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PUC-SP
SÃO PAULO
2010
Walmeri Kellen Ribeiro
SÃO PAULO
2010
BANCA EXAMINADORA
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Esta pesquisa foi realizada com financiamento do CNPQ
“ Melhor se guarda o vôo de um pássaro,
do que um pássaro sem vôos”.
Antônio Cícero
Agradecimentos
Ao meu eterno mestre Renato Cohen, pelo incentivo e motivação inicial que
continuou permeando todo o pensamento tecido neste estudo.
À Fafate Costa, pela leitura atenta e revisão dos meus textos sempre em
processo.
À Cida Bueno, pela atenção durante todo o tempo de permanência como aluna
do programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica.
RESUMO
Notas da autora
INTRODUÇÃO _________________________________________________ 13
II O ATOR CO-CRIADOR
Procedimentos de criação
Laboratório – investigação e experimentação ______________ 47
Improvisação ______________________________________ 49
A prática improvisacional – do desenho à cena _____________ 51
Criação Colaborativa _________________________________ 54
Contribuições Estéticas
Espontaneidade e ideia de tempo presente ________________ 58
Leveza e Fluidez ____________________________________ 63
11
nenhuma pretensão acadêmica, ingressei na UNICAMP em 2002, com
orientação do Professor Dr. Rubens Brito e Co-orientação do Professor Dr.
Renato Cohen.
Os estudos com Cohen me proporcionaram o conhecimento da prática da
Performance e contato com a obra de Sérgio Penna, que naquele momento
tinha acabado de lançar o primeiro longa-metragem: Bicho de Sete Cabeças
(2001), em que tinha atuado como preparador de elenco.
Apenas após o falecimento de Cohen resolvi aproximar-me de Sérgio
Penna, já em 2004. Ao chegar ao espaço onde seria realizada a oficina com
Penna, na Rua Girassol, na tradicional Vila Madalena em São Paulo, pude
compreender porque Cohen tanto me dissera para procurar por Sérgio. Com um
abraço apertado fui recebida pelo preparador, que me apresentou todo o
material de registro da preparação dos atores de Bicho de Sete cabeças e de
Contra Todos.
Diria que as inquietações que movem a realização desta tese iniciaram-se
ali, naquele momento. Como sempre dizia Renato Cohen, naquele ritual
(oferecido por Penna) fui afetada. Criou-se um elo de afeto, no sentido
Artaudiano do termo.
Em 2004, finalizei minha dissertação de mestrado, entretanto, não houve
tempo hábil para que todas as inquietações emergentes do encontro com a
preparação de elenco no Brasil, através de Penna, fossem naquele momento
investigadas. Ao finalizar o mestrado a única certeza que tinha era de que havia
muita coisa a ser estudada e experimentada.
Essas inquietações ficaram adormecidas entre 2005 e 2006, anos em
que no comando de um programa de TV, abandonei as salas de ensaio e,
consequentemente, meus estudos.
Mas, se a vida nos leva para outros caminhos, a inquietação nos traz de
volta. Em 2006, ao ter contato com o livro Crítica Genética de Cecília Almeida
Salles, apresentado por uma amiga, retornei aos documentos de processo e às
salas de ensaio, iniciando ou reiniciando a pesquisa ora apresentada.
12
INTRODUÇÃO
13
Ao intitularmos este estudo como Poéticas do ator no audiovisual1, de
forma plural e não singular -Poética-, apontamos desde o início para a
multiplicidade de poéticas presentes nos processos de criação audiovisual
contemporâneos. Poéticas que seguem desde as relações mais tradicionais de
interpretação de uma personagem - baseada no texto e na representação -, até
as relações de co-criação entre ator e obra, nas quais o ator cria sua própria
personagem e colabora para o desenvolvimento da obra como um todo.
No entanto, neste estudo, nos detivemos nas poéticas emergentes da
inserção do ator co-criador e nos desdobramentos e contribuições que a
presença deste ator gera no processo criativo da obra audiovisual.
Para nos lançar no espaço da fluidez, presente na criação atoral e em
processos de criação laboratoriais, agarramo-nos nas propostas apontadas pela
Crítica de Processo de Cecília Almeida Salles (2006), realizando um
acompanhamento teórico-crítico, dos processos de criação e produção de obras
audiovisuais brasileiras lançadas entre 2000 e 2008.
Ao propor o conceito de Criação em Rede, ou seja, compreender o
processo de criação como um sistema complexo que se estabelece em rede
através de trocas entre os sujeitos e do intercâmbio de ideias, num amplo campo
de interações das linguagens e dos meios, a Crítica de Processo (SALLES:
2006), que possui base geneticista e é embasada pela semiótica Peirceana,
apresenta como metodologia de pesquisa a análise de documentos e registros
dos processos de criação de obras artísticas, midiáticas e científicas, bem como
a própria obra.
Diante destes apontamentos metodológicos, tomamos como material de
análise das obras audiovisuais, making ofs, documentários, materiais
audiovisuais contidos nos extras de DVDs e sites oficiais, entrevistas com
diretores e atores publicadas em revistas e sites especializados, materiais
impressos originais ou publicados, como roteiros, cadernos de anotação; bem
14
como a realização de entrevistas com os diretores e preparadores de elenco,
cujas obras serão abordadas neste estudo.
15
Grotówski, Artaud, Barba e Burnier, não com o intuito de investigar esses
sistemas ou aplicá-los como “métodos” para a prática criativa do ator na
contemporaneidade, mas utilizando-os como um campo de referência para a
leitura dos procedimentos para uma dramaturgia do corpo, uma dramaturgia que
emerge da ação e transforma-se em cena audiovisual.
Ao lançarmos um olhar sobre os processos de criação da recente
produção audiovisual brasileira, sobretudo a cinematográfica, percebemos que,
em sua grande parte, os diretores, não buscam por atores que decorem um
texto e interpretem uma personagem, já delineada por um roteiro
cinematográfico, tão pouco se debruçam sobre decupagens ou roteiros técnicos
para pensar a encenação, mas sim propõem uma dramaturgia e uma encenação
que sejam desenvolvidas conjuntamente com os atores. Aproximando-se, assim,
das propostas de criação presentes na performance, na dança e no teatro
contemporâneo.
Em busca da compreensão dos procedimentos que impulsionam estas
propostas de criação pautadas no corpo e que, a nosso ver, balizarão o trabalho
deste ator que estamos nomeando como co-criador, desenvolvemos a primeira
parte desta tese. Intitulada como “Poéticas do corpo em cena”, nesta parte
pontuamos alguns procedimentos, que acreditamos serem importantes para a
fundamentação do trabalho do ator co-criador. Procedimentos como as ações
físicas (Stanislavski) e seus desdobramentos, partitura física, impulso e estímulo
(Grotówski), que em busca de um trabalho do ator sobre si mesmo e do
desvelamento deste, propõem a relação do ator como criador da obra cênica e,
apontam, para um partitura física do ator que é sempre renovada no aqui e
agora da ação.
Ao abordar as proposições de Stanislávski e Grotówski, nos debruçamos
tanto sobre os escritos dos dois pensadores, quanto sobre análises realizadas
por seus estudiosos, estabelecendo uma relação com práticas e pensamentos
mais contemporâneos do corpo, fundamentais ao se falar em relações de co-
criação.
16
Seguindo os apontamentos destes procedimentos, nos agarramos nas
propostas Artaudianas para refletir sobre a relação corpo e intensidade,
fundamentando as relações de atuação e presença nos processos criativos
contemporâneos.
Permeados pela idéia do “ser” e não do interpretar, os processos de
criação audiovisuais contemporâneos nos apontaram para a necessidade de
investigação sobre esta plenitude do ator em cena e essa ruptura com a
interpretação de uma personagem, em busca da individualidade do ator.
Detivemo-nos nos escritos de Artaud, Barba e no Treinamento energético ou
Dança pessoal de Luis Octávio Burnier, bem como na Extrojeção conforme
proposto por Renato Cohen, para compreender essas relações que tanto nos
aproximam dos estudos da Performance e do Teatro contemporâneo.
Entretanto, para a análise desta dramaturgia do corpo na cena
audiovisual, tomamos também as proposições de Helena Katz e Christine
Greiner em Teoria do Corpomídia (2005) para compreender este corpo como um
sistema dinâmico e auto-organizativo.
Se num primeiro momento o que nos interessava eram os procedimentos
empregados na preparação dos atores, conduzindo-os à relação de co-criação,
estas questões levaram-nos a novos questionamentos, intrínsecos à presença
deste ator co-criador na produção audiovisual.
Neste momento, foi importante compreender o que Cecília Almeida Salles
pontua como projeto poético do artista. Segundo Salles (2008) são princípios
direcionadores, de natureza ética e estética, presentes nas práticas criadoras,
princípios relativos à singularidade do artista, um projeto pessoal (e singular),
inserido no tempo e no espaço da criação.
Fruto de um projeto poético estabelecido, a relação de co-criação do ator
é um princípio direcionador que persiste em processos de criação de diferentes
diretores, entretanto, cada qual com sua singularidade, como veremos no
decorrer desta tese.
A multiplicidade de poéticas do ator fica clara quando, ao analisarmos os
projetos poéticos dos diretores, podemos traçar suas singularidades, mas
17
também algumas tendências, sobretudo relativas à inserção do ator co-criador
nos processos de criação audiovisual, que persistem.
Estas tendências que, segundo Salles (2006), são rumos vagos que
orientam os processos de construção das obras no ambiente da incerteza e da
imprecisão, são observadas como atrativas do processo criativo, e serão
pontuadas neste estudo como possibilidades de procedimentos criativos para a
obra audiovisual. Assim, ao propormos os laboratórios como espaço de
investigação e experimentação, tornando-se o grande lócus criador da obra,
apontamos a improvisação e a criação colaborativa como princípios
direcionadores que persistem nos processos de criação pautados na presença
do ator co-criador.
Na construção da segunda parte deste estudo delimitada pela reflexão
sobre o ator co-criador, ao estabelecermos um diálogo entre os laboratórios de
criação audiovisual e os laboratórios cênicos, buscamos apontar como esses
laboratórios se estruturam. Pautados na desordem e permeados pela incerteza
(MORIN: 2007) - estabelecendo-se como sistemas complexos, ao propor uma
prática improvisacional como procedimento para a emergência da obra, gerando
o que estamos denominando com partituras de encenação ou partituras do
diretor, - os laboratórios configuram-se como um sistema botton-up, conforme
apontado pelo pesquisador americano Steven Jonhson (2003).
A partir do arcabouço das teorias da complexidade, buscamos apontar as
relações de criação estabelecidas para a emergência do roteiro, das partituras
físicas do ator e das partituras de encenação, contribuindo para o
desenvolvimento da obra audiovisual.
A partir desses apontamentos, tornou-se clara a busca estética que
permeia as propostas criativas fundamentadas nas proposições ora
apresentadas. Assim, após realizarmos as conexões entre as propostas
laboratoriais para a criação audiovisual e a criação cênica, sobretudo nos
diálogos com a Performance, debruçamo-nos sobre estas buscas estéticas.
À medida que temos um processo criativo fundamentado na
singularidade do ator e na extrojeção, em processos que buscam por um ator
18
que performe em cena, reavivando no aqui e agora da ação, suas partituras
físicas e as partituras de encenação, pontuamos esta busca dos diretores como
uma busca pela espontaneidade em cena.
Permeada pela fluidez e pela ideia de tempo presente, esta
espontaneidade do ator rompe com a ideia de realismo, propondo à cena a
impressão de algo construído diretamente em cena, o que nos leva a pontuar
esta busca por uma estética da espontaneidade.
Seguindo este pensamento, retornamos, na terceira parte deste estudo,
às obras e análises dos filmes e minisséries que impulsionaram todas essas
reflexões. Ainda que de modo breve, buscamos apresentar neste capítulo, um
panorama da produção brasileira entre 2000 e 2008, apontando obras que
trazem o ator como co-criador das mesmas, abrindo espaço para a fluidez
criativa e para a colaboração na produção audiovisual.
Ao apresentarmos os processos criativos dessas obras, bem como
apontar traços dos laboratórios de criação dos filmes Contra Todos (2004), Céu
de Suely (2005), Lavoura Arcaica (2001) e Crime Delicado (2005); e das
minisséries Pedra do Reino (2007) e Capitu (2008), discutiremos conceitos como
o work in process (COHEN: 2008) na cena contemporânea e as bases de
preparação dos atores para o desenvolvimento dessas obras, lançando um olhar
sobre os procedimentos empregados por dois preparadores do cinema
brasileiro: Sérgio Penna e Fátima Toledo.
19
Esta parte do estudo abordará então, temas como as partituras de
encenação ou partituras do diretor, o diretor como encenador da obra
audiovisual, a fluidez das etapas de produção diante da mobilidade do processo
criativo, a composição de figurinos e objetos de cena como desdobramentos de
uma articulação entre corpo, espaço e tempo e a organicidade da montagem.
Assim, buscando apontar essas relações de criação do ator co-criador e a
sua importância para o processo audiovisual contemporâneo, construímos esta
tese, que encontra-se ainda, como seu objeto de estudo, em fluxo e, portanto,
em processo de estruturação e aberta a muitas outras contribuições, que
certamente surgirão.
20
I.
POÉTICAS DO CORPO EM CENA
21
Por uma dramaturgia do corpo
22
Artaud, Eugênio Barba e Luiz Otávio Burnier, no desenvolvimento de
procedimentos para a potencialização corpórea do ator, o que nos conduzirá a
discussão sobre o rompimento com a representação, em busca da presença e
da intensidade, do “Ser” em cena.
Para que, num segundo momento, possamos adentrar questões
pertencentes ao campo da estética e apontar as intersecções entre estes
procedimentos e a prática criativa no trabalho do ator co-criador no audiovisual.
Ações físicas
Se o intelecto pode inibir e as emoções são volúveis, como o ator pode começar
sua exploração da personagem? Pelo que é mais imediatamente disponível ao
ator, respondendo facilmente seus desejos. O corpo. (BENEDETTI: 1989, pg.
67/68)
4 Dentre elas, o Actor Studios, dirigido por Lee Strasberg. Fundado em 1951 e localizado em
Nova Iorque, nos Estados Unidos, “The Actor Studios” tornou-se a grande referência na
formação de atores para cinema .
Sobre o Actor Studios , consultar: HETHMON, Robert H. El Método del Actor Studios :
Conversaciones com Lee Strasberg. Editorial Fundamentos, Colección Arte, 2004.
23
A partir de então, Stanislávski propôs a seus atores, um trabalho de
investigação e experimentação que tinha como ponto de partida o corpo e os
ritmos corpóreos. Para ele, a noção de ação era inseparável das questões do
ritmo, rompendo com a prática de criação pautada nas impressões do ator sobre
o texto e sua personagem; o que, segundo o diretor, poderia conduzi-lo à
superficialidade. “A lógica e coerência das ações físicas, direcionadas, resultam
em uma lógica coerente com a vida psicológica da personagem” (ibidem, p.
68-69)
Segundo a atriz Maria O Knebel5 , “A pedra fundamental do novo método
era de que o ator deveria tornar-se criador independente de seu papel.” 6
(KNEBEL apud DAMOUR, 2008) .
Nunca desconectado do pensamento da época, Stanislávski ao afirmar
que as emoções não são confiáveis, nem os sentimentos, propõe que o universo
afetivo do ator, antes despertado por processos mentais, deveria passar a ser
despertado por processos físicos.
Como adverte a pesquisadora Marta Isaacsson (2004), Stanislávski não
afirmava que a ação gera emoção, mas insistia sobre o fato de reviver,
pressupondo a existência da memória afetiva, “onde reside um fundo de afetos
passíveis de serem despertados no presente, agora através da ação física”.
(2004, p. 12)
Segundo Benedetti, para o diretor russo, com o método das ações físicas,
ele propõe que a emoção torne-se um processo. “Se a seqüência de ações é
suficientemente bem trabalhada, o ator decola.” (BENEDETTI: 2000, p.69).
Essa sequência de ações se daria através da improvisação de ações
físicas e, as mais simples ações levariam o ator às ficções imaginárias, criação
de circunstâncias propostas, ou seja, ao ato criador.
5Maria O Knebel foi atriz de Stanislávski no teatro de Arte de Moscou, em 1948 juntamente com
Kedrov (assistente de Stanislavki) fundou o Stanislavsky Drama Theatre.
6 “La pierre angulaire de la nouvelle méthode était que lʼacteur devait devenir le créateur
indépendant de son rôle” (KNEBEL apud DAMOUR, 2008)
24
Entretanto, é importante compreender que as ações físicas são
entendidas, por Stanislávski e seus sucessores, como expressão de uma
necessidade e não como uma simples atividade corporal.
Segundo Isaacsson (2004), para o diretor, as ações físicas são resultado
de uma lógica do próprio comportamento do ator e de suas próprias
experiências, não havendo espaço para o acaso. Contudo, nunca devemos
esquecer que essas ações são reavivadas com a interferência do presente, pois,
como explicitado por Helena Katz e Christine Greiner em “Teoria do
Corpomídia” (2005), o corpo não é um meio por onde a informação
simplesmente passa ou é abrigada, mas sim o resultado do cruzamento entre as
informações que chegam e as que lá já estão.
O que Nunes (2006) ressalta, é que ao realizar uma ação física, o ator
aciona simultaneamente, circuitos responsáveis pelos processos emocionais e
racionais. O ator alcançaria então, a memória afetiva, não a partir do intelecto,
mas, sim, a partir do corpo.
No livro “Stanislávski & The Actor”(1998), o autor inglês Jean Benedetti,
pontua uma série de exercícios propostos por Stanislávski a seus atores, ao
pesquisar o método das ações físicas, que nos mostra que o diretor não
abandonou todos os procedimentos de criação que propunha aos atores, mas
alterou o ponto de partida - que passa a ser o corpo, e não mais o intelecto.
Este último, que acabou sendo difundido, sobretudo pelos americanos, como
psicológico.
Com a morte de Stanislávski em 1938, poucos foram os escritos deixados
pelo diretor sobre o novo método. Entretanto, o caminho apontado por ele
tornou-se o ponto inicial para o desenvolvimento das pesquisas de outros
diretores, entre eles, Jerzy Grotówski.
25
Laboratório - a ampliação do pensamento sobre o ator criador, fundamentando-o
no desvelamento do ator, ou seja, na doação total deste, num desnudar-se,
desautomatizar-se, abrindo espaço para a espontaneidade e para a fluidez
criativa.
Grotówski (1992) também requisitou um ator que pensa com o corpo, ou
melhor, com suas ações. Um pensar-em-ação ou pensar-em-movimento mais
próximo de uma organicidade proveniente do corpo em ação em tempo
presente. (NUNES: 2006, p.23)
Até o fim de sua vida, Grotówski trabalhou sobre o método das ações
físicas, inicialmente propondo o desbloqueio do que ele denominou como
“corpo-memória” e conferindo ao corpo a liberdade de variações de ritmo; Além
disso, pontuou a necessidade da precisão técnica corporal e a partitura física
desenvolvida pelo ator como um sistema sígnico.
As contribuições de Grotówski para a arte do ator são muitas; porém, nos
deteremos em três pontos: os impulsos, que segundo o diretor precedem as
ações físicas, os estímulos e as partituras físicas.
Inicialmente, é necessário entender o que é uma ação física. Segundo
Stanislávski, a ação física não é um simples gesto, movimento ou atividade
corporal. Grotówski explicou isso em uma palestra proferida durante o festival de
teatro de Santo Arcângelo (Itália) em junho de 19887. Segundo o diretor, as
atividades como lavar prato, limpar chão, fumar cachimbo, não são ações
físicas, são atividades, entretanto, podem se tornar ação quando há uma
intenção, uma solidez. Já o gesto é uma ação periférica do corpo, não nasce no
interior do corpo, mas na periferia. As ações, ao contrário, estão radicadas na
coluna vertebral e habitam o corpo. Já o movimento, por si só não é uma ação,
mas cada ação pode ser colocada, em uma forma, em um ritmo. "Cada ação
física, mesmo a mais simples, pode vir a ser uma estrutura, uma partícula de
interpretação perfeitamente estruturada, organizada, ritmada.” (GROTÓWSKI,
1988)
26
Segundo Thomas Richards (1993), para o diretor polonês, as ações
físicas são a porta de entrada para a corrente vivente dos impulsos. Os
impulsos precedem as ações físicas sempre, dizia Grotówski. O impulso requer
uma ação interna e a ação interna exige, eventualmente, a ação externa
(ISAACSSON: 2004).
27
construção de uma partitura de ações a partir de suas lembranças da infância.
Somente após a construção desta partitura, e já munido de tamanha
organicidade, por dominar esta partitura completamente, é que Grotówski
trouxe-lhe algumas questões da personagem.
28
bem como na improvisação no set de filmagens. Pois, a criação audiovisual
contemporânea, sobretudo a brasileira, ao propor como parte do processo
criativo, um laboratório de criação com os atores, que tem como princípio
norteador o ator como co-criador da obra, busca, ainda que de forma intuitiva e
investigativa, base para o desenvolvimento das dramaturgias do corpo no
audiovisual.
Corpo e intensidade
afeto como emoções cotidianas, corriqueiras, mas sim como uma qualidade de experiência,
uma capacidade que o teatro tem de afetar, contagiar de forma vital, aos que dele participam.
29
Baseando-se na cabala e na acupuntura chinesa para os apontamentos
da ação da respiração sobre o corpo, Artaud diz:
Ainda que uma das críticas mais comuns ao trabalho do diretor francês,
seja a falta de proposições claras e metódicas, é extremamente precisa a
relação apontada por Artaud entre ação-respiração e rigor-espontaneidade, na
arte atoral. Segundo o teórico Jean-Jacques Roubine (1998), ao propor uma
prática sobre a relação ação-respiração, Artaud criou bases para um trabalho,
que “...permita o ator dominar, condensar e exteriorizar a energia difusa de seus
estados afetivos elementares”.
Empregando o termo esforço, o diretor francês relaciona a respiração e o
esforço corpóreo, como a base do ator para potencialização deste corpo e o
alcanço das diferentes qualidades de sentimento.
30
conhecimento de que tudo é dirigido, objetivado, e que este “conhecimento”,
traria consigo as energias despertadas.
Toda emoção tem bases orgânicas. É cultivando sua emoção em seu corpo que
o ator carrega sua densidade voltaica (...) conhecer as localizações do corpo, é
portanto, refazer a cadeia mágica. (ARTAUD: 1999, p. 160)
Esta energia corpórea, que torna o trabalho do ator vivo, pulsante, capaz
de afetar o espectador, como proposto pelo diretor francês, ao longo do tempo,
continuou sendo pesquisada por diversos diretores e foi uma forte referência
para o teatro energético, proposto pelo filósofo francês Jean-François Lyotard
(1973), “um teatro para além do drama, um teatro de forças, afetos, presença”.
(LEHMANN: 2007, p. 58), que é bastante revisitado na contemporaneidade.
Sobre o conceito de energia no trabalho do ator, o diretor Eugênio Barba
diz em seus estudos sobre as diversas técnicas de representação no Oriente,
publicado no livro A Arte Secreta do Ator - Dicionário de Antropologia Teatral
(1991), que toda tradição teatral possui uma maneira própria de dizer se o ator
funciona ou não, e esse “funcionamento” tem muitos nomes, no ocidente os
mais comuns são: “energia, vida, ou simplesmente a presença do ator.”
Para adquirir esta força, esta vida, que é uma qualidade intangível, indescritível
e incomensurável, as várias formas teatrais codificadas usam procedimentos
muito particulares, um treinamento e exercícios bem precisos. Esses
procedimentos são projetados para destruir as posições inertes do corpo do ator,
a fim de alterar o equilíbrio normal e eliminar a dinâmica dos movimentos
cotidianos. (BARBA e SAVARESE: 1991, p. 74)
31
Um dos fatos mais importantes para a arte do ator é a capacidade de ele
dinamizar energias interiores que normalmente se encontram em estado
potencial no seu interior (...) A conexão ação física-energia potencial do ator é
fundamental. É o que vai dar vida às ações físicas, tranformando-as em ações
vivas, e a técnica em técnica-em-vida. (BURNIER: 2001, p. 54)
32
Essa relação do “Ser” ao invés do interpretar é elucidada pelo teatro
japonês, sobretudo pela dança Butô, na qual a individualidade de cada ator ou
dançarino é a base para o encontro de técnicas próprias e particulares.
É importante a compreensão que o “Ser” a que se refere Burnier, bem
como será constantemente abordado neste estudo, não é o ser psicologizante,
mas sim a ideia de individualidade, de corporeidade, como no Butô.
Nesse sentido, a Dança Pessoal proposta por Burnier11 , colabora para
refletirmos sobre a ideia de intensidade e presença, bem como com a constante
atualização do fluxo energético, no aqui e agora da ação.
33
Atreladas à fluidez, as partituras físicas desenvolvidas pelo ator, a partir
dos impulsos e dos estímulos, serão sempre renovadas no aqui e agora da ação
e, portanto, geram uma impressão de espontaneidade. Impressão, pois a
espontaneidade no trabalho do ator, é algo construído, fruto da preparação e do
processo criativo no qual o ator está inserido.
No trabalho do ator no cinema, a fluidez, bem como a espontaneidade é
algo recorrente, sobretudo na contemporaneidade, diante das opções estéticas
dos diretores. Como disse Peter Brook, realizar uma ação aparentemente
simples de modo que pareça tão natural, requer toda a competência de um
artista, pois este tem que ir muito além da imitação, para que a vida inventada
seja também uma vida paralela, para que não possa distinguir da realidade em
nível algum.
Recorrente nas artes performáticas e no teatro contemporâneo, para a
compreensão desta ideia da espontaneidade como algo construído, tomaremos
como exemplo a obra 18 happenings em 6 partes, de Allan Kaprow, apresentada
em 1959 na Reuben Gallery em Nova Iorque. Uma obra que marca o início do
happening como forma artística.
Segundo Jorge Glusberg (2009), os seis performers executam ações
simples, episódios da vida cotidiana como espremer laranjas, ler textos, produzir
filmes, sons, ruídos e pinturas. No entanto, “o caráter de espontaneidade
implícito nesta nova forma, 18 happenings foi ensaiado durante duas semanas
antes da estreia” (2009, p. 33), e, além disso, os performers seguem um roteiro
minucioso com marcação de tempo e movimento.
A espontaneidade traz consigo a singeleza e o frescor de algo que
acontece no aqui e agora da ação, tornando-se, por um lado, uma característica
estética, mas por outro um procedimento, gerando a necessidade da preparação
do ator e da inserção de um laboratório de criação.
Essa espontaneidade construída, certamente pode ser usada com a
finalidade de produzir um “efeito de verossimilhança” (BARBA: 2009), que dê a
ilusão de ação cotidiana. Entretanto, conforme explicitado por Eugênio Barba
referindo-se ao teatro, mas que podemos aplicar ao audiovisual, qualquer que
34
seja a estética adotada na construção de uma obra cênica, deve existir no
trabalho do ator uma relação entre as partituras das ações físicas e os impulsos
internos, os chamados, por Barba, de “pontos de apoio”. Ainda sobre a relação
de realismo e naturalismo, o diretor diz não existir ações naturais ou não
naturais, mas apenas inúteis ou necessárias. “A ação necessária é aquela que
compromete o corpo todo, que muda perceptivelmente a sua tonicidade, que
implica um susto de energia, mesmo na imobilidade” (BARBA: 2009, p.184).
Atuação e presença
35
performativa na produção artística ocidental. Intitulada por Lichte como
“performative turn”, ou seja, virada performativa, esta tendência permeia todas
as formas de expressão artística.
Contudo, se a década de 60 foi marcada pelo experimentalismo, pelas
rupturas com a estética moderna vigente, foi na década de 70 com experiências
mais conceituais e sofisticadas que a Performance Art pontuou suas marcas
estéticas.
Na música, a introdução da aleatoriedade, dos ruídos e do silêncio de
Stockhausen e Jonh Cage. Na literatura, o fluxo de James Joyce. Nas artes
plásticas, assemblages e environments de Duchamp, Kaprow, Beuys. Na dança,
Isadora Duncam e Merce Cunnigham, inseriram em seus repertórios
movimentos cotidianos, o que foi um passo para a ruptura com a rigidez
coreográfica e, mais adiante, tornou-se a fundamentação da dança
contemporânea realizada por coreógrafos como Pina Baush e Willian Forsythe.
Uma dança que busca não mais bailarinos que decorem suas
coreografias e marcações, mas sim, intérpretes-criadores que propõem suas
trajetórias coreográficas segundo André Lepecki: aprendendo a escutar, a olhar
e a transpor o real para a sala de ensaio.
Ele deve saber como reescrever este real a fim de fornecer ao coreógrafo, não
mais uma matéria primeira, mas já um ʻarranjo artificialʼ. A matéria para a
composição já está composta. A tarefa do coreógrafo consiste então em
extrapolar esta matéria e encontrar uma lógica que lhe sirva melhor, sem deixar
de preservar a pureza de sua essência. (LEPECKI apud DANTAS: 2005, p.37)
36
É importante ressaltar, como bem apontado por Renato Cohen (2007),
que na performance vão conviver espetáculos de grande espontaneidade,
criados praticamente ao vivo, mas também aqueles altamente formalizados, que
seguem um roteiro estabelecido, são ensaiados e preparados, mas que trazem
como marca a espontaneidade e a atuação.
Ao transitar, do ponto de vista estético, pela tênue linha da
espontaneidade, a performance foi responsável por abrir caminho para o
improviso e para o acaso na criação cênica.
Na produção audiovisual, a discussão acerca das relações com a
performance se estabeleceu, inicialmente, com a vídeoarte e o cinema
experimental dos 60 e 70. Na atualidade, quem ganha destaque é a New Media
Art, sobretudo por ser uma cena de simultaneidades, e abrir um amplo campo de
diálogo entre as artes cênicas, visuais, música e a tecnologia.
Entretanto, a relação com a espontaneidade e a busca pela atuação
proposta pela performance, no audiovisual, é marca fundante dos filmes de
Godard.
Jean Luc-Godard, conhecido pela sua não-direção de atores, buscava
trabalhar diretamente com a singularidade do ator e a liberdade de criação
deste, como ponto de partida para a construção de suas obras. É bastante
conhecida a frase de Godard, em que o diretor francês diz que: a melhor
preparação para o ator é andar cinco quilômetros de bicicleta para chegar ao set
de filmagens.
Frase que é empregada na prática, segundo a atriz Nathalie Baye. Em
uma entrevista, durante a Semana de Cinema de Paris, em 2008, a atriz - ao
falar sobre sua relação com Godard - faz uma comparação com o modo como
Truffaut tratava seus atores, com toda atenção. Disse que, para realizar o filme
Sauve qui peut (la vie) de 1979, dirigido por Godard, ele a acompanhou em sua
casa durante uma semana sem dizer nenhuma palavra sobre o filme, e que
antes da filmagem, ele a deixou no hotel numa pequena cidade no interior da
Suíça por uma semana, sozinha. Quando ela já estava quase desistindo,
recebeu uma ligação de Godard, pedindo-lhe que no dia seguinte acordasse
37
pela manhã, não se maquiasse, pegasse a bicicleta e fosse encontrá-lo. “Assim
é trabalhar com Godard!”, afirma a atriz.
No artigo intitulado “La non-direction dʼacteur selon Godard” (“A não-
direção de ator segundo Godard” in BINH: 2006), o diretor e crítico francês Alain
Bergala, diz que Godard partilha com Rossellini e Antonioni “a recusa, para não
dizer o horror, da interpretação”. Para esses cineastas o ator não deve
compreender, ele deve ser.
Uma das premissas dos cineastas da Nouvelle Vague era romper com a
maneira que atores e diretores trabalhavam, reinventando os corpos, para que
esses pudessem ser bons condutores de ritmo, de gesto e de ocupação do
espaço.
Em oposição à mise-en-scène, Godard propunha a liberdade de criação
para seus atores, estabelecendo um jogo entre ator e diretor, no qual a
espontaneidade e a improvisação eram fundamentais, assim como a mobilidade
da câmera em seguir os atores, e não mais os atores atuarem para a câmera.
O diretor diz ter aprendido com Bresson e Rossellini estratégias para que
o ator não ensaie sua personagem, “incorporando” um outro e não ele mesmo.
Primeiro, consiste em não dar o roteiro aos atores, mesmo que ele exista.
Segundo, se recusa a dar explicações para o ator sobre o personagem que ele
deve interpretar. “Godard sempre respondeu aos atores que lhe perguntavam
sobre as relações ou perfil das personagens que interpretariam no filme: ʻNós
saberemos quando o filme terminar, quem é este personagemʼ. (BERGALA:
2006, p. 69)
Na década de 60, o diretor praticou o “méthode de lʼoreillette”, soprando
nas orelhas dos atores o texto que o próprio ator tinha criado durante as
improvisações, mais tarde passa a trabalhar com a entrega do texto minutos
antes da filmagem, para que o ator não tivesse tempo de criar uma personagem.
Os procedimentos adotados por Godard para o trabalho com a atriz Nathalie
Baye, pontuam algumas relações estabelecidas neste estudo, pois o trabalho de
Godard com seus atores não aborda somente a conhecida improvisação no ato
das filmagens - como praticada por muitos diretores, entre eles Glauber Rocha -,
38
tampouco trabalhar com atores não profissionais; mas sim, propõe uma criação
diretamente em cena, num jogo entre ator, diretor e câmera, trazendo como
resultado estético a espontaneidade, a fluidez e a ideia de tempo presente.
Para isso Godard lança mão de um método específico de treinamento de
seus atores. No caso de Nathalie Baye para o filme Sauve qui peut (la vie), o
convívio em seu dia-a-dia para conhecê-la com mais profundidade, e uma
semana de solidão profunda, fazendo com que a atriz se aproximasse do ritmo
idealizado pelo diretor para o filme, do silêncio e das emoções necessárias à sua
personagem e às cenas.
Corporeidade e naturalismo
39
trabalha-se com as partes da cada atuante. Elas “afloram” nos processos de
laboratório” (idem, p.106)
Dessa maneira, a performance trabalha como a ideia da individualidade
do ator-performer ou atuante. Como vimos na Dança pessoal, proposta por
Burnier, essa ideia de individualidade, do “ser” e não interpretar, está também
presente no teatro, entretanto, este pensamento se dá a partir do momento que
o ponto de partida da criação teatral se torna o corpo. Ou seja, o trabalho
começa a partir do físico, dissociando o corpo da ideia de algo meramente
emocional ou sentimental e dando ao “Ser” o sentido de estar presente, de
presença, fazendo com que a individualidade do ator torne-se parte da criação.
É deste ponto de vista, que compreendemos quando Renato Cohen diz que o
trabalho do performer é muito mais Artaudiano que Stanislavskiano.
Na linha de um teatro que busca no corpo do ator e na sua
individualidade o material expressivo, comunicacional, para o desenvolvimento
da obra, surge a denominação Teatro físico. Com forte relação com a mímica,
com a dança, com o circo e com pensadores como Jacques Lecoq, Etienne
Decroux, Philippe Gaulier, Monika Pagneux, o Teatro Físico 12, segundo a
pesquisadora Lúcia Romano (2008), tem como ponto germinal a junção entre
teatralidade e corporeidade, o que o aproxima também das propostas de
Eugênio Barba, Grotówski e Burnier.
12 Segundo Romano (2008, p.16) “O termo Physical Theatre tornou-se conhecido nas artes
cênicas nas três últimas décadas do século xx, caracterizando uma nova tendência teatral.
Acredita-se que tenha sido cunhado primeiro na Inglaterra, vindo a definir uma gama bastante
diversa de criações que transitam numa área de cruzamento entre a Dança, o Teatro, a Mímica
e o Circo”.
40
Ao estabelecer uma relação entre o Teatro Físico e a Performance,
Romano diz que, “o corpo produz a obra que produz o corpo” (2008, p.47). É
uma relação cíclica. Na construção dessa corporeidade a técnica materializa o
impulso criador, “estabelecendo o fluxo comunicativo entre a pessoa do ator e
seu fazer no e através do corpo” (idem, p.180).
Ao discutirmos sobre a relação de criação a partir do corpo, dois termos
aparecerão com frequência: fisicidade e corporeidade. Para o entendimento
destes, recorreremos aos escritos de Burnier (2001, p. 55). Para o diretor a
corporeidade é a maneira como as energias potenciais do corpo se corporificam,
é a transformação destas energias em músculo, que originarão as ações físicas.
Assim, a corporeidade antecede a fisicidade “Como corporeidade entendo a
maneira como o corpo age e faz, como ele intervém no espaço e no tempo, o
seu dinamoritmo”. Já a fisicidade, “é o aspecto puramente físico e mecânico da
ação física (...) a fisicidade da ação é para nós a forma dada ao corpo”.
No entanto, ao falarmos em Teatro Físico, tão logo surge a imagem de um
teatro com ações fortemente codificadas, de um corpo “extra-cotidiano”13. Mas,
neste teatro vão conviver, assim como na performance, uma corporeidade
teatral, no sentido, de uma corporeidade codificada, “artificial” e uma
corporeidade próxima ao corpo cotidiano, as ações “naturalistas”.
Segundo o diretor Robert McCrea (in ROMANO: 2008), o resultado de
uma obra do Teatro Físico pode ser totalmente naturalista, pois o que interessa é
o ponto de partida do processo de criação, que usa o corpo dos atores um a
um. Assim, podemos falar em “naturalismo físico” e em “veracidade”, no entanto,
um naturalismo que é de outra ordem de um corpo cotidiano, é um naturalismo
cênico, como podemos acompanhar em alguns trabalhos do grupo inglês DV8
Physical Theatre ou no trabalho do diretor canadense Robert Lepage, por
exemplo.
41
Esta aproximação entre Performance, Teatro Fìsico e o corpo no
audiovisual, nos auxiliará na reflexão acerca do ator co-criador. Pois, seguindo
uma atuação que pode beirar ao naturalismo, o trabalho do ator co-criador na
cena audiovisual, ao partir de um processo de investigação que emerge do
corpo, busca por esta corporeidade e pela veracidade em cena. Neste processo
todos são criadores, e o ato criativo se dá a partir do encontro das
individualidades, do jogo estabelecido entre eles. É também o jogo, no momento
das filmagens, que conduz esses atores co-criadores a levar para a cena o
frescor da improvisação, gerando uma estética da espontaneidade, que, como
veremos adiante, está presente em grande parte da produção audiovisual
brasileira contemporânea.
42
II
O ATOR CO-CRIADOR
43
Ator e co-criação
44
reordenando-a a partir da relação com o outro e com o universo da obra, num
fluxo contínuo entre a pessoa ator e seu fazer no e através do corpo.
O ator co-criador atua em cena, privilegiando o ato performance, que
como exposto por Paul Zumthor (2000) terá sempre a ideia de presença de um
corpo.
A ideia de presença, deste corpo potencializado, pleno, pronto para lidar
com os acasos das filmagens, não nos distancia de um trabalho fundamentado
no desenvolvimento de partituras físicas, muito pelo contrário, pois estas
servirão, conforme dito anteriormente, para despertar a energia corpórea,
reavivar os impulsos internos, colaborando também como um procedimento para
lidar com a fragmentação das filmagens, conforme abordaremos adiante.
Podemos dividir, então, o trabalho do ator co-criador no audiovisual em
duas partes: na criação laboratorial e nas filmagens.
Na inserção do ator co-criador no desenvolvimento da obra audiovisual, o
espaço do laboratório torna-se fundamental. É o locus criador, é onde a obra
germina.
Fruto de um processo de investigação, pautado na incerteza (MORIN) e
aberto aos “acasos e erros construtores” (SALLES: 2006), o laboratório é
fundamentado em duas ações que poderão acontecer simultaneamente: a
preparação ou treinamento do ator e a improvisação das cenas.
Treinamento no sentido da preparação psicofísica do ator, ou seja,
trabalhos de voz, dança, máscara, palestras, leituras, ou outros necessários
diante da singularidade da obra a ser desenvolvida, que assim como na
performance contribuem para que o ator desenvolva um vocabulário próprio,
para que as partes de cada ator aflorem. A partir dessas partes, ou seja, dessa
individualidade, a corporeidade também é desenvolvida, e, com ela, pequenas
ações que comporão as partituras de cada ator. Essas ações aos poucos vão
crescendo e sendo contaminadas por outras, trazidas por outros corpos. São
células, que agem num processo de retroalimentação. E é a partir dessa troca,
do jogo estabelecido no ato improvisacional, que a obra começa a ganhar
possibilidades de encenação.
45
Ao acompanhar, com olhos atentos, o treinamento e as improvisações
dos atores, os diretores e preparadores lançam estímulos, gerando pouco a
pouco os desenhos das cenas. Como rascunhos que ganham mais força, mais
nitidez e começam a se articular.
Neste processo, temos então, duas partituras, a do ator e a do diretor. A
partitura do ator é incorporada, no sentido de embodied, ou seja, de
compreender no gesto e na ação da experiência humana, as possibilidades de
qualidade daquilo que foi vivido, colocando o sujeito como epicentro do
conhecimento e da cognição, da experiência e da ação (GREINER: 2005, p.35),
já a partitura do diretor é anotada, desenhada ou simplesmente registrada por
um olhar “fotográfico”.
Assim, as improvisações, acompanhadas pelos olhos atentos de
diretores, preparadores e (algumas vezes) de equipe técnica, são como molas
propulsoras da criação, impulsionam a criação atoral, alimentando a
dramaturgia, propondo possibilidades de encenação, de sons, música, objetos
de cena, figurino etc.
Munidos de suas partituras, sejam pertencentes ao corpo ou rascunhadas
em um papel, atores, diretores e equipe seguem para a segunda etapa, as
filmagens. Em busca desta estética da espontaneidade, o jogo, entre os atores
co-criadores é que conduz a transposição do frescor das improvisações para a
cena. Neste palco, mediado pelo olho da câmera, os atores atuam, performam.
O encontro com o aqui e o agora, interfere, propõe, modifica as partituras
desenvolvidas nos laboratórios, mas como diz Grotówski espontaneidade e
disciplina coexistem, e, portanto, essas modificações colaboram com a atuação,
estabelecendo novamente o jogo e a improvisação. Entretanto, neste momento
já seguindo um desenho rascunhado anteriormente.
Diante de uma estética que rompe com a representação, propondo a
“presentação”, ou seja, o estar presente, com maior ou menor compromisso com
a verossimilhança, “o ator oferece sua presença, expõe diretamente seu corpo
em ação, sem utilizar-se somente da personagem para estabelecer mediações
(...) e se aproxima de uma “ iconização crescente” (NUNES:2006, p. 19).
46
Numa alusão ao “teatro vivo” de Antonin Artaud, podemos falar em uma
cena audiovisual viva, pulsante, orgânica, fluida, desenvolvida a partir do e no
jogo entre ator e câmera, criando possibilidades de enquadramento e de
movimentação no ato da filmagem.
Ao atuar o ator co-criador rompe com a interpretação ou representação de
uma personagem já instituída por um roteiro, para lidar com o fluxo das
experiências humanas, propondo possibilidades para sua personagem e para a
obra como um todo. Entretanto, se a presença, a improvisação e o jogo
permeiam a atuação, a plenitude de um corpo em cena, como algo construído, é
a base preparatória para este ator se lançar no processo de criação.
Como característica comum, os processos de criação que contam com a
inserção do ator co-criador possuem bases de criação colaborativas, propõem
uma investigação laboratorial e se fundamentam na improvisação como
elemento propulsor da criação.
Procedimentos de criação
47
O treinamento, segundo Luis Octávio Burnier (2001), é composto de
exercícios que trabalham os componentes da arte de atuar, ações físicas,
vocais, dinamização de energia, que buscam acordar o fluxo de vida do ator;
gerando possibilidades de viver, de ser radiante, de ser pessoal (GROTÓWSKI:
2007, p. 127).
Assim, o treinamento ou preparação do ator, no sentido de formação, está
relacionado a um processo desenvolvido para o conhecimento ou
conscientização, como dizia Antonin Artaud, para atingir a “musculatura afetiva”
ou as formas fixadas que devem reencontrar os impulsos pessoais e serem
transformadas (GROTÓWSKI: 1997). Reencontrar esses “impulsos” ou acessar
a “musculatura afetiva” exige um árduo trabalho.
Seguindo diferentes sistemas, o treinamento, em suma, parte de uma
preparação física em busca desse fluxo vital, imprescindível para a criação
atoral.
Já os laboratórios de criação, constituem-se como um espaço de
investigação e experimentação, com um objetivo preestabelecido, o
desenvolvimento de uma obra. Nestes laboratórios, a preparação do ator
configura-se como um dispositivo para estimular a emergência de uma ação
criadora. Assim, se em Capitu a proposta do diretor Luiz Fernando Carvalho era
desenvolver uma obra fundamentada esteticamente na dança contemporânea,
seria necessário preparar os atores com um bailarino ou coreógrafo
contemporâneo. Para tal trabalho foi convidada a coreógrafa e bailarina Denise
Stutz, que desenvolve uma pesquisa sobre a improvisação na dança. Já se a
base da criação é a máscara, como em Pedra do Reino, é necessário um
trabalho de criação com máscaras, e então, entra em cena a diretora Tiche
Vianna, do grupo Barracão Teatro, que se dedica à pesquisa da linguagem da
máscara, do palhaço e da commédia dellʼarte.
Nestes casos, a preparação ou o treinamento do ator são direcionados
para a criação; procedimentos que contribuem para o processo criativo do ator,
da direção e de toda equipe técnica e artística.
48
Seguindo este pensamento é que preferimos nomear a etapa, comumente
conhecida na atual produção cinematográfica brasileira como preparação de
atores, de “laboratório de criação”. Pois, diretores, preparadores e atores estão
neste espaço-tempo dos laboratórios imbricados de forma vital para o
desenvolvimento da obra, que obviamente colabora com a formação do ator,
mas não é o foco central.
Nos laboratórios de criação o foco é a obra. A criação ou o aprimoramento
do roteiro, o desenvolvimento das personagens e das relações, e a estruturação
da encenação.
Assim, ao trabalharmos com a concepção de liberdade de criação do ator,
do jogo entre câmera e ator nas filmagens, lidamos com algo construído,
pautado esteticamente na co-criação, na espontaneidade, mas fruto de um
trabalho de criação denso e rigoroso, que, do ponto de vista da criação do ator,
poderá contar com o auxílio de um ou mais preparadores, que contribuirão
tecnicamente ou com estímulos direcionadores.
Como na criação cênica, o laboratório é este espaço de experiência
investigativa. E, ao nosso modo de ver, essa é a grande diferença entre a
criação cinematográfica que se desenrola sobre o texto dramático (roteiro), e a
criação que se dá de forma laboratorial, na qual a obra pode emergir de uma
ideia, um sentimento, uma imagem, um livro e mesmo de um roteiro.
Nos processos de criação que buscam pela experiência investigativa,
trazendo o ator no epicentro, o método de leitura, compreensão e decorar de
texto, ensaio e filmagem, não são suficientes para a criação cinematográfica.
Nesses laboratórios, a preparação do ator torna-se um procedimento que, aliado
a outros, compõe o trabalho laboratorial.
Improvisação
49
pessoais do ator. Ações e emoções surgem na mesma direção do texto, mas
com a espontaneidade do momento da criação. “O caráter espontâneo da
manifestação do momento, desvinculado de ideias rigidamente prefixadas causa
à atuação verdadeiros saltos de criação e composição”. (GUINSBURG: 2002, p.
241)
Em busca desta espontaneidade, dos saltos da criação e da composição
da encenação, a prática do improviso, com toda sua carga de instabilidade e
incerteza, tornou-se a grande mola propulsora de estruturação da obra fílmica.
Alimentados por materiais diversos, preparadores, atores e direção
buscam na improvisação dos atores as possibilidades de desenhos de
encenação. De forma colaborativa, improvisação após improvisação, as relações
entre personagens são construídas, as ações surgem e a obra como um todo
emerge.
50
A prática improvisacional – do desenho à cena
51
São processos singulares. Cada diretor estabelece seus procedimentos
tanto para estimular os atores como para conduzir as improvisações da sala de
ensaio para o set de filmagens. Alguns optam por um preparador que conduza o
ator durante as improvisações nos laboratórios, outros preferem conduzir
pessoalmente a improvisação, estabelecendo um jogo entre ator e diretor. Neste
caso, alguns diretores convidam, ou não, preparadores para um trabalho prévio
com os atores.
A singularidade dos processos de criação é um fator extremamente
relevante, entretanto, neste momento nos parece importante lançar um olhar
abrangente para essas práticas, entendendo-as como um sistema vivo, orgânico
e auto-organizativo. Como diz Steve Jonhson (2003, p.14-15), referindo-se às
questões inerentes à biologia, são sistemas botton-up e não top-down, são
completos sistemas adaptativos que mostram comportamentos emergentes.
Pois, a emergência para Jonhson é o movimento das regras de nível baixo para
a sofisticação do nível mais alto. Numa prática improvisacional o que se tem é
um sistema complexo, com múltiplos agentes interagindo de forma dinâmica,
seguindo regras estabelecidas.
52
preparador propunha uma interação da atriz com o movimento cotidiano das
ruas, e estabelecia o jogo entre dois atores (Leona Cavalli e Ailton Graça) que se
encontrariam nessas ruas, sem avisá-los do encontro.
53
Com os traços inquietantes da confusão e do inextricável, como diria
Morin, nestes processos a espontaneidade, objetivada pelos diretores e
alcançada pelos atores, estão presentes nas telas, ainda que em algumas
produções elas não fiquem em evidência diante dos procedimentos da práxis
cinematográfica.
Criação Colaborativa
54
Calcado na incerteza e na “desordem”14, o que temos em um processo
de criação colaborativo é o estabelecimento de um organismo que possui um
projeto poético comum e que cria sua própria organização, de forma singular.
Nesse organismo há os responsáveis por determinadas áreas. No caso de uma
produção audiovisual temos, o diretor, o figurinista, o diretor de fotografia, o
roteirista/dramaturgo, o ator, entretanto, todas as áreas sofrem interferências das
demais gerando irregularidades e instabilidades, modificando e sendo
modificadas a todo momento, até mesmo no set de filmagens.
Assim, num trabalho calcado na criação colaborativa a organização se dá
de forma complexa e a retroalimentação do processo se estende às diversas
áreas da produção audiovisual, pois, a criação é delegada, é conjunta. Não há
autor, há criadores.
A escolha por esta proposta de processo criativo, na produção
audiovisual, estabelece uma relação de investigação estética dos diretores com
suas obras. Pois, ao adotar a criação colaborativa os diretores rompem com a
técnica e com o modo “clássico” da produção cinematográfica, propondo um
período laboratorial de experimentação, no qual o treinamento e a improvisação
dos atores co-criadores tornam-se a base de construção da obra. Neste
processo, vários são os deslocamentos dos modelos hegemônicos de produção
cinematográfica. O primeiro deles é o roteiro.
Na criação colaborativa o roteiro é construído de forma conjunta, a partir
da improvisação dos atores. Ainda que estimulados por um roteiro inicial, por um
livro ou por qualquer outro tipo de obra dramatúrgica, o roteiro é construído em
cena, ao ser experimentado, processado, reorganizado a partir da improvisação
e do jogo dos atores. Acompanhadas pela direção e pelo roteirista/dramaturgo,
as cenas são modificadas a partir da interferência e das proposições que
surgem durante as improvisações.
55
Como exemplo, podemos apontar o trabalho de Luis Alberto de Abreu na
criação do roteiro da minissérie Pedra do Reino, com direção de Luiz Fernando
Carvalho. Abreu, que possui longa carreira em teatro, sendo responsável pela
criação dos textos dos espetáculos da Fraternal Companhia de Artes e Malas-
Artes de São Paulo, da qual é o dramaturgo residente, bem como para o Grupo
Teatro da Vertigem, Galpão, entre outros; é conhecido por trabalhar de forma
colaborativa com os grupos com os quais desenvolve parceria.
Para a elaboração da dramaturgia de Pedra do Reino15, o dramaturgo
juntamente com o roteirista Bráulio Tavares e o diretor Luiz Fernando Carvalho,
desenvolveram as primeiras versões do roteiro. Entretanto, numa viagem à
cidade do Recife, capital do Estado de Pernambuco, Carvalho ao assistir uma
manifestação popular de Cavalo Marinho, decidiu trabalhar com a estrutura
cíclica desta manifestação, bem como com a composição de vários personagens
por um mesmo ator, como estrutura narrativa da minissérie. O roteiro, então, foi
todo reformulado e Abreu, foi convidado pelo diretor, a se juntar a equipe que
estava em Taperoá, interior do Estado da Paraíba, onde desenvolviam os
trabalhos laboratoriais de pesquisa, preparação e produção da obra.
Acompanhando os laboratórios com os atores, o roteiro foi sendo tecido
de forma conjunta16 , a partir das improvisações dos atores sobre o texto de
Ariano Suassuna.
Também de forma colaborativa, o diretor e roteirista Roberto Moreira,
reescreveu o roteiro do longa-metragem Contra Todos. Segundo o diretor, todos
os diálogos foram improvisados e o roteiro inicial era testado e modificado
diariamente durante o laboratório com os atores.
Assim também ocorre nos processos criativos do diretor inglês Mike
Leigh, conhecido por seu trabalho de improvisação com os atores para o
desenvolvimento da obra. Para o diretor, é imprescindível não se trabalhar com
15 Obra adaptada do romance homônimo de Ariano Suassuna e exibida pela Rede Globo de
Televisão.
16 Conforme explicitado pelo dramaturgo em entrevista coletiva durante o lançamento na
minissérie nos cinemas em 2008.
56
um roteiro ou script, mas ir criando ações, diálogos e marcações, que estão em
constante movimento.
57
produção. Diante das singularidades que marcam os processos de criação
colaborativos, cada produção estabelecerá seus critérios, diante do projeto
poético estabelecido pelo diretor, entretanto, independente das singularidades
de cada trabalho e obra, lançar mão de um pensamento colaborativo como base
de criação audiovisual, requer o estabelecimento de outros paradigmas de
produção, diferenciados dos modelos de produção hegemônicos do fazer
cinematográfico.
Como diz o diretor Karim Ainouz (2009), as condições são construídas e,
portanto, a improvisação, e a liberdade de criação dos atores são sempre fruto
de uma construção.
Contribuições Estéticas
Estética da Espontaneidade
58
estética que valorize mais a presença do que a representação busca-se uma
ideia de tempo presente, no qual a ação se desenrola no aqui e agora.
Fruto de um processo laboratorial de criação, que visa à emergência da
obra como um sistema botton up, fundamentada na inserção do ator co-criador e
na improvisação, esta estética tem por base a colaboração do ator durante todo
o processo de produção.
Assim, nos parece importante tomarmos isso não como uma estética
realista ou uma busca pela verdade, mas sim como uma estética que prima pela
espontaneidade, pela fluidez no processo criativo, imprimindo-a na obra
entregue ao público.
Deste ponto de vista abrimos um diálogo estreito com os estudos da
Performance, tomando-os como o grande lócus de discussão teórica acerca da
criação audiovisual contemporânea. Pois, Kaprow em 18 hapennings em 6
partes, não buscava por uma estética realista, mas sim pela ideia de
espontaneidade, bem como toda a cena performática, por mais formalizada que
esta seja. Pois, como diz Zumthor (2008) “... algo se criou, atingiu a plenitude,
assim, ultrapassa o curso comum dos acontecimentos”.
59
Seguindo também esta linha tênue da espontaneidade e da extrojeção do
ator, Beto Brant construiu Crime Delicado (2005) propondo que os atores não
representassem uma personagem, mas performassem diante das lentes de
Walter Carvalho. À atriz Lilian Taublib, Brant propôs sua própria superação e
libertação da prótese, num ato performático, bem como a pintura dos quadros
realizada pelo artista plástico Felipe Ehrenberg, que são pinturas realizadas “ao
vivo”, durante as filmagens. No entanto, a performance de Lilian foi elaborada
pela atriz durante os laboratórios de preparação e as pinturas de Ehrenberg, são
continuidade um trabalho já desenvolvido pelo artista e que, portanto, foi
acompanhado pela equipe.
Traço que está também presente no filme O amor segundo B. Schianberg,
lançado pelo diretor, em 2009, no qual a videoartista Marina Previato cria, na
convivência com o ator Gustavo Machado, a obra intitulada O amor segundo
Gala, que comporá o filme.
Produzido inicialmente como uma minissérie exibida pela TV Cultura no
programa Direções III, a obra inspirada no personagem Benjamin Schianberg do
romance Eu receberia as piores noticias dos seus lindos lábios, de Marçal
Aquino, foi produzida com oito câmeras remotas instaladas no interior de um
apartamento, na cidade de São Paulo, onde a videoartista e o ator, conviveram
durante um mês.
Apropriando-se de cenas do espetáculo de teatro Navalha na Carne e do
vídeo resultante do processo de imersão de Mariana e Gustavo, Brant conduz
seus atores neste limiar da performance, ao propor uma cena construída que
traz a espontaneidade, a fluidez e a idéia de tempo presente como elementos
estéticos fundantes da criação.
Ainda como exemplo desta busca estética, podemos citar o filme Lavoura
Arcaica de Luiz Fernando Carvalho. O “Ser”, e não interpretar, como proposto
por Carvalho a seus atores em Lavoura, tomando Artaud como um “método” de
trabalho, já aponta para esta estética.
60
Ao lidar com um trabalho imersivo dos atores e equipe, fundamentando
todas as suas buscas na frase do poeta Jorge de Lima: “Como conhecer as
coisas, senão sendo-as?”, o diretor propõe a seus atores o rompimento com a
interpretação da personagem, em busca de um processo que chamamos de
extrojeção.
Nesse processo de criação, a partir do ator, você precisa que os atores sejam
co-autores do processo, eles não estão ali como papagaios que repetem um
texto, eles não estão ali automatizados por uma técnica, por uma mecânica, por
um modo de produção, não! Eles estão ali como artistas inventando um corpo,
inventando um personagem, num processo que eu poderia chamar de
desaparecimento. (CARVALHO, 2009).
61
suas produções a ruptura com esta formalização, como Contra Todos, Crime
Delicado e O amor segundo B. Schianberg.
62
No entanto, ao nos referirmos à estética da espontaneidade, falamos de
uma impressão de espontaneidade, pois, esta, como já explicitado é fruto de
algo construído, não só na relação ator - câmera e ator - direção, em ensaios ou
no ato da filmagem, mas num trabalho laboratorial que visa uma experiência
investigativa e a emergência da obra, a partir de uma dramaturgia do corpo, que
emerge da ação.
Leveza e Fluidez
63
Segundo o sociólogo Zigmund Bauman, em sua obra Modernidade
Líquida (2001), os fluidos não fixam o espaço, nem prendem o tempo.
Estabelecendo uma comparação entre sólidos e líquidos, com o intuito de
analisar a sociedade contemporânea, Bauman diz, ao introduzir o leitor à sua
obra, que os fluidos não se atêm a qualquer forma e estão sempre prontos para
mudá-la. “Ao descrever os sólidos, podemos ignorar inteiramente o tempo; ao
descrever os fluidos, deixar o tempo de fora seria um grave erro” (2001, p. 8).
Ainda segundo o sociólogo, os fluidos se movem facilmente. Fluem, respingam,
escorrem, transbordam, inundam.
64
colabora para a construção desta estética marcada pela intensidade e pela
sutileza, à medida que estas estão contidas na leveza.
Uma leveza que segundo Denílson Lopes (2007, p. 75) se apresenta
como um destino, uma procura, e não um conceito rigoroso.
65
III
O ATOR CO-CRIADOR E A CENA AUDIOVISUAL BRASILEIRA
66
Em busca do desvelamento e da co-criação
67
Porém, a inserção do ator como co-criador da obra audiovisual é fruto de
um projeto estético proposto pelo diretor, o que implica em outra ética de direção
e criação. Babenco, que também propôs um trabalho laboratorial com os atores
em Brincando nos Campos do Senhor e Carandiru, ao optar por uma direção
clássica, muitas vezes delimita o campo de criação do ator, tomando-o como
intérprete de uma personagem e não como co-criador.
Uma divisão que ainda pode ser vista, com menor intensidade, no filme
Bicho de sete cabeças (2000) da cineasta Laís Bodansky. Diante de um projeto
que envolvia uma temática singular como a loucura, e sendo seu primeiro longa-
68
metragem, a diretora convidou o diretor da companhia teatral Ueinzz18, Sérgio
Penna, para desenvolver um laboratório de criação com os atores que
compuseram o casting dos manicômios, entre eles Rodrigo Santoro, que
protagonizaria o filme.
Baseado no livro O Canto dos Malditos, de Austregésilo Carrano, Bicho
de Sete Cabeças, conta a história de Neto (Rodrigo Santoro), um adolescente
paulistano que é internado pelo pai num manicômio, quando este descobre que
seu filho está fumando maconha.
Segundo Bodansky, uma das características mais marcantes do filme é sua
“estética documental”, no sentido de causar no espectador a sensação de
sempre flagrar um acontecimento cotidiano. “A própria câmera procura mover-se
como quem espia o acontecimento com espontaneidade” (BODANSKY, 2001).
A busca por esta espontaneidade exigia um trabalho atoral aprofundado,
denominado pela diretora e pelo preparador como intimista. Sérgio Penna diz
que, durante a preparação, propôs aos atores que eles fizessem um mergulho
para descobrir a lógica, os rituais expressivos, o vocabulário e a sintaxe originais
do manicômio, buscando na experiência pessoal de cada ator, ecos,
reverberações, solidão, melancolia e desejos, numa identificação densa e
verdadeira.
Calcado em um processo investigativo, fundamentado no binômio ação-
respiração, e num treinamento energético, ações, gestos, olhares e o silêncio de
cada personagem surgiam diante da singularidade de cada ator.
Foi um mês de trabalho onde todos os dias esses atores viviam um grande
mergulho nestas questões mais subjetivas [...] as personagens realmente
nasceram dessas vivências, dessas pessoas, o roteiro estava muito livre, o
próprio personagem do Gero Camilo, o Ceará, não tinha texto verbal nenhum, a
diretora também roteirista não tinha escrito nada, ela tinha uma vaga noção do
que precisava com aquele personagem. (PENNA, 2004)
18A Cia. Teatral Ueinzz, desenvolve o conceito de Teatro do Inconsciente trabalhando com
pacientes psiquiátricos.
69
Bolognesi, construíram, juntamente com os atores, o roteiro de cada
personagem, com as emoções, seus pontos de virada, com as ações que
culminam em emoções e vice-versa.
O resultado deste processo de co-criação, no qual cada personagem
nasceu no seu tempo, no seu espaço e da sua forma, mas num diálogo
constante entre atores, direção e preparação, pode ser visto nas telas,
principalmente nas cenas dos manicômios; pois no núcleo familiar, formado
pelos atores Othon Bastos e Cássia Kiss, nos deparamos com a tradicional
interpretação das personagens, tal como no elenco adulto de Pixote.
Desse ponto de vista, Cidade de Deus (2002) dos diretores Fernando
Meirelles e Kátia Lund, rompe com essa divisão. Em busca de uma estética
realista, os diretores optaram por não trabalhar com atores profissionais e
buscaram nas favelas do Rio de Janeiro o elenco do filme. O único ator
profissional que compôs o elenco foi Matheus Nachtergaele. Entretanto, é
importante ressaltar que Matheus é um ator oriundo do grupo paulistano Teatro
da Vertigem, dirigido por Antônio Araújo. Durante seu percurso junto a este
grupo desenvolveu trabalhos laboratoriais fundamentados na criação
colaborativa, na improvisação e na inserção do ator-criador para a construção de
espetáculos como O Paraíso Perdido (1992) e Livro de Jó (1995), o que o
aproxima da proposta estética e ética dos diretores de Cidade de Deus.
Retratando o crescimento do crime organizado no bairro homônimo no
subúrbio carioca, entre os anos 60 e o início dos anos 80, Cidade de Deus é
baseado em fatos reais e adaptado do romance de Paulo Lins.
Para o desenvolvimento da obra foi realizado um laboratório, com
treinamento dos atores durante oito meses, sendo seis meses com o diretor
teatral da ONG Nós do Morro, Gutti Fraga, e dois meses de trabalho com a
preparadora Fátima Toledo.
Os laboratórios foram acompanhados pelos olhos atentos de Fernando
Meirelles e Kátia Lund, que buscavam nas experiências trazidas pelos atores, os
diálogos, os gestos e as ações que ajudariam a compor o filme. Em nenhum
momento os atores tiveram contato com o roteiro original, entretanto a condução
70
das cenas previstas no roteiro partiu de um trabalho de estímulo dado pela
preparadora e pelo diretor, resultando na criação das personagens e na
alteração do próprio roteiro, conforme previsto pela direção.
Matheus Nachtergaele, sendo o único ator profissional do elenco, não foi
convidado a participar dos laboratórios, e teria acesso ao roteiro original. Ação
rejeitada pelo próprio ator, que propôs à direção seguir a mesma diretriz dos
outros atores, sem ler o roteiro do filme e com isso podendo improvisar e
contribuir para o desenvolvimento da obra.
Cidade de Deus contou com uma direção que propunha todo o tempo a
improvisação dos atores, abrindo espaço para a organização da ação no ato da
criação. Uma proposta que foi levada para o set de filmagens resultando na
improvisação de cenas importantes ao filme, como a cena da reza antes da
invasão do morro, sugerida e conduzida por um dos atores no momento da
filmagem.
71
criação, passou a fazer parte da maioria das produções, desde então, tornando-
se uma marca da criação cinematográfica no Brasil.
Entretanto, são as obras Lavoura Arcaica (2001), de Luiz Fernando
Carvalho, (bem como seu conjunto de obra após o filme) e Contra Todos (2004),
de Roberto Moreira, que aprofundam as relações de co-criação do ator em
busca de uma estética da espontaneidade, na construção da obra audiovisual.
72
Com essa metodologia de trabalho fundamentada na frase do poeta Jorge
de Lima “Como conhecer as coisas, senão sendo-as?”, e de mãos dadas com a
teoria Artaudiana, Carvalho construiu uma obra de extremo rigor técnico, que ao
propor a extrojeção do ator co-criador, buscava pela fluidez das ações, pela
espontaneidade do ator e pela intensidade indiscutível diante de tal presença do
trabalho atoral.
A proposta de processo criativo empregado por Luiz Fernando Carvalho em
Lavoura Arcaica (que se tornou base para todos os seus demais trabalhos), ao
partir da necessidade de um “acontecimento” diante da lente, motivando o
diretor, estabelece um diálogo estreito com as propostas estéticas da
Performance e do Teatro contemporâneo, como abordado anteriormente.
Partindo de uma investigação laboratorial, quase sempre imersiva,
baseando-se na presença e não na representação, traz uma idéia construída de
tempo presente, mas como bem pontuado por Christine Greiner “A informação
nunca existe exclusivamente no presente como algo distinto do passado e do
futuro” (2005, p.115). O ator em contato com o ambiente que o envolve, e
mergulhado em um processo criativo, estabelece inúmeras conexões, formando
uma imensa Rede (SALLES: 2006) que naquele momento em que se apresenta
como um “acontecimento” é capturado pela lente da câmera, para compor o
filme.
Assim, quando o diretor Luiz Fernando Carvalho diz que num processo de
criação audiovisual centrado no ator, há a necessidade de que os atores sejam
“co-autores” do processo, e que esses atores não estejam ali automatizados
pela técnica, mecânica, por um modo de produção, mas sim como artistas
inventando um corpo, uma personagem - num processo que ele denomina como
desaparecimento -, o diretor refere-se à co-criação pautada no desvelamento, na
extrojeção. Um trabalho que parte deste corpo dinâmico e repleto de
experiências, para que nele possa encontrar impulsos que conduzam o ator à
criação da personagem, contribuindo para o desenvolvimento da obra em si.
Contra Todos com direção de Roberto Moreira é outra obra que explora a
co-criação, tomando como princípio criativo a liberdade de criação e a
73
improvisação dos atores. Com o intuito de romper com as marcas de um texto
decorado e em busca da espontaneidade do ator em cena, Moreira convidou o
preparador de elenco Sérgio Penna para desenvolver o laboratório de criação
junto aos atores.
Contra Todos traz no enredo o dia-a-dia de uma família de classe média
baixa da periferia de São Paulo. Violência, mentira e traição são assuntos
corriqueiros para esta família formada por uma adolescente (Soninha), um pai
(Teodoro) que, por trás da fachada de homem religioso, ganha a vida como
matador, e a madrasta (Cláudia).
O roteiro do filme é resultado da tese de doutorado do diretor, defendida na
Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo - USP. No
entanto, o roteiro original sofreu várias modificações durante todo o processo de
realização do filme, muitas delas vindas da contribuição dos atores. Uma
contribuição que foi almejada pelo diretor-roteirista.
A construção das personagens foi feita literalmente na prática, cena após
cena, improvisação após improvisação e os atores contavam apenas com as
provocações, com referências, indicações e pistas para a criação das
personagens e das cenas. “Todos os diálogos, tudo é improvisado” (PENNA:
2004)
Os atores, assim como em Cidade de Deus, não tiveram acesso ao roteiro
durante todo o período laboratorial. Segundo o diretor, no final havia cinco
versões diferentes do filme e uma sexta que foi entregue ao elenco no último dia
de preparação.
“O Penna chegava fazia um aquecimento, um trabalho físico intenso,
instaurava uma situação e os atores improvisavam, a cada improvisação o
roteiro se sustentava”. (MOREIRA: 2009)
Essa metodologia de trabalho pautada na improvisação transcendeu o
laboratório, fazendo parte do dia-a-dia das filmagens. Como diz o próprio
diretor, “os atores já tinham tudo aquilo dentro deles”.
74
Portanto, se Pixote, Bicho de Sete Cabeças e Cidade de Deus são obras
importantes por apontar aos produtores, diretores, teóricos e ao público em
geral, a importância do trabalho do ator como co-criador da obra
cinematográfica, Lavoura Arcaica e Contra Todos, nos lançam em um território
ainda mais profundo da co-criação do ator com o audiovisual aproximando esta
relação cada vez mais de uma estética e uma ética presentes na criação cênica
atual - que, claro, está em diálogo com a arte contemporânea -, apontando
inúmeras possibilidades de conexões entre as artes cênicas e as audiovisuais,
seja a partir da inserção do ator co-criador ou dos modelos de criação.
Preparação de atores
75
audiovisual e das artes cênicas, não é difícil pontuar este déficit na formação de
atores e diretores.
Entretanto, acreditamos que - embora com este déficit, - a produção
audiovisual brasileira contemporânea, já aponta caminhos importantes para o
emprego deste procedimento, ao propor sistemas criativos fundamentados nos
laboratórios de criação e na inserção do ator co-criador, estabelecendo,
conseqüentemente, outro panorama estético.
O preparador
76
A preparação nos laboratórios de criação audiovisual é realizada em dois
momentos distintos19 , mas, que caminham paralelamente no processo de
desenvolvimento da obra. O primeiro refere-se à potencialização corpórea do
ator; já o segundo momento é composto pela criação e construção da
personagem e da obra em si.
Os processos de preparação são singulares. Cada obra possui suas
especificidades e, conseqüentemente, necessidades no treinamento do ator. No
entanto, a base do trabalho desenvolvido pelos preparadores, principalmente,
por Sérgio Penna e Fátima Toledo20, segue uma busca por uma dramaturgia do
corpo, que, como vimos na primeira parte deste estudo, baseia-se na criação no
corpo e através dele.
Lançando estímulos, conduzindo o ator a superar seus próprios limites,
num desvelar-se, o preparador é, como dizia Grotówski referindo-se ao
encenador, um guia que acompanha o ator nessa descida ao profundo de si
mesmo, ajudando-o a resolver as dificuldades que ele possa encontrar, a vencer
as inibições nos quais esbarra (ROUBINE:1998, p.192), conduzindo-o assim à
fluidez criativa e a espontaneidade, ou como dito por Tadeuz Kantor:
O ator molda tão pouco seu papel quanto o cria ou o imita; permanece antes de
tudo ele mesmo – um ator rico dessa esfera fascinante que são as suas próprias
predisposições e predestinações. (...) ele se “empenha” a fundo, de uma
maneira inteiramente natural, no seu papel, para abandoná-lo desde que julgue
isso necessário, e o dissolver na matéria cênica sempre presente e fluindo
livremente. A esfera da liberdade do ator deve ser profundamente humana.
(KANTOR: 2008, p. XXXVII)
19 Segundo Antônio Januzelli o trabalho do ator segue duas fases práticas distintas: A primeira
circunscreve-se à preparação do seu instrumental cênico, englobando fundamentalmente corpo,
voz e emoção; e a segunda refere-se ao ato criativo propriamente dito: a criação de um papel
específico em uma encenação. (Antônio Januzelli em “A Aprendizagem do ator”, editora Ática,
1986, São Paulo. pg 6)
20 Para a realização deste estudo nos detivemos na análise do trabalho dos dois preparadores.
77
variáveis abertas, gerando possibilidades, “rascunhos” de cenas e de
personagens.
Segundo Renato Cohen (1998, p. 18), “o produto, na via do work in
process, é inteiramente dependente do processo, sendo permeado pelo risco,
pelas alternâncias dos criadores e atuantes e, sobretudo, pelas vicissitudes do
percurso”.
Diante da instabilidade dos percursos, os preparadores lançam mão de
procedimentos técnicos para auxiliá-los na condução do elenco. Como veremos
a seguir, no trabalho desenvolvido por Fátima Toledo e Sérgio Penna.
Mas, antes de adentrarmos as especificidades do trabalho de Penna e
Toledo, é importante ressaltar a diferença entre a proposta empregada pelos
preparadores e pelos coaches21 . O coach dedica-se exclusivamente à
preparação de um ator, auxiliando na pesquisa para a composição de
determinada personagem, ensaia juntamente com o ator, “passa” texto, enfim,
tem como objetivo preparar o ator para interpretar, da melhor maneira possível,
determinada personagem.
Embora esta ação surja no cinema americano, atualmente a televisão
brasileira tem recorrido aos coaches, para auxiliar a preparação de alguns
atores, como foi o caso da atriz Larissa Maciel na interpretação da personagem
Maysa, para a minissérie Maysa - quando fala o coração (2009), produzida e
exibida pela Rede Globo de televisão, com direção de Jayme Monjardim. Larissa
contou com o acompanhamento da coach Patrícia Carvalho Oliveira,
responsável também pela preparação de Alinne Morais e Matheus Solano na
novela Viver a Vida (2009), exibida pela mesma emissora.
Entretanto, os coaches dedicam-se exclusivamente ao trabalho de um ator,
para uma determinada personagem. Já no cinema brasileiro e em minisséries
como Hoje é dia de Maria, Pedra do Reino e Capitu, também exibidas pela Rede
Globo, com direção de Luiz Fernando Carvalho, os preparadores de elenco
78
possuem responsabilidade de trabalhar com todo o elenco, conduzindo-os à co-
criação, para que assim possam contribuir com o desenvolvimento da obra.
São trabalhos bastante diferenciados, para resultados tão diferentes
quanto.
Sérgio Penna22
[...] é como se ele fosse lá no fundo para reescrever, ou para se colocar na pele
da personagem de uma maneira que não é simplesmente alguém de fora, ou
79
seja, é alguém de dentro que resolve contar realmente aquela história e viver
realmente aquelas emoções. Este sentido autoral, este sentido de você escrever
o texto junto com o roteirista, você quase dirigir o filme junto com o diretor, você
está tão por dentro da história, e de tudo, que você começa a sugerir detalhes do
figurino, mesmo que não fique; mas você se apodera de tal maneira, conhece
tão a fundo a sua personagem que consegue discutir com o roteirista, com o
diretor, com o diretor de fotografia, com o diretor de arte”. (PENNA: 2004)
Com este corpo disponível, pulsante, com uma vontade interna que conduz
a ação do ator, o preparador passa a estabelecer o jogo entre atores,
alimentando-os com motes poéticos e rítmicos. Uma vez estabelecida esta
relação, o preparador instaura uma circunstância dada pelo roteiro. A
80
improvisação a partir daí gera inúmeras possibilidades dramáticas para uma
mesma cena.
Sérgio Penna acredita em uma preparação fundamentada num mergulho
vertical do ator, em um trabalho solitário e subjetivo, como descrito pelo ator
Gero Camilo.
No primeiro dia de encontro com o elenco, disseram-me para não ler o roteiro.
Que não era preciso, pra que já de cara eu não me preocupasse em construir
um personagem, pra não estereotipá-lo. Ele viria com o processo. [...] Sabia-se
apenas que era leve, ágil, feliz e perturbado como um beija-flor que sai por aí,
inconteste, cheio de sede de beijos. Com esse 3X4 e o trabalho diário de
praticamente um mês, e com o alpiste que Penna me alimentava, no sentido de
instigar, promover e colher o mais puro néctar de um jardim humano subjetivo e
comum, submergiu o Ceará. E veio que veio. No início nem falava, mas como
todo ʻpassarimʼ que se preza, foi cantando que veio ao mundo. (CAMILO: 2005)
Segundo o preparador:
81
mas também sistematizou um treinamento extremamente técnico, para o
desenvolvimento de cenas como as do ator Rodrigo Santoro no choque elétrico
e na saída da solitária.
82
O resultado da investigação pessoal do ator configura-se como partituras
físicas, “provenientes de ações recorrentes que são detectadas ao longo do
treinamento e passam a ser codificadas quase que naturalmente” (BURNIER:
2001, p. 200), que no momento da filmagem eram acionadas a partir de um
aquecimento. Este aquecimento é intitulado por Penna como pré-cena, ou seja,
um tempo do ator para que ele alcance a emoção necessária da ação a ser
filmada. “A ação do ator é dada antes da ação da equipe”. (PENNA: 2004)
83
aquecimento, ativando alguns pontos chaves do atorʼ para conduzi-lo à
temperatura da cena que será filmada.
Fátima Toledo 23
23 Aluna de Eugênio Kusnet, Fátima Toledo atuou como atriz e professora de teatro na Escola
Macunaíma e na antiga FEBEM. Como preparadora iniciou sua carreira em “Pixote - a Lei do
mais fraco” (1981) dirigido por Hector Babenco. Atualmente, possui em seu currículo filmes
como: “Medicine Man”, de John Mctierman com produção executiva de Sean Connery, na
preparação do elenco indígena; “Hans Staden”, “Central do Brasil”, “Cidade de Deus”, “Cidade
Baixa”, “Céu de Suely”, “Casa de Alice”, “Mutum”, “Tropa de Elite”, “Linha de Passe”, “Quincas
Berro dʼágua”, ”Tropa de Elite 2”, entre outros.
Fundadora do Studio Fátima Toledo, oferece cursos de formação de atores para cinema e
televisão. Em 2009, dirigiu juntamente com Sérgio Machado seu primeiro curta-metragem “O
príncipe encantado”.
84
relação espacial de criação.
A exaustão física é uma técnica bastante aplicada no processo de
preparação e criação do ator. Com exercícios precisos – que, segundo Eugênio
Barba (1991), são procedimentos projetados para destruir as posições inertes do
corpo do ator, alterando o equilíbrio normal e rompendo com a dinâmica dos
movimentos cotidianos -, a exaustão contribui para o abandono do impulso
intelectual, deixando que as ações nasçam a partir de impulsos físicos e
emocionais.
São exercícios que potencializam o corpo, gerando os “impulsos” que se
transformam em ação e emoção (Grotówski), que visam despertar a
“musculatura afetiva” do ator (Artaud).
Assim, quando Fátima Toledo realiza um trabalho de exaustão física com
os atores, fazendo com eles externalizem ações e emoções, a preparadora
propõe este rompimento com o equilíbrio normal do corpo cotidiano e o
abandono dos impulsos intelectuais para a construção das cenas.
Com o corpo potencializado (aquecimento), as ações e emoções que irão
compor as cenas surgem de maneira espontânea. Ao inserir as circunstâncias
dadas pelo roteiro (situações) e realizar as aproximações entre os atores,
estabelecendo o jogo entre eles, as possibilidades de movimentação e
dramaturgia para o filme vão surgindo aos poucos. Neste momento, entra a ação
do diretor em aproveitar o que os atores trouxeram, incorporar ao roteiro,
modificar, adicionar ou sobrepor estas possibilidades.
Fátima Toledo diz não saber trabalhar sem roteiro; entretanto, prefere não
distribuí-lo aos atores, para que não decorem os diálogos, nem mesmo criem
suas ações, sem antes experimentá-las. Trabalhando no âmbito da
improvisação, a partir da potencialização do corpo, da relação corpo-espaço, a
preparadora alimenta os atores com estímulos extraídos do roteiro. Neste
processo, tanto as personagens, quanto as relações de aproximação ou
distanciamento entre elas, a relação personagem espaço cênico e os diálogos
vão surgindo e sendo testados.
85
Segundo a preparadora, um dos caminhos tradicionais na condução do
ator é o estudo da construção da personagem, mas para ela a busca é pela
humanização do ator e conseqüentemente do projeto.
Sobre sua atuação no set de filmagens, Toledo diz que seu trabalho termina
assim que se iniciam os ensaios de cena e as marcações.
86
como ponto de partida elementos das mais diversas naturezas. A célula inicial do
processo criativo pode ser uma fotografia, um mapa, um livro, um sentimento.
Enfim, com o abandono do texto dramático, os materiais de criação e a relação
colaborativa dos criadores de variadas áreas, imersos numa experiência
investigativa, alimentam o desenvolvimento do espetáculo cênico.
Um modelo de criação que vem sendo empregado pelo diretor Luiz
Fernando Carvalho, desde Lavoura Arcaica, quando se retirou com toda a
equipe para a Fazenda transformando-a em um grande espaço laboratorial de
interação entre as áreas de criação. Modelo que se repete na produção das
minisséries Hoje é dia de Maria, Pedra do Reino e Capitu.
Os processos criativos de Carvalho são fruto da busca do diretor por um
modelo de produção que o aproximasse dos atores e que a criação pudesse
partir deste encontro. Em meados da década de 90, após a finalização da novela
Rei do Gado, exibida pela Rede Globo de televisão, Carvalho se desligou da
emissora, num momento de profunda crise profissional, desencadeada pela
recusa ao modelo de produção televisual. Pois, para a gravação dos oito
primeiros capítulos da novela, Carvalho e sua equipe seguiram para uma
fazenda no interior de São Paulo, e lá, numa relação direta entre diretor e
equipe, gravaram os oito capítulos iniciais. No entanto após isso, retornaram
para o modelo de produção industrial, com gravações em estúdio.
Eu fiz poucas novelas, mas em todas elas eu sempre tive um grande desejo de
aumentar o numero de externas em relação aos estúdios - apesar de saber que
as cenas mais dramáticas, onde a performance do ator é mais exigida,
encontram melhor possibilidade de realização nos estúdios. Mas eu criava novos
desafios e testava essa fórmula geral, colocando nas externas também as cenas
de maior conflito dramático. Isso por conta da linguagem, pra ver se eu
ʻdesmecanizavaʼ um pouco a linguagem dos estúdios, que na maioria das vezes
é muito pasteurizada. A minha tentativa toda era de humanizar a linguagem,
excessivamente industrial. (CARVALHO: 2009)
87
pesquisa que deu origem ao documentário “Que teus olhos sejam atendidos”
resultado de sua viagem ao Líbano, e de um denso material imagético recolhido
durante suas viagens ao interior de São Paulo, na cidade de Pindorama, onde
Raduan passou parte de sua vida.
Após um longo processo de seleção de elenco e ainda no estágio nebuloso
presente na criação, como nos diz Tarkovski, Carvalho seguiu com sua equipe
para a fazenda na cidade de São José das Três Ilhas, interior de Minas Gerais,
transformando o espaço da fazenda em um grande laboratório de interação e
“inter-retroação” (Morin) entre atores, diretor, direção de arte, figurinista,
cenógrafo, fotógrafo, técnico de som, compositor, montador, palestrantes,
professores de voz, dança, árabe e os “senhores da lavoura”.
O trabalho diário na lavoura foi o procedimento adotado pelo diretor para
inserir os atores neste universo do campo, da simplicidade, do silêncio, no
tempo, ritmo, composição corporal, conduzindo-os à espontaneidade proposta,
desautomatizando-os de técnicas de interpretação e criação de personagem,
para inseri-los como co-criadores da obra. Palestras, aulas de árabe, voz,
dança, completavam o trabalho com o elenco. Guiados pelo livro de Raduan
Nassar, já que para a produção do filme nunca houve o desenvolvimento de um
roteiro, as personagens, as relações entre elas, os diálogos e as cenas em si,
nasciam do dia-a-dia, da vivência cotidiana, que se estendeu para as salas de
ensaio. Pouco a pouco, improvisação após improvisação, leitura após leitura, o
filme foi sendo tecido.
Eram leituras interessantes, fazíamos numa pequena mesa redonda, onde mal
cabíamos todos [...] e o livro passando de mão em mão, eu já determinava essa
parte lê o pai, essa o André, já era uma leitura improvisada, no sentido de eu
propor quem ia ler o quê. Depois, então, levantamos e começamos a trabalhar
improvisações sobre o livro. As pessoas sabiam o livro de cor, os atores já
sabiam a trajetória de seus personagens. (CARVALHO: 2009)
88
diretor, a câmera, a luz, o figurino, a música são ramificações do trabalho do
ator, então, devem acompanhar o processo de improvisação.
89
Conduzidos pelo próprio diretor, os laboratórios contam com a presença
de vários preparadores. Segundo o diretor, após determinar que linguagem de
encenação a obra terá, a própria linguagem determinará os procedimentos
técnicos necessários para o trabalho com os atores.
Existe uma escala de procedimentos técnicos [...] você vai ter ali diariamente as
aulas de canto, de voz, de corpo, de alongamento pra recolocar o corpo, para
ficar mais disponível, [...] Enfim, existem vários procedimentos técnicos, que vão
estruturar esse ator [...] os atores se apóiam nesses procedimentos técnicos
para poder pular. É como se fosse um conjunto de pára-quedas, ele sabe que
ele vai ter que pular, então ele tem que estar com excelentes pára-quedas.
Porque para saber sobre o corpo, sobre a mente, tem que ter aulas com teóricos
para aparelhar essas discussões. (CARVALHO: 2009)
90
Como exemplifica no livro “Sobre o filme Lavoura Arcaica” (2002), ao
descrever como foi filmada a cena de masturbação e transe da personagem
André, de Selton Mello.
Aquilo é feito uma vez só, um grande improviso. Esquadrinha o chão todo com
as pontas de foco, estimula o ator, e se começa a improvisar com o ator no
caminho da cena, e improvisar mais, improvisar, e já está toda a equipe
sabendo. E quando o ator chegava na sintonia tal, eu simplesmente olhava para
o Walter Carvalho, que estava ali vivendo aquela joça toda e “câmera” e
“Ação!”. O ator mal percebia a passagem do improviso para o momento da
câmera rodando. Eu não queria que Selton imitasse um cara em transe, eu
queria que ele estivesse em transe, que ele fosse o André. (CARVALHO: 2002,
p. 59-60)
91
iluminação. Eles se entregavam, se doavam na construção do filme”. E isso o
impressionou muito como diretor, então para fazer Céu de Suely, decidiu que
queria criar uma condição para que os atores se entregassem e pudessem
achar que estavam vivendo aquilo. “Mas é uma condição artificial,
criada” (AINOUZ: 2009).
Para aproximar o elenco feminino do universo da obra, o diretor, juntamente
com a preparadora Fátima Toledo, propôs que as três atrizes morassem juntas
durante dois meses em Iguatu, na casa-locação do filme. Elas andavam pela
cidade com seus figurinos, conviviam diariamente com os problemas, medos e
angústias do cotidiano de qualquer pessoa. Dessa convivência diária nasciam as
personagens e as relações entre elas.
Segundo a preparadora a opção de colocar as atrizes morando juntas é
uma forma de criar uma aproximação entre as atrizes e ocontexto do filme. Céu
de Suely traz isso, ao invés do ator ficar copiando, elas viveram (...) Morar junto,
você se revela.” (TOLEDO: 2009)
Durante o laboratório, as personagens mudaram de nome, assumindo o
nome da própria atriz, e foram construídas, numa relação direta com o espaço-
tempo no qual estavam inseridas.
Céu de Suely, conta a história de Hermila, uma jovem cearense que após
dois anos morando em São Paulo retorna para a casa de sua Avó, em Iguatu, no
interior do Ceará, com seu filho nos braços. Ela espera a chegada do marido
que deve reencontrá-la. Mas ele nunca chega. Sozinha, Hermila tenta reinventar
a sua vida, mas continua com o sonho de ir embora para o lugar mais longe
possível.
Uma história de grande inquietude, que ao mesmo tempo em que exigia da
atriz Hermila Guedes uma proximidade com a cidade de Iguatu, propunha a
rejeição e um certo deslocamento daquele lugar, não-lugar.
A relação com a cidade de Iguatu, foi fundamental para a diluição dos
obstáculos possíveis no desvelar da atriz Hermila, para a personagem Hermila.
Mas, o laboratório de criação na cidade ultrapassou limites ainda maiores,
rompeu com todas as fronteiras que poderiam existir em um roteiro que buscava
92
retratar através da inquietude de uma personagem, a inquietude humana
presente na contemporaneidade - marcada pela “impossibilidade de atingir a
satisfação”, como nos diz Bauman (2001, p.37).
Em uma carta escrita pelo co-roteirista Felipe Bragança, publicada na
revista Contra Campo (2005), ele diz:
93
Com um período de investigação laboratorial de aproximadamente um
mês, preparador e diretor alimentavam os atores com estímulos extraídos do
roteiro inicial, e assim a obra era estruturada, testada e modificada. Cena a
cena, improvisação a improvisação, os diálogos e as relações entre
personagens foram construídos esbarrando nos obstáculos da própria cena,
como propunha Antonin Artaud (1999).
Com o objetivo de dar espaço à fluidez criativa do ator, Roberto Moreira
optou por um método de gravação que valorizasse o trabalho de improvisação
do elenco e o jogo ator-câmera, tornando a filmagem uma continuação do
processo do trabalho com os atores. “Não tem take igual, não repetíamos o
mesmo take. Eles se mexiam muito. Há poucos raccord no filme. Filmávamos
oito, onze vezes a cena. As cenas sempre eram completamente diferentes”.
(MOREIRA: 2009)
Assim como um work in process que produz uma encenação que resulta de
um percurso, Contra Todos se estruturou levando para as telas suas impressões
processuais. No entanto, como uma obra cinematográfica, na montagem muitas
cenas foram repensadas, reprocessadas, como por exemplo, a cena em que o
pai bate em Soninha.
Esta cena, segundo o diretor, foi gravada num dia em que o preparador
Sérgio Penna estava presente no set. E, os atores, simplesmente estabeleceram
94
um jogo tão extremo que se tornou uma grande “surra”, onde Soninha desafiava
o pai, e este batia nela sem limites.
95
dialoga com o espaço-tempo do teatro, da pintura, da cena sadomasoquista, da
escrita através da crítica e do cotidiano da noite paulistana. Vertebrando-se25
em cena, o filme estabelece um complexo jogo entre atores, linguagens e o
fazer audiovisual.
Inspirado na obra de Sérgio SantʼAnna, Crime Delicado, instaura um
triângulo amoroso entre o consagrado crítico de teatro Antônio Martins, vivido
pelo ator Marcos Ricca, a jovem musa desinibida, atraente e portadora de
inúmeros aspectos inesperados, entre eles uma deficiência física, Inês, vivida
por Lílian Taublib, e o pintor José Torres Campana, vivido pelo pintor mexicano
Felipe Ehrenberg.
Na construção da tensão ator/personagem Brant opta por trabalhar com
um pintor no papel de pintor e com uma jovem que nunca havia atuado e que
possui uma deficiência física no papel de Inês. Na construção do filme o diretor
propõe a atriz Lilian Taublib, sua própria superação e libertação da prótese, num
ato performático que compõe o filme, já à Felipe Ehrenberg, que as pinturas
fossem realizadas “ao vivo”, durante as filmagens, respeitando o tempo da
criação.
O filme ao proporcionar a aceitação e libertação da prótese pela
personagem Inês, que num ato performático deixa sua prótese na galeria junto
ao quadro que contem sua imagem, proporciona à Lílian (atriz), no mesmo ato
performático, sua aceitação da deficiência e libertação da prótese. Esta tensão,
como na performance, pode ser fundamentada na extrojecão do ator-performer,
trazendo à tona a individualidade deste.
Para realizar o filme Lílian Taublib contou com um trabalho de preparação
com o diretor de teatro Mauricio Paroni26 . Paroni trabalhou durante muitos anos
na Itália, tendo como um de seus mestres Tadeuz Kantor, com quem teve a
oportunidade de trabalhar na Escola de Arte Dramática de Milão, onde foi aluno.
No livro onde descreve o processo de criação do espetáculo “Aqui Ninguém é
96
inocente”(2007), Paroni pontua suas influências, dizendo que com Kantor
aprendeu “O limite entre a arte e a realidade, ou melhor, a porta de comunicação
entre essas duas dimensões.”(2007, p. 34). E como num ecoar da voz do diretor
polonês traz para suas criações a frase que para sempre teria apreendido
durante sua convivência com Kantor.
27 Disponível em : http://www.cronopios.com.br/site/colunistas.asp?id=962#texto
97
Quem é personagem e quem é real? Personagens são o crítico, o juiz et cetera. O Felipe
não o é. E a Lílian soube fazer de Inês uma personagem.
Portanto, o que dizer de Inês que, no final do filme, oferece à obra de arte a perna que
falta ao quadro e se sente inteira como atriz, transformando a pessoa que a interpreta,
Lílian, numa pessoa liberta?
98
filme. Posteriormente, juntam-se a eles, Walter Carvalho, Lilian Taublib, Felipe
Ehrenberg e Luiz Francisco Carvalho Filho (Chico Fogo).
O laboratório de criação do filme, diferencia-se dos laboratórios até aqui
apresentados, à medida que Brant propõe que o laboratório seja o próprio set,
no entanto, as relações se iniciam no desenvolvimento do roteiro de forma
colaborativa, entre atores, diretor, preparador, dramaturgo e diretor de fotografia.
Como diz Paroni, não houve a necessidade de qualquer roteiro técnico ou
mesmo de um roteiro, pois Brant e Walter Carvalho já tinham incorporado a
estrutura da obra.
Ao tornar o set de filmagens o laboratório de criação, Brant propõe o jogo
da multiplicidade de linguagens, lidando com o tempo inerente de cada
expressão artística, o que o leva a dizer que este filme foi pouco a pouco
vertebrando-se. E, assim como no fazer teatral havia uma confiança na
linguagem cênica, tornando Crime Delicado o resultado de uma sinestesia da
cena.
Estes laboratórios, cada qual com sua singularidade, nos fazem refletir
sobre a importância deste espaço como lócus criador. São obras percurso,
construídas num fluxo constante, apontando muitos desdobramentos para o
fazer audiovisual.
99
IV
100
Deslocamentos
101
Assim, os desafios lançados pela sociedade, nos movem a buscar
constantemente por possibilidades, ou seja, nos lançam diariamente em
espaços movediços, incertos, fluídos, e estes são sempre os agentes
desafiadores para a produção artística na contemporaneidade. Contudo, todo
desafio estimula e, portanto, somos constantemente estimulados.
102
“funções” diferenciadas das empregadas pelos modelos hegemônicos da práxis
audiovisual.
Cada cena foi improvisada de inúmeras maneiras (...) eu como diretor, fazia
sugestões, dava-lhes novas ideias - e volta e meia tinha que criticar minhas
próprias propostas e descartá-las, depois de vê-las realizadas pelos atores (...)
o papel do diretor é manter controle sobre o que está sendo explorado (...) Se
agir assim, esta primeira explosão de energia não será tão caótica como
parece, já que produz uma enorme quantidade de material bruto a partir do
qual podem se desenvolver as formas finais. ( BROOK:2005, p.93)
103
processos coletivos, os processos colaborativos buscam pela individualidade de
cada pessoa envolvida na criação.
Como todo processo falível, é necessário o estabelecimento de critérios.
Segundo Salles (2006, p. 133), “Ao detectar algo como errado, o artista aciona
determinados princípios que balizam essa avaliação e faz cortes, adições,
substituições, deslocamentos, ou seja, qualquer tipo de modificação.
Tomando como exemplo os laboratórios, apresentados neste estudo,
poderíamos apontar claramente a ação do diretor-encenador em laboratórios e
set de filmagens, no entanto empregaremos como exemplo um depoimento do
ator Raul Cortez28 sobre seu trabalho em Lavoura Arcaica.
Cortez diz que na fazenda, num determinado ensaio, sentados à mesa,
atores e diretor puseram-se a ler partes do livro. O ator lia e relia o texto “um
sermão enorme do senhor Raduan Nassar” e Luiz Fernando Carvalho não falava
nada, depois de algum tempo lendo e relendo, Cortez se levantou e foi para o
quarto arrumar sua mala para ir embora, pois acreditava que ele não conseguiria
fazer aquele personagem.
Não disse nada a ninguém, arrumou as malas e foi beber uma água,
quando retornou havia uma carta de Carvalho embaixo da porta de seu quarto.
“... Não cobre dele além do que ele pode lhe dar, ou seja, os seus primeiros
passos, o que já é um belo começo, uma bela semente.(...) Nosso encontro de
hoje já foi mais rico que o de ontem, e é assim, passo a passo que
construímos”( trechos extraídos da carta, Nosso Diário: 2002)
104
marcações e interpretar uma personagem já pré-estabelecida por um roteiro. No
entanto, em Lavoura Arcaica, ainda que grande parte dos diálogos dos atores
sejam textos que compõem o romance de Raduan Nassar, ditos na íntegra, o
simples decorar de um texto e a representação de uma personagem, não
compunha o projeto poético do filme, estruturado em uma criação colaborativa,
onde não havia mais fronteira entre personagem e ator, entre autor e obra, entre
diretor e equipe, pois, visava-se um processo de retroalimentação, no qual a
contribuição de cada indivíduo, imbricado neste processo, pertencia às regras do
jogo.
Assim, refletir sobre o papel do diretor num processo de criação
colaborativo para a produção audiovisual, nos aponta caminhos e diálogos
concretos com a criação cênica contemporânea, pois este diretor assume novos
posicionamentos num processo criativo, no entanto, continua com a visão macro
da unidade estética da obra. Uma unidade que se desenvolve a partir dos
corpos em cena, do jogo entre ator, diretor e equipe, tornando-se não apenas
imagem, mas também algo incorporado.
Esta incorporação, no sentido de embodied, contribui para que muitas
vezes, sequer um roteiro seja escrito, pois este já pertence a atores, diretores e
equipe, como acontece nos laboratórios do diretor inglês Mike Leigh.
Partituras de encenação
105
de modo mais ou menos preciso, antes da filmagem, uma ação (narrativa) em
planos ( e em sequências) ( BURCH: 2008, p.23)
106
realizados pelos diretores, mas este certamente será um procedimento aberto,
um rascunho que pode ser modificado e incitado a todo momento. Pois, este não
é um procedimento que propõe o espaço-tempo, mas emerge do espaço-tempo
da ação, ou seja, de uma cena criada em cena.
Assim como as partituras físicas do ator constituem-se como a base da
atuação, as partituras do diretor são a base da encenação. No entanto, como
uma estrutura reavidada no aqui e agora da ação, estas partituras são como
apontado por Grotówski, “o leito de um rio” (apud JIMENEZ), ou seja, são formas
fluidas e estão sempre abertas à imprevisibilidade e à emergência de novas
possibilidades.
Somada a esta emergência de novas possibilidades no aqui e agora da
ação, é importante ressaltarmos o jogo estabelecido entre ator e câmera no ato
das filmagens. Pois, construindo esta rede permeada pela incerteza, ao propor o
jogo entre câmera e ator, reavivando as partituras de encenação, muitas são as
mudanças e nenhuma é a certeza dos enquadramentos desejados.
Em alguns momentos, alguns diretores optam por estimular esse jogo no
ato das filmagens, mas em outros processos, ou ainda que num mesmo, para ter
algum controle sobre as imagens captadas, lançam mão de outros
procedimentos. Como exemplo, citaremos três processos de criação do diretor
Luiz Fernando Carvalho.
Em Lavoura Arcaica, Carvalho e o diretor de fotografia Walter Carvalho,
propõem uma fotografia com enquadramentos precisos, compostos quase como
pinturas renascentistas, e para isso o diretor estimula a improvisação do ator,
num espaço cênico já estabelecido por uma iluminação bem definida,
esquadrinhada, trazendo a câmera quando o ator já está no “ponto da ação”,
conforme explicitado pelo diretor em entrevista.
Já em Pedra do Reino, a composição fotográfica está em último plano,
pois, o que interessava ao diretor na criação da minissérie era o jogo
estabelecido entre ator e câmera no ato da filmagem, propondo condições
adversas para este jogo. Nesta proposta, Carvalho tinha como um dos princípios
direcionadores da criação o rompimento com a técnica cinematográfica,
107
incorporando á obra a imagem resultante deste jogo, estando aberto á
desfoques, rastros de imagem em busca do ator e enquadramentos sem
nenhuma precisão.
108
Episódio III - Pedra do Reino (2007)
sequência Casa de quaderna - Moça Caetana
109
sempre de partituras desenvolvidas nos laboratório de criação que são
retomadas e reavivadas no momento das filmagens.
Capitu (2008)
Sequência Infância Capitu e Bentinho
Capitu (2008)
Sequência Dança Escobar
110
O jogo entre ator e câmera, que como vimos está também presente em
Contra Todos de Roberto Moreira, lança outra questão fundamental para
refletirmos sobre o trabalho com partituras de encenação.
Em seu making of, Contra Todos, apresenta como as partituras dos
atores e da encenação surgiram em sala de ensaio. “Justapondo” as
improvisações dos atores e as cenas filmadas, Moreira nos apresenta a
articulação entre as partituras rascunhadas e as resultantes do momento da
filmagem, selecionadas na montagem, que compõem o filme.
Como diz Moreira “da preparação para o filme baixamos muito a
intensidade dos atores” ( MOREIRA, 2009), no entanto, as partituras físicas e as
partituras de encenação lá estão, nas células geradoras e no corpo resultante.
111
Contra Todos (2004)
Sequência Cláudia e Amante - Ensaios (imagens a esquerda) - Filme
(imagens a esquerda)
112
Sequência Cláudia e Waldomiro
Ensaios
113
A transposição das improvisações desenvolvidas nos laboratórios para o
momento das filmagens, nos faz retomar as partituras físicas do ator como
procedimento para lidar com a continuidade da ação.
Como vimos, no trabalho desenvolvido pelo preparador Sérgio Penna,
este criou um procedimento que denomina gráfico das emoções, como uma
forma de traçar o percurso da ação e emoção, desenvolvida pelo ator para cada
cena. Um procedimento que é usado tanto pelos atores, quanto pelos diretores.
No entanto, enquanto este procedimento torna-se algo externo, ao ser
cunhado em um papel, ele é proveniente das partituras físicas desenvolvidas
pelos atores durante o laboratório.
O gráfico das emoções, desenvolvido por Penna com os atores e
diretores, auxilia o ator, no sentido de apontar uma visão ampla de toda a
estrutura do filme, ou seja, todo o percurso a ser percorrido, cena a cena. Assim,
no momento da filmagem, ator e direção podem se orientar, para saber onde a
cena a ser filmada naquele momento localiza-se na estrutura do filme, e qual
cena vem antes e depois, e com elas as ações e emoções da personagem.
Contudo, o procedimento empregado para o despertar do ator para
determinada ação, é a partitura física, desenvolvida no laboratório de criação. É
esta que o ator retoma para reavivar os impulsos internos, disponibilizando-se
para o estar em cena, o que como já vimos, gera a impressão de
espontaneidade, almejada por grande parte dos diretores.
Esta partitura auxilia ainda o ator a lidar com a fragmentação durante as
filmagens, pois, como num “aquecimento” os atores retomam suas partituras
para se lançarem às improvisações.
114
A fluidez das etapas de produção
115
Assim, os laboratórios de criação, no sentido de espaço físico, tornam-se,
na maioria das vezes, o espaço da produção e mesmo da pós-produção. Neste
“lugar”, que pode ser um barracão, um estúdio ou uma cidade, ainda enquanto
a obra emerge, como fruto das improvisações dos atores, da relação destes com
este espaço-tempo, é já registrada pela lente de uma câmera, selecionadas e
editadas, como ocorreu em Pedra do Reino. Com isso surge um processo de
retroalimentação, no qual o resultado é analisado e torna-se feedback para o
sistema. Deste modo, a edição do material não é mais uma etapa final, mas
mais elemento deste sistema dinâmico.
Neste espaço de retroalimentação não existem fronteiras, não existem
etapas, existe um organismo vivo, pulsante, que se reconstrói a todo momento e
que requer, assim como ele, uma produção que se organiza a partir da ação.
Quando a criação sai do espaço do laboratório para a locação, ou seja,
esses são lugares diferentes, apenas o lugar é que muda, a fluidez do processo
acompanha, pois, esta é inerente ao processo em si.
Mais uma vez não falamos aqui em rupturas, pois esperamos ao expor
um processo de produção como fluxo, que este seja entendido diante de suas
singularidades e, embora tenhamos proposto a fluidez das fronteiras que
delimitam os processos de produção audiovisual tradicionais, não opomos os
procedimentos de produção destes aos modelos laboratoriais, mas sim
propomos um deslocamento, uma readequação destes procedimentos diante
das singularidades emergentes de cada processo.
Para compreendermos este fluxo dispomos abaixo mais um trecho da
carta29 do roteirista do filme Céu de Suely, Felipe Bragança à sua esposa
Marina.
Nesta, ele explicita sua relação pessoal com o espaço-tempo do
laboratório no qual estava inserido e que estão presentes na obra.
29 Retirado do site:http://www.cinemaemcena.com.br/ceudesuely/blog.asp
116
Nesta carta o roteirista ao expor suas angustias e inquietações diante
daquele lugar não-lugar, aponta para a ética de produção proposta pelo diretor
Karim Ainouz.
Para a produção de Céu de Suely, o diretor propôs à equipe sempre
trabalhar com a incerteza, para que tudo os surpreendesse. Como “encontrar
uma emoção exata de uma composição apaixonada, ás cegas,
117
tateando”(BRAGANÇA, 2006). Encontro realizado por cada membro da equipe a
cada momento em Iguatu.
Como diria Paul Zumthor (2007), referindo-se a performance como um
saber-ser, este é um saber que implica e comanda uma presença e uma
conduta, “um Daséin comportando coordenadas espaço-temporais e
fisiopsiquicas concretas, uma ordem de valores encarnada em um corpo
vivo.” (ZUMTHOR: 2007, p. 31)
Neste “encontro”, Ainouz encontrou Hermila, que logo após filmar a cena
da briga com a tia e a avó, após o jantar, afetada pela intensidade das filmagens
sai chorando pelas ruas de Iguatu. Um encontro registrado pelas lentes de
Walter Carvalho a pedido de Ainouz. Um encontro inesperado, sem o
conhecimento e o consentimento de Hermila, que segundo a própria atriz 30 a
deixou furiosa.
Ao perceber que estava sendo filmada, Hermila indignou-se, pois aquele
era seu choro e não da personagem, indignação ainda maior quando ao
questionar o diretor sobre o registro da cena, este respondeu a ela, “como é o
seu nome?
A atriz Hermila, era ali Hermila, uma atriz/personagem que surpreendia o
diretor com suas ações. E mesmo essa cena nunca tendo sido rascunhada num
papel, está presente no filme.
30Este depoimento foi dado pela atriz Hermila Guedes, no festival do Rio durante o lançamento
de Céu de Suely em 2006, logo após ter assistido pela primeira vez ao filme.
118
conscientes que precisam se envolver artisticamente e que estão vivenciando
um processo fluido.
119
Em outros laboratórios, figurinos e objetos selecionados pela equipe de
direção de arte são incorporados a preparação dos atores e, poderão ou não
compor o filme.
Em Céu de Suely, sob o comando de Karim Ainouz a equipe de figurino
selecionou algumas peças que pudessem compor o figurino de cada
personagem, os atores ao chegarem em Iguatu, tiveram que deixar suas roupas
pessoais e passaram a usar as peças selecionadas. segundo o diretor o intuito
era de descobrir qual seria o figurino de cada ator, a partir da relação cotidiana
deste ator com o figurino proposto.
120
obra, encontra-se aberta as possibilidades advindas dos laboratórios, das
necessidades que aparecem durante o fluxo constante da criação.
No entanto, é importante pensarmos nestes figurinos e objetos de cena,
sob um ponto de vista colaborativo, no qual o figurino interfere e contribui com o
trabalho do ator e este interfere tanto quanto no trabalho da equipe de figurino e
de arte como um todo.
Pois, assim como o roteiro e a direção, o figurino é fruto desta troca,
deste espaço investigativo dos processos laboratoriais e, portanto, configura-se
como um desdobramento desta relação corpo-espaço-tempo.
Montagem e Organicidade
121
Embora a montagem, geralmente, se dê a posteriori , isso não torna esta
etapa distante de todo o processo. Pelo contrário, esta pertence a este fluxo
criativo e trabalha em consonância com o projeto poético da obra, ou seja, a
montagem é apenas uma continuação deste “balé” entre a câmera e o ator,
iniciado nas filmagens, fazendo parte deste jogo de retroalimentação criativa.
Certamente, esse modo de produção ao partir de partituras e não mais de
decupagens, de lidar com uma cena que é construída em cena, onde não há
marcações e delimitações precisas, ocasionará alguns deslocamentos dos
procedimentos de montagem, e estes são apontados diante das singularidades
dos projetos poéticos dos diretores.
No entanto, alguns direcionamentos e necessidades da montagem são
apontadas já no decorrer da criação laboratorial, e com isso passa a ser também
processada, estruturada, desenhada, de forma orgânica e fluida tal qual o
processo de feitura da obra. Pois, diante da singularidade dos processos,
diferentes são as maneiras de lidar com o material captado, de olhar para esta
obra e descobrir o que ela propõem.
Roberto Moreira, em Contra Todos, diz que ao ter optado por trabalhar
com uma câmera digital, que lhe permitia filmar 8, 11 vezes a mesma cena na
integra e de maneiras completamente diferentes, tinha no final muito material
para montagem, o que lhe permitia montar o filme de diversas maneiras
possíveis, “a gente tinha material pra tudo, para montar o filme de ponta
cabeça”( MOREIRA, 2009).
Segundo o diretor, durante as filmagens muitos o perguntavam como ele
montaria esse filme e sua resposta era sempre a mesma:
Depois vou descobrir. No final montei sem nenhum problema, porque a cada
fala a gente variava tudo, o ângulo, a posição da Câmera, então o corte
passava. Eles se mexiam muito, tivemos poucos falsos raccord no filme, os
que tem são propositais, eu poderia ter mantido uma decupagem clássica, se
eu quisesse. (idem)
122
possibilidades de leitura. E nesta rede em construção, o diretor-montador, vai
pouco a pouco, construindo seus diálogos com a obra, redescobrindo os
caminhos apontados nos laboratórios e fazendo suas escolhas, seus cortes,
“adições, substituições, deslocamentos, ou seja, qualquer tipo de modificação”,
como diz Salles (2006).
No livro “Sobre o filme Lavoura Arcaica” (2002), ao descrever como foi o
processo de montagem de algumas sequencias, Luiz Fernando Carvalho diz:
Em Pedra do Reino o princípio que nortearia toda a montagem e as
imagens era, conforme descrito no diário do diretor, “tratar todos os
enquadramentos e montagem de forma simbólica, mítica”. Um princípio
direcionador de todo o processo de criação e que, portanto, baliza todas as
decisões éticas e estéticas da construção da obra.
Seguindo o procedimento de imersão da equipe nos laboratórios de
criação, Carvalho propôs que o montador Márcio Hashimoto, estivesse presente
em Taperoá e, portanto, vivenciasse o dia-a-dia da criação e produção da
minissérie. Uma experiência que contribui para a organicidade entre a
montagem e o jogo proposto pelo diretor entre câmera e ator no ato das
filmagens, dialogando com a proposta de construção de uma obra cíclica e
pulsante, um “Corpo sem Órgãos” (DELEUZE & GUATTARI, 2007), como diz
Carvalho em um e-mail enviado para o diretor de fotografia Adrian Teijido.
123
E-mail enviado por Luiz Fernando Carvalho ao diretor de fotografia Adrian Teijido,
como resposta a algumas considerações de Teijido ao desenvolvimento da obra e suas referências.
(Diários, 2007)
124
construção e, portanto, abertos as interferências. No entanto, se na tradicional
práxis cinematográfica, a montagem é responsável por uma organicidade
inerente à obra, em práticas laboratoriais a organicidade está também no próprio
processo de montagem, que assume bases fluidas, e que portanto, nos leva a
apontar um deslocamento dos procedimentos empregados na feitura da obra,
contribuindo para a diluição das fronteiras entre cada etapa e cada membro da
equipe.
125
CONSIDERAÇÕES FINAIS
126
Ao buscar estabelecer um diálogo mais próximo entre as artes cênicas e
o audiovisual, não com o intuito de sobrepor uma arte à outra, mas sim de lidar
com o espaço da intersecção, mesmo sabendo que este nos lança num campo
de análises subterrâneas, vislumbramos desde o início deste percurso, refletir
sobre as relações corpo-audiovisual e as possibilidades de criação advindas
dessa relação, o que gera a emergência de uma multiplicidade de poéticas.
Certos que é da experiência que emerge a conceituação, e não o contrário,
percorremos os processos criativos abordados nesta tese, com o objetivo de
apontar possibilidades diante da inserção do ator como co-criador da obra
audiovisual.
Como dito pela teórica alemã Erika Fischer-Lichte, temos a partir dos
anos 60, uma “virada performativa” nas artes, gerando, por um lado a diluição
das fronteiras entre as várias expressões artísticas e, por outro, propondo uma
participação ativa tanto do criador quanto do público. Somada a essas questões,
127
surge a individualidade do artista como base para uma criação pautada na
colaboração e na improvisação.
Como diz Renato Cohen (2007) na passagem para a expressão artística
performance, o trabalho passa a ser muito mais individual. “É a expressão de um
artista que verticaliza todo o seu processo, dando sua leitura de mundo, e a
partir daí criando seu texto, seu roteiro e sua atuação.” (COHEN: 2007, p. 100).
A criação se desenvolve a partir de uma relação horizontal, de colaboração.
Entretanto, se no audiovisual, a “virada performática”, foi marcada nos
anos 60, pela videoarte e pelo cinema experimental. Atualmente, é relacionada a
New Media Art, isso porque esta - ao propor uma participação ativa tanto do
público quanto do artista, como estrutura nevrálgica da obra - , fundamenta-se
na individualidade do artista e implica em uma individualidade do público,
estabelecendo uma relação de presença deste para com a obra. Tomamos aqui
a presença no sentido Artaudiano do termo, pois para Antonin Artaud a presença
se constrói na relação de afeto, ou seja, de afetar o outro, pois a presença não
está no limite do corpo, mas, sim, nesta relação.
Contudo, ao propormos que na criação cinematográfica, há também a
possibilidade de uma criação colaborativa, fundamentada na inserção do ator
co-criador e numa prática laboratorial, onde a partir da improvisação do ator a
obra emerge, podemos saudar essas propostas como pertencentes a esta
“virada performativa”.
No entanto, sabemos também que a abertura para as possibilidades
advindas do ator co-criador na produção cinematográfica, ou audiovisual como
abordada nesta tese, é fruto de uma ruptura paradigmática com a rigidez e as
especificidades da linguagem cinematográfica, bem como da diluição entre as
fronteiras Teatro – Cinema, e de uma aproximação entre as artes do corpo e o
audiovisual.
Seria, assim, extremamente errôneo de nossa parte, dizer que este
cinema é uma arte do ator, como afirmava o diretor americano Nicholas Ray em
sua “teoria da ação ou do cinema como arte do ator” (AUMONT: 2004).
128
Afirmamos sim, que esta é uma arte do encontro, de individualidades, onde
cada criador vai atrás do que é ele mesmo, mas numa integração, objetivando o
desenvolvimento de uma obra específica.
Assim, a câmera sempre vai descobrir o visível, como propõe Godard,
ainda que este possa ser chamado de acontecimento, um acontecimento que
sempre será renovado no aqui e agora da ação. Um acontecimento
fundamentado na relação de presença do ator, do diretor, de toda equipe
técnica, que transpõe as telas e afeta o espectador.
129
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Palestras e debates
Beto Brant e Maurício Paroni, São José dos Campos/SP, 2007 - Debate sobre
Crime Delicado.
Luiz Fernando Carvalho, Luis Alberto de Abreu, Adrian Teijido e elenco da
minissérie Pedra do Reino - São Paulo, 2007 - Espaço Unibanco - lançamento
da minissérie nos cinemas.
Hermila Guedes - Rio de Janeiro, 2006 - Debate durante o Festival de cinema do
Rio de Janeiro.
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Karim Ainouz - Fortaleza, 2010 - palestra proferida aos alunos do curso de
Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará.
Natalie Baye - Paris, 2008 - Festival de cinema de Paris.
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