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- o de1993
Interdisciplinaridade
e Matemática
Nílson José Machado*
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Pro-Posi, -
trelaçam-se nos jornais diários, a pro- mais freqüentes, ainda que simplifica-
paganda evidencia a flexibilidade das das, das tentativas de implementação
fronteiras entre a Psicologia e a Socio- de ações interdisciplinares, e isso pare-
logia, para citar apenas alguns exem- ce claramente insuficiente. Asolidarie-
plos. dade e as concessões necessárias para
Em conseqüência, a idéia de inter- a constituição de um novo objeto ainda
disciplinaridade tende a transformar- não são muitas.
se em bandeira aglutinadora na busca Por outro lado, também é muito fre-
de uma visão sintética, de uma recons- qüente o fato de que tão logo dois temas
trução da unidade perdida, da intera- estabelecem um mínimo de relações
ção e da complementariedade nas fecundas e promissoras, na ante-sala
ações envolvendo diferentes discipli- de um trabalho interdisciplinar, surge
nas. a pretensão de se erigir uma nova dis-
ciplina, uma nova área do conhecimen-
to, uma nova "ciência", o que passa a
lnterdisci plinaridade: consumir esforços e energias dos "mili-
obstáculos tantes" engajados na tarefa de estatuir
a natureza do novo campo, de caracte-
rizar seu espaço de atuação. Por para-
Este aparente consenso não deve, no doxal que pareça, nesses casos, em vez
entanto, minimizar certas dificuldades de a aproximação entre os dois temas
renitentes na abordagem da interdisci- favorecer a interdisciplinaridade, ge-
plinaridade e que podem explicar em ralmente a dificulta, conduzindo mais
parte resultados tão pouco expressivos facilmente à negação dos interesses co-
na ação docente, mesmo originados em muns, como um recurso para a auto-
grupos que se debruçaram seriamente afirmação, do que à colaboração pura e
sobre o tema. Com muita perspicácia, simples. Exemplos de tais situações es-
Barthes, em O Rumor da Lfngua, tão presentes em maior ou menor grau
apreendeu algumas dessas dificulda- na criação de áreas disciplinares como
des, ao afIrmar: .
Psicopedagogia, Psicossociologia ou,
"O interdisciplinar de que tanto se ainda, na confluência de dois temas
fala não está em confrontar discipli- fundamentais em nossa análise, a
nas já constituídas das quais, na Educação Matemática.
realidade, nenhuma consente em
abandonar-se. Para se fazer inter-
disciplinaridade, não basta tomar
um "assunto" (um tema) e convocar lnterdisci plinaridade:
em torno duas ou três ciências. A sistemas filosóficos
interdisciplinaridade consiste em
criar um objeto novo que não perten-
ça a ninguém. O texto é, creio eu, um Parece-nos, no entanto, que uma
desses objetos" (1988:99). questão central, especialmente rele-
De fato, o confrontamento de docen- vante, tem permanecido ao largo ou
tes que não consentem em abandonar sido insuficientemente explorada
seus objetos ou pontos de vista, e a quando se analisa a interdisciplinari-
fixação de um tema gerador em torno dade: trata-se do fato de que toda orga-
do qual borboletearão as diversas dis- nização disciplinar é resultante de
ciplinas podem ser as caracterizações uma reflexão mais abrangente, de na-
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ainda o monumental trabalho dos en- te matiz ação filosófica mais abrangen-
ciclopedistas franceses, corporificado te, cujos princípios norte adores é ne-
na Enciclopédia ou Dicionário Racioci- cessário reconhecer.
nado das Ciências, das Artes e dos Of(- A possibilidade de um trabalho in-
cios por uma Sociedade de Letrados. terdisciplinar fecundo depende de tal
Em seu "Discurso Preliminar", redigi- reconhecimento, especialmente no que
do por D'Alembert e Diderot, aEnciclo- se refere à própria concepção de conhe-
pédia considera o Entendimento cons- cimento, bem como de uma visão geral
tituído por três grandes raízes - Me- do modo através do qual as disciplinas
mória, Razão e Imaginação -, situan- se articulam, internamente e entre si.
do no cerne de cada uma delas uma
disciplina básica: História, Filosofia e No caso específico da Matemática, o
Poesia, respectivamente. Em tal es- lugar de destaque que costumeiramen-
quematização, a Lógica ocupa uma po- te ocupa em diferentes sistematizações
sição de destaque, englobando as fun- evidencia a necessidade de uma com-
ções da língua, enquanto a Matemática preensão preliminar de seu significa-
se situa bem mais discretamente, no do, fixando-se balizas sem as quais
terreno das Ciências Naturais. quaisquer ações docentes que se inten-
Em decorrência, em uma configura- tem condenam-se a um inócuo esper-
ção curricular derivada de tal sistema, near. Sobre esses pontos, comentare-
as possibilidades de um trabalho inter- mos brevemente a seguir.
disciplinar parecem amplificadas, não
tanto pelo valor intrínseco das relações
estabelecidas, quanto pelo abandono Concepção de
de certas configurações disciplinares conhecimento
com características de verdadeiros pre-
conceitos.
o debate em torno da concepção de
conhecimento, da natureza dos proces-
Síntese provisória sos cognitivos, em busca de uma orien-
tação para a prática docente, apesar de
Não é o caso de alongarmos mais do fundamental para a emergência de um
que já o fizemos nessa digressão sobre trabalho interdisciplinar, tem-se con-
diferentes sistematizações do conheci- centrado, nas últimas décadas, em um
mento, concebido de uma maneira glo- ponto ilusoriamente importante: a
bal; também não é o caso, naturalmen- questão da construtibilidade. De fato,
te, de proceder-se a uma escolha do o deslocamento das atenções de um
sistema mais interessante, segundo o eixo, onde se destacavam as idéias de
critério X ou Y. A finalidade única do consciência como um balde vazio a ser
que foi exposto esgota-se na tentativa preenchido ou comoum holofote a foca-
de explicitação do fato inicialmente re- lizar o tema em exame, para outro,
ferido: o significado curricular de cada onde ocupa posição de relevo a contra-
disciplina não pode resultar de uma posição entre a existência de elementos
apreciação isolada de seu conteúdo, inatos e a total construtibilidade do
mas sim do modo como se articulam as conhecimento, foi fecundo e ainda per-
disciplinas em seu conjunto; tal articu- manece alimentando interessantes
lação é sempre tributária de uma sis- pesquisas.
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Nesse sentido, o debate entre o cons- Em parte em razão do debate citado,
trutivismo de Piaget e o inatismo de hoje não parecem existir mais não-
Chomsky, organizado pelo Centre construtivistas. E como a ausência de
Royaumont pour une Science de sombra também pode dificultar a vi-
l'Homme (1975) e competentemente são, diminui bastante a nitidez na ca-
transformado em livro por Piatelli-Pal- racterização do construtivismo em
marini (1983), teve grande importân- seus inúmeros matizes. Insistimos, no
cia teórica, podendo, no entanto, ser entanto, em que essa não é a questão
interpretado como um indício de que principal a ser discutida. A palavra-
todos, mesmo Chomsky, são construti- chave para uma reflexão conseqüente
vistas. De fato, a idéia de que o conhe- sobre a concepção de conhecimento
cimento é algo que se constrói, sobre- hoje parece ser a linearidade.
tudo a partir do que as crianças já
sabem, é de uma banalidade tal que Conhecimento:
não mereceria maiores comentários, se
não fosse, como costuma ser, repetida linearidade
tantas vezes, com seriedade e circuns-
pecção, como se se tratasse do registro
de algo absolutamente novo e alvissa- De fato, internamente e no planeja-
reiro. mento curricular, a forma de organiza-
ção linear é amplamente predominan-
A questão fundamental do debate te na organização do trabalho escolar,
supra referido não era essa, mas sim a comprometendo-se muitas vezes sem
da existência ou não, na ontogênese do necessidade com uma fixação relativa-
conhecimento, de uma estrutura ini- mente arbitrária de pré-requisitos e
cial inata; Chomsky diria que sim, en- com uma seriação excessivamente rígi-
quanto Piaget negaria peremptoria- da, que responde em grande parte pe-
mente a existência de tais estruturas, los números inaceitáveis associados à
estabelecendo que inato é apenas o repetência e à evasão escolares.
"funcionamento da inteligência", seja De um modo geral, a organização
lá o que isso signifique. A partir daí, linear perpassa o conjunto das discipli-
ambos concordam que, por diferentes nas escolares, embora seja especial-
percursos, o conhecimento deve ser mente aguda no caso da Matemática.
construído através das ações e da inte- Aqui, talvez em conseqüência de uma
ração com o meio: enquanto Piaget pos- associação direta entre a linearidade e
tula certo isomorfismo entre a estrutu- o formalismo, entendido como a orga-
ração das ações e a estruturação do nização dos conteúdos curriculares sob
raciocínio lógico dos indivíduos, a forma explícita ou disfarçada de teo-
Chomsky atribui às ações o papel de rias formais, parece certo e indiscutível
"chave de ignição" dos processos cogni- que existe uma ordem necessária para
tivos, não pretendendo que exista qual- a apresentação dos assuntos, sendo a
quer semelhança analógica entre a es- ruptura da cadeia fatal para a apren-
truturação das ações e os processos dizagem.
mentais, tal comoinexistem semelhan- A característica mais marcante de
ças estruturais entre o motor de parti- tal organização é a fixação de uma ca-
da e o motor à explosão, em um auto- deia linear de marcos temáticos que
móvel. devem ser percorridos seqüencialmen-
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