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o visor no pulso. o quadrado na parede.

dois minutos adiantado. dois minutos atrasado.


a camisa sem gola sufocando o pescoço desvestido.
óculos de veres mais experiente.
espelho pra confirmar o rosto sem tatuagens de tempo.
saudação desengonçada. sala turva e apertada. todos sentados em
ângulos oblíquos contra o sol nas cadeiras angulares.
doutor? não outorgo dor.
pesadelos sem adendos.
olhos distraídos.
olhos de ressaca.
cobras? cobro.
fizeram-se cobras e obras.
com as sobras.

escrever é retalhar. é frustrar-se em tentativas de talhar o reto do


concreto dialogado entre os murmúrios da sessão.
cessado o tempo, sobra o vento-brisa de um coração acabrunhado de
sintomas de outrem.
o trem passou e levou tudo. deixou cair uns poucos grãos da carga
fúnebre e sedimentos que ficaram no filtro de café. o líquido que carrega
um gozo despertando os olhos baixos e perfurando os órgãos em acidez.
a borra é retida, mas algo sempre passa e transborda a xícara no fundo
do último gole.
faz sentido pensar um ano clínico sem café? sem fé? esse trabalho
funciona? nosso sono vem de um sonho acordado ou de uma noite em
claro?

dormindo, delirei em ovos sem gema e acordei entendendo por que meu
paciente joga uno com as cartas viradas pra cima... não tem segredo, é
só mistério... na cor da gema é desvelada a dieta da galinha. amarelo-
milho, laranja-cenoura, vermelho-pimentão. se não tem gema, tem
mistério? é tudo claro... água...

lágrimas retidas que viraram gotas escorrendo pelo copo gelado do


boteco da esquina.
iras esquecidas que choveram tufos de cabelo pelo chão.
alegrias escondidas que mancharam os dentes em abstenção.

atrevimento.
rigor.
semblante e estupor.

conselho.
intervenção.
escansão e interpretação.

silêncio...

5... 10... 15... minutos de agonia enquanto o sujeito de poucas metáforas


organiza seus quebra-cabeças e palavras cruzadas para dizer da
tragédia onírica da semana anterior.

o tempo é quando.
o infinito, particular.
o desejo, uma caixa de Pandora.

Nas brincadeiras, a seriedade da situação consumindo os minutos e a


disponibilidade de pensamentos que se encerravam em associação ou
incompreensão. Nem acappella, nem orquestrado, apenas em
conjuntos e, por vezes, solo é o modo de pensar as areias que tombam
na ampulheta de quem escuta. grão a grão. Dia a dia. Semana a
semana. O que se inicia enquanto nota desafinada pode – depois de
umas quantas marés – compor acordes dissonantes que fazem música
ainda não pronta a escutar.
Eis a clínica que nasce.
Lembro-me de minha professora da 1ª série. “estudar é repetir”. Que se
fez nesse ano se não estudar em meio às repetições, demarcações,
desconstruções, reposições.
Quem passou a porta adentrou o mundo outro.
Eu.
Ela.
Ele.
Ambos.
Todos.
Paratodos.
Pai paulista.
Avô pernambucano.
Bisavô mineiro.
Tataravô baiano.
Quem soprou a toada e qual a história a ser coberta de novas
redondinhas?
Ninguém teve o direito a permanecer calado e imutável na transição de
afetos emitidos a torto e a direito.
Uma deriva verbal.
Queria enviar uma carta à senhora Graça. 2003 já faz um tempo, mas o
teu discurso segue junto no presente. Repeti mil vezes que tudo daria
certo nessa trajetória e que as palavras não precisavam me acompanhar
como as fumaças de cigarro impregnadas nas costuras das camisas e
casacos simulando um chique-à-vontade inexistente.
Foi necessário carimbar a pele um par de vezes para entender a
sazonalidade das falas e o impossível nos possíveis a serem feitos com os
discursos proferidos nas salas infinitas de conversas sem ponto final.
Mas não tem revolta não
Eu só quero que você se encontre
Saudade até que é bom
É melhor que caminhar vazio
A esperança é um dom
Que eu tenho em mim, eu tenho sim
Não tem desespero não
Você me ensinou milhões de coisas
Tenho um sonho em minhas mãos
Amanhã será um novo dia
Certamente eu vou ser mais feliz
Sonhos – Caetano Veloso

Mas nem tudo são caixas de brinquedo e conversas derradeiras.


Corredores falam.
Entre chistes e cochichos, sussurros e salitres.
Pesa o não falado.
Pesa a overdose de adjetivos.
Crescer.
Crer-ser.
“ser crescendo sendo” pelas sendas labirínticas.
Na casa dos ouvidos, são as bocas que prosperam.
Pródigos discursos sem hora para orar.
Embaixo do tapete.
Frases de revista.
Olhares anuviados.
Obras de Dédalo, o inventor dos labirintos?
Pouco importa ou muito importa?
Vi o sangue tomar os rostos rubros enervados.
Vi tropeços e doenças.
Talvez não precise tantas mazelas num percurso para que ele costure
mais pedaços nos corpos em construção. Se faz sentido ou não é só o fim
do bordado que dirá. A agulha corre solta e se costura nos encontros.
Melhor cuidar os dedos. sem desastres entre os furos e os rasgos mal
amarrados no progresso do pandeiro. Sobra excesso e falta recesso.
É um samba que começa. Um estilo que se enlaça.

Difícil narrar um ano de histórias de vidas inteiras ainda desinteiradas e a


se inteirar. Com legos, pregos ou palavras. Todos juntos os desjuntados.
Depois a gente guarda e da bagunça se faz arte.
Uma linda e incessante coreografia sem hora pra acabar e que nem
sempre ou quase nunca é sorridente.
Há histórias tão verdadeiras que às vezes parecem que são inventadas.
E o que foi sendo tudo isso se não grandes invenções?
;
João Luís Miola
2019

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