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BREVE NOTA DE INTRODUÇÃO

Essas são algumas páginas do ensaio Quando acende a camera,


de Eduardo D Milewicz que será publicado em breve. Eduardo
é Argentino, diretor de cinema e televisão, professor e
preparador de elenco para audiovisual.
Quando acende a camera é o nome que Eduardo deu ao seu
processo de trabalho na preparação de atores, diretores e
outros profissionais da indústria.
Seguindo a tradição dos workshops e preparações, aqui, vamos
inserir algumas regras para ler esse e-book:
1.   Foco;
2.   Pode compartilhar, mas não envie o arquivo. Peça para
acessarem o site www.quandoacendeacamera.com e
baixarem o E-book lá, combinado?;
3.   Pode citar o conteúdo, desde que respeitados todos os
direitos autorais;
4.   Leveza;
5.   Leia até o final.

Ana’ Ravasco

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1. “VEREI, SE PUDER”

Chego cedo à sala de trabalho, com tempo para checar se está


tudo em ordem. Luzes, câmera, TV, cabos. Eles também vão
chegando. Posso ver suas mochilas espalhadas no chão, mãos
apertando celulares, garrafas de água mineral, cadernos,
canetas. Teria que haver dezesseis atores presentes. Conto-os.
Falta um.

Imagino o que estará se passando na cabeça deles. Disponho


destes poucos instantes para vê-los do jeito que gosto incertos
e desconhecidos. Não me conhecem, não os conheço e de certa
forma isso é a chave. Quando eu e eles nos tornarmos
conhecidos, teremos perdido algo bem difícil de recuperar.

Está na hora de começar. Apresento-me brevemente. Aviso a


eles que vamos trabalhar com uma câmera conectada a esta
tela de TV que vai captar e reproduzir imagens deles o tempo
todo. Não tem muita graça para eles.

Acendo a câmera e a TV. Agora eles podem se enxergar na tela.


Suas expressões vão do riso ao horror. Aviso que minhas
ferramentas são altamente precisas e técnicas, daí minha forma
de trabalho tentará ser, dentro do possível, objetiva. Não que
eu descreia das subjetividades. Simplesmente, neste processo
que estamos começando, as subjetividades de cada ator serão
sagradas, porém irrelevantes.

Os atores que me procuram chegam transbordando de


impressões, opiniões confusas e instáveis. Eles foram
acumulando-as desde que começaram a estudar ou trabalhar.
Muito provavelmente, até antes. O subjetivo está
hipervalorizado na área da atuação. “Porque eu...”, “O que sinto

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é...”, “O que acontece comigo...”, são algumas das formas


habituais entre atores na hora de encabeçar seus enunciados.

- Vamos assumir – digo – que ser “objetivo” é uma ambição algo


desmedida. Mas, ao mesmo tempo, proponho para vocês que
sejamos ambiciosos e os mais “objetivos” possíveis. Vocês
acham certo?

Nenhum deles responde.

Faço então uma outra pergunta: -Qual a velocidade que vocês


querem trabalhar? Na indústria audiovisual, pelo que conheço,
só dispomos de dois ritmos: “rápido” ou “muito rápido”. Vocês
escolhem.

Atuar é como um artesanato e o audiovisual é uma indústria


regida pela produtividade. A forma de conciliar essas duas
realidades tão distintas é um dos desafios apresentados pela
preparação e direção de atores nessa indústria.

Apos uma discussão animada, vence o “rápido”, defendido


pelos atores sentados na primeira fila.

-Então, vamos começar com um dos exercícios mais difíceis que


conheço. Chama-se A Apresentação. Aparentemente, é bem
simples e,

provavelmente, muitos de vocês já passaram por isso. De


“Ação ” a “Corte ” cada um vai se apresentar, sempre olhando
para a câmera.

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Sinalizo uma marca no chão onde eles têm que ficar parados e
o tamanho do plano que vão trabalhar.

- Na tela da TV vai aparecer a imagem de vocês que estou


gravando. Isso aumenta um pouco a dificuldade. Peço que
resistam a tentação e não olhem para a tela e sim para a lente
da câmera. Ficou claro?

Silêncio absoluto.

- Então: Ação

- Olá, meu nome é Débora. Tenho 27 anos, sou de Minas e estou


aqui para aprender.

- Corte! Próximo.

- Olá, sou André, tenho 33, nasci em Fortaleza e também estou


aqui para aprender.

André faz menção de ir embora, mas eu o interrompo: - Não


falei “corte”, André. E até eu falar “corte”, você não pode ir
embora.

- Desculpa.

André volta à marca, olha para a câmera: - Então… Ah…sim…


Estou muito feliz de estar com esta turma de atores, tão
corajosos e…

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- Corte! Próximo.

Continuam se apresentando, um atrás do outro. Há uma certa


semelhança naquilo que contam. Basicamente como se
quisessem transmitir que são “bons alunos”, aplicados e
confiáveis.

Até Tom se apresentar:

- Sou Tom, uma borboleta galáctica. Uma alma livre e


desempregada. Gosto de atuar, comer, me divertir, embora não
necessariamente nessa ordem. E…

- Corte Tom. Valeu! Próximo.

Alguns batem palmas, outros torcem, todos riem. A


apresentação de Tom foi tão bem-sucedida que aqueles que os
próximos tentam ser poéticos, imaginativos e engraçados. É
como se a apresentação agora tivesse a ver com a inteligência
e o talento de fazer rir. Até a chegada de Marina:

- Sou Marina. Meu coração está batendo muito forte. Não sei o
que dizer…

- Marina, - digo – não olha para o chão: é com câmera.

- Perdão. É que neste momento estou me sentindo muito


confusa...Continuo?

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- Sim. Até você escutar a palavra “corte”.

- Tenho uma filha pequena, sou mãe solteira. Ela é a melhor


coisa que aconteceu comigo na vida.…

Aparece uma lágrima no olho esquerdo de Marina.

- Corte! Próximo.

Os que vêm depois de Marina já não tentam se apresentar nem


como “os melhores alunos” ou “engraçados”:

- Sou João, tenho 27 anos. Nasci na periferia de São Paulo. Para


mim é muito difícil ficar aqui. Não gosto de como me vejo e
tenho medo daquela câmera.

- Corte! Obrigado. Próximo.

- Sou Bella. Nasci em Curitiba. Sempre quis atuar, mas minha


família nunca me apoiou. Tudo é muito difícil para mim. Mas não
vou me entregar…

- Corte! Obrigado.

Parece como se alguém de repente tivesse mudado a música.


Agora o pessoal tem que mostrar vulnerabilidade. Bella,
enquanto volta à sua cadeira, começa a chorar. Marina se
aproxima e a abraça.

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- Sou Paola, esse exercício é uma grande merda. Não sei o que
fazer comigo. Posso atuar se tenho um personagem:
circunstancias, biografia. Real ou inventada. Objetivos. Conflito.
Arco dramático. Para isso eu me formei. Detesto me apresentar.
Não gosto de representar a mim mesma na frente de uma
câmera. Sem personagem, não sei atuar…

- Corte! Próximo.

Os aplausos são unânimes.

- Próximo – repito, mas minha voz já não se escuta; perde-se no


burburinho que enche a sala. Paola trouxe para a turma uma ar
de rebeldia. Os atores falam, concordam, discordam: parece um
complô.

De todas as raças que compõem a fauna audiovisual, a dos


atores é a mais mimética que conheço: se um faz rir, os outros
vão tentar fazer o mesmo. E basta um só dizer que está
entrando em pânico para os próximos assumirem que se trata
de confessar medos.

Tento me manter como observador, só perceber, sem interferir


nem me deixar levar pelo que está rolando. Meu trabalho é de
alta precisão. Já o deles é de extrema exposição.

Lá vem um ator, com passo firme e seguro, em direção à marca.


Os cochichos conspiradores da turma vão se dissipando. Todos
estão agora na expectativa do ator que fixa o olhar na lente,
abre um sorriso mínimo e não diz nada.

Assim, deixo passar um minuto interminável até pedir o corte.

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- Desculpem, desculpem, não quero interromper aqui - diz de


repente uma senhora na casa dos 70 que acabou de entrar na
sala, naturalmente interrompendo tudo - Continuem, continuem!
Vocês nem imaginam tudo que aconteceu comigo. Mas,
continuem, por favor! Não se preocupem comigo. Sou Magda.
Eu perdi alguma coisa?

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2.A VERDADE MAIS DIFÍCIL DE PERCEBER

A Apresentação é um exercício poderoso e incomodo. Uso-o


no início de um trabalho. Exige-me uma olhada veloz e precisa.
Não presto muita atenção ao conteúdo que os atores
expressam e sim ao modo como eles se defendem durante essa
breve interação com a câmera.

No conteúdo, é provável que cada ator consiga mostrar-se


como distinto, mas no modo de se defender é fácil perceber
que não há muitas diferenças. Apenas padrões comuns. Na hora
de nos defendermos todos somos bastante parecidos.

Apresentar-se na frente de um desconhecido costuma ser


percebido como uma pequena ameaça.

E se eu confiro poder a esse desconhecido, a ameaça aumenta.

Ao dar-lhe o poder de valorizar minha capacidade profissional,


a ameaça será maior ainda.

E se ainda, o instrumento que me possibilita interagir é uma


câmera que ao gravar, deixará um documento “imperecível”, os
mecanismos de defesa serão cada vez mais extremos.

Ao nos percebermos atacados, respondemos essencialmente


através dos automatismos.

Vamos lembrar que os automatismos gestuais, posturais e


expressivos, são velozes e estáveis. Eles é que respondem por

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nós: não precisamos estar cientes de que estamos usando


automatismos.

É pela repetição que, de certa forma, somos o que somos. Os


automatismos, a imitação e o contágio de padrões
comportamentais também definem, em boa medida, nossa
imagem no audiovisual.

Isto é o óbvio ululante e evidente que este exercício detecta. E


o óbvio é uma verdade que parece não ser fácil de perceber.

A Apresentação é um exercício desenhado para o fracasso.


Fazê-lo nos primeiros momentos do trabalho, quando ainda não
existe literalmente um vínculo construído, e, quando ainda não
há nada (ritmo rápido), aumenta as possibilidades do fracasso.
Alinhar a câmera e a tela da TV traz ainda mais risco e ameaça.
Mas não tem saída. Quando atores vão em direção à sua marca
para enfrentar a câmera, algo dentro deles percebe que podem
ser as presas da caça.

Em português, dizemos que a câmera “capta”, isto é, “captura”.


Uma palavra que nos remete à caça. Paradoxalmente, para
explorar os padrões comuns com os quais os atores se
defendem, usamos o mesmo exercício, desenhado para captar
o fracasso da auto apresentação, que é muito utlizado pela
indústria audiovisual para testar seus atores.

A grande maioria detesta ter que passar por este ritual. De certa
forma percebem que vão ser avaliados numa situação de
ameaça. Exatamente como as presas na caça. E estão certos.

Começar a partir de um fracasso expressivo é sempre saudável:


quem de nós saberia se apresentar em 30 segundos, após ouvir

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a palavra “Ação ”, sabendo que no momento menos esperado,


seremos interrompidos na frente de uma turma de colegas
alguns deles com currículos notáveis a observar-nos. E tudo
isso acontecendo enquanto encaramos um desconhecido
apontando uma poderosa lente para nós, ligada a uma tela
enorme que amplia nossa própria imagem. E ainda por cima
temos que ficar olhando o tempo todo para a câmera.

Quando, como e onde fracassar é a chave.

Como toda indústria, a audiovisual convive mal e porcamente


com o fracasso. Atuar, com o artesanato, tem a ver com o fazer
e o errar. No dia da gravação não haverá tempo para
transformar o fracasso em capital de giro. Durante a gravação,
erros demais não serão suportados. A palavra chave em toda
indústria é “produtividade”. O jeitinho mais comum é a “atuação
controlada”, pré-fabricada antes mesmo de escutar a palavra
“Ação”. A atuação pode até ser correta e razoavelmente boa,
porém sem vida e facilmente esquecível.

No trabalho com atores, convocar ao fracasso como ferramenta


é a chave durante o treinamento. Quanto antes
compreendermos que “bem” ou “mal” são momentos de um
mesmo processo, melhor será para nós. Na porta de entrada de
minha sala de trabalho há um enorme cartaz que diz: “Viemos
aqui para nos equivocar”.

A partir da perspectiva grupal, o trabalho da Apresentação se


dá através dos fluxos. O que reverbera na turma condiciona as
escolhas de quem vai se apresentar. Ser primeiro não é o
mesmo que ser último. Ou começar ou fechar. Se algo deu
certo, uma gracinha, um pedido, uma confissão e teve algum
retorno simbólico no “ao vivo” (palmas, gargalhadas, lágrimas,
etc.), essa recompensa vai condicionar o próximo a se

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apresentar. Entre ser parecido ou diferente, não há tantas


opções.

Também acaba sendo importante diferenciar os dois espaços


onde acontece. “A Apresentação”: o “ao vivo” e o que aparece
na tela são de naturezas bem distintas. O espaço ao vivo
constitui a turma de atores presentes, o coletivo que responde
como plateia para quem se apresenta seduzir, desafiar,
conquistar etc. Os atores costumam ser muito dependentes do
ao vivo.

Já o que aparece na tela da TV é aquilo que a câmera gravou e


a única coisa que os espectadores assistirão.

Eu apenas focalizo aquilo que é representado na tela.

O imediatismo do ao vivo é teatral. A recompensa vem em


tempo real. Os aplausos de um grupo de atores ou técnicos
durante uma gravação são coisas que nenhum espectador de
fora vai perceber porque ele nem esteve nem verá esse ao vivo.
Imaginemos que estamos um dia num set durante uma
gravação. Dois atores gravam uma cena tão emocionante que,
na hora do corte, toda a equipe técnica bate palmas. Será isto
uma prova de que a cena foi maravilhosa? É difícil saber. A
equipe técnica provavelmente bate palmas ao vivo. Só o diretor
e os que assistiram pela câmera ou monitores de câmera têm
condições de avaliar como foi essa tomada. Às vezes, ficaremos
na dúvida até o dia da exibição ou estreia.

Talvez essa tomada, que emocionou a toda uma equipe técnica


e arrancou lágrimas e aplausos na hora da gravação, seja
suprimida no corte final.

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3.PARA QUE TEMOS OLHOS?

Continuo.

- Quero parabenizar a todos pela coragem de enfrentar a


câmera. Atuar também é a coragem de atuar. Não pensem que
exista um deus que entrega a coragem a alguns poucos, ou que
a genética se encarregue de conferi-la seletivamente.

Alguns concordam com a cabeça, mas sem alegria, antes para


confirmar uma péssima notícia.

- Agora, sim: até que enfim vamos ao exercício de mais difícil


execução. Imagino que vocês já sabem qual é.

- Sabemos - diz Paola – agora vamos assistir a esse lixo que


gravamos antes.

- Pois é, Paola. Para muitos atores ver a si mesmos na tela é mais


difícil do que atuar. Por que será?

- Porque vejo todos meus defeitos. Depois de ser mãe, engordei


para caramba - diz Marina.

- Mas, por quê? - insisto.

- Porque cada vez que me vejo me acho deformada.

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- Na tela, tenho mais espinhas do que na vida real - diz um outro.

- A mesma coisa acontece comigo com meus dentes. Todos


amarelos. Que horror – acrescenta a atriz ao lado .

- Porque mata o mistério da atuação – diz Paola. A atuação não


tem que perceber o produto da atuação. Para isso, tem o editor,
o diretor. O que faço é atuar, não me olhar.

- Eu fico me criticando e me cobro. Daí, aquilo que estou vendo


perde a graça.

- Eu também. Quando me vejo, não consigo parar de pensar em


tudo que fiz mal…

- Vocês sabem que tenho 50 anos de profissão – nos conta


Magda – e nunca mi vi numa tela. Não preciso. Nunca precisei.
Sou de uma outra escola…

- Fico encantado de me ver – solta Tom. É o único que pensa


assim nessa turma.

Então, pergunto - Para que temos olhos?

- Para ver? – interroga Joao.

- Para ver o quê?


- Tudo?

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- Não tudo, Bella. Quando vocês falam sobre o trauma de se


verem na tela, vocês o enunciam como se fosse uma questão
íntima e pessoal. Nossa história em relação à imagem de cada
um é feita de dentes manchados, quilinhos a mais, centímetros
a menos, marcas do tempo, cabelo que cai, sinusite crônica,
erros, defeitos e deformidades. É como se o ato de me ver fosse
a constatação de tudo que tem de errado em mim. Mas e se não
fosse uma questão pessoal? Nossos olhos, não foram
desenhados para ver tudo. Nossa visão tem um limite muito
preciso em seu desenho: não podemos nos ver a nós mesmos.
Não podemos ver nosso rosto, nossa nuca, nossas costas. E isso
é tão óbvio que foge ao nosso raciocínio.

Para que temos olhos? - insisto.

Silêncio total na sala.

- Vamos fazer uma pequena viagem no tempo. Todos sabemos


que os mamíferos e nós seres humanos, temos visão. Em termos
evolutivos, poderíamos conjecturar que nossa visão se
consolidou na base de uma enorme ingestão de proteínas e no
aumento considerável da massa encefálica. Provavelmente
tudo isso aconteceu enquanto nos transformávamos em
caçadores-coletores.

Isto é fundamental na hora da atuação. Assumamos que ainda


somos predadores com nossos olhos. E que as limitações da
nossa visão frontal fazem parte desse desenho. Mas não vou
me caçar, nem preciso me enxergar para me encaramujar
dentro de mim mesmo. Isso seria não apenas desnecessário
mas sobretudo arriscado. Ficaríamos numa posição frágil.
Imaginemos aquela manhã quando nós humanos fomos todos
caçar pela primeira vez. Enquanto nos aproximávamos daquela
manada de mamutes peludos, o Tom olhou sua cara e a achou
redonda e luminosa, o nariz pequeno e um pouco torto

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enquanto o mamute interrompeu a autocontemplação e


começou a devorá-lo. O Tom fez uso indevido do instrumento
visão.

Tom sorri.

- E isso me lembra um outro relato: um jovem tinha sede e foi


até a beira de um rio, quando ia beber, viu pela primeira vez seu
próprio reflexo nas águas. Ficou surpreso, gostou. Se ele se
mexia, o reflexo também. Se ele se aproximava, o reflexo ídem.
Isso parecia irresistível. Tanto é que não conseguiu deixar de se
olhar até que morreu afogado.

- Narciso.

- Narciso, Paola.

Olho para a turma - Tanto faz vocês se acharem bonitos ou


deformados. No final, tanta atenção de seus olhos a vocês
mesmos leva, segundo o relato, à mesma coisa.

- Esse mito parece nos avisa sobre o que acontece quando


violamos essa restrição forte inerente ao nosso desenho.
- Tudo que vocês expressam sobre o horror e a atração de se
ver a si mesmos numa tela está relacionado com este limite do
desenho. Temos olhos para ver com precisão e nitidez tudo
menos a nós mesmos. Saibam que quando nos olharmos para
nós mesmos, teremos sempre que contornar uma dificuldade.

Sugiro tormar algumas medidas de precaução. Precisamos


assegurar que nosso olhar não será rotineiro, repetitivo e

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automático. Se na hora de ver-se, você sempre vê o mesmo,


seus dentes amarelos, sua baixa estatura, seus belos olhos
azuis, você não está vendo, está recordando. Seu olhar está
inflamado de subjetividade. É fundamental esvaziar o nosso
olhar, esvaziar a cada instante. Sem esse vazio, ver não tem
muito sentido. Mudar nossa atuação supõe também mudar
nosso modo de nos ver na tela. Esvaziar é no meu ponto de
vista e no meu trabalho com atores, uma das ferramentas mais
importantes da atuação contemporânea.

Eduardo D Milewicz

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Imagens de Raphael Dizus

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