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28/08/2019 A ‘solução’ para a epidemia de overdose nos EUA: deixar os viciados morrerem | Internacional | EL PAÍS Brasil

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A ‘solução’ para a epidemia de overdose


nos EUA: deixar os viciados morrerem
Overdoses de opiáceos disparam nos EUA e há quem prefira que o viciado
perca a vida a atendê-lo

Agente sanitário atende mulher com overdose em Warren (Ohio). SPENCER PLATT (GETTY IMAGES)

JAN MARTÍNEZ AHRENS

Ohio - 24 JUL 2017 - 15:05 BRT

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John Wayne. Muhammad Ali. Ronald Reagan. Donald Trump. O xerife
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Richard K. Jones vive à sombra de seus ídolos. Sentado em seu
‘Morte Cinza’, o
novo coquetel
escritório, os acaricia com o olhar. Aí estão seus retratos, junto a duas
de opiáceos que bandeiras norte-americanas e uma metralhadora Madsen Ligera de

se alastra pelos 1946. Alcance de 2.800 jardas [cerca de 2,5 metros]; 600 balas por
Estados Unidos
minuto. “Isso mata tanto quanto a heroína”, diz Jones. O xerife é
A epidemia que
encarregado de velar pela segurança no condado de Butler, Ohio.
matou quase Encravado no Meio Oeste dos Estados Unidos, a circunscrição tem
meio milhão de
apenas 376.000 habitantes, mas registrou no ano passado 210
americanos
brancos mortes por overdose, quase a metade da registrada na Espanha, com
uma população 120 vezes maior. É a epidemia. A devastadora onda de
Nova York opiáceos que em 2016 matou nos EUA mais pessoas do que toda a
procura solução
para conter
guerra do Vietnã e que no pequeno condado levou alguns de seus
overdoses de mais notáveis cidadãos a propor uma solução tão insólita quanto
heroína simples: deixar os viciados morrer.

A proposta vem das ruínas do sonho americano. No antigo cinturão


industrial, as grandes fábricas fecharam suas portas e a maioria
branca que antes via o universo a seus pés ficou presa em uma
Ex-viciada
publica fotos de lembrança que já não existe. O trabalho seguro, a casinha de madeira,
seu pior o gramado cortado milimetricamente deram lugar ao medo. Há
momento: “A
heroína desemprego e salários cada vez mais baixos. “As pessoas querem
destruiu minha soluções e trabalho. Estão cheias dos partidos”, explica Jones.
vida”

O xerife, 1,95m de altura e bigode de viking, é do tipo solucionador de


problemas. Pouco dado à divagação, usa duas pistolas no cinto e tem uma resposta
sempre pronta.

— Cartéis de droga?

— Teria que lançar sobre eles a mãe de todas as bombas.

— Muro com o México?

— Perfeito para frear a heroína.

— Atenção às vítimas de overdose?


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— Isso não é trabalho da polícia.

— Mas a vida...

— A vida não tem preço, certo, por isso


quero que meus policiais voltem toda
noite para casa com vida.

Há duas semanas, o xerife vive no olho


do furacão. Decidiu que seus agentes
não carregam nem administram Narcan,
um antídoto à heroína que reverte de
modo fulminante a overdose. Este
tratamento, com custo de 40 dólares,
representa a salvação diária de milhares
de toxicômanos. E em um país em que
os opiáceos geraram no ano passado 1,3
milhão de atendimentos hospitalares,
tornou-se crucial. É usado por
O xerife Jones em sua delegacia. socorristas, bombeiros e, claro, policiais.
Em 38 Estados, seu uso é obrigatório.
Mas não no condado de Butler.
Exatamente um dos lugares em que mais morrem viciados nos EUA.

75% dos viciados em heroína começaram com opiáceos para dor,


revela uma pesquisa

“Não ataca a raiz do problema: apenas prolonga. Só do início do ano até hoje foram
registradas 200 mortes. Temos casos de viciados que em um mês sofreram até 20
overdoses. Não sou eu quem decide, são eles que colocam a agulha no braço. Nosso
trabalho é prevenir o crime, não oferecer primeiros socorros”, opina o xerife.

Suas palavras desataram uma tempestade nacional. Organizações humanitárias e


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médicas o condenaram. As autoridades lhe deram as costas e até o procurador do


condado o censurou. Mas não lhe faltam defensores. Alguns inclusive vão mais longe.

Daniel Picard é republicano, católico e membro de destaque da sociedade civil de


Middletown (50.000 habitantes), no condado de Butler. Como conselheiro, propôs
uma fórmula para resolver o problema. À terceira emergência por overdose, caso não
tenha pago com dinheiro ou trabalhos sociais as intervenções anteriores, o viciado não
é atendido. Claro e simples: se não tem dinheiro, morre.

Sentado em seu escritório de advocacia,


Picard tenta explicar com números sua
iniciativa. “As overdoses aumentam sem
parar. Em 2016 tivemos 526 casos e 72
mortos, e apenas no primeiro trimestre
deste ano foram 596 casos e 54 mortes.
Muitos não são deste lugar ou suas
famílias não querem saber deles, por
isso a prefeitura tem de se encarregar de
tudo. Cada atuação por overdose nos
custa 1.104 dólares (3.450 reais), e cada
cremação, 700 (cerca de 2.187,50
reais). É um gasto absurdo e é preciso
tomar decisões. Sinto muito, mas
alguém precisa pensar nisso”, afirma,
certo de ter convencido seu interlocutor.

O vereador de Middletown Daniel Picard. — E não sente piedade dos que morrem?

— Se prestam serviços ou pagam, são


atendidos. Tudo depende deles.

Eles. Os outros. Os viciados. Sarah é uma delas. Acaba de entrar na sala. Chega
algemada e com o uniforme de listras verdes e brancas dos presos do condado de
Butler. Tem 27 anos. Nasceu em Hamilton e nunca saiu de Ohio. Nem para ver o mar. É
toxicômana desde os 13 anos. Esse é seu mundo. Seu pai morreu alcoolizado e sua
mãe, depois de anos de analgésicos, faleceu de overdose de heroína batizada com
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fentanil (um poderoso analgésico).

Sarah foi presa por violar a liberdade condicional. Antes roubou e “fez o que tinha de
fazer” por um pico. Passou tantas vezes pelo fio da navalha que se esqueceu de
quantas vezes foi salva. “Houve um mês em que sofri 18 overdoses. Sem o Narcan
estaria morta, bem morta. Uma noite tiveram que me dar quatro para que eu me
recuperasse”, conta.

Sarah não entende bem a discussão. Para ela, salvar a vida é uma obrigação —“é
assim, não?”— e o Narcan é a única forma de fazer isso. “Se tirarem morremos,
simples assim”. Intrigada com as propostas do conselheiro Picard e do xerife Jones,
arregala seus olhos negros e, em todo o caso, pede uma chance. Afirma que está limpa
há oito meses e que tem certeza de que pode levar uma vida normal. Se perguntam o
que quer ser, não sabe responder. E, quando insistem, explica: “Para mim, basta
sobreviver”.

Sarah vive no limite. Como tantos outros afetados, não tem consciência de que seu
caso se repete país afora. Só no ano passado cerca de 60.000 pessoas perderam a
vida na epidemia. Foi a principal causa de mortalidade em menores de 50 anos. Mais
do que o câncer, as armas ou os acidentes de carro. Cerca de 35.000 dessas mortes se
deveram ao consumo de heroína sozinha ou adulterada. O restante corresponde em
sua maior parte ao abuso de opiáceos com receita médica. Uma praga legal que
começou a se generalizar nos anos noventa e que agora, depois de décadas de ótimo
negócio, extrapolou os diques de contenção. Em 15 anos, segundo o Centro de
Prevenção e Controle de Doenças, as receitas de opiáceos contra a dor triplicaram e
cerca de dois milhões de viciados pululam pelo país. Como demonstrou um estudo do
JAMA Psychiatry, 75% dos viciados em heroína começaram com esses analgésicos.
Foram sua porta de entrada para um mercado no qual os cartéis mexicanos não
deixaram de melhorar suas redes de produção, síntese e distribuição. A equação é
infernal. O material é mais puro, os preços caíram e os consumidores só aumentam.
Sob estas condições, a epidemia saiu do controle.

A reação chegou tarde e, até o momento, nada foi conseguido. O Congresso aprovou
um plano de 1,1 bilhão de dólares, e os Estados buscam cada um sua saída. Em
Maryland, declarou-se estado de emergência, e em Ohio o procurador-geral acionou os
cinco maiores fabricantes por estimular o vício. São paliativos para uma crise que,
como reconhecem os especialistas, exige uma ação muito mais poderosa e conjunta.
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“Ou estamos todos nisso, ou não há o que fazer”, admite o indômito xerife Jones.

Nas ruas também não se vê uma solução de curto prazo. As mortes continuam
aumentando e os afetados permanecem abandonados por um sistema de saúde que
não existe para 28 milhões de norte-
americanos. “Neste país, se você cai,
ninguém te ajuda. Querem você morto.
Por isso pretendem tirar o Narcan”,
afirma Errol Monroe, de 57 anos. É um
homem mais velho. Olhos azuis, gestos
secos. Em sua juventude foi mecânico,
mas uma lesão nas costas o incapacitou.
Para mitigar a dor, lhe receitaram
comprimidos. Durante catorze anos
tomou opiáceos legais até que um dia
descobriu a heroína. Mais barata, mais
potente. Vinte dólares por um pedacinho
do céu. E aí se afundou.

Errol buscou abrigo em um refúgio para


sem-tetos em Hamilton. Tem um café na
mão e poucas esperanças para si Errol Monroe.
mesmo. Mas sua vida, conta, não
acabou. Se ainda luta para abandonar a
heroína, é por sua filha. Ela também vive em Hamilton. Tem 19 anos, e algumas noites,
quando Errol se arrasta cambaleando, a encontra. De pé, em uma esquina. Ela também
é viciada em heroína. E se prostitui. Errol sonha em salvá-la. Só por isso quer viver.

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CRACOLÂNDIA

Doria planeja reformar e modernizar região da cracolândia:


continuarão nela seus moradores?

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CRACOLÂNDIA

Este é meu nome, minha casa é a cracolândia e eis os meus medos

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