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comportamento individual”
NUSP: 9828681
“Mas o homem procura sujeitar-se ao que já é irrefutável, e irrefutável a tal ponto que
de uma hora para outra todos os homens aceitam uma sujeição universal a isso. Porque
a preocupação dessas criaturas deploráveis não consiste apenas em encontrar aquilo a
que eu ou outra pessoa deve sujeitar-se, mas em encontrar algo em que todos acreditem
e a que se sujeitem, e que sejam forçosamente todos juntos. Pois essa necessidade de
convergência na sujeição é que constitui o tormento principal de cada homem
individualmente e de toda a humanidade desde o início dos tempos. Por se sujeitarem
todos juntos eles se exterminaram uns aos outros a golpes de espada. Criavam os
deuses e conclamavam uns aos outros: Deixai vossos deuses e vinde sujeitar-se aos
nossos, senão será a morte para vós e os vossos deuses!”
1
Dostoièvski, Fiódor. Os irmãos Karamázov; tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. – São Paulo:
Editora 34, 2013 (3ª edição). Página 296.
linguagem e violência de combatentes, como ocorreu na prisão de líderes de torcidas
recentemente de acordo com o relato dado pela imprensa:
“Um fato que chamou a atenção dos policiais na investigação foi a forma de
comunicação que os acusados utilizavam. "Eles se comunicam de uma maneira
paramilitar. Usam vocabulários como 'vamos montar o pelotão', 'vamos para a guerra',
'vamos para o combate', 'vamos acabar com os inimigos'. Dessa forma, fica claro que o
único objetivo deles é arrumar confusão e briga, seja com outros torcedores ou até
mesmo com a polícia", completou o delegado.2”
Arrisco a dizer que é impossível para cada um desses indivíduos no seu dia a dia não
ter contato próximo com torcedores de times rivais, seja na família, no trabalho, nas
atividades culturais ou de lazer e nessas situações a convivência ser pacífica e até
cordial com o “inimigo” da massa torcedora. O que denota o contraste entre massa e
indivíduo, pessoa e grupo. Mas o que faz com que esses sujeitos talvez cordiais na
rotina ao se agrupar busquem a violência irracional e sem motivo lógico aparente? A
partir da análise do texto de alguns autores tentarei traçar ou agrupar quais seriam as
explicações desse indivíduo que na massa pode-se tornar o mais dócil cordeiro em
momentos que é oprimido e em outras ocasiões é o mais selvagem seja no jogo de
futebol ou nas opções políticas promotoras da violência como, por exemplo, o fascismo.
A razão da escolha do fascismo como expressão dessa ideologia da violência se dá por
diversas razões, entre elas o fato do fascismo ser um movimento de massas, também por
ser o inventor do conceito do Estado totalitário embora Deleuze e Guattari assumam a
existência de estados totalitários não fascistas como o stalinista e a ditadura militar3.
Mas justamente essa característica fascista que de maneira imprescindível inclui o
totalitarismo centralizado (macropolítica) indissociável de pequenos grupos ou
focos(micropolítica), que apesar de certas diferenças nessas micro-organizações
interagem a partir de pontos fascistas em comum como o fascismo rural e o urbano, de
esquerda e de direita sendo que “cada um deles seria um pequeno buraco negro que se
comunicam entre si antes de compor o grande buraco negro central generalizado”4.
2
Presos por brigas em torcidas organizadas se unem como se fossem para a ‘guerra’. Jornal O Dia,
20/04/2019, reportagem de Fábio Perrota Jr. https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2019/04/5635856-
presos-por-brigas-em-torcidas-organizadas-se-unem-como-se-fossem-para-a--guerra.html#foto=1
3
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol.3/ Gilles Deleuze, Félix
Guattari; tradução de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Claúdia Leão e Suely Rolnik. –
São Paulo: Editora 34, 2012 (2ª edição). P. 100
4
Idem P.10
Inclusive é citado o cinema americano como um meio que rotineiramente mostrava de
maneira clara esses focos moleculares como os encontrados nos bandos, gangues, seitas,
etc.5 Dado esse aparte sobre o motivo da escolha do fascismo e sua caracterização a
abordagem agora será com base em textos de autores que analisaram a psicologia social,
conceituaram seus mecanismos e ressaltaram momentos históricos em que o
desconhecimento dela custou muito caro como a derrota da esquerda na Alemanha
frente a Hitler por exemplo.
Freud aborda que a relação ou o poder que mantém a massa coesa, ou seja, a
essência da alma coletiva é o amor. Não necessariamente o amor erótico, mas o “amor a
eles” entre os membros da massa, para que os indivíduos estejam em consonância e não
em oposição.6
5
Idem. P. 101
6
Freud, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923)/ Sigmund Freud;
tradução Paulo César de Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2011. P. 45
7
Ibid. P. 46
do fascismo8 além da obra de Reich que inclusive é de onde vem o excerto para esse
pequeno ensaio.
Bataille descreve o que ele chama de “sociedade homogênea” que seria aquela que
é regida por regras fixas baseadas na razão e identidade entre seus membros que são os
cidadãos considerados “produtivos” já que a produção é a base dessa homogeneidade
social e o dinheiro é a medida comum9(cada homem vale o que produz). Os
“improdutivos” são excluídos da parte homogênea da sociedade. Quem estabelece essas
regras são os donos dos meios de produção e o Estado, que é o detentor do monopólio
da força, atua para controlar a ordem social; ora pendendo para o autoritarismo estatal
no caso de um regime despótico, ora adaptativo no caso de um regime democrático,
todavia, é sempre usado para a contenção de dissidências. Porém não é possível a
manutenção dessa homogeneidade apenas pela violência, nesse caso há o fator
econômico e qualquer crise nessa área pode levar a dissidências na homogeneidade
social existente. E quando há crises, existem riscos já que os membros afetados podem
se aliar aos “improdutivos” também chamados de heterogêneos. Esses excluídos são
governados pelo inconsciente, tem como caracterizados a violência, os excessos e
delírios que nessa nova configuração social certos objetos de repulsa da ordem anterior
podem se tornar atrativos e o “status quo” pode ser fortemente abalado. A realidade
heterogênea é a da força ou do choque e por isso quanto maior o número de aliados à
essa realidade maior a chance de fim da ordem anterior. Em Bataille, portanto, pode-se
deduzir que a resposta para a questão sobre o motivo que leva a maioria dos esfomeados
a não roubar em muito está relacionado com a mão forte do Estado que usa da violência
para coibir qualquer atitude que fuja do pacto criado pelos donos dos meios de produção
na sociedade civil homogênea. No entanto, há a consciência que o número
de“heterogêneos”, incapazes de produzir o suficiente para comer, não pode ser enorme
devido ao risco de se criar uma cisão na sociedade daí que o Estado fará também o
movimento pendular entre adequar o seu lado violento com o de adaptação.
Reich que é o autor da questão que dá origem a essa reflexão por sua vez dá outra
resposta. Bataille e Reich concordam que o marxismo não soube explicar o fenômeno
que levou as massas a apoiar o fascismo, justamente por não compreender a psicologia
8
Bataille, Georges. The Psychological Structure of Fascism; tradução Carl R. Lovitt. New German
Critique, No. 16 (Winter 1979), Telos Press, Ltd. P 64-87.
9
Idem, P. 65
das massas como a ligação entre a formação religiosa e a sociedade política10 citado
pelo primeiro, já o segundo relaciona o marxismo a uma percepção exígua da psicologia
humana, restringindo-se a análise dos processos objetivos da economia mas não levando
em conta tanto o misticismo como a estrutura do caráter das massas durante a vitória
dos nazistas na Alemanha, num momento em que de acordo com a teoria de Marx tinha
todos os pré-requisitos na economia para uma revolução social11:
10
Idem. P. 64.
11
Reich, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo/ Wilhelm Reich; tradução Maria da Graça M.
Macedo; - 3ª ed. – São Paulo: Martins Fontes – selo Martins, 2001. P.8
12
Idem. P 6
13
Idem. P 59
14
Idem. P. 26
Essa não foi a única contribuição de Freud para o caráter das massas elencadas por
Reich e dentre as quatro descobertas citadas15 destaca-se uma que é sobre o código
moral não ter origem divina mas sua gênese surgir com a educação recebida na infância
pelos tutores da criança sejam eles pais ou representantes.16 E esse modelo educativo
diverge da sexualidade da criança. Com o choque entre o que é proibido pelos pais e os
desejos infantis surge um conflito entre o que é instintivo e o que é moral.17 Tal inibição
com fundo moral trará como consequência uma criança facilmente manipulável,
predisposta a submissão, ou seja, “boa” e “dócil”18 para aceitar tanto a fome quanto a
exploração sem se revoltar. E é interessante a conclusão como a ordem da repressão
sexual se dá por diversos agentes ao longo da vida, na tenra infância pela família e mais
tarde pela igreja, depois pelo exército, o Estado e por ai vai:
Daí a hipótese para a questão do por que a maioria tanto dos esfomeados quanto
dos oprimidos, respectivamente, não roubam ou não fazem greve e conduzem suas
atividades normalmente dentro da ordem, da tradição e da moral vigentes. O instinto
reprimido, castrado desde a infância gera cidadãos frustrados e muito contribui para a
formação de pessoas recalcadas e com viés moralista e autoritário. Esse público servil é
extremamente útil para a manutenção da ordem autoritária e que não questiona o
governo. Em outras palavras, são o público ideal para regimes que submetem seus
cidadãos aos piores tipos de humilhação e opressão. Com essa formação moral
reprimida se desenvolve o medo da liberdade, o afã em conservar um modelo repressivo
e com isso a visão reacionária de mundo. E também decorre que esse processo
repressivo da vida sexual faz com que a pessoa busque outras satisfações para substituir
15
Idem P.24
16
Idem P. 25
17
Idem P. 25
18
Idem P. 28
19
Idem P 28
essa frustração como o sadismo e a brutalidade. Daí a concepção que o fascismo é a
doutrina do homem médio, desse homem que é castrado, que imita a opinião dos líderes
para se sentir incluído e reconhecido porém de uma maneira mais tacanha, autoritária,
invejosa e amarga do mundo. Onde a castração pela qual passou, todos devem passar.
Todos devem ser condenados a essa opressão que no limite o faz aceitar ser esfomeado
ou oprimido já que a fome não é o instinto vital que dá origem à revolta. O papel da
psicanálise e da sexualidade no desenvolvimento da característica autoritária também é
citado por Foucault anos mais tarde em sua obra “História da Sexualidade 1 – a vontade
de saber”:
“É uma honra política para a psicanálise – ou pelo menos para o que pôde haver nela de
mais coerente – ter suspeitado (e isso desde o seu nascimento, ou seja, a partir de sua
linha de ruptura com a neuropsiquiatria da degenerescência) do que poderia haver de
irreparavelmente proliferante nesses mecanismos de poder que pretendiam controlar e
gerir o cotidiano da sexualidade: daí o esforço freudiano(sem dúvida por reação ao
grande crescimento do racismo que lhe foi contemporâneo) para dar à sexualidade a lei
como princípio – a lei da aliança, da consanguinidade interdita, do Pai-Soberano, em
suma, para reunir em torno do desejo toda a antiga ordem do poder. A isso a psicanálise
deve o fato de ter estado – com algumas exceções e no essencial – em oposição teórica e
prática ao fascismo.”20
Portanto a explicação reichiana para essa submissão a uma situação humilhante está
relacionada a uma educação castradora, que na vida adulta gerará pessoas reprimidas
em diversos aspectos e inclusive em seus ímpetos de contestação. A sexualidade
reprimida gera o cidadão apático, sem consciência de sua classe e das necessárias
reivindicações de melhorias que muitas vezes para se concretizar precisam de atitudes
mais firmes seja ela a greve ou protestos, porém com ímpetos de sadismo e crueldade.
Mas como bem mencionou Foucault fazendo uma correlação entre o poder e a
sexualidade, no qual o poder tal como o pai repressor21 ou do príncipe que elabora a lei
do outro lado haverá o sujeito que se sujeita mesmo que ao preço da fome ou da
exploração. A lógica da censura ao sexo, afirmando que não é permitindo, tolhendo ao
longo do prazo faz um cabresto moral no qual o cidadão adulto se torna esse ser que
20
Foucault, Michel. História da Sexualidade 1: A vontade de saber, tradução de Maria Thereza da Costa
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. – 1ª ed. – São Paulo, Paz e Terra, 2014. P. 163
21
Idem. P. 93.
aceita ser reprimido mas ao mesmo tempo tem uma familiaridade e até apoia o regime
autoritário.
“Uma das suas características mais essenciais veio a ser essa de sentir-se felicíssimo em
atirar a sua responsabilidade de si mesmo para cima de algum führer ou político —, pois
não se compreende mais e, na verdade, teme a si mesmo e às suas instituições. Está
desamparado, é incapaz para a liberdade e suspira pela autoridade porque não pode
reagir espontaneamente; está encouraçado e quer que se lhe diga o que deve fazer, pois
é cheio de contradições e não pode confiar em si mesmo.”22
Essa característica infantil, imediatista e pouco reflexiva favorece a opção por regimes
autoritários. O estado com mão forte e agressivo que não apenas pune, mas, demonstra
uma violência em suas ações como um pai que esmurra a mesa, ou que manda calar a
boca sem ouvir. O estranho é a facilidade com que grande parte da população aceita
isso. Ou até mesmo peça isso. Daí a profunda preocupação com a educação que forme
cidadãos emancipados e com senso crítico que busquem soluções dentro de um
pensamento racional e não a alienação da liberdade a troco de um desejo inconsciente
de um pai que proverá tudo mas cobrará com mão forte pois essa escolha é o que
supostamente trará o alívio de uma neurose obtida por uma educação castradora. E a
arrogância na escolha da solução autoritária é impressionante pois como está se lidando
não no âmbito da razão mas no subconsciente os questionamentos sobre o voto são
22
Reich, Wilhelm. A função do orgasmo, tradução Maria da Glória Novak. - 9ª edição – São Paulo,
Editora brasiliense s.a, 1975. P. 119
rebatidos com insolência ou com argumentos infantis. Como bem disse Reich, a
confusão entre insolência e liberdade é desde sempre a marca do escravo.23
O que surpreende é que tal comportamento cada vez mais tem respaldo em diversas
sociedades no século XXI. Esse viés autoritário, essa característica de colocar ordem na
base da violência e das armas se faz presente como fenômeno internacional com a
eleição de líderes autoritários em diversos países, seja na América do Norte, do Sul, na
Europa e na Ásia.
23
Reich, Wilhelm. Escute, Zé-Ninguém!/Wilhelm Reich; tradução Waldéa Barcellos. – 2ªed. – São Paulo:
Martins Fontes – selo Martins, 2007. P. 62
24
Idem. Pref. À 3ª edição.
25
Snyder, Timothy. Sobre a tirania: vinte lições tiradas do século XX para o presente/ Timothy Snider;
tradução Donaldson M Garschagen. – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2017. P. 17
Bibliografia
1. Bataille, Georges. The Psychological Structure of Fascism; tradução Carl R. Lovitt. New
German Critique, No. 16 (Winter 1979), Telos Press, Ltd. P 64-87.
2. Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol.3/ Gilles
Deleuze, Félix Guattari; tradução de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Claúdia
Leão e Suely Rolnik. – São Paulo: Editora 34, 2012 (2ª edição).
5. Freud, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923)/ Sigmund
Freud; tradução Paulo César de Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
6. Reich, Wilhelm. A função do orgasmo, tradução Maria da Glória Novak. - 9ª edição – São
Paulo, Editora brasiliense, 1975.
8. Reich, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo/ Wilhelm Reich; tradução Maria da Graça
M. Macedo; - 3ª ed. – São Paulo: Martins Fontes – selo Martins, 2001.
9. Snyder, Timothy. Sobre a tirania: vinte lições tiradas do século XX para o presente/ Timothy
Snider; tradução Donaldson M Garschagen. – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2017.