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Nonada: Letras em Revista

E-ISSN: 2176-9893
nonada@uniritter.edu.br
Laureate International Universities
Brasil

Pivetta de Oliveira, Rejane


PESQUISA LITERÁRIA EM FOCO: TENDÊNCIAS, POSSIBILIDADES E IMPASSES
Nonada: Letras em Revista, vol. 1, núm. 12, mayo-septiembre, 2009
Laureate International Universities
Porto Alegre, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=512451678003

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PESQUISA LITERÁRIA EM FOCO: TENDÊNCIAS,
POSSIBILIDADES E IMPASSES1
LITERARY RESEARCH IN FOCUS: TENDENCIES, POSSIBILITIES
AND PREDICAMENTS

Rejane Pivetta de Oliveira

RESUMO
O artigo propõe uma reflexão sobre o conhecimento literário produzido na academia, apresentando,
com base na análise de dados empíricos, suas principais orientações e possibilidades alternativas aos
paradigmas dominantes. O trabalho insere-se numa perspectiva de crítica epistemológica, colocando
em foco a discussão sobre o lugar social, político e cultural da literatura implicado nos modos de
pesquisa e ensino dessa disciplina.

PALAVRAS-CHAVE
Literatura; paradigmas de conhecimento; análise empírica; crítica epistemológica

ABSTRACT
The article proposes a reflection on the literary knowledge produced in the academy, presenting, from
the analysis of empirical data, its main directions and alternative possibilities to the dominant
paradigms. The paper is inserted in a perspective of epistemological critique, focusing the discussion
about the social, political and cultural places of the literature implied in the ways to research and to
teach this matter.

KEYWORDS
Literature; paradigms of knowledge; empirical analyses; epistemological critique

1 – Estudos literários: mapeando um certo território

Quando se estuda literatura, o que é mesmo que se estuda? À primeira vista,


parece não restar dúvida de que o centro da investigação literária são as obras, sejam
romances, contos, poesia, peças de teatro. Se buscarmos, no âmbito da academia –
locus privilegiado de produção do conhecimento -, veremos que a concepção
predominante no campo dos estudos literários é a que entende o texto, a obra, como
objeto dado à interpretação de sentidos configurados nos limites da letra. Esse modo
de ler e estudar a literatura remonta à herança humanista, que vinculou a
interpretação à busca de um sentido oculto das palavras, tal como o modelo de leitura
da Bíblia, “texto em função do qual se inventou a interpretação”, nas palavras da

1
Este artigo resulta de pesquisa desenvolvida com auxílio do CNPq.
personagem Blanche, do romance Elizabeth Costello, de M. J. Coetzee (2004, p.
138). Nessa obra, formada de capítulos que são verdadeiros ensaios sobre literatura,
são apresentados alguns impasses das “humanidades” como ramo das ciências
baseadas no estudo de textos: a instrumentalização das humanidades, que reduziu a
leitura dos clássicos – Homero, Shakespeare, Dostoiévski – a uma razão mecânica; o
sentido de redenção dos ‘estudos humanos’, que não podem satisfazer as esperanças
e expectativas a eles atribuídas; as falhas de tradução dos textos gregos e o
monopólio cristão da interpretação; o desafio da interpretação num mundo
multicultural, em confronto com os ideais civilizatórios herdados do mundo grego.
Os questionamentos levantados por Coetzee põem em xeque os modelos de
representação sobre os quais as humanidades construíram a sua história. Essa idéia é
ainda mais contundente, no que tange ao papel da universidade como guardiã do
saber, no capítulo que discute o ‘Realismo’, em contraposição ao idealismo e à
abstração teórica em que se baseiam as explicações ‘científicas’ da realidade. A
partir do conto de Kafka “Um relatório a uma academia”, Coetzee/Costello expõe a
falsidade das imagens do mundo criadas pela ciência e a espetacularização do
conhecimento, na forma de eventos acadêmicos, que reproduzem protocolos e
repetem aquilo que é esperado que se diga. O macaco de Kafka ironiza a verdade
científica, ao expor a uma platéia de doutores seu processo de transformação em
humano.
Outro exemplo de criação literária atenta ao jogo de interesses que subsiste ao
habitus acadêmico vem do escritor brasileiro Rubens Figueiredo, especialmente no
conto “A última palavra” (Contos de Pedro, 2006). A narrativa apresenta-nos a
trajetória de Pedro, personagem que projeta, a partir do cultivo estratégico da
literatura, a sua ascensão social, a qual se efetiva com seu ingresso na universidade.
A literatura nesse espaço constitui a marca de uma elite, de uma superioridade
(FIGUEIREDO, 2006, p. 109), um jeito de angariar influência, destaque, benefícios e
aprovação de professores e colegas.
“A última palavra” mostra ironicamente de que modo a literatura pode
colocar-se a serviço da reprodução do pensamento, à medida que ela internaliza,
estrategicamente, a lógica do sistema cultural, da qual fazem parte instituições como
a universidade e a crítica literária. Rubens Figueiredo ironiza a cadeia de manobras
que se esconde por trás da carreira literária, notável no destino de Pedro. A
personagem ingressa na pós-graduação, empenhando-se em estreitar suas relações
com os professores mais influentes, até se tornar professor universitário. Porém, logo
percebe que o salário não casava com a figura que ele projetava para si nos anos à
frente (FIGUEIREDO, 2006, p. 122). Assim, ingressa na carreira de funcionário do
ministério público federal, sempre com o apoio da literatura como signo de prestígio
e chancela moral. No conto, os exercícios de ficção de Pedro integram-se
perfeitamente ao sistema de corrupção do poder:

Dava tempo para que a imaginação pusesse os personagens em


movimento, dramatizasse os seus desejos, fizesse frutificar, na
fantasia, cada uma de suas manobras. E só depois, à luz dessa visão
completa, Pedro decidia até que ponto tomaria parte: a que cifra teria
acesso e de que maneira (FIGUEIREDO, 2006, p. 130)

A narrativa de Rubens Figueiredo deixa à mostra o ‘engodo’ subjacente à


prática literária, ao mesmo tempo que os mecanismos utilizados pela personagem
para escamoteá-lo, transformando o artificialismo em verdade autêntica: Pedro
contava transformar-se, enfim, e de dentro para fora, no escritor conceituado e
reconhecido que no fundo sabia ser. O escritor que tinha todo o direito de ser
(FIGUEIREDO, 2006, p. 133-134).
As narrativas de Coetzee, Kafka e Rubens Figueiredo levam à
problematização do lugar da literatura no âmbito das ciências humanas e de suas
vinculações com o sistema cultural, do qual a academia faz parte. Até que ponto,
estudiosos e intelectuais que fazem da literatura seu campo de conhecimento - e
reconhecimento - não transformam a literatura num objeto homogêneo, à medida que
a submetem aos mesmos padrões teóricos e metodológicos de análise?
A indagação sobre o papel dos estudos literários no âmbito da academia
revela-se crucial, uma vez que este locus é responsável pela instituição de um
pensamento sobre a literatura, o qual interfere diretamente nas práticas de ensino e
pesquisa dessa disciplina e nos modos como professores e estudantes atribuem-lhe
sentido e relevância. Justifica-se, assim, a necessidade de investigar em que medida a
pesquisa literária tem oferecido novas alternativas de estudo, considerando sobretudo
o contexto cultural contemporâneo, em que a lógica de mercado põe por terra os
valores humanistas e emancipatórios que durante muito tempo conferiram
legitimidade à literatura, tornando-a indispensável à tarefa civilizatória.
Até o século XIX ninguém colocava em dúvida o valor e a necessidade da
literatura para a formação cultural e humanística dos indivíduos, prestígio a que se
liga a formação do cânone literário como conjunto de obras representativas dos mais
altos ideais civilizatórios. Nos últimos anos, porém, o estado de barbárie, violência e
indignidade em que vivem as mais diversas sociedades do planeta no mínimo
colocam em dúvida as promessas emancipatórias da literatura e das humanidades em
geral, uma vez que, encerradas nos textos, tais promessas sobrevivem apenas como
“exercícios hermenêuticos” descolados da realidade e das alternativas efetivas de
transformação. Ler, escrever e estudar literatura tornam-se assim tarefas
“inofensivas”, cultivadas por espíritos ilustrados, que acreditam na cultura literária
como depositária de verdades universais, mas que pouco servem para modificar as
formas de interação dos seres humanos no espaço social. A concepção de literatura
como verdade redentora acaba bloqueando a reflexão sobre que práticas literárias e
em que termos elas tornam-se significativas em diferentes situações e contextos.
Reduzida hoje à diversão imediata, ou simplesmente glamourizada pela
exposição midiática, ou ainda tida como objeto de culto nas esferas letradas e a duras
penas sobrevivendo como componente obrigatório nos currículos escolares, a
literatura tem cada vez mais relegadas suas qualidades formativas e enfraquecido seu
poder de intervenção crítica sobre a sociedade. Diante desse quadro, é inevitável que
se avalie em que medida os pressupostos teóricos e metodológicos que orientam os
estudos literários na universidade estão a serviço da legitimação de um modo de
conhecer em que as teorias, métodos e resultados reproduzem um paradigma
instrumental, tornando imperceptível o caráter de ato humano, social e cultural da
literatura, por meio do qual o sujeito percebe a sua presença viva e participante no
mundo (BAKHTIN, 1992).
Neste artigo, com o objetivo de traçarmos possíveis tendências de estudos no
campo da literatura, apresentamos alguns dados empíricos, relativos ao levantamento
de teses de doutorado defendidas em programas de pós-graduação em letras de
universidades brasileiras2. Tais dados são úteis à reflexão epistemológica, para qual é
indispensável a análise das práticas científicas correntes na academia (BOURDIEU,
1996; SANTOS, 2002).

2 – Cenário empírico

A análise do conjunto de resumos (vide nota 1) - nos quais foram


identificados corpus (objeto sobre o qual incide a análise); teorias/conceitos (o que
fundamenta a pesquisa); métodos (estratégias de estudo utilizadas) – permitiu-nos
chegar a cinco categorias que definem os padrões recorrentes da pesquisa literária.
A primeira categoria refere-se àqueles trabalhos que denominamos de
aplicação teórica. Trata-se de análises que privilegiam a obra em si mesma, em seus
elementos construtivos e/ou em comparação com outros textos e manifestações de
linguagem, valendo-se de aportes conceituais “aplicados” à leitura das obras. Como
exemplos ‘ideais” dessa categorização, podemos citar temas como: a verdade e o
sagrado em Jorge de Lima, à luz da filosofia de Heidegger; a ironia romântica de
Schlegel e Novalis em Machado de Assis; a polifonia em Clarice Lispector; a poética
de Autran Dourado; símbolos na poesia e na pintura; a representação da mulher na
literatura e no cinema, etc.
Na segunda categoria, que denominamos análises sócio-históricas, incluem-
se as interpretações de obras (literárias e na relação destas com outras manifestações
artísticas ou gêneros), tendo em vista a relação com o contexto exterior, ou seja, a
realidade representada na obra. São exemplos típicos dessa categoria trabalhos como:
migrantes nordestinos na literatura brasileira; visões do Brasil em Grande sertão:
veredas; o integralismo nos romances de Plínio Salgado; a representação da realidade
em romances brasileiros contemporâneos; imagens do Rio de Janeiro na fotografia e
no romance do século XIX, etc.
Uma outra categoria é a que denominamos de problematizações teóricas,
tendo em vista a ênfase na reflexão e no questionamento de conceitos e problemas

2
O levantamento recobre o período de 2000 a 2007. Ao todo foram recolhidos 908 resumos,
disponibilizados no banco de teses da CAPES. Desses dados, recortamos um universo de 305 teses,
defendidas em três Programas de três diferentes universidades, avaliados com conceitos 6 e 7 –
constituindo-se, portanto, em referências na área de estudos literários.
literários, não se limitando à aplicação de conceitos, mas à formulação teórica.
Podemos citar como exemplos nessa linha estudos: problematização acerca dos
modos de ler; hipóteses sobre a textualidade literária; entrelaçamentos discursivos da
literatura; a construção de laços entre ciência e arte na literatura; escrita literária
como performance ética, etc.
Bem menos comum é a categoria de estudos empíricos, os quais ampliam sua
fonte de dados para além do texto literário, voltando-se para o levantamento de dados
colhidos em outros meios e suportes, incluindo consulta em arquivos, depoimentos,
entrevistas, pesquisa de campo, jornais, etc. Exemplos desse tipo de pesquisa: a
reconstrução da trajetória poético- intelectual através de cartas; diálogo entre
intelectuais brasileiros e uruguaios, a partir da troca de correspondências; elaboração
de biografias literárias, a partir de depoimentos, anotações, entrevistas e
correspondências; relações entre memória, história e literatura, com base na consulta
a arquivos, etc.
Por fim, temos as análises sistêmicas, aquelas investigações que se atêm
sobre as condições materiais de produção da literatura e de suas instâncias de
produção/recepção/circulação. Os trabalhos aqui agrupados privilegiam o circuito
que dá existência concreta aos textos, de modo a interferir no seu processo de
constituição como objeto literário. São exemplos dessa linha de trabalho: o papel de
mediador do escritor no marketing da escrita literária; modos como a trajetória
política e econômica da nação brasileira determina a derrota do projeto literário de
Monteiro Lobato; literatura, tradução cultural e processos de afirmação de
comunidades surdas; relações entre padrões textuais e valores sociais como forma de
inscrição do texto nos modos de organização e apresentação do conhecimento em
fóruns especializados; espaços contemporâneos de disseminação e consagração da
literatura brasileira.
A concentração maior de teses está nas categorias 1 (aplicação teórica) e 2
(análises sócio-históricas), com 43,6% e 44,6%, respectivamente. Na categoria 3
(problematizações teóricas) situam-se 5% das teses e, nas categorias 4 (estudos
empíricos) e 5 (análises sistêmicas), estão 3,% e 3,6% das teses, respectivamente.
Uma rápida observação dos dados permite identificar uma clara tendência nos modos
de estudo da literatura na academia, tendo em vista a alta concentração – 88,2% -
nas duas primeiras categorias. O paradigma que parece orientar esses estudos é o que
poderíamos denominar de hermenêutico, segundo o método que elege o texto como
portador de significados isolados das condições materiais que interferem na produção
de sentidos.
Os padrões acadêmicos de produção de conhecimento são merecedores de
atenção crítica. Sem querermos reduzir a riqueza e mesmo as sutilezas dos temas e
abordagens propostas nas teses em foco, tomamos as categorias como válidas para
delinear um certo perfil da área, mais ou menos generalizável. É fácil verificar a
existência de um certo consenso em relação às práticas de estudo da literatura na
academia, o que pode ser compreendido à luz do que Bourdieu caracteriza como
habitus, ou seja, “resultado de uma ação organizadora”, produto de esquemas de
ação (BOURDIEU, 1994). Tais práticas de pesquisa acadêmica instituem uma certa
epistemologia literária, tornando invisíveis outras possibilidades de conhecimento,
embora elas estejam potencialmente presentes em meio ao consenso
homogeneizante. Essa epistemologia ‘inconsciente’ parte da concepção de que o
estudo da literatura compreende a atenção ao texto fora das condições concretas que
lhe conferem existência, visto que a análise das obras não considera, via de regra, as
pressões do sistema social que influem sobre seu estatuto como objeto literário.
Uma mudança da epistemologia literária dominante caminharia em sentido
contrário à análise exclusivamente textual, que tende a manter as obras afastadas das
relações empíricas. Assim, a reivindicação de um novo paradigma de estudos
literários implica a consideração dos nexos materiais da obra com o contexto sócio-
histórico, com atenção à complexidade das mediações e das interações entre
literatura, condições e práticas sociais.

3 – Caminhos desviantes da pesquisa literária

As formas como o conhecimento é produzido na universidade são parte do


processo cultural e, sendo assim, resultam de relações com instituições e práticas que
as instituem. É nessa perspectiva que Raymond Williams (2000) situa sua análise
material da cultura, que busca justamente evidenciar as ligações entre processos
materiais de produção e esquemas de significações. No caso do estudo da literatura, a
diversidade de práticas sociais, valores culturais e experiências subjetivas são fatores
constitutivos do próprio objeto literário, daí a importância de considerá-los, sob pena
de o discurso acadêmico reduzir o laço da literatura com a vida concreta, bem como
sua participação nos processos de transformação social.
No conjunto de dados levantados, vislumbramos alguns exemplos de
trabalhos que apontam para caminhos alternativos de estudo, ou para o que
poderíamos entender, a partir de Boaventura de Souza Santos (2000), como
paradigma emergente dos estudos literários. Vejamos o resumo da tese a seguir, que
se define como:

um estudo sobre três espaços contemporâneos de disseminação e


consagração da Literatura Brasileira: a música popular brasileira; os meios
de massa; e a escola e a Academia Brasileira de Letras. A partir da coleta e
análise de dados sobre a divulgação de autores e obras nesses espaços,
observamos o tipo de literatura consumida em cada um deles e os modos
como ela é disponibilizada para a população. Comprovamos que todos
esses espaços são importantes na divulgação democrática do literário, pois
utilizam para isso, suportes diversos, dentro os quais citamos o livro, a tela
e a música. Desvinculada do livro como seu suporte ideal, observamos que
a Literatura Brasileira tem sido veiculada com bastante evidência em outros
meios contemporâneos e tem atingindo a população mais
democraticamente. Isso nos levou a concluir que, embora se deva preservar
o livro como suporte canônico e ideal para literatura, deve-se também
aproveitar os demais suportes aqui evidenciados para sua divulgação, com
vistas a suprir as demandas de acesso a esse importante produto simbólico
daqueles brasileiros analfabetos, semi-analfabetos ou não afeitos à leitura.
Nossa defesa dessa prática tem como principal argumento a preservação da
nossa rica cultura e da nossa tradição como herança a ser legada aos nossos
descendentes.

Mesmo que, nesse momento, nossa análise considere apenas a proposta


anunciada no resumo, e não a tese na íntegra, como seria desejável, é possível, para
fins de ilustração, destacamos pelo menos dois aspectos que consideramos relevantes
para uma discussão de ordem epistemológica. O primeiro refere-se à metodologia de
estudo, assim explicitada: A partir da coleta e análise de dados sobre a divulgação
de autores e obras nesses espaços, observamos o tipo de literatura consumida em
cada um deles e os modos como ela é disponibilizada para a população. Cabe
ressaltar aqui as diferentes fontes de dados, para além do suporte livro, que o
trabalho toma para a análise do processo de divulgação da literatura, instituições
canônicas e oficiais, como a Academia Brasileira de Letras e a escola, assim como os
meios de massa.
O segundo aspecto tem a ver com a vinculação do conhecimento a finalidades
práticas, do ponto de vista de sua inserção nos processos de transformação social, tal
como se manifesta no seguinte fragmento: com vistas a suprir as demandas de
acesso a esse importante produto simbólico daqueles brasileiros analfabetos, semi-
analfabetos ou não afeitos à leitura. O que sugere esse tipo de anúncio é a
implicação do sujeito-pesquisador no objeto que ele investiga, e a conseqüente
interação de ambos na realidade concreta, à medida que o estudo do literário é
pensado a partir da ampliação dos limites que condicionam sua disseminação e da
reivindicação de uma maior presença social da literatura.
Um outro exemplo servirá para, a partir do que ele nele lemos ao revés,
discutirmos acerca de uma ausência absoluta nos estudos literários analisados:

Esta tese discute conceitos centrais na Teoria da Literatura pós-50,


especialmente o destaque atribuído à figura do leitor. Focalizam-se
três linhas principais de reflexão: a Hermenêutica da Compreensão
de Gadamer e a Estética da Recepção; a Semiótica da Recepção de
Umberto Eco e a Semiologia. O objetivo é na discussão de uma
pedagogia da Leitura que tome como referência a Teoria,
promovendo a problematização de conceitos com vistas ao
desenvolvimento da capacidade analítico-interpretativa dos
educandos.

A proposta de estudo teórico da figura do leitor volta-se para o


desenvolvimento da capacidade analítico-interpretativa dos educandos. Embora não
seja possível saber, pelo resumo, em que medida a tese efetiva uma proposta
pedagógica de leitura da obra literária, ela torna visível uma ausência quase absoluta
nos estudos literários que investigamos, justamente a consideração do leitor real e de
suas práticas concretas de leitura. Seja no âmbito da escola ou de outros espaços e
grupos sociais, não encontramos nenhum trabalho voltado a investigações empíricas
do processo de leitura. Mesmo que esse dado refira-se apenas ao corpus de resumos
analisados (total de 305), a hipótese é a de que essa tendência seja confirmada,
conforme nos indica a leitura do total de resumos recolhidos (905 ao todo). Do ponto
de vista epistemológico, o que essa ocorrência nos diz é, novamente, o quão pouco
afeita é a investigação literária às relações com a materialidade da experiência, e
ainda, uma certa concepção de objeto literário como universal, alheio à variedade de
público e aos sentidos que adquire para eles em particular.

4 – Pontos de chegada e de partida

Conforme apontam os dados, em geral, a tendência hermenêutica de estudos,


atenta à análise formal e intrínseca do texto ou às suas relações estruturais com o
contexto, perde de vista a inserção ‘real’ da literatura no sistema social, tendo em
vista mecanismos de produção, circulação e recepção das obras. Outra linha carente
de abordagens refere-se à reflexão sobre os diferentes sentidos que o texto adquire na
experiência cotidiana dos sujeitos, sendo quase nula a atenção ao modo como os
textos inserem-se na experiência social e individual.
Conceber os estudos literários a partir de novas bases traz como conseqüência
o alargamento do campo de investigação, juntamente com a reavaliação do próprio
objeto, das teorias e dos métodos empregados para conhecê-lo. Assim, os dois
resumos analisados servem-nos de base para apontarmos pelo menos duas
alternativas que representariam uma mudança de paradigma nos estudos literários, na
direção do que denominamos de análises sistêmicas.
A primeira comporta estudos que privilegiem as condições sociais e culturais
de produção da literatura, vista como objeto que participa do sistema de relações da
sociedade, com repercussões não só na forma do literário, como na função e valor
que assume para diferentes grupos sociais. Esse modelo tem sua referência nos
estudos culturais de Raymond Williams, autor que, embora conhecido no meio
acadêmico, inspira ainda poucos trabalhos do ponto de vista de sua metodologia de
análise.
A segunda alternativa vai na linha de uma antropologia da leitura,
privilegiando investigações centradas em situações de leitura e condições em que o
os sentidos particulares se constituem para determinados públicos e em dados
contextos e considerando os processos culturais envolvidos nos atos individuais e
coletivos concretos de leitura. Podemos tomar como referência desse paradigma a
teoria de Gabriele Schwab (1996), que entende a leitura como forma de contato
cultural, em um nível concreto de manifestação, divergindo dos padrões abstratos de
interpretação que orientam a metodologia de Iser, a qual serve à autora como ponto
de partida.
O conhecimento literário ganharia em inserção e amplitude social à medida
que não se limitasse a um conteúdo com referência apenas a obras e autores, alheio à
complexidade das mediações e das interações com a experiência concreta. É essa
concretude da literatura, integrada aos novos processos sociais e tecnológicos, que
permanece ausente nos programas de ensino e pesquisa investigados neste trabalho.
Para além de atividade espiritual, a literatura é constitutiva de um conjunto de ações,
instituições, estruturas e condições objetivas que a enformam e às quais responde.
Assim, pensar o lugar que ela ocupa na vida cultural, social e política do nosso tempo
poderia vincular as disciplinas literárias a tarefas prioritárias do ponto de vista
social e político (GUMBRECHT, 1998), conferindo ao conhecimento produzido na
área um compromisso ético (SANTOS, 1989, p. 86), com evidentes repercussões
sobre as práticas de pesquisa e ensino da literatura.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo:Martins Fontes, 1992.

BANCO DE TESES DA CAPES. Disponível em http://servicos.capes.gov.br/capesdw/.


Acesso em novembro de 2009.

BOURDIEU, Pierre. Sociologia. São Paulo: Ática, 1994.

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia da Letras, 1996.

COETZEE, J. M. Elisabeth Costello. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

FIGUEIREDO, Rubens. Contos de Pedro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Corpo e forma. Rio de Janeiro: UERJ, 1998.

KAFKA. Um médico rural. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução à ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal,


1989.

SANTOS, Boaventura de Souza. Crítica da razão indolente. São Paulo: Cortez, 2002.
SCHWAB, Gabriele. Towards na Ethnografy of Reading: a theoretical framework. In: The
mirror and the Killer-Queen: Otherness in literary language. Indiana University Press, 1996.

WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

WILLIAMS, Raymond. Cultura. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

Rejane Pivetta de Oliveira


Doutora em Letras; professora e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras do
UniRitter , Porto Alegre, RS.

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