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29/04/2018 A forma como hoje trabalhamos "é muito disfuncional" | Entrevista | PÚBLICO

ENTREVISTA

A forma como hoje trabalhamos


"é muito disfuncional"
Vamos pagar um preço pela forma como estamos a trabalhar
actualmente, não só do ponto de vista da performance, mas
também da saúde, afirma José Soares. O professor catedrático
de fisiologia escreveu um livro com estratégias para minimizar
o stress causado por ambientes profissionais desgastantes diz
que não é líder quem quer, mas quem pode.

ALEXANDRA CAMPOS • 29 de Abril de 2018, 7:00

O stress crónico provoca alterações


estruturais no cérebro e acelera o processo
de envelhecimento, avisa José Soares, 59
anos, professor catedrático de Fisiologia na
Faculdade de Desporto da Universidade do
Porto que já trabalhou com a selecção
nacional de futebol e atletas de alta
competição. O que é que as pessoas e as
organizações podem fazer para evitar
o burnout? As estratégias para prevenir
este estado extremo de exaustão passam
por exercício, pouco, "bastam entre seis a
oito mil passos por dia", alimentação e
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sono adequados e técnicas de relaxamento,


explica no livro Reload. Menos Stress.
Melhor Performance, da Porto Editora,
que foi lançado este mês.

A forma como trabalhamos


actualmente não é “performante”,
escreve. O que quer dizer com isto?

A forma como estamos a trabalhar é muito


exigente. O ambiente actual do mundo das
empresas e organizações caracteriza-se por
quatro aspectos fundamentais - never
offline, elevada pressão para obter
resultados, longas horas de trabalho,
viagens frequentes. São aspectos que
favorecem o aparecimento de quadros
de stress e de fadiga. É um ambiente muito
disfuncional. E por vezes há quem entre
em burnout [síndrome de esgotamento
profissional]. Nas empresas, à semelhança
do que acontece com os atletas, a
capacidade de recuperação é fundamental.
O meu objectivo, com este livro, é tentar
ajudar as pessoas a lidar com isto usando
uma série de estratégias que designo como
os quatro “R” : aprender a recuperar
(“recover”), a fazer refuel, a repensar a
forma como se encara o stress (“rethink”)
e, depois, a reenergizar-se ("reenergize").

Na área da saúde, este problema


sente-se com especial acuidade. Têm
sido divulgados vários estudos que
indicam que a percentagem de
médicos e de enfermeiros
em burnout é muito elevada.
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Sim. Ainda no outro dia vi uma notícia


alarmante que referia que a quarta causa
de morte nos EUA são os erros médicos.
Muitos estudos em que me baseio para
explicar os efeitos do stress e da fadiga são
justamente feitos em ambiente clínico. Se
um camionista tem que parar ao fim de um
número de horas e ser substituído, por que
é que um médico pode fazer 24 horas
seguidas num serviço de urgência? Num
estudo que simula o ambiente de um bloco
operatório, quando os médicos têm que
fazer duas e três coisas ao mesmo tempo,
aumentam exponencialmente a
probabilidade de erro. O problema é que
vamos pagar um preço pela forma como
estamos a trabalhar actualmente, não só do
ponto de vista da performance (cometemos
mais erros, somos menos criativos), mas
também da saúde.

Então, o que há a fazer é mudar a


forma como trabalhamos?

Isso vai ter que se regular, mas neste


momento não podemos fazer muita coisa
para alterar a situação, não podemos
mexer muito nesta forma de trabalhar.
Assim, a questão fundamental é saber
como lidamos com o problema. Até porque
a longo prazo tudo isto vai ter um peso - a
imunidade baixa, a susceptibilidade a
doenças aumenta, nomeadamente a
doenças cardiovasculares, infecciosas,
oncológicas. E também há consequências
na função cognitiva. O stress crónico

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provoca alterações estruturais no cérebro.


Por exemplo, o volume do hipocampo
diminui.

A Organização Mundial da Saúde


afirma que o stress é actualmente
uma epidemia. É assim tão grave?

O impacto do stress sobre a saúde está hoje


muito bem demonstrado. Uma das
consequências imediatas é a forma como
afecta o sono na maioria das pessoas. E
sonos pouco reparadores ou demasiado
curtos aumentam o risco de muitas
doenças, como a diabetes, a obesidade,
doenças cardiovasculares.

Mas estão sempre a atirar-nos com


exemplos de pessoas que dormem
muito pouco, como o Presidente da
República…

Sim, mas eles são outliers [casos atípicos].


As guidelines internacionais dizem que é
necessário dormir entre sete a nove horas
por noite. No trabalho há muitas vezes
um stress brutal, há muita gente a entrar às
8 da manhã e a sair às 9 da noite. Como
somos pouco eficientes - e se isto não vai a
bem vai a mal -, é preciso trabalhar mais
horas. Um exemplo: perde-se muito tempo
nas reuniões. Costumo fazer um
questionário [nas empresas onde é
consultor] e é verdadeiramente
impressionante a forma como as pessoas
classificam o custo-benefício das reuniões.

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Não começam a horas, têm objectivos


pouco claros, há gente que é convocada que
não está lá a fazer nada. No final, os
colaboradores perguntam: o que é que
estive aqui a fazer? Houve uma senhora de
um banco que me disse que não podia
beber água durante o dia porque, se o
fizesse, tinha que ir à casa de banho e não
tinha tempo por causa das reuniões. Este
ambiente é altamente desestruturante. Por
isso temos que investir na forma como nos
organizamos e como acomodamos este
impacto.

Afirma que não é líder quem quer,


que existe uma predisposição
biológica para exercer liderança.

Isso deu muita polémica! Conheço uma


CEO que é o exemplo claro da disfunção,
ela própria é a imagem do stress. Ser líder
é importante fundamentalmente em
momentos de turbulência, não quando
tudo corre bem. O que sabemos é que
biologicamente há alguma predisposição
para exercer liderança para responder de
forma mais adequada ao stress. Os
verdadeiros líderes são aqueles que, em
momentos de turbulência e incerteza,
conseguem manter a calma.

Entre as estratégias que propõe, há


algumas técnicas de relaxamento.
Mas não é preciso ter tempo para
isso?

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As técnicas de relaxamento não são


necessariamente demoradas nem
complicadas. Hoje há técnicas
relativamente simples que ajudam a
“derivar” o pensamento.

Votando ao problema do tempo e da


falta dele. Diz que os colaboradores
nas empresas que param de 90 em
90 minutos são uma minoria, 14%.

As pessoas têm que parar. Temos que


desacelerar e travar com uma certa
frequência. O que está a acontecer é que
continuamos com o mesmo ritmo até às 8
horas da noite e depois temos um sono
inadequado.

Mas não será fácil para um chefe


aceitar que um trabalhador pare de
60 em 60 ou de 90 em 90 minutos,
como propõe.

Quem não pode parar por dois ou três


minutos? Qual é a diferença entre sair para
fumar ou sair para apanhar um pouco de
sol? Quando digo parar é parar durante o
dia e depois ter sono adequado. Por que
razão estamos tão preocupados em fazer as
mais diversas dietas e não tratamos do
sono com cuidado? É preciso estar atento
aos sinais. Há uma frase que uso muitas
vezes: temos que estar atentos aos
murmúrios do corpo porque vai chegar a
uma altura em que este vai gritar.

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É possível aprender a gerir o stress?

A mudança de comportamento é muito


difícil. Quando eu falo de exercício, é
fundamentalmente para a função cognitiva,
não para a saúde. Para a melhor
funcionalidade do cérebro só temos
praticamente duas coisas, o exercício e a
alimentação. E a grande vantagem do
exercício para a função cognitiva é que a
chamada dose-resposta é muito baixa.
Enquanto no exercício para reduzir o
colesterol, a diabetes, a hipertensão a dose-
resposta implica intensidade, para a função
cognitiva basta muito pouco. A quantidade
de exercício necessária para estimular a
produção de algumas substâncias –
endorfinas, dopamina, serotonina,
oxitocina, noradrenalina – é muito
reduzida. Basta fazer seis, sete, oito mil
passos por dia. Ou seja, basta andar 20 ou
30 minutos por dia, é suficiente e não é
necessária intensidade. Se as pessoas
integrarem isso nos seus hábitos à hora do
almoço e ao fim do dia chega, não é preciso
ir para o ginásio.

Mas também deixa claro que é


necessária muita energia para ter
motivação para mudar.

Há uma coisa que é decisiva: as pessoas


têm que perceber o impacto do stress e da
fadiga não só na sua capacidade produtiva,
mas também na saúde, na doença.
Inclusivamente, hoje sabe-se que também
acelera o envelhecimento. Nos passos dos
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alcoólicos anónimos, estes só passam da


primeira para a segunda etapa quando
assumem que têm um problema. Se se
desvaloriza o problema, como é que se vai
mudar?

No livro diz que a felicidade também


tem uma matriz biológica. O que é
que quer dizer com isto?

Ser feliz é óptimo. Mas querer ser feliz é


um bocadinho como querer ser alto. Não
está ao alcance de todos. É um bocadinho
leviano, há uma certa desonestidade
intelectual em querer fazer passar a ideia
de que toda a gente pode ser feliz. Por
vezes as pessoas não são felizes não por
que não querem mas porque não podem. É
preciso ter respeito e tolerância pelas
pessoas mais negativas. Nem tudo é
possível de modificar, nem tudo se treina.

acampos@publico.pt

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