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“O comportamento das massas como antítese do

comportamento individual”

“Mass behavior in opposition to individual behavior”

Resumo: O artigo com base em trecho do livro “Psicologia das Massas do


Fascismo” tem por objetivo comparar o comportamento individual
influenciado pelo comportamento da massa que entra em choque até com o
instinto da fome ou mesmo a submissão à opressão da fome ou do trabalho.

Abstract: The article based on an excerpt of “The mass psychologie of


Fascism” has the aim to compare individual behavior influenced by mass
behavior, even against basic instincts such as hunger and oppression at
work.

Palavras-chave: Comportamento, tradição, massa, psicologia, economia

Keywords: Behavior, tradition, mass, psychology, economy

Disciplina: Teoria das Ciências Humanas I

Professor: Vladimir Pinheiro Safatle

Aluno: Ricardo Malheiros Pinto

NUSP: 9828681
“Mas o homem procura sujeitar-se ao que já é irrefutável, e irrefutável a tal ponto que
de uma hora para outra todos os homens aceitam uma sujeição universal a isso. Porque
a preocupação dessas criaturas deploráveis não consiste apenas em encontrar aquilo a
que eu ou outra pessoa deve sujeitar-se, mas em encontrar algo em que todos acreditem
e a que se sujeitem, e que sejam forçosamente todos juntos. Pois essa necessidade de
convergência na sujeição é que constitui o tormento principal de cada homem
individualmente e de toda a humanidade desde o início dos tempos. Por se sujeitarem
todos juntos eles se exterminaram uns aos outros a golpes de espada. Criavam os
deuses e conclamavam uns aos outros: Deixai vossos deuses e vinde sujeitar-se aos
nossos, senão será a morte para vós e os vossos deuses!”

Fiódor Dostoiévski em “O grande Inquisidor”1

“Para a psicologia social, a questão é colocada em termos opostos: o que se


pretende explicar não é por que motivo o esfomeado rouba ou o explorado faz
greve, mas por que motivo a maioria dos esfomeados não rouba e a maioria dos
explorados não faz greve.”

O conceito de psicologia de massas ou psicologia social teve seu destaque a partir


de fins do século XIX e início do século XX. Se inicialmente a concepção de massa
psicológica se mostrava entre seus membros como a formação de uma alma coletiva,
atribuía-se a essa mesma massa um retardo civilizatório no qual os instintos mais
violentos e que dificilmente aflorariam em indivíduos isoladamente, se tornavam
comuns e facilmente manipuláveis pela própria identificação entre os membros da
massa. A experiência empírica mostra diversos exemplos de comportamentos de massa
absolutamente reprováveis ou pouco civilizados. Como exemplos podem ser citados no
caso do cotidiano as brigas de torcidas, onde grupos que tem em comum além da forte
identificação pelo time preferido também apresentam uma necessidade de
reconhecimento e por isso chegam a se envolver em brigas violentas, depredações
aleatórias ou o ódio e a necessidade da eliminação de torcedores de outro time. Chama
também a atenção nesse comportamento de massa, o fato de ao fazer parte de uma
torcida os membros se paramentem com símbolos comuns a uma tropa, o uso da mesma

1
Dostoièvski, Fiódor. Os irmãos Karamázov; tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. – São Paulo:
Editora 34, 2013 (3ª edição). Página 296.
linguagem e violência de combatentes, como ocorreu na prisão de líderes de torcidas
recentemente de acordo com o relato dado pela imprensa:

“Um fato que chamou a atenção dos policiais na investigação foi a forma de
comunicação que os acusados utilizavam. "Eles se comunicam de uma maneira
paramilitar. Usam vocabulários como 'vamos montar o pelotão', 'vamos para a guerra',
'vamos para o combate', 'vamos acabar com os inimigos'. Dessa forma, fica claro que o
único objetivo deles é arrumar confusão e briga, seja com outros torcedores ou até
mesmo com a polícia", completou o delegado.2”

Arrisco a dizer que é impossível para cada um desses indivíduos no seu dia a dia não
ter contato próximo com torcedores de times rivais, seja na família, no trabalho, nas
atividades culturais ou de lazer e nessas situações a convivência ser pacífica e até
cordial com o “inimigo” da massa torcedora. O que denota o contraste entre massa e
indivíduo, pessoa e grupo. Mas o que faz com que esses sujeitos talvez cordiais na
rotina ao se agrupar busquem a violência irracional e sem motivo lógico aparente? A
partir da análise do texto de alguns autores tentarei traçar ou agrupar quais seriam as
explicações desse indivíduo que na massa pode-se tornar o mais dócil cordeiro em
momentos que é oprimido e em outras ocasiões é o mais selvagem seja no jogo de
futebol ou nas opções políticas promotoras da violência como, por exemplo, o fascismo.
A razão da escolha do fascismo como expressão dessa ideologia da violência se dá por
diversas razões, entre elas o fato do fascismo ser um movimento de massas, também por
ser o inventor do conceito do Estado totalitário embora Deleuze e Guattari assumam a
existência de estados totalitários não fascistas como o stalinista e a ditadura militar3.
Mas justamente essa característica fascista que de maneira imprescindível inclui o
totalitarismo centralizado (macropolítica) indissociável de pequenos grupos ou
focos(micropolítica), que apesar de certas diferenças nessas micro-organizações
interagem a partir de pontos fascistas em comum como o fascismo rural e o urbano, de
esquerda e de direita sendo que “cada um deles seria um pequeno buraco negro que se
comunicam entre si antes de compor o grande buraco negro central generalizado”4.

2
Presos por brigas em torcidas organizadas se unem como se fossem para a ‘guerra’. Jornal O Dia,
20/04/2019, reportagem de Fábio Perrota Jr. https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2019/04/5635856-
presos-por-brigas-em-torcidas-organizadas-se-unem-como-se-fossem-para-a--guerra.html#foto=1
3
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol.3/ Gilles Deleuze, Félix
Guattari; tradução de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Claúdia Leão e Suely Rolnik. –
São Paulo: Editora 34, 2012 (2ª edição). P. 100
4
Idem P.10
Inclusive é citado o cinema americano como um meio que rotineiramente mostrava de
maneira clara esses focos moleculares como os encontrados nos bandos, gangues, seitas,
etc.5 Dado esse aparte sobre o motivo da escolha do fascismo e sua caracterização a
abordagem agora será com base em textos de autores que analisaram a psicologia social,
conceituaram seus mecanismos e ressaltaram momentos históricos em que o
desconhecimento dela custou muito caro como a derrota da esquerda na Alemanha
frente a Hitler por exemplo.

Freud aborda que a relação ou o poder que mantém a massa coesa, ou seja, a
essência da alma coletiva é o amor. Não necessariamente o amor erótico, mas o “amor a
eles” entre os membros da massa, para que os indivíduos estejam em consonância e não
em oposição.6

Valendo-se dessa hipótese, do amor como fator de coesão, e usando o conceito de


estrutura libidinal Freud exemplifica7 por meio da Igreja e do Exército duas instituições
duradouras em que a alma coletiva prevalece. A ligação libidinal entre o chefe supremo
(Cristo, para os cristãos e General para os militares) e os seus companheiros de fé ou de
farda. Em ambos os casos, diversos instintos básicos são reprimidos. No caso da igreja,
a castidade, por exemplo, e no caso do exército o instinto vital ao jurar dar a vida pela
pátria o que em diversos casos pressupõe entrar em guerras ou conflitos dos quais não
se tem uma afinidade política ou mesmo opinião sobre a motivação deste combate.
Cumpra-se as ordens, não se questiona. Por isso a importância da pergunta: Por que as
massas às vezes atuam como gado dócil e pacífico e em certas ocasiões partem
totalmente para a agressividade desmedida, inconsequente e aparentemente inexplicável
ao apoiar por exemplo políticos e governos autoritários? Por que esse pêndulo que em
determinadas épocas a passividade suporta a fome e a exploração e em outras irrompe
numa busca suicida que derruba instituições, apoia a violência e que parece acelerar em
direção ao muro adiante? A psicologia social tem muito a responder sobre isso.

Além da interpretação freudiana sobre a psicologia das massas há o texto de Georges


Bataille que também traça importantes aspectos da psicologia das massas e o fenômeno

5
Idem. P. 101
6
Freud, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923)/ Sigmund Freud;
tradução Paulo César de Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2011. P. 45
7
Ibid. P. 46
do fascismo8 além da obra de Reich que inclusive é de onde vem o excerto para esse
pequeno ensaio.

Bataille descreve o que ele chama de “sociedade homogênea” que seria aquela que
é regida por regras fixas baseadas na razão e identidade entre seus membros que são os
cidadãos considerados “produtivos” já que a produção é a base dessa homogeneidade
social e o dinheiro é a medida comum9(cada homem vale o que produz). Os
“improdutivos” são excluídos da parte homogênea da sociedade. Quem estabelece essas
regras são os donos dos meios de produção e o Estado, que é o detentor do monopólio
da força, atua para controlar a ordem social; ora pendendo para o autoritarismo estatal
no caso de um regime despótico, ora adaptativo no caso de um regime democrático,
todavia, é sempre usado para a contenção de dissidências. Porém não é possível a
manutenção dessa homogeneidade apenas pela violência, nesse caso há o fator
econômico e qualquer crise nessa área pode levar a dissidências na homogeneidade
social existente. E quando há crises, existem riscos já que os membros afetados podem
se aliar aos “improdutivos” também chamados de heterogêneos. Esses excluídos são
governados pelo inconsciente, tem como caracterizados a violência, os excessos e
delírios que nessa nova configuração social certos objetos de repulsa da ordem anterior
podem se tornar atrativos e o “status quo” pode ser fortemente abalado. A realidade
heterogênea é a da força ou do choque e por isso quanto maior o número de aliados à
essa realidade maior a chance de fim da ordem anterior. Em Bataille, portanto, pode-se
deduzir que a resposta para a questão sobre o motivo que leva a maioria dos esfomeados
a não roubar em muito está relacionado com a mão forte do Estado que usa da violência
para coibir qualquer atitude que fuja do pacto criado pelos donos dos meios de produção
na sociedade civil homogênea. No entanto, há a consciência que o número
de“heterogêneos”, incapazes de produzir o suficiente para comer, não pode ser enorme
devido ao risco de se criar uma cisão na sociedade daí que o Estado fará também o
movimento pendular entre adequar o seu lado violento com o de adaptação.

Reich que é o autor da questão que dá origem a essa reflexão por sua vez dá outra
resposta. Bataille e Reich concordam que o marxismo não soube explicar o fenômeno
que levou as massas a apoiar o fascismo, justamente por não compreender a psicologia

8
Bataille, Georges. The Psychological Structure of Fascism; tradução Carl R. Lovitt. New German
Critique, No. 16 (Winter 1979), Telos Press, Ltd. P 64-87.
9
Idem, P. 65
das massas como a ligação entre a formação religiosa e a sociedade política10 citado
pelo primeiro, já o segundo relaciona o marxismo a uma percepção exígua da psicologia
humana, restringindo-se a análise dos processos objetivos da economia mas não levando
em conta tanto o misticismo como a estrutura do caráter das massas durante a vitória
dos nazistas na Alemanha, num momento em que de acordo com a teoria de Marx tinha
todos os pré-requisitos na economia para uma revolução social11:

“Quem seguiu e viveu na prática a aplicação do marxismo pela esquerda


revolucionária, entre 1917 e 1933, percebeu necessariamente que ela se limitou à esfera
dos processos objetivos da economia e das políticas governamentais, mas não
compreendeu nem estudou o desenvolvimento e as contradições do chamado “fator
subjetivo” da história, isto é, a ideologia das massas. Acima de tudo, a esquerda
revolucionária deixou de aplicar, de modo sempre renovado, o seu próprio método de
materialismo dialético, de mantê-lo vivo para compreender cada nova realidade social, a
partir de uma nova perspectiva.”12

Apesar dessa concordância sobre a visão insuficiente do marxismo sobre o fenômeno


do surgimento do fascismo na questão referente à passividade do ser humano frente à
situação extrema da fome ou da exploração ambos divergem. Enquanto Bataille aponta
a economia como um fator decisivo na quebra da hegemonia social Reich ressalta que a
situação social não está automaticamente relacionada à estrutura do caráter, mas que
apesar de ser uma condição externa influente no processo ideológico individual há
forças do instinto que são mais influentes, todavia a fome não seria uma delas.13E
remete à importância da psicanálise ao compreender a estrutura da natureza do homem,
alcançando assim um nível superior no entendimento da realidade das massas. Por meio
da psicanálise os efeitos e consequências da repressão sexual e os mecanismos de
opressão e da repressão sexual são revelados junto com as consequências patológicas
para o indivíduo e como isso interferirá em seus atos e tanto na sua apatia política como
no seu apoio a regimes autoritários. 14

10
Idem. P. 64.
11
Reich, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo/ Wilhelm Reich; tradução Maria da Graça M.
Macedo; - 3ª ed. – São Paulo: Martins Fontes – selo Martins, 2001. P.8
12
Idem. P 6
13
Idem. P 59
14
Idem. P. 26
Essa não foi a única contribuição de Freud para o caráter das massas elencadas por
Reich e dentre as quatro descobertas citadas15 destaca-se uma que é sobre o código
moral não ter origem divina mas sua gênese surgir com a educação recebida na infância
pelos tutores da criança sejam eles pais ou representantes.16 E esse modelo educativo
diverge da sexualidade da criança. Com o choque entre o que é proibido pelos pais e os
desejos infantis surge um conflito entre o que é instintivo e o que é moral.17 Tal inibição
com fundo moral trará como consequência uma criança facilmente manipulável,
predisposta a submissão, ou seja, “boa” e “dócil”18 para aceitar tanto a fome quanto a
exploração sem se revoltar. E é interessante a conclusão como a ordem da repressão
sexual se dá por diversos agentes ao longo da vida, na tenra infância pela família e mais
tarde pela igreja, depois pelo exército, o Estado e por ai vai:

“A psicanálise de homens e mulheres de todas as idades, países e classes sociais leva às


seguintes conclusões: a combinação da estrutura socioeconômica com a estrutura
social da sociedade e a reprodução estrutural da sociedade verificam-se nos primeiros
quatro ou cinco anos de vida, na família autoritária. A Igreja só continua essa função
mais tarde. É por isso que o Estado autoritário tem o maior interesse na família
autoritária: ela transformou-se numa fábrica onde as estruturas e ideologias do Estado
são moldadas.”19

Daí a hipótese para a questão do por que a maioria tanto dos esfomeados quanto
dos oprimidos, respectivamente, não roubam ou não fazem greve e conduzem suas
atividades normalmente dentro da ordem, da tradição e da moral vigentes. O instinto
reprimido, castrado desde a infância gera cidadãos frustrados e muito contribui para a
formação de pessoas recalcadas e com viés moralista e autoritário. Esse público servil é
extremamente útil para a manutenção da ordem autoritária e que não questiona o
governo. Em outras palavras, são o público ideal para regimes que submetem seus
cidadãos aos piores tipos de humilhação e opressão. Com essa formação moral
reprimida se desenvolve o medo da liberdade, o afã em conservar um modelo repressivo
e com isso a visão reacionária de mundo. E também decorre que esse processo
repressivo da vida sexual faz com que a pessoa busque outras satisfações para substituir

15
Idem P.24
16
Idem P. 25
17
Idem P. 25
18
Idem P. 28
19
Idem P 28
essa frustração como o sadismo e a brutalidade. Daí a concepção que o fascismo é a
doutrina do homem médio, desse homem que é castrado, que imita a opinião dos líderes
para se sentir incluído e reconhecido porém de uma maneira mais tacanha, autoritária,
invejosa e amarga do mundo. Onde a castração pela qual passou, todos devem passar.
Todos devem ser condenados a essa opressão que no limite o faz aceitar ser esfomeado
ou oprimido já que a fome não é o instinto vital que dá origem à revolta. O papel da
psicanálise e da sexualidade no desenvolvimento da característica autoritária também é
citado por Foucault anos mais tarde em sua obra “História da Sexualidade 1 – a vontade
de saber”:

“É uma honra política para a psicanálise – ou pelo menos para o que pôde haver nela de
mais coerente – ter suspeitado (e isso desde o seu nascimento, ou seja, a partir de sua
linha de ruptura com a neuropsiquiatria da degenerescência) do que poderia haver de
irreparavelmente proliferante nesses mecanismos de poder que pretendiam controlar e
gerir o cotidiano da sexualidade: daí o esforço freudiano(sem dúvida por reação ao
grande crescimento do racismo que lhe foi contemporâneo) para dar à sexualidade a lei
como princípio – a lei da aliança, da consanguinidade interdita, do Pai-Soberano, em
suma, para reunir em torno do desejo toda a antiga ordem do poder. A isso a psicanálise
deve o fato de ter estado – com algumas exceções e no essencial – em oposição teórica e
prática ao fascismo.”20

Portanto a explicação reichiana para essa submissão a uma situação humilhante está
relacionada a uma educação castradora, que na vida adulta gerará pessoas reprimidas
em diversos aspectos e inclusive em seus ímpetos de contestação. A sexualidade
reprimida gera o cidadão apático, sem consciência de sua classe e das necessárias
reivindicações de melhorias que muitas vezes para se concretizar precisam de atitudes
mais firmes seja ela a greve ou protestos, porém com ímpetos de sadismo e crueldade.
Mas como bem mencionou Foucault fazendo uma correlação entre o poder e a
sexualidade, no qual o poder tal como o pai repressor21 ou do príncipe que elabora a lei
do outro lado haverá o sujeito que se sujeita mesmo que ao preço da fome ou da
exploração. A lógica da censura ao sexo, afirmando que não é permitindo, tolhendo ao
longo do prazo faz um cabresto moral no qual o cidadão adulto se torna esse ser que

20
Foucault, Michel. História da Sexualidade 1: A vontade de saber, tradução de Maria Thereza da Costa
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. – 1ª ed. – São Paulo, Paz e Terra, 2014. P. 163
21
Idem. P. 93.
aceita ser reprimido mas ao mesmo tempo tem uma familiaridade e até apoia o regime
autoritário.

Ao fazer todo esse percurso sobre o fascismo como movimento de massa e as


explicações na psicologia de massas sobre o que pode tornar uma pessoa apática
politicamente, subserviente ou mesmo brutal em ambos os casos Reich considera a
repressão sexual como causa importante para essa formação da personalidade. E esse
caráter se repetia ao buscar um governo repressor que oprimia a todos como se fosse um
pai autoritário dando lugar ao invés da razão um sentimento infantil inconsciente. Ao
invés de um humano emancipado e satisfeito que não precisaria se autoafirmar como o
moralista exemplar, na verdade se tornava submisso a um pai que saberia escolher o que
é melhor:

“Uma das suas características mais essenciais veio a ser essa de sentir-se felicíssimo em
atirar a sua responsabilidade de si mesmo para cima de algum führer ou político —, pois
não se compreende mais e, na verdade, teme a si mesmo e às suas instituições. Está
desamparado, é incapaz para a liberdade e suspira pela autoridade porque não pode
reagir espontaneamente; está encouraçado e quer que se lhe diga o que deve fazer, pois
é cheio de contradições e não pode confiar em si mesmo.”22

Essa característica infantil, imediatista e pouco reflexiva favorece a opção por regimes
autoritários. O estado com mão forte e agressivo que não apenas pune, mas, demonstra
uma violência em suas ações como um pai que esmurra a mesa, ou que manda calar a
boca sem ouvir. O estranho é a facilidade com que grande parte da população aceita
isso. Ou até mesmo peça isso. Daí a profunda preocupação com a educação que forme
cidadãos emancipados e com senso crítico que busquem soluções dentro de um
pensamento racional e não a alienação da liberdade a troco de um desejo inconsciente
de um pai que proverá tudo mas cobrará com mão forte pois essa escolha é o que
supostamente trará o alívio de uma neurose obtida por uma educação castradora. E a
arrogância na escolha da solução autoritária é impressionante pois como está se lidando
não no âmbito da razão mas no subconsciente os questionamentos sobre o voto são

22
Reich, Wilhelm. A função do orgasmo, tradução Maria da Glória Novak. - 9ª edição – São Paulo,
Editora brasiliense s.a, 1975. P. 119
rebatidos com insolência ou com argumentos infantis. Como bem disse Reich, a
confusão entre insolência e liberdade é desde sempre a marca do escravo.23

O que surpreende é que tal comportamento cada vez mais tem respaldo em diversas
sociedades no século XXI. Esse viés autoritário, essa característica de colocar ordem na
base da violência e das armas se faz presente como fenômeno internacional com a
eleição de líderes autoritários em diversos países, seja na América do Norte, do Sul, na
Europa e na Ásia.

Ou seja, o comportamento de massa que castra a individualidade, que impõe pautas


autoritárias e é aceito e escolhido por algumas sociedades contemporâneas sedentas de
mudanças mesmo que talvez não tão conscientes dos custos políticos a longo prazo
dessas opções. Por sinal Reich que é fortemente influenciado cita que o homem médio é
atencioso no nível superficial da personalidade e que o fascismo está no nível
intermediário do homem que por sua vez é estimulado por impulsos cruéis, sádicos,
lascivos e sanguinários e invejosos.24 Daí decorre que a democracia, com todas as suas
falhas e inconveniências, sofre riscos cada vez maiores de colapso.

“A maior parte do poder do autoritarismo é concedida voluntariamente. Em tempos


como estes, as pessoas calculam com antecedência o que um governo mais repressivo
pode querer, e muitas vezes oferecem sua adesão sem que sejam solicitadas. Um
cidadão que procede dessa maneira está ensinando ao poder o que ele pode fazer.”25

23
Reich, Wilhelm. Escute, Zé-Ninguém!/Wilhelm Reich; tradução Waldéa Barcellos. – 2ªed. – São Paulo:
Martins Fontes – selo Martins, 2007. P. 62

24
Idem. Pref. À 3ª edição.
25
Snyder, Timothy. Sobre a tirania: vinte lições tiradas do século XX para o presente/ Timothy Snider;
tradução Donaldson M Garschagen. – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2017. P. 17
Bibliografia
1. Bataille, Georges. The Psychological Structure of Fascism; tradução Carl R. Lovitt. New
German Critique, No. 16 (Winter 1979), Telos Press, Ltd. P 64-87.

2. Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol.3/ Gilles
Deleuze, Félix Guattari; tradução de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Claúdia
Leão e Suely Rolnik. – São Paulo: Editora 34, 2012 (2ª edição).

3. Dostoièvski, Fiódor. Os irmãos Karamázov; tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. –


São Paulo: Editora 34, 2013 (3ª edição).

4. Foucault, Michel. História da Sexualidade 1: A vontade de saber, tradução de Maria Thereza


da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. – 1ª ed. – São Paulo, Paz e Terra, 2014.

5. Freud, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923)/ Sigmund
Freud; tradução Paulo César de Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

6. Reich, Wilhelm. A função do orgasmo, tradução Maria da Glória Novak. - 9ª edição – São
Paulo, Editora brasiliense, 1975.

7. Reich, Wilhelm. Escute, Zé-Ninguém!/Wilhelm Reich; tradução Waldéa Barcellos. – 2ªed. –


São Paulo: Martins Fontes – selo Martins, 2007.

8. Reich, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo/ Wilhelm Reich; tradução Maria da Graça
M. Macedo; - 3ª ed. – São Paulo: Martins Fontes – selo Martins, 2001.

9. Snyder, Timothy. Sobre a tirania: vinte lições tiradas do século XX para o presente/ Timothy
Snider; tradução Donaldson M Garschagen. – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

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