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Pro-Posi,

- o de1993

Interdisciplinaridade
e Matemática
Nílson José Machado*

A escola e as desfaz-se o brilho fugaz de tais simula-


cros, deslocando-se as pretensões disci-
disciplinas plinares para outros temas mais can-
dentes em contextos emergentes.

Em sua forma paradigmática, a or-


ganização do trabalho escolar nos di-
versos níveis de ensino baseia-se na
lnterdisci plinaridade:
constituição de disciplinas que se es- consenso
truturam de modo relativamente inde-
pendente, com um mínimo de intera- Já há algum tempo, no entanto, in-
ção intencional e institucionalizada. terdisciplinaridade tem sido uma pala-
Tais disciplinas passam a constituir vra-chave na discussão da forma de
verdadeiros canais de comunicação en- organização do trabalho escolar ou aca-
tre a escola e a realidade, a tal ponto dêmico. Dois fatos parecem estar dire-
que, quando ocorrem reformulações ou tamente relacionados com tal emer-
atualizações curriculares, a ausência gência.
de novas disciplinas ou de alterações
substantivas nos conteúdos das que já Em primeiro lugar, uma fragmenta-
existem é freqüentemente interpreta- ção crescente dos objetos do conheci-
da como indício de parcas mudanças. mento nas diversas áreas, sem a con-
trapartida do incremento de uma visão
De modo análogo, amparadas em ar- de conjunto do saber instituído, tem-se
gumentos que acolhem de maneira às revelado crescentemente desorienta-
vezes acrítica, na necessidade presu- dora, conduzindo certas especializa-
mida de sintonia escola-vida, surgem ções a um fechamento no discurso, o
de quando em quando no cenário esco- que constitui um obstáculo na comuni-
lar novas disciplinas - ou pseudodis- cação e na ação.
ciplinas - como Educação Sexual,
Educação Moral e Cívica, Matemática Em segundo lugar, parece cada vez
Financeira, Estudos de Problemas mais difícil o enquadramento de fenô-
Brasileiros, Resolução de Problemas, menos que ocorrem fora da escola no
Construções Geométricas, entre ou- âmbito de uma única disciplina. Hoje,
tras, quase sempre desprovidas dos a Física e a Química esmiúçam a estru-
elementos mínimos que garantem a tura da matéria, a entropia é um con-
ceito fundamental na Termodinâmica,
um assunto o estatuto e a dignidade
disciplinar. Nestes casos, a despeito da na Biologia e na Matemática da Comu-
eventual relevância dos temas conside- nicação, a Língua e a Matemática en-
rados, tão logo ocorre um distancia-
mento mínimo das circunstâncias ge- * Professor da Faculdade de Educação da UJÚ-
radoras da aparência de necessidade, versidade de São Paulo.

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Pro-Posi, -

trelaçam-se nos jornais diários, a pro- mais freqüentes, ainda que simplifica-
paganda evidencia a flexibilidade das das, das tentativas de implementação
fronteiras entre a Psicologia e a Socio- de ações interdisciplinares, e isso pare-
logia, para citar apenas alguns exem- ce claramente insuficiente. Asolidarie-
plos. dade e as concessões necessárias para
Em conseqüência, a idéia de inter- a constituição de um novo objeto ainda
disciplinaridade tende a transformar- não são muitas.
se em bandeira aglutinadora na busca Por outro lado, também é muito fre-
de uma visão sintética, de uma recons- qüente o fato de que tão logo dois temas
trução da unidade perdida, da intera- estabelecem um mínimo de relações
ção e da complementariedade nas fecundas e promissoras, na ante-sala
ações envolvendo diferentes discipli- de um trabalho interdisciplinar, surge
nas. a pretensão de se erigir uma nova dis-
ciplina, uma nova área do conhecimen-
to, uma nova "ciência", o que passa a
lnterdisci plinaridade: consumir esforços e energias dos "mili-
obstáculos tantes" engajados na tarefa de estatuir
a natureza do novo campo, de caracte-
rizar seu espaço de atuação. Por para-
Este aparente consenso não deve, no doxal que pareça, nesses casos, em vez
entanto, minimizar certas dificuldades de a aproximação entre os dois temas
renitentes na abordagem da interdisci- favorecer a interdisciplinaridade, ge-
plinaridade e que podem explicar em ralmente a dificulta, conduzindo mais
parte resultados tão pouco expressivos facilmente à negação dos interesses co-
na ação docente, mesmo originados em muns, como um recurso para a auto-
grupos que se debruçaram seriamente afirmação, do que à colaboração pura e
sobre o tema. Com muita perspicácia, simples. Exemplos de tais situações es-
Barthes, em O Rumor da Lfngua, tão presentes em maior ou menor grau
apreendeu algumas dessas dificulda- na criação de áreas disciplinares como
des, ao afIrmar: .
Psicopedagogia, Psicossociologia ou,
"O interdisciplinar de que tanto se ainda, na confluência de dois temas
fala não está em confrontar discipli- fundamentais em nossa análise, a
nas já constituídas das quais, na Educação Matemática.
realidade, nenhuma consente em
abandonar-se. Para se fazer inter-
disciplinaridade, não basta tomar
um "assunto" (um tema) e convocar lnterdisci plinaridade:
em torno duas ou três ciências. A sistemas filosóficos
interdisciplinaridade consiste em
criar um objeto novo que não perten-
ça a ninguém. O texto é, creio eu, um Parece-nos, no entanto, que uma
desses objetos" (1988:99). questão central, especialmente rele-
De fato, o confrontamento de docen- vante, tem permanecido ao largo ou
tes que não consentem em abandonar sido insuficientemente explorada
seus objetos ou pontos de vista, e a quando se analisa a interdisciplinari-
fixação de um tema gerador em torno dade: trata-se do fato de que toda orga-
do qual borboletearão as diversas dis- nização disciplinar é resultante de
ciplinas podem ser as caracterizações uma reflexão mais abrangente, de na-

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lnterdisciplinaridade e Matemática

tureza epistemológica, no interior de Naturalmente, ao privilegiar o papel


um sistema filosóficoque prefigura, em da Matemática do modo como o faz, tal
grandes linhas, o tom e a cor de cada concepção determina em grande parte
componente. Nenhum filósofo que te- a natureza das relações que podem ser
nha efetivamente considerado a ques- estabelecidas entre essa disciplina e as
tão do conhecimento em sentido amplo, demais, na estruturação curricular,
das formulações teóricas às ações edu- delimitando as possibilidades de um
cacionais mais incisivas, logrou esca- trabalho interdisciplinar.
par de tais classificações. De forma iso- Apesar de ter sido ultrapassada ra-
lada, cada disciplina expressa relativa- pidamente pelo próprio desenvolvi-
mente pouco e é de interesse apenas de mento das ciências constituídas, ocor-
especialistas; no corpo sintético de uma rido ou prenunciado no final do século
classificação, amparadas em ordena- XIX, a classificação comteana perma-
ções e posições relativas, expressam nece sendo um referencial importante
seguramente muito mais. Para explici- pel() menos por dois motivos: além de
tar esse fato bastaria considerar o sig- ser um exemplo bastante nítido do
nificado da Aritmética no seio do tri- modo como a ordenação e a valorização
vium e do quadrivium gregos ou sua das disciplinas são tributárias de um
insipidez na maior parte dos currículos sistema filosófico,o esquema comteano
atuais. Não obstante, a parcimônia é a fonte básica de inspiração, ao que
com que esta interdependência tem tudo indica, da classificação proposta
sido tratada sugere a necessidade de por Piaget, cujo pensamento permane-
uma exploração um pouco mais detida. ce vigoroso e influente, em seu círculo
das Ciências (Piaget, 1978).
A ordenação comteana
o círculo piagetiano
Consideremos, por exemplo, a con-
cepção comteana da ordenação das Na apresentação de sua Epistemolo-
ciências. Em tal sistema, as seis ciên- gia Genética, Piaget pretende fundar
cias fundamentais seriam a Matemáti- uma teoria do conhecimento científico
ca, a Astronomia, a Física, a Química, que conduza, parafraseando Comte,
a Biologia e a Sociologia, sendo "a pri- "das mais elementares atividades psi-
meira necessariamente o ponto de par- cofisiológicas do sujeito aos mais altos
tida exclusivo e a última o fim único e pensamentos científicos". Considera,
essencial" (Comte, 1844). então, os principais ramos da ciência
Segundo Comte, constituindo uma série não-linear, cí-
"o conjunto desta fórmula enciclopé- clica, fechada sobre si mesma. No en-
dica, exatamente conforme as verda- tanto, há um ponto de partida, que é,
deiras afinidades dos estudos corres- sintomaticamente, a Matemática e a
pondentes ... permite enfim a cada Lógica, que Piaget tem como inextrica-
inteligência renovar à sua vontade a velmente ligadas. Seguem-se a Física,
história geral do espírito positivo, ao a Biologia, e, por último, a Psicologia
passar, de modo quase insensível, Experimental e a Sociologia, que são
das mais insignificantes idéias ma- unificadas com o nome de Psicossocio-
temáticas aos mais altos pensamen- logia. A partir daí, um grande aparato
tos sociais" (1844). conceitual é arquitetato, tendo em vis-

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Pro-Posieões VoI.4 N~ 1[101' marco de 1993

ta a justificação do encadeamento cir- do que corresponde à cadeira linear


cular, explicitando-se o modo como a comteana ou ao círculo piagetiano, na
Física se reduziria à Matemática, a medida em que, por exemplo, a Mate-
Psicossociologia à Biologia, e centran- mática não se caracteriza como um
do as baterias nas relações mútuas, conteúdo em si mesmo, ainda que
que conduziriam ao fechamento do cír- "aplicável" aos diversos temas, mas
culo, entre a Psicossociologia e a Mate-como um sistema de representação
mática. com as características de uma lingua-
Não obstante o fato de o círculo pia- gem.
getiano ter características mais plausí- Uma tal concepção conduz, natural-
veis do que as da hierarquia comteana, mente, ao estabelecimento de diferen-
ele apenas disfarça a linearidade que tes relações interdisciplinares, onde a
pretendia ultrapassar. E o privilegia- Matemática não disputa o espaço cur-
mento de uma particular concepção de ricular com as outras disciplinas, mas
Matemática, situada inteiramente no se pretende instaurar como a lingua-
âmbito dos objetos e procedimentos da gem do conhecimento, contrapondo,
Lógica Formal, sinaliza no sentido de supostamente, características como
certo tipo de articulação disciplinar, clareza, precisão, monossemia à sinuo-
muito mais próxima da de Comte do sidade, à ambigüidade, e à pretensa
que, por exemplo, da que resulta da falta de rigor associadas à lingua cor-
imagem cartesiana da árvore do conhe- rente.
cimento.
A despeito do caráter premonitório
de muitas de suas concepções, pode-se
A árvore cartesiana associar a Descartes uma sim plificação
exagerada na compreensão das fun-
ções da língua corrente, em razão, tal-
Descartes, como se sabe, concebia vez, do equacionamento equivocado
alegoricamente o conhecimento como das relações entre a língua e a Mate-
uma grande árvore, com as raízes na mática. Há quem pretenda que Piaget
Metafísica (englobando o pensamento tenha padecido do mesmo mal.
religioso), tendo como tronco a Física
(ou seja, a Filosofia Natural), e sendo
formada por múltiplos ramos, como a Contrapontos a Descartes
Astronomia, a Medicina etc. A Mate-
mática não era considerada um dos o pensamento cartesiano teve gran-
ramos do conhecimento, mas a condi- de influência no desenvolvimento cien-
ção de possibilidade do conhecimento, tífico e de um modo geral na cultura
em qualquer ramo, como a seiva que ocidental, permanecendo comouma re-
percorre e alimenta todo o organismo ferência fundamental em qualquer
representado. À língua não era atribuí- mapeamento que se intente. Não obs-
do qualquer papel de relevo na árvore tante, nem de longe sua estruturação
do conhecimento. das ciências pontificou isoladamente.
Sem dúvida, trata-se de uma função Já no século XVIII, obras como as de
vital excepcionalmente privilegiada a Vicoou Condillac apontam em direções
que é atribuída à Matemática na con- significativamente distintas, sobretu-
cepção cartesiana; no entanto, tal pri- do no que se refere à compreensão da
vilegiamento difere significativamente importância da língua. Destaque-se

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lnterdisciplinaridade e Matemática

ainda o monumental trabalho dos en- te matiz ação filosófica mais abrangen-
ciclopedistas franceses, corporificado te, cujos princípios norte adores é ne-
na Enciclopédia ou Dicionário Racioci- cessário reconhecer.
nado das Ciências, das Artes e dos Of(- A possibilidade de um trabalho in-
cios por uma Sociedade de Letrados. terdisciplinar fecundo depende de tal
Em seu "Discurso Preliminar", redigi- reconhecimento, especialmente no que
do por D'Alembert e Diderot, aEnciclo- se refere à própria concepção de conhe-
pédia considera o Entendimento cons- cimento, bem como de uma visão geral
tituído por três grandes raízes - Me- do modo através do qual as disciplinas
mória, Razão e Imaginação -, situan- se articulam, internamente e entre si.
do no cerne de cada uma delas uma
disciplina básica: História, Filosofia e No caso específico da Matemática, o
Poesia, respectivamente. Em tal es- lugar de destaque que costumeiramen-
quematização, a Lógica ocupa uma po- te ocupa em diferentes sistematizações
sição de destaque, englobando as fun- evidencia a necessidade de uma com-
ções da língua, enquanto a Matemática preensão preliminar de seu significa-
se situa bem mais discretamente, no do, fixando-se balizas sem as quais
terreno das Ciências Naturais. quaisquer ações docentes que se inten-
Em decorrência, em uma configura- tem condenam-se a um inócuo esper-
ção curricular derivada de tal sistema, near. Sobre esses pontos, comentare-
as possibilidades de um trabalho inter- mos brevemente a seguir.
disciplinar parecem amplificadas, não
tanto pelo valor intrínseco das relações
estabelecidas, quanto pelo abandono Concepção de
de certas configurações disciplinares conhecimento
com características de verdadeiros pre-
conceitos.
o debate em torno da concepção de
conhecimento, da natureza dos proces-
Síntese provisória sos cognitivos, em busca de uma orien-
tação para a prática docente, apesar de
Não é o caso de alongarmos mais do fundamental para a emergência de um
que já o fizemos nessa digressão sobre trabalho interdisciplinar, tem-se con-
diferentes sistematizações do conheci- centrado, nas últimas décadas, em um
mento, concebido de uma maneira glo- ponto ilusoriamente importante: a
bal; também não é o caso, naturalmen- questão da construtibilidade. De fato,
te, de proceder-se a uma escolha do o deslocamento das atenções de um
sistema mais interessante, segundo o eixo, onde se destacavam as idéias de
critério X ou Y. A finalidade única do consciência como um balde vazio a ser
que foi exposto esgota-se na tentativa preenchido ou comoum holofote a foca-
de explicitação do fato inicialmente re- lizar o tema em exame, para outro,
ferido: o significado curricular de cada onde ocupa posição de relevo a contra-
disciplina não pode resultar de uma posição entre a existência de elementos
apreciação isolada de seu conteúdo, inatos e a total construtibilidade do
mas sim do modo como se articulam as conhecimento, foi fecundo e ainda per-
disciplinas em seu conjunto; tal articu- manece alimentando interessantes
lação é sempre tributária de uma sis- pesquisas.

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Vol.4N~11101-
= de199~
Nesse sentido, o debate entre o cons- Em parte em razão do debate citado,
trutivismo de Piaget e o inatismo de hoje não parecem existir mais não-
Chomsky, organizado pelo Centre construtivistas. E como a ausência de
Royaumont pour une Science de sombra também pode dificultar a vi-
l'Homme (1975) e competentemente são, diminui bastante a nitidez na ca-
transformado em livro por Piatelli-Pal- racterização do construtivismo em
marini (1983), teve grande importân- seus inúmeros matizes. Insistimos, no
cia teórica, podendo, no entanto, ser entanto, em que essa não é a questão
interpretado como um indício de que principal a ser discutida. A palavra-
todos, mesmo Chomsky, são construti- chave para uma reflexão conseqüente
vistas. De fato, a idéia de que o conhe- sobre a concepção de conhecimento
cimento é algo que se constrói, sobre- hoje parece ser a linearidade.
tudo a partir do que as crianças já
sabem, é de uma banalidade tal que Conhecimento:
não mereceria maiores comentários, se
não fosse, como costuma ser, repetida linearidade
tantas vezes, com seriedade e circuns-
pecção, como se se tratasse do registro
de algo absolutamente novo e alvissa- De fato, internamente e no planeja-
reiro. mento curricular, a forma de organiza-
ção linear é amplamente predominan-
A questão fundamental do debate te na organização do trabalho escolar,
supra referido não era essa, mas sim a comprometendo-se muitas vezes sem
da existência ou não, na ontogênese do necessidade com uma fixação relativa-
conhecimento, de uma estrutura ini- mente arbitrária de pré-requisitos e
cial inata; Chomsky diria que sim, en- com uma seriação excessivamente rígi-
quanto Piaget negaria peremptoria- da, que responde em grande parte pe-
mente a existência de tais estruturas, los números inaceitáveis associados à
estabelecendo que inato é apenas o repetência e à evasão escolares.
"funcionamento da inteligência", seja De um modo geral, a organização
lá o que isso signifique. A partir daí, linear perpassa o conjunto das discipli-
ambos concordam que, por diferentes nas escolares, embora seja especial-
percursos, o conhecimento deve ser mente aguda no caso da Matemática.
construído através das ações e da inte- Aqui, talvez em conseqüência de uma
ração com o meio: enquanto Piaget pos- associação direta entre a linearidade e
tula certo isomorfismo entre a estrutu- o formalismo, entendido como a orga-
ração das ações e a estruturação do nização dos conteúdos curriculares sob
raciocínio lógico dos indivíduos, a forma explícita ou disfarçada de teo-
Chomsky atribui às ações o papel de rias formais, parece certo e indiscutível
"chave de ignição" dos processos cogni- que existe uma ordem necessária para
tivos, não pretendendo que exista qual- a apresentação dos assuntos, sendo a
quer semelhança analógica entre a es- ruptura da cadeia fatal para a apren-
truturação das ações e os processos dizagem.
mentais, tal comoinexistem semelhan- A característica mais marcante de
ças estruturais entre o motor de parti- tal organização é a fixação de uma ca-
da e o motor à explosão, em um auto- deia linear de marcos temáticos que
móvel. devem ser percorridos seqüencialmen-

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.lnterdisciplinaridade e Matemática

te, expressando passos necessários no tanto no interior de cada disciplina


caminho do que é considerado mais quanto no estabelecimento de relações
simples ao mais complexo. Se a cadeia entre as diferentes disciplinas. É cele-
for, digamos, A ~ B ~ F ~ G ~ X ~ bre uma querela desse tipo no relacio-
S ~ D ~ ..., então a não-abordagem do namento entre a Física e a Matemática
tema G impossibilitaria o tratamento nos vários níveis de ensino: sem ter
do tema X, retendo-se o aluno no ponto estudado funções, não se pode estudar
G até que o mesmo seja aprendido. cinemática; sem saber o que é a deriva-
Apesar de multiplicarem-se os exem- da, não se pode compreender a veloci-
plos de casos em que, por exemplo, o dade ou reta tangente; sem a integral,
conhecimento de S favoreceu o conhe- não se pode calcular áreas... etc. Afir-
cimento de X, ou de que o conhecimento mações comoessas constituem sempre
de X é possível sem o perfeito conheci- meias-verdades - ou meias-mentiras.
mento de G, a linearidade, como um Com igual pertinência, poder-se-ia
dogma, nunca parece ser posta em afirmar, dependendo do contexto, que
questão. nunca compreenderá o significado da
Existem, obviamente, etapas neces- integral quem não souber calcular
sárias a serem cumpridas antes que áreas (ainda que de retângulos), nunca
outras advenham: por exemplo, não se saberá o que é a derivada quem não
poderá ensinar os algoritmos usuais conhecer a noção de rapidez, de taxa de
das operações básicas a quem ainda variação, de velocidade (ainda que
não aprendeu a representar os núme- constante). No caso específico das rela-
ros no sistema de numeração decimal. ções entre a Matemática e a Física, a
Entretanto, limitações desse tipo são querela da precedência do que deve ser
excessivamente óbvias e claramente ensinado assemelha-se bastante a uma
insuficientes para condicionar tão for- outra de mesma estirpe que se pode
temente os programas, já aprisionados formular com relação ao par ovo-gali-
nas costumeiras seriações. Por exem- nha.
plo, o fato de na quase totalidade dos
livros didáticos a demonstração do teo- Na verdade, é necessário refletir
rema de Pitágoras utilizar-se da noção com mais vagar sobre tais ordenações,
examinando criticamente sua contin-
de semelhança de triângulos não signi-
fica, como se poderia pretender, que tal gência ou seu caráter necessário, que
noção deva ser ensinada antes da apre- parece estar restrito a situações não
sentação de tal teorema. Na verdade, a muito numerosas, nem de longe justi-
própria noção de semelhança pode ser ficando a rigidez das seriações e das
apresentada ou motivada a partir do retenções que são juradas em seu
teorema de Pitágoras, cuja demonstra- nome.
ção pode ser feita de múltiplas formas, Uma concepção de conhecimento em
praticamente sem pré-requisitos for- que tais cadeias lineares sejam substi-
mais. tuídas, tanto nas relações interdiscipli-
Quando se planeja o trabalho anual nares quanto no interior das diversas
nas diversas disciplinas, é muito dificil disciplinas, pela imagem alegórica de
escapar-se de determinações resultan- uma rede, de uma teia de significações,
tes da pressuposição da linearidade, poderia, a nosso ver, contribuir decisi-

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Pro-PosI, -

vamente para a viabilização do neces- Cada via é representativa de uma


sário trabalho interdicisplinar. ligação ou de uma relação entre duas
ou mais teses, ou de um fluxo de
determinação (analogia, dedução,
Conhecimento: rede influência, oposição, reação, ...) en-
tre dois ou mais elementos desta si-
Essa nos parece ser a chave para a tuação empírica. Por definição, ne-
nhum ponto é privilegiado em rela-
emergência, na escola ou na pesquisa, ção a um outro, nem univocamente
de um trabalho verdadeiramente in-
terdisciplinar: a idéia de que conhecer subordinado a qualquer um; ...Exis-
é cada vez mais conhecer o significado, te, enflID.,uma reciprocidade profun-
de que o significado de A se constrói da entre as intersecções e os cami-
nhos, ou, melhor dizendo, uma dua-
através de múltiplas relações que po-
dem ser estabelecidas entre A e B, C, lidade. Um extremo pode ser consi-
D, E, X, T, G, K, W etc, estejam ou não derado como a intersecção de duas
. as fontes de relações no âmbito da dis- ou mais vias (uma tese pode consti-
ciplina que se estuda. Insistimos: não tuir-se da intersecção de uma multi-
se pode pretender conhecer A para, plicidade de relações ou um elemen-
to surgir subitamente da confluên-
então, poder-se conhecer B, ou C, ou X,
ou Z, mas o conhecimento de A, a cons- cia de várias determinações); corre-
trução do significado de A, faz-se a lativamente, um caminho pode ser
partir das relações que podem ser esta- visto como uma determinação cons-
belecidas entre A e B, C, X, G, ... e o tituída a partir da correspondência
resto do mundo. entre duas intersecções preconcebi-
das (relacionação de quaisquer duas
A imagem de um diagrama em rede
teses, interação de duas situações,
para representar o conhecimento, vis- etc.)" (Serres, s.d.: 7).
lumbrada de modo incipiente por
Minsky (1989) em suas Linhas K, que Permitimo-nos tão longa citação
na verdade não eram exatamente li- apenas porque a consideramos uma
nhas, mas sim germes de redes, parece rara confluência de precisão, concisão,
excepcionalmente fecunda e inspirado- riqueza de pormenores descritivos, na
ra para uma organização mais consis- tradução da idéia que intentamos su-
tente do trabalho escolar. EmA Comu- gerir: dificilmente poderíamos fazê-Io
nicação, como que pegando o mote, de modo mais pertinente.
Serres escreveu: Sobre os diversos percursos possí-
"Imaginemos um diagrama em rede, veis para o deslocamento de um ponto
desenhado num espaço de repre- da rede até outro, Serres afirma:
sentações. Ele é formado, num dado "De fato é óbvio que este percurso
instante (pois veremos que ele re- pode passar por tantos pontos quan-
presenta qualquer estado de uma to desejarmos, e, em particular, por
situação móvel) por uma pluralida- eles todos. Deste modo, não existe
de de pontos (extremos) ligados en- nenhum logicamente necessário: o
tre si por uma pluralidade de rami- mais curto, isto é, o pequeno circuito
ficações (caminhos). Cada ponto re- entre os dois pontos em questão,
presenta ou uma tese, ou um ele- pode, eventualmente, ser mais difí-
mento efetivamente definível de um cil ou menos interessante (menos
conjunto empírico determinado. praticável) que um outro mais longo,

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lnterdisciplinaridade e Matemática

transportando, no entanto, mais de- processos lineares, ainda que com a


terminação, mas aberto momenta- mediação do Cálculo. Por mais que se
neamente por esta ou aquela razão" pretenda desenvolver a imagem alegó-
(s.d.: 7). rica da teia cognitiva, a ser desenvolvi-
Embora conscientes da necessidade da de modo contínuo e permanente a
de uma exploração mais minuciosa das partir da prototeia com que todos apor-
redes cognitivas, sobretudo no que se tamos à escola, sempre será necessário
refere às implicações pedagógicas, con- um mapeamento para ordenar e orien-
sideramos que, no momento, é necessá- tar os caminhos a seguir sobre a teia.
rio prosseguir. Registremos apenas As disciplinas são os fornecedores na-
que, mesmo sem adentrar por searas turais de tais mapeamentos.
inatistas, parece-nos óbvio que, na on- Em múltiplos sentidos, pois, a escola
togênese, a construção de tal rede de será sempre um espaço propício ao tra-
conhecimentos não se inicia na escola. balho disciplinar. Ocorre, no entanto,
À escola cabe cuidar para que a teia de que as tentativas de equacionamento
significações seja reforçada aqui, refi- do trabalho disciplinar na escola têm-
nada ali, sempre comorecurso ao enri- se pautado apenas em função de uma
quecimento das relações ou à constru- das duas dimensões fundamentais: o
ção de novos nós como feixes de rela- eixo multidisciplinar-interdisciplinar.
ções. A outra dimensão, o eixo intradiscipli-
nar-transdisciplinar tem sido rotinei-
ramente subestimado ou esquecido.
A rede e as disciplinas Registremos aqui, sucintamente, algu-
mas considerações a respeito.
De modo algum a concepção de co-
nhecimento como uma rede de signifi-
cações implica a eliminação ou mesmo Transdisciplinaridade
a diminuição da importância das disci-
plinas. Na construção do conhecimen- De modo geral, o trabalho na escola
to, sempre serão necessários discipli- é naturalmente multidisciplinar, no
na, ordenação, procedimentos algorít- sentido de que faz apelo ao contributo
micos, ainda que o conhecimento não de diferentes disciplinas. Na multidis-
possa ser caracterizado apenas por es- ciplinaridade, no entanto, os interesses
tes elementos constitutivos, isolada- próprios de cada disciplina são preser-
mente ou em conjunto. Afirmar que os vados, conservando-se sua autonomia
procedimentos algorítmicos não esgo- e seus objetos particulares.
tam os processos cognitivos não signi- Conforme afirmamos inicialmente,
fica que tais procedimentos possam ser a interdisciplinaridade é hoje uma pa-
dispensados: seguramente não o po~ lavra-chave para a organização esco-
demo lar; pretende-se com isso o estabeleci-
Em uma analogia com os relaciona- mento de uma intercomunicação efeti-
mentos funcionais no estudo dos fenô- va entre as disciplinas, através da fixa-
menos naturais, é tão verdadeiro que ção de um objeto comum diante do qual
nem todos os fenômenos podem ser ex- os objetos particulares de cada uma
pressos por funções lineares quanto o é delas constituem subobjetos.
que nenhum fenômeno pode ser funcio- No eixo multilinterdisciplinaridade,
nalmente descrito sem referência aos as unidades disciplinares são, portan-

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Pro-PosicõesVoI.4 N? 1[101. marco de 1993

to, mantidas, tanto no que se refere aos A idéia cartesiana da Matemática


métodos quanto aos objetos, sendo a como a seiva/condição de possibilidade
horizontalidade a característica básica de todos os ramos do conhecimento,
das relações estabelecidas. apesar de significações distintas das de
Já no eixo intra/transdisciplinarida- Comte ou de Piaget, partilha com as
de, a característica básica das relações mesmas o fato de não atribuir uma
estabelecidas é a verticalidade. Na in- especial relevância à língua nossa de
tradisciplinaridade, as progressivas cada dia.
particularizações do objeto de uma dis- A nosso ver, essa é a correção de
ciplina dão origem a uma ou mais sub- rumo absolutamente fundamental
disciplinas, que não chegam verdadei- para uma reconstrução da árvore car-
ramente a deter uma autonomia, nem tesiana - ou do círculo piagetiano: a
no que se refere ao método, nem quanto língua e a Matemática constituem os
ao objeto. No caso da transdisciplinari- dois sistemas básicos de representação
dade, a constituição de um novo objeto da realidade. São instrumentos de ex-
dá-se em um movimento ascendente, pressão e de comunicação e, conjunta-
de generalização. Um exemplo típico é mente, são uma condição de possibili-
oda Educação, um conhecimento natu- dade do conhecimento em qualquer
ralmente transdisciplinar. As palavras área. O par língua/Matemática compõe
de Carvalho parecem-nos especial- uma linguagem mista, imprescindível
mente elucidativas a respeito: para o ensino e com as características
"Com efeito, a idéia de transdiscipli- de um degrau necessário para alcan-
naridade traduz, de uma maneira çar-se as linguagens específicas das
exacta, a heterogeneidade constitu- disciplinas particulares.
tiva desta ciência em que a multipli- Nesse sentido, as palavras de Gus-
cidade das suas vertentes se subme-
dorf são incisivas:
te, contudo, à unidade complexa do
seu objecto" (1988:93). "Estudos interdisciplinares autênti-
Assim, muito do que se pretende ins- cos supõem uma pesquisa comum e
taurar na escola sob o rótulo da inter- a vontade, em cada participante, de
disciplinaridade, poderia situar-se de escapar ao regime de confmamento
modo mais pertinente sob o signo da que lhe é imposto pela divisão do
transdisciplinaridade. Direta ou indire- trabalho intelectual. Cada especia-
tamente, contudo, permanece no cen- lista não procuraria somente ins-
tro das atenções a idéia de disciplina. truir os outros, mas também receber
instrução. Em vez de uma série de
o caso da Matemáticá monólogosjustapostos, comoaconte-
ce geralmente, ter-se-ia um verda-
deiro diálogo, um debate por meio do
No caso específico da Matemática, qual, assim se espera, se consolida-
uma reflexão crítica sobre o papel que ria o sentido da unidade humana....
eladeve desempenhar na configuração A determinação de uma língua co-
curricular é impre&cindível e inadiá- mum é a condição do surgimento de
veI. Em todas as sistematizações filo- um saber novo" (1984: 35).
sóficas,constatamos a importância do A nosso ver, tal língua comum deve
papel que lhe é destinado, bem como a ser uma linguagem mista, cujos ingre-
influência que dele se irradia para to- dientes seriam, precisamente, a língua
dosos relacionamentos disciplinares. materna e a Matemática.

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lnterdisciplinaridade e Matemática

Referências bibliográficas
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Paulo, Cultrix/EDUSP, 1983.
SERRES, M. A Comunicação. Porto, Rés, s.d.

R esumo Em tempos recentes, in-


terdisciplinaridade tem Abstract ~o~a~ays the inter-
diSClplinaryapproach
sido uma palavra-chave na discussão da has been constantly presented as a desira-
forma de organização do trabalho escolar ble pattem in the discussion of academic
ou acadêmico. Existem, no entanto, dificul- research or school organization. However,
dades renitentes que explicam em' parte there are persistent difficulties which can
resultados tão pouco expressivos na ação partially explain such inexpressive results
docente. No texto, são examinados alguns in the teachingpractice. In this paper some
desses obstáculos, destacando-se a descon- ofthese obstades are examined, especially
sideração sobre o fato de que toda organi- the fact sometimes forgotten that all disci-
zação disciplinar é resultante de uma re- plinary organization results from a philo-
flexão mais abrangente, de natureza epis- sophical system, and this generally deter-
temológica, no interior de uma sistemati- mines the main characteristics of the cur-
zação filosófica que prefigura, em grandes ricular components. The relevant place oc-
linhas, o tom e a cor de cada componente cupied by mathematics in every philoso-
curricular. O lugar de destaque que ocupa phical system suggests that this discipline
em todas as sistematizações desse tipo con- has an important role to play in discussing
fere à Matemática uma importância espe- the interdisciplinary approach.
cial no tratamento do tema.

Palavras-chaves: Interdisciplinaridade, Descriptors: Interdisciplinary approach,


abordagem interdisciplinar, transdiscipli- interdisciplinarity, transdisciplinary ap-
naridade, interdisciplinaridade e Matemá- proach, interdisciplinarity.
tica, Matemática.

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