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i s edição
Organizadores:
C tC N P q
Contorno Uacional üa Detcnvoivlm entc
francisco Meneses
Ghisleine Duque
Científico o Tecnológico Ivoldo Gehlen
Jalcione Almeida
ffiegdo Zononi
ISBN 1 7 » - 6 S - 7 3 B S - a i B - N Mono de Ooxoreth B. tUanderley
Mario Heleaa R. Antunia//i
Acordo Maria flilxo R. Cirne
CAPES/COFECUB Maristela limões de Cerme
Osmar de Carvalho Bwene
9N788573HJ52139 Raberte José Moreira
------------------U FP R leaio ffl. P. Bergomosco
© A ngela D uakte D amasceno F erreira & A lfio B randenburg
C apa
G lauco P essôa S alamunes
R evisão
P atrícia D omingues R ibas e
G islaine do R ocio S iqueira F arenhuk
C oordenação de P rocessos T écnicos. S istema de B ibliotecas. U F P R . [...] Mas o modelo de desenvolvimento único, se existe, só pode se
constituir num projeto social, utópico e ideológico. Isto não quer dizer que
Para pensar: outra agricultura / Organizadores: Angela Duarte Damasceno Ferreira,
seja destituído de eficácia; ao contrário, sobretudo quando aparece como
Alfio Brandenburg.- -
símbolo de identidade e instrumento de poder para a minoria dirigente.
[Curitiba]: Editora UFPR, [1998].
288p. (Pesquisa; n.138) N a verdade, mesmo se remodelada por uma ação coletiva, a diversidade
Inclui bibliografia. permanece. Assim, o principal objetivo da reflexão que levou a esta obra
Dados sobre os autores. é de reabilitar esta diversidade oculta porque ela permanece com o um
R ef. 5 1 3 agricultura.
D ir e it o s desta e d iç ã o reservados à
Introdução
Por outro lado, para além da contribuição intelectual, in tração e apropriação do trabalho alheio, da mais-valia. A fonte do
teressa-me a dimensão política da obra de Chayanov. Com efeito, trabalho que aciona o capital envolvido no seu processo de produ
Chayanov não pretendia simplesmente conhecer a realidade da ção é o próprio proprietário dos meios de produção.
agricultura russa nem apenas lutar para reproduzida como tal, isto
é, com suas características tradicionais. O que o motivava era, a Na econom ia agrícola fam iliar, a fam ília, equipada co m m eio s de
meu ver, antes de tudo, a explicitação das potencialidades do cam produ ção, em prega sua força d e tra b a lh o no cu ltivo da terra , c
recebe com o resultado dc um ano de trabalho certa quantidade de
pesinato russo. bens. U m a sim ples observação d c estru tu ra in te rn a d a unidade dc
Minha convicção é de que sua concepção sobre a produ trabalh o fam iliar c su ficien te p ara com preender que é im possível,
sem a categ oria salários, im por a esta estru tu ra o lu cro líqu ido, a
ção familiar na agricultura guarda, sob vários aspectos, uma atuali
renda e o ju ro do cap ital, com o categ orias eco n ô m icas reais, no
dade surpreendente, e por essa razão precisa ser resgatada. É o que sentido capitalista da palavra.2
tentarei ousadamente demonstrar neste texto.
Com esse objetivo, proponho dividir minhas reflexões A ausência da mais-valia, como motor do processo pro
em três níveis que correspondem aos momentos fundamentais da dutivo, imprime na unidade familiar de produção um caráter espe
trajetória intelectual e política de Chayanov: cífico, que foi percebido e formulado por Chayanov.3 Para ele, o
a) a formulação de uma teoria explicativa do modo de produtor familiar é fundamentalmente um proprietário que traba
funcionamento das unidades familiares de produção na agricultu lha. Na verdade, quem trabalha é o agricultor e sua família, e é
ra; familiar a propriedade do estabelecimento.
b) o esforço para compreender o campesinato em seu Desse fato resulta a tradicional identificação entre famí
contexto mais global da sociedade capitalista moderna; lia e empresa que se expressa em dois níveis. Por um lado, no que
c) o confronto com o projeto de coletivização estalinista se refere à relação com o trabalho, o produtor familiar tem, em
e a formulação de um projeto alternativo. relação ao esforço físico e mental exigido pelo trabalho, um com
portamento diferente do empresário capitalista, pois o esforço em
questão deve ser realizado por ele mesmo, com o desgaste de suas
Os princípios de funcionamento da organização familiar
próprias capacidades físicas e mentais. O capitalista pode guardar
na agricultura
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MARIA DE NAZARETH BAUDEL WANDERLEY PARA PENSAR OUTRA AGRICULTURA
uma maior distância em relação ao trabalho, pois este é sempre o Para Chayanov, a relação entre o trabalho e o consumo é
esforço de outros. definida intemamente na própria composição da família. Com efei
Por outro lado, sendo um proprietário que trabalha, o to, para ele, a família camponesa nunca é igual ao longo de sua
produtor familiar depende, para sua reprodução social, da preser existência: começa com um casal que, em geral, trabalha; amplia-
vação - e mesmo da ampliação - do seu patrimônio produtivo, se com crianças pequenas, que consomem mas não trabalham; ao
aqui tomado como o conjunto dos meios necessários à produção. crescer, os filhos vão progressivamente participando da atividade
Isso quer dizer que cabe a ele assegurar os recursos necessários produtiva, até o momento da saída de cada um para constituir uma
para uma reprodução patrimonial. nova família/empresa. O casal se reencontra no final, mas com uma
Em consequência desse caráter específico da produção capacidade de trabalho bem mais reduzida.
familiar, o rendimento obtido no processo produtivo não pode ser Chayanov considerava que, para o caso da Rússia, essa
dissociado em parcelas autônomas e particulares, como no caso do diferenciação demográfica era mais significativa do que a diferenciação
processo produtivo capitalista. Com efeito, neste último, em razão social, entendida esta como o processo de decomposição do campe
da separação entre o capital e o trabalho, é possível distinguir não sinato.
só o salário como as diversas parcelas em que se divide a mais-valia
e, como se sabe, cada uma delas constitui a base material de uma Não há dúvida de que certa diferenciação deste tip o se produz
realmente nocampo.porcm, uma análise mais profunda dacomposição
classe da sociedade. Na unidade familiar de produção, pelo contrá
da unidade econômica camponesa demonstra que a hetcrogencidadc
rio, o resultado da produção constitui um rendimento indivisível, do não pode ser explicada apenas pela diferenciação sociaL Ela depende
qual é impossível separar o que foi gerado pelo trabalho, pelo in não só d o desenvolvim ento dinâm ico, m as tam bém , c dc form a
considerável, do efeito dos fatores dem ográficos que resultam da
vestimento do capital ou como renda da terra. natureza da unidade econôm ica cam ponesa (p. 2 9 0 ).
É com esse rendimento indivisível que o produtor deve
rá prover, ao mesmo tempo, a empresa familiar dos recursos pro
Em cada momento da evolução da família, sua composi
dutivos que necessita, e a própria família do fundo de consumo
ção determina a capacidade da força de trabalho disponível e a mag
necessário à sua manutenção.
nitude de suas necessidades de consumo. Cabe ao chefe da família/
Muito freqüentemente, a dimensão reduzida desses ren
empresa a responsabilidade de efetuar avaliações subjetivas que per
dimentos, associada à vinculação entre capital e trabalho na unida
mitam definir o grau e a intensidade da auto-exploração de sua
de familiar acima indicada, leva o produtor a procurar opções e a
força de trabalho.
definir estratégias, cuja lógica Chayanov desvendou em suas pes
Chayanov pretendeu conhecer as leis que regem o funcio
quisas.
namento interno da unidade de produção familiar e sua teoria é o
O produtor efetua o que ele chama de balanço entre o traba
resultado elaborado dessa preocupação.
lho e o consumo, isto é, entre o esforço exigido para a realização do
O material empírico de referência da Escola de Organi
trabalho e o grau de satisfação das necessidades da família.
zação e Produção constituiu-se, fundamentalmente, das condi
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PARA PENSAR OUTRA AGRICULTURA
MARIA DE NAZARETH BAUDEL WANDERLEY
do novas questões gestadas no bojo da grande efervescência social bre a produção camponesa.
e política que caracterizou o período de sua vida na Rússia.
N òs que estam os interessad as na prática da agricultura devem os
A esse respeito, sua reflexão vai se concentrar, sobretudo
co n stru ir suas form as futuras a p a rtir d as form as existen tes de
a partir da década de 1920, em torno de três questões essenciais, exploração ag ricok portanto, na prática, interessa- nos realizar o estudo
intimamente articuladas: mais profundo so brea unidade econôm ica cam ponesa (p .4 0 ).
As ligaduras sociais: subordinação e progresso técnico Nessa segunda parte do texto, ínteressa-nos perceber
qual a visão de Chayanov sobre os referidos “fatores dados”, isto é,
Como o próprio Chayanov afirma em seu estudo A orga sobre o que chamou “as ligaduras sociais” entre a produção agríco
nização da unidade econômica camponesa, la dispersa em milhares de unidades familiares e o processo geral
de reprodução econômica. A esse respeito, sua tese central e de que
Sim p lesm en te, aspiram os a co m p reen d er o que é a unidade “[...] a agricultura de todo o mundo, incluindo a nossa, está condu
econôm ica cam ponesa do p onto de vista organizativo. Q ual é a
zida cada vez mais para a circulação geral da economia mundial, e
m orfologia d este aparato produtivo? In teressa-n os sab er com o se
ob tém aqui a natu reza proporcional das partes, com o se ob tém o os centros do capitalismo a subordinam cada vez mais à sua lide
equ ilíbrio orgânico, quais são os m ecanism os da circu lação e da
rança” (p. 305).
recuperação do capital no sentido da economia privada, quais são os
m étodos para determ inar o grau de satisfação e de proveito, e com o
Com base em suas próprias pesquisas, mas também re
reage às influências dos fatores externos, naturais e econôm icos que ferindo-se à obra de Hilferding, de Lenine e de outros autores rus
aceitam os com o dados (p. 36) (grifos m eus).
sos, Chayanov considera que o processo de concentração econômica
tem, na agricultura, certas particularidades.
Isso não quer dizer, no entanto, que para ele, como para
seus colegas pesquisadores da Escola de Organização e Produção,
[...] enquanto no sentido produtivo a co n ce n tra çã o na agricultura se
esse nível de análise fosse suficiente e desse conta de toda a proble reflete escassam ente na form ação de novas em presas em grande
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PARAPENSAROUTRA AGRICULTURA
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Mais uma vez a questão assume um caráter complexo em nosso campo nos encontrarem os com o desenvolvimento de uma
nova psicologia econômica, e esperamos que a evolução da agricultura,
que uma leitura unidirecional pode empobrecer. A produção fami em muitos aspectos, vá modificando as bases da unidade de produção fam iliar
liar precisava ser transformada, potencializada, sem que as forças que estabelecemos em nosso estudo atual unidade econômica camponesa (p. 320)
(grifos meus).
sociais a que ela serve de base fossem destruídas. Seria preciso
construir as novas formas de agricultura a partir das bases evoluti
vas da unidade de produção familiar. Infelízmente, as vicissitudes da vida política russa impe
diram que esse projeto tomasse a dimensão e a direção anunciadas.
[...] os elem entos do ca p ital so cial e da econom ia so cial crescem Cinqüenta anos passados, no entanto, é a atualidade desse projeto
q u a n tita tiv a m e n te em ta l m edida que to d o o sistem a m uda que mantém o interesse no conhecimento da contribuição de
qualitativam ente. O sistem a de unidades econôm icas cam ponesas
Chayanov, pois o desafio que hoje se coloca aos pesquisadores
que form aram cooperativas para alguns setores de sua econom ia
co n v e rte -se em um sistem a de eco n o m ia co o p era tiv a so cial rurais tem a mesma natureza daquele que ele e a Escola de Organi
estab elecid o sobre o cap ital socializado, e a realização técn ica de zação e Produção estavam enfrentando naquela ocasião.
certos processos nas unidades individuais de seus membros assume
o ca ráter de um serviço técn ico (p. 319).
Evidentemente, eu não teria condições de dar conta des
sa problemática. Gostaria, no entanto, de propor algumas hipóte
ses que vêm norteando o trabalho que tento desenvolver nessa
É certamente movido pela necessidade de situar e com
direção.
preender a produção familiar nesse contexto social mais amplo
que Chayanov se propõe a repensar suas primeiras formulações a
respeito da unidade familiar de produção.
A produção familiar moderna
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têm sem pre com o referen cial em pírico as unidades de produção existir nas sociedades modernas unidades de produção cuja força
pequenas, tecnicam ente atrasadas e cu ja organização in tern a tem
de trabalho fundamental é fornecida pela família proprietária. E
com o eixo a satisfação das necessid ades da fam ília que produz.
Produção fam iliar é, nesta perspectiva, sinônim o de cam pesinato isso mesmo quando a produção familiar se moderniza e se integra
tradicional.s ao processo global de acumulação do capital na sociedade. Em
segundo lugar, o reconhecimento de um processo mais amplo e
À medida, porém, que a produção familiar se moderniza determinante de subordinação da produção agrícola ao “movimento
- e por conseqüência se integra aos processos de mercantilização do capital” não é incompatível com o reconhecimento da existên
da produção, de especialização das atividades e de modernização cia de um movimento interno da unidade de produção familiar,
do processo produtivo - , observa-se uma tendência a privilegiar cujo eixo é dado pelo seu caráter familiar e que tem como objetivo
esse movimento de subordinação e negar validade às pesquisas preservar uma margem de autonomia da família proprietária que
que reconheçam a importância de um movimento interno à unida trabalha.
de de produção familiar. Em termos mais gerais, é possível afirmar que, ao longo
Essa tendência se explicita em duas direções. Ora a pro desse período em que a agricultura sofreu um profundo processo
dução familiar é percebida como um mero apêndice, passivo, dos de transformação, a produção familiar permaneceu como um setor
ditames do capital, e o trabalhador familiar é comparado a um traba importante da agricultura, inclusive em países de capitalismo avan
lhador em domicílio, portanto, sem nenhuma autonomia. Ora ela é çado.
definida como a expressão do pequeno capital que, embora peque
no, guarda a natureza do capital; o caráter familiar do trabalho é en [„.] o caráter essencialm ente familiar d esta econom ia co ntin u a por
m u ito tem p o a se d esenvolver, a te m esm o a sc m o d ern iz a r,
tendido apenas como resposta adaptativa a certos condicionamentos paralelam ence ao aprofundam ento de seu ca rá te r m ercan til e à
técnicos. Num caso como no outro, a especificidade da produção redução da própria familiacamponcsaque, da antiga família extensa,
passa cada vez m ais â m oderna fam ília “nuclear”, conjugal.0
familiar é minimizada e a referência a esferas internas, nas quais se
desenvolve a autonomia familiar, perde qualquer interesse explica
tivo. Mais enfaticamente, Claude Servolin, referindo-se à agri
A meu ver, nenhuma das duas explicações permite com cultura dos países da Europa Ocidental, não hesita em afirmar
preender o produtor familiar moderno em sua totalidade. A esse que:
respeito é possível formular duas hipóteses complementares. Em
primeiro lugar, a questão do caráter familiar da unidade de produ [... J a particularidade do se to r agrícola se exprim e, pelo m enos no
qu e se re fe re à F ra n ç a e á E u ro p a O c id e n ta l [ _ ] em um a
ção continua a se colocar na atualidade, uma vez que continuam a8*
característica fundam entai a form a quase exclusiva da produção é
o estab elecim en to “fam iliar”, “individual” (de respon sabilidad e
pessoal, segundo a últim a term inologia oficial). [...] o conjun to dos
estabelecim entos agrícolas individuais co n stitu i, com o vimos, um
8 WANDERLEY, Maria de Nazarech Baudel Trajetória social e projeto de
autonomia: os produtores familiares de algodão na região de Campinas, São Paulo Cadernos
do IFCH, Campinas, n. 19,p 139,1988 9 TEPICHT, op.rit.,p 23
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d os p rin c ip a is ram os da p ro d u ção n acio n al: a e ste n ível de natureza indivisível da remuneração familiar, a possibilidade de
importância econômica, estam os acostumados a ver intervir a grande
efetuar avaliações subjetivas e de definir o grau de “auto-explora-
em presa capitalista.101
ção” de sua própria força de trabalho.
A esse respeito, é possível propor algumas primeiras hi
No entanto, a produção familiar que se reproduz nas so
póteses de pesquisa:
ciedades modernas representa um novo agente social, diferente do
a) as unidades de produção familiar são afetadas, a
campesinato tradicional de origem pré-capitalista. Como afirma
mente, tanto pelo processo de decomposição quanto pelo processo
Claude Servolin,
de diferenciação interna, demográfica.
[...] apredom inân cia m uito geral da produção agrícola individual
Se a constituição de uma burguesia rural de origem cam
nos países capitalistas desenvolvidos, e em particular os da Europa
O cid ental, não deve nos enganar: esta predom inância í recente. E sta ponesa constitui um processo raro e excepcional, as estatísticas de
constatação deve nos obrigar a renunciar à ‘teoria da sobrevivência”. todos os países são unânimes em apontar o fenômeno do êxodo
Se a produção individual m oderna tem sua origem em um passado
longínquo, sua generalização eseu desenvolvimento no curso da história
rural, que expressa, na maioria dos casos, o abandono da condição
contem porânea só podem ser compreendidos se admite que nossas de pequeno produtor rumo a uma proletarízação, freqüentemente
sociedades, de um a certa form a, preferiram esta a ou tras form as
definitiva e vivida nas cidades. Nesse sentido, o campesinato con
possíveis de p rodu ção.u
tinua a representar um ‘Viveiro de proletários”, tanto mais amplo
quanto a modernização da agricultura impõe uma redução absolu
Essa agricultura moderna tem, a esse respeito, uma du
ta da população ativa desse setor.
pla característica: sua integração, sob formas diversas, aos meca
Apesar do movimento nessa direção, a economia familiar
nismos de mercado e aos processos de reprodução do capital, e a
que se reproduz nas condições modernas da produção agrícola tem
“abertura” do mundo rural ao modo de vida moderno.
como base não um conjunto de produtores pauperizados, em vias de
O entendimento da problemática da produçãofamiliar mo
proletarízação, mas amplas “camadas médias de agricultores. Essas
derna deve, por conseguinte, levar em conta sua complexidade. Por
camadas não são, certamente, homogêneas, mas a diferenciação que
um lado, pela sua própria existência, ela legitima a permanência de
se pode observar não implica, necessariamente, sua decomposição.
uma esfera específica, interna, referente à forma de organizar a pro
É nesse sentido que assume particular importância a reflexão de
dução, cujo funcionamento tem como referência a própria estrutu
Chayanov sobre o processo de diferenciação interna, cuja base é a
ra familiar da unidade de produção. Por outro lado, os fatores que
evolução na composição da família.
regem o funcionamento interno da unidade familiar de produção
b) a unidade de produção é familiar, mas a família
assumem novos conteúdos.
mente é diferente daquela estrutura que a caracterizava tradicio
Assim, a questão que se coloca é como se redefinem,
nalmente.
nesse novo contexto, a relação tradicional trabalho/consumo, a
Com efeito, embora a produção permaneça familiar, tan
10SERVOLIN, Claude. L’agriculcure modeme. Poinrs Economie, Paris, Seuil, p. to as transformações tecnológicas quanto as mudanças de com
19,1989 portamento nas sociedades modernas afetaram a composição
11SERVOLIN, op.cit.,p. 27.
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MARIA DE NAZARETH BAUDEL WANDERLEY PARA PENSAR OUTRAAGR1CULTURA
interna da família. Não só as famílias são atualmente mais reduzí' O exemplo mais evidente desse fato é a determinação do
das, como é menor a necessidade de envolver todos os membros no padrão tecnológico a ser utilizado na produção. Ou o produtor tem
processo de trabalho do estabelecimento familiar. condições de acompanhar o patamar já generalizado, ou ele corre o
Aquilo que Jerzy Tepicht chamou de “forças marginais risco, mais que os outros, de “dar de graça” à sociedade parte im
não transferíveis” foram sendo progressivamente transferidas para portante de seu trabalho produtivo e, no limite, se tornar inviável
outros setores da economia sob o efeito da expansão do processo técnica e economicamente.
de industrialização/urbanização, ou simplesmente dispensadas do Isso não impede, no entanto, que a família avalie em
trabalho nos estabelecimentos agrícolas em razão das mudanças termos subjetivos o grau de auto-exploração que lhe parece aceítá'
técnicas introduzidas no processo de produção. Em países avança' vel, em face dos resultados que pode obter com o seu trabalho.
dos, a tendência atual parece ser, no limite, a multiplicação de esta' Evídentemente, a própria idéia de “auto-exploração” as
belecímentos, em que a produção necessita da força de trabalho de sume hoje nova significação. Como vimos, as novas condições da
apenas um indivíduo da família. produção tornam o trabalho menos penoso e este, conseqüente-
c) a família se orienta em função do balanço entre traba mente, exige menos sacrifício físico daquele que o realiza. Mas
lho e consumo, cujos parâmetros modernos são, evidentemente, essas condições não eliminam a necessidade desses sacrifícios, em
diferentes dos tradicionais. Com efeito, a tecnologia moderna in certos momentos de pique da atividade produtiva. Além disso, a
troduzida potencializa a força produtiva do trabalho familiar e re' penosidade deixa freqüentemente de ser de natureza propriamen
duz o esforço físico (penosidade) requerido em seu exercício. te física. Com efeito, não é raro que a responsabilidade na condu
Ao mesmo tempo, o consumo é redefinido. Por um lado, ção de uma empresa familiar provoque estados de tensão psíquica,
em sua própria composição. Participando plenamente da socieda' resultantes seja do impacto de fatores sobre os quais o produtor
de moderna, o agricultor aspira ao acesso a todos os bens social' não tem controle - o endividamento, por exemplo - , seja pela
mente disponíveis. Não se trata, assim, de garantir a reprodução dificuldade de se ausentar do estabelecimento em razão da própria
social à base do mínimo vital, mas do direito a um modo de vida natureza do trabalho agrícola.
moderno, o que inclui o acesso a um conjunto complexo de bens e) internamente, o rendimento familiar permanece ind
materiais e culturais. Por outro lado, a própria magnitude dos re visível, pois é impossível separar, do resultado obtido com a pro
sultados da produção pode tornar menos dramáticas as decisões dução, parcelas autônomas e particulares que corresponderíam ao
que efetivamente são tomadas pelo produtor, a respeito das condi' salário, ao lucro e à renda da terra.
ções de trabalho. Contudo, a imposição de um patamar tecnológico, a de
d) os fatores externos, socialmente dados, introduzem pendência em relação ao crédito bancário, a fragilidade do acesso à
uma rigidez no interior da própria organização da produção que terra e a vinculação da produção aos diversos mecanismos de mer
resulta na imposição de comportamentos sociais e econômicos à cado integram a unidade de produção familiar ao processo geral da
família. acumulação capitalista, separando, a partir de seu exterior, parte
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PARA PENSAR OUTRA AGRICULTURA
MARIA DE NAZARETH BAUDEL WANDERLEY
do sobretrabalho nela gerado, nas referidas parcelas autônomas e nhecimento especializado, a existência no Brasil de 3.691.408 es
particulares. tabelecimentos familiares, o que corresponde a 71,6% dos estabe
Evidentemente, essas indicações estão longe de esgotar lecimentos do país.
a problemática da produção familiar nas sociedades modernas. Pela sua dimensão e pela sua significação, a problemática
Minha intenção, de qualquer forma, não podería ser esta; ela é, da produção familiar na agricultura brasileira traspassa, hoje, vári
antes de tudo, a de defender a legitimidade da questão teórica pos as questões candentes do país e se situa no bojo da busca de uma
ta por Chayanov e a de estimular a pesquisa nessa direção. modernidade socialmente definida.
Essa concepção de modernização que se contrapõe ao
deslumbramento da modernização conservadora - que para mim é
mais conservadora do que moderna - , impõe uma nova direção às
Conclusão transformações da agricultura e do meio rural, fundamentalmente
em três direções.
A homenagem que pretendo prestar neste texto a Ale- Em primeiro lugar, a necessidade de tornar o setor agrí
xander Chayanov tem em mira o pesquisador social, preocupado cola verdadeíramente eficiente, superando definitivamente o peso
em conhecer a realidade em que viviam os agricultores de seu tem histórico de sua tradição extensiva e desperdiçadora de terras.
po, atento na busca dos nexos teóricos capazes de explicar as espe- Em segundo lugar, a necessidade de assegurar o acesso
cificídades de um mundo em plena e profunda m utação e da população brasileira, rural e urbana, aos bens materiais e cultu
politicamente comprometido com as transformações que, para ele, rais que a coloquem efetivamente no mundo moderno.
fossem socialmente justificadas. Finalmente, a necessidade do estabelecimento efetivo da
Estou convencida da necessidade e da urgência de se as cidadania para a população rural, de forma a garantir à sociedade
sumir essa mesma preocupação no Brasil. O reconhecimento da brasileira o exercício pleno da democracia moderna.
existência e da importância social e econômica dessa categoria so
cial constitui o ponto de partida desse esforço que impõe a própria
exigência de dimensioná-la e de aprofundar o conhecimento de
sua diferenciação.
Nesse sentido, é mais do que promissor o estudo que
REFERÊNCIAS
Angela Kageyama e Sonia Maria Pereira Bergamasco realizaram,
com base em tabelas especiais do IBGE, sobre as unidades de pro
CHAYANOV, A. V. So b re a teoria d os sistem as eco n ô m ico s não capitalistas.
dução familiar.12Parece espantoso que só agora, pela primeira vez,
In: SIL V A Jo s é G razian o da; S T O L C K E . V erena. A qu estão agrária. S ã o
tenha sido possível trazer à luz do conhecimento, inclusive do co Paulo: Brasiliense, 1981. p. 133-163.
12 KAGEYAMA, Angela; BERGAMASCO, Sonia M. P. Novos dados sobre a produção . La organizaáón de unidad econômica campesina. Buenos Aires:
familiarno campo Campinas, 1989.23 p. Mimeogr. (versão corrigida) Nueva Vision, 1974. 339 p.
54 55
KAGEYAMA, Angela; B ER G A M A SC O , S o n ia M. P N ovos d ad os
sobre: a produ ção fam iliar no cam po. C am pinas: U nicam p, 1 9 8 9
p. Mimeogr. (versão original)