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CADERNOS DE HISTÓRIA

Cad. hist. Belo Horizonte v. 4 n. 5 p. 1-52 dez. 1999


PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Grão-Chanceler
Dom Serafim Fernandes de Araújo

Reitor
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Guimarães Souki; PUC Minas Arcos – Ângela França Versiani; PUC Minas Betim – Carmen
Luiza Rabelo Xavier; PUC Minas Contagem – Geraldo Márcio Guimarães; PUC Minas Poços de
Caldas – Geraldo Rômulo Vilela Filho e Maria do Socorro Araújo Medeiros; PUC Minas São
Gabriel – José Márcio de Castro; Diretor do Instituto de Ciências Humanas: Audemaro
Taranto Goulart; Chefe do Departamento de História: Maria Mascarenhas de Andrade;
Colegiado de Coordenação Didática: Lucília de Almeida Neves, Maria Alice Moreira
Lima, Maria Mascarenhas de Andrade (Coordenadora) e Rui Edmar Ribas;
Conselho Editorial: Carlos Fico (UFOP), Eliana Fonseca Stefani (PUC Minas),
Liana Maria Reis (PUC Minas), Lucília de Almeida Neves (PUC Minas),
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Rezende (UFMG); Coordenação Editorial: Alysson Parreiras Gomes,
Cláudia Teles; Coordenação Gráfica: Pró-reitoria de Extensão – PROEx;
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Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais


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Tiragem
1.000 exemplares

Preparada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Cadernos de História. — out. – 1997 — Belo Horizonte: PUC Minas,

v.

Anual

1. História – Periódicos. I. Pontifícia Universidade Católica


de Minas Gerais. Departamento de História.

CDU: 98 (05)
SUMÁRIO

Manifesto comunista: história, utopia e inclusão social


Lucília de Almeida Neves .......................................................................................... 5

Sexualidade, casamento e confissão na América portuguesa


Maria Augusta do Amaral Campos .......................................................................... 15

Os espelhos de príncipes: um velho gênero para


uma nova História das Idéias
Marcos Antônio Lopes ............................................................................................... 21

Cultura, memória e identidade – contribuição ao debate


José Márcio Barros ..................................................................................................... 31

Democracia antiga e democracia moderna


Cristina Vilani ........................................................................................................... 37

RESENHAS
FRANCO JÚNIOR, Hilário. Cocanha: a história
de um país imaginário
Heloisa Guaracy Machado......................................................................................... 43

BLUMEMBERG, Hans. Naufrágio com espectador


Andrea Luciana Vieira, Cyntia Lacerda Bueno, Evandro Alves Bastos,
Fabiana Melo Neves, José Otávio Aguiar e Tereza Cristina de Laurentys ............... 48

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MANIFESTO COMUNISTA: HISTÓRIA, UTOPIA E INCLUSÃO SOCIAL

MANIFESTO COMUNISTA: HISTÓRIA,


UTOPIA E INCLUSÃO SOCIAL

Lucília de Almeida Neves*

RESUMO
O presente artigo aborda os conceitos de história e utopia mediante
análise do Manifesto comunista de Marx e Engels. Ele acentua o rele-
vante papel de um dos mais famosos programas políticos do século
XIX e procura interpretar seu significado nos dias atuais, ao final do
século XX.
Palavras-chave: Utopia; Inclusão social; Igualdade.

O
Manifesto do Partido Comunis- ronda a Europa”. “Segue depois um vôo
ta, certamente o mais conheci- de águia sobre a história das lutas sociais
do texto de Marx e Engels, in- desde a Roma antiga até o nascimento e
fluenciou de forma definitiva as lutas so- desenvolvimento da burguesia, e as pági-
ciais e políticas dos séculos XIX e XX. Além nas dedicadas às conquistas desta nova
disso, através da utilização sensível de me- classe revolucionária constituem o seu
táforas, constitui o texto tradutor de um poema fundador”. (Eco, 1998, p. 32)
utópico, generoso e ousado projeto de Poema fundador de uma utopia trans-
emancipação da humanidade: o igualita- formadora, que projetou o nascimento de
rismo. novos sujeitos históricos (os assalariados),
Para Umberto Eco, o Manifesto “é um que identificou o caráter modernizador e
texto formidável que sabe alternar tons revolucionário do capitalismo, que assina-
apocalípticos e ironia, slogans eficazes e lou a emergência de uma economia inter-
explicações claras”. O texto, de estilo pu- nacionalizada e que previu uma trajetó-
blicitário extremamente atual, de acordo ria de crises e de exclusão social para o
com o referido autor, “começa com um for- próprio capitalismo.
midável toque de tímpano, como a Quin- Para Hobsbawm é um texto arrebata-
ta Sinfonia de Beethoven”: “Um espectro dor, marcado por forte convicção apaixo-

*
Professora Titular – PUC Minas.

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Lucília de Almeida Neves

nada, por força intelectual e estilística, por generosas, desejos de transformações e


uma retórica política “que possui uma for- ímpetos de renovação e justiça social, as
ça quase bíblica”, representando o “escri- utopias revelam as carências do tempo
to político individual mais influente des- presente e as possibilidades do tempo fu-
de a Declaração dos Direitos do Homem turo. Nas metas utópicas está presente
e do Cidadão da Revolução Francesa”. uma consciência antecipadora que trans-
(Hobsbawm, 1998, p. 294 e 300) forma o movimento em direção ao futuro
em dinâmica viva do tempo presente.
Dessa forma, o conceito de “sonho” rela-
UTOPIA E HISTÓRIA ciona-se aos sentimentos de melhoria do
vir-a-ser e de rechaçamento da situação
Obra-prima de oratória e persuasão, o presente. O olhar através do tempo faz o
Manifesto comunista constitui uma sim- homem maior do que seu próprio tempo,
biose de utopia e práxis. É um texto no tornando-o capaz não só de antever, mas
qual a questão teórica (ali expressa de for- também de construir o porvir.
ma preliminar, mas densa) cede espaço ao A visão de que as utopias são irrealizá-
empenho apaixonado e visionário da prá- veis é negada pelo movimento da Histó-
tica. Dessa forma, o olhar para o futuro, ria, através do qual os projetos de pensa-
em busca de uma sociedade igualitária, é dores e revolucionários, mesmo que na
também a luta do presente. Marx e En- maioria das vezes tendo se adaptado às
gels anteciparam, portanto, a concepção condições concretas da realidade, consti-
de movimento da história, segundo a qual tuíram estímulos para processos históri-
o futuro está contido no presente. cos transformadores. Para Ernst Bloch, a
A dinâmica da história – como já afir- consciência antecipadora inerente às uto-
mava o célebre historiador francês, Jac- pias é imprescindível à práxis (Bloch,
ques Le Goff – constitui uma relação com- 1947). Constitui fermento de projeções te-
plexa entre passado e presente e/ou entre leológicas, ações através das quais a po-
presente e passado. Todavia, o mais im- tencialidade do futuro converte-se em
portante significado da História encontra- concretude, metas alcançadas, mesmo que
se na projeção de futuro. Os iluministas em inúmeras vezes de forma parcial.
do séc. XVIII, ao afirmarem uma visão oti- Para Konder,
mista da História e do progresso, projeta-
ram com toda a força revolucionária da ao constituírem expressões das condições pre-
época a perspectiva de um novo tempo. sentes em que o utopista sonha o futuro, as uto-
Para eles, o sentido da História consistia pias influem de algum modo sobre a disposição
com que as pessoas passarão a enxergar os pro-
na possibilidade de construção de um blemas do que está por vir. Utopias, por conse-
mundo alternativo àquele no qual esta- guinte, são manifestações extremamente signi-
vam inseridos. Nesse sentido, para D’A- ficativas no âmbito da história cultural. (1998,
lembert, Diderot e Voltaire, o presente his- p. 71)
tórico era alimentado pela seiva visioná-
ria das utopias. O espírito utópico é seiva viva das re-
As utopias são aspirações vivificadoras voluções, que só se concretizam se anima-
da História, e seu florescimento nunca é das pela energia dos lutadores do passa-
aleatório. Ao alimentarem inquietações do, pelo visionarismo que faz com que,

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MANIFESTO COMUNISTA: HISTÓRIA, UTOPIA E INCLUSÃO SOCIAL

de acordo com Benjamin, o sonho guarde UM MANIFESTO REVOLUCIONÁRIO


secretamente o despertar. (Benjamin, 1985) E SEU MUNDO
Considerando que a mentalidade utó-
pica pode transcender a realidade e se Foi em dezembro de 1847, no segundo
transformar em conduta, Marx e Engels Congresso da Liga dos Comunistas, a an-
apostaram na conclamação do proletaria- tiga Liga dos Justos, que Karl Marx e Frie-
do à luta pela transformação do mundo drich Engels receberam a incumbência de
no qual estavam inseridos. Utopia e prá- escrever um libelo que expressasse o pro-
xis constituindo uma dupla mas única rea- grama da organização e que pudesse ser-
lidade projetiva de um novo e renovado vir de orientação para as lutas do nascen-
tempo. A consciência utópica transmu- te proletariado europeu.
dando-se, então, em consciência históri- A Liga dos Comunistas tinha pressa em
ca, penetrando de forma integral o mo- ver concluído o trabalho encomendado,
mento presente e transformando-o, com pois estava convicta de que uma grave cri-
vistas à concretização de um sonho de se ameaçava o capitalismo, tornando fér-
transmutação do real. til o terreno para pregações e manifesta-
Um olhar voltado para o futuro, um ções revolucionárias. Em decorrência des-
princípio de esperança do porvir, um li- sa certeza, não hesitaram em pressionar
belo revolucionário são possíveis manei- Marx e Engels para que concluíssem ra-
ras de se identificar o Manifesto comu- pidamente seu trabalho.
nista de 1848. Todas elas, entretanto, con- Com efeito, o ambiente da Revolução
têm a concepção de seus autores de que o Industrial na Europa apresentava-se pro-
homem emancipado de toda a forma de pício às pregações revolucionárias que
determinismo deveria e poderia tornar- anunciassem a derrubada do sistema eco-
se o sujeito de sua própria história. Her- nômico capitalista. Mesmo porque tal sis-
deiro, de certa forma, do Iluminismo, o tema, apesar de revolucionário, potencia-
Marxismo, que nascia naquele tempo, lizava uma forte exclusão social. Por isso,
acreditava na possibilidade de compreen- tornavam-se candentes aos corações do
der o mundo através da razão, para assim proletariado propostas que previam a der-
poder transformá-lo. rubada do modelo de dominação então
A perspectiva do pensamento marxis- predominante por eles mesmos – novos e
ta de antecipar o futuro, para poder des- revolucionários sujeitos da História – de-
sa forma controlá-lo, se não chegou a se nominados por Marx e Engels de “andra-
concretizar em várias frentes, influenciou, jos sem nada”.
sem dúvida, os rumos da história contem- Identificado pelo marxismo como con-
porânea da humanidade. Em decorrên- dutor de sua própria história, ao proleta-
cia, o princípio utópico que alimentou a riado caberia a tarefa de mudar o mundo,
luta dos socialistas e comunistas, e as con- de criar um novo tempo, de plantar a se-
quistas sociais decorrentes das lutas por mente da igualdade. Sem dúvida, a con-
eles empreendidas ou por eles influencia- juntura favorecia acalentarem-se certezas
das, nos permitem afirmar que a história de que um novo sujeito da história, de fa-
da humanidade, pós-século XIX, não te- to, havia nascido. Cabia a ele auto-reconhe-
ria sido a mesma sem a contribuição visi- cer-se como tal, para poder empreender a
onária de Marx e Engels. revolução que significaria sua redenção.

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Lucília de Almeida Neves

Naquele ano de 1848, quando Marx e cuja sede localizava-se em Londres. É evi-
Engels concluíram a tarefa e publicaram dente que sua influência direta sobre os
seu manifesto, a Europa vivia uma onda acontecimentos de 1848 foi praticamente
de revoluções – movimento identificado inexistente, sobretudo porque a tradução
como a Primavera dos Povos. A conjun- do texto para outras línguas atrasou-se
tura efervescente colocava em lados opos- consideravelmente. A versão em inglês
tos burguesia e proletariado. Como toda data de 1850; em russo, de 1859; e em fran-
primavera é efêmera, a conjuntura tam- cês somente foi publicada em 1872.
bém caracterizou-se por uma inegável ra- Mas se o Manifesto não chegou a ter
pidez do processo histórico. Nos anos que influência determinante nos aconteci-
se seguiram à onda revolucionária de mentos de 1848, sua relação com eles é
1848, o capital encontrou seu grande pe- real. Cabe, quanto a esse aspecto, desta-
ríodo de expansão através do imperialis- car que a onda revolucionária que varreu
mo; todavia, os comunistas, já mais bem a Europa naquele ano constitui, junta-
organizados, fundaram a Primeira Inter- mente com o Manifesto – primeiro libelo
nacional. Isso porque a primavera de 1848, do marxismo, o substrato da marca de um
apesar de efêmera, havia frutificado. tempo: o signo de uma fase da história na
De fato, 1848 nasceu sob o signo das qual se projetou e se buscou a tomada de
insurreições. Em fevereiro, na França, um poder pela classe operária, mesmo em paí-
levante operário derrubava a monarquia ses como a Itália e a Alemanha, nos quais
de Luís Felipe e proclamava a república, sua existência ainda era precária.
constituindo um governo no qual os so- “Certos períodos são marcados pela
cialistas estavam presentes. O que ocor- ruptura, pela eclosão irrefreável do novo”
reu na França pode ser identificado como (Paula apud Reis, p. 141). São épocas da
paradigma de todas as revoluções de 1848 história nas quais a transformação predo-
na Europa. Em diversos lugares a burgue- mina em detrimento da continuidade. São
sia parecia colocar-se em posição de recuo, tempos de se olhar para o futuro em de-
temendo a radicalização dos socialistas. trimento da visão retrospectiva. Foi assim
Com certeza, a perspectiva revolucio-ná- com o advento da Idade Moderna, que
ria anunciava-se como uma ameaça pa-ra trouxe o Humanismo Renascentista, a
a classe industrial. Marx e Engels, ao afir- Revolução Comercial, o descortinar de um
marem no Manifesto comunista que o es- novo mundo e a Reforma Protestante. Foi
pectro do comunismo rondava a Europa, assim com o advento do Liberalismo, que
tornaram real, aos olhos da burguesia, essa propugnou o rompimento com um Esta-
ameaça. do monárquico, centralizado e interven-
Os acontecimentos da França irradia- cionista. Foi assim com o século XVIII, que
ram-se para o conjunto de países euro- protagonizou a independência dos EUA
peus. Nesse contexto de turbulência, paí- e a Revolução Francesa. Essas duas expe-
ses como a Itália, a Alemanha, a Polônia, a riências concretas, já mais próximas do afã
Áustria e a Bélgica foram, cada um a seu socialista do séc. XIX, fariam da liberdade
modo, sacudidos por insurreições revo- política e da questão social temas centrais
lucionárias. em sua época.
O Manifesto foi publicado no mês de Cada época revolucionária tem sua re-
fevereiro, em alemão, por uma editora presentação traduzida por imagens

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MANIFESTO COMUNISTA: HISTÓRIA, UTOPIA E INCLUSÃO SOCIAL

(construção imagética de um tempo), por Além disso, consolidou as linhas essen-


obras de artes, por obras literárias, por ciais da ontologia do ser social marxista –
composições musicais, por obras filosófi- o materialismo histórico, já anteriormen-
cas, por manifestos e libelos. Para João te elaboradas na Ideologia alemã (1845) e
Antônio de Paula, O princípe, de Maqui- na Miséria da filosofia (1847). A contri-
avel (1513) e o Elogio da loucura, de Eras- buição teórica do materialismo dialético
mo (1511) representaram o advento da ultrapassou as possibilidades da práxis,
modernidade humanista. Já O segundo sempre delimitada pelas condições estru-
tratado sobre o governo, de Locke (1690), turais e conjunturais, transformando-se
é um típico ma-nifesto liberal. E as obras em paradigma norteador de inúmeras
de Rousseau, Di-derot e D’Alembert re- obras filosóficas, econômicas, históricas e
presentam o desejo de liberdade e de pre- sociológicas ao longo dos séculos XIX e XX.
domínio da razão iluminista que orientou
a Revolução Francesa. Essas são obras que
representam a aspiração de seu tempo. OS 150 ANOS DO MANIFESTO:
Não são as únicas que o fazem, mas são A POSTERIDADE DE UM DESAFIO
referências significativas de que os signos (ATUALIDADE E LIMITES)
de uma época são traduzidos pela capaci-
dade criativa dos sujeitos históricos (artis- O Manifesto comunista, lançado há
tas, intelectuais e povo) de cada tempo
150 anos, poderia parecer caduco neste
específico da trajetória da humanidade.
final de milênio, quando o marxismo vive
O Manifesto comunista e toda a obra
uma das suas mais profundas crises, cujo
marxista que o sucedeu traduzem as con-
momento mais marcante foi o do rompi-
dições do mundo capitalista industriali-
mento dos países do leste europeu com
zado do séc. XIX e a projeção de um futu-
“o socialismo real”. Mas a atualidade de
ro socialista renovador. Buscando falar
seu libelo revolucionário está em debate.
tanto à razão quanto à emoção, utilizou-
Para Carlos Nelson Coutinho (1998) “sur-
se de palavras e metáforas que traduzi-
preende a atualidade com que, por exem-
ram aspirações de liberdade e anseios de
igualdade. Combinou, além disso, uma plo, seus autores descrevem os funda-
análise do mundo burguês, que se conso- mentos do modo de produção e da for-
lidou com a Revolução Industrial, com um mação econômico-social capitalistas, sob
programa prático de ação e de luta. Dois cujo domínio continuamos a viver até ho-
eixos, portanto, o sustentam: a síntese teó- je” (p. 39). Já o sociólogo britânico Antho-
rica e histórica, e a práxis (a ação). ny Giddens, diretor da London School of
Seu impacto ultrapassou a conjuntura Economics, afirma que Marx foi o primei-
de sua publicação e inspirou lutas operá- ro pensador da modernidade capitalista
rias para além do séc. XIX. Síntese do sen- e que “O Manifesto continua válido como
timento de incompletude das conquistas instrumento de crítica do sistema capita-
sociais que sucederam à Revolução Fran- lista e da era da globalização”. (1998, p. 28)
cesa, desfraldou novas bandeiras de luta, Cabe ressaltar, todavia, que mesmo os
anunciou a perspectiva de um mundo al- marxistas contemporâneos não podem re-
ternativo ao mundo capitalista e identifi- petir mecanicamente o que é dito no Ma-
cou a sociedade como local da ação, da nifesto, pois o mundo mudou. E mesmo
práxis transformadora. que os problemas mais graves do sistema

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capitalista continuem persistindo, a con- 8. Trabalho obrigatório para todos, constituição


juntura atual é decididamente diferente de brigadas industriais, especialmente para
a agricultura;
da de 1848. Além do mais, ao lado de sua 9. Organização conjunta da agricultura e in-
extraordinária grandeza e de sua reconhe- dústria com o objetivo de suprimir paulati-
cida atualidade, o Manifesto também namente a diferença entre cidade e campo;
apresenta limites, pois na verdade nenhu- 10. Educação pública e gratuita para todas as cri-
anças. Supressão do trabalho fabril das cri-
ma obra histórica pode ser desprendida
anças, tal com praticado hoje. Integração da
das condições do tempo nas quais foi pro- educação com a produção material.
duzida.
Por isso, Coutinho insiste que reler o Esses pontos programáticos permitem-
Manifesto, mesmo do ponto de vista mar- nos reafirmar que o Manifesto comunis-
xista, “significa relê-lo de modo crítico, ta é decididamente datado e reflete as con-
relativizá-lo, situá-lo historicamente” dições daquele longínquo 1848. Todavia,
(1998, p. 152). Essa relativização histórica algumas de suas formulações, especial-
não significa, contudo, desconhecer que mente as relativas às questões sociais, edu-
o Manifesto está incluído no elenco das cacionais e do trabalho revertem-se de
obras clássicas criadas pela humanidade, atualidade alarmante, uma vez que, pas-
que resistiram ao tempo, podendo ser per- sados 150 anos de sua publicação, são pro-
manentemente revisitadas, pois apresen- blemas que continuam afligindo a huma-
tam um enfoque sempre atualizável. nidade.
O Manifesto comunista, que buscou Dessa forma, cabe destacar o primeiro
sintetizar as aspirações e o pensamento de item do programa, que diz respeito à ques-
comunistas de diferentes países europeus, tão agrícola, ao problema da terra. Na atu-
apresenta dez mandamentos, alguns apro- alidade, nos países desenvolvidos e de tra-
priados à conjuntura na qual foi publica- dição minifundiária, este problema não se
do, outros, todavia, bastante sintonizados cerca das conseqüências sociais graves que
com os problemas econômicos e de exclu- o tornam tão contundente nas nações
são social do final do presente milênio. As- não-desenvolvidas ou de desenvolvimen-
sim, resumidamente, são estes os princi- to interno desequilibrado. No Brasil, por
pais pontos do programa do Manifesto: exemplo, o problema da terra é estrutu-
ral. Constitui um fardo pesado e carrega-
1. Expropriação da propriedade latifundiária e
do por um período de longa duração. Re-
utilização da renda da terra para cobrir des-
pesas do Estado; monta às capitanias hereditárias, teve sua
2. Imposto fortemente progressivo; marca indelével no coronelismo e mani-
3. Abolição do direito de herança; festa-se de forma marcante na conjuntu-
4. Confisco da propriedade de todos os emigra- ra atual pela miséria dos bóias-frias e pelo
dos e sediciosos;
5. Centralização do crédito nas mãos do Estado, movimento dos trabalhadores sem terra.
através de um banco nacional com capital Quanto à questão tributária, é lugar-
estatal e monopólio exclusivo; comum afirmar que, no caso brasileiro,
6. Centralização do sistema de transportes nas ainda é um problema muito mal resolvi-
mãos do Estado;
do. Os impostos mais drásticos incidem
7. Multiplicação das fábricas e dos instrumen-
tos de produção pertencentes ao Estado, des- principalmente sobre os assalariados. O
bravamento das terras incultas e melhora das capital é proporcionalmente pouco tribu-
terras cultivadas, segundo um plano geral; tado e a utilização dos recursos advindos

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MANIFESTO COMUNISTA: HISTÓRIA, UTOPIA E INCLUSÃO SOCIAL

da tributação é mal implementada, não cos do Manifesto, consideramos ser ne-


privilegiando programas sociais. cessário dar uma atenção especial à ênfa-
A questão do trabalho e do emprego, se do texto sobre a questão internacional.
podemos afirmar, de forma categórica, é A profecia de Marx e Engels de que o ca-
indiscutivelmente atual. O problema do pital age sem fronteiras em todo o mun-
desemprego atinge a maioria dos países do não só se confirmou ao longo dos sé-
capitalistas do mundo, chegando em al- culos XIX e XX, como ganhou dimensões
gumas nações européias à marca dos 16% especiais neste final dos anos de 1900. O
e em outras latino-americanas à faixa dos tema da globalização, hoje em moda no
13%. Quando se vê no Brasil um proces- mundo ocidental e oriental, há muito foi
so de precarização dos contratos de tra- enfrentado pelos pais do marxismo. Mas,
balho, experiência já em curso e sem êxi- na análise contemporânea que se faz da
to na Argentina, a proposição de direito globalização, é preciso destacar que as
ao trabalho é decididamente muito impor- condições internacionais do mundo con-
tante e reverte-se de uma urgência inques- temporâneo em muito diferem daquelas
tionável. próprias aos idos da primeira metade do
Já o ponto do programa que trata da século XIX.
organização conjunta da indústria e da O cenário aberto pelo texto de 1848
agricultura tem, segundo João Antônio apresenta-se bastante diferente, pois os
Paula, “a força da antecipação, à luz das sujeitos históricos já não são os mesmos.
idéias que avançam o seu tempo e são con- Em suma, a sociedade tornou-se mais
temporâneas do futuro” (p. 152). Para o complexa, mais pluralista. A dicotomia
autor, essa idéia é bastante atual, relacio- burguesia/proletariado, que já era limita-
nando-se a problemas socioambientais. da para se explicar a sociedade emergen-
Trata-se de uma estratégia premonitória te nos primeiros anos da industrialização,
de enfrentamento da crise de explosão ur- definitivamente não se encaixa na com-
bana e de precarização das condições de plexidade social do mundo no qual vive-
vida das grandes metrópoles no séc. XX. mos. Camadas sociais intermediárias (téc-
O décimo ponto cala fundo, principal- nicos, gerentes, executivos, profissionais
mente nos países nos quais a mão-de-obra de serviços) são ativas e correspondem à
infantil é vergonhosamente explorada e diversificação de atividades econômicas
em que os problemas educacionais, prin- do mundo capitalista. Além disso, existem
cipalmente os relativos ao acesso à esco- segmentos expressivos da população
laridade e à permanência no sistema es- mundial que desenvolvem seu trabalho
colar, ainda encontram-se sem solução. No nas áreas rurais, através de diferentes for-
Brasil, de acordo com dados do IBGE/Uni- mas de inserção no processo produtivo
cef (1997), é alarmante a incidência de tra- (assalariados, pequenos proprietários, ar-
balho infantil, que chega a atingir cerca de rendatários, bóias-frias, etc). Também ca-
3,2% de crianças na faixa etária de 5 a 9 anos, be registrar que é significativo o número
especialmente nas áreas rurais e 24% de cri- de profissionais liberais que não se encai-
anças e adolescentes entre 10 e 14 anos, con- xam na dicotomia apresentada nos pri-
siderando-se o universo da população do mórdios do marxismo. Finalmente, exis-
país nessa faixa de idade. (p. 130 e 132) tem segmentos expressivos da população
Analisados alguns pontos programáti- que freqüentemente estão fora do proces-

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Lucília de Almeida Neves

so produtivo. No Brasil eles constituem RECONSTRUIR UTOPIAS: PRESENTE E


1/3 da população e na Ásia correspondem FUTURO FRENTE AOS DESAFIOS DA
a quase a metade dos asiáticos. São os ex- EXCLUSÃO SOCIAL
cluídos do processo produtivo...
Mas esta não é a principal diferença en- O pensamento histórico marxista iden-
tre a globalização atual e a prevista pelo tifica na dimensão temporal uma tensão
marxismo. Marx e Engels previram que a constitutiva peculiar, através da qual é
internacionalização da economia capita- possível identificar os movimentos trans-
lista seria, em um primeiro momento, formativos, que são o cerne da História.
opressiva, especialmente para os países Trata-se de movimentos dialéticos, que
mais pobres, mas que uma segunda fase compreendem a relação entre presente e
da internacionalização seria caracterizada passado, e entre pensar e agir. Assim, na
pela libertação revolucionária dos traba- concepção marxista, o conhecimento his-
lhadores de todo o mundo. Tal prognósti- tórico pressupõe articular a temporalida-
co não se confirmou. O processo de glo- de com as múltiplas dimensões da vida
balização não se tem caracterizado por social e econômica. As contribuições de
uma linearidade definida. O desequilíbrio Marx nesse terreno são fundamentais, es-
entre as nações continua favorecendo os pecialmente no que se refere à questão da
países mais fortes. Em outras palavras, o totalidade, pois a leitura de sua obra indi-
mundo unificado pelo capitalismo não se ca que, longe de estar preso a um econo-
tornou homogêneo. Pelo contrário, é mar- micismo reducionista, havia compreendi-
cado por uma distribuição desigual dos do ser a pluralidade uma dimensão essen-
poderes econômico, militar e político. cial da vida humana. Pluralidade ineren-
Quanto à libertação revolucionária do te à totalidade, e totalidade como síntese,
mundo do trabalho, pelo menos na atua- que compreende os aspectos econômicos,
lidade não constituiu realidade. Ao revés, essenciais à concepção marxista, mas in-
inúmeras conquistas de direitos sociais e corpora também as formas políticas, cul-
trabalhistas, alcançadas pelas lutas dos tra- turais e ideológicas próprias à vida em so-
balhadores no decorrer dos últimos 150 ciedade.
anos, estão ameaçadas nesses tempos de O Manifesto pode ser identificado co-
neoliberalismo e desregulamentação da mo um texto referencial do marxismo, que
ordem social. considera a vida humana nas suas múlti-
Mas a imagem dos textos clássicos de plas dimensões. É um libelo político, que
Marx e Engels de que a internacionaliza- compreende também uma análise histó-
ção capitalista seria como fogo na prada- rico-dialética na qual as dimensões eco-
ria, consumindo culturas nacionais e des- nômicas e sociais da emergente socieda-
caracterizando as fronteiras políticas, é de industrial estão registradas. Nesse sen-
hoje uma realidade inexorável. De fato, o tido, além da análise específica do modo
intercâmbio universal, mesmo que assi- de produção capitalista e dos impasses da
métrico, está presente no cotidiano de to- modernidade nascente, contém uma di-
dos os países do mundo. mensão de futuro, uma forte carga eman-
cipatória, um apelo à luta para que à ex-
clusão social – peculiar ao capitalismo –
suceda a inclusão social, através da im-

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MANIFESTO COMUNISTA: HISTÓRIA, UTOPIA E INCLUSÃO SOCIAL

plantação de uma nova ordem inspirada Dessa forma, a construção de novas


nos princípios do igualitarismo. utopias visionárias da inclusão social re-
Talvez possamos afirmar que o conteú- verte-se de urgência clamorosa. A pers-
do utópico emancipatório do Manifesto pectiva do alvorecer de um novo milênio
comunista esteja hoje em parte supera- contempla a humanidade com suas luzes.
do, pois as condições históricas do tempo Por isso, a ousadia do sonho de uma so-
presente são substantivamente diferentes ciedade mais igualitária reatualiza-se,
daquelas predominantes na primeira me- mesclando-se à proposição de uma ordem
tade do século passado. Talvez possamos política na qual persistam os valores da li-
também considerar, reportando-nos a Cou- berdade individual.
tinho (1998), que, mesmo um marxista, Utopia? Sonho ingênuo dos que insis-
tem em afirmar os valores da solidarieda-
(...) que compreenda a ortodoxia não como uma de humana? Talvez sim. Mas, se conside-
reverência fetichista aos textos, mas como um rarmos que são as utopias motor da His-
empenho em ser metodologicamente fiel ao mo-
vimento histórico do real, não pode repetir es- tória, talvez valha a pena investir no pre-
sas definições como sendo plenamente válidas sente com os olhos abertos para os hori-
hoje. (p. 36) zontes do futuro e buscar inspiração na
concepção marxista que, de acordo com
Mas, com certeza, podemos afirmar Hobsbawm (1998), caracteriza-se pelo en-
que Marx e Engels não se enganaram ao tendimento de que a mudança histórica
identificar um caráter de barbárie na mo- processa-se “mediante a práxis social, me-
dernidade capitalista. Não se enganaram diante a ação coletiva”. (p. 308)
também ao preconizar a consolidação da Talvez seja hora, de como propõe Gar-
assimetria e da dominação nas relações cia (1998), “pensar o país e o mundo exis-
entre as nações, nem ao concluir que o de- tentes, ousar encarar de frente as profun-
senvolvimento do capitalismo é contradi- das mudanças, ainda que abalem dogmas
tório, gerando a tendência de acumula- e convicções, colocar a reflexão à altura da
ção de riqueza em uma extremidade e de generosidade dos que suportam a explo-
miséria na outra. ração e lutam contra ela” (p. 37). As ra-
Não há também como negar que o zões para que se persiga essa proposta são
mundo contemporâneo, conforme afirma evidentes para os que não se deixaram se-
Hobsbawm (1995), na sua recém-lançada duzir pelos arautos do individualismo e,
obra A era dos extremos, apesar de a glo- portanto, não abandonaram a perspecti-
balização o ter transformado em uma uni- va da solidariedade.
dade operacional única, continua sendo Trata-se de perseguir a meta, aparen-
um mundo polarizado entre a miséria e a temente tão pouco ousada, de se assegu-
riqueza. Um mundo no qual, consideran- rar um mínimo de renda e bem-estar so-
do-se o conjunto de sua população, o nú- cial para todos, pois hoje o grande pro-
mero dos que estão de fora dos benefícios blema do mundo não é a criação de rique-
do desenvolvimento é cada vez maior. zas mas a sua distribuição. Trata-se, tam-
Basta olhar o mapa-múndi, e virá em um bém, de lutar contra o trabalho e a prosti-
segundo a constatação evidente de que a tuição infantis, e tornar a saúde e a edu-
maior parte do território do planeta Terra cação bens universais. Além disso, é ne-
é habitado por pobres e miseráveis. cessário implementar uma distribuição

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Lucília de Almeida Neves

mais equitativa da propriedade da terra, dania includente e legitimadora de um es-


realizando uma efetiva reforma agrária. tado de direito apto à criação e consolida-
Cabe, enfim, retomar algumas das propo- ção de novos direitos.
sições do Manifesto comunista do longín- E, no caso brasileiro, é urgente e impe-
quo 1848 e atualizá-las à luz das necessi- rativo que se criem alternativas para que
dades do tempo presente. o País não continue sendo identificado
O retorno a um pluralismo reflexivo e mundialmente, qual feito por Hobsbawm,
fértil, acompanhado do rompimento com como “um monumento à negligência so-
a cadeia esterilizadora do pensamento cial”.
único e homogeneizador predominante Considerando que os processos e acon-
neste final de século, com certeza seria um tecimentos históricos são antecipações do
passo importante para a construção de no- futuro e que a construção de utopias os
vas proposições visionárias. É preciso, precede, fazemos nossas as palavras de
mais do que nunca, considerar a perspec- Ernst Bloch:
tiva de uma ordem amplamente demo-
O homem, em vivendo, é voltado, em primeiro
crática, na qual, como diziam Marx e En- lugar, para o porvir. O passado é um tempo já
gels, predomine o livre desenvolvimento vivido e o presente autêntico, por assim dizer,
de cada um como condição para o livre não está mais aqui. O futuro é o que nós teme-
desenvolvimento de todos. É necessário mos ou em quem confiamos; sob esse plano de
intenção humana, que recusa o fracasso, o por-
também implementar um projeto de de-
vir é o que nós esperamos (...) Podem então os
senvolvimento econômico que considere sonhos vivos realmente se enriquecer, quer di-
as questões ambientais, além das exigên- zer, vir a ser sempre mais claros, menos aban-
cias de superação da pobreza e da exclu- donados à sorte, melhor conhecidos, melhor com-
são social e cultural, que afetam expressi- preendidos e melhor mediados no curso das coi-
sas. (...) O trabalho desta ordem reclama aos ho-
vo segmento da população do globo ter- mens que se atirem ao devir, do qual eles mes-
restre. Finalmente, é urgente a implemen- mos serão partes. (Bloch, 1974, p. 9-10)
tação de ações instituidoras de uma cida-

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SEXUALIDADE, CASAMENTO E CONFISSÃO NA AMÉRICA PORTUGUESA

SEXUALIDADE, CASAMENTO E CONFISSÃO


NA AMÉRICA PORTUGUESA

Maria Augusta do Amaral Campos*

RESUMO
A intenção deste artigo é refletir sobre como a Igreja esteve presente
na formação de uma moral cristã, em que o casamento e a confissão
foram utilizados como mecanismos de controle, atuando sobre o ima-
ginário social, numa sociedade em construção.
Palavras-chave: Casamento; Sexualidade; Confissão.

N
o início da Idade Moderna, a Eu- isso, tornou-se necessário adaptar a men-
ropa passava por uma grande talidade do homem “moderno” à nova
crise em todos os sentidos. Foi realidade.
uma época de quebras e reformas, e os va- A abertura do comércio, a urbanização,
lores morais e religiosos necessitavam de o aparecimento de uma nova classe social
reformas urgentes. Vindas de uma civili- – urbana e comerciante – o surgimento
zação em descaracterização, podiam-se dos “Estados Nacionais”, a centralização
detectar crises econômicas, políticas, so- do poder começaram a despertar novos
ciais e culturais em decorrência da deses- valores e a urgência de mudar outros.
truturação do sistema feudal. Há algum tempo vinha-se questionan-
No plano político, o coordenador des- do o papel da Igreja frente aos fiéis. Estes
sas forças em crise foi o “Estado Absolu- últimos, muito afastados dos dogmas da
to”, o grande empreendedor das viagens instituição, viviam sua religiosidade de
marítimas e das novas descobertas além- forma comunitária e folclorizada.
mar. O mundo rural fechado foi ficando Durante o século XIII, a Igreja Católi-
para trás, os horizontes se alargaram; com ca, atenta ao afastamento dos fiéis, pro-

* Pesquisadora do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Mestre em História pela FAFICH/
UFMG.

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15
Maria Augusta do Amaral Campos

moveu algumas reformas conhecidas co- A EVANGELIZAÇÃO PROCESSADA


mo Reforma Gregoriana e implantadas no NOS TRÓPICOS
IV Concílio de Latrão. Defendia, entre ou-
tros, os seguintes dogmas: o celibato cle- Portugal transformou-se em “Estado
rical, o casamento indissolúvel e a confis- Nacional” logo no início da Idade Moder-
são anual obrigatória. na e para tal teve a colaboração da Igreja
No entanto, essas reformas não foram Católica. Foi instituído o padroado,1 e os
capazes de aproximar os fiéis e continua- soberanos portugueses passaram a con-
ram preocupando os pensadores da fé. trolar os negócios espirituais. Esse controle
Isso resultou num cisma dentro da Igreja sobre os assuntos religiosos estendeu-se
de Roma. Os dissidentes, através do ques- também às terras conquistadas.
tionamento dos dogmas e sacramentos, Como a Igreja de Roma, durante a ins-
iniciaram o que se denominou de Refor- tituição das medidas tridentinas, teve toda
ma Protestante. a sua atenção voltada para a Europa, o Es-
Na realidade, todo esse processo leva- tado Português, através da Companhia de
ria à superação de uma religiosidade po- Jesus, ocupou o espaço de catequese e
pular e regionalizada por uma religião in- propagação da fé cristã, nos padrões esta-
telectualizada, dogmática e ideológica, belecidos pela Contra-Reforma, em suas
fazendo-se necessárias a revisão dos cos- conquistas ultramarinas.
tumes e a imposição de regras morais de O controle da religião pelo Estado, em
comportamento cristão. que muitas vezes questões políticas eram
Como reação à Reforma, em 1545 e colocadas acima das religiosas, aliado à fal-
1563, a Igreja Católica reuniu-se no Con- ta de representantes da Igreja de Roma
cílio de Trento, promovendo mudanças com suas normas de evangelização, pro-
que ficaram conhecidas como a Contra- vocaram na colônia uma religiosidade pe-
Reforma. O Concílio nada mais foi do que culiar.
a afirmação dos dogmas estabelecidos pe- Essa religião foi marcada pelo sincre-
la Reforma Gregoriana. tismo na fusão de elementos étnicos dos
Tanto a Reforma Protestante como a brancos, índios e negros. Foi uma religião
Contra-Reforma fizeram grandes transfor- de fachada, exteriorista, ritualista, sem ne-
mações no cerne de suas Igrejas. Diferi- nhuma convicção intimista de fé.
ram em várias questões de ordem teoló-
gica e política, mas ambas tiveram como A originalidade da cristandade brasileira resi-
objetivo básico a evangelização em massa dira portanto na mestiçagem, na excentricida-
de em relação a Roma e no eterno conflito repre-
dos fiéis. “As duas Reformas caminharam sentado pelo fato de, sendo expressão do siste-
juntas no mais extraordinário processo de ma colonial, ter que engolir a escravidão: cris-
aculturação posto em prática no Ociden- tandade marcada pelo estigma da não fraterni-
te”. (Vainfas, 1989, p. 10) dade. (Mello e Souza, 1987, p. 88)

1 “O direito de padroado dos reis de Portugal só pode ser entendido dentro de todo o contexto da história
medieval. Na realidade, não se trata de uma usurpação dos monarcas portugueses de atribuições reli-
giosas da igreja, mas de uma forma típica de compromisso entre a Igreja de Roma e o governo de Portu-
gal”. (Hoornaert apud Boschi, 1986, p. 42)

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SEXUALIDADE, CASAMENTO E CONFISSÃO NA AMÉRICA PORTUGUESA

É dentro desse contexto que tentare- Todas as normas dirigiam-se ao bom-


mos analisar os efeitos das medidas tri- senso, ao meio-termo e sair fora delas im-
dentinas e os mecanismos por ela utiliza- plicava a não-aceitação dentro da socie-
dos na América Portuguesa. dade. Criou-se, dessa forma, todo um me-
canismo de controle ideológico sobre a po-
pulação.
CASAMENTO E CONFISSÃO: Em cada família que se constituía for-
MECANISMOS DE CONTROLE mava-se uma unidade micro do que de-
veria ser a nação, na qual o pai tinha au-
Como já foi dito anteriormente, a Con- toridade total e representava, em peque-
tra-Reforma foi uma reação contra a crise na escala, o rei ou o sacerdote, estabele-
que ocorreu na Igreja Católica durante o cendo, assim, um exercício de respeito às
século XVI. Instituída para perseguir os normas sociais.
que se afastavam da religião católica, ela Para garantir a eficácia da pastoral cris-
criou os instrumentos necessários para tã, a Igreja utilizou como instrumento a
efetivar seus ideais no Tribunal do Santo confissão sacramental. Foi através da con-
Ofício. Além da perseguição aos infiéis, fo- fissão que ela garantiu o controle dos fi-
ram criadas práticas de condutas morais éis. Aquele que confessava tinha culpa,
familiares e sexuais. portanto necessitava do perdão, que era
Entre as práticas de conduta moral, dado via penitência. Logo, a confissão foi
apontamos a exaltação ao casamento. O o discurso da culpa e um ato de sujeição a
estado de casado era um ideal a ser perse- essa instituição.
guido, significando status social e fazen- Como ocorreu em relação aos manu-
do parte das tradições ibéricas herdadas ais de casamento, também existiram os
pela colônia portuguesa na América. Tan- manuais dos confessores e confidentes.
to a Igreja como o Estado empenharam- Nesses manuais ficava bem clara a forma
se na divulgação do casamento. como o confessor deveria conduzir a con-
Existiram não só textos eclesiásticos que fissão e, na qualidade de avaliador da ver-
divulgavam o matrimônio, como também dade do outro, ele não poderia ser nem
manuais de casamento produzidos por muito benevolente, nem muito duro. O
leigos. Esses manuais eram dirigidos aos importante não era o ato em si, e sim o
homens e tinham como objetivo ensinar controle do pensamento. Em relação aos
a escolha da esposa ideal, bem como as pecados, a Igreja elaborou manuais práti-
atitudes em relação à vida conjugal coti- cos do que era permitido e do que não
diana e às práticas sexuais. A figura da mu- era. Quanto aos atos sexuais, percebemos
lher apareceu ligada à da feiticeira, ao dia- restrições a tudo o que pudesse levar ao
bo; por isso, a necessidade de controlá-la. prazer. O importante era controlar o de-
O sexo só era permitido com intuito de sejo. Um outro componente fundamen-
procriação e somente em posições lícitas. tal criado para a eficácia da confissão foi a
O casamento era indissociável, portanto, figura do delator. Criaram-se, dessa ma-
à necessidade da escolha certa. Tudo o que neira, no seio da sociedade, os guardiães
fosse feito ao contrário estava contra as leis da moral e dos bons costumes.
de Deus, fazendo com que o indivíduo Durante a estada do visitador do San-
caísse em pecado. to Ofício, fazia-se uma convocação atra-

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Maria Augusta do Amaral Campos

vés do Edito de Fé para que todos os mo- dos pelo pânico do delator e do inquisi-
radores denunciassem os que atentavam dor. De tal forma estava inserido no ima-
contra a moral e a fé. Aqueles que quises- ginário o que era o sexo lícito que qual-
sem confessar poderiam fazê-lo ainda no quer ultrapassagem ao permitido fazia-
período denominado de ‘tempo da gra- lhes sentir pecadores e prestes à confis-
ça’ e seriam absolvidos dos seus pecados. são e à tortura. Além disso, como era no
O que podemos perceber aí é a figura do casamento que o sexo lícito era permiti-
de-lator inserida no cotidiano social. do, os confessores estavam sempre aten-
A convocação do visitador era feita tos ao que se passava nele. Tentavam con-
através do Monitório Geral e, exceto os cri- trolar os atos e pensamentos dos casais pa-
mes contra a fé e a bigamia, os outros pe- ra que não excedessem ao permitido, uti-
cados eram colocados de maneira globa- lizando-se do instrumento da confissão.
lizante, possibilitando uma margem enor- O casamento foi tão bem incutido nas
me de delações. Portanto, cada indivíduo mentalidades que, como vimos acima, ex-
passou a ser uma ameaça ao outro, aliás cetuando-se os crimes de fé, todos os ou-
muito bem retratada no poema de Gre- tros confessados ou delatados eram peca-
gório de Matos: dos sexuais, se sexo lícito, que não visa-
vam à procriação.
(...) Em cada porta um freqüentado olheiro, No entanto, aparece também, entre os
Que a vida do vizinho, e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha crimes confessados, a discussão entre o es-
Para levar à Praça e ao Terreiro. tado de casado e de celibatário. Alguns in-
(Matos apud Vainfas, 1986, p. 41) divíduos se viram à frente do visitador por
afirmarem ser o estado dos casados a or-
Os principais crimes delatados são os dem que mais agradava a Deus.
considerados nefandos: sodomia, biga- É importante salientar que essa discus-
mia, defesa da fornicação, sacrilégios liga- são incluía-se num contexto mais amplo.
dos a relações sexuais, adultério e concu- Quando ocorreu a Reforma protestante,
binato, solicitação e os de negação da cas- um dos dogmas da Igreja Católica – o celi-
tidade como estado ideal. Isso nos leva a bato clerical – foi abolido pelos dissiden-
concluir o quanto estavam introjetados na tes que acreditavam ser um fingimento
mentalidade cotidiana os princípios tri- impor o celibato aos religiosos. Como rea-
dentinos de que o ato sexual só era lícito ção, Trento não só reafirmou o celibato cle-
no sentido da procriação e permitido so- rical como também o colocou acima do es-
mente no casamento. tado conjugal. Para a Contra-Reforma, o
celibato e a virgindade eram mais aben-
A sexualidade se confundia com o casamento,
legitimando-se nele; o objetivo máximo de um e çoados por Deus que o casamento. Logo,
de outro era a procriação: como conseqüência afirmar que o casamento era melhor que
natural, amor e fertilidade acabavam se identi- o estado de religioso tornava-se um cri-
ficando na mentalidade popular. (Mello e Sou- me, pois ia contra as normas tridentinas,
za, 1986, p. 13)
portanto, uma heresia.
Tal era o medo dos casais em relação Durante o período colonial o mau com-
ao Santo Ofício que era impossível se sen- portamento de muitos padres deu mar-
tirem a sós no leito conjugal. Alguns pra- gem para que se questionassem suas ati-
zeres e caprichos eram sempre persegui- tudes pecaminosas e até discutir o celiba-

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SEXUALIDADE, CASAMENTO E CONFISSÃO NA AMÉRICA PORTUGUESA

to, colocando-o abaixo do casamento aos Para o Estado, normatizar a população


olhos de Deus. através do casamento permitiria melhor
Entretanto, o que percebemos no dis- governá-la, além de extrair-lhe maior pro-
curso popular sobre os dois estados era veito no sentido de não só provar a re-
que, mais do que condenar o celibato, es- cém-criada colônia portuguesa nos trópi-
ses indivíduos se apegavam ao casamen- cos, mas também de manter a proprieda-
to e o glorificavam. Eles afirmavam que de. Constituindo famílias, os indivíduos
Deus o fizera primeiro e, desde que fosse se preocupariam em manter e aumentar
obedecido tudo o que esse mesmo Deus seus bens. Acreditavam ainda que a falta
mandasse, os homens seriam felizes e vi- de base familiar interferia negativamente
veriam bem. Também aqui vemos como no rendimento do trabalho. A família pos-
as normas tridentinas, no sentido de dis- sibilitava a sedentarização da sociedade,
ciplinar e controlar os homens, haviam se enquanto que indivíduos solteiros eram
introjetado em seu imaginário. O casa- atraídos para uma vida nômade.
mento, socialmente valorizado, era uma A Igreja, através da confissão, incenti-
meta a se realizar. vou no homem o sentimento de culpa, da
Fica-nos a seguinte questão: será que, angústia moral e, para aplacá-la, era ne-
quando colocava o matrimônio acima do cessário falar, conseguir o perdão. Criou-
estado religioso, a sociedade fazia isso por se, por conseguinte, um discurso, por si-
não acreditar no celibato, pois os padres nal muito bem conduzido pela figura do
da colônia portuguesa na América cons- confessor.
tantemente cometiam os pecados nefan- Detectamos uma relação de dependên-
dos? Ou porque acreditava que o casa- cia, respeito e medo, na qual o confessor
mento nos moldes tridentinos, com o in- personificava o condutor do pecador a
tuito da procriação e da obediência, era Deus, ao estado de graça. Ele analisava o
verdadeiramente o estado escolhido por outro e através da penitência, portanto do
Deus? castigo, lhe concedia o perdão. Essa situa-
De qualquer maneira, gostaríamos de ção representou a submissão do homem
salientar a forma como a Igreja, utilizan- à instituição.
do-se eficazmente dos instrumentos cria- Passados três séculos dessa aculturação
dos, foi capaz de controlar e exercer o po- cristã realizada no Ocidente pela Igreja,
der sobre os homens. Acrescente-se que, percebemos o quanto essas normas mo-
para o sucesso dessa empreitada, contou rais ainda fazem parte do imaginário da
com a colaboração do Estado. A exaltação humanidade e como a vida cotidiana do
ao casamento no modelo tridentino, no homem contemporâneo está marcada por
qual o sexo tinha a função tão-somente esses valores.
de procriação, era a maneira de controlar
o prazer, o excesso.

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Maria Augusta do Amaral Campos

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OS ESPELHOS DE PRÍNCIPES: UM VELHO GÊNERO PARA UMA NOVA HISTÓRIA DAS IDÉIAS

OS ESPELHOS DE PRÍNCIPES: UM
VELHO GÊNERO PARA UMA
NOVA HISTÓRIA DAS IDÉIAS
Marcos Antônio Lopes*

RESUMO
Este artigo tem como objetivo analisar o Estado monárquico da Época
Moderna a partir do reconhecimento do ideal ético da realeza edifica-
do durante os séculos XVII e XVIII, e tomando como referência a evo-
lução da historiografia política no presente século.
Palavras-chave: Absolutismo; Ética; História política.

Se a história fosse inútil aos outros homens, se- História a mesma atração que fascinará
ria preciso lê-la aos príncipes. Não há melhor Voltaire e a maior parte dos escritores po-
meio de lhes ensinar o que podem as paixões e
os interesses, os tempos e as conjunturas, os bons líticos das Luzes. Para Lawrence Stone, is-
e os maus conselhos. (Bossuet, 1967) so se deve ao fato de que o Estado monár-
quico “(...) constitui talvez o que a civili-
zação ocidental trouxe ao mundo de mais

O
Estado monárquico da Época notável, se não de mais admirável, no cur-
Moderna apresenta-se como so dos cinco últimos séculos”. (Stone, 1974,
um dos temas clássicos da his- p. 63)
toriografia européia. De maneira sistemá- Durante boa parte do século XX, ape-
tica, o século XIX concedeu espaço privi- sar das constantes exortações metodoló-
legiado aos estudiosos do Estado moder- gicas de um historiador influente como
no. Sem incorrer em exagero, Pierre Chau- Lucien Febvre e do exemplo concreto das
nu define a historiografia européia do sé- novas pesquisas pouco a pouco inaugu-
culo passado como uma “história do Es- radas e consolidadas na França, a Histó-
tado no século dos nacionalismos”. (Chau- ria Política, com ênfase sobre os aspectos
nu, 1976, p. 65) jurídicos e institucionais das monarquias
O Estado moderno, com sua grande ca- modernas, persistiu como horizonte pri-
pacidade de organizar homens e reunir vilegiado de pesquisa. Como frisa Emma-
recursos, continua exercendo no Século da nuel Le Roy Ladurie, foi somente quan-

* Professor de História Moderna – Unioeste.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 4, n. 5, p. 21-30, dez. 1999


21
Marcos Antônio Lopes

do, nos anos 40 e 50, o grupo dos Annales dos reis, não fez descendência entre os
firmou-se como establishment historiográ- especialistas franceses.
fico que se assistiu a um eclipse da velha Nos Estados Unidos, nas décadas de
História Política, transformada então nu- 40 e 50, um historiador europeu pratica-
ma “parente pobre” das novas tendênci- mente inaugurou um novo campo de pos-
as (Le Roy Ladurie, 1985). Jacques Julliard, sibilidades para a História Política. Reela-
num artigo que reflete os movimentos da borando o conceito de “Teologia Política”,
historiografia francesa dos anos 70, lem- anteriormente trabalhado por historiado-
bra que res alemães do direito, Ernst Kantorowi-
cz (1985) definiu e ajudou a fixar um novo
A História Política tem má reputação entre os questionário para o estudo da ritualidade
historiadores franceses. Condenada, faz quarenta
anos, pelos melhores entre eles, um Marc Blo- na esfera do poder real na Baixa Idade Mé-
ch, um Lucien Febvre, vítima de sua solidarie- dia e início dos Tempos Modernos.
dade de fato com as formas as mais tradicionais Ao contrário do ocorrido com Os reis
da historiografia do começo do século, ela con- taumaturgos, a obra de Ernst Kantorowi-
serva hoje um perfume Langlois-Seignobos que
cz conheceu um enorme sucesso, acaban-
desvia dela os mais dotados, todos os inovado-
res entre os jovens historiadores franceses. O do por fazer eco surpreendente entre es-
que, naturalmente, não contribui para melho- pecialistas de muitos centros de pesquisa
rar as coisas... Tudo tomado em consideração, a norte-americanos. A partir das pesquisas
História Política pereceu, vítima de suas más de Ernst Kantorowicz, desenvolvidas nos
amizades. (Juliard, apud Le Goff & Nora,
1988, p. 180-181)
Estados Unidos nas décadas de 40 e 50,
surgiu um grupo de historiadores espe-
Por uns trinta anos ou talvez um pou- cialistas em História da França, o que se
co mais, a História Política viveu em com- denomina hoje de “escola cerimonialista
pleta desventura entre os historiadores da norte-americana”, responsável por uma
Idade Moderna francesa ligados aos An- notável renovação dos estudos sobre o Es-
nales. Robert Mandrou, especialista em tado monárquico francês.
História da França do século XVIII, talvez A partir das décadas de 60 e 70, por in-
seja o único nome de expressão a ter de- fluxo de Ernst Kantorowicz e seus herdei-
dicado parte de sua atenção à História das ros intelectuais norte-americanos, como
estruturas políticas do Antigo Regime nos Ralph Giesey, Laurence M. Bryant e Sa-
anos 60 e 70, fase em que ela gozara de rah Hanley Madden, a História Política da
maior desprestígio. (Mandrou, 1973 e Época Moderna conheceu um sensível im-
1978) pulso. Como reconhece um especialista
O livro de Marc Bloch, apesar do inte- francês, Alain Boureau (1991), é a “escola
resse despertado e até de uma certa estu- americanista” que detém as análises mais
pefação provocada à época de seu lança- amplas e completas sobre a linguagem ri-
mento, não inspirou estudos que seguis- tual do Estado Monárquico francês, de-
sem na mesma trilha (Bloch, 1924). A His- senvolvida entre os séculos XVI e XVII.
tória Política fundada em práticas cerimo- Isso porque entre os cerimonialistas nor-
niais, como o toque mágico da realeza no te-americanos não se observa uma linha
Ancien Régime e em outras dimensões sim- de demarcação rígida entre História Me-
bólicas do território político, como a cren- dieval e História Moderna, mas uma preo-
ça generalizada no caráter sobrenatural cupação em distinguir e destacar um pe-

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OS ESPELHOS DE PRÍNCIPES: UM VELHO GÊNERO PARA UMA NOVA HISTÓRIA DAS IDÉIAS

ríodo contínuo no qual as nuanças sim- eventos, que traduza a permanência do sentido
bólicas das cerimônias monárquicas foram de um ato indefinido e mutante; a pesquisa dos
valores simbólicos do mesmo cerimonial recla-
sistematicamente desenvolvidas na corte ma, por seu lado, um domínio do factual. (Gie-
de França. sey, 1986, p. 580)
O fechamento cerrado à História Polí-
tica tradicional, à moda do século passa- Domínio do factual não certamente al-
do e primeiras décadas do século XX, com cançado pela exploração sistemática da ve-
seus estudos de natureza predominante- lha História Política, ainda que esta tam-
mente jurídica e institucional, é um fato bém seja útil, mas sobre os textos de épo-
inquestionável na historiografia francesa, ca deixados em profusão pelos mestres de
mesmo muito tempo após os artigos de cerimônias da monarquia francesa. A no-
Henri Beer e François Simiand, publica- va História Política, fundada no simbolis-
dos na Revue de Synthèse Historique na mo dos cerimoniais monárquicos, vem
entrada do século. ampliando com êxito o conceito de Esta-
Intelectual “combatente” por uma His- do moderno do Antigo Regime.
tória distanciada do esquema “historici- No Grand Siècle o político continua a
zante”, pista seguida por Febvre a partir se manter sob um modelo religioso, mas
dos anos 30, Henri Beer fundou a Revue as novas circunstâncias históricas fizeram
de Synthèse, através da qual semeou dú- inverter e até apagar completamente cer-
vidas e questões novas. O artigo clássico tos valores dos velhos espelhos de prínci-
de François Simiand, “Méthode historique pes. Desde a Antigüidade Clássica se co-
et science social”, de 1903, segundo Jac- nhece no Ocidente uma literatura volta-
ques Revel, foi o texto desestabilizante da para a formação moral dos homens de
“contra as regras da história positivista Estado. Na Idade Média os espelhos de
(pela qual) Simiand denunciava os ídolos príncipes mantêm essa tradição. Produ-
da tribo dos historiadores: ídolo político, zidos por clérigos, dedicam-se a realçar as
ídolo individual, ídolo cronológico”. (Re- virtudes cristãs para a boa condução do
vel apud Le Goff et al, 1990, p. 567) governo por parte de príncipes, reis e im-
Trinta anos mais tarde, Lucien Febvre peradores. De acordo com François Blu-
e seus seguidores criticaram de forma con- che,
tundente a História Política de efemérides
predominante em seu tempo. Como se re- A Idade Média adorava compor estes manuais
éticos e políticos, logo denominados Songe ou
feriu Jacques Le Goff, há uns quinze anos,
Miroir du prince. Detalham-se aí as virtudes,
“a volta mais importante é a da História mas também os deveres do príncipe ideal. (...)
Política” (Le Goff, 1990, p. 8). Entretanto, No século XVII este gênero não existe verda-
Ralph Giesey frisa que não se pode cons- deiramente. (...) Mas as Histórias da França,
truir uma história do simbólico, na esfera eruditas ou populares, desenham a “imagem do
rei”, de Pharamond o chefe místico a Luís XIII o
do poder real na Europa de fins da Idade Justo, mostrando implicitamente também o que
Média e início da Época Moderna, sem o se espera de Luís XIV, aquilo que se admira nele.
sólido apoio de uma História factual: (Bluche, 1986, p. 261)

uma informação detalhada sobre as diversas for- É exatamente o que fazem certos auto-
mas de celebrações sucessivas de um mesmo ce-
rimonial nas monarquias ocidentais necessita res, e podemos perceber na literatura po-
praticamente da redação de uma história dos lítica do século XVII um Luís XIV por ele

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Marcos Antônio Lopes

mesmo, ou seja, o que o Grande Rei acha De todo modo, os espelhos de prínci-
que se deve esperar da realeza. Certamen- pes modernos, apesar de incorporarem
te que não no espírito da Idade Média, o elementos novos, mantiveram-se como
que seria um perfeito anacronismo. Des- uma espécie de catecismo real, trazendo
sa forma, não foram somente as obras de as normas para administrar o Estado, se-
História que se ocupam do ideal ético da gundo as virtudes cristãs. Tais textos mo-
realeza, mas quase todos os textos de na- delam a imagem tradicional do príncipe,
tureza política, e até mesmo em obras não esboçada desde a Baixa Idade Média e em-
explicitamente dessa natureza, como um belezada pelas gerações posteriores, cons-
sem número de Memórias entre as quais tituindo uma espécie de catálogo das vir-
se destacam os escritos de Madame de tudes convenientes a uma autoridade cris-
Sévigné. Assim sendo, não se cometeria tã, comumente usado como obra pedagó-
grande ousadia em afirmar que a figura gica para a edificação da realeza. O prín-
do príncipe cristão absorve a literatura do cipe cristão na França Moderna, para al-
Ancien Régime. guns autores, aproxima-se mais da perfei-
A Época Moderna, à sua maneira, deu ção por assumir posturas cada vez mais
seqüência a esse tipo de literatura políti- políticas; para outros, por observar valo-
ca. No século XVII, muitos escritores polí- res morais em sua conduta. Na Idade Mé-
ticos, defensores do absolutismo, ocupa- dia francesa, a idéia do príncipe perfeito
ram-se em traçar normas para guiar os go- esteve intimamente ligada à piedade e à
vernantes pela via da prudência, justiça, contrição.
caridade e sabedoria, entre tantas outras Mas foi a partir de meados do século
virtudes de um extenso catálogo. Mas o XVII que se assistiu ao máximo desenvol-
fizeram por meio de exortações bem me- vimento do Estado absolutista na França;
nos diretas e doutrinárias, pelo emprego em seguida, e talvez por aderência a esse
de um método discursivo claramente mais dado, por se referir ao século XVII fran-
teórico e abstrato, até porque a realeza no cês como um período de intensa propa-
século XVII tende a sobrepor-se a todos, ganda monárquica, pela proliferação de
numa espécie de isolamento simbólico cu- um autêntico “dilúvio de literatura políti-
ja expressão mais complexa foi alcançada ca” (Prélot, 1974), que com alta densidade
com Luís XIV. Ao dirigir-se ao soberano metafórica retrata a realeza sagrada do An-
absoluto, foi preciso modular a ênfase das cien Régime em suas estruturas simbólicas
exortações. Acerca desse aspecto Robert mais significativas, fazendo com que as
Muchembled se pergunta: grandes cerimônias do Estado monárqui-
co atingissem seu máximo desenvolvi-
A força principal do absolutismo não está no fato mento e complexidade por essa época.
de fundar o consenso social sobre a qualidade Richelieu, Luís XVI, La Bruyère e Bos-
sagrada e inacessível do príncipe, que não é pos-
sível somente admirar, como se adora a divin- suet abordam temas políticos muito seme-
dade, sob pena de ser lançado para a periferia lhantes, mas não ao ponto de constituí-
dessa verdadeira cidade de Deus sobre a terra? rem uma corrente de pensamento, uma
Se revoltar é pura e simplesmente cometer um vez que exprimem idéias bem contradi-
crime de lesa-majestade, reunindo as cortes de-
tórias sobre um mesmo aspecto. A reale-
moníacas em rebelião contra o criador. (Mu-
chembled, 1994, p. 127) za está no centro do discurso político. Ape-
sar do grande investimento na figura do

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OS ESPELHOS DE PRÍNCIPES: UM VELHO GÊNERO PARA UMA NOVA HISTÓRIA DAS IDÉIAS

príncipe, não se verifica uma unidade de Como demonstram vários autores


sentido a seu respeito. Não se pode negar (Mousnier, 1972; Truc, 1947; Ferrier-Cave-
que, tanto nos grandes quanto nos peque- rivière, 1981), os miroir des princes são um
nos autores, a tradição teórica do absolu- dos gêneros dominantes na cultura polí-
tismo esteve ligada à realeza. tica da segunda metade do século XVII.
Entretanto, o que se verifica é um ema- Salvaguardando certas nuanças, não me
ranhado de imagens em que o tradicio- parece arriscado falar de espelhos de prín-
nal “catálogo” de virtudes e vícios da rea- cipes do século XVII, principalmente por-
leza, varia sensivelmente de autor para que o domínio da moralidade real é uma
autor. Na Baixa Idade Média houve uma coordenada ainda muito importante no
teoria homogênea sobre a realeza, época período. Como se refere Michel Tyvaert,
em que a esfera política se equilibrava ex-
clusivamente sobre uma plataforma reli- Numerosos foram, na Idade Média, os miroir
des princes encarregados de lembrar aos sobe-
giosa. Uma realeza “evangelicamente cor- ranos a prática de algumas altas virtudes. Se as
reta” nesse período bastava para garantir obras de um Erasmo ou de um Pierre Nicole
o assentimento unânime sobre si mesma. são, nos tempos modernos, as herdeiras diretas
Como afirma Jacques Le Goff, o equilíbrio deste gênero literário, as histórias de França [do
século XVII] tomam igualmente parte nesta he-
medieval, a interdependência das três or-
rança. Elas também pretendem dar lições de mo-
dens só pode ser garantida pela presença ral a seus leitores, e muito particularmente ao
real, por sua mística ubiqüidade. primeiro dentre eles, o rei. Elas lhe propõem co-
O fato é que não há um enfoque uní- mo exemplo a conduta de seus predecessores so-
voco sobre a realeza no século XVII. Fé- bre o trono, e certamente vão até o ponto de pre-
cisar as qualidades e defeitos de cada um ao fim
nelon e Bossuet, homens de um mesmo da narrativa que lhe é consagrada. (Tyvaert,
círculo, exprimem idéias amplamente 1974, p. 531)
contraditórias sobre o mesmo tema. Nos
Discours sur l’histoire universelle e na Para Georges Durant, a literatura do sé-
Politique tirée des propres paroles de l’E- culo XVII apresenta duas tendências con-
criture Sainte Bossuet traçou o retrato vergentes: as tentativas de uma quase to-
ideal do soberano. Segundo Jacques Le tal divinização do soberano – “Vós sois Deus
Brun, a figura de Luís XIV exerceu um im- na terra”, afirmava Bossuet –, e o desejo
pério absoluto sobre o Bispo de Meaux, de guiar-lhe os passos por meio de lições
que nunca lhe dirigiu uma admoestação exemplares de conduta, no exercício do
severa. Refletindo sobre o dilema luisca- métier royal (Durand, 1969). A realeza é co-
torziano, pendente entre a glória pessoal mo o “astro do dia” da literatura política,
e a “salvação pública”, Fénelon era capaz a todo tempo empenhada em traçar uma
de críticas desconcertantes. Numa carta pedagogia real.
dirigida ao Rei ele adverte: Os autores do século XVII acima refe-
renciados enquadram-se num mesmo
Esta glória, que endurece vosso coração, vos é ethos, ou seja, no espírito político do Grand
mais cara que a justiça, que vosso próprio re- Siècle, que Nicole Ferrier-Caverivière clas-
pouso, que a conservação de seu povo que pere-
sificou em três vertentes: a “corrente crí-
ce todos os dias de doenças causadas pela fome,
enfim que vossa salvação eterna é incompatível tica”, da qual são expoentes Fénelon e La
com este ídolo de glória. (cit. In: Roger, 1962, Bruyère, e que desfere alguns ataques
p. 261) frontais à realeza solar; a linhagem “frê-

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mito do coração”, que esteve marcada por Se Maquiavel e Hobbes operaram um ver-
um devotamento sincero ao monarca, co- dadeiro curto-circuito no domínio das
mo o autêntico desejo de reformar sua ín- idéias políticas, queimando os fios da tra-
dole heróica e guerreira; e, por fim, a “li- dição pelo afastamento das nuvens da
teratura encomiástica” dos turiferários da transcendência, que por tão longo tempo
Academia Francesa, que, por meio de “ho- obscureceram o território do político, não
menagens obrigadas”, exalta a imagem cabe mais buscar apenas suas ressonânci-
real até ao artifício e ao exagero (cit. Ferri- as pelo futuro, os seus elementos intem-
er-Caverivière, 1981). Acerca dessas céle- porais.
bres homenagens, Voltaire desperta o riso No campo da História das Idéias, essa
ao defini-las no tempo de Luís XIV. Fazen- é hoje uma atitude metodologicamente
do o discurso sair da boca de um refinado anacrônica. Com certeza, um ótimo repre-
personagem inglês, perplexo diante da en- sentante da nova História das Idéias é o
cenação, ele observa: historiador de Cambridge, Quentin Skin-
ner. Abandonando o modelo tradicional
Tudo que enxergo nesses discursos é que o novo das grandes obras e das grandes corren-
membro, tendo assegurado que seu predecessor
era um grande homem, que o cardeal Richelieu tes de pensamento político, Skinner des-
era um muito grande homem, que o chanceler ce ao leito largo das diversas tendências,
Séguier era um bastante grande homem, que dos autores menores e esquecidos, dos tra-
Luís XIV era ainda mais do que um muito gran- balhos considerados contemporaneamen-
de homem e, que ele, diretor, não deixa de ter
te como fruto de pensadores “datados”,
parte nisso. (Voltaire, 1978, p. 44)
integrando, compreendendo e valorizan-
As dimensões religiosas do absolutis- do seus textos segundo o peso que tinham
mo monárquico, os seus aspectos teológi- em seus respectivos contextos. (Skinner,
co-políticos dificilmente são expostos por 1985)
historiadores das idéias políticas. Tais as- Como se refere Michel Winock, a His-
pectos não correspondem muito bem a tória das Idéias da Época Moderna não
um certo caráter pragmático, recorrente pode ser mais concebida simplesmente
na obra da maioria dos especialistas da como a “marcha dos Estados Modernos
área, pelo menos até época bem recente. ao absolutismo monárquico”, na qual só
Desse modo, estudam-se os pensadores têm assento os grandes nomes (Winock
políticos quase exclusivamente em função apud Rémond, 1988, p. 236). Nesse velho
de suas contribuições em torno de pro- departamento da História Política, que de
blemas que estão sendo vivenciados. Os vinte anos para cá passou da pura Histó-
programas universitários em História das ria da Filosofia a uma História das Menta-
Idéias Políticas são montados a partir das lidades Políticas, é preciso inserir também
grandes expressões do pensamento polí- os autores menores que sequer foram no-
tico secularizado do século XVI. tados em seu próprio tempo, acentuando
Formulações do tipo “tudo começou os valores intrínsecos da obra no contex-
com Maquiavel” ou “da política de Ma- to de sua produção sem a obsessiva preo-
quiavel a nossos dias” muitas vezes exclu- cupação em ouvir os seus ecos na posteri-
em textos políticos encobertos por um dis- dade, numa espécie de “teleomania”. Esse
curso teológico-religioso muito marcante é um dos pecados de muitos professores
em autores bem posteriores a Maquiavel. de teoria política, como se um Hobbes ou

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um Maquiavel fossem meramente futu- acentuar o desinteresse de Bossuet pelo


rologistas, que não tenham se preocupa- toque taumatúrgico da realeza. Trata-se de
do e tentado responder em seus textos aos revisitar as idéias políticas de Bossuet e
problemas colocados pelo presente vivi- seus contemporâneos, não apenas em
do, como se um Locke ou um Rousseau, suas relações com o Estado monárquico,
ao parar para pensar em suas teorias polí- mas em suas confidências com as crenças
ticas, refletissem: o que é que eu vou es- religiosas, as doutrinas científicas e os mi-
crever agora para fundir os neurônios da tos populares. Em síntese, em suas con-
posteridade? A esse respeito Raoul Girar- fluências com o espírito social, em senti-
det afirma que do lato. Como aponta Jean Touchard,
“uma idéia política tem uma certa espes-
O estudo do que se designa habitualmente pelo sura, um certo peso social”. (Touchard,
termo ambíguo de História das Idéias Políticas 1970, p. 3)
não cessou de suscitar, e há várias gerações, obras
belas e fortes. (...) [Entretanto], com algumas
Dessa forma, procura-se não confun-
exceções, e essas exceções são recentes, todas ten- dir o domínio da teoria política com o cam-
dem a restringir sua exploração ao domínio ex- po mais amplo, e talvez mais fecundo, da
clusivo do pensamento organizado. (...) no final História das Idéias Políticas. De fato, do
das contas a análise se acha sempre, ou quase
ponto de vista da metodologia, as idéias
sempre, reduzida ao exame de certo número de
obras teóricas, obras classificadas em função do políticas foram concebidas durante mui-
que a tradição lhes atribui em valor de intempo- to tempo como conjuntos genéricos de
ralidade (...) Tudo o que escapa às formulações pensamento, como doutrinas completas
demonstrativas, tudo o que brota das profunde- em forma de sistema filosófico fechado.
zas secretas das potências oníricas permanece,
Sem desconsiderar a importância de um
de fato, relegado a uma zona de sombra(...). (Gi-
rardet, 1987, p. 9-10) conhecimento mais aprofundado das
doutrinas políticas, a História das Idéias
Analogamente, John G. Gunnel (1981) Políticas é pensada hoje de maneira bem
adverte: diferente. Esforça-se por integrar as “dou-
trinas”, os “sistemas filosóficos” dos gran-
Enquanto a atitude histórica trata o passado co- des autores ao complexo de crenças polí-
mo um objeto intrinsecamente digno de inves- ticas comum também a seus contemporâ-
tigação, a atitude prática mostra interesse pelo
passado em relação com o presente. (...) Enquan- neos não eruditos, “daí a proposta de uma
to a atitude histórica é a de produzir um relato história social das idéias, tomando por ob-
concreto do passado, a atitude prática tende a jeto o seu enraizamento e circulação”, lem-
tratar o passado em termos derivados do pres- bra Roger Chartier (Chartier, 1990, p. 48).
sente, em ler os eventos em sentido contrário,
Tal é o caso da crença generalizada, nos
em compreender o passado em relação com o pre-
sente, em selecionar o que é relevante para dis- séculos XVI e XVII, na natureza diabólica
cutir problemas contemporâneos, para justifi- das práticas mágicas, aquela histeria soci-
car e condenar. (p. 21) al que Norman Cohn rotulou elegante-
mente de os demônios internos da Europa.
Correndo o risco de parecer a própria (Cohn, 1975)
voz da vanguarda, não se trata certamen- Ao mesmo tempo que uma estratégia
te de fazer uma História das Idéias Políti- consciente de luta aberta do Estado abso-
cas no estilo dos grands doctrinaires, como lutista, que dessa forma inventa a margi-
criticou asperamente Marc Bloch, para nalidade no Ocidente, o fenômeno da ca-

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ça às bruxas enraizou-se profundamente submissa a um sistema hierárquico cujo


entre as elites, o que Robert Muchembled centro vital é o príncipe, o único elemen-
chama de “a ausência do sentido do im- to capaz de dissipar as trevas da desor-
possível”, só muito lentamente desenvol- dem e colocar o reino na rota da paz e da
vido a partir dos progressos do raciona- prosperidade.
lismo científico. Como reflete Georges Num trabalho de História das Idéias,
Bouthoul (1976), cujos dados empíricos são textos políticos,
a análise deve centrar-se sobre uma mul-
Toda mentalidade constitui, no conjunto e na tiplicidade de discursos. Mas, como recor-
média dos casos, um edifício lógico cujas peças
se suportam reciprocamente e se encadeiam en- da um especialista em história do século
tre si por relações de crença. As mentalidades XVII, Pierre Goubert, é sempre necessá-
são compostos psicológicos extremamente está- rio ter em mente que essas fontes
veis. Não se pode mudar à vontade, mesmo sob
coação. Se nos separarmos de nosso meio social, exprimem antes de tudo seus autores, o clima
como Robinson Crusoé, nossa mentalidade nos socioeconômico-intelectual, etc... no qual eles
permanecerá fiel. nasceram, tradições geralmente muito antigas,
esquemas, mitos velhos de vários séculos (...); é
Torna-se, então, compreensível como bom saber que uma grande parte das idéias ou
dos princípios propagados [no Antigo Regime]
um humanista do porte de um Jean Bo-
eram fórmulas que se arrastavam desde Santo
din, que transita com fantástica erudição Tomás, senão desde períodos mais antigos.
da filosofia à economia, não somente pode (Goubert, cit. por Duccini apud Méchoulan,
acreditar em feiticeiras e malefícios, mas 1985, p. 371).
foi ao ponto de escrever obras de comba-
te a esse respeito. Com efeito, a realeza francesa se ins-
O enfoque teológico-religioso do mun- creve na história mítica de um povo, cujo
do se apresenta como um traço importan- grande marco é a sagração de seus reis,
te entre os escritores políticos do Antigo através de uma intervenção providenci-
Regime. Segundo Cardin Le Bret, teórico al. Essa relação privilegiada com o celes-
do poder real, a marca da realeza é a de te, que fez da realeza francesa um arqué-
não depender senão de Deus. O direito tipo entre as demais realezas européias,
divino isola a realeza numa espécie de em- está na base de um imaginário político de
píreo da história, anulando a velha teoria tipo cosmológico, definido pela crença nu-
medieval do poder ascendente: a sobera- ma hierarquia celeste e terrena, rompido
nia vinda de Deus para o povo, e deste no Ocidente Moderno apenas com os des-
para os reis. Na Época Moderna a teoria dobramentos da Revolução Científica do
descendente do poder reina absoluta, fi- século XVII. De fato, a realeza sagrada co-
cando interditada qualquer intermediação mo centro da narrativa atravessou mil
popular na esfera da soberania. A crise de anos de história para atingir o século XVII
insegurança dos séculos XVI e XVII aju- de forma magnificente.
dou a definir uma formatação cultural

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OS ESPELHOS DE PRÍNCIPES: UM VELHO GÊNERO PARA UMA NOVA HISTÓRIA DAS IDÉIAS

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CULTURA, MEMÓRIA E IDENTIDADE – CONTRIBUIÇÃO AO DEBATE

CULTURA, MEMÓRIA E IDENTIDADE


CONTRIBUIÇÃO AO DEBATE*

José Márcio Barros**

RESUMO
Escrito originalmente como contribuição ao debate sobre “O direito à
memória”, realizado no II° Encontro Intermunicipal de Cultura, este
trabalho aborda a questão da memória a partir das contribuições tra-
zidas pela Antropologia Social e pela História contemporânea, espe-
cialmente no que se refere à perspectiva significacional da cultura e
da identidade. A questão central tratada refere-se aos desafios que as
sociedades atuais, marcadas pela “globalização das identidades”, apre-
sentam para a análise da identidade, da memória e seus papéis na
construção da cidadania.
Palavras-chave: Memória; Identidade; História.

O passado e o presente não são coisas estáveis tos dessa ação. Decorre desse conceito a
tornadas interpenetráveis pela memória, que ar- possibilidade de se afirmar que, tanto a
ruma e desarruma as cartas que vai embara-
lhando. O passado não é ordenado nem imóvel ação, que é trabalho e transformação,
– pode vir em imagens sucessivas, mas sua ver- quanto seu resultado – produtos e pro-
dadeira força reside na simultaneidade e na mul- cessos culturais – definem e são definidos
tiplicidade das visagens que se depõem, se de- por padrões, normas e valores, proveni-
sarranjam, combinam-se umas às outras e logo
entes de relações sociais desenvolvidas
se repelem, construindo não um passado, mas
vários passados... vão e vêm segundo as solici- por sujeitos em contextos e situações espe-
tações da realidade atual – também fictícia por- cíficas.
que sempre em desgaste e capaz de instituir A experiência e formação cultural de
contemporaneidade com o passado, igual à que um indivíduo são, portanto, o resultado
pode estabelecer com o futuro – tornando de vi-
dro as barreiras do tempo. (Nava, 1974)
do desenvolvimento, a partir de proces-
sos de socialização, de um repertório que,

M
odernamente, o conceito de cul- compartilhado com o grupo social a que
tura se refere a toda e qualquer pertence, viabiliza sua existência e perma-
ação humana sobre a natureza nência no coletivo. Indivíduo e grupo
e, por extensão, aos resultados e produ- existem porque partilham um repertório

* Texto apresentado na mesa-redonda “O direito à memória“ no II Encontro Intermunicipal de Cultura,


realizado entre os dias 29 de maio e 1º de junho de 1996, na cidade de Vitória, ES. Parte das idéias deste
texto foram publicadas em outros artigos e tiveram a importante contribuição de Maria Helena Cunha,
Nísio Teixeira e Patrícia Moran, com quem dividi a responsabilidade da concepção e implantação do
Centro de Referência Audiovisual de Belo Horizonte.
** Professor da PUC Minas e da UFMG.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 4, n. 5, p. 31-36, dez. 1999


31
José Márcio Barros

de significados, capaz de tornar possível Mas a sociedade moderna e, se quise-


a comunicação e a identificação. rem, a sociedade pós-moderna, é marca-
Esse repertório se ordena através de sis- da por uma tensão contínua entre a ho-
temas de códigos que traduzem as repre- mogeneidade e a heterogeneidade, toma-
sentações sociais próprias de sociedades das aqui como dimensões complementa-
e grupos sociais específicos, tomados em res que resultam de uma organização so-
contextos também específicos. Pode-se cial, ao mesmo tempo localista e globalis-
afirmar, como o faz a Antropologia Social ta. Como afirma o antropólogo Gustavo
contemporânea, que “ a noção de cultura Lins Ribeiro, nessas sociedades “a tensão
parte do estabelecimento de uma unida- heterogêneo/ homogêneo situa-se, assim,
de fundamental entre ação e representa- no campo das contradições, criada por for-
ção, unidade esta que está dada em todo ças globalistas versus localistas. (...) A pro-
o comportamento social” (Durham, 1980), ximidade e interdependência das di-
ou seja, a própria ação já é representação, ferenças, que se dão de maneira cada vez
pois é a tradução de sistemas de valores, mais complexa e crescente, são fatores que
padrões e concepções de vida. contribuem tanto para a percepção de en-
Assim, o produto cultural, seja qual for colhimento do mundo contemporâneo
o seu formato e suporte (hábitos cotidia- quanto para a fragmentação das percep-
nos, obras de arte, ritos religiosos, mode- ções individuais, num movimento duplo
los arquitetônicos etc.) passa a represen- de homogeneização e de heterogeneiza-
tar algo que lhe é anterior e maior porque ção que se dá pela exposição simultânea a
tanto a ação que o engendra quanto os uma mesma realidade compartilhada por
resultados e significados que adquire im- olhares claramente diferenciados”.
plicam a disposição e o uso de represen- Conseqüentemente, os fenômenos so-
tações simbólicas inerentes a códigos ou cioculturais localizados e específicos pas-
sistemas de classificação de determinados sam a exigir uma análise não mais centra-
grupos e sociedades. da apenas em si próprios, pois resultam
Ao se entender que os processos soci- de uma estrutura social, que distribui seus
ais e culturais só se realizam através de bens materiais e informações de maneira
sistemas simbólicos, confere-se à cultura diferenciada e cada vez mais inter-relacio-
uma dimensão coletiva e dinâmica que nada.
pressupõe a troca de representações, de Assim, o termo “cultura” passa a se re-
valores, de leituras da sociedade. Podemos ferir a tudo o que marca a semelhança e a
afirmar, então, que a cultura, como suge- diferença entre os indivíduos e os povos.
re a antropóloga Ruth Benedit, é uma es- A identidade dos indivíduos, grupos e so-
pécie de “lente” através da qual os homens ciedades passa a ser pensada como decor-
orientam e dão significado às suas ações, rência da multiplicidade de suas referên-
através da manipulação simbólica, que é cias constitutivas, ora localistas, ora glo-
atributo fundamental de toda prática hu- balistas.
mana. Ou seja, a cultura é ponto de onde Portanto, a identidade cultural nas so-
se avista e se constitui a realidade; é con- ciedades complexas será a tradução da di-
dição para a construção da história e da versificação das experiências sociais e de
memória de um povo e, portanto, forma- seus sistemas de representação, apontan-
dora de sua identidade. do para o fato de coexistirem em situação

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CULTURA, MEMÓRIA E IDENTIDADE – CONTRIBUIÇÃO AO DEBATE

de contato cada vez mais recorrentes, dis- heimer e Marcuse o advento de uma so-
tintas e, às vezes, divergentes formas de ciedade de massa, marcada pela perda ir-
conceber e agir sobre o mundo, inaugu- remediável e irrecuperável das identida-
rando um processo contínuo de negocia- des culturais. A “coisificação do espírito”
ção e comunicação. e a “unidimensionalidade” da cultura de
Delineia ainda esse quadro o fato de massa são marcas dessa visão apocalípti-
que, mesmo em sociedades que definem ca-contemporânea. Tal visão, entretanto,
com maior rigor o espaço de autonomia ao considerar a cultura como unificada pe-
individual, inexiste um processo de socia- la Indústria Cultural, toma o sujeito recep-
lização único e integral dos indivíduos de tor como agente passivo, esquecendo de
um mesmo grupo ou sociedade. O indi- qualificá-lo como o agente receptor que
víduo moderno e pós-moderno vive di- manipula os novos códigos simbólicos à
ferentes padrões e dinâmicas culturais. É luz de seu contexto cultural, que é amplo
possível, então, afirmar que, para além da e variado.
heterogeneidade e da complexidade, mar- Na verdade, a cultura é sempre uma
ca essa dinâmica cultural a maneira dife- experiência seletiva. A diversidade de pro-
renciada e contraditória com que cada um dutos e manifestações culturais oferecida
dela participa. pela indústria cultural nas sociedades
Se a identidade cultural de uma socie- complexas não se implanta nos indivídu-
dade, grupo ou indivíduo, se os significa- os como uma espécie de terreno virgem,
dos de suas tradições, de suas práticas e pois estes possuem códigos, referenciais
hábitos culturais só podem ser pensados a partir dos quais realizam ativa e seleti-
a partir do sistema de representação e clas- vamente sua leitura do mundo.
sificação a que pertencem, este resulta de O desafio da experiência cultural, hoje,
um singular processo de troca entre uni- parece nos remeter a três ordens de situa-
versos cada vez mais intercambiáveis, re- ções/problema:
sultado de complexas interações e nego- 1. A primeira, referente a sujeitos e gru-
ciações simbólicas. pos que resistem e sobrevivem fe-
Todas as sociedades mudam. As mais chados sobre si próprios, desenvol-
complexas a uma velocidade maior; as vendo mecanismos de controle da
menos complexas, mais lentamente. O reprodução de seus sistemas de re-
tempo, elemento importante na análise da presentação, esquivando-se do con-
cultura, encerra sempre uma tensão: “A tato com o diferente. Incluem-se,
oposição antigo/moderno é um dos con- nessa situação, minorias étnicas, re-
flitos através dos quais as sociedades vi- ligiosas, grupos radicais urbanos,
vem as suas relações contraditórias com o que, através de visões fortemente et-
passado” (Legof, 1984). Na sociedade com- nocêntricas, desenvolvem uma pos-
plexa urbano-industrial, os processos de tura de recusa à mudança. Aqui o de-
transformação são muito rápidos e fazem safio é a compreensão da permanên-
com que o indivíduo se reproduza social- cia e suas várias formas, num mun-
mente de forma fragmentada em seu pró- do cada vez mais mutante.
prio meio. 2. A segunda, referente aos grupos e
Tal dinâmica e velocidade costumam sujeitos de grandes centros urbanos
sugerir aos seguidores de Adorno, Hork- industrializados, cujo processo de

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33
José Márcio Barros

globalização da economia já atinge samento simbólico – característica funda-


seu cotidiano cultural, através da ex- mental do homem. São, portanto, proces-
posição e do convívio com uma ga- sos e práticas culturais. Ao recolher frag-
ma variada de representações que mentos essenciais para a reconstrução e a
transcendem origens geográficas, li- manutenção presente e futura da identi-
mites nacionais e determinações dade humana, lembrança e memória
temporais. Trata-se de uma experi- agem, contudo, diferentemente. A lem-
ência onde se intensificam as mistu- brança é a sobrevivência do passado, que
ras, pulverizam-se as identidades e emerge à consciência na forma de ima-
homogeneizam-se as subjetividades gens-lembranças. A sua forma pura esta-
(Rolnik, 1996). Aqui o desafio é com- ria, como afirma Bergson, nos sonhos, e a
preender como as modelações do sua forma “impura” em nossas máquinas
universo subjetivo advindas das ve- fotográficas e câmeras de vídeos portáteis.
lozes transformações geradas pelo São acontecimentos isolados, que promo-
mercado cultural globalizado convi- vem a “ressurreição” do passado, do acon-
vem com as forças locais, as referên- tecido, caracterizando-se pela sua singu-
cias identitárias tradicionais, ou seja, laridade evocativa.
como compreender as relações en- Por outro lado, a memória pode ser de-
tre o mundializado e o local. finida como um hábito, ou seja, como um
3. A terceira diz respeito àquele seg- mecanismo motor e cultural, cotidiana-
mento da sociedade que, nem en- mente presente na vida de indivíduos e
trincheirado em suas singularidades, grupos. Ela é depositária dos valores cul-
nem tocado pelas antenas da pós- turais estruturantes das práticas sociais ne-
modernidade através das infovias, cessárias ao convívio em grupo, da qual
vive mudanças em suas dinâmicas não se pode falar de forma isolada ou des-
culturais originais sem, contudo, contextualizada, mas sempre em termos
perder seus referentes, seus laços de “quadros sociais da memória” (Hawl-
que o prendem a uma origem, a um baks, 1983), referentes às classes sociais,
grupo, a um tempo. Aqui o desafio grupos de socialização, trabalho etc. Ins-
é compreender como, sem aguçar o crita na cultura e produtora de processos
sentimento etnocêntrico e sem ins- culturais, a memória é uma espécie de re-
crever-se na experiência da mestiça- servatório que aglutina os processos de
gem pós-moderna, as subjetividades identidade e identificação. Nesse sentido,
de sujeitos, grupos e sociedades, é sempre um refazer, reviver, repensar
continuam “a ignorar as forças que com imagens, conceitos, práticas, objetos
as constituem e as desestabilizam e idéias. Entendida como trabalho de re-
por todos os lados, para organizar- construção do passado, de ressignificação
se em torno de uma representação de do presente e antecipação do futuro, a me-
si dada a priori, mesmo que, na atua- mória consolida-se como “um trabalho so-
lidade, não seja sempre a mesma es- bre o tempo e no tempo”. (Chauí, 1983)
ta representação”. (Rolnik, 1996) O passado não sobrevive ao tempo
Voltando à questão da memória, seu nem ascende à memória como simples ob-
exercício é, pois, o exercício da lembran- jeto. A imagem do passado é sempre di-
ça, que, por sua vez, é o exercício do pen- ferente do passado experimentado, con-

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CULTURA, MEMÓRIA E IDENTIDADE – CONTRIBUIÇÃO AO DEBATE

solidando seu caráter dinâmico e seletivo A memória é, portanto, fonte de expe-


tal e qual os processos culturais globais. riência.
Entretanto, terão maior ressonância no
presente os fatos e emoções que, de algu- É inquietante a memória quando ressuscita a
voz dos que foram apagados, quando revela o
ma maneira, constituíram experiência pa- que não conhecemos e vivemos mais. Mas ela é
ra o indivíduo, inscrevendo-se, assim, em também nosso único instrumento para reencon-
seu sistema de representações. trar e habitar ocasiões cada vez mais favoráveis.
Sem memória, o presente de uma cul- (Lévi-Strauss, apud Ponty, 1980)
tura perde as referências ideológicas, eco-
Como se afirmou anteriormente, críti-
nômicas e culturais que a originaram. Re-
cas à sociedade urbano-industrial apon-
side aqui sua dimensão política. Como ele-
tam a perda da memória como um dos
mento fundamental na identidade cultu-
motivos para se depreciar a vida moder-
ral de um grupo tanto dos dominados
na. O indiferenciado cenário urbano e a
quanto dos dominadores, dos vencedo-
troca de informações em detrimento da
res e dos vencidos, dos colonizadores e
experiência produziriam um sujeito des-
dos colonizados, a memória constitui um
memoriado, carente de experiência e, con-
sistema seletivo e referencial, que irá lo-
seqüentemente, de uma inserção sociocul-
calizar no presente os códigos e experiên-
tural crítica e atuante. Relativizando o sen-
cias culturais. A memória individual ou
tido apocalíptico dessa visão, cabe ressal-
coletiva é, pois, um sistema onde se cru-
tar o papel da memória como via de aces-
zam estruturas culturais, políticas e eco-
so à experiência, à produção simbólica e,
nômicas enquanto códigos de represen-
conseqüentemente, à releitura do tempo
tação. As representações do passado e do
e espaço presentes à luz do passado. A me-
presente e as idealizações do futuro tam-
mória promove a síntese do tempo e do
bém convivem na memória, conferindo ao
espaço, guardando a simultaneidade de
indivíduo identidade cultural e grupal.
níveis de produção cultural.
Procurar uma verdade na memória é
Mas o que fazer com a memória, com
deixar passar sua riqueza simbólica. É pro-
as identidades, com as subjetividades
curar uma unidade no campo da diversi-
num mundo ainda mais diverso, ambígüo
dade, pois confundem-se na recordação
e veloz? Segundo Suely Rolnik, dois pro-
o sujeito recordador e a coisa recordada (...) En- cessos opostos parecem acontecer nas sub-
tão fará tanto sentido entender o sujeito a par- jetividades em meio ao “terremoto” que
tir do que recordou, quanto o que recordou a as transforma irreversivelmente:
partir do modo como ele fez. (Gonçalves Fi-
1. Por um lado, a postura das minorias
lho, 1989, p. 15)
que, viciadas em suas próprias iden-
Nesse sentido, não se trata de procu- tidades originais, são consideradas
rar coerência nas lembranças, mas tentar politicamente corretas, “pois se tra-
encontrar as matrizes fundadoras das apa- taria de uma rebelião contra a glo-
rentes contradições. “Não há evocação balização da identidade”, além de ser
sem uma inteligência do presente, um ho- importante arma no combate às in-
mem não sabe o que ele é se não for ca- justiças a que grupos diferenciados
paz de sair das determinações atuais”. pela etnia, pelo sexo, pela nacionali-
(Bosi, 1983) dade estão expostos.

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José Márcio Barros

2. Por outro lado, a “síndrome do pâ- da subjetividade e da identidade contem-


nico”, fruto da exacerbação das tro- porânea, relação esta que é marcada pelo
cas e exigências do mundo pós-mo- poder disruptivo e tenso entre os envol-
derno, estaria levando o sujeito a um vidos.
dilaceramento subjetivo que o faz Hoje, o desafio a todos (de lugares os
projetar no outro globalizado uma mais diferentes a partir de estratégias as
espécie de prótese que substitui seu mais diversas, tomam a memória e a sub-
eu original. jetividade como instrumentos insubstituí-
No primeiro caso, o reconhecimento da veis na construção das identidades) é, pa-
importância de tal postura está na medi- ra uns, “criar condições para o enfrenta-
da em que se caracteriza como luta pelo mento da experiência dos vazios de sen-
direito à construção das referências iden- tido, provocados pela dissolução de suas
titárias como um processo de singulariza- figuras”, visando a reconstrução de sua
ção, de criação existencial. É a manuten- condição de sujeito ativo; para outros, ao
ção da condição de sujeito de sua própria “viciar-lhe em seu eu histórico”, moldá-lo
existência que deve estar em questão. No como sujeito aberto às transformações e
segundo caso, trata-se de potencializar a às diferenças.
relação do local e do global na construção

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Cad. hist., Belo Horizonte, v. 4, n. 5, p. 31-36, dez. 1999


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DEMOCRACIA ANTIGA E DEMOCRACIA MODERNA

DEMOCRACIA ANTIGA E
DEMOCRACIA MODERNA

Cristina Vilani*

RESUMO
Este artigo faz um paralelo entre a democracia grega antiga e a demo-
cracia moderna. Procuramos mostrar quão diferentes são essas duas
formas de experiências democráticas. Enquanto as instituições demo-
crático-modernas se baseiam em uma concepção individualista, as ins-
tituições grego-antigas tinham como base uma concepção coletivista
da sociedade.
Palavras-chave: Democracia; Participação; Individualismo.

O
termo demokratia1 foi cunhado tencimento ao espaço da pólis eram a li-
pelos gregos na antigüidade pa- berdade e a igualdade. Para o ateniense,
ra designar uma forma de gover- o homem só podia exercer a política em
no em que o conjunto dos cidadãos tem a liberdade e só podia ser livre entre seus
titularidade do poder político. Isto é, uma pares.
forma em que a administração da coisa A pólis grega com seus ideais de liber-
pública é responsabilidade do povo e está dade, igualdade e respeito pela lei, tem
sob o seu controle. sido considerada fonte de inspiração para
Dentre as instituições da Grécia Anti- o pensamento democrático moderno. En-
ga destacou-se, pelo seu significado polí- tretanto, tem-se dado pouca atenção ao
tico, a cidade-república de Atenas – a pólis fato de que, embora tenhamos guardado
– que teve seu apogeu entre os séculos VI aqueles ideais, a concepção e a forma da
e IV a.C. Ali, os cidadãos, em assembléia, moderna democracia distanciam-se sobre-
reuniam-se para discutir e deliberar sobre maneira da concepção e da forma dos an-
as leis e a organização da vida coletiva. O tigos. Quando hoje falamos em democra-
demos era soberano e tinha a autoridade cia, estamos falando de um governo re-
suprema para exercer as funções legislati- presentativo, de um Estado constitucio-
va e judiciária. Os requisitos para o per- nal e das garantias das liberdades indivi-

* Departamento de Sociologia – PUC Minas.


1 Demokratia – palavra grega composta por demos, que quer dizer povo, e kratia, originária de kratos, que
significa governo, força ou potência de dominação. Literalmente democracia significa “governo do povo”.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 4, n. 5, p. 37-41, dez. 1999


37
Cristina Vilani

duais. Essa democracia tem pouca seme- teresses e com suas necessidades, tornou-
lhança com a cidade-república dos gregos. se o valor supremo na constituição das ins-
Somos diferentes dos antigos porque nos- tituições sociais, para os antigos, o ideal
sa democracia assenta-se em premissas e comum impunha-se a todos e o indivíduo
valores que a política grega desconhecia. era visto sobretudo como parte do órgão
Na nossa era a forma liberal de demo- coletivo, do corpo social. Nessa perspec-
cracia tornou-se o marco dominante no tiva, a virtude cívica significava subordi-
ocidente. Por isso, no presente texto, ela é nação dos interesses pessoais aos ideais
o foco privilegiado de análise. Nos limi- coletivos. Entre os modernos, o ordena-
tes deste estudo não abordamos a demo- mento das questões públicas deve respei-
cracia direta ou as formas mescladas coe- tar e refletir as preferências individuais.
xistentes na modernidade. A ênfase na Isto é, a dimensão cívica da cidadania
forma liberal não significa, entretanto, (busca do bem público) é inseparável da
conferência de qualquer valor, isto é, não sua dimensão civil (afirmação dos direi-
entramos na consideração da melhor de- tos individuais). Assim, na visão liberal
mocracia. predominante na era moderna, o objeti-
Vejamos os aspectos salientes da mo- vo da política é a busca da realização de
derna experiência democrática, em con- um “compromisso optimal entre os inte-
traste com a antiga. resses privados”. (Elster, 1989)2
Quando a vida coletiva se impõe so-
bre os indivíduos, a idéia de liberdade é
A CONCEPÇÃO INDIVIDUALISTA MODERNA diversa daquela em que a sociedade on-
tologicamente não existe, e o “reino dos
O que sustenta e dá sentido às insti- fins coincide com os fins legítimos de cada
tuições modernas é a concepção individu- homem” (Dumont, 1985). No seu famoso
alista, segundo a qual a ação individual texto “De la liberté des anciens comparée
ganha relevo e a realidade social é vista à celle des modernes” (1818), Benjamin
como resultante da interação de sujeitos Constant assinala que, enquanto para os
individuais, que a moldam de acordo com antigos liberdade significava distribuição
seus interesses. Essa concepção difere das do poder político entre os cidadãos e par-
concepções holísticas, para as quais o todo ticipação no organismo coletivo, para os
é anterior às partes, isto é, a sociedade tem modernos liberdade implica segurança
suas próprias leis de desenvolvimento que nas “fruições privadas”, ou seja, a segu-
independem da vontade ou da intenção rança de esferas individuais de liberdade.
dos indivíduos. Enquanto para os moder- Constant quis mostrar que a experiência
nos o ser humano particular, com seus in- antiga, diferentemente da moderna, não

2 A interpretação binária pode ser simplista e perigosa mas, como procedimento analítico, nos foi útil,
porque privilegiamos o que há de mais peculiar na ideologia moderna, a fim de buscar seus reflexos no
mundo da política. Para a compreensão das representações coletivistas e suas formas mescladas com o
individualismo, na era moderna, ver o texto de Dumont (1985). Segundo ele, embora o individualismo
seja a marca distintiva da modernidade, não lhe é coextensivo. “O mundo ideológico contemporâneo é
tecido da interação de culturas, (...) é feito de ações e reações do individualismo e de seu contrário”, re-
sultando, muitas vezes, em “representações híbridas”. (p. 30)
No interior do próprio movimento liberal, diferentes correntes combinaram diversamente os pólos do
interesse coletivo versus interesse individual, na busca da melhor maneira de conceber a vida social.

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38
DEMOCRACIA ANTIGA E DEMOCRACIA MODERNA

conheceu nenhuma forma de indepen- singular e autodeterminado. No mundo


dência da vontade e de proteção ao indi- moderno, o privado adquiriu outra cono-
víduo, a quem o organismo coletivo ab- tação, transformando-se no espaço da in-
sorvia completamente. dividualidade, onde o homem afirma a
Os antigos não conheciam a noção de sua autonomia e define suas escolhas.
livre arbítrio e de espaço privado como ex- A maturação da concepção individua-
pressão de autonomia e singularidade. Era- lista, como a conhecemos modernamen-
se plenamente homem enquanto membro te, foi lenta, e a sua gênese dificilmente
de um órgão coletivo; ser livre significava pode ser atribuída a um pensador ou
estar situado na pólis. Como chamou a evento particular. Foi fruto de uma acu-
atenção Hannah Arendt, no seu livro A mulação histórica que teve um ponto de
condição humana, na antigüidade grega inflexão fundamental no Nominalismo
a liberdade era um conceito exclusivamen- medieval, passou pelas esteiras do Renas-
te político. cimento e da Reforma, ganhou corpo com
Com essas afirmações não estamos des- o Jusnaturalismo dos séculos XVII e XVIII
conhecendo a importância, para o grego e encontrou sua sistematização doutriná-
antigo, daquilo que pertencia ao particu- ria no Liberalismo.
lar e dizia respeito ao indivíduo: a vida John Stuart Mill, um dos expoentes da
doméstica, a educação das crianças, o con- democracia liberal, na sua obra intitulada
vívio com familiares e amigos, as práticas On liberty (1859), definiu a liberdade co-
religiosas. Como escreve Vernant, “os gre- mo aquela situação em que ninguém deve
gos arcaicos e clássicos têm, bem entendi- estar impedido de fazer aquilo que dese-
do, uma experiência do seu eu, de sua pes- ja e não deve ser constrangido a fazer o
soa, assim como do seu corpo, mas essa que não deseja. Essa liberdade deve ser a
experiência é organizada de forma dife- mais ampla possível: só encontra limites
rente da nossa” (Vernant, 1987). Entre os na igual liberdade dos demais e é base da
antigos, continua ele, “o mundo do indi- adequação entre o interesse individual e
víduo não adquiriu (como para os moder- o interesse coletivo. Uma sociedade de-
nos) a forma de uma consciência de si, de mocrática é aquela que possibilita a auto-
um universo interior que define, na sua nomia de cada um e convive com o cho-
forma radical, a personalidade de cada que de opiniões e de interesses, gerando
um” (Vernant, 1987). A experiência de ca- uma arena de embate entre diversas for-
da ser humano, na antigüidade, era ori- ças políticas.
entada para o exterior e não para o inte- Muitos têm chamado a atenção para o
rior. O brilho e a majestade dos que se dis- fato de que a pólis grega valorizou sobre-
tinguiam eram reconhecidos e conferidos maneira o livre debate entre homens ple-
pelo corpo social, e era com referência a namente cidadãos, independentemente
esse “corpo” que os homens buscavam a das posições econômica e social de cada
perfeição pessoal. Entre os modernos, a um. Todos os que faziam parte da comu-
nova forma de pensar o próprio eu fez do nidade cívica podiam participar ativamen-
homem um ser que compartilha o mun- te dos debates tanto quanto das decisões
do com outros seres enquanto indivíduo finais a respeito da coisa pública.3 Mas,

3 Ver Hannah Arendt e M. J. Finley: A condição humana e Democracia antiga e moderna, respectivamente.

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39
Cristina Vilani

embora os gregos tenham valorizado as possibilitar a todos, porque cidadãos, o


diferenças e as divergências no debate li- exercício do poder político.
vre a respeito das questões públicas, a con-
cepção coletivista, predominante na anti-
güidade, gerou um centro único de po- O CONSTITUCIONALISMO
der político – a assembléia soberana dos
cidadãos. Nesse sentido podemos afirmar Para os antigos, obedecer à lei era con-
que a democracia dos antigos foi uma de- dição de estabilidade da boa ordem polí-
mocracia concebida de forma monolítica. tica. Os textos de Platão e Aristóteles fica-
Entre os modernos, a visão individualista ram famosos pela defesa do primado do
criou um sistema pluripartidário, através governo das leis. Tanto um quanto outro
do qual grupos diversos se contrapõem sustentavam que da submissão de todos
pela conquista temporária do governo. – governantes e governados – ao império
Assim, afirma-se que, na experiência mo- da lei dependia a salvação da cidade.4
derna, a democracia assumiu uma forma Os modernos não inventaram a supre-
pluralista. macia da lei, mas acrescentaram algo im-
portante a ela: criaram um sistema cons-
titucional que, além de garantir a prote-
A IGUALDADE POLÍTICA ção aos indivíduos, distribuiu o poder po-
lítico de forma que a nenhuma autorida-
O enunciado moderno de “poder igual de fosse conferido poder absoluto. Assim,
para todos” está muito longe do ideal gre- o constitucionalismo moderno inaugurou
go de igualdade política. Entre os antigos, uma forma de exercício democrático des-
a participação na coisa pública não era um conhecido pelos antigos: assegurou as li-
direito de todos porque nem todos eram berdades individuais e dividiu o poder do
iguais. O demos era constituído pelo cor- Estado. O governo deve proteger os di-
po de cidadãos, considerados como tais reitos dos indivíduos e operar mantendo
somente os homens livres, ficando à mar- rigorosa distinção entre as funções execu-
gem da vida pública a maioria da popula- tiva, legislativa e judiciária. O jusnatura-
ção composta por mulheres, escravos e lismo moderno ocupou lugar de destaque
metecos (estrangeiros e seus descenden- nessa transformação. Segundo essa dou-
tes). trina, todos os homens têm, por nature-
Na Era Moderna, a cidadania adqui- za, certos direitos fundamentais, como o
riu a dimensão de universalidade, e o do- direito à vida, à segurança, à liberdade,
mínio público foi aberto para todos. En- que não podem ser violados por quem
tre os séculos XVIII e XIX, deu-se paulati- quer que seja; cabe ao Estado respeitar, ga-
namente a ampliação dos direitos de ci- rantir e proteger. O que pensadores como
dadania, terminando por resultar no re- Locke, Montesquieu e Kant tinham em
dimensionamento da pólis. O problema da mente era um sistema capaz de impedir a
organização do Estado, desse modo, pas- consolidação de um poder absoluto e de
sou a estar subordinado ao imperativo de dar garantias ao cidadão.

4 Ver principalmente os textos Leis e Política de Platão e Aristóteles, respectivamente.

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40
DEMOCRACIA ANTIGA E DEMOCRACIA MODERNA

A DEMOCRACIA REPRESENTATIVA complexo processo de formação da vontade polí-


tica que, partindo dos cidadãos, passa pelos par-
tidos e pela assembléia e culmina na ação do go-
A politéia era constituída por um corpo verno limitada pela lei constitucional. (Bobbio
de cidadãos ativos dedicados ao processo e Matteucci, 1992)
de autogoverno e pouco tem a ver com o
moderno sistema representativo e com a As distinções entre Estado e socieda-
estrutura impessoal de comando que cha- de, cidadão e governo, representantes e
mamos de Estado. A pólis era uma “cida- representados – próprias da visão moder-
de comunidade”, uma koinonia, e o gover- na – eram estranhas à cidade-república
no, para os gregos, consistia na participa- grega.
ção contínua e direta dos cidadãos no pro- A democracia representativa liberal te-
cesso de tomada de decisões públicas. O ve seus contornos traçados entre os sécu-
polítes dedicava-se completamente à pólis: los XVIII e XIX. Consolidou-se há menos
“governar a si mesmo significava passar a de cem anos com o ingresso de todos na
vida governando”. (Sartori, 1994) arena política. Contém a marca do indivi-
No nosso sistema representativo, as dualismo e seus traços distintivos são o
decisões sobre a administração pública são pluralismo, a constitucionalidade e a re-
tomadas, não pela coletividade, mas por presentação.
pessoas eleitas para isso. O poder popu- A questão que se coloca para o homem
lar, para o moderno, não é concebido co- moderno é como ser governado sem ser
mo o direito do cidadão governar e sim oprimido e tem pouco a ver com “um po-
como direito de autorizar o governo e de vo que se autogoverna”. Embora a pala-
impedir o arbítrio do governante. Nas pa- vra demokratia seja grega, o que “agora in-
lavras de Matteucci, a democracia, como dicamos com ela originou-se fora da Gré-
nós a conhecemos, consiste num cia e em premissas que a política grega ig-
norava por completo”. (Sartori, 1994)

Referências bibliográficas
BOBBIO, M. P. Dicionário de política. Brasília: UNB, 1992.
DUMONT, Louis. O individualismo. Uma perspectiva antropológica da ideologia moderna.
Rio de Janeiro: Rocco, 1985.
ELSTER, J. Marx, hoje. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
SARTORI, Giovanni. A teoria da democracia revisitada. Debate contemporâneo. São Paulo:
Ática, v. 1, 1994.
VERNANT, J. P. et al. Individualismo e poder. Lisboa: Edições 70, 1987.

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41
RESENHAS

pia cocaniana como projeções do universo do


RESENHAS desejo da população medieval: a abundância,
a ociosidade, a juventude, a liberdade (anali-
sados, respectivamente, nos capítulos 2, 3, 4 e
FRANCO JÚNIOR, Hilário: Cocanha: 5). Esses tópicos funcionavam como um me-
a história de um país imaginário. São canismo de compensação à concretude mais
Paulo: Cia. das Letras, 1998. 313p. chã, marcada, ao contrário, pela escassez (so-
bretudo de gêneros alimentícios), pelo traba-
Heloisa Guaracy Machado (Departamen- lho incessante, pela supremacia indiscutível
to de História – PUC Minas, doutoran- das tradições mais antigas sobre as inovações
da em História Social pela USP) e da maturidade sobre a juventude, pela pres-
são das normas sociais e religiosas sobre as
pulsões particulares e grupais.

N a segunda metade do século XII, um poe-


ta anônimo do norte da França imaginou
um país maravilhoso, cujos componentes fo-
A Cocanha é o mundo do excesso e da gra-
tuidade; seus habitantes são sempre jovens e
completamente livres. Em linguagem freudi-
ram recolhidos quer da literatura clássica, quer ana – cujos conceitos são às vezes utilizados
da cultura folclórica e atualizados pelos ele- por Franco Júnior na sua análise – poderíamos
mentos de sua época. Trata-se da “Cocanha”, dizer que se trata de um mundo conduzido
uma terra de prazeres e de abundância, de har- pelo “princípio do prazer” e pela negação do
monia social e de liberdade sexual, onde não “princípio de realidade”... da dura realidade
há espaço para o sofrimento, o envelhecimen- medieval. Uma negação que atua através da
to e o esforço do trabalho. No século XIII, de- inversão da realidade imediata, mas não visa
pois de ter circulado oralmente por décadas, uma ruptura, pois não pretende destruir os
essa lenda foi registrada por escrito, em fran- fundamentos da sociedade ocidental e sim re-
cês arcaico e sob a forma de versos, no Fabliau formá-la ou restaurá-la, eliminando as amea-
de Cocagne, analisado com muita proprieda- ças de um cotidiano inóspito ou das incerte-
de por Hilário Franco Júnior em Cocanha: a zas provenientes de um mundo novo em fran-
história de um país imaginário. ca ascensão no século XIII: o mundo urbano,
Com efeito, como afirma Jacques Le Goff com as suas tendências laicas e liberalizantes,
no prefácio, os próximos estudos sobre a soci- que tentavam quebrar as resistências do mun-
edade cocaniana e sobre o período enfocado do rural, aristocrático e religioso. Daí a fuga
deverão passar, necessariamente, pelo grande rumo a um tempo e espaço indefinidos, ou
livro de Hilário Franco Júnior. Entre os seus melhor, a um tempo suspenso no eterno pre-
méritos, podemos citar o ineditismo do trata- sente de um espaço orgiástico: a Cocanha é
mento global do corpus sobre a Cocanha, as uma festa permanente.
articulações bem efetuadas entre um país ima- Por outro lado, a gama de referências pre-
ginário e as sociedades reais históricas, o enor- ciosas provenientes do exame minucioso dos
me acervo de informações históricas e biblio- temas indicados faz emergir, secundariamen-
gráficas, a inclusão de ilustrações bem esco- te, em maior ou menor grau, vários outros que,
lhidas e um índice remissivo incluindo mui- reunidos, compõem um quadro cultural im-
tos verbetes alusivos ao texto. Conscientes das pressionante, especialmente no que se refere
dificuldades em tecer uma apreciação condi- à (por vezes) chamada Idade Média Central: as
zente com a amplitude da obra, optamos por suas práticas alimentares, o mundo das festas,
apresentar a nossa leitura a partir de três as- dos jogos e demais formas de lazer, os espaços
pectos relevantes que expomos a seguir. privilegiados e as edificações mais comuns, as
Em primeiro lugar, destacamos o conteú- cidades e países importantes ou as adversida-
do enfocado e organizado em torno de quatro des provocadas pelas guerras e epidemias, em
grandes eixos temáticos que integram a uto- um confronto permanente com a morte.

* Departamento de História – PUC Minas, doutoranda em História Social pela USP.

Cad. hist., Belo Horizonte, v. 4, n. 5, p. 43-52, dez. 1999


43
RESENHAS

Conhecemos a aspereza do mundo do tra- nalismo, o realismo. Em suma, podemos dizer


balho, os aspectos da produção e de seus usos; que se a Cocanha, ao promover a petrificação
a comunidade de clérigos, guerreiros e traba- do tempo, nega a história, acaba contando, por
lhadores que compunham a sociedade cristã, vias avessas, a história de uma determinada
envolvendo certas nuances muito interessan- época.
tes do psiquismo dos homens e mulheres me- Em segundo lugar, destacamos os pressu-
dievais; as relações de poder, no embate entre postos teórico-metodológicos (discutidos na
a aristocracia (laica e eclesiástica) e as monar- Introdução) que servem de suporte à obra na
quias, de um lado, ou na organização dos feu- investigação do seu objeto: o Fabliau de Co-
dos e das comunas, de outro. E, por fim, o uni- cagne.
verso de suas representações artísticas e inte- A perspectiva adotada é a da história soci-
lectuais: a poesia medieval, a iconografia, a al do imaginário, “que leva em conta a influ-
música, a organização do saber formal e infor- ência do imaginário na vida das sociedades
mal. Tudo isso tendo como eixo o universo re- históricas e que considera os condicionantes
ligioso de uma idade “crística” – cujo modelo sociais nas produções imaginárias”. Apoiado
era a “cidade de Deus” – apoiada nos pressu- na historiografia recente e em exemplos bas-
postos da ortodoxia católica, em torno dos seus tante consistentes e bem explicitados, Franco
dogmas, sacramentos e personagens. Júnior defende a validade da reconstrução his-
Entramos em contato também com os sen- tórica das sociedades imaginárias tanto quan-
timentos e sensibilidades que distinguiam par- to das sociedades concretas – bem identifica-
ticularmente a sociedade medieval, isto é, as das no tempo – e a necessidade de uma inves-
suas tendências (o espírito de grupo, a estabi- tigação que articule as duas sociedades, cha-
lidade, a solidariedade, os valores corteses), as mando a atenção para o fato de que a frontei-
suas formas de manifestação (os sonhos e as ra colocada entre elas é, via de regra, arbitrá-
visões, o lúdico, a sonoridade, a oralidade e a ria. De fato, como enfatiza o autor, há uma lar-
literaridade, o sensualismo e a sexualidade) e ga faixa de domínio comum que constitui o
as suas idiossincrasias (o orgulho, a avareza, ponto de observação do historiador para uma
os tabus sexuais, as novidades, o individualis- e outra esferas da experiência social.
mo). Ao desenvolver a sua argumentação teóri-
Sentimentos e sensibilidades em consonân- ca, ele nos revela a sua própria concepção de
cia com uma visão de mundo peculiar, escato- “história”, isto é, “aquela que considera o ho-
lógica, no âmbito do maravilhoso cristão, o mem na sua complexidade e totalidade, encon-
qual funcionava como “um contraponto ao tra-se na articulação entre a realidade vivida
cotidiano, exercia uma função compensatória externamente e a realidade vivida oniricamen-
em relação ao conhecido, ao previsível, ao re- te. Uma não existe sem a outra, e ambas cons-
gular, sendo assim”, e conforme Le Goff, “uma troem, juntas, os comportamentos coletivos, o
forma de resistência à ideologia oficial do cris- suceder dos eventos históricos”. O conjunto
tianismo”. No “maravilhoso” se mesclavam dessas premissas justifica, além disso, o obje-
certas categorias posteriormente seccionadas tivo geral e os critérios de sua análise: exami-
pelo pensamento moderno, tais como o “na- nar a Cocanha como uma manifestação do
tural” e o “sobrenatural”, o “profano” e o “sa- maravilhoso, no sentido, não de uma mani-
grado”, compondo um quadro mental que festação literária exótica, mas como elemento
Aron Gurevich chamou o “grotesco medieval”. pleno de significação histórica e social, escla-
Na análise desse quadro, Franco Júnior nos in- recendo as articulações entre mundo objetivo
forma a respeito das concepções vigentes de e subjetivo, externo e interno, material e psi-
tempo e de espaço, de história, de cultura e de cológico, no âmbito de uma coletividade.
natureza, além do ideário que influenciava o Efetivamente, a literatura constitui um ins-
pensamento político-filosófico, no embate en- trumento privilegiado para o estudo do ima-
tre os agentes de conservação e de mudanças ginário e das mentalidades. A literatura, como
sociais: o monismo, o panteísmo, o amauria- a iconografia, é uma construção social e, por
nismo, o anarquismo, o naturalismo, o nomi- conseguinte, em relação à Idade Média, elas

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44
RESENHAS

podem ser consideradas formas coletivas de O reconhecimento das enormes dificulda-


representação dos mundos divino, natural e des em acompanhar o trajeto dessas heranças
humano. Assim, visando uma interpretação se- não impede a investigação obstinada do pes-
mântica do documento e não necessariamen- quisador. Dessa forma, ele remonta ao Antigo
te a sua forma literária, o autor procura resga- Oriente Médio, às culturas sumeriana e judai-
tar certas imagens cujo significado nos remete ca, perpassando os mundos greco-romano,
à compreensão da Cocanha – uma sociedade céltico, escandinavo e muçulmano, para che-
perfeita do ponto de vista de determinados gar à tradição folclórica e às elaborações eru-
segmentos sociais, mas que atende também, ditas que integram a cultura cristã medieval,
em alguma medida, às expectativas de toda a destacando alguns dos paralelismos possíveis
comunidade. entre a Cocanha e obras como a Bíblia, a Re-
Tais imagens são apreendidas não só pela pública de Platão e o Corão. O capítulo inclui
sua inclusão no texto cocaniano, como também também a transcrição do poema na íntegra, no
pela sua ausência, pois devemos considerar original analisado e no francês arcaico, bem
que a literatura reflete e, ao mesmo tempo, como a sua tradução para o português moder-
refrata a realidade social. Em outras palavras, no – uma tarefa restrita aos especialistas do
cabe ao historiador desvelar os elementos sub- porte de Franco Júnior.
jacentes à escritura, buscando a sua intencio- Mas o autor não se limita, na sua análise
nalidade inconsciente e as condições históri- diacrônica, aos elementos precursores do Fa-
cas de sua produção, aqui reunidas na figura bliau de Cocagne. De forma instigante e ver-
do autor coletivo. Essa ênfase no significado ticalizada ele investiga, nos capítulos 6 e 7, as
do texto não exclui, contudo, um estudo da suas permanências nas produções iconográfi-
ordem do significante, tendo em vista a cara- cas e sobretudo literárias, que se multiplica-
terização do campo semântico dos “jovens”, ram na modernidade. O capítulo 6 é inteira-
apontados como os emissores e os destinatá- mente dedicado à “versão inglesa” do poema,
rios preferenciais do poema. Por isso, no capí-
seguida também de uma tradução para o por-
tulo 4, sobre a “juventude”, Franco Júnior in-
tuguês. O capítulo 7 examina as “versões tar-
clui uma análise lexicográfica, que incide so-
dias”, subdivididas em “utopias eruditas”
bre três tipos de palavras principais – adjeti-
(como a de Tomas More ou Bacon) e as “ver-
vos, artigos e verbos – e outras secundárias –
sões modernas populares” européias – na
substantivos e advérbios.
França, na Inglaterra, na Alemanha, na Itália,
As considerações tecidas no parágrafo an-
na Holanda. Nas três versões, são apontadas
terior são reveladoras do método de trabalho
as transformações sofridas pela temática co-
adotado, tão consistente quanto a sua funda-
caniana, segundo as razões de um contexto
mentação teórica. Outros indicativos, nesse
sentido, perfilam o capítulo inicial, na concei- histórico distinto: a substituição do caráter utó-
tuação rigorosa das categorias empregadas pico pelo ideológico no poema inglês, a nega-
(como “imaginário” e as suas modalidades, ção da Cocanha no novo universo de idealiza-
“utopia”, “mito” e “ideologia”) e na caracteri- ção das utopias eruditas e a mudança do cará-
zação cuidadosa do poema em análise: na in- ter do relato cocaniano – de utopia aristocráti-
dicação das raízes etimológicas do termo Co- ca para utopia popular e camponesa – nas ver-
cagne, na descrição das diversas definições atri- sões modernas populares.
buídas ao fabliau como gênero literário, no le- No entanto, a grande surpresa, nesse capí-
vantamento da historiografia relativa ao tema tulo, aquela que fala mais de perto aos brasi-
da Cocanha, bem como a inserção desse tema leiros, diz respeito aos ecos da Cocanha no
no contexto cultural que lhe serve de base. Ou, Novo Mundo, na América espanhola e na
ainda, no exame do material constitutivo do América portuguesa, consideradas como re-
poema – sempre na perspectiva da intertextu- ceptáculos de vários elementos do imaginário
alidade e da intervocalidade – rastreando as medieval. Um bom exemplo, nesse caso, é o
(sete) principais heranças culturais que com- popular “pau de sebo”, um descendente dire-
põem aquilo que ele denomina como um “mo- to da prática do “mastro da Cocanha” na Eu-
saico étnico”. ropa, cujo aparecimento, no Brasil, foi regis-

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45
RESENHAS

trado pela primeira vez em 1763, no Rio de Ja- universo cultural dos holandeses e franceses;
neiro, por ocasião da festa do Divino Espírito finalmente, o substrato medieval francês tra-
Santo. zido ou pelos soldados e comerciantes france-
Tais permanências podem ser principal- ses que acompanhavam os holandeses, ou, di-
mente observadas no cordel nordestino São retamente, pelos colonizadores ibéricos.
Saruê, atribuído a um certo Manoel Camilo, a Evidentemente, não se trata de ignorar a
começar pelo vocábulo “Saruê” (derivado do grande distância que separa os tempos histó-
francês soirée), correspondente a uma modali- ricos mencionados, incorrendo em anacronis-
dade de dança que associa elementos france- mos que negam a própria dinâmica histórica.
ses e americanos. Depois, pelos paralelismos Parece-nos óbvio o fato de que cada época
tão evidentes entre o Fabliau de Cocagne e deve ser tratada na sua especificidade cultu-
aquele cordel na configuração da utopia da ral, o que não impede, contudo, o reconheci-
terra maravilhosa, é praticamente impossível mento das aproximações possíveis entre elas
apontá-los como simples coincidências. ou as atualizações particulares realizadas a
Em função da sua grande relevância e do partir de elementos simbólicos partilhados
seu forte apelo cultural, não poderíamos dei- pelo conjunto ocidental. No tocante à temáti-
xar de nos deter um pouco mais demorada- ca cocaniana, as diferenças são culturais, não
mente nessa passagem do livro, destacando, a estruturais; nesse caso, como afirma Franco
título de ilustração, algumas expressões equi- Júnior, recorrendo a Lévi-Strauss, o que impor-
valentes na qualificação da “terra maravilho- ta, fundamentalmente, é a história que o mito
sa” no texto francês e no texto nordestino, res- narra.
pectivamente: como um lugar onde “chove Para nós, uma das qualidades do livro é,
pudim” ou “chove manteiga” (no caso da justamente, resgatar a validade da perspecti-
“abundância”), povoado por “gansos que as- va da longa duração histórica para a atualida-
sam por si” ou por “peixes que se cozinham de, em um contexto epistemológico domina-
sozinhos” (no caso da “ociosidade”), cujos sím- do pela fragmentação, pelos estudos voltados
bolos são a “fonte da juventude” ou o “rio da para as micro-histórias. Acreditamos que,
mocidade” (no caso da “juventude”), tratan- quando bem trabalhada, aquela perspectiva é
do-se, além disso, de uma terra “sem oposição capaz de esclarecer uma série de questões que
e proibição” ou onde “não há contrariedade” nos permitem ampliar o leque das reflexões
(no caso da “liberdade”). Como idéia geral, por acerca de uma tradição cultural que, queira-
conseguinte, e de modo similar à Cocanha, São mos ou não, constitui um dos pilares da orga-
Saruê se tornou sinônimo de coisa impossível: nização do nosso próprio universo material e
(...) “só em São Saruê, onde feijão brota sem espiritual, como podemos perceber no desen-
chovê”. volvimento da investigação.
No aprofundamento da sua análise, Fran- No entanto, talvez o maior mérito da aná-
co Júnior utiliza o método regressivo de Marc lise repouse na forma de sua problematização,
Bloch, que segue um percurso cronologica- segundo os moldes propostos pela Nova His-
mente invertido, no rastreamento de quatro tória, mas que raras vezes foi tão bem realiza-
camadas histórico-culturais da estratigrafia da, pela sua coerência e originalidade, como
folclórica do nordeste brasileiro, cuja conflu- neste trabalho sobre a Cocanha.
ência teria possibilitado o aparecimento das Com efeito, o texto é um convite perma-
primeiras imagens do país de “São Saruê”: as nente ao diálogo com outras obras, com ou-
condições arcaicizantes que distinguem o Nor- tras disciplinas, com outras épocas e com o lei-
deste no século XX e a forte mentalidade mes- tor, levantando pistas e convidando-nos a se-
siânico-milenarista dos seus habitantes; a pre- gui-las, ou abrindo espaço para a continuida-
sença holandesa, no século XVII, que poderia de dos estudos do gênero. Dessa forma, ape-
ter trazido para o Brasil as tradições sobre a sar de delinear a sua posição pessoal no fim
Cocanha que circulavam nos Países Baixos; as de cada capítulo, para melhor defini-la, na con-
narrativas míticas indígenas que, levadas pe- clusão o autor não aponta soluções definitivas
los tupinambás ao sertão, interagiram com o para o que ele apresenta como “indefinições

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RESENHAS

historiográficas”, oferecendo, ao invés disso, seus pares intelectuais. Ao mencionar um ter-


uma gama de possibilidades de interpretação mo em latim ou um conceito de maior com-
às suas (três) interrogações principais: “quem” plexidade, ele tem o cuidado de, imediatamen-
foi o autor responsável pela elaboração do Fa- te, explicá-lo, precisá-lo e traduzi-lo, numa ati-
bliau de Cocagne? “Por que” este foi criado, tude de respeito para com o leitor menos fa-
isto é, qual a sua função? “Para quem” o autor miliarizado com o assunto. Desse modo, a den-
escrevia? sidade da escritura não inviabiliza a feição de
Desse modo, na conclusão, ele enumera al- um texto agradável, de fácil compreensão, que
gumas tentativas de respostas a essas questões. permite níveis diferenciados de leitura; atin-
Quanto à autoria do Fabliau (“quem”?), por ge um público amplo, desde os especialistas
exemplo, ele aponta quatro alternativas nas da matéria até o público leigo – este, cada vez
figuras de um trovador da corte feudal de Co- mais interessado na cultura medieval, haja vis-
incy, de um jogral de Arras, de um estudante ta o consumo progressivo das obras relativas
picardo de Paris e de um goliardo de Amiens ao período, no Brasil, inclusive. Nesse senti-
ou Leon, os quais integravam ou a baixa aris- do, o livro cumpre a função social que, a nos-
tocracia laica, ou o baixo clero citadino, toca- so ver, constitui a razão última de todo traba-
dos pelas mesmas inquietações advindas das lho acadêmico.
transformações sociais da época. O mesmo Quem tem o privilégio de acompanhar um
raciocínio se estende às funções da Cocanha pouco mais de perto a trajetória do Professor
(“por quê”?) e aos seus múltiplos pretensos re- Hilário percebe que essa conduta está em ple-
ceptores (“para quem”?) espalhados pelos cas- na sintonia com o perfil pessoal e profissional
telos, pelas praças públicas e pelas tavernas – do investigador vocacionado pela busca genu-
possíveis locais de divulgação do poema. ína do conhecimento e do comunicador nato
Nesse ponto, o grande medievalista con- comprometido com a divulgação desse conhe-
traria alguns dos traços fundantes do mani- cimento. Pode-se não concordar inteiramente
queísmo medieval, na versão contemporânea com as suas formulações em alguns momen-
de uma certa racionalidade científica e acadê- tos, até mesmo por incompatibilidades teóri-
mica que, assentada nos velhos paradigmas do cas, mas não se pode negar sua seriedade e
falso e do verdadeiro, do certo e do errado, fôlego para coletar dados, reuni-los, mergulhar
atribui a si própria o papel de arauto de uma nas suas entrelinhas e fazê-los interagir com
“verdade” monolítica, cristalizada. Como o au- outros campos do conhecimento. Tais proce-
tor anônimo do Fabliau, o autor do livro so- dimentos, conduzidos por uma rara acuidade
bre a Cocanha subverte a visão de mundo bi- mental, possibilitam certos vôos epistemoló-
nária: o primeiro, no que se refere à bipolari- gicos bem realizados e apoiados em uma sóli-
dade típica da sensibilidade medieval; o se- da fundamentação. Uma ousadia restrita ao
gundo, na quebra da repetição estéril e na re- profundo conhecedor do seu objeto e já defi-
núncia ao mundo da certeza, para instaurar nida no momento mesmo de sua escolha: es-
um momento criativo, que brota no campo do tudar Idade Média é, em principio, um desa-
provável, abre-se ao novo imprevisível e se fio que poucos têm a disposição de assumir,
expõe à luz de variados olhares. principalmente na América Latina.
Essas características estão estreitamente Ao finalizarmos a nossa leitura/viagem pela
associadas ao terceiro ponto que analisamos Cocanha. A história de um país imaginário, te-
aqui: a escritura propriamente dita. Acompa- mos a sensação de ter assistido a uma aula-
nhando o percurso do enunciado, deparamo- mestra sobre metodologia da história e sobre
nos com uma rara combinação de simplicida- cultura medieval. Certamente, estamos dian-
de e de sofisticação, de minúcia e de concisão, te de uma obra que já nasce como um clássico,
imputando clareza a uma erudição que rejeita em virtude de suas importantes contribuições
o hermetismo, mas se curva aos enigmas da para a história cultural, as quais só podem ser
própria história. Assim, Franco Júnior não se devidamente aquilatadas no contato direto
limita às notas explicativas e bibliográficas no com o texto.
final do livro, endereçadas, provavelmente, ao

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RESENHAS

BLUMEMBERG, HANS. Naufrágio Hans Blumenberg, é de fundamental impor-


com espectador. Lisboa: Ed. Veja, tância compreendermos as relações que ela
1992. traça entre o que José A. Bragança de Miranda
(apresentador do livro) denomina de devir
Andrea Luciana Vieira, Cyntia Lacerda mundo da linguagem e devir linguagem do mun-
Bueno, Evandro Alves Bastos, Fabiana Melo do.
Neves, José Otávio Aguiar e Tereza Cristina O termo metáfora vem do grego metaphora
de Laurentys (alunas do curso de História e significa transporte, translação. Assim compre-
– PUC Minas) endida, a metáfora é a ponte que se constrói
entre a experiência concreta do ser humano e
as sensações dela advindas, de modo a tornar
HANS BLUMENBERG: REFLEXÕES possível “dizer o indizível” ou, quiçá, “desco-
SOBRE A METÁFORA DA NAVEGAÇÃO brir algo no que não se pode descobrir”.
Para expressarmos a imprecisão, recorre-
mos a uma fonte de imprecisão, em todo o con-

E screver uma resenha crítica sobre o livro


Naufrágio com espectador, do historiador
e filósofo alemão Hans Blumemberg, é uma
texto objetivo: a metáfora. Esta última intro-
duz um elemento heterogêneo. Corrigir essas
discordâncias parece ser a tarefa constante da
tarefa extremamente angustiante. Isso porque consciência, que se esforça por reunir os da-
antes de chegarmos a esse ponto, durante a dos como parte de uma experiência una. No
nossa jornada, tivemos que deixar o lugar de entanto, a metáfora é em si discordância, uma
meros espectadores para seguir a rota cons- quebra da unidade originalmente concordan-
truída pelo autor. A surpresa é que, para além te dos fenômenos. Como observa com propri-
de qualquer expectativa de alcançar um porto edade Blumenberg: “O elemento ao princípio
seguro após a travessia, ficamos felizes ao nau- destrutivo torna-se, sob a pressão da obriga-
fragar. Mas afinal, em que consiste naufragar? ção da consciência ameaçada, em metáfora”.
Primeiro, violamos inúmeras fronteiras. A Hans Blumemberg, utilizando-se da metá-
fronteira, assim como a navegação temerária, fora do “naufrágio com espectador” emprega-
é também uma metáfora recorrente na histó- da por diversos pensadores ao longo dos sé-
ria dos homens. O sentido etimológico de fron- culos, constrói um estudo filosófico-histórico-
teira pode ser buscado no latim. As palavras literário a respeito da existência humana, do
fines e limen expressam bem sua significação. fazer e do caminhar da história. Não obstante,
Elas não implicam somente uma mera delimi- uma advertência deve ser feita: Hans Blumem-
tação espacial mas estão imbuídas de um ca- berg não quer analisar as mudanças, mas o
ráter sacrílego. O homem sempre impôs um comportamento dos homens diante delas.
limen para além do qual se estende algo que Mas por que a opção pela metáfora do
ele não compreende, não alcança. Mas, para- “naufrágio com espectador”? Talvez porque ela
doxalmente, o homem não se contenta com o seja a expressão do problema da posição do
fines. Ele almeja o infinitus. Nesse sentido, ele homem perante o mundo da experiência. A
é impulsionado a ultrapassar as fronteiras de metáfora do naufrágio com espectador é a
sua própria existência mesmo consciente de metáfora da existência humana. Está imbuída
que é uma violação, que é um “tomar de assal- dos paradoxos que assustam o homem desde
to” a si mesmo. Nem a angústia do confronto tempos imemoriais: cosmo e caos, terra e mar,
com o desconhecido, com o que está “mais razão e paixão, prudência e arroubo, porto e
além” pode conter o homem que vislumbra nau, espectador e argonauta, avanço e recuo,
confrontar-se com sua totalidade. O castigo nascimento e morte. Todos esses paradoxos
lançado sobre o homem que viola o limes que articulam-se e rearticulam-se num jogo siste-
lhe foi legado é a impossibilidade de retornar mático entre ordem e movimento, tal qual
ileso. Alea jacta est. num caleidoscópio. Nesse brinquedo de cri-
Uma vez que é uma metáfora o elemento ança que parafraseia a imprecisão da vida, a
norteador da discussão trazida pelo livro de ordem é apenas o pressuposto do movimento

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RESENHAS

e vice-versa. Nesse sentido, o espectador é logo dade de Poséidon constitui uma verdadeira
o náufrago, e o náufrago logo pode vir a ser o multidão de monstros e gigantes, violentos e
espectador. É nesse eterno jogo entre o avan- malfazejos, o que ilustra bem o caos que rei-
çar e o recuar que o homem constrói o viver. nava no mar e fazia tremer os homens que
Mas o que está permeando náufrago e espec- ousavam invadir o território de Poséidon.
tador? A iconografia cristã também delega ao mar
O requisito fundamental para que haja um o local ideal para a manifestação do mal, atri-
náufrago não é nem tanto a nau, mas a repre- buindo-lhe o traço gnóstico de sinalizar a ma-
sentação do mar. O mar é um dos fines diante téria bruta que faz tudo retornar a ela própria
do qual o homem se depara. E o anseio de lan- e tudo devora. Nesse sentido, a fronteira en-
çar-se para além dele é uma transgressão que tre terra firme e o mar representaria a queda
quase se impõe como uma necessidade. O no pecado original, ou seja, um passo dado
homem é situado enquanto um ser de terra para o inconforme e o desmesurado. Daí a pro-
firme. A sua vida, seu quotidiano estão insti- messa de que no estado messiânico não have-
tuídos sobre terra firme, e o mar surge como o ria a necessidade do mar (ou do território do
limite do habitável. Aqui, onde a terra se acaba e mal), como propôs o apocalipse de João.
o mar começa (Camões). Mas se o mar é o limite do habitável, não é
A mitologia e a iconografia cristã alimenta- o limite do explorável. Já dissemos que o ho-
ram essa concepção de “mar tenebroso” du- mem almeja a sua totalidade. Nesse sentido,
rante milênios. Para os gregos, o mar é o terri- ele busca avidamente a interação entre o cos-
tório do terrível Poséidon. Zeus se torna o mos (representado pela terra) e o caos (repre-
maior deus do panteão grego, dominando o sentado pelo mar). O instrumento que viabili-
céu e os fenômenos atmosféricos após vencer za essa interação é a navegação temerária. O
seu pai Cronos com a ajuda dos irmãos Poséi- significado mesmo de temerário já nos lança a
don e Hades. Como reconhecimento à valo- ponte para a compreensão da inconformida-
rosa ajuda dos irmãos, Zeus divide com eles o de do homem diante dos limites entre o terre-
governo do mundo: deu os infernos a Hades no do habitável e o do desconhecido e temi-
e o mar a Poséidon. Embora Poséidon seja uma do. Num primeiro momento a navegação é
divindade marítima, consegue a honra de ser temerária por ser considerada arriscada, im-
incluído entre os doze grandes deuses do prudente, pois impera a concepção do mar
Olimpo. Poséidon governa seu império aquá- enquanto limite natural do espaço e empre-
tico com extrema autoridade. Seu palácio er- endimentos humanos e a sua demonização
guia-se no fundo do mar Egeu – “habitação enquanto esfera do incalculável, da desordem,
resplandecente e eterna”. Quando o deus saía, do incomensurável. Mas logo se esboça o sig-
vestido com sua armadura de ouro, pegava um nificado de temerário que acaba por lançar o
chicote brilhante, atrelava os cavalos que cor- homem ao mar: agora o homem se permite ser
riam como o vento, subia para o seu carro e arrojado, audacioso, atrevido.
lançava-se sobre as ondas. Os monstros mari- Sendo a navegação temerária, nesse con-
nhos o acompanhavam sopreando búzios. Mas texto, a metáfora simbolizadora da própria
Poséidon era também um deus caprichoso: existência, o homem enquanto argonauta tem
quando se enfurecia se tornava terrível e in- no naufrágio uma conseqüência legítima da
domável. A Odisséia conta que, para fazer navegação, naufrágio este entendido enquan-
perder Ulisses, o senhor dos mares adensou to mergulho em sua própria subjetividade. O
as nuvens sobre ele, levantou as ondas e de- homem que conquistou os ares, arroteou to-
sencadeou os ventos. Fez também surgir dos dos os continentes da terra, conheceu os ma-
abismos monstros terríveis, que simbolizavam res e ousou atravessar o limite atmosférico do
as vagas alterosas, as tempestades e os maca- planeta, conhece pouco ou nada a respeito de
réus devastadores. Da sua união com Anfrite seu próprio oceano interior, não raro acometi-
nasceu um filho, Tritão, semideus ciumento e do pelas tempestades causadas pela angústia.
predisposto à violência, que soprava um bú- Angústia esta entendida aqui no sentido ki-
zio para apavorar os marinheiros. A posteri- erkegaardiano (determinação que revela a

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RESENHAS

condição humana caso se manifeste psicolo- veres necessários para si e seus companheiros.
gicamente de maneira ambígüa e o desperte A figura geométrica aí se coloca enquanto si-
para a possibilidade de ser livre). nônimo da presença de seres humanos racio-
Nesse sentido, o naufrágio é o momento nais. É um momento até mesmo de reavalia-
no qual o homem experimenta uma redefini- ção dos valores, aquele momento do qual se
ção e/ou recomeço, por vezes conversão, em extrai a essência da vida. Nesse sentido, nos
seus objetivos existenciais básicos. Ora, todo revela Aristipo: “Só aquilo que as inclemênci-
naufrágio pressupõe o impulso primeiro de se as do destino, a revolução ou a guerra não
lançar ao mar: o naufrágio é, por assim dizer, podem prejudicar é importante para a vida”.
uma conseqüência legítima da navegação. O Também na Odisséia, Homero – para quem os
aspecto ilusório do porto alcançado com feli- olhos do corpo estavam fechados e os do espí-
cidade e a calmaria que impede o avançar do rito abertos às imagens inspiradas pelas mu-
barco são antíteses do sentido maior que a tem- sas – classifica como humanas as sociedades
pestade possui para o argonauta. Na verdade, que conhecem e se utilizam do pão e do vi-
o homem precisa do naufrágio porque preci- nho. Condição de humanidade ou não, toda a
sa de confrontar-se consigo mesmo: o momen- Europa, há milênios, tem nesses dois elemen-
to turbulento do naufrágio é, quiçá, o único tos a base de sua alimentação. A condição eu-
momento no qual o homem está sozinho con- rocêntrica da razão ocidental imposta ao mun-
sigo mesmo, está totalmente à mercê do seu do pelas grandes navegações e pela expansão
eu. Não pode se agarrar ao outro: só conta con- imperialista faz crer também que a razão, exal-
sigo mesmo. Não são muitos os que se aven- tada pelo homem do século XVII (e represen-
turam a enfrentar-se a si próprio. Há sempre a tada aqui pelas figuras geométricas na praia)
possibilidade do espanto. seja a característica por excelência da humani-
Mas há sempre aqueles que, ao se dispo- dade. A desilusão que, ao longo dos séculos
rem a levar a cabo essa árdua jornada, conse- seguintes levaria o homem a relativizar o mes-
guem dela extrair a essência do naufrágio. sianismo dessa razão e a compreender cada
Zenão de Chipre (340-264 a.C.) nos fornece a vez com maior profundidade sua condição de
chave para nos embrenharmos na metáfora do ser de emoções, leva à compreensão de que
naufrágio enquanto uma figura filosófica: ao navegar é preciso, viver não é preciso.
experimentar um naufrágio, teria compreen- A metáfora do naufrágio nos sugere aqui o
dido o sentido primeiro da vida que não se si- momento em que o homem se depara consi-
tuaria no acúmulo de posses maiores do que go mesmo, com o seu eu mais escondido (prin-
aquelas que poderiam ser transportadas por cipalmente dele mesmo). A consciência da pró-
um provável náufrago ao nadar. “Só como pria inconstância, indeterminação, inerente à
náufrago naveguei pelo mar com felicidade”. existência é o que torna a austeridade prega-
No entanto, o que interessa a Blumemberg da pelos estóicos uma necessidade e uma ati-
não são as vicissitudes porventura experimen- tude prudente e sábia a todo o que se propõe
tadas durante a viagem náutica, mas a atitude à navegação temerária. Poderíamos daí extra-
do argonauta diante delas, sua reação e o es- ir uma questão fundamental: mas afinal de
tado de sua alma após o que, por assim dizer, contas, o que resta ao náufrago?
metaforicamente, poderíamos designar como Montaigne nos diria que o despojo do ná-
o naufrágio. Caminhando por aqueles que, na ufrago é a posse de si mesmo. E a posse de si
esteira da história clássica grega, seriam alvo mesmo é o resultado da autodescoberta, da
de toda a detração por parte dos socráticos, auto-apropriação, do confronto consigo mes-
chegamos a Aristipo. Esse sofista, tendo sofri- mo de que falávamos há pouco. O naufrágio
do um naufrágio e aportado em uma praia na é, nesse sentido, o espaço/momento da desco-
qual se vislumbravam figuras geométricas na berta/encontro com a essência do próprio ná-
areia, sente suscitar-lhe, como inspiração, a ufrago. Montaigne é categórico sobre o senti-
brilhante idéia de dirigir-se ao ginásio da ci- do atribuído ao naufrágio: “O interior é ina-
dade e, através de seus apurados conhecimen- tingível do exterior”.
tos, conquistar em disputas filosóficas os ví- Mas Montaigne também se dá conta de que

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a navegação temerária e o próprio naufrágio objeto inerte como se poderia crer até certo
(conseqüência legítima) impõe ao homem um momento do texto; ele faz parte de seu tem-
“desfazer-se” de suas ilusões sobre si mesmo. po, está historicamente situado. Daí a relevân-
Uma dessas desilusões é sobre a própria exis- cia de Epicuro ser grego, e Lucrécio, romano,
tência do homem. Desde sempre, o homem e de dois séculos os separarem. O filósofo faz
recusa-se a aceitar que a morte é o seu fim der- parte de sua filosofia; esta filosofia, por sua vez,
radeiro: considerar-nos demasiados importan- é um reflexo das indagações de seu tempo, das
tes para aceitar que as coisas continuam sem quais está imbuído e não pode se apartar to-
nós e que não sofrem com a nossa ausência. talmente. Tão puro e imparcial e alheio aos
Mas a recíproca também é verdadeira: o mun- fatos, não pode ser o espectador do mundo, a
do da terra firme também nos escapa à medi- não ser que transcendesse a condição huma-
da que nos afastamos dela; faltaríamos às coi- na e alcançasse a imunidade de um deus.
sas à medida que elas nos escapam. Mas não Mas há momentos em que o homem deve
seria esse “escapar-se” o pressuposto para atin- assumir a posição de espectador. É o caso de
girmos a nós mesmos? A distância é, por ve- Goethe, que assume a função de espectador
zes, necessária para um confronto mais since- para depois escrever sobre sua experiência. É
ro consigo mesmo. Quando tudo e todos nos a arte de sobreviver num momento-limite.
escapam só nos resta a nós mesmos. Podere- Goethe, ao escrever, também se indigna e, ao
mos escapar de nós mesmos? indignar-se, também naufraga.
Há os que pensam que sim. O espectador O processo metafórico e o processo real de
é, talvez, um dos mais legítimos representan- transposição do limite da terra firme para o
tes desse grupo. Mas o viajante que reluta dei- mar ofuscam-se um ao outro, exatamente
xar o porto também o é. O próprio Montaigne como o risco metafórico e o risco real do nau-
justifica essa posição: “E eu hei de utilizar tan- frágio. Num dos pensamentos elementares do
tas amarras quanto o meu dever o permita iluminismo, percebe-se claramente expressa a
para me manter à tona da água”. É o homem idéia de que os naufrágios são o preço a pagar
que adia o momento doloroso de encontrar- para que uma calmaria total dos mares não
se consigo mesmo. Mas, se Montaigne admite torne o tráfego mundial impossível para os
o direito do homem de ser espectador, de es- homens. Aí estaria a justificação das paixões.
tar à margem firme, fora do perigo, Nietzsche A razão, entendida como a calmaria do mar,
nega a possibilidade de abstenção. Para ele, seria então a imobilidade do homem em pos-
além do fato de sempre estarmos já embarca- se total de sua prudência. Justamente o ocea-
dos e embrenhados no mar, somos também (e no agitado da alma incendiada de paixões
inevitavelmente) náufragos. É o perder-se a si constrói e destrói tudo; destrói o antigo para
mesmo de Nietzsche contrapondo-se ao depa- construir o novo, torna possível, simultânea e
rar-se consigo mesmo de Montaigne. Mas, an- dialeticamente, a navegação do barco da his-
gustiante dúvida: não seria o perder-se a si mes- tória dos homens. Se a razão dominasse o
mo o tênue limite que separa o momento de mundo, a rigor, nada aconteceria nele. O pa-
deparar-se consigo mesmo? Ou seria o contrário? radoxo entre a razão e a paixão constitui, nes-
Mas o náufrago chega, por fim, a terra fir- se sentido, uma das angústias do homem.
me. E surpreende-se: ela não oscila. Numa Mas é preciso ater-se ao fato de que a sabe-
constatação sutil, Blumenberg nos diz que a doria consiste em aliar razão e paixão. Lem-
terra firme não é a posição do espectador, mas bramo-nos aqui, mais uma vez, de Camões:
a do náufrago salvo. E o que resta ao náufrago se é verdade que não controlamos o vento e
é o desejo de voltar ao mar porque a posse de as tempestades (o curso da vida), não pode-
si mesmo é tão imprecisa quanto a vida. Só o mos desconsiderar o fato de que temos total
navegar é preciso. controle sobre o barco (o navegar). A arte de
Mas o espectador é um espectro que ronda sobreviver não seria, portanto, o equilíbrio
o náufrago. O espectador não goza da subli- entre razão e paixão? Talvez, posto que nem o
midade de um deus que se coloca acima de equilíbrio é algo constante.
tudo e de todos, nem da neutralidade de um Os navegantes temem a calmaria e só de-

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RESENHAS

sejam ventos, mesmo se expondo ao possível sadamente construíram o “navio confortável”


e provável perigo de uma tempestade. Os ven- em que hoje muitas vezes nos acomodamos
tos, no caso do homem, seriam os movimen- sem coragem de saltar ao mar e recomeçar todo
tos do ânimo, fonte de todas as paixões em- o processo, a partir mesmo dos destroços de
preendedoras e destruidoras. Talvez esses naufrágios anteriores. O barco atual, que a ri-
mesmos movimentos da alma “angustiada” de gor não é muito mais do que uma prancha (e
gênios artísticos como Michelangelo tenham decepcionados descobrimos, não raro, sua fra-
sido responsáveis por sua produção artística gilidade) é o resultado histórico, simultâneo e
em que vislumbramos profunda sublimidade dialético de sucessivas remodelações e recons-
associada à inquietação e à tempestade interi- truções que, somadas, nos permitiram o míni-
or. Também em Voltaire as paixões são a ener- mo de segurança de que hoje dispomos. Mas
gia que move o mundo dos homens. Assumin- a natureza mesma da alma humana não pro-
do a função de “faca de dois gumes”, a paixão cura porto seguro, já que este se apresenta
é o vento que impulsiona a vela mas também como inexistência na realidade acessível: o
pode desviar a nau. É a bílis que digere os ali- porto seguro ou a segurança almejada estão,
mentos mas torna também o homem colérico. na verdade, não fora do universo interno do
A ciência enquanto metodologia que per- homem, mas escondidos nas profundezas do
mite um saber sistematizado fundamentado oceano do seu ser. Singrar esse oceano, captá-
na experimentação decepcionou-nos até cer- lo em sua essência, é algo obtido no próprio
to ponto, não realizou em sua plenitude as ato da navegação temerária, uma vez que tam-
esperanças, desejos e aspirações que nela de- bém nesses domínios o caminho se faz ao ca-
positávamos. No entanto, não conseguimos minhar e a realização está no pleno devir da
ainda sobrepujá-la significativamente em suas realidade humana a que Hegel denominava
realizações que, embora não satisfaçam total- em sua projeção exterior: “objetivação do es-
mente a infinita aspiração humana, são sufici- pírito”. A “objetivação do espírito” se dá no
entes para atender às exigências de conserva- processo dialético da história dos homens,
ção da vida. durante seu processo de humanizar a nature-
Como tábua de salvação, como prancha za, iniciado a partir do próprio surgimento da
que se apresenta àquele que está prestes a afo- espécie na terra. O mundo humanizado de
gar-se, a ciência pode salvar vidas e não se re- hoje é reflexo dos milênios de construções an-
sume a uma simples palha, que abandona to- teriores.
talmente ao desamparo a quem nela se apóia, O novo surge a partir dos destroços do ve-
por sua fragilidade irremediável, como que- lho em confronto com a necessidade premen-
rem alguns. Contudo, não temos ainda um te de sobrevivência ou com a ambição pura e
barco de salvação, nem avistamos, ao que nos simples de uma “navegação temerária”, geran-
parece, a possibilidade de obtê-lo. Se a impre- do como síntese um produto ao mesmo tem-
cisão é reduzida num determinado lugar, ela po híbrido e inédito, calcado em alicerces que
pode aparecer novamente e com mais força em também flutuam sobre as águas que a tudo
outro, havendo, por assim dizer, um entrela- renovam. Nesse sentido, construímos o novo
çamento entre o que está previamente dado e barco a partir dos destroços.
a ausência de qualquer pressuposto. Se não há
terra firme como horizonte a ser atingido, nos- Referências bibliográficas
so barco deve ter sido construído já em alto- BLUMENBERG, Hans. Naufrágio com espectador.
mar por aqueles que nos precederam, a partir Lisboa: Ed. Veja, 1992.
dos destroços de embarcações preexistentes, DUBY, Georges (Org.). A civilização latina. Lisboa:
já superadas e destruídas pelas vagas enfure- Publicações Dom Quixote, 1989.
cidas. LEÓN-PORTILLA, Miguel. Hernán Cortés y la Mar
Nadando, porque então sabiam nadar e se del Sur. Madrid: Ediciones Cultura Hispanica/
safar entre as ondas, nossos antepassados ou- Instituto de Cooperación Iberoamericana, 1985.

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RESENHAS

Outras publicações da Editora PUC Minas

ARQUITETURA – CADERNOS DE ARQUITETURA E URBANISMO – Departamento de Arquitetura e Urbanismo


BIOS – Departamento de Ciências Biológicas
CADERNO DE CONTABILIDADE – Departamento de Ciências Contábeis
CADERNO DE ENTREVISTAS – Departamento de Comunicação Social
CADERNO DE ESTUDOS JURÍDICOS – Faculdade Mineira de Direito
CADERNO DE REPORTAGENS MALDITAS – Departamento de Comunicação Social
CADERNOS DE ADMINISTRAÇÃO – Departamento de Administração
CADERNOS DE BIOÉTICA – Núcleo de Estudos de Bioética
CADERNOS CESPUC DE PESQUISA – Centro de Estudos Luso-afro-brasileiros da PUC Minas
CADERNOS DE CIÊNCIAS SOCIAIS – Departamento de Sociologia
CADERNOS DE ECONOMIA – Departamento de Economia
CADERNOS DE ENGENHARIA – IPUC – Instituto Politécnico da PUC Minas
CADERNOS DE GEOGRAFIA – Departamento de Geografia
CADERNOS DE LETRAS – Departamento de Letras
CADERNOS DE SERVIÇO SOCIAL – Departamento de Serviço Social
EDUCAÇÃO – CADERNOS DO DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – Departamento de Educação
ENFERMAGEM REVISTA: CADERNOS DE ENFERMAGEM – Departamento de Enfermagem
EXTENSÃO: Cadernos da Pró-reitoria de Extensão da PUC Minas
HORIZONTE – Revista do Núcleo de Estudos em Teologia da PUC Minas
ORDEM E DESORDEM: CADERNO DE COMUNICAÇÃO – Departamento de Comunicação Social
SCRIPTA – Revista do Programa de Pós-graduação em Letras e do CESPUC
SPIN – ENSINO E PESQUISA – Departamento de Física e Química
VERTENTE – Revista da PUC Minas Contagem

Composição Eletrônica:
EMS editoração eletrônica
magalhaes.salles@hotmail.com • Tel.: (31) 3041.1113

Impressão:
FUMARC
Fundação Mariana Resende Costa
Av. Francisco Sales, 540 • Floresta
Fone: (31) 3249.7400 • Fax: (31) 3249.7413
30150-220 • Belo Horizonte • Minas Gerais

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RESENHAS

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