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FRANCO JÚNIOR, Hilário. Cocanha A História de Um País Imaginário PDF
FRANCO JÚNIOR, Hilário. Cocanha A História de Um País Imaginário PDF
Grão-Chanceler
Dom Serafim Fernandes de Araújo
Reitor
Prof. Pe. Geraldo Magela Teixeira
Pró-reitores
Execução Administrativa – Ângela Maria Marques Cupertino; Extensão – Bonifácio José
Teixeira; Graduação – Miguel Alonso de Gouvêa Valle; Pesquisa e de Pós-graduação – Léa
Guimarães Souki; PUC Minas Arcos – Ângela França Versiani; PUC Minas Betim – Carmen
Luiza Rabelo Xavier; PUC Minas Contagem – Geraldo Márcio Guimarães; PUC Minas Poços de
Caldas – Geraldo Rômulo Vilela Filho e Maria do Socorro Araújo Medeiros; PUC Minas São
Gabriel – José Márcio de Castro; Diretor do Instituto de Ciências Humanas: Audemaro
Taranto Goulart; Chefe do Departamento de História: Maria Mascarenhas de Andrade;
Colegiado de Coordenação Didática: Lucília de Almeida Neves, Maria Alice Moreira
Lima, Maria Mascarenhas de Andrade (Coordenadora) e Rui Edmar Ribas;
Conselho Editorial: Carlos Fico (UFOP), Eliana Fonseca Stefani (PUC Minas),
Liana Maria Reis (PUC Minas), Lucília de Almeida Neves (PUC Minas),
Maria do Carmo Lana Figueiredo (PUC Minas), Maria Efigênia Lage de
Rezende (UFMG); Coordenação Editorial: Alysson Parreiras Gomes,
Cláudia Teles; Coordenação Gráfica: Pró-reitoria de Extensão – PROEx;
Revisão: Dila Bragança; Estagiário: Juniele Rabelo de Almeida
Tiragem
1.000 exemplares
v.
Anual
CDU: 98 (05)
SUMÁRIO
RESENHAS
FRANCO JÚNIOR, Hilário. Cocanha: a história
de um país imaginário
Heloisa Guaracy Machado......................................................................................... 43
RESUMO
O presente artigo aborda os conceitos de história e utopia mediante
análise do Manifesto comunista de Marx e Engels. Ele acentua o rele-
vante papel de um dos mais famosos programas políticos do século
XIX e procura interpretar seu significado nos dias atuais, ao final do
século XX.
Palavras-chave: Utopia; Inclusão social; Igualdade.
O
Manifesto do Partido Comunis- ronda a Europa”. “Segue depois um vôo
ta, certamente o mais conheci- de águia sobre a história das lutas sociais
do texto de Marx e Engels, in- desde a Roma antiga até o nascimento e
fluenciou de forma definitiva as lutas so- desenvolvimento da burguesia, e as pági-
ciais e políticas dos séculos XIX e XX. Além nas dedicadas às conquistas desta nova
disso, através da utilização sensível de me- classe revolucionária constituem o seu
táforas, constitui o texto tradutor de um poema fundador”. (Eco, 1998, p. 32)
utópico, generoso e ousado projeto de Poema fundador de uma utopia trans-
emancipação da humanidade: o igualita- formadora, que projetou o nascimento de
rismo. novos sujeitos históricos (os assalariados),
Para Umberto Eco, o Manifesto “é um que identificou o caráter modernizador e
texto formidável que sabe alternar tons revolucionário do capitalismo, que assina-
apocalípticos e ironia, slogans eficazes e lou a emergência de uma economia inter-
explicações claras”. O texto, de estilo pu- nacionalizada e que previu uma trajetó-
blicitário extremamente atual, de acordo ria de crises e de exclusão social para o
com o referido autor, “começa com um for- próprio capitalismo.
midável toque de tímpano, como a Quin- Para Hobsbawm é um texto arrebata-
ta Sinfonia de Beethoven”: “Um espectro dor, marcado por forte convicção apaixo-
*
Professora Titular – PUC Minas.
Naquele ano de 1848, quando Marx e cuja sede localizava-se em Londres. É evi-
Engels concluíram a tarefa e publicaram dente que sua influência direta sobre os
seu manifesto, a Europa vivia uma onda acontecimentos de 1848 foi praticamente
de revoluções – movimento identificado inexistente, sobretudo porque a tradução
como a Primavera dos Povos. A conjun- do texto para outras línguas atrasou-se
tura efervescente colocava em lados opos- consideravelmente. A versão em inglês
tos burguesia e proletariado. Como toda data de 1850; em russo, de 1859; e em fran-
primavera é efêmera, a conjuntura tam- cês somente foi publicada em 1872.
bém caracterizou-se por uma inegável ra- Mas se o Manifesto não chegou a ter
pidez do processo histórico. Nos anos que influência determinante nos aconteci-
se seguiram à onda revolucionária de mentos de 1848, sua relação com eles é
1848, o capital encontrou seu grande pe- real. Cabe, quanto a esse aspecto, desta-
ríodo de expansão através do imperialis- car que a onda revolucionária que varreu
mo; todavia, os comunistas, já mais bem a Europa naquele ano constitui, junta-
organizados, fundaram a Primeira Inter- mente com o Manifesto – primeiro libelo
nacional. Isso porque a primavera de 1848, do marxismo, o substrato da marca de um
apesar de efêmera, havia frutificado. tempo: o signo de uma fase da história na
De fato, 1848 nasceu sob o signo das qual se projetou e se buscou a tomada de
insurreições. Em fevereiro, na França, um poder pela classe operária, mesmo em paí-
levante operário derrubava a monarquia ses como a Itália e a Alemanha, nos quais
de Luís Felipe e proclamava a república, sua existência ainda era precária.
constituindo um governo no qual os so- “Certos períodos são marcados pela
cialistas estavam presentes. O que ocor- ruptura, pela eclosão irrefreável do novo”
reu na França pode ser identificado como (Paula apud Reis, p. 141). São épocas da
paradigma de todas as revoluções de 1848 história nas quais a transformação predo-
na Europa. Em diversos lugares a burgue- mina em detrimento da continuidade. São
sia parecia colocar-se em posição de recuo, tempos de se olhar para o futuro em de-
temendo a radicalização dos socialistas. trimento da visão retrospectiva. Foi assim
Com certeza, a perspectiva revolucio-ná- com o advento da Idade Moderna, que
ria anunciava-se como uma ameaça pa-ra trouxe o Humanismo Renascentista, a
a classe industrial. Marx e Engels, ao afir- Revolução Comercial, o descortinar de um
marem no Manifesto comunista que o es- novo mundo e a Reforma Protestante. Foi
pectro do comunismo rondava a Europa, assim com o advento do Liberalismo, que
tornaram real, aos olhos da burguesia, essa propugnou o rompimento com um Esta-
ameaça. do monárquico, centralizado e interven-
Os acontecimentos da França irradia- cionista. Foi assim com o século XVIII, que
ram-se para o conjunto de países euro- protagonizou a independência dos EUA
peus. Nesse contexto de turbulência, paí- e a Revolução Francesa. Essas duas expe-
ses como a Itália, a Alemanha, a Polônia, a riências concretas, já mais próximas do afã
Áustria e a Bélgica foram, cada um a seu socialista do séc. XIX, fariam da liberdade
modo, sacudidos por insurreições revo- política e da questão social temas centrais
lucionárias. em sua época.
O Manifesto foi publicado no mês de Cada época revolucionária tem sua re-
fevereiro, em alemão, por uma editora presentação traduzida por imagens
Referências bibliográficas
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KONDER, Leandro. Marx, Engels e a utopia. In: REIS, Daniel (Org.). Manifesto Comunista: 150
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RESUMO
A intenção deste artigo é refletir sobre como a Igreja esteve presente
na formação de uma moral cristã, em que o casamento e a confissão
foram utilizados como mecanismos de controle, atuando sobre o ima-
ginário social, numa sociedade em construção.
Palavras-chave: Casamento; Sexualidade; Confissão.
N
o início da Idade Moderna, a Eu- isso, tornou-se necessário adaptar a men-
ropa passava por uma grande talidade do homem “moderno” à nova
crise em todos os sentidos. Foi realidade.
uma época de quebras e reformas, e os va- A abertura do comércio, a urbanização,
lores morais e religiosos necessitavam de o aparecimento de uma nova classe social
reformas urgentes. Vindas de uma civili- – urbana e comerciante – o surgimento
zação em descaracterização, podiam-se dos “Estados Nacionais”, a centralização
detectar crises econômicas, políticas, so- do poder começaram a despertar novos
ciais e culturais em decorrência da deses- valores e a urgência de mudar outros.
truturação do sistema feudal. Há algum tempo vinha-se questionan-
No plano político, o coordenador des- do o papel da Igreja frente aos fiéis. Estes
sas forças em crise foi o “Estado Absolu- últimos, muito afastados dos dogmas da
to”, o grande empreendedor das viagens instituição, viviam sua religiosidade de
marítimas e das novas descobertas além- forma comunitária e folclorizada.
mar. O mundo rural fechado foi ficando Durante o século XIII, a Igreja Católi-
para trás, os horizontes se alargaram; com ca, atenta ao afastamento dos fiéis, pro-
* Pesquisadora do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Mestre em História pela FAFICH/
UFMG.
1 “O direito de padroado dos reis de Portugal só pode ser entendido dentro de todo o contexto da história
medieval. Na realidade, não se trata de uma usurpação dos monarcas portugueses de atribuições reli-
giosas da igreja, mas de uma forma típica de compromisso entre a Igreja de Roma e o governo de Portu-
gal”. (Hoornaert apud Boschi, 1986, p. 42)
vés do Edito de Fé para que todos os mo- dos pelo pânico do delator e do inquisi-
radores denunciassem os que atentavam dor. De tal forma estava inserido no ima-
contra a moral e a fé. Aqueles que quises- ginário o que era o sexo lícito que qual-
sem confessar poderiam fazê-lo ainda no quer ultrapassagem ao permitido fazia-
período denominado de ‘tempo da gra- lhes sentir pecadores e prestes à confis-
ça’ e seriam absolvidos dos seus pecados. são e à tortura. Além disso, como era no
O que podemos perceber aí é a figura do casamento que o sexo lícito era permiti-
de-lator inserida no cotidiano social. do, os confessores estavam sempre aten-
A convocação do visitador era feita tos ao que se passava nele. Tentavam con-
através do Monitório Geral e, exceto os cri- trolar os atos e pensamentos dos casais pa-
mes contra a fé e a bigamia, os outros pe- ra que não excedessem ao permitido, uti-
cados eram colocados de maneira globa- lizando-se do instrumento da confissão.
lizante, possibilitando uma margem enor- O casamento foi tão bem incutido nas
me de delações. Portanto, cada indivíduo mentalidades que, como vimos acima, ex-
passou a ser uma ameaça ao outro, aliás cetuando-se os crimes de fé, todos os ou-
muito bem retratada no poema de Gre- tros confessados ou delatados eram peca-
gório de Matos: dos sexuais, se sexo lícito, que não visa-
vam à procriação.
(...) Em cada porta um freqüentado olheiro, No entanto, aparece também, entre os
Que a vida do vizinho, e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha crimes confessados, a discussão entre o es-
Para levar à Praça e ao Terreiro. tado de casado e de celibatário. Alguns in-
(Matos apud Vainfas, 1986, p. 41) divíduos se viram à frente do visitador por
afirmarem ser o estado dos casados a or-
Os principais crimes delatados são os dem que mais agradava a Deus.
considerados nefandos: sodomia, biga- É importante salientar que essa discus-
mia, defesa da fornicação, sacrilégios liga- são incluía-se num contexto mais amplo.
dos a relações sexuais, adultério e concu- Quando ocorreu a Reforma protestante,
binato, solicitação e os de negação da cas- um dos dogmas da Igreja Católica – o celi-
tidade como estado ideal. Isso nos leva a bato clerical – foi abolido pelos dissiden-
concluir o quanto estavam introjetados na tes que acreditavam ser um fingimento
mentalidade cotidiana os princípios tri- impor o celibato aos religiosos. Como rea-
dentinos de que o ato sexual só era lícito ção, Trento não só reafirmou o celibato cle-
no sentido da procriação e permitido so- rical como também o colocou acima do es-
mente no casamento. tado conjugal. Para a Contra-Reforma, o
celibato e a virgindade eram mais aben-
A sexualidade se confundia com o casamento,
legitimando-se nele; o objetivo máximo de um e çoados por Deus que o casamento. Logo,
de outro era a procriação: como conseqüência afirmar que o casamento era melhor que
natural, amor e fertilidade acabavam se identi- o estado de religioso tornava-se um cri-
ficando na mentalidade popular. (Mello e Sou- me, pois ia contra as normas tridentinas,
za, 1986, p. 13)
portanto, uma heresia.
Tal era o medo dos casais em relação Durante o período colonial o mau com-
ao Santo Ofício que era impossível se sen- portamento de muitos padres deu mar-
tirem a sós no leito conjugal. Alguns pra- gem para que se questionassem suas ati-
zeres e caprichos eram sempre persegui- tudes pecaminosas e até discutir o celiba-
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OS ESPELHOS DE PRÍNCIPES: UM
VELHO GÊNERO PARA UMA
NOVA HISTÓRIA DAS IDÉIAS
Marcos Antônio Lopes*
RESUMO
Este artigo tem como objetivo analisar o Estado monárquico da Época
Moderna a partir do reconhecimento do ideal ético da realeza edifica-
do durante os séculos XVII e XVIII, e tomando como referência a evo-
lução da historiografia política no presente século.
Palavras-chave: Absolutismo; Ética; História política.
Se a história fosse inútil aos outros homens, se- História a mesma atração que fascinará
ria preciso lê-la aos príncipes. Não há melhor Voltaire e a maior parte dos escritores po-
meio de lhes ensinar o que podem as paixões e
os interesses, os tempos e as conjunturas, os bons líticos das Luzes. Para Lawrence Stone, is-
e os maus conselhos. (Bossuet, 1967) so se deve ao fato de que o Estado monár-
quico “(...) constitui talvez o que a civili-
zação ocidental trouxe ao mundo de mais
O
Estado monárquico da Época notável, se não de mais admirável, no cur-
Moderna apresenta-se como so dos cinco últimos séculos”. (Stone, 1974,
um dos temas clássicos da his- p. 63)
toriografia européia. De maneira sistemá- Durante boa parte do século XX, ape-
tica, o século XIX concedeu espaço privi- sar das constantes exortações metodoló-
legiado aos estudiosos do Estado moder- gicas de um historiador influente como
no. Sem incorrer em exagero, Pierre Chau- Lucien Febvre e do exemplo concreto das
nu define a historiografia européia do sé- novas pesquisas pouco a pouco inaugu-
culo passado como uma “história do Es- radas e consolidadas na França, a Histó-
tado no século dos nacionalismos”. (Chau- ria Política, com ênfase sobre os aspectos
nu, 1976, p. 65) jurídicos e institucionais das monarquias
O Estado moderno, com sua grande ca- modernas, persistiu como horizonte pri-
pacidade de organizar homens e reunir vilegiado de pesquisa. Como frisa Emma-
recursos, continua exercendo no Século da nuel Le Roy Ladurie, foi somente quan-
do, nos anos 40 e 50, o grupo dos Annales dos reis, não fez descendência entre os
firmou-se como establishment historiográ- especialistas franceses.
fico que se assistiu a um eclipse da velha Nos Estados Unidos, nas décadas de
História Política, transformada então nu- 40 e 50, um historiador europeu pratica-
ma “parente pobre” das novas tendênci- mente inaugurou um novo campo de pos-
as (Le Roy Ladurie, 1985). Jacques Julliard, sibilidades para a História Política. Reela-
num artigo que reflete os movimentos da borando o conceito de “Teologia Política”,
historiografia francesa dos anos 70, lem- anteriormente trabalhado por historiado-
bra que res alemães do direito, Ernst Kantorowi-
cz (1985) definiu e ajudou a fixar um novo
A História Política tem má reputação entre os questionário para o estudo da ritualidade
historiadores franceses. Condenada, faz quarenta
anos, pelos melhores entre eles, um Marc Blo- na esfera do poder real na Baixa Idade Mé-
ch, um Lucien Febvre, vítima de sua solidarie- dia e início dos Tempos Modernos.
dade de fato com as formas as mais tradicionais Ao contrário do ocorrido com Os reis
da historiografia do começo do século, ela con- taumaturgos, a obra de Ernst Kantorowi-
serva hoje um perfume Langlois-Seignobos que
cz conheceu um enorme sucesso, acaban-
desvia dela os mais dotados, todos os inovado-
res entre os jovens historiadores franceses. O do por fazer eco surpreendente entre es-
que, naturalmente, não contribui para melho- pecialistas de muitos centros de pesquisa
rar as coisas... Tudo tomado em consideração, a norte-americanos. A partir das pesquisas
História Política pereceu, vítima de suas más de Ernst Kantorowicz, desenvolvidas nos
amizades. (Juliard, apud Le Goff & Nora,
1988, p. 180-181)
Estados Unidos nas décadas de 40 e 50,
surgiu um grupo de historiadores espe-
Por uns trinta anos ou talvez um pou- cialistas em História da França, o que se
co mais, a História Política viveu em com- denomina hoje de “escola cerimonialista
pleta desventura entre os historiadores da norte-americana”, responsável por uma
Idade Moderna francesa ligados aos An- notável renovação dos estudos sobre o Es-
nales. Robert Mandrou, especialista em tado monárquico francês.
História da França do século XVIII, talvez A partir das décadas de 60 e 70, por in-
seja o único nome de expressão a ter de- fluxo de Ernst Kantorowicz e seus herdei-
dicado parte de sua atenção à História das ros intelectuais norte-americanos, como
estruturas políticas do Antigo Regime nos Ralph Giesey, Laurence M. Bryant e Sa-
anos 60 e 70, fase em que ela gozara de rah Hanley Madden, a História Política da
maior desprestígio. (Mandrou, 1973 e Época Moderna conheceu um sensível im-
1978) pulso. Como reconhece um especialista
O livro de Marc Bloch, apesar do inte- francês, Alain Boureau (1991), é a “escola
resse despertado e até de uma certa estu- americanista” que detém as análises mais
pefação provocada à época de seu lança- amplas e completas sobre a linguagem ri-
mento, não inspirou estudos que seguis- tual do Estado Monárquico francês, de-
sem na mesma trilha (Bloch, 1924). A His- senvolvida entre os séculos XVI e XVII.
tória Política fundada em práticas cerimo- Isso porque entre os cerimonialistas nor-
niais, como o toque mágico da realeza no te-americanos não se observa uma linha
Ancien Régime e em outras dimensões sim- de demarcação rígida entre História Me-
bólicas do território político, como a cren- dieval e História Moderna, mas uma preo-
ça generalizada no caráter sobrenatural cupação em distinguir e destacar um pe-
ríodo contínuo no qual as nuanças sim- eventos, que traduza a permanência do sentido
bólicas das cerimônias monárquicas foram de um ato indefinido e mutante; a pesquisa dos
valores simbólicos do mesmo cerimonial recla-
sistematicamente desenvolvidas na corte ma, por seu lado, um domínio do factual. (Gie-
de França. sey, 1986, p. 580)
O fechamento cerrado à História Polí-
tica tradicional, à moda do século passa- Domínio do factual não certamente al-
do e primeiras décadas do século XX, com cançado pela exploração sistemática da ve-
seus estudos de natureza predominante- lha História Política, ainda que esta tam-
mente jurídica e institucional, é um fato bém seja útil, mas sobre os textos de épo-
inquestionável na historiografia francesa, ca deixados em profusão pelos mestres de
mesmo muito tempo após os artigos de cerimônias da monarquia francesa. A no-
Henri Beer e François Simiand, publica- va História Política, fundada no simbolis-
dos na Revue de Synthèse Historique na mo dos cerimoniais monárquicos, vem
entrada do século. ampliando com êxito o conceito de Esta-
Intelectual “combatente” por uma His- do moderno do Antigo Regime.
tória distanciada do esquema “historici- No Grand Siècle o político continua a
zante”, pista seguida por Febvre a partir se manter sob um modelo religioso, mas
dos anos 30, Henri Beer fundou a Revue as novas circunstâncias históricas fizeram
de Synthèse, através da qual semeou dú- inverter e até apagar completamente cer-
vidas e questões novas. O artigo clássico tos valores dos velhos espelhos de prínci-
de François Simiand, “Méthode historique pes. Desde a Antigüidade Clássica se co-
et science social”, de 1903, segundo Jac- nhece no Ocidente uma literatura volta-
ques Revel, foi o texto desestabilizante da para a formação moral dos homens de
“contra as regras da história positivista Estado. Na Idade Média os espelhos de
(pela qual) Simiand denunciava os ídolos príncipes mantêm essa tradição. Produ-
da tribo dos historiadores: ídolo político, zidos por clérigos, dedicam-se a realçar as
ídolo individual, ídolo cronológico”. (Re- virtudes cristãs para a boa condução do
vel apud Le Goff et al, 1990, p. 567) governo por parte de príncipes, reis e im-
Trinta anos mais tarde, Lucien Febvre peradores. De acordo com François Blu-
e seus seguidores criticaram de forma con- che,
tundente a História Política de efemérides
predominante em seu tempo. Como se re- A Idade Média adorava compor estes manuais
éticos e políticos, logo denominados Songe ou
feriu Jacques Le Goff, há uns quinze anos,
Miroir du prince. Detalham-se aí as virtudes,
“a volta mais importante é a da História mas também os deveres do príncipe ideal. (...)
Política” (Le Goff, 1990, p. 8). Entretanto, No século XVII este gênero não existe verda-
Ralph Giesey frisa que não se pode cons- deiramente. (...) Mas as Histórias da França,
truir uma história do simbólico, na esfera eruditas ou populares, desenham a “imagem do
rei”, de Pharamond o chefe místico a Luís XIII o
do poder real na Europa de fins da Idade Justo, mostrando implicitamente também o que
Média e início da Época Moderna, sem o se espera de Luís XIV, aquilo que se admira nele.
sólido apoio de uma História factual: (Bluche, 1986, p. 261)
uma informação detalhada sobre as diversas for- É exatamente o que fazem certos auto-
mas de celebrações sucessivas de um mesmo ce-
rimonial nas monarquias ocidentais necessita res, e podemos perceber na literatura po-
praticamente da redação de uma história dos lítica do século XVII um Luís XIV por ele
mesmo, ou seja, o que o Grande Rei acha De todo modo, os espelhos de prínci-
que se deve esperar da realeza. Certamen- pes modernos, apesar de incorporarem
te que não no espírito da Idade Média, o elementos novos, mantiveram-se como
que seria um perfeito anacronismo. Des- uma espécie de catecismo real, trazendo
sa forma, não foram somente as obras de as normas para administrar o Estado, se-
História que se ocupam do ideal ético da gundo as virtudes cristãs. Tais textos mo-
realeza, mas quase todos os textos de na- delam a imagem tradicional do príncipe,
tureza política, e até mesmo em obras não esboçada desde a Baixa Idade Média e em-
explicitamente dessa natureza, como um belezada pelas gerações posteriores, cons-
sem número de Memórias entre as quais tituindo uma espécie de catálogo das vir-
se destacam os escritos de Madame de tudes convenientes a uma autoridade cris-
Sévigné. Assim sendo, não se cometeria tã, comumente usado como obra pedagó-
grande ousadia em afirmar que a figura gica para a edificação da realeza. O prín-
do príncipe cristão absorve a literatura do cipe cristão na França Moderna, para al-
Ancien Régime. guns autores, aproxima-se mais da perfei-
A Época Moderna, à sua maneira, deu ção por assumir posturas cada vez mais
seqüência a esse tipo de literatura políti- políticas; para outros, por observar valo-
ca. No século XVII, muitos escritores polí- res morais em sua conduta. Na Idade Mé-
ticos, defensores do absolutismo, ocupa- dia francesa, a idéia do príncipe perfeito
ram-se em traçar normas para guiar os go- esteve intimamente ligada à piedade e à
vernantes pela via da prudência, justiça, contrição.
caridade e sabedoria, entre tantas outras Mas foi a partir de meados do século
virtudes de um extenso catálogo. Mas o XVII que se assistiu ao máximo desenvol-
fizeram por meio de exortações bem me- vimento do Estado absolutista na França;
nos diretas e doutrinárias, pelo emprego em seguida, e talvez por aderência a esse
de um método discursivo claramente mais dado, por se referir ao século XVII fran-
teórico e abstrato, até porque a realeza no cês como um período de intensa propa-
século XVII tende a sobrepor-se a todos, ganda monárquica, pela proliferação de
numa espécie de isolamento simbólico cu- um autêntico “dilúvio de literatura políti-
ja expressão mais complexa foi alcançada ca” (Prélot, 1974), que com alta densidade
com Luís XIV. Ao dirigir-se ao soberano metafórica retrata a realeza sagrada do An-
absoluto, foi preciso modular a ênfase das cien Régime em suas estruturas simbólicas
exortações. Acerca desse aspecto Robert mais significativas, fazendo com que as
Muchembled se pergunta: grandes cerimônias do Estado monárqui-
co atingissem seu máximo desenvolvi-
A força principal do absolutismo não está no fato mento e complexidade por essa época.
de fundar o consenso social sobre a qualidade Richelieu, Luís XVI, La Bruyère e Bos-
sagrada e inacessível do príncipe, que não é pos-
sível somente admirar, como se adora a divin- suet abordam temas políticos muito seme-
dade, sob pena de ser lançado para a periferia lhantes, mas não ao ponto de constituí-
dessa verdadeira cidade de Deus sobre a terra? rem uma corrente de pensamento, uma
Se revoltar é pura e simplesmente cometer um vez que exprimem idéias bem contradi-
crime de lesa-majestade, reunindo as cortes de-
tórias sobre um mesmo aspecto. A reale-
moníacas em rebelião contra o criador. (Mu-
chembled, 1994, p. 127) za está no centro do discurso político. Ape-
sar do grande investimento na figura do
mito do coração”, que esteve marcada por Se Maquiavel e Hobbes operaram um ver-
um devotamento sincero ao monarca, co- dadeiro curto-circuito no domínio das
mo o autêntico desejo de reformar sua ín- idéias políticas, queimando os fios da tra-
dole heróica e guerreira; e, por fim, a “li- dição pelo afastamento das nuvens da
teratura encomiástica” dos turiferários da transcendência, que por tão longo tempo
Academia Francesa, que, por meio de “ho- obscureceram o território do político, não
menagens obrigadas”, exalta a imagem cabe mais buscar apenas suas ressonânci-
real até ao artifício e ao exagero (cit. Ferri- as pelo futuro, os seus elementos intem-
er-Caverivière, 1981). Acerca dessas céle- porais.
bres homenagens, Voltaire desperta o riso No campo da História das Idéias, essa
ao defini-las no tempo de Luís XIV. Fazen- é hoje uma atitude metodologicamente
do o discurso sair da boca de um refinado anacrônica. Com certeza, um ótimo repre-
personagem inglês, perplexo diante da en- sentante da nova História das Idéias é o
cenação, ele observa: historiador de Cambridge, Quentin Skin-
ner. Abandonando o modelo tradicional
Tudo que enxergo nesses discursos é que o novo das grandes obras e das grandes corren-
membro, tendo assegurado que seu predecessor
era um grande homem, que o cardeal Richelieu tes de pensamento político, Skinner des-
era um muito grande homem, que o chanceler ce ao leito largo das diversas tendências,
Séguier era um bastante grande homem, que dos autores menores e esquecidos, dos tra-
Luís XIV era ainda mais do que um muito gran- balhos considerados contemporaneamen-
de homem e, que ele, diretor, não deixa de ter
te como fruto de pensadores “datados”,
parte nisso. (Voltaire, 1978, p. 44)
integrando, compreendendo e valorizan-
As dimensões religiosas do absolutis- do seus textos segundo o peso que tinham
mo monárquico, os seus aspectos teológi- em seus respectivos contextos. (Skinner,
co-políticos dificilmente são expostos por 1985)
historiadores das idéias políticas. Tais as- Como se refere Michel Winock, a His-
pectos não correspondem muito bem a tória das Idéias da Época Moderna não
um certo caráter pragmático, recorrente pode ser mais concebida simplesmente
na obra da maioria dos especialistas da como a “marcha dos Estados Modernos
área, pelo menos até época bem recente. ao absolutismo monárquico”, na qual só
Desse modo, estudam-se os pensadores têm assento os grandes nomes (Winock
políticos quase exclusivamente em função apud Rémond, 1988, p. 236). Nesse velho
de suas contribuições em torno de pro- departamento da História Política, que de
blemas que estão sendo vivenciados. Os vinte anos para cá passou da pura Histó-
programas universitários em História das ria da Filosofia a uma História das Menta-
Idéias Políticas são montados a partir das lidades Políticas, é preciso inserir também
grandes expressões do pensamento polí- os autores menores que sequer foram no-
tico secularizado do século XVI. tados em seu próprio tempo, acentuando
Formulações do tipo “tudo começou os valores intrínsecos da obra no contex-
com Maquiavel” ou “da política de Ma- to de sua produção sem a obsessiva preo-
quiavel a nossos dias” muitas vezes exclu- cupação em ouvir os seus ecos na posteri-
em textos políticos encobertos por um dis- dade, numa espécie de “teleomania”. Esse
curso teológico-religioso muito marcante é um dos pecados de muitos professores
em autores bem posteriores a Maquiavel. de teoria política, como se um Hobbes ou
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RESUMO
Escrito originalmente como contribuição ao debate sobre “O direito à
memória”, realizado no II° Encontro Intermunicipal de Cultura, este
trabalho aborda a questão da memória a partir das contribuições tra-
zidas pela Antropologia Social e pela História contemporânea, espe-
cialmente no que se refere à perspectiva significacional da cultura e
da identidade. A questão central tratada refere-se aos desafios que as
sociedades atuais, marcadas pela “globalização das identidades”, apre-
sentam para a análise da identidade, da memória e seus papéis na
construção da cidadania.
Palavras-chave: Memória; Identidade; História.
O passado e o presente não são coisas estáveis tos dessa ação. Decorre desse conceito a
tornadas interpenetráveis pela memória, que ar- possibilidade de se afirmar que, tanto a
ruma e desarruma as cartas que vai embara-
lhando. O passado não é ordenado nem imóvel ação, que é trabalho e transformação,
– pode vir em imagens sucessivas, mas sua ver- quanto seu resultado – produtos e pro-
dadeira força reside na simultaneidade e na mul- cessos culturais – definem e são definidos
tiplicidade das visagens que se depõem, se de- por padrões, normas e valores, proveni-
sarranjam, combinam-se umas às outras e logo
entes de relações sociais desenvolvidas
se repelem, construindo não um passado, mas
vários passados... vão e vêm segundo as solici- por sujeitos em contextos e situações espe-
tações da realidade atual – também fictícia por- cíficas.
que sempre em desgaste e capaz de instituir A experiência e formação cultural de
contemporaneidade com o passado, igual à que um indivíduo são, portanto, o resultado
pode estabelecer com o futuro – tornando de vi-
dro as barreiras do tempo. (Nava, 1974)
do desenvolvimento, a partir de proces-
sos de socialização, de um repertório que,
M
odernamente, o conceito de cul- compartilhado com o grupo social a que
tura se refere a toda e qualquer pertence, viabiliza sua existência e perma-
ação humana sobre a natureza nência no coletivo. Indivíduo e grupo
e, por extensão, aos resultados e produ- existem porque partilham um repertório
de contato cada vez mais recorrentes, dis- heimer e Marcuse o advento de uma so-
tintas e, às vezes, divergentes formas de ciedade de massa, marcada pela perda ir-
conceber e agir sobre o mundo, inaugu- remediável e irrecuperável das identida-
rando um processo contínuo de negocia- des culturais. A “coisificação do espírito”
ção e comunicação. e a “unidimensionalidade” da cultura de
Delineia ainda esse quadro o fato de massa são marcas dessa visão apocalípti-
que, mesmo em sociedades que definem ca-contemporânea. Tal visão, entretanto,
com maior rigor o espaço de autonomia ao considerar a cultura como unificada pe-
individual, inexiste um processo de socia- la Indústria Cultural, toma o sujeito recep-
lização único e integral dos indivíduos de tor como agente passivo, esquecendo de
um mesmo grupo ou sociedade. O indi- qualificá-lo como o agente receptor que
víduo moderno e pós-moderno vive di- manipula os novos códigos simbólicos à
ferentes padrões e dinâmicas culturais. É luz de seu contexto cultural, que é amplo
possível, então, afirmar que, para além da e variado.
heterogeneidade e da complexidade, mar- Na verdade, a cultura é sempre uma
ca essa dinâmica cultural a maneira dife- experiência seletiva. A diversidade de pro-
renciada e contraditória com que cada um dutos e manifestações culturais oferecida
dela participa. pela indústria cultural nas sociedades
Se a identidade cultural de uma socie- complexas não se implanta nos indivídu-
dade, grupo ou indivíduo, se os significa- os como uma espécie de terreno virgem,
dos de suas tradições, de suas práticas e pois estes possuem códigos, referenciais
hábitos culturais só podem ser pensados a partir dos quais realizam ativa e seleti-
a partir do sistema de representação e clas- vamente sua leitura do mundo.
sificação a que pertencem, este resulta de O desafio da experiência cultural, hoje,
um singular processo de troca entre uni- parece nos remeter a três ordens de situa-
versos cada vez mais intercambiáveis, re- ções/problema:
sultado de complexas interações e nego- 1. A primeira, referente a sujeitos e gru-
ciações simbólicas. pos que resistem e sobrevivem fe-
Todas as sociedades mudam. As mais chados sobre si próprios, desenvol-
complexas a uma velocidade maior; as vendo mecanismos de controle da
menos complexas, mais lentamente. O reprodução de seus sistemas de re-
tempo, elemento importante na análise da presentação, esquivando-se do con-
cultura, encerra sempre uma tensão: “A tato com o diferente. Incluem-se,
oposição antigo/moderno é um dos con- nessa situação, minorias étnicas, re-
flitos através dos quais as sociedades vi- ligiosas, grupos radicais urbanos,
vem as suas relações contraditórias com o que, através de visões fortemente et-
passado” (Legof, 1984). Na sociedade com- nocêntricas, desenvolvem uma pos-
plexa urbano-industrial, os processos de tura de recusa à mudança. Aqui o de-
transformação são muito rápidos e fazem safio é a compreensão da permanên-
com que o indivíduo se reproduza social- cia e suas várias formas, num mun-
mente de forma fragmentada em seu pró- do cada vez mais mutante.
prio meio. 2. A segunda, referente aos grupos e
Tal dinâmica e velocidade costumam sujeitos de grandes centros urbanos
sugerir aos seguidores de Adorno, Hork- industrializados, cujo processo de
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DEMOCRACIA ANTIGA E
DEMOCRACIA MODERNA
Cristina Vilani*
RESUMO
Este artigo faz um paralelo entre a democracia grega antiga e a demo-
cracia moderna. Procuramos mostrar quão diferentes são essas duas
formas de experiências democráticas. Enquanto as instituições demo-
crático-modernas se baseiam em uma concepção individualista, as ins-
tituições grego-antigas tinham como base uma concepção coletivista
da sociedade.
Palavras-chave: Democracia; Participação; Individualismo.
O
termo demokratia1 foi cunhado tencimento ao espaço da pólis eram a li-
pelos gregos na antigüidade pa- berdade e a igualdade. Para o ateniense,
ra designar uma forma de gover- o homem só podia exercer a política em
no em que o conjunto dos cidadãos tem a liberdade e só podia ser livre entre seus
titularidade do poder político. Isto é, uma pares.
forma em que a administração da coisa A pólis grega com seus ideais de liber-
pública é responsabilidade do povo e está dade, igualdade e respeito pela lei, tem
sob o seu controle. sido considerada fonte de inspiração para
Dentre as instituições da Grécia Anti- o pensamento democrático moderno. En-
ga destacou-se, pelo seu significado polí- tretanto, tem-se dado pouca atenção ao
tico, a cidade-república de Atenas – a pólis fato de que, embora tenhamos guardado
– que teve seu apogeu entre os séculos VI aqueles ideais, a concepção e a forma da
e IV a.C. Ali, os cidadãos, em assembléia, moderna democracia distanciam-se sobre-
reuniam-se para discutir e deliberar sobre maneira da concepção e da forma dos an-
as leis e a organização da vida coletiva. O tigos. Quando hoje falamos em democra-
demos era soberano e tinha a autoridade cia, estamos falando de um governo re-
suprema para exercer as funções legislati- presentativo, de um Estado constitucio-
va e judiciária. Os requisitos para o per- nal e das garantias das liberdades indivi-
duais. Essa democracia tem pouca seme- teresses e com suas necessidades, tornou-
lhança com a cidade-república dos gregos. se o valor supremo na constituição das ins-
Somos diferentes dos antigos porque nos- tituições sociais, para os antigos, o ideal
sa democracia assenta-se em premissas e comum impunha-se a todos e o indivíduo
valores que a política grega desconhecia. era visto sobretudo como parte do órgão
Na nossa era a forma liberal de demo- coletivo, do corpo social. Nessa perspec-
cracia tornou-se o marco dominante no tiva, a virtude cívica significava subordi-
ocidente. Por isso, no presente texto, ela é nação dos interesses pessoais aos ideais
o foco privilegiado de análise. Nos limi- coletivos. Entre os modernos, o ordena-
tes deste estudo não abordamos a demo- mento das questões públicas deve respei-
cracia direta ou as formas mescladas coe- tar e refletir as preferências individuais.
xistentes na modernidade. A ênfase na Isto é, a dimensão cívica da cidadania
forma liberal não significa, entretanto, (busca do bem público) é inseparável da
conferência de qualquer valor, isto é, não sua dimensão civil (afirmação dos direi-
entramos na consideração da melhor de- tos individuais). Assim, na visão liberal
mocracia. predominante na era moderna, o objeti-
Vejamos os aspectos salientes da mo- vo da política é a busca da realização de
derna experiência democrática, em con- um “compromisso optimal entre os inte-
traste com a antiga. resses privados”. (Elster, 1989)2
Quando a vida coletiva se impõe so-
bre os indivíduos, a idéia de liberdade é
A CONCEPÇÃO INDIVIDUALISTA MODERNA diversa daquela em que a sociedade on-
tologicamente não existe, e o “reino dos
O que sustenta e dá sentido às insti- fins coincide com os fins legítimos de cada
tuições modernas é a concepção individu- homem” (Dumont, 1985). No seu famoso
alista, segundo a qual a ação individual texto “De la liberté des anciens comparée
ganha relevo e a realidade social é vista à celle des modernes” (1818), Benjamin
como resultante da interação de sujeitos Constant assinala que, enquanto para os
individuais, que a moldam de acordo com antigos liberdade significava distribuição
seus interesses. Essa concepção difere das do poder político entre os cidadãos e par-
concepções holísticas, para as quais o todo ticipação no organismo coletivo, para os
é anterior às partes, isto é, a sociedade tem modernos liberdade implica segurança
suas próprias leis de desenvolvimento que nas “fruições privadas”, ou seja, a segu-
independem da vontade ou da intenção rança de esferas individuais de liberdade.
dos indivíduos. Enquanto para os moder- Constant quis mostrar que a experiência
nos o ser humano particular, com seus in- antiga, diferentemente da moderna, não
2 A interpretação binária pode ser simplista e perigosa mas, como procedimento analítico, nos foi útil,
porque privilegiamos o que há de mais peculiar na ideologia moderna, a fim de buscar seus reflexos no
mundo da política. Para a compreensão das representações coletivistas e suas formas mescladas com o
individualismo, na era moderna, ver o texto de Dumont (1985). Segundo ele, embora o individualismo
seja a marca distintiva da modernidade, não lhe é coextensivo. “O mundo ideológico contemporâneo é
tecido da interação de culturas, (...) é feito de ações e reações do individualismo e de seu contrário”, re-
sultando, muitas vezes, em “representações híbridas”. (p. 30)
No interior do próprio movimento liberal, diferentes correntes combinaram diversamente os pólos do
interesse coletivo versus interesse individual, na busca da melhor maneira de conceber a vida social.
3 Ver Hannah Arendt e M. J. Finley: A condição humana e Democracia antiga e moderna, respectivamente.
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trado pela primeira vez em 1763, no Rio de Ja- universo cultural dos holandeses e franceses;
neiro, por ocasião da festa do Divino Espírito finalmente, o substrato medieval francês tra-
Santo. zido ou pelos soldados e comerciantes france-
Tais permanências podem ser principal- ses que acompanhavam os holandeses, ou, di-
mente observadas no cordel nordestino São retamente, pelos colonizadores ibéricos.
Saruê, atribuído a um certo Manoel Camilo, a Evidentemente, não se trata de ignorar a
começar pelo vocábulo “Saruê” (derivado do grande distância que separa os tempos histó-
francês soirée), correspondente a uma modali- ricos mencionados, incorrendo em anacronis-
dade de dança que associa elementos france- mos que negam a própria dinâmica histórica.
ses e americanos. Depois, pelos paralelismos Parece-nos óbvio o fato de que cada época
tão evidentes entre o Fabliau de Cocagne e deve ser tratada na sua especificidade cultu-
aquele cordel na configuração da utopia da ral, o que não impede, contudo, o reconheci-
terra maravilhosa, é praticamente impossível mento das aproximações possíveis entre elas
apontá-los como simples coincidências. ou as atualizações particulares realizadas a
Em função da sua grande relevância e do partir de elementos simbólicos partilhados
seu forte apelo cultural, não poderíamos dei- pelo conjunto ocidental. No tocante à temáti-
xar de nos deter um pouco mais demorada- ca cocaniana, as diferenças são culturais, não
mente nessa passagem do livro, destacando, a estruturais; nesse caso, como afirma Franco
título de ilustração, algumas expressões equi- Júnior, recorrendo a Lévi-Strauss, o que impor-
valentes na qualificação da “terra maravilho- ta, fundamentalmente, é a história que o mito
sa” no texto francês e no texto nordestino, res- narra.
pectivamente: como um lugar onde “chove Para nós, uma das qualidades do livro é,
pudim” ou “chove manteiga” (no caso da justamente, resgatar a validade da perspecti-
“abundância”), povoado por “gansos que as- va da longa duração histórica para a atualida-
sam por si” ou por “peixes que se cozinham de, em um contexto epistemológico domina-
sozinhos” (no caso da “ociosidade”), cujos sím- do pela fragmentação, pelos estudos voltados
bolos são a “fonte da juventude” ou o “rio da para as micro-histórias. Acreditamos que,
mocidade” (no caso da “juventude”), tratan- quando bem trabalhada, aquela perspectiva é
do-se, além disso, de uma terra “sem oposição capaz de esclarecer uma série de questões que
e proibição” ou onde “não há contrariedade” nos permitem ampliar o leque das reflexões
(no caso da “liberdade”). Como idéia geral, por acerca de uma tradição cultural que, queira-
conseguinte, e de modo similar à Cocanha, São mos ou não, constitui um dos pilares da orga-
Saruê se tornou sinônimo de coisa impossível: nização do nosso próprio universo material e
(...) “só em São Saruê, onde feijão brota sem espiritual, como podemos perceber no desen-
chovê”. volvimento da investigação.
No aprofundamento da sua análise, Fran- No entanto, talvez o maior mérito da aná-
co Júnior utiliza o método regressivo de Marc lise repouse na forma de sua problematização,
Bloch, que segue um percurso cronologica- segundo os moldes propostos pela Nova His-
mente invertido, no rastreamento de quatro tória, mas que raras vezes foi tão bem realiza-
camadas histórico-culturais da estratigrafia da, pela sua coerência e originalidade, como
folclórica do nordeste brasileiro, cuja conflu- neste trabalho sobre a Cocanha.
ência teria possibilitado o aparecimento das Com efeito, o texto é um convite perma-
primeiras imagens do país de “São Saruê”: as nente ao diálogo com outras obras, com ou-
condições arcaicizantes que distinguem o Nor- tras disciplinas, com outras épocas e com o lei-
deste no século XX e a forte mentalidade mes- tor, levantando pistas e convidando-nos a se-
siânico-milenarista dos seus habitantes; a pre- gui-las, ou abrindo espaço para a continuida-
sença holandesa, no século XVII, que poderia de dos estudos do gênero. Dessa forma, ape-
ter trazido para o Brasil as tradições sobre a sar de delinear a sua posição pessoal no fim
Cocanha que circulavam nos Países Baixos; as de cada capítulo, para melhor defini-la, na con-
narrativas míticas indígenas que, levadas pe- clusão o autor não aponta soluções definitivas
los tupinambás ao sertão, interagiram com o para o que ele apresenta como “indefinições
e vice-versa. Nesse sentido, o espectador é logo dade de Poséidon constitui uma verdadeira
o náufrago, e o náufrago logo pode vir a ser o multidão de monstros e gigantes, violentos e
espectador. É nesse eterno jogo entre o avan- malfazejos, o que ilustra bem o caos que rei-
çar e o recuar que o homem constrói o viver. nava no mar e fazia tremer os homens que
Mas o que está permeando náufrago e espec- ousavam invadir o território de Poséidon.
tador? A iconografia cristã também delega ao mar
O requisito fundamental para que haja um o local ideal para a manifestação do mal, atri-
náufrago não é nem tanto a nau, mas a repre- buindo-lhe o traço gnóstico de sinalizar a ma-
sentação do mar. O mar é um dos fines diante téria bruta que faz tudo retornar a ela própria
do qual o homem se depara. E o anseio de lan- e tudo devora. Nesse sentido, a fronteira en-
çar-se para além dele é uma transgressão que tre terra firme e o mar representaria a queda
quase se impõe como uma necessidade. O no pecado original, ou seja, um passo dado
homem é situado enquanto um ser de terra para o inconforme e o desmesurado. Daí a pro-
firme. A sua vida, seu quotidiano estão insti- messa de que no estado messiânico não have-
tuídos sobre terra firme, e o mar surge como o ria a necessidade do mar (ou do território do
limite do habitável. Aqui, onde a terra se acaba e mal), como propôs o apocalipse de João.
o mar começa (Camões). Mas se o mar é o limite do habitável, não é
A mitologia e a iconografia cristã alimenta- o limite do explorável. Já dissemos que o ho-
ram essa concepção de “mar tenebroso” du- mem almeja a sua totalidade. Nesse sentido,
rante milênios. Para os gregos, o mar é o terri- ele busca avidamente a interação entre o cos-
tório do terrível Poséidon. Zeus se torna o mos (representado pela terra) e o caos (repre-
maior deus do panteão grego, dominando o sentado pelo mar). O instrumento que viabili-
céu e os fenômenos atmosféricos após vencer za essa interação é a navegação temerária. O
seu pai Cronos com a ajuda dos irmãos Poséi- significado mesmo de temerário já nos lança a
don e Hades. Como reconhecimento à valo- ponte para a compreensão da inconformida-
rosa ajuda dos irmãos, Zeus divide com eles o de do homem diante dos limites entre o terre-
governo do mundo: deu os infernos a Hades no do habitável e o do desconhecido e temi-
e o mar a Poséidon. Embora Poséidon seja uma do. Num primeiro momento a navegação é
divindade marítima, consegue a honra de ser temerária por ser considerada arriscada, im-
incluído entre os doze grandes deuses do prudente, pois impera a concepção do mar
Olimpo. Poséidon governa seu império aquá- enquanto limite natural do espaço e empre-
tico com extrema autoridade. Seu palácio er- endimentos humanos e a sua demonização
guia-se no fundo do mar Egeu – “habitação enquanto esfera do incalculável, da desordem,
resplandecente e eterna”. Quando o deus saía, do incomensurável. Mas logo se esboça o sig-
vestido com sua armadura de ouro, pegava um nificado de temerário que acaba por lançar o
chicote brilhante, atrelava os cavalos que cor- homem ao mar: agora o homem se permite ser
riam como o vento, subia para o seu carro e arrojado, audacioso, atrevido.
lançava-se sobre as ondas. Os monstros mari- Sendo a navegação temerária, nesse con-
nhos o acompanhavam sopreando búzios. Mas texto, a metáfora simbolizadora da própria
Poséidon era também um deus caprichoso: existência, o homem enquanto argonauta tem
quando se enfurecia se tornava terrível e in- no naufrágio uma conseqüência legítima da
domável. A Odisséia conta que, para fazer navegação, naufrágio este entendido enquan-
perder Ulisses, o senhor dos mares adensou to mergulho em sua própria subjetividade. O
as nuvens sobre ele, levantou as ondas e de- homem que conquistou os ares, arroteou to-
sencadeou os ventos. Fez também surgir dos dos os continentes da terra, conheceu os ma-
abismos monstros terríveis, que simbolizavam res e ousou atravessar o limite atmosférico do
as vagas alterosas, as tempestades e os maca- planeta, conhece pouco ou nada a respeito de
réus devastadores. Da sua união com Anfrite seu próprio oceano interior, não raro acometi-
nasceu um filho, Tritão, semideus ciumento e do pelas tempestades causadas pela angústia.
predisposto à violência, que soprava um bú- Angústia esta entendida aqui no sentido ki-
zio para apavorar os marinheiros. A posteri- erkegaardiano (determinação que revela a
condição humana caso se manifeste psicolo- veres necessários para si e seus companheiros.
gicamente de maneira ambígüa e o desperte A figura geométrica aí se coloca enquanto si-
para a possibilidade de ser livre). nônimo da presença de seres humanos racio-
Nesse sentido, o naufrágio é o momento nais. É um momento até mesmo de reavalia-
no qual o homem experimenta uma redefini- ção dos valores, aquele momento do qual se
ção e/ou recomeço, por vezes conversão, em extrai a essência da vida. Nesse sentido, nos
seus objetivos existenciais básicos. Ora, todo revela Aristipo: “Só aquilo que as inclemênci-
naufrágio pressupõe o impulso primeiro de se as do destino, a revolução ou a guerra não
lançar ao mar: o naufrágio é, por assim dizer, podem prejudicar é importante para a vida”.
uma conseqüência legítima da navegação. O Também na Odisséia, Homero – para quem os
aspecto ilusório do porto alcançado com feli- olhos do corpo estavam fechados e os do espí-
cidade e a calmaria que impede o avançar do rito abertos às imagens inspiradas pelas mu-
barco são antíteses do sentido maior que a tem- sas – classifica como humanas as sociedades
pestade possui para o argonauta. Na verdade, que conhecem e se utilizam do pão e do vi-
o homem precisa do naufrágio porque preci- nho. Condição de humanidade ou não, toda a
sa de confrontar-se consigo mesmo: o momen- Europa, há milênios, tem nesses dois elemen-
to turbulento do naufrágio é, quiçá, o único tos a base de sua alimentação. A condição eu-
momento no qual o homem está sozinho con- rocêntrica da razão ocidental imposta ao mun-
sigo mesmo, está totalmente à mercê do seu do pelas grandes navegações e pela expansão
eu. Não pode se agarrar ao outro: só conta con- imperialista faz crer também que a razão, exal-
sigo mesmo. Não são muitos os que se aven- tada pelo homem do século XVII (e represen-
turam a enfrentar-se a si próprio. Há sempre a tada aqui pelas figuras geométricas na praia)
possibilidade do espanto. seja a característica por excelência da humani-
Mas há sempre aqueles que, ao se dispo- dade. A desilusão que, ao longo dos séculos
rem a levar a cabo essa árdua jornada, conse- seguintes levaria o homem a relativizar o mes-
guem dela extrair a essência do naufrágio. sianismo dessa razão e a compreender cada
Zenão de Chipre (340-264 a.C.) nos fornece a vez com maior profundidade sua condição de
chave para nos embrenharmos na metáfora do ser de emoções, leva à compreensão de que
naufrágio enquanto uma figura filosófica: ao navegar é preciso, viver não é preciso.
experimentar um naufrágio, teria compreen- A metáfora do naufrágio nos sugere aqui o
dido o sentido primeiro da vida que não se si- momento em que o homem se depara consi-
tuaria no acúmulo de posses maiores do que go mesmo, com o seu eu mais escondido (prin-
aquelas que poderiam ser transportadas por cipalmente dele mesmo). A consciência da pró-
um provável náufrago ao nadar. “Só como pria inconstância, indeterminação, inerente à
náufrago naveguei pelo mar com felicidade”. existência é o que torna a austeridade prega-
No entanto, o que interessa a Blumemberg da pelos estóicos uma necessidade e uma ati-
não são as vicissitudes porventura experimen- tude prudente e sábia a todo o que se propõe
tadas durante a viagem náutica, mas a atitude à navegação temerária. Poderíamos daí extra-
do argonauta diante delas, sua reação e o es- ir uma questão fundamental: mas afinal de
tado de sua alma após o que, por assim dizer, contas, o que resta ao náufrago?
metaforicamente, poderíamos designar como Montaigne nos diria que o despojo do ná-
o naufrágio. Caminhando por aqueles que, na ufrago é a posse de si mesmo. E a posse de si
esteira da história clássica grega, seriam alvo mesmo é o resultado da autodescoberta, da
de toda a detração por parte dos socráticos, auto-apropriação, do confronto consigo mes-
chegamos a Aristipo. Esse sofista, tendo sofri- mo de que falávamos há pouco. O naufrágio
do um naufrágio e aportado em uma praia na é, nesse sentido, o espaço/momento da desco-
qual se vislumbravam figuras geométricas na berta/encontro com a essência do próprio ná-
areia, sente suscitar-lhe, como inspiração, a ufrago. Montaigne é categórico sobre o senti-
brilhante idéia de dirigir-se ao ginásio da ci- do atribuído ao naufrágio: “O interior é ina-
dade e, através de seus apurados conhecimen- tingível do exterior”.
tos, conquistar em disputas filosóficas os ví- Mas Montaigne também se dá conta de que
a navegação temerária e o próprio naufrágio objeto inerte como se poderia crer até certo
(conseqüência legítima) impõe ao homem um momento do texto; ele faz parte de seu tem-
“desfazer-se” de suas ilusões sobre si mesmo. po, está historicamente situado. Daí a relevân-
Uma dessas desilusões é sobre a própria exis- cia de Epicuro ser grego, e Lucrécio, romano,
tência do homem. Desde sempre, o homem e de dois séculos os separarem. O filósofo faz
recusa-se a aceitar que a morte é o seu fim der- parte de sua filosofia; esta filosofia, por sua vez,
radeiro: considerar-nos demasiados importan- é um reflexo das indagações de seu tempo, das
tes para aceitar que as coisas continuam sem quais está imbuído e não pode se apartar to-
nós e que não sofrem com a nossa ausência. talmente. Tão puro e imparcial e alheio aos
Mas a recíproca também é verdadeira: o mun- fatos, não pode ser o espectador do mundo, a
do da terra firme também nos escapa à medi- não ser que transcendesse a condição huma-
da que nos afastamos dela; faltaríamos às coi- na e alcançasse a imunidade de um deus.
sas à medida que elas nos escapam. Mas não Mas há momentos em que o homem deve
seria esse “escapar-se” o pressuposto para atin- assumir a posição de espectador. É o caso de
girmos a nós mesmos? A distância é, por ve- Goethe, que assume a função de espectador
zes, necessária para um confronto mais since- para depois escrever sobre sua experiência. É
ro consigo mesmo. Quando tudo e todos nos a arte de sobreviver num momento-limite.
escapam só nos resta a nós mesmos. Podere- Goethe, ao escrever, também se indigna e, ao
mos escapar de nós mesmos? indignar-se, também naufraga.
Há os que pensam que sim. O espectador O processo metafórico e o processo real de
é, talvez, um dos mais legítimos representan- transposição do limite da terra firme para o
tes desse grupo. Mas o viajante que reluta dei- mar ofuscam-se um ao outro, exatamente
xar o porto também o é. O próprio Montaigne como o risco metafórico e o risco real do nau-
justifica essa posição: “E eu hei de utilizar tan- frágio. Num dos pensamentos elementares do
tas amarras quanto o meu dever o permita iluminismo, percebe-se claramente expressa a
para me manter à tona da água”. É o homem idéia de que os naufrágios são o preço a pagar
que adia o momento doloroso de encontrar- para que uma calmaria total dos mares não
se consigo mesmo. Mas, se Montaigne admite torne o tráfego mundial impossível para os
o direito do homem de ser espectador, de es- homens. Aí estaria a justificação das paixões.
tar à margem firme, fora do perigo, Nietzsche A razão, entendida como a calmaria do mar,
nega a possibilidade de abstenção. Para ele, seria então a imobilidade do homem em pos-
além do fato de sempre estarmos já embarca- se total de sua prudência. Justamente o ocea-
dos e embrenhados no mar, somos também (e no agitado da alma incendiada de paixões
inevitavelmente) náufragos. É o perder-se a si constrói e destrói tudo; destrói o antigo para
mesmo de Nietzsche contrapondo-se ao depa- construir o novo, torna possível, simultânea e
rar-se consigo mesmo de Montaigne. Mas, an- dialeticamente, a navegação do barco da his-
gustiante dúvida: não seria o perder-se a si mes- tória dos homens. Se a razão dominasse o
mo o tênue limite que separa o momento de mundo, a rigor, nada aconteceria nele. O pa-
deparar-se consigo mesmo? Ou seria o contrário? radoxo entre a razão e a paixão constitui, nes-
Mas o náufrago chega, por fim, a terra fir- se sentido, uma das angústias do homem.
me. E surpreende-se: ela não oscila. Numa Mas é preciso ater-se ao fato de que a sabe-
constatação sutil, Blumenberg nos diz que a doria consiste em aliar razão e paixão. Lem-
terra firme não é a posição do espectador, mas bramo-nos aqui, mais uma vez, de Camões:
a do náufrago salvo. E o que resta ao náufrago se é verdade que não controlamos o vento e
é o desejo de voltar ao mar porque a posse de as tempestades (o curso da vida), não pode-
si mesmo é tão imprecisa quanto a vida. Só o mos desconsiderar o fato de que temos total
navegar é preciso. controle sobre o barco (o navegar). A arte de
Mas o espectador é um espectro que ronda sobreviver não seria, portanto, o equilíbrio
o náufrago. O espectador não goza da subli- entre razão e paixão? Talvez, posto que nem o
midade de um deus que se coloca acima de equilíbrio é algo constante.
tudo e de todos, nem da neutralidade de um Os navegantes temem a calmaria e só de-
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