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Poro pensar outra agricultura

i s edição

Organizadores:

Ângelo Duarte Dama/eeno ferreiro - Alfio Brandenburg (Orgr.)


Angela Duarte Damasceno Terreiro
Alfia Brandenburg

Poro pensar outra agricultura

Delmo Pessanha Deves

C tC N P q
Contorno Uacional üa Detcnvoivlm entc
francisco Meneses
Ghisleine Duque
Científico o Tecnológico Ivoldo Gehlen
Jalcione Almeida
ffiegdo Zononi
ISBN 1 7 » - 6 S - 7 3 B S - a i B - N Mono de Ooxoreth B. tUanderley
Mario Heleaa R. Antunia//i
Acordo Maria flilxo R. Cirne
CAPES/COFECUB Maristela limões de Cerme
Osmar de Carvalho Bwene
9N788573HJ52139 Raberte José Moreira
------------------U FP R leaio ffl. P. Bergomosco
© A ngela D uakte D amasceno F erreira & A lfio B randenburg

P«ro pen/or outro o^rieulturo


S“ edição

C oorden ação E d ito ria l


D aniele S oares C arneiro

P ro jeto g rá fico e ed ito raçã o eletrônica


G lauco P essôa S alamunes

C apa
G lauco P essôa S alamunes

R evisão
P atrícia D omingues R ibas e
G islaine do R ocio S iqueira F arenhuk

S érie P esquisa, n . 138

C oordenação de P rocessos T écnicos. S istema de B ibliotecas. U F P R . [...] Mas o modelo de desenvolvimento único, se existe, só pode se

constituir num projeto social, utópico e ideológico. Isto não quer dizer que
Para pensar: outra agricultura / Organizadores: Angela Duarte Damasceno Ferreira,
seja destituído de eficácia; ao contrário, sobretudo quando aparece como
Alfio Brandenburg.- -
símbolo de identidade e instrumento de poder para a minoria dirigente.
[Curitiba]: Editora UFPR, [1998].
288p. (Pesquisa; n.138) N a verdade, mesmo se remodelada por uma ação coletiva, a diversidade

Inclui bibliografia. permanece. Assim, o principal objetivo da reflexão que levou a esta obra

Dados sobre os autores. é de reabilitar esta diversidade oculta porque ela permanece com o um

dado intangível para o pesquisador... Reabilitar a diversidade é, portanto,


1. Agricultura - Aspectos sociais. 2. Agricultura e Estado. evidenciá-la ou mais propriamente resgatar sua evidência. Mas isto não
3. Famílias rurais. 4. Diversidade agrícola.
é suficiente. É necessário tomá-la inteligível para que seja mais que uma
I. Ferreira, Angela Duarte Dam asceno. H. Brandenburg Alfio. Série.
constatação banal e inútil. Trata-se de encontrar seus significados,
AACR2 compreender suas razões de ser, a fim de atuar para construir e aplicar
338.18 C D D 20. Ed.
as ações de desenvolvimento que vão retirar deste conhecimento

ISB N : 978-85-7335-213-9 potencialidades para uma m aior eficáciadestes outros modelos de

R ef. 5 1 3 agricultura.

D ir e it o s desta e d iç ã o reservados à

Marcei Jollivet - Pour une agriculture diversifiée


E d ito r a UFPR
R ua J oão N egrão, 2 8 0 - 2 .° andar - C entro
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2008
Em b u s c a d a m o d e r n id a d e
s o c ia l : uma h o m en a g em a
A l e x a n d e r V. C h a y a n o v *

Maria de Nazareth Baudel Wanderley

Introdução

O interesse em conhecer e divulgar o pensamento


de Alexander Chayanov sobre a produção familiar na agri'
cultura tem para mim uma dupla motivação. Por um lado,
um interesse intelectual. É Chayanov quem elabora uma
proposta teórica original de compreensão dos processos in­
ternos de funcionamento das unidades familiares de p r o
dução na agricultura, e ele o faz com base em uma intensa
atividade de pesquisa sobre o campesinato russo, realizada
pela Escola da Organização e Produção.1

' Este texto foi apresentado originaimente no seminário “Os cam­


poneses têm futuro? - Uma homenagem a Alexander Chayanov”, realizado em
novembro de 1989, no Departamento de Ciências Sociais da Unicamp.
1Segundo Basile Kerblay, Chayanov publicou cerda de 60 textos, além
de numerosos artigos em revistas. Sua obra “constitui o resultado teórico e prático
de vários decênios de pesquisas e de discussões sobre as questões agrárias na
Rússia à época da Revolução” Cf KERBLAY, Basile. A.V. Chayanov: un carrefour
dans 1’évolution de la pensée agraire en Russie de 1908 a 1930. In :_____Du miraux
agrovilíes Paris: Institut d’Études Slaves, 1985. p. 103 É importante ressaltar que
apenas um texto de Chayanov foi publicado em português até hoje; dois outros
textos são igualmente conhecidos no Brasil por meio de suas traduções em espa­
nhol, inglês e francês. É inegável que essa limitação inibe uma reflexão mais
aprofundada de seu pensamento.
MARIA DE NAZARETH BAUDEL WANDERLEY PARA PENSAR OUTRA AGRICULTURA

Por outro lado, para além da contribuição intelectual, in­ tração e apropriação do trabalho alheio, da mais-valia. A fonte do
teressa-me a dimensão política da obra de Chayanov. Com efeito, trabalho que aciona o capital envolvido no seu processo de produ­
Chayanov não pretendia simplesmente conhecer a realidade da ção é o próprio proprietário dos meios de produção.
agricultura russa nem apenas lutar para reproduzida como tal, isto
é, com suas características tradicionais. O que o motivava era, a Na econom ia agrícola fam iliar, a fam ília, equipada co m m eio s de
meu ver, antes de tudo, a explicitação das potencialidades do cam­ produ ção, em prega sua força d e tra b a lh o no cu ltivo da terra , c
recebe com o resultado dc um ano de trabalho certa quantidade de
pesinato russo. bens. U m a sim ples observação d c estru tu ra in te rn a d a unidade dc
Minha convicção é de que sua concepção sobre a produ­ trabalh o fam iliar c su ficien te p ara com preender que é im possível,
sem a categ oria salários, im por a esta estru tu ra o lu cro líqu ido, a
ção familiar na agricultura guarda, sob vários aspectos, uma atuali­
renda e o ju ro do cap ital, com o categ orias eco n ô m icas reais, no
dade surpreendente, e por essa razão precisa ser resgatada. É o que sentido capitalista da palavra.2
tentarei ousadamente demonstrar neste texto.
Com esse objetivo, proponho dividir minhas reflexões A ausência da mais-valia, como motor do processo pro­
em três níveis que correspondem aos momentos fundamentais da dutivo, imprime na unidade familiar de produção um caráter espe­
trajetória intelectual e política de Chayanov: cífico, que foi percebido e formulado por Chayanov.3 Para ele, o
a) a formulação de uma teoria explicativa do modo de produtor familiar é fundamentalmente um proprietário que traba­
funcionamento das unidades familiares de produção na agricultu­ lha. Na verdade, quem trabalha é o agricultor e sua família, e é
ra; familiar a propriedade do estabelecimento.
b) o esforço para compreender o campesinato em seu Desse fato resulta a tradicional identificação entre famí­
contexto mais global da sociedade capitalista moderna; lia e empresa que se expressa em dois níveis. Por um lado, no que
c) o confronto com o projeto de coletivização estalinista se refere à relação com o trabalho, o produtor familiar tem, em
e a formulação de um projeto alternativo. relação ao esforço físico e mental exigido pelo trabalho, um com­
portamento diferente do empresário capitalista, pois o esforço em
questão deve ser realizado por ele mesmo, com o desgaste de suas
Os princípios de funcionamento da organização familiar
próprias capacidades físicas e mentais. O capitalista pode guardar
na agricultura

Como se sabe, o eixo central da teoria de Chayanov


consiste na afirmação de que a unidade de produção familiar na 2CHAYANOV, A. V. Sobre a teoria dos sistemas econômicos não capitalistas
In: SILVA, José Graziano da; STOLCKE, Verena. A questão agrária. São Paulo: Brasiliense,
agricultura é regida por certos princípios gerais de funcionamento
1981. p. 137.
interno que a tornam diferente da unidade de produção capitalista. ' Sobre as categorias de análise formuladas por Chayanov. que neste texto
estão rapidamente referidas, ver CHAYANOV. A. V. La organízaeíón de ia urtidad econômica
Esses princípios derivam do fato de que, ao contrário da empresa campcsina. Buenos Aires: Nueva Vision. 1974.339 p, Parafadlitar alcitura, quando se tratar
capitalista, a empresa familiar não se organiza sobre a base da ex­ dc citação deste livro, anotaremos apenas o número da página no próprio corpo dc meu tra
balho, As demais citacões serão referidas cm notas de rodapé.

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MARIA DE NAZARETH BAUDEL WANDERLEY PARA PENSAR OUTRA AGRICULTURA

uma maior distância em relação ao trabalho, pois este é sempre o Para Chayanov, a relação entre o trabalho e o consumo é
esforço de outros. definida intemamente na própria composição da família. Com efei­
Por outro lado, sendo um proprietário que trabalha, o to, para ele, a família camponesa nunca é igual ao longo de sua
produtor familiar depende, para sua reprodução social, da preser­ existência: começa com um casal que, em geral, trabalha; amplia-
vação - e mesmo da ampliação - do seu patrimônio produtivo, se com crianças pequenas, que consomem mas não trabalham; ao
aqui tomado como o conjunto dos meios necessários à produção. crescer, os filhos vão progressivamente participando da atividade
Isso quer dizer que cabe a ele assegurar os recursos necessários produtiva, até o momento da saída de cada um para constituir uma
para uma reprodução patrimonial. nova família/empresa. O casal se reencontra no final, mas com uma
Em consequência desse caráter específico da produção capacidade de trabalho bem mais reduzida.
familiar, o rendimento obtido no processo produtivo não pode ser Chayanov considerava que, para o caso da Rússia, essa
dissociado em parcelas autônomas e particulares, como no caso do diferenciação demográfica era mais significativa do que a diferenciação
processo produtivo capitalista. Com efeito, neste último, em razão social, entendida esta como o processo de decomposição do campe­
da separação entre o capital e o trabalho, é possível distinguir não sinato.
só o salário como as diversas parcelas em que se divide a mais-valia
e, como se sabe, cada uma delas constitui a base material de uma Não há dúvida de que certa diferenciação deste tip o se produz
realmente nocampo.porcm, uma análise mais profunda dacomposição
classe da sociedade. Na unidade familiar de produção, pelo contrá­
da unidade econômica camponesa demonstra que a hetcrogencidadc
rio, o resultado da produção constitui um rendimento indivisível, do não pode ser explicada apenas pela diferenciação sociaL Ela depende

qual é impossível separar o que foi gerado pelo trabalho, pelo in­ não só d o desenvolvim ento dinâm ico, m as tam bém , c dc form a
considerável, do efeito dos fatores dem ográficos que resultam da
vestimento do capital ou como renda da terra. natureza da unidade econôm ica cam ponesa (p. 2 9 0 ).
É com esse rendimento indivisível que o produtor deve­
rá prover, ao mesmo tempo, a empresa familiar dos recursos pro­
Em cada momento da evolução da família, sua composi­
dutivos que necessita, e a própria família do fundo de consumo
ção determina a capacidade da força de trabalho disponível e a mag­
necessário à sua manutenção.
nitude de suas necessidades de consumo. Cabe ao chefe da família/
Muito freqüentemente, a dimensão reduzida desses ren­
empresa a responsabilidade de efetuar avaliações subjetivas que per­
dimentos, associada à vinculação entre capital e trabalho na unida­
mitam definir o grau e a intensidade da auto-exploração de sua
de familiar acima indicada, leva o produtor a procurar opções e a
força de trabalho.
definir estratégias, cuja lógica Chayanov desvendou em suas pes­
Chayanov pretendeu conhecer as leis que regem o funcio­
quisas.
namento interno da unidade de produção familiar e sua teoria é o
O produtor efetua o que ele chama de balanço entre o traba­
resultado elaborado dessa preocupação.
lho e o consumo, isto é, entre o esforço exigido para a realização do
O material empírico de referência da Escola de Organi­
trabalho e o grau de satisfação das necessidades da família.
zação e Produção constituiu-se, fundamentalmente, das condi­

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PARA PENSAR OUTRA AGRICULTURA
MARIA DE NAZARETH BAUDEL WANDERLEY

mática da produção familiar. Em diversas passagens de sua obra,


ções reais de vida do campesinato russo. No entanto, o pensamen­
to de Chayanov não é estático, e vai progressivamente incorporam ele insiste na necessidade de novos estudos mais abrangentes so­

do novas questões gestadas no bojo da grande efervescência social bre a produção camponesa.
e política que caracterizou o período de sua vida na Rússia.
N òs que estam os interessad as na prática da agricultura devem os
A esse respeito, sua reflexão vai se concentrar, sobretudo
co n stru ir suas form as futuras a p a rtir d as form as existen tes de
a partir da década de 1920, em torno de três questões essenciais, exploração ag ricok portanto, na prática, interessa- nos realizar o estudo
intimamente articuladas: mais profundo so brea unidade econôm ica cam ponesa (p .4 0 ).

a) a agricultura não constitui um setor isolado, autôno­


mo, mas se integra de forma dinâmica ao processo global de acu­ E ele acrescenta mais adiante, no mesmo texto:
mulação do capital;
b) a agricultura deverá absorver cada vez mais o progres­ R eco n h ecem o s cla ra m en te a necessid ad e d e qu e a E sco la de
so técnico e modernizar sua forma de produzir; Organização e Produção indique nas pesquisas individuais o 1ugar
qu e ocupa a unidade econôm ica cam ponesa no sistem a total da
c) as transformações do setor agrícola se inserem no ob­ economia nacional de hoje. e que proporcione a conexão teórica dc
jetivo de construção de uma sociedade socialista. nosso co n ce ito organizativo com os p rin cip ais crité rio s sobre a
econom ia nacional e seu desenvolvim ento (p- 4 2)

As ligaduras sociais: subordinação e progresso técnico Nessa segunda parte do texto, ínteressa-nos perceber
qual a visão de Chayanov sobre os referidos “fatores dados”, isto é,
Como o próprio Chayanov afirma em seu estudo A orga­ sobre o que chamou “as ligaduras sociais” entre a produção agríco­
nização da unidade econômica camponesa, la dispersa em milhares de unidades familiares e o processo geral
de reprodução econômica. A esse respeito, sua tese central e de que
Sim p lesm en te, aspiram os a co m p reen d er o que é a unidade “[...] a agricultura de todo o mundo, incluindo a nossa, está condu
econôm ica cam ponesa do p onto de vista organizativo. Q ual é a
zida cada vez mais para a circulação geral da economia mundial, e
m orfologia d este aparato produtivo? In teressa-n os sab er com o se
ob tém aqui a natu reza proporcional das partes, com o se ob tém o os centros do capitalismo a subordinam cada vez mais à sua lide­
equ ilíbrio orgânico, quais são os m ecanism os da circu lação e da
rança” (p. 305).
recuperação do capital no sentido da economia privada, quais são os
m étodos para determ inar o grau de satisfação e de proveito, e com o
Com base em suas próprias pesquisas, mas também re­
reage às influências dos fatores externos, naturais e econôm icos que ferindo-se à obra de Hilferding, de Lenine e de outros autores rus­
aceitam os com o dados (p. 36) (grifos m eus).
sos, Chayanov considera que o processo de concentração econômica
tem, na agricultura, certas particularidades.
Isso não quer dizer, no entanto, que para ele, como para
seus colegas pesquisadores da Escola de Organização e Produção,
[...] enquanto no sentido produtivo a co n ce n tra çã o na agricultura se
esse nível de análise fosse suficiente e desse conta de toda a proble­ reflete escassam ente na form ação de novas em presas em grande

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MARIA DE NAZARETH BAUDEL WANDERLEY
PARA PENSAR OUTRA AGRICULTURA

escala, no sentido econômico o capitalism o, com o sistem a econôm ico


geral, progride m uito na agricultura (p. 3 0 5 ).
A segunda conclusão, que parece evidente, é que a con­
centração vertical do capital tem como base a reprodução de unida­
A partir dessa concepção da “integração vertical” da agri­ des de produção familiares “dispersas e independentes”, as quais
cultura, é possível tirar duas conclusões que me parecem suma­ precisamente o capital concentra e subordina.
mente importantes e atuais.
Em primeiro lugar, a chamada economia camponesa não D epois dos trabalhos do professor Lyashenko sobre a evolução da
econom ia cam p on esa ru ssa e os de Lenine sobre a am ericana,
constitui, propriamente, um modo de produção no sentido forte
p o d e m o s v e r co m t o d a c la r e z a q u e n ã o s e d e v e e s p e r a r
do termo. Ela é percebida, antes de tudo, como uma forma de orga­ neces liiri amen tc que o desenvolvimento da influência capitalista e
a c o n c e n tr a ç ã o n a a g ric u ltu r a d e se m b o q u e m na c r ia ç ã o e
nizar a produção que se reproduz no interior de modos de produ­
desenvolvim ento de latifúndios. Com m aior probabilidade, dever-
ção diversos. Sua reprodução social está, assim, intimamente se-ia esp erar que o capitalism o co m ercial e fin an ce iro esta b eleça
inserida no processo global de reprodução do capital, cujas formas uma ditadura econôm ica sobre consideráveis setores da agricultura,
a qual permanecería com o antes, no que se refere á produção, com/xwa
concretas têm, sabidamente, um caráter heterogêneo.
deempresasfamiliaresdeproduçãoagrícolacmpequenaescala, sujeitascmsua
Nesses termos, a economia camponesa não representa organização internaàs írisdo balançoentretrabalhocconsumo (p. 42).
algo residual, necessariamente atrasado, tendente a desaparecer
com o desenvolvimento do capitalismo dominante. Assim, a vigência das leis gerais de reprodução do capital
- que evidentemente, como vimos, afeta a reprodução das unida­
A ssim , a agricultura, apesar do caráter evidentem ente disperso e des camponesas de produção - não anula as específicidades des­
in d ep en d en te d os p eq u en o s p ro d u to res de m ercad o rias, se
tas. Isto é, mesmo estando integrada ao movimento geral de
transform a em um sistem a econômico concentrado em uma série de
grandes em presas e, através destas, ingressa na esfera controlada valorização do capital, a economia camponesa se reproduz sobre a
pelas form as m ais avançadas do capitalism o financeiro (p. 312).
base dos princípios gerais de seu funcionamento interno, nos ter­
mos apresentados por Chayanov.
Para Chayanov, esse processo é tão profundo e intenso Com efeito, mesmo considerando a importância social
que diante dele a concentração horizontal “constituiría um peque­ do processo de decomposição do campesinato, parcela significati­
no detalhe”.
va dessa categoria social guarda sua condição de produtor familiar.
Por conseguinte, não basta aguardar sua metamorfose em futuros
Se este detalhe não se produz é, evidentemente, porque a exploração proletários; ela precisa ser apreendida sociológica e politicamente
capitalista consegue uma porcentagem mais alta com a concentração
em sua realidade concreta imediata, isto é, como produtores fami­
vertical do que com a horizontal. A lém disso, transfere em grande
medida ao agricultor os riscos da empresa do proprietário do capital liares. “Segundo toda probabilidade, nossa análise morfológica há
(p. 312). r
de servir no futuro como valiosa ferramenta para a análise dinâmica
da unidade econômica camponesa em toda a complexidade de seu
meio histórico” (p. 37).

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MARIA DE NAZARETH BAUDEL WANDERLEY PARA PENSAR OUTRA AGRICULTURA

havendo convertido, po r m eio de cooperativas, um a considerável


É nessa dupla referência - à “complexidade do meio his­
p a rte d e su a eco no m ia em form as d e p ro d u çã o so cia lm e n te
tórico” e à “morfologia interna” das unidades de produção - que organizadas. Deverá ser um cam po in d u strializad o em codas as
reside, a meu ver, a grande riqueza da análise de Chayanov e um esferas dõ processo técn ico , m ecanizado e eletrificad o; um cam po
que teria aproveitado tod os o s su cessos da ciên cia e da tecnologia
grande desafio aos estudiosos atuais da questão da produção fami­
agrícola (p. 4 3 ).
liar na agricultura. Trata-se, com efeito, de reconhecer no produto
familiar sua possível condição de agente social do progresso e, con-
seqüentemente, legitimá-lo, do ponto de vista social e político. É A construção do socialismo: a autocoletivização
nesse sentido que Chayanov se propõe a analisar “[...] as possíveis
formas do futuro desenvolvimento da unidade econômica campo­ O pensamento de Chayanov sobre a economia campo­
nesa que consideramos progressistas, e em cuja direção deveria­ nesa assume uma dimensão política mais importante no momen­
mos desenvolver nossa política econômica” (p. 288). to em que se apresenta como uma alternativa à proposta oficial do
Embora essas formas do futuro ainda fossem pouco pre­ governo soviético de então, definida em termos da coletivização da
sentes na agricultura russa, Chayanov tinha conhecimento dos
agricultura.
progressos agrícolas em outros países do Ocidente. Segundo Ker- Não é o caso, no presente texto, de reproduzir o debate a
blay, ele se interessava pelas inovações na agricultura e seu texto respeito desse tema, muito menos a história da coletivização da
intitulado A vida e as técnicas dofuturo constitui “um ato de fé no pro­
agricultura na União Soviética. Interessa-me, aqui, apenas repro­
gresso científico”.4
duzir o pensamento de Chayanov sobre o futuro da agricultura,
sabendo que ele se opôs à coletivização, nos termos em que esta foi
A s perspectivas oferecidas pela agricultura sem solo graças às
efetívamente realizada.
sín teses de album inas realizadas em usina, graças ao co n tro le de
certo s processos biológicos, são d escritas em term os que na época
poderíam passar por utópicas. O autor imagina usinas de produtos [...] é índubitável que com o aum ento q u antitativo dos elem entos
alim entares e têx teis de síntese, u tilizando-se a planta apenas por de econom ia so cial em nosso cam po nos e n con trarem os com o
seus efeitos d ecorativos e os fru tos natu rais, p o r seus arom as desenvolvim ento de um a nova psicologia econôm ica, e esperam os
inim itáveis.5 que a evolução da agricultura, em m uitos aspectos, vá modificando
g rad u alm en te as ba ses da unidade de p ro d u ção fam iliar que
esta b elecem o s cm nosso estu d o da atu al unidade eco nô m ica
A produção familiar, longe de estar fadada ao desapareci­ cam ponesa (p. 3 2 0 ).
mento, deveria absorver e realizar esses progressos.

Em que consistiría essa “nova psicologia econômica”?


M ediante o estudo detido da produção camponesa atual, tal com o é, Chayanov refere-se a um processo de autocoletivização ( k e r b l a y , 1985,
estud am os prin cíp alm en te o m aterial a p artir do qual, em nossa
opinião, deverá evoluir historicamente o novo agro na próxima década, p. 141), que representará uma verdadeira revolução agrária.

4KERBLAY, op cit., p 141


5 Id

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PARAPENSAROUTRA AGRICULTURA
MARIA DE NAZARETH BAUDEL WANDERLEY

das bases do sistem a econôm ico da nova sociedade (p. 317).


O eixo central de sua proposta é o desenvolvimento de
“corpos cooperativos” que realizariam “um profundo processo de
Assim, sua concepção de cooperação, longe de se contra­
concentração vertical na agricultura”.
por, insere-se no projeto mais amplo de construção do socialismo.

Como o controle organízativo dos processos de produção agrícola só


é possível se su bstitu i a produção cam ponesa dispersa po r form as [...] quando vinculamos a natureza camponesa elementar com nossas
co n cen trad as de produção, devem os em pregar tod os os m eios medidas e a organizamos dentro do sistema geral da economia
p o ssív eis para desenvolver na vida agrícola os p ro cesso s que planiiicada da U RSS, devemos nos propor este objetivo final,
conduzam a esta concen tração (p. 316). introduzir na futura organização da agricultura elem entos cujo
desenvolvimento posterior c/icguc asupcraro capitalismodccstüdocprisiú
Esse processo deveria não somente subordinar o vasto e constituirabascpara umfuturosisrcmaeconômicosocialista (p. 313) (grifo
do autor).
disperso setor de produção agrícola, como igualmente “chegar ao
controle direto da organização da unidade econômica camponesa
elementar” (p. 315). Tratava-se, como foi dito acima, de um processo de autO'
Chayanov era consciente das limitações da experiência coletivização, cuja diferença em relação à coletivização efetivamente
cooperativa nos países capitalistas. implantada não estava apenas nos métodos de persuasão (ou na
ausência deles). Com efeito, como se refere Kerblay, “[■■■] é à condi­
A cooperação existia e existe em m uitos países capitalistas. Porém,
ção da preservação da herança camponesa e sob reserva de uma
tan to en tre nós antes da Revolução, qu anto em ou tros países autocoletivização sem pressão exterior que Chayanov saúda a cri­
cap italistas, foi apenas a ad aptação dos pequenos p rodu tores de
ação dos kolkozes e sovkozes como ‘a única via realista de desenvolvi­
m ercadorias às condições da sociedade capitalista, foi apenas uma
arma na lu ta pela sobrevivência. Não se tratava nem podería tra ta r' mento da agricultura’.” 6
se de uma nova estrutura social (p. 317). Chayanov refere-se mesmo, profeticamente, ao perigo de
uma catástrofe social, se a necessária subordinação da agricultura ao
Essa é, para mim, a contribuição fundamental de Chaya- processo geral de desenvolvimento da sociedade viesse a se tradu­
nov a respeito da questão agora abordada. Na verdade, ele não pre­ zir na destruição da vida social do mundo rural russo. As transfor­
tendia apenas estabelecer, por meio da cooperação, os mecanismos mações a que se assiste, no momento presente, nos países que
de subordinação da agricultura e da produção familiar em particu­ adotaram o modelo de coletivização estalinista da agricultura, só
lar. Ele pretendia, de fato, propor a constituição de uma nova es­ vêm reforçar a importância do pensamento de Chayanov, que, não
trutura social. por acaso, foi recentemente reabilitado na URSS.'

6 KERBLAY, op. rit., p. 141.


De sim ples ferram enta dos pequenos produtores de m ercadorias,
Ver sobre a questão, entre mirins TEPICH T.jerzy, Marxismcet agr.cuhurc. le
criada por estes em sua luta pela existência na sociedade capitalista,
píSSaS polonais. Paris: Annand Coito, 1973. 251 p.. RAMBAUD. Placidc. Les agneukeurs
o sistem a se converte em um dos principais com ponentes do modo
poionais ala conquéte de leuridentiré. AcKsdclaRecheráí. Parts. n. 41. p 4. $9,f n
socialista de produção. Em outras palavras, de ferram enta técn ica SHAN1N, Têodot Cagrieulture «w iítíquc et la Pcrcstnnka: les priorites aux pfcispedives
de um grupo social, ou m esm o de um a classe, se converte em uma lointaines. TempsModemes, Paris, n. 503, p. 38-62,1988.

45
44
MARIA DE NAZARETH BAUDEL WANDERLEY PARA PENSAR OUTRA AGRICULTURA

Mais uma vez a questão assume um caráter complexo em nosso campo nos encontrarem os com o desenvolvimento de uma
nova psicologia econômica, e esperamos que a evolução da agricultura,
que uma leitura unidirecional pode empobrecer. A produção fami­ em muitos aspectos, vá modificando as bases da unidade de produção fam iliar
liar precisava ser transformada, potencializada, sem que as forças que estabelecemos em nosso estudo atual unidade econômica camponesa (p. 320)
(grifos meus).
sociais a que ela serve de base fossem destruídas. Seria preciso
construir as novas formas de agricultura a partir das bases evoluti­
vas da unidade de produção familiar. Infelízmente, as vicissitudes da vida política russa impe­
diram que esse projeto tomasse a dimensão e a direção anunciadas.
[...] os elem entos do ca p ital so cial e da econom ia so cial crescem Cinqüenta anos passados, no entanto, é a atualidade desse projeto
q u a n tita tiv a m e n te em ta l m edida que to d o o sistem a m uda que mantém o interesse no conhecimento da contribuição de
qualitativam ente. O sistem a de unidades econôm icas cam ponesas
Chayanov, pois o desafio que hoje se coloca aos pesquisadores
que form aram cooperativas para alguns setores de sua econom ia
co n v e rte -se em um sistem a de eco n o m ia co o p era tiv a so cial rurais tem a mesma natureza daquele que ele e a Escola de Organi­
estab elecid o sobre o cap ital socializado, e a realização técn ica de zação e Produção estavam enfrentando naquela ocasião.
certos processos nas unidades individuais de seus membros assume
o ca ráter de um serviço técn ico (p. 319).
Evidentemente, eu não teria condições de dar conta des­
sa problemática. Gostaria, no entanto, de propor algumas hipóte­
ses que vêm norteando o trabalho que tento desenvolver nessa
É certamente movido pela necessidade de situar e com­
direção.
preender a produção familiar nesse contexto social mais amplo
que Chayanov se propõe a repensar suas primeiras formulações a
respeito da unidade familiar de produção.
A produção familiar moderna

N a evolução da unidade econôm ica que descrevem os, devemos


O propósito de utilizar a teoria da unidade de produção
finalm ente assinalar as mudanças que, graças à so cialização dos
vínculos individuais no plano organizativo, devem com pletar-se familiar na agricultura como instrumental para compreender os
em profundidade dentro da unidade de produção fam iliar pelo
setores agrícolas tradicionais nas sociedades modernas, não parece
m ecanism o do equilíbrio interno e com seu processo característico
de form ação de cap ital (p. 320). causar grandes reações entre os estudiosos. Admite-se, assim, a
existência de unidades de produção, cujos detentores assumem o
trabalho necessário à produção, que se orientam para a satisfação
Sua conclusão, acima citada, aparece ao leitor atento à
de suas necessidades de consumo e para as quais a estrutura inter­
sua evolução, mais que um simples voto de esperança no futuro,
na da família constitui o elemento determinante de sua dinâmica.
um novo e vasto programa de estudos que se descortinava para
Chayanov e seu grupo de pesquisadores. Vale a pena reler esta
conclusão. De um modo geral, quando se fala da produção Familiar na agricultura,
está-se falando de pequenas e tradicionais unidades de produção.
A ssim sendo, as análises teóricas, que dizem resp eito ao caráter
[...] com o aum ento quantitativo dos elem entos de econom ia social familiar da produção agrícola e aos princípios de seu funcionamento,

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MARIA DE NAZARETH BAUDEL WANDERLEY PARA PENSAR OUTRA AGRICULTORA

têm sem pre com o referen cial em pírico as unidades de produção existir nas sociedades modernas unidades de produção cuja força
pequenas, tecnicam ente atrasadas e cu ja organização in tern a tem
de trabalho fundamental é fornecida pela família proprietária. E
com o eixo a satisfação das necessid ades da fam ília que produz.
Produção fam iliar é, nesta perspectiva, sinônim o de cam pesinato isso mesmo quando a produção familiar se moderniza e se integra
tradicional.s ao processo global de acumulação do capital na sociedade. Em
segundo lugar, o reconhecimento de um processo mais amplo e
À medida, porém, que a produção familiar se moderniza determinante de subordinação da produção agrícola ao “movimento

- e por conseqüência se integra aos processos de mercantilização do capital” não é incompatível com o reconhecimento da existên­
da produção, de especialização das atividades e de modernização cia de um movimento interno da unidade de produção familiar,
do processo produtivo - , observa-se uma tendência a privilegiar cujo eixo é dado pelo seu caráter familiar e que tem como objetivo
esse movimento de subordinação e negar validade às pesquisas preservar uma margem de autonomia da família proprietária que
que reconheçam a importância de um movimento interno à unida­ trabalha.
de de produção familiar. Em termos mais gerais, é possível afirmar que, ao longo
Essa tendência se explicita em duas direções. Ora a pro­ desse período em que a agricultura sofreu um profundo processo
dução familiar é percebida como um mero apêndice, passivo, dos de transformação, a produção familiar permaneceu como um setor
ditames do capital, e o trabalhador familiar é comparado a um traba­ importante da agricultura, inclusive em países de capitalismo avan­
lhador em domicílio, portanto, sem nenhuma autonomia. Ora ela é çado.
definida como a expressão do pequeno capital que, embora peque­
no, guarda a natureza do capital; o caráter familiar do trabalho é en­ [„.] o caráter essencialm ente familiar d esta econom ia co ntin u a por
m u ito tem p o a se d esenvolver, a te m esm o a sc m o d ern iz a r,
tendido apenas como resposta adaptativa a certos condicionamentos paralelam ence ao aprofundam ento de seu ca rá te r m ercan til e à
técnicos. Num caso como no outro, a especificidade da produção redução da própria familiacamponcsaque, da antiga família extensa,
passa cada vez m ais â m oderna fam ília “nuclear”, conjugal.0
familiar é minimizada e a referência a esferas internas, nas quais se
desenvolve a autonomia familiar, perde qualquer interesse explica­
tivo. Mais enfaticamente, Claude Servolin, referindo-se à agri­
A meu ver, nenhuma das duas explicações permite com­ cultura dos países da Europa Ocidental, não hesita em afirmar
preender o produtor familiar moderno em sua totalidade. A esse que:
respeito é possível formular duas hipóteses complementares. Em
primeiro lugar, a questão do caráter familiar da unidade de produ­ [... J a particularidade do se to r agrícola se exprim e, pelo m enos no
qu e se re fe re à F ra n ç a e á E u ro p a O c id e n ta l [ _ ] em um a
ção continua a se colocar na atualidade, uma vez que continuam a8*
característica fundam entai a form a quase exclusiva da produção é
o estab elecim en to “fam iliar”, “individual” (de respon sabilidad e
pessoal, segundo a últim a term inologia oficial). [...] o conjun to dos
estabelecim entos agrícolas individuais co n stitu i, com o vimos, um
8 WANDERLEY, Maria de Nazarech Baudel Trajetória social e projeto de
autonomia: os produtores familiares de algodão na região de Campinas, São Paulo Cadernos
do IFCH, Campinas, n. 19,p 139,1988 9 TEPICHT, op.rit.,p 23

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MARIA DE NAZARETH BAUDEL WANDERLEY PARA PENSAR OUTRA AGRICULTURA

d os p rin c ip a is ram os da p ro d u ção n acio n al: a e ste n ível de natureza indivisível da remuneração familiar, a possibilidade de
importância econômica, estam os acostumados a ver intervir a grande
efetuar avaliações subjetivas e de definir o grau de “auto-explora-
em presa capitalista.101
ção” de sua própria força de trabalho.
A esse respeito, é possível propor algumas primeiras hi­
No entanto, a produção familiar que se reproduz nas so­
póteses de pesquisa:
ciedades modernas representa um novo agente social, diferente do
a) as unidades de produção familiar são afetadas, a
campesinato tradicional de origem pré-capitalista. Como afirma
mente, tanto pelo processo de decomposição quanto pelo processo
Claude Servolin,
de diferenciação interna, demográfica.
[...] apredom inân cia m uito geral da produção agrícola individual
Se a constituição de uma burguesia rural de origem cam­
nos países capitalistas desenvolvidos, e em particular os da Europa
O cid ental, não deve nos enganar: esta predom inância í recente. E sta ponesa constitui um processo raro e excepcional, as estatísticas de
constatação deve nos obrigar a renunciar à ‘teoria da sobrevivência”. todos os países são unânimes em apontar o fenômeno do êxodo
Se a produção individual m oderna tem sua origem em um passado
longínquo, sua generalização eseu desenvolvimento no curso da história
rural, que expressa, na maioria dos casos, o abandono da condição
contem porânea só podem ser compreendidos se admite que nossas de pequeno produtor rumo a uma proletarízação, freqüentemente
sociedades, de um a certa form a, preferiram esta a ou tras form as
definitiva e vivida nas cidades. Nesse sentido, o campesinato con­
possíveis de p rodu ção.u
tinua a representar um ‘Viveiro de proletários”, tanto mais amplo
quanto a modernização da agricultura impõe uma redução absolu­
Essa agricultura moderna tem, a esse respeito, uma du­
ta da população ativa desse setor.
pla característica: sua integração, sob formas diversas, aos meca­
Apesar do movimento nessa direção, a economia familiar
nismos de mercado e aos processos de reprodução do capital, e a
que se reproduz nas condições modernas da produção agrícola tem
“abertura” do mundo rural ao modo de vida moderno.
como base não um conjunto de produtores pauperizados, em vias de
O entendimento da problemática da produçãofamiliar mo­
proletarízação, mas amplas “camadas médias de agricultores. Essas
derna deve, por conseguinte, levar em conta sua complexidade. Por
camadas não são, certamente, homogêneas, mas a diferenciação que
um lado, pela sua própria existência, ela legitima a permanência de
se pode observar não implica, necessariamente, sua decomposição.
uma esfera específica, interna, referente à forma de organizar a pro­
É nesse sentido que assume particular importância a reflexão de
dução, cujo funcionamento tem como referência a própria estrutu­
Chayanov sobre o processo de diferenciação interna, cuja base é a
ra familiar da unidade de produção. Por outro lado, os fatores que
evolução na composição da família.
regem o funcionamento interno da unidade familiar de produção
b) a unidade de produção é familiar, mas a família
assumem novos conteúdos.
mente é diferente daquela estrutura que a caracterizava tradicio­
Assim, a questão que se coloca é como se redefinem,
nalmente.
nesse novo contexto, a relação tradicional trabalho/consumo, a
Com efeito, embora a produção permaneça familiar, tan­
10SERVOLIN, Claude. L’agriculcure modeme. Poinrs Economie, Paris, Seuil, p. to as transformações tecnológicas quanto as mudanças de com­
19,1989 portamento nas sociedades modernas afetaram a composição
11SERVOLIN, op.cit.,p. 27.

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MARIA DE NAZARETH BAUDEL WANDERLEY PARA PENSAR OUTRAAGR1CULTURA

interna da família. Não só as famílias são atualmente mais reduzí' O exemplo mais evidente desse fato é a determinação do
das, como é menor a necessidade de envolver todos os membros no padrão tecnológico a ser utilizado na produção. Ou o produtor tem
processo de trabalho do estabelecimento familiar. condições de acompanhar o patamar já generalizado, ou ele corre o
Aquilo que Jerzy Tepicht chamou de “forças marginais risco, mais que os outros, de “dar de graça” à sociedade parte im­
não transferíveis” foram sendo progressivamente transferidas para portante de seu trabalho produtivo e, no limite, se tornar inviável
outros setores da economia sob o efeito da expansão do processo técnica e economicamente.
de industrialização/urbanização, ou simplesmente dispensadas do Isso não impede, no entanto, que a família avalie em
trabalho nos estabelecimentos agrícolas em razão das mudanças termos subjetivos o grau de auto-exploração que lhe parece aceítá'
técnicas introduzidas no processo de produção. Em países avança' vel, em face dos resultados que pode obter com o seu trabalho.
dos, a tendência atual parece ser, no limite, a multiplicação de esta' Evídentemente, a própria idéia de “auto-exploração” as­
belecímentos, em que a produção necessita da força de trabalho de sume hoje nova significação. Como vimos, as novas condições da
apenas um indivíduo da família. produção tornam o trabalho menos penoso e este, conseqüente-
c) a família se orienta em função do balanço entre traba­ mente, exige menos sacrifício físico daquele que o realiza. Mas
lho e consumo, cujos parâmetros modernos são, evidentemente, essas condições não eliminam a necessidade desses sacrifícios, em
diferentes dos tradicionais. Com efeito, a tecnologia moderna in­ certos momentos de pique da atividade produtiva. Além disso, a
troduzida potencializa a força produtiva do trabalho familiar e re' penosidade deixa freqüentemente de ser de natureza propriamen ­
duz o esforço físico (penosidade) requerido em seu exercício. te física. Com efeito, não é raro que a responsabilidade na condu­
Ao mesmo tempo, o consumo é redefinido. Por um lado, ção de uma empresa familiar provoque estados de tensão psíquica,
em sua própria composição. Participando plenamente da socieda' resultantes seja do impacto de fatores sobre os quais o produtor
de moderna, o agricultor aspira ao acesso a todos os bens social' não tem controle - o endividamento, por exemplo - , seja pela
mente disponíveis. Não se trata, assim, de garantir a reprodução dificuldade de se ausentar do estabelecimento em razão da própria
social à base do mínimo vital, mas do direito a um modo de vida natureza do trabalho agrícola.
moderno, o que inclui o acesso a um conjunto complexo de bens e) internamente, o rendimento familiar permanece ind
materiais e culturais. Por outro lado, a própria magnitude dos re­ visível, pois é impossível separar, do resultado obtido com a pro­
sultados da produção pode tornar menos dramáticas as decisões dução, parcelas autônomas e particulares que corresponderíam ao
que efetivamente são tomadas pelo produtor, a respeito das condi' salário, ao lucro e à renda da terra.
ções de trabalho. Contudo, a imposição de um patamar tecnológico, a de­
d) os fatores externos, socialmente dados, introduzem pendência em relação ao crédito bancário, a fragilidade do acesso à
uma rigidez no interior da própria organização da produção que terra e a vinculação da produção aos diversos mecanismos de mer­
resulta na imposição de comportamentos sociais e econômicos à cado integram a unidade de produção familiar ao processo geral da
família. acumulação capitalista, separando, a partir de seu exterior, parte

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PARA PENSAR OUTRA AGRICULTURA
MARIA DE NAZARETH BAUDEL WANDERLEY

do sobretrabalho nela gerado, nas referidas parcelas autônomas e nhecimento especializado, a existência no Brasil de 3.691.408 es­
particulares. tabelecimentos familiares, o que corresponde a 71,6% dos estabe­
Evidentemente, essas indicações estão longe de esgotar lecimentos do país.
a problemática da produção familiar nas sociedades modernas. Pela sua dimensão e pela sua significação, a problemática
Minha intenção, de qualquer forma, não podería ser esta; ela é, da produção familiar na agricultura brasileira traspassa, hoje, vári­
antes de tudo, a de defender a legitimidade da questão teórica pos­ as questões candentes do país e se situa no bojo da busca de uma
ta por Chayanov e a de estimular a pesquisa nessa direção. modernidade socialmente definida.
Essa concepção de modernização que se contrapõe ao
deslumbramento da modernização conservadora - que para mim é
mais conservadora do que moderna - , impõe uma nova direção às
Conclusão transformações da agricultura e do meio rural, fundamentalmente
em três direções.
A homenagem que pretendo prestar neste texto a Ale- Em primeiro lugar, a necessidade de tornar o setor agrí­
xander Chayanov tem em mira o pesquisador social, preocupado cola verdadeíramente eficiente, superando definitivamente o peso
em conhecer a realidade em que viviam os agricultores de seu tem­ histórico de sua tradição extensiva e desperdiçadora de terras.
po, atento na busca dos nexos teóricos capazes de explicar as espe- Em segundo lugar, a necessidade de assegurar o acesso
cificídades de um mundo em plena e profunda m utação e da população brasileira, rural e urbana, aos bens materiais e cultu­
politicamente comprometido com as transformações que, para ele, rais que a coloquem efetivamente no mundo moderno.
fossem socialmente justificadas. Finalmente, a necessidade do estabelecimento efetivo da
Estou convencida da necessidade e da urgência de se as­ cidadania para a população rural, de forma a garantir à sociedade
sumir essa mesma preocupação no Brasil. O reconhecimento da brasileira o exercício pleno da democracia moderna.
existência e da importância social e econômica dessa categoria so­
cial constitui o ponto de partida desse esforço que impõe a própria
exigência de dimensioná-la e de aprofundar o conhecimento de
sua diferenciação.
Nesse sentido, é mais do que promissor o estudo que
REFERÊNCIAS
Angela Kageyama e Sonia Maria Pereira Bergamasco realizaram,
com base em tabelas especiais do IBGE, sobre as unidades de pro­
CHAYANOV, A. V. So b re a teoria d os sistem as eco n ô m ico s não capitalistas.
dução familiar.12Parece espantoso que só agora, pela primeira vez,
In: SIL V A Jo s é G razian o da; S T O L C K E . V erena. A qu estão agrária. S ã o
tenha sido possível trazer à luz do conhecimento, inclusive do co­ Paulo: Brasiliense, 1981. p. 133-163.

12 KAGEYAMA, Angela; BERGAMASCO, Sonia M. P. Novos dados sobre a produção . La organizaáón de unidad econômica campesina. Buenos Aires:
familiarno campo Campinas, 1989.23 p. Mimeogr. (versão corrigida) Nueva Vision, 1974. 339 p.

54 55
KAGEYAMA, Angela; B ER G A M A SC O , S o n ia M. P N ovos d ad os
sobre: a produ ção fam iliar no cam po. C am pinas: U nicam p, 1 9 8 9
p. Mimeogr. (versão original)

KERBLAY, B asile. A. V. C h ayanov: un carrefour d ans 1’évolution de


13 Pensee a Sraire e n R ussie de 1 9 0 8 a 1 9 3 0 . I n :_______ . Du mir aux
agroviiles, Paris: Institut d É tu d e s Slav es, 1 9 8 5 . p. 1 0 3 -1 5 2

KREM N IO V Ivan [A.V C h ayanov]. Vopage d e mon frèreA lexis au


paps d e I utopie pagsanne. U topies. Paris: Age d ’ H om m e 1 9 7 6
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SHANIN. Téodor. E agriculture sovietique et la Fterestroika: les priorités


6 2 X i 9g^gPeCtÍVeS lointaines- Temps M odem es. Paris, n. 5 0 3 , p. 3 8 -

TEP1CH X Jerzy Marxisme et agriculture: le paysan polonais. Paris-


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WANDERLEY. M aria de Nazareth Baudel. Trajetória social e projeto


de auton om ia: o s produtores fam iliares d e algod ão n a região de
C am pinas. S ã o K iulo. C adernos d o IFCH. C am pinas, n. 1 9 1 9 8 8
1 6 6 p. ’

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