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E-ISSN: 2176-9893
nonada@uniritter.edu.br
Laureate International Universities
Brasil
RESUMO
O artigo propõe uma reflexão sobre o conhecimento literário produzido na academia, apresentando,
com base na análise de dados empíricos, suas principais orientações e possibilidades alternativas aos
paradigmas dominantes. O trabalho insere-se numa perspectiva de crítica epistemológica, colocando
em foco a discussão sobre o lugar social, político e cultural da literatura implicado nos modos de
pesquisa e ensino dessa disciplina.
PALAVRAS-CHAVE
Literatura; paradigmas de conhecimento; análise empírica; crítica epistemológica
ABSTRACT
The article proposes a reflection on the literary knowledge produced in the academy, presenting, from
the analysis of empirical data, its main directions and alternative possibilities to the dominant
paradigms. The paper is inserted in a perspective of epistemological critique, focusing the discussion
about the social, political and cultural places of the literature implied in the ways to research and to
teach this matter.
KEYWORDS
Literature; paradigms of knowledge; empirical analyses; epistemological critique
1
Este artigo resulta de pesquisa desenvolvida com auxílio do CNPq.
personagem Blanche, do romance Elizabeth Costello, de M. J. Coetzee (2004, p.
138). Nessa obra, formada de capítulos que são verdadeiros ensaios sobre literatura,
são apresentados alguns impasses das “humanidades” como ramo das ciências
baseadas no estudo de textos: a instrumentalização das humanidades, que reduziu a
leitura dos clássicos – Homero, Shakespeare, Dostoiévski – a uma razão mecânica; o
sentido de redenção dos ‘estudos humanos’, que não podem satisfazer as esperanças
e expectativas a eles atribuídas; as falhas de tradução dos textos gregos e o
monopólio cristão da interpretação; o desafio da interpretação num mundo
multicultural, em confronto com os ideais civilizatórios herdados do mundo grego.
Os questionamentos levantados por Coetzee põem em xeque os modelos de
representação sobre os quais as humanidades construíram a sua história. Essa idéia é
ainda mais contundente, no que tange ao papel da universidade como guardiã do
saber, no capítulo que discute o ‘Realismo’, em contraposição ao idealismo e à
abstração teórica em que se baseiam as explicações ‘científicas’ da realidade. A
partir do conto de Kafka “Um relatório a uma academia”, Coetzee/Costello expõe a
falsidade das imagens do mundo criadas pela ciência e a espetacularização do
conhecimento, na forma de eventos acadêmicos, que reproduzem protocolos e
repetem aquilo que é esperado que se diga. O macaco de Kafka ironiza a verdade
científica, ao expor a uma platéia de doutores seu processo de transformação em
humano.
Outro exemplo de criação literária atenta ao jogo de interesses que subsiste ao
habitus acadêmico vem do escritor brasileiro Rubens Figueiredo, especialmente no
conto “A última palavra” (Contos de Pedro, 2006). A narrativa apresenta-nos a
trajetória de Pedro, personagem que projeta, a partir do cultivo estratégico da
literatura, a sua ascensão social, a qual se efetiva com seu ingresso na universidade.
A literatura nesse espaço constitui a marca de uma elite, de uma superioridade
(FIGUEIREDO, 2006, p. 109), um jeito de angariar influência, destaque, benefícios e
aprovação de professores e colegas.
“A última palavra” mostra ironicamente de que modo a literatura pode
colocar-se a serviço da reprodução do pensamento, à medida que ela internaliza,
estrategicamente, a lógica do sistema cultural, da qual fazem parte instituições como
a universidade e a crítica literária. Rubens Figueiredo ironiza a cadeia de manobras
que se esconde por trás da carreira literária, notável no destino de Pedro. A
personagem ingressa na pós-graduação, empenhando-se em estreitar suas relações
com os professores mais influentes, até se tornar professor universitário. Porém, logo
percebe que o salário não casava com a figura que ele projetava para si nos anos à
frente (FIGUEIREDO, 2006, p. 122). Assim, ingressa na carreira de funcionário do
ministério público federal, sempre com o apoio da literatura como signo de prestígio
e chancela moral. No conto, os exercícios de ficção de Pedro integram-se
perfeitamente ao sistema de corrupção do poder:
2 – Cenário empírico
2
O levantamento recobre o período de 2000 a 2007. Ao todo foram recolhidos 908 resumos,
disponibilizados no banco de teses da CAPES. Desses dados, recortamos um universo de 305 teses,
defendidas em três Programas de três diferentes universidades, avaliados com conceitos 6 e 7 –
constituindo-se, portanto, em referências na área de estudos literários.
literários, não se limitando à aplicação de conceitos, mas à formulação teórica.
Podemos citar como exemplos nessa linha estudos: problematização acerca dos
modos de ler; hipóteses sobre a textualidade literária; entrelaçamentos discursivos da
literatura; a construção de laços entre ciência e arte na literatura; escrita literária
como performance ética, etc.
Bem menos comum é a categoria de estudos empíricos, os quais ampliam sua
fonte de dados para além do texto literário, voltando-se para o levantamento de dados
colhidos em outros meios e suportes, incluindo consulta em arquivos, depoimentos,
entrevistas, pesquisa de campo, jornais, etc. Exemplos desse tipo de pesquisa: a
reconstrução da trajetória poético- intelectual através de cartas; diálogo entre
intelectuais brasileiros e uruguaios, a partir da troca de correspondências; elaboração
de biografias literárias, a partir de depoimentos, anotações, entrevistas e
correspondências; relações entre memória, história e literatura, com base na consulta
a arquivos, etc.
Por fim, temos as análises sistêmicas, aquelas investigações que se atêm
sobre as condições materiais de produção da literatura e de suas instâncias de
produção/recepção/circulação. Os trabalhos aqui agrupados privilegiam o circuito
que dá existência concreta aos textos, de modo a interferir no seu processo de
constituição como objeto literário. São exemplos dessa linha de trabalho: o papel de
mediador do escritor no marketing da escrita literária; modos como a trajetória
política e econômica da nação brasileira determina a derrota do projeto literário de
Monteiro Lobato; literatura, tradução cultural e processos de afirmação de
comunidades surdas; relações entre padrões textuais e valores sociais como forma de
inscrição do texto nos modos de organização e apresentação do conhecimento em
fóruns especializados; espaços contemporâneos de disseminação e consagração da
literatura brasileira.
A concentração maior de teses está nas categorias 1 (aplicação teórica) e 2
(análises sócio-históricas), com 43,6% e 44,6%, respectivamente. Na categoria 3
(problematizações teóricas) situam-se 5% das teses e, nas categorias 4 (estudos
empíricos) e 5 (análises sistêmicas), estão 3,% e 3,6% das teses, respectivamente.
Uma rápida observação dos dados permite identificar uma clara tendência nos modos
de estudo da literatura na academia, tendo em vista a alta concentração – 88,2% -
nas duas primeiras categorias. O paradigma que parece orientar esses estudos é o que
poderíamos denominar de hermenêutico, segundo o método que elege o texto como
portador de significados isolados das condições materiais que interferem na produção
de sentidos.
Os padrões acadêmicos de produção de conhecimento são merecedores de
atenção crítica. Sem querermos reduzir a riqueza e mesmo as sutilezas dos temas e
abordagens propostas nas teses em foco, tomamos as categorias como válidas para
delinear um certo perfil da área, mais ou menos generalizável. É fácil verificar a
existência de um certo consenso em relação às práticas de estudo da literatura na
academia, o que pode ser compreendido à luz do que Bourdieu caracteriza como
habitus, ou seja, “resultado de uma ação organizadora”, produto de esquemas de
ação (BOURDIEU, 1994). Tais práticas de pesquisa acadêmica instituem uma certa
epistemologia literária, tornando invisíveis outras possibilidades de conhecimento,
embora elas estejam potencialmente presentes em meio ao consenso
homogeneizante. Essa epistemologia ‘inconsciente’ parte da concepção de que o
estudo da literatura compreende a atenção ao texto fora das condições concretas que
lhe conferem existência, visto que a análise das obras não considera, via de regra, as
pressões do sistema social que influem sobre seu estatuto como objeto literário.
Uma mudança da epistemologia literária dominante caminharia em sentido
contrário à análise exclusivamente textual, que tende a manter as obras afastadas das
relações empíricas. Assim, a reivindicação de um novo paradigma de estudos
literários implica a consideração dos nexos materiais da obra com o contexto sócio-
histórico, com atenção à complexidade das mediações e das interações entre
literatura, condições e práticas sociais.
REFERÊNCIAS
FIGUEIREDO, Rubens. Contos de Pedro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
KAFKA. Um médico rural. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
SANTOS, Boaventura de Souza. Crítica da razão indolente. São Paulo: Cortez, 2002.
SCHWAB, Gabriele. Towards na Ethnografy of Reading: a theoretical framework. In: The
mirror and the Killer-Queen: Otherness in literary language. Indiana University Press, 1996.