda a
externar uma reflexão feita inteiramente a comunidade, agora começo.
partir do que constato nos ritos e nas
práticas acadêmicas, com base na interação
com outros professores, no exame de 1. O problema
artigos submetidos ao meu parecer e
também formada na leitura de muitos A universidade brasileira, como todos
artigos publicados. O uso do conceito de sabem, é uma construção tardia. Talvez
“mediocrização”, em relação à academia, e alguma sumidade acadêmica atribua
não simplesmente em conexão com a seus evidentes traços negativos ao
televisão aberta, por exemplo, ou, de chamado “capitalismo tardio” em nosso
maneira geral, com a cultura de massas no país, qualquer que seja o significado
Brasil, pode parecer exagerado e indevido, desse conceito histórico naturalmente
mas me pareceu necessário nas anacrônico (pois que todo processo
circunstâncias atuais. Em qualquer complexo e multissecular, como o
hipótese, a mediocridade reinante não é
capitalismo, apresenta defasagens
obra de um ou dois acadêmicos; ela é um
empreendimento coletivo de longa duração, temporais em suas manifestações
que já vem desde algum tempo no passado concretas, em cada situação social
recente e que promete se estender por um determinada); mas a verdade é que a
tempo ainda indefinido no futuro da mediocrização também é uma obra
academia brasileira. tardia, pois o fenômeno só surge depois
Nota preliminar 2: Talvez o adjetivo
que a universidade foi inteiramente
“letrada” pudesse ser substituído por um construída. Formada a partir de escolas
equivalente mais culto, “ilustrada” e faculdades isoladas na primeira
digamos, para caracterizar a ignorância metade do século 20, a universidade

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brasileira só começou a erigir um todas as faixas profissionais, ambos os
sistema de pós-graduação a partir do fenômenos dominados por partidos e
final dos anos 1960: a “substituição de movimentos de esquerda e pelo
importações” nessa área foi um chamado “baixo clero” (e, portanto, já
processo lento, ainda não de todo tendente ao que chamei de
acabado, mas já bastante consolidado mediocrização das instituições). Não
para os padrões habituais dos países em existe novidade nesse tipo de
desenvolvimento. Pode-se dizer que, do “evolução”, mesmo quando não
ponto de vista dos procedimentos aceitamos a legitimidade de uma cultura
administrativos e das técnicas de de “elite”; o romancista americano
formação e de aperfeiçoamento de James Fenimore Cooper – mais
pessoal de nível superior, a missão foi conhecido entre nós por seu romance
razoavelmente bem cumprida, muito histórico bem pesquisado O Último dos
embora as “importações” ainda Moicanos – já tinha detectado a
permaneçam como um componente crescente mediocrização da vida
importante em várias áreas do sistema intelectual nos Estados Unidos desde o
(o que é absolutamente natural e início do século 19, sociedade que não
necessário). pode ser tida como exemplo de elitismo
aristocrático, ao contrário: ele indicava
Essa construção se deu basicamente sob
o fenômeno como coetâneo ao processo
o regime militar (1964-1985), não
de democratização social, em forte
ocorrendo depois, na redemocratização
ascensão naquele país recentemente
e no período recente, nenhuma
independente.
“revolução” no terceiro ciclo, pelo
menos não comparável ao processo de Sem ter apoio em pesquisas específicas
rupturas registrado durante a fase ou estudos setoriais empiricamente
autoritária. Os governos posteriores se embasados – correndo o risco, nesse
limitaram a expandir o sistema, por particular, de algum subjetivismo – é
vezes de forma anárquica, abrindo possível afirmar-se que o crescimento e
novos espaços ao setor privado, na a expansão do terceiro ciclo ocorreram
ausência de investimentos estatais no paralelamente ao enorme crescimento
setor, ou na incapacidade de governos quantitativo e à perda de qualidade dos
estaduais e do próprio governo central dois primeiros ciclos de ensino. Existem
fazê-lo de modo compatível com as muitas evidências prima facie de que
necessidades detectadas. Essa expansão esses dois processos paralelos e
se deu de forma mais “elástica” do que aparentemente contraditórios – embora
sistêmica, bem mais do lado concordantes no aspecto quantitativo –
quantitativo do que qualitativo, embora aconteceram ao longo das quatro
se possa dizer que a produção ampliada últimas décadas e meia, ou seja, nos 21
também melhorou sensivelmente de anos do regime militar e nos 25 anos
qualidade em muitas áreas. decorridos desde a redemocratização.
Ao longo desse processo de inegável
O que a redemocratização trouxe de
democratização de oportunidades
diferente foi, justamente, um simulacro
sociais – embora insuficiente e longe de
de “democratização” das instituições
ter sido completada, sobretudo devido
universitárias, sob a bandeira da
ao estrangulamento do secundário – os
“autonomia”. Na verdade, um aumento
dois movimentos se reforçaram
extraordinário e uma forte consolidação
mutuamente e consolidaram seus traços
do corporativismo e do sindicalismo em
mais negativos, evidenciados

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justamente no elemento característico sentidas no Brasil dessa época: criar
que constitui o elemento central desta uma universidade compatível com as
análise: a perda de qualidade e a necessidades industrializantes e,
mediocrização geral do ensino no sobretudo, operar a implantação de
Brasil, em especial em sua vertente programas de pós-graduação. Os
“superior”. militares provavelmente partiram do
pressuposto de que a escola pública já
2. As causas
estava montada e funcionando
Como para todo fenômeno complexo, a adequadamente, e que os esforços mais
perda de qualidade do ensino público importantes deveriam ser dirigidos,
em geral, no Brasil, possui múltiplas portanto, para a graduação universitária,
causas, diversas variáveis intervenientes em especial para a pós-graduação.
e diferentes tipos de condicionantes, que Recursos foram maciçamente
foram se alterando ao longo do tempo. direcionados a esses dois sistemas, ao
Pode-se, no entanto, tentar isolar mesmo tempo em que os dois primeiros
algumas causas aparentes que foram ciclos recebiam os influxos de milhões
interagindo entre si desde os anos 1960 de novas crianças e adolescentes, sob o
e que se reforçaram conjuntamente no impacto do crescimento demográfico e
final do período, ou seja, atualmente, e da urbanização, bastante rápidos no
que prometem continuar agindo no Brasil dos anos 60 aos 80. As entidades
futuro previsível. de fomento cresceram, as bolsas se
Tudo tem início na geração precedente e multiplicaram, os salários dos
no movimento pela reforma do ensino e professores universitários eram
de reforço da escola pública, começado relativamente elevados.
na sequência da Revolução de 1930, Paradoxalmente, um dos principais
continuado na implantação do Estado fatores da perda progressiva de
autoritário no Brasil, em 1937, e em sua qualidade do ensino público nos dois
consolidação nos anos seguintes, primeiros ciclos foi a concentração – e a
movimento que se prolongou na centralização e a reconcentração – dos
República de 1946. Os líderes militares recursos públicos no terceiro ciclo, este
e civis que comandaram esses processos ultra-privilegiado pelas autoridades em
nos trinta anos seguintes à Revolução de relação aos dois primeiros ciclos e, por
1930 foram bem sucedidos em criar um isso mesmo, capaz de “produzir”
sistema de escolas públicas de universidades relativamente dinâmicas
qualidade, ainda que bastante seletivo ao longo das últimas três décadas (sem
em sua capacidade de recrutamento – prejulgar aqui e agora quanto à sua
basicamente a classe média urbana – e capacidade de produzir boa ciência). O
tendente a um mínimo denominador Brasil representa verdadeira anomalia
comum – horários reduzidos e reforço internacional, provavelmente universal,
limitado de mecanismos extra-escolares sob a forma de uma pirâmide invertida
– mais do que à ampliação progressiva de gastos entre os ciclos. É
dos conteúdos e metodologias. absolutamente único na desproporção
Essa escola “republicana” funcionava inusitada, e aberrante, com que são
razoavelmente bem, ainda que de modo alocados os recursos no topo da
restrito, quando os militares tomaram o educação (na verdade transformado em
poder e decidiram fazer uma revolução base superior da pirâmide), em
nas carências educacionais mais detrimento dos “primos pobres” dos
dois ciclos de base (e da educação

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técnico-profissional, também). Isso em Estou plenamente consciente de que as
flagrante contraste com o que acontece próprias corporações engajadas no
na maior parte dos países (notadamente ofício (e no comércio) educacional no
naqueles de melhor performance Brasil – em qualquer ciclo – tendem a
educacional e de maior produtividade enfatizar os fatores pecuniários –
no sistema econômico de maneira insuficiência dos orçamentos públicos,
geral). no plano institucional, modéstia ou
mesmo depressão salarial dos
Essa desigualdade distributiva não
professores, no plano individual – como
explica tudo, porém, sendo necessário
estando na origem de todas as mazelas
completar o quadro mediante um fator
da educação brasileira. Não descarto,
causal de natureza mais qualitativa,
obviamente, essa linha explicativa –
representado pelas orientações políticas
embora eu prefira enfatizar o escândalo
e pedagógicas adotadas nos cursos de
da pirâmide invertida da distribuição de
formação de professores, especialmente
gastos educacionais; mas os fatores
nas faculdades de pedagogia (que
políticos e ideológicos são para mim
formam formadores, eventualmente
bem mais relevantes, e mesmo
também formadores de formadores).
determinantes, na erosão qualitativa de
Não é segredo para ninguém que o
todos os níveis da educação e de todo o
ensino no Brasil, em geral, e os cursos
ensino (público ou particular) no Brasil.
de pedagogia, em particular, são
tremendamente influenciados – se não 3. As consequências
dominados – pelas ideologias tidas por A tese principal deste ensaio
“progressistas” (as aspas indicam provocador – deliberadamente focado
obviamente o subjetivismo da nas áreas de humanidades – é a de que,
expressão), com ênfase naquelas depois de ter se beneficiado – e
aproximadas ao marxismo; bem como beneficiado a sociedade – com a
pelas correntes pedagógicas construção de um sistema universitário
identificadas de perto ou de longe com relativamente completo, e
modismos da área (entre eles o chamado aparentemente eficiente, com a
“construtivismo”) e com um amálgama formação de recursos humanos de
já difuso a partir da cepa original melhor qualidade que aqueles
“freireana”, ou seja, a chamada previamente existentes, a universidade
“pedagogia do oprimido” produzida por brasileira deu início a um processo de
Paulo Freire. introversão auto-sustentada, o que a
Dito assim, com essa simplicidade levou a se isolar da sociedade e a
redutora, parece que se trata de um desenvolver comportamentos entrópicos
aspecto desimportante no mar de e autistas que, ao fim e ao cabo,
problemas – materiais, curriculares, redundaram no referido processo de
humanos – da educação brasileira, mediocrização atual (aliás, em
embora ele seja, do ponto de vista da crescimento e expansão).
abordagem adotada neste ensaio, um De fato, esse processo apresenta, pelo
dos problemas mais sérios envolvidos lado das humanidades, um aspecto de
nos processos gerais e específicos da ignorância letrada que surpreende pela
deterioração da qualidade do ensino no sua extensão e profundidade. Ele não é,
Brasil (em vários níveis). As pedagogias exclusivamente, o resultado das ditas
freireanas estão no centro da tragédia pedagogias freireanas – que explicam
educacional brasileira. Ponto, parágrafo. mais diretamente a perda de qualidade

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dos ciclos iniciais de ensino; mas ele é a do primário e do secundário – qualquer
consequência de anos, mais exatamente que seja a estrutura e os títulos desses
décadas, de ideologias “educativas” cursos –, que se tornam, no momento
marcadas pelo que existe de mais devido, seus pupilos e orientandos, uma
atrasado na teoria social audiência cativa (muitas vezes passiva)
contemporânea. Ademais da ausência dos novos mandarins universitários.
de controles de qualidade, da falta de Nos vários componentes dessa
sistemas de metas fixadas e resultados complexa equação, pedagogas
cobrados – que explicam sua falta de freireanas, sinecuras acadêmicas,
produtividade – o que mais distingue a sindicalismo de baixa extração e
área de humanidades, no Brasil, é uma ideologias anticapitalistas e antimercado
adesão acrítica a correntes e se combinam e se reforçam para destruir
movimentos típicos do capitalismo a educação brasileira, pelo menos
atrasado que aqui vigora. (Parêntese naquelas funções iluministas que ela
rápido: obviamente meu comentário não deveria exibir, colocando em seu lugar
vale para os que professam a fé esses elementos característicos da
religiosa nas alternativas socialistas ao ignorância letrada.
capitalismo, mas estes já pararam de ler No curto prazo, o resultado global é o
este meu ensaio desde o começo, se é aprofundamento da mediocridade que já
que começaram; quanto a mim, estou vinha marcando as áreas de
certo de que o Brasil é um país humanidades do sistema universitário –
capitalista, ainda que atrasado, mas tanto público quanto privado – nos
“condenado” a se desenvolver no últimos anos (possivelmente nas duas
âmbito do capitalismo, ponto.). As últimas décadas), contribuindo, no
concepções dessas correntes de médio e no longo prazo, para reforçar as
“pensamento” são as de um tendências brasileiras à estagnação ou
anticapitalismo instintivo, as de um ao atraso relativo. Essas características
forte sentimento antimercado, um não são percebidas, obviamente, pelos
estatismo exacerbado, enfim, uma que integram o próprio sistema,
crença ingênua nas virtudes da sobretudo por aqueles que vivem
“engenharia social”, características, exclusivamente a vida universitária
aliás, bastante disseminadas em diversas brasileira, em tudo o que ela apresenta
universidades da região; e, até, em de autista e de entrópico. Os
muitas universidades de países acadêmicos que já viajaram, que já
perfeitamente capitalistas (como conviveram com universidades
exemplo a França, por isso mesmo em estrangeiras – refiro-me, obviamente, às
declínio intelectual e com baixa boas universidades americanas, e
produtividade geral nos terrenos aqui algumas boas europeias – e que já se
focados). utilizaram de serviços e mercados
Aqui existe uma correlação circular e nesses países, devem ter perfeita
cumulativa de fatores causais: os consciência, se tiverem as mentes
ignorantes letrados e as corporações abertas, para o verdadeiro atraso em que
sindicais se multiplicam e se reforçam vive o Brasil, mesmo com todos os seus
mutuamente, disseminando tentáculos sinais de aparente modernidade. O
por todos os poros universitários. Os Brasil é um país que caminha
que alcançam funções “pedagógicas” lentamente, que praticamente se arrasta,
formam as pedagogas freireanas que, penosamente, em direção à
por sua vez, vão formar os professores modernidade.

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Esse lento caminhar no sentido dos para cumprir requisitos de pontuação
avanços científicos e tecnológicos mais estabelecidos de forma puramente
dinâmicos da contemporaneidade é quantitativista pelos organismos de
evidente, mesmo comparando o Brasil a fomento acadêmico).
outros países emergentes que se O problema vai muito além do que já
integram aos mercados globais da tinha constatado, desde 1985, Edmundo
atualidade, sobretudo na Ásia. Não se Campos Coelho, em seu aclamado (e
trata apenas ou exatamente de pouco lido) A sinecura acadêmica: a
dificuldades em aceitar os ética universitária em questão (São
requerimentos do progresso em suas Paulo: Vértice, 1985), já que atingindo
diversas expressões materiais e bem mais do que bancas de seleção de
culturais; afinal de contas, como já dizia professores, cargos comissionados,
Mário de Andrade mais de setenta anos apoios financeiros e prebendas
atrás, “progredir, progredimos um institucionais de modo geral. Ele
tiquinho, que o progresso também é transformou-se num problema sine
uma fatalidade”. Trata-se, sobretudo, de cura, alcançando o próprio núcleo do
bloqueios burocráticos e materiais a um sistema de produção acadêmica, ou seja,
progresso mais rápido: qual é o país sua própria substância, que é a
emergente que possui uma carga fiscal capacidade de produzir obras originais,
típica de país rico: 38% do PIB? em linguagem acessível a um público
(Atenção: essa é a taxa média nos países mais vasto, mas dentro de rigorosos
da OCDE, sendo que alguns estão padrões acadêmicos de qualidade.
abaixo de 30% e que sua renda per
capita ultrapassa 40 mil dólares, mais de Com efeito, um dos aspectos mais
seis vezes a brasileira.) Qual é o país no preocupantes dessa involução no
qual a atividade empreendedora é tão período recente, aliás, estimulada em
cercada de entraves e dificuldades? (No grande medida pelas próprias
que o Brasil empata, talvez, com a autoridades da área, é a tendência ao
Índia, outro país capitalista atrasado. enclausuramento acadêmico, à
Atualmente, mesmo aquele outro diminuição dos esforços de cooperação
grande país burocrático, que é a China, com o Norte e, no sentido contrário, o
é mais capitalista que o Brasil.) reforço de intercâmbios variados com
países do Sul, numa discriminação
4. As evidências política que não faz sentido no plano
Independentemente dos lentos científico; dificilmente se poderá
progressos materiais que o Brasil sustentar que entidades de pesquisa da
consiga realizar nos terrenos vinculados América Latina ou de continentes
a mercados capitalistas – no que ele assemelhados possuam maior e melhor
vem sendo superado por países de substância científica do que seus
crescimento e de modernização mais equivalentes do Norte. Não existe maior
rápidos – o fato é que o panorama demonstração da vontade de
acadêmico vem experimentando nítido autocondenar-se a viseiras mentais do
declínio de qualidade no âmbito das que a frase sumamente imbecil, bastante
humanidades, o que é revelado, por repetida em certos meios, que proclama
exemplo, pela forma e substância dos que o “Sul é o nosso Norte”. Toda e
artigos publicados ou apresentados para qualquer ciência, toda e qualquer
publicação nos veículos da área (muitos abordagem acadêmica que se
deles existindo apenas e tão somente autodireciona para um lado, ignorando

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todos os outros, é por definição estúpida ponto de vista do desenvolvimento
e autolimitativa em termos estritamente econômico e social, quando ela é o
científicos. sustentáculo da modernidade no campo,
independentemente de considerações ad
Acadêmicos defensores dessa postura se
hoc sobre as dimensões regionais das
orgulham de exibir uma proclamada
propriedades ou seus vínculos com o
“latinoamericanidad” que não faz o
mercado externo.
menor sentido no plano das
metodologias e das pesquisas de ponta, São muitos os exemplos de posturas
como se o fato de pertencer ao mesmo anacrônicas no plano das humanidades,
arco cultural ou a uma mesma zona assim como são muitos os componentes
geográfica representasse qualquer da mediocridade universitária, entre eles
garantia de qualidade acadêmica. O um “gramscianismo” instintivo e até
“indigenismo” ingênuo e canhestro ignaro (já que não corresponde a uma
presente em algumas dessas novas verdadeira leitura aberta da obra
experiências de cooperação introduz um original). Esses exemplos podem até
elemento totalmente estranho nas corresponder a uma atitude militante
tradições de pesquisa brasileira, já que compatível com preferências manifestas
referidos a um universo civilizatório na vida civil; mas jamais aos requisitos
que não tem nada a ver com os do trabalho acadêmico tal como
componentes antropológicos ou reconhecido pelos padrões normais da
culturais da formação histórica e social pesquisa científica. Todos eles vão
do Brasil. reforçar as deficiências metodológicas,
a ignorância letrada e o atraso
A busca sôfrega por identidades nessas
substantivo nas pesquisas relevantes
áreas, certamente forçada, mas
para o progresso e o desenvolvimento
intensamente praticada nos últimos
do Brasil. Em algum momento, o
anos, representa um atraso e uma
ambiente acadêmico vai emergir das
dispersão de esforços que vão,
camisas de força ideológicas e buscar a
inevitavelmente, cobrar um preço na
atmosfera mais arejada da pesquisa de
produção acadêmica brasileira. As
boa qualidade. Mas esse processo
interpretações classistas e “campesinas”
promete ser longo e custoso, tendo em
da história social e do desenvolvimento
vista os equívocos e desvios já
econômico na região, a adesão pouco
incorridos no cenário universitário
refletida a supostas causas de
brasileiro.
“oprimidos” e de “injustiçados”
reforçam os componentes do atraso Quero crer, também com base em
acadêmico; interpretações, aliás, que evidências subjetivas, que o atraso é
vêm acompanhadas de um inacreditável apenas relativo, e não absoluto, pois em
apoio a uma das experiências políticas algumas áreas ou situações específicas a
mais nefastas já assistidas em todo o racionalidade tem condições de se
mundo, que é a construção progressiva impor contra as ideologias ingênuas. No
de um fascismo tido supostamente por cômputo geral, contudo, a situação atual
ser de esquerda, apenas porque o nas humanidades da academia brasileira
caudilho promotor emite invectivas aparece como quase desesperadora,
“anti-imperialistas”. Uma falsa noção necessitando, praticamente, o
de segurança e de soberania alimentar estabelecimento de um quilombo de
condena a atividade primário- resistência intelectual contra os assaltos
exportadora como sendo negativa do à racionalidade mais elementar por

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parte de tribos crescentes de ignorantes Não é preciso, aqui, citar nomes e
letrados. Gostaria de estar errado, e de ensaios publicados, pois é muito fácil
ser apenas um pessimista elitista (não: deduzir quem, ou quais são as “vacas
não tenho nenhuma vergonha em buscar sagradas” do processo de mediocrização
a elite do saber). Gostaria de registrar da universidade brasileira. Talvez dois
uma rápida correção da academia pequenos trechos retirados de texto de
brasileira em direção de padrões de um dos gurus da nova ignorância sejam
comportamento institucional mais representativos do que estou analisando:
consentâneos com sua vocação “Entra governo, sai governo, as leis do
humanista e, sobretudo, constatar uma mercado parecem dominar
produção intelectual à altura dos irreversivelmente o mundo, o estilo de
requisitos de modernidade e progresso vida norte-americano devasta espaços
que estamos no direito de esperar de um nunca antes alcançados – seja na China
país inserido na globalização do ou na periferia das grandes metrópoles
conhecimento. Não é o que tenho do sul do mundo...”; “A crise da URSS
observado até aqui. não deu lugar a um socialismo
Esperemos que seja um fenômeno superador dos problemas desse modelo
passageiro, embora meu pessimismo e, ao contrário, disseminou o
realista tenha sólidas razões para existir: neoliberalismo nas terras de Lênin. O
afinal de contas, o otimismo da vontade, capitalismo abandonou seu modelo
ou da prática, não consegue prevalecer keynesiano por um modelo de extensão
num ambiente de mentes fechadas, o inaudita da mercantilização de todos os
que só alimenta o pessimismo da razão, rincões do mundo.” Um acadêmico
ou do intelecto. O problema parece estar capaz de escrever tamanha bobagem é
em que os acadêmicos gramscianos só capaz de qualquer impostura intelectual,
pretendem ler Gramsci, jamais as que ele aliás não cessa de praticar.
críticas que lhe são feitas, mesmo as de Os quilombos de resistência intelectual
um intelectual socialista (embora a esses processos de indigência
liberal) como Norberto Bobbio, por acadêmica e de desonestidade no plano
exemplo. As viseiras mentais daqueles das ideias – o que ocorre sempre
mesmos que posam de sumidades quando os argumentos exibidos estão
acadêmicas de relevo, e que são lidos e longe de corresponder à realidade mais
repetidos nas universidades brasileiras, evidente – são ainda muito tênues e
chegam a ser assustadoras, inclusive e pouco numerosos. A esperança é que
sobretudo porque parecem ter eles se multipliquem nos anos à frente e
assegurado o seu próprio sucesso possam superar os imensos pântanos de
continuado, a julgar pela bibliografia mediocridade que se espalham de modo
distribuída e pelos trabalhos produzidos preocupante pela universidade
nessas esferas. brasileira. Estou sendo muito
pessimista?

*
PAULO ROBERTO DE ALMEIDA é Doutor em Ciências Sociais, Mestre em Planejamento
Econômico, Diplomata de carreira.

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