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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Walmeri Kellen Ribeiro

POÉTICAS DO ATOR NO AUDIOVISUAL


O ator co-criador na produção brasileira contemporânea

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

SÃO PAULO
2010
Walmeri Kellen Ribeiro

POÉTICAS DO ATOR NO AUDIOVISUAL


o ator co-criador na produção brasileira contemporânea

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Tese apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para
obtenção do título de Doutor em
Comunicação e Semiótica sob a orientação
do Prof. Dr. Arlindo Machado.

SÃO PAULO
2010
BANCA EXAMINADORA

___________________________________________

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___________________________________________

___________________________________________

___________________________________________
Esta pesquisa foi realizada com financiamento do CNPQ
“ Melhor se guarda o vôo de um pássaro,
do que um pássaro sem vôos”.
Antônio Cícero
Agradecimentos

Ao professor Arlindo Machado pela generosidade e pelo acompanhamento


durante este percurso.

À professora Cecília Almeida Salles pelo carinho e pela delicada e sabia


condução por entre os caminhos da crítica de processo.

Aos diretores Luiz Fernando Carvalho e Roberto Moreira, e aos preparadores


Sérgio Penna e Fátima Toledo, por dividirem comigo nuances, singularidades e
inquietações pessoais que motivam e alicerçam seus trabalhos e obras.

Ao Cesar, pelo carinho, cuidado, compreensão e, sobretudo, pelo amor com


que esteve ao meu lado ao longo de todos esses anos. Pelas leituras atentas e
pelas palavras de incentivo que me fizeram acreditar que seria possível.

Aos meus mais novos amigos e colegas de trabalho, do curso de Cinema e


Audiovisual da Universidade Federal do Ceará, Beatriz Furtado, Cristiana
Parente, Diego Hoefel, Osmar Gonçalves, Shirley Martins e Wellington Jr, pelas
conversas, trocas, livros, cafés e, sobretudo, pelo carinho e contribuições para a
elaboração final desta tese.

Ao meu eterno mestre Renato Cohen, pelo incentivo e motivação inicial que
continuou permeando todo o pensamento tecido neste estudo.

Aos colegas do grupo de pesquisa em Processos de Criação da PUC-SP, pelas


trocas fundamentais à esta tese.

À Silvia Valentin e Yann Regard, pela hospedagem e carinho durante meu


período de pesquisa na França.

À Fafate Costa, pela leitura atenta e revisão dos meus textos sempre em
processo.

À Ana Cristina Pilchowski, amiga e companheira de treinamentos, investigação,


experimentação e criação.

À Cida Bueno, pela atenção durante todo o tempo de permanência como aluna
do programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica.
RESUMO

Percorrendo a hipótese de que a produção audiovisual brasileira


contemporânea, apresenta como elemento fundamental de seu processo criativo
o ator como co-criador da obra, esta tese investiga os procedimentos de criação
que alicerçam o trabalho deste ator, bem como os desdobramentos desta
relação de co-criação.
Partindo da análise dos processos de criação dos filmes Bicho de Sete
Cabeças, Cidade de Deus, Lavoura Arcaica, Contra Todos, Céu de Suely, Crime
Delicado e das minisséries Pedra do Reino e Capitu e fundamentada pela
Critica de Processo, conforme proposto por Cecília Almeida Salles (2006), esta
pesquisa, aponta o laboratório de criação como lócus de investigação,
experimentação e emergência da obra audiovisual, no qual a prática
improvisacional configura-se como um procedimento empregado na busca de
possibilidades criativas e estéticas.
Com esta afirmação, ao propor um diálogo entre os estudos do
audiovisual (Machado, Burch e Aumont), do ator (Artaud, Grotówski,
Stanislávski, Barba e Burnier) e da produção cênica na contemporaneidade
(Cohen, Zumthor, Fischer-Lichte, Lehmann), pontuamos alguns desdobramentos
e deslocamentos na tradicional práxis cinematográfica. Como resultado destes
procedimentos acontece uma transformação nos modos de produção
audiovisual, aproximando-os dos modos de criação cênicos contemporâneos.
Visando a compreensão dos processos comunicacionais próprios aos
regimes de sentido do objeto audiovisual, o referencial teórico desta pesquisa é
estabelecido a partir de conexões teóricas entre diversas áreas do
conhecimento, das teorias do audiovisual, do ator e da criação cênica, conforme
apontados acima, ao processo de criação em rede (Salles), a teoria do
corpomídia (Greiner, Katz), da co-criação e complexidade (Morin), da
emergência (Jonhson) e da fluidez e mobilidade (Bauman).

Palavras-chave: Ator co-criador; Estética; Direção e preparação de atores;
Cinema e Audiovisual.
ABSTRACT

Actorʼs poetics in audiovisual production


The actor as a co-creator in contemporary Brazilian production

Considering the hypothesis that Brazilian audiovisual production presents, as a


fundamental element of itʼs creative process, the actor as a co-creator of the final
audiovisual work, this thesis investigates the creation procedures which are the basis of
this actorʼs work, such as the unfoldings of this co-creation relation.
Using the analysis of creation processes of the films Bicho de Sete Cabeças
(Brainstorm), Cidade de Deus (City of god), Lavoura Arcaica (To the Left of the Father),
Contra Todos (Up against them all), Céu de Suely (Love for Sale), Crime Delicado
(Delicate Crime) and of the miniseries Pedra do Reino and Capitu, and having the
Critica de Processo (Process critics), proposed by Cecília Almeida Salles (2006) as a
basis, this study sees the creation laboratory as a locus of investigation, experimentation
and emergence in audiovisual work, in which the improvisation practice is configured as
a procedure to be used in the search of creative and aesthetic possibilities.
With this assumption, by proposing a dialog between audiovisual studies
(Machado, Burch and Aumont), studies of the actor (Artaud, Grotówski, Stanislávski,
Barba and Burnier) and of the contemporary scenic production (Cohen, Zumthor,
Fischer-Lichte, Lehmann), weʼll point out some unfoldings and displacements in
tradicional cinematographic praxis. As a result of these procedures, a transformation
finds its course, in the modes of audiovisual production, approaching those with modes
of contemporary scene creation.
Aiming the comprehension of the audiovisual objectʼs meaning regimes own
comunication processes, the theoretical reference of this research is established upon
theory connections between many knowledge fields, audiovisual theories, actor and
scenic creation studies, as mentioned above, the process of creating in a net (Salles),
and the theories about “corpomídia” (or “mediabody”, by Greiner, Katz), co-creation and
complexity (Morin), emergence (Johnson), fluidity and mobility (Bauman).

Key-words: Actor as a co-creator; Aesthetics; Directing and preparing actors; Cinema


and audiovisuals.
SUMÁRIO

Notas da autora

INTRODUÇÃO _________________________________________________ 13

I POÉTICAS DO CORPO EM CENA

Por uma dramaturgia do corpo _____________________________ 22


Ações Físicas ______________________________________ 23
Impulso, Estímulo e Partituras __________________________ 25
Corpo e Intensida ____________________________________ 29
Organicidade, Fluidez e Espontaneidade _________________ 33
Atuação e Presença __________________________________ 35
Corporeidade e Naturalismo ___________________________ 39

II O ATOR CO-CRIADOR

Ator e co-criação ________________________________________ 44

Procedimentos de criação
Laboratório – investigação e experimentação ______________ 47
Improvisação ______________________________________ 49
A prática improvisacional – do desenho à cena _____________ 51
Criação Colaborativa _________________________________ 54

Contribuições Estéticas
Espontaneidade e ideia de tempo presente ________________ 58
Leveza e Fluidez ____________________________________ 63

III – O ATOR CO-CRIADOR E A CENA AUDIOVISUAL

Em busca do desvelamento e da co-criação _______________________ 67

Preparação de atores __________________________________________ 75


O preparador ______________________________________ 76
Sérgio Penna _______________________________________ 79
Fátima Toledo _______________________________________ 84
Laboratórios de criação Audiovisual

Lavoura Arcaica, Pedra do Reino e Capitu: Encenação como


experiência investigativa ______________________________ 86

Céu de Suely: Imersão e potencialização do ator co-criador ___ 91


Contra Todos: Ator-autor e work in process ________________ 93

Crime Delicado: o percurso como espaço da criação _________ 95

IV DESDOBRAMENTOS DE UMA PRÁTICA LABORATORIAL

Deslocamentos _________________________________________ 101

Ator Co-Criador | Diretor-encenador ____________________ 102


Partituras de encenação _____________________________ 105
A fluidez das etapas de produção ______________________ 115
Desdobramentos de uma articulação entre
corpo, espaço e tempo _____________________________ 119
Montagem e Organicidade ___________________________ 121

CONSIDERAÇÕES FINAIS _____________________________________ 126


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ______________________________ 130
Notas da autora

Tecer fios que alinhavam um pensamento, - traduzindo experiências,


observações e inquietações, - em palavras, certamente é a parte mais difícil de
uma pesquisa. No entanto, é esta textura de palavras que proporcionará um
espaço de troca, intercâmbio de idéias e de experiências.
Fruto de uma inquietação inconteste, este estudo encontra-se em
construção, em fluxo, assim como o objeto por ele abordado. Pois, como falar da
arte do ator e de processos criativos, se não tecendo ainda mais perguntas e
novos questionamentos?

Percursos que antecederam esta pesquisa

Se pudesse definir, diria que esta pesquisa iniciou-se em 2002, quando


ingressei no Programa de Pós-Graduação em Artes da UNICAMP. Entretanto, os
estudos, ou (ao menos) as inquietações acerca das relações de criação do ator
no audiovisual, germinaram bem antes disso. Atriz, ao ingressar num curso de
graduação em Rádio e TV, muito me inquietava não haver uma só disciplina de
direção de atores. De forma empírica, passei a investigar as possibilidades de
criação advindas da inserção de atores em laboratórios de criação audiovisual.
Eram apenas experiências, que resultaram em vários trabalhos e acabaram
tornando-se minha pesquisa de final de curso, quando realizei a seleção e a
preparação dos atores para o curta-metragem “Hoje de Madrugada” adaptado
da obra homônima de Raduan Nassar e dirigido por Vinicius Galera e Fabiana
Souza.
Este encontro impulsionou a formatação do projeto de pesquisa e a
escolha pelo curso de Artes Cênicas para realização do mestrado. Sem

11
nenhuma pretensão acadêmica, ingressei na UNICAMP em 2002, com
orientação do Professor Dr. Rubens Brito e Co-orientação do Professor Dr.
Renato Cohen.
Os estudos com Cohen me proporcionaram o conhecimento da prática da
Performance e contato com a obra de Sérgio Penna, que naquele momento
tinha acabado de lançar o primeiro longa-metragem: Bicho de Sete Cabeças
(2001), em que tinha atuado como preparador de elenco.
Apenas após o falecimento de Cohen resolvi aproximar-me de Sérgio
Penna, já em 2004. Ao chegar ao espaço onde seria realizada a oficina com
Penna, na Rua Girassol, na tradicional Vila Madalena em São Paulo, pude
compreender porque Cohen tanto me dissera para procurar por Sérgio. Com um
abraço apertado fui recebida pelo preparador, que me apresentou todo o
material de registro da preparação dos atores de Bicho de Sete cabeças e de
Contra Todos.
Diria que as inquietações que movem a realização desta tese iniciaram-se
ali, naquele momento. Como sempre dizia Renato Cohen, naquele ritual
(oferecido por Penna) fui afetada. Criou-se um elo de afeto, no sentido
Artaudiano do termo.
Em 2004, finalizei minha dissertação de mestrado, entretanto, não houve
tempo hábil para que todas as inquietações emergentes do encontro com a
preparação de elenco no Brasil, através de Penna, fossem naquele momento
investigadas. Ao finalizar o mestrado a única certeza que tinha era de que havia
muita coisa a ser estudada e experimentada.
Essas inquietações ficaram adormecidas entre 2005 e 2006, anos em
que no comando de um programa de TV, abandonei as salas de ensaio e,
consequentemente, meus estudos.
Mas, se a vida nos leva para outros caminhos, a inquietação nos traz de
volta. Em 2006, ao ter contato com o livro Crítica Genética de Cecília Almeida
Salles, apresentado por uma amiga, retornei aos documentos de processo e às
salas de ensaio, iniciando ou reiniciando a pesquisa ora apresentada.

12
INTRODUÇÃO

13
Ao intitularmos este estudo como Poéticas do ator no audiovisual1, de
forma plural e não singular -Poética-, apontamos desde o início para a
multiplicidade de poéticas presentes nos processos de criação audiovisual
contemporâneos. Poéticas que seguem desde as relações mais tradicionais de
interpretação de uma personagem - baseada no texto e na representação -, até
as relações de co-criação entre ator e obra, nas quais o ator cria sua própria
personagem e colabora para o desenvolvimento da obra como um todo.
No entanto, neste estudo, nos detivemos nas poéticas emergentes da
inserção do ator co-criador e nos desdobramentos e contribuições que a
presença deste ator gera no processo criativo da obra audiovisual.
Para nos lançar no espaço da fluidez, presente na criação atoral e em
processos de criação laboratoriais, agarramo-nos nas propostas apontadas pela
Crítica de Processo de Cecília Almeida Salles (2006), realizando um
acompanhamento teórico-crítico, dos processos de criação e produção de obras
audiovisuais brasileiras lançadas entre 2000 e 2008.
Ao propor o conceito de Criação em Rede, ou seja, compreender o
processo de criação como um sistema complexo que se estabelece em rede
através de trocas entre os sujeitos e do intercâmbio de ideias, num amplo campo
de interações das linguagens e dos meios, a Crítica de Processo (SALLES:
2006), que possui base geneticista e é embasada pela semiótica Peirceana,
apresenta como metodologia de pesquisa a análise de documentos e registros
dos processos de criação de obras artísticas, midiáticas e científicas, bem como
a própria obra.
Diante destes apontamentos metodológicos, tomamos como material de
análise das obras audiovisuais, making ofs, documentários, materiais
audiovisuais contidos nos extras de DVDs e sites oficiais, entrevistas com
diretores e atores publicadas em revistas e sites especializados, materiais
impressos originais ou publicados, como roteiros, cadernos de anotação; bem

1 Empregaremos no desenvolvimento deste estudo o termo audiovisual. Essa escolha se dá por


entendermos que este compreende tanto a produção de obras cinematográficas quanto
televisuais.

14
como a realização de entrevistas com os diretores e preparadores de elenco,
cujas obras serão abordadas neste estudo.

Ao analisarmos os documentos de processo, alguns índices persistiam,


entre eles as relações de criação ator-obra, o espaço laboratorial de criação
denominado pelos diretores como preparação do ator, a presença de
preparadores de elenco nas equipes de produção e a improvisação como mola
propulsora do desenvolvimento do texto/roteiro e da encenação.
Diante da análise desses índices, estruturamos a hipótese que alicerça
esta pesquisa, a de um ator como co-criador da obra audiovisual. No entanto,
como uma via de mão-dupla, a inserção de um ator que colabore para a
emergência da obra gera a necessidade de novas relações de criação,
causando assim deslocamentos de alguns procedimentos inerentes a uma
práxis fundamentada no rigor e na precisão, como a cinematográfica.
Diante da hipótese construída, abrimos uma ampla frente de reflexão
sobre a fundamentação do trabalho atoral na criação audiovisual. Pois, que ator
é este que esta em cena? Quais são as bases de criação e preparação deste
ator? Como se estabelece a relação de co-criação do ator com a obra
audiovisual?
Ao lançarmos um olhar para a história do cinema observamos importantes
diretores e diferentes “métodos” e propostas de abordagem do trabalho do ator,
conforme abordado pela teórica francesa Jacqueline Nacache em LʼActeur de
cinéma (2003), no entanto, é facilmente percebido que grande parte maioria das
produções cinematográficas estão fundamentadas num “textocentrismo”, ou
seja, baseadas no roteiro e em busca de um ator que decore seu texto e
interprete uma personagem. Por outro lado, poucos são os estudos que se
debruçam sobre a análise do trabalho do ator e suas bases de criação no
cinema, pois, a grande maioria da bibliografia nesta área, reduz-se a biografias
de atores ou análise dos métodos de direção.
Na construção desta reflexão revisitamos, então, sistemas e
procedimentos desenvolvidos por pensadores da arte do ator como Stanislávski,

15
Grotówski, Artaud, Barba e Burnier, não com o intuito de investigar esses
sistemas ou aplicá-los como “métodos” para a prática criativa do ator na
contemporaneidade, mas utilizando-os como um campo de referência para a
leitura dos procedimentos para uma dramaturgia do corpo, uma dramaturgia que
emerge da ação e transforma-se em cena audiovisual.
Ao lançarmos um olhar sobre os processos de criação da recente
produção audiovisual brasileira, sobretudo a cinematográfica, percebemos que,
em sua grande parte, os diretores, não buscam por atores que decorem um
texto e interpretem uma personagem, já delineada por um roteiro
cinematográfico, tão pouco se debruçam sobre decupagens ou roteiros técnicos
para pensar a encenação, mas sim propõem uma dramaturgia e uma encenação
que sejam desenvolvidas conjuntamente com os atores. Aproximando-se, assim,
das propostas de criação presentes na performance, na dança e no teatro
contemporâneo.
Em busca da compreensão dos procedimentos que impulsionam estas
propostas de criação pautadas no corpo e que, a nosso ver, balizarão o trabalho
deste ator que estamos nomeando como co-criador, desenvolvemos a primeira
parte desta tese. Intitulada como “Poéticas do corpo em cena”, nesta parte
pontuamos alguns procedimentos, que acreditamos serem importantes para a
fundamentação do trabalho do ator co-criador. Procedimentos como as ações
físicas (Stanislavski) e seus desdobramentos, partitura física, impulso e estímulo
(Grotówski), que em busca de um trabalho do ator sobre si mesmo e do
desvelamento deste, propõem a relação do ator como criador da obra cênica e,
apontam, para um partitura física do ator que é sempre renovada no aqui e
agora da ação.
Ao abordar as proposições de Stanislávski e Grotówski, nos debruçamos
tanto sobre os escritos dos dois pensadores, quanto sobre análises realizadas
por seus estudiosos, estabelecendo uma relação com práticas e pensamentos
mais contemporâneos do corpo, fundamentais ao se falar em relações de co-
criação.

16
Seguindo os apontamentos destes procedimentos, nos agarramos nas
propostas Artaudianas para refletir sobre a relação corpo e intensidade,
fundamentando as relações de atuação e presença nos processos criativos
contemporâneos.
Permeados pela idéia do “ser” e não do interpretar, os processos de
criação audiovisuais contemporâneos nos apontaram para a necessidade de
investigação sobre esta plenitude do ator em cena e essa ruptura com a
interpretação de uma personagem, em busca da individualidade do ator.
Detivemo-nos nos escritos de Artaud, Barba e no Treinamento energético ou
Dança pessoal de Luis Octávio Burnier, bem como na Extrojeção conforme
proposto por Renato Cohen, para compreender essas relações que tanto nos
aproximam dos estudos da Performance e do Teatro contemporâneo.
Entretanto, para a análise desta dramaturgia do corpo na cena
audiovisual, tomamos também as proposições de Helena Katz e Christine
Greiner em Teoria do Corpomídia (2005) para compreender este corpo como um
sistema dinâmico e auto-organizativo.
Se num primeiro momento o que nos interessava eram os procedimentos
empregados na preparação dos atores, conduzindo-os à relação de co-criação,
estas questões levaram-nos a novos questionamentos, intrínsecos à presença
deste ator co-criador na produção audiovisual.
Neste momento, foi importante compreender o que Cecília Almeida Salles
pontua como projeto poético do artista. Segundo Salles (2008) são princípios
direcionadores, de natureza ética e estética, presentes nas práticas criadoras,
princípios relativos à singularidade do artista, um projeto pessoal (e singular),
inserido no tempo e no espaço da criação.
Fruto de um projeto poético estabelecido, a relação de co-criação do ator
é um princípio direcionador que persiste em processos de criação de diferentes
diretores, entretanto, cada qual com sua singularidade, como veremos no
decorrer desta tese.
A multiplicidade de poéticas do ator fica clara quando, ao analisarmos os
projetos poéticos dos diretores, podemos traçar suas singularidades, mas

17
também algumas tendências, sobretudo relativas à inserção do ator co-criador
nos processos de criação audiovisual, que persistem.
Estas tendências que, segundo Salles (2006), são rumos vagos que
orientam os processos de construção das obras no ambiente da incerteza e da
imprecisão, são observadas como atrativas do processo criativo, e serão
pontuadas neste estudo como possibilidades de procedimentos criativos para a
obra audiovisual. Assim, ao propormos os laboratórios como espaço de
investigação e experimentação, tornando-se o grande lócus criador da obra,
apontamos a improvisação e a criação colaborativa como princípios
direcionadores que persistem nos processos de criação pautados na presença
do ator co-criador.
Na construção da segunda parte deste estudo delimitada pela reflexão
sobre o ator co-criador, ao estabelecermos um diálogo entre os laboratórios de
criação audiovisual e os laboratórios cênicos, buscamos apontar como esses
laboratórios se estruturam. Pautados na desordem e permeados pela incerteza
(MORIN: 2007) - estabelecendo-se como sistemas complexos, ao propor uma
prática improvisacional como procedimento para a emergência da obra, gerando
o que estamos denominando com partituras de encenação ou partituras do
diretor, - os laboratórios configuram-se como um sistema botton-up, conforme
apontado pelo pesquisador americano Steven Jonhson (2003).
A partir do arcabouço das teorias da complexidade, buscamos apontar as
relações de criação estabelecidas para a emergência do roteiro, das partituras
físicas do ator e das partituras de encenação, contribuindo para o
desenvolvimento da obra audiovisual.
A partir desses apontamentos, tornou-se clara a busca estética que
permeia as propostas criativas fundamentadas nas proposições ora
apresentadas. Assim, após realizarmos as conexões entre as propostas
laboratoriais para a criação audiovisual e a criação cênica, sobretudo nos
diálogos com a Performance, debruçamo-nos sobre estas buscas estéticas.
À medida que temos um processo criativo fundamentado na
singularidade do ator e na extrojeção, em processos que buscam por um ator

18
que performe em cena, reavivando no aqui e agora da ação, suas partituras
físicas e as partituras de encenação, pontuamos esta busca dos diretores como
uma busca pela espontaneidade em cena.
Permeada pela fluidez e pela ideia de tempo presente, esta
espontaneidade do ator rompe com a ideia de realismo, propondo à cena a
impressão de algo construído diretamente em cena, o que nos leva a pontuar
esta busca por uma estética da espontaneidade.
Seguindo este pensamento, retornamos, na terceira parte deste estudo,
às obras e análises dos filmes e minisséries que impulsionaram todas essas
reflexões. Ainda que de modo breve, buscamos apresentar neste capítulo, um
panorama da produção brasileira entre 2000 e 2008, apontando obras que
trazem o ator como co-criador das mesmas, abrindo espaço para a fluidez
criativa e para a colaboração na produção audiovisual.
Ao apresentarmos os processos criativos dessas obras, bem como
apontar traços dos laboratórios de criação dos filmes Contra Todos (2004), Céu
de Suely (2005), Lavoura Arcaica (2001) e Crime Delicado (2005); e das
minisséries Pedra do Reino (2007) e Capitu (2008), discutiremos conceitos como
o work in process (COHEN: 2008) na cena contemporânea e as bases de
preparação dos atores para o desenvolvimento dessas obras, lançando um olhar
sobre os procedimentos empregados por dois preparadores do cinema
brasileiro: Sérgio Penna e Fátima Toledo.

Como já pontuado, ao inserir o ator como co-criador da obra audiovisual,


num processo de criação fundamentado na investigação laboratorial e na
colaboração, há um deslocamento de alguns procedimentos da tradicional práxis
cinematográfica.
Diante disso, na quarta e última parte deste estudo, intitulada
Desdobramentos de uma prática laboratorial, objetivamos apontar alguns desses
deslocamentos. Preferimos denominar deslocamentos a rupturas, à medida que
acreditamos que o cinema não é um modo de expressão estagnado, fossilizado,
mas sim um sistema dinâmico, conforme apontado por Arlindo Machado (1997).

19
Esta parte do estudo abordará então, temas como as partituras de
encenação ou partituras do diretor, o diretor como encenador da obra
audiovisual, a fluidez das etapas de produção diante da mobilidade do processo
criativo, a composição de figurinos e objetos de cena como desdobramentos de
uma articulação entre corpo, espaço e tempo e a organicidade da montagem.
Assim, buscando apontar essas relações de criação do ator co-criador e a
sua importância para o processo audiovisual contemporâneo, construímos esta
tese, que encontra-se ainda, como seu objeto de estudo, em fluxo e, portanto,
em processo de estruturação e aberta a muitas outras contribuições, que
certamente surgirão.

20
I.
POÉTICAS DO CORPO EM CENA

21
Por uma dramaturgia do corpo

Ao entender o corpo como um sistema dinâmico e auto-organizativo 2,


permeado incessantemente pelo fluxo de informações a partir da relação corpo-
espaço-tempo, o ator, este corpo artista que traz consigo toda a complexidade
humana, ao ser inserido em um processo de criação como co-criador, propõe
possibilidades de ação e encenação, descobre caminhos, constrói sua própria
dramaturgia. Uma dramaturgia que emerge do corpo, da ação.
Conforme explicitado por Christine Greiner (2005, p.73), o modo como
esta dramaturgia se organiza em tempo e espaço é também o modo como as
imagens do corpo são construídas e organizadas como processos de
comunicação.
Na condução desta dramaturgia do corpo 3, muitos foram os sistemas,
métodos, procedimentos ou dispositivos, desenvolvidos por pensadores da arte
do ator. Para a realização deste estudo, com o intuito de apontar as bases de
estruturação do trabalho do ator conduzindo-o a relação de co-criador da obra
audiovisual, percorreremos alguns desses sistemas, não com o objetivo de
refletir sobre eles como um todo, ou localizá-los historicamente numa linha de
pensamento, mas sim, compreender alguns procedimentos que contribuam para
o embasamento do que denominamos de ator co-criador e, sobretudo, para a
prática criativa deste ator na cena audiovisual.
Por uma dramaturgia do corpo, abriremos um forte diálogo com os
estudos da performance, do teatro físico e do teatro contemporâneo. Entretanto,
iniciaremos por pensar as contribuições de Stanislávski e Grotówski, a partir do
estudo das ações físicas, do impulso e da partitura, bem como de Antonin

2 O entendimento sobre o corpo na contemporaneidade, rompe com os paradigmas mecanicistas


(relacionados à ideia do corpo máquina) e vitalistas (do organismo como regido por forças vitais),
abordando-o como um sistema dinâmico e auto-organizativo.” (Nunes:2006, p.11).
3 Abordaremos este tema do ponto de vista do teatro e do audiovisual.

22
Artaud, Eugênio Barba e Luiz Otávio Burnier, no desenvolvimento de
procedimentos para a potencialização corpórea do ator, o que nos conduzirá a
discussão sobre o rompimento com a representação, em busca da presença e
da intensidade, do “Ser” em cena.
Para que, num segundo momento, possamos adentrar questões
pertencentes ao campo da estética e apontar as intersecções entre estes
procedimentos e a prática criativa no trabalho do ator co-criador no audiovisual.

Ações físicas

Durante toda sua pesquisa sobre a arte atoral, Stanislávski apontou a


necessidade do trabalho do ator sobre si mesmo. Sua sistematização (como
todo sistema, dinâmica), passou por várias mudanças ao longo de sua trajetória,
sendo a base de estruturação do treinamento do ator mais difundida no
ocidente, e que influenciou outros grandes diretores, pensadores e escolas 4.
Já no final de sua vida, durante o processo de criação do espetáculo “The
Government Inspector” (1936, p.37), Stanislávski desenvolveu, o que muitos
consideram, uma das suas maiores contribuições para a arte do ator: o “método
das ações físicas”, o que, segundo o diretor e pedagogo argentino Raúl Serrano
(SERRANO apud NUNES, 2006), é um marco epistemológico para as teorias do
ator contemporâneo.
Durante todo seu percurso de trabalho com atores, Stanislávski, partiu de
procedimentos experienciais. Como toda experiência, cada prática leva a novas
questões a serem investigadas. E, assim, o diretor chega à seguinte questão:

Se o intelecto pode inibir e as emoções são volúveis, como o ator pode começar
sua exploração da personagem? Pelo que é mais imediatamente disponível ao
ator, respondendo facilmente seus desejos. O corpo. (BENEDETTI: 1989, pg.
67/68)

4 Dentre elas, o Actor Studios, dirigido por Lee Strasberg. Fundado em 1951 e localizado em
Nova Iorque, nos Estados Unidos, “The Actor Studios” tornou-se a grande referência na
formação de atores para cinema .
Sobre o Actor Studios , consultar: HETHMON, Robert H. El Método del Actor Studios :
Conversaciones com Lee Strasberg. Editorial Fundamentos, Colección Arte, 2004.

23
A partir de então, Stanislávski propôs a seus atores, um trabalho de
investigação e experimentação que tinha como ponto de partida o corpo e os
ritmos corpóreos. Para ele, a noção de ação era inseparável das questões do
ritmo, rompendo com a prática de criação pautada nas impressões do ator sobre
o texto e sua personagem; o que, segundo o diretor, poderia conduzi-lo à
superficialidade. “A lógica e coerência das ações físicas, direcionadas, resultam
em uma lógica coerente com a vida psicológica da personagem” (ibidem, p.
68-69)
Segundo a atriz Maria O Knebel5 , “A pedra fundamental do novo método
era de que o ator deveria tornar-se criador independente de seu papel.” 6
(KNEBEL apud DAMOUR, 2008) .
Nunca desconectado do pensamento da época, Stanislávski ao afirmar
que as emoções não são confiáveis, nem os sentimentos, propõe que o universo
afetivo do ator, antes despertado por processos mentais, deveria passar a ser
despertado por processos físicos.
Como adverte a pesquisadora Marta Isaacsson (2004), Stanislávski não
afirmava que a ação gera emoção, mas insistia sobre o fato de reviver,
pressupondo a existência da memória afetiva, “onde reside um fundo de afetos
passíveis de serem despertados no presente, agora através da ação física”.
(2004, p. 12)
Segundo Benedetti, para o diretor russo, com o método das ações físicas,
ele propõe que a emoção torne-se um processo. “Se a seqüência de ações é
suficientemente bem trabalhada, o ator decola.” (BENEDETTI: 2000, p.69).
Essa sequência de ações se daria através da improvisação de ações
físicas e, as mais simples ações levariam o ator às ficções imaginárias, criação
de circunstâncias propostas, ou seja, ao ato criador.

5Maria O Knebel foi atriz de Stanislávski no teatro de Arte de Moscou, em 1948 juntamente com
Kedrov (assistente de Stanislavki) fundou o Stanislavsky Drama Theatre.
6 “La pierre angulaire de la nouvelle méthode était que lʼacteur devait devenir le créateur
indépendant de son rôle” (KNEBEL apud DAMOUR, 2008)

24
Entretanto, é importante compreender que as ações físicas são
entendidas, por Stanislávski e seus sucessores, como expressão de uma
necessidade e não como uma simples atividade corporal.
Segundo Isaacsson (2004), para o diretor, as ações físicas são resultado
de uma lógica do próprio comportamento do ator e de suas próprias
experiências, não havendo espaço para o acaso. Contudo, nunca devemos
esquecer que essas ações são reavivadas com a interferência do presente, pois,
como explicitado por Helena Katz e Christine Greiner em “Teoria do
Corpomídia” (2005), o corpo não é um meio por onde a informação
simplesmente passa ou é abrigada, mas sim o resultado do cruzamento entre as
informações que chegam e as que lá já estão.
O que Nunes (2006) ressalta, é que ao realizar uma ação física, o ator
aciona simultaneamente, circuitos responsáveis pelos processos emocionais e
racionais. O ator alcançaria então, a memória afetiva, não a partir do intelecto,
mas, sim, a partir do corpo.
No livro “Stanislávski & The Actor”(1998), o autor inglês Jean Benedetti,
pontua uma série de exercícios propostos por Stanislávski a seus atores, ao
pesquisar o método das ações físicas, que nos mostra que o diretor não
abandonou todos os procedimentos de criação que propunha aos atores, mas
alterou o ponto de partida - que passa a ser o corpo, e não mais o intelecto.
Este último, que acabou sendo difundido, sobretudo pelos americanos, como
psicológico.
Com a morte de Stanislávski em 1938, poucos foram os escritos deixados
pelo diretor sobre o novo método. Entretanto, o caminho apontado por ele
tornou-se o ponto inicial para o desenvolvimento das pesquisas de outros
diretores, entre eles, Jerzy Grotówski.

Impulso, Estímulo, Partitura e Desvelamento

O diretor polonês, dando continuidade às propostas de Stanislávski, em


meados dos anos 60, propôs - em suas pesquisas realizadas no Teatro

25
Laboratório - a ampliação do pensamento sobre o ator criador, fundamentando-o
no desvelamento do ator, ou seja, na doação total deste, num desnudar-se,
desautomatizar-se, abrindo espaço para a espontaneidade e para a fluidez
criativa.
Grotówski (1992) também requisitou um ator que pensa com o corpo, ou
melhor, com suas ações. Um pensar-em-ação ou pensar-em-movimento mais
próximo de uma organicidade proveniente do corpo em ação em tempo
presente. (NUNES: 2006, p.23)

Até o fim de sua vida, Grotówski trabalhou sobre o método das ações
físicas, inicialmente propondo o desbloqueio do que ele denominou como
“corpo-memória” e conferindo ao corpo a liberdade de variações de ritmo; Além
disso, pontuou a necessidade da precisão técnica corporal e a partitura física
desenvolvida pelo ator como um sistema sígnico.
As contribuições de Grotówski para a arte do ator são muitas; porém, nos
deteremos em três pontos: os impulsos, que segundo o diretor precedem as
ações físicas, os estímulos e as partituras físicas.
Inicialmente, é necessário entender o que é uma ação física. Segundo
Stanislávski, a ação física não é um simples gesto, movimento ou atividade
corporal. Grotówski explicou isso em uma palestra proferida durante o festival de
teatro de Santo Arcângelo (Itália) em junho de 19887. Segundo o diretor, as
atividades como lavar prato, limpar chão, fumar cachimbo, não são ações
físicas, são atividades, entretanto, podem se tornar ação quando há uma
intenção, uma solidez. Já o gesto é uma ação periférica do corpo, não nasce no
interior do corpo, mas na periferia. As ações, ao contrário, estão radicadas na
coluna vertebral e habitam o corpo. Já o movimento, por si só não é uma ação,
mas cada ação pode ser colocada, em uma forma, em um ritmo. "Cada ação
física, mesmo a mais simples, pode vir a ser uma estrutura, uma partícula de
interpretação perfeitamente estruturada, organizada, ritmada.” (GROTÓWSKI,
1988)

7 Disponível no site: http://www.grupotempo.com.br/tex_grot.html

26
Segundo Thomas Richards (1993), para o diretor polonês, as ações
físicas são a porta de entrada para a corrente vivente dos impulsos. Os
impulsos precedem as ações físicas sempre, dizia Grotówski. O impulso requer
uma ação interna e a ação interna exige, eventualmente, a ação externa
(ISAACSSON: 2004).

Consideramos que são morfemas os impulsos que transbordam do interior do


corpo para encontrar o “exterior”. Eu disse o interior do corpo; trata-se aqui de
uma certa esfera, que ao modo arriére-pensée definiria como arriére-être, que
compreende também todas as motivações do interior do corpo... (GROTÓWSKI:
2007, p.132)

Para Grotówski, o ator não deveria representar, mas penetrar no território


da própria experiência, reencontrando os impulsos que fluem do próprio corpo,
ativando não somente os estímulos que compõem a ação, mas também a
sensação que conduz o ator à emoção da personagem e da cena. Estes
impulsos estão profundamente arraigados e, ao despertá-los, acontece o
desbloqueamento, conduzindo o ator a um corpo que transcende a
funcionalidade cotidiana.
Dos apontamentos de Grotówski, pontuamos ainda, a importância da
técnica e do rigor da precisão, algo que percorreu toda sua pesquisa, até mesmo
quando rompe com teatro, passando a se dedicar as performnings arts ou a
“Arte como veículo”, conforme nomeado por Peter Brook.
Somados à importância da técnica, estão as partituras corporais e o
estímulo no processo criativo do ator. Para Grotówski, estímulo é aquilo que nos
ajudar a reagir, ou seja, é um agente motivador. Já as partituras, são ações
construídas pelo ator, que ao serem repetidas exaustivamente, conduzem o ator
a organicidade da ação.
Para exemplificar o trabalho com partituras, descreveremos o processo de
Grotówski com o ator Ryszard Cieslak em um de seus principais espetáculos
“Princípe Constante”. Para a montagem desse espetáculo Grotówski trabalhou
por um longo período, apenas com Cieslak. O trabalho consistiu não na criação
de uma personagem, pois não havia personagem a interpretar, mas sim na

27
construção de uma partitura de ações a partir de suas lembranças da infância.
Somente após a construção desta partitura, e já munido de tamanha
organicidade, por dominar esta partitura completamente, é que Grotówski
trouxe-lhe algumas questões da personagem.

No início existe então a partitura de impulsos vivos, que depois é possível


articular em um sistema de signos, porque no fundo não abandonamos
definitivamente essa última ideia.(...) A obra deveria evitar tudo o que é casual, a
obra deve possuir uma certa estrutura e, nesse sentido, a pesquisa da estrutura
se reduz inevitavelmente à articulação dos impulsos que fluem da vida .”(ibidem,
p.133)

Sendo todo processo de criação, um processo de semiose, a partitura


física do ator, construída a partir dos impulsos, constitui a base da atuação.
Sendo uma estrutura externa (física), percorrida pelo ator para reavivar os
impulsos (internos) e, assim, transformar tal estrutura a partir das possibilidades
surgidas na relação com o aqui e agora da ação.
Stanislávski nomeava a partitura como “linha de ações”. Mas, para
Grotówski as partituras do ator, não estão fixadas a tal ponto de serem imóveis,
pelo contrário, “são como leito de um rio” (GROTÓWSKI apud JIMENEZ: 1990).
E estão abertas à imprevisibilidade e à possibilidade de emergir novas ações.
Pois, embora Grotówski pontue o rigor da precisão, este corpo imbricado no
tempo e no espaço nunca repete tudo de forma idêntica. Para o diretor, a
espontaneidade, assim como a improvisação, são frutos de uma perfeita
preparação técnica e de princípios objetivos de atuação.
Para Stanislávski e Grotówski o ator criador é este que trabalha sobre si
mesmo, buscando no seu corpo, todos os impulsos que o levam à criação. E a
estrutura desta criação (partituras), torna-se um procedimento para a
improvisação e para a espontaneidade.
Estabelecendo conexão com os estudos do ator no audiovisual, conforme
será abordado nesta tese, poderemos compreender, a partir deste breve olhar
sobre as proposições de Stanislávski e Grotówski, os princípios empregados por
diretores e preparadores de elenco na condução do processo criativo do ator,

28
bem como na improvisação no set de filmagens. Pois, a criação audiovisual
contemporânea, sobretudo a brasileira, ao propor como parte do processo
criativo, um laboratório de criação com os atores, que tem como princípio
norteador o ator como co-criador da obra, busca, ainda que de forma intuitiva e
investigativa, base para o desenvolvimento das dramaturgias do corpo no
audiovisual.

Corpo e intensidade

Para o diretor francês Antonin Artaud, o trabalho do ator advém de um


processo físico, um corpo em vida, potencializado para a cena, acreditando que
qualquer ator possa, através do conhecimento físico do corpo, alcançar a
espontaneidade em cena. E essa espontaneidade é que leva o ator a contribuir
para o desenvolvimento da encenação, estabelecendo a relação como criador.
Contudo, a espontaneidade está diretamente relacionada ao rigor necessário ao
trabalho do ator.
Em seus escritos sobre o Teatro da Crueldade, Artaud diz: “O espírito da
crueldade significa rigor, aplicação e decisão implacável, determinação
irreversível, absoluta”8 ( OC 9, p. 566).
Adentrando as proposições Artaudianas, iniciaremos por pensar na
relação corpo-respiração, ou no ator como um “atleta afetivo”10 como propunha o
diretor. Para ele a respiração reacende a vida, atiça-a em sua substância.
Assim, “É preciso admitir, no ator, uma espécie de musculatura afetiva que
corresponde a localizações físicas dos sentimentos.” (1999: 151).

8“Lʼesprit cruauté signifie rigueur, application et décision implacable, detérminacion irréversible,


absolue.”
9 Obras Completas.
10 É importante a compreensão do termo afeto na obra Artaudiana, pois não podemos entender

afeto como emoções cotidianas, corriqueiras, mas sim como uma qualidade de experiência,
uma capacidade que o teatro tem de afetar, contagiar de forma vital, aos que dele participam.

29
Baseando-se na cabala e na acupuntura chinesa para os apontamentos
da ação da respiração sobre o corpo, Artaud diz:

Tomar consciência da obsessão física, dos músculos tocados pela afetividade,


equivale, como no jogo das respirações, a desencadear essa afetividade
potencial, a lhe dar uma amplitude surda, mas profunda, e de uma violência
incomum.(...) E assim qualquer ator, mesmo os menos dotados, pode, através
desse conhecimento físico, aumentar a densidade interior e o volume de seu
sentimento, e uma tradução ampliada segue-se a este apossamento orgânico.
(ARTAUD: 1999, p. 158)


Ainda que uma das críticas mais comuns ao trabalho do diretor francês,
seja a falta de proposições claras e metódicas, é extremamente precisa a
relação apontada por Artaud entre ação-respiração e rigor-espontaneidade, na
arte atoral. Segundo o teórico Jean-Jacques Roubine (1998), ao propor uma
prática sobre a relação ação-respiração, Artaud criou bases para um trabalho,
que “...permita o ator dominar, condensar e exteriorizar a energia difusa de seus
estados afetivos elementares”.
Empregando o termo esforço, o diretor francês relaciona a respiração e o
esforço corpóreo, como a base do ator para potencialização deste corpo e o
alcanço das diferentes qualidades de sentimento.

Os movimentos musculares do esforço são como a semelhança de um outro


esforço em dobro, e nos movimentos do jogo dramático se localizam sobre os
mesmos pontos. Onde o atleta se apóia para correr, é onde o ator se apóia para
lançar uma imprecação espasmódica, mas esta corrida é lançada para o
interior . (ARTAUD: OC, p. 584)

Em busca desta potencialização do corpo e por um teatro vivo, pulsante,


o diretor propunha que a cena deveria ser construída em cena, esbarrando nos
obstáculos da própria criação, e seguindo os preceitos do teatro como um rito,
onde a sensibilidade é colocada em um estado de percepção mais aprofundada
e mais apurada. Para Artaud, o ator deveria chegar a uma tomada de
consciência e de posse de certas forças dominantes e, sobretudo, ter

30
conhecimento de que tudo é dirigido, objetivado, e que este “conhecimento”,
traria consigo as energias despertadas.

Proponho à renúncia ao empirismo das imagens que o inconsciente carrega ao


acaso (...) Proponho a volta, através do teatro, a uma ideia do conhecimento
físico das imagens e dos meios de provocar transes, assim como a medicina
chinesa conhece, em toda a extensão da anatomia humana, os pontos que
devem ser tocados e que regam até as funções mais sutis. (ARTAUD: 1999, p.
90/91)

Toda emoção tem bases orgânicas. É cultivando sua emoção em seu corpo que
o ator carrega sua densidade voltaica (...) conhecer as localizações do corpo, é
portanto, refazer a cadeia mágica. (ARTAUD: 1999, p. 160)

Esta energia corpórea, que torna o trabalho do ator vivo, pulsante, capaz
de afetar o espectador, como proposto pelo diretor francês, ao longo do tempo,
continuou sendo pesquisada por diversos diretores e foi uma forte referência
para o teatro energético, proposto pelo filósofo francês Jean-François Lyotard
(1973), “um teatro para além do drama, um teatro de forças, afetos, presença”.
(LEHMANN: 2007, p. 58), que é bastante revisitado na contemporaneidade.
Sobre o conceito de energia no trabalho do ator, o diretor Eugênio Barba
diz em seus estudos sobre as diversas técnicas de representação no Oriente,
publicado no livro A Arte Secreta do Ator - Dicionário de Antropologia Teatral
(1991), que toda tradição teatral possui uma maneira própria de dizer se o ator
funciona ou não, e esse “funcionamento” tem muitos nomes, no ocidente os
mais comuns são: “energia, vida, ou simplesmente a presença do ator.”

Para adquirir esta força, esta vida, que é uma qualidade intangível, indescritível
e incomensurável, as várias formas teatrais codificadas usam procedimentos
muito particulares, um treinamento e exercícios bem precisos. Esses
procedimentos são projetados para destruir as posições inertes do corpo do ator,
a fim de alterar o equilíbrio normal e eliminar a dinâmica dos movimentos
cotidianos. (BARBA e SAVARESE: 1991, p. 74)

Segundo o diretor brasileiro Luiz Octávio Burnier, as ações físicas são o


meio pelo qual o ator entra em contato com suas energias potenciais.

31
Um dos fatos mais importantes para a arte do ator é a capacidade de ele
dinamizar energias interiores que normalmente se encontram em estado
potencial no seu interior (...) A conexão ação física-energia potencial do ator é
fundamental. É o que vai dar vida às ações físicas, tranformando-as em ações
vivas, e a técnica em técnica-em-vida. (BURNIER: 2001, p. 54)

Outra contribuição de Burnier, de extrema importância para o estudo da


potencialização corpórea do ator é o Treinamento energético ou Dança pessoal.
Segundo o diretor (2001) o treinamento energético visa revelar a
humanidade, a pessoa em si, e além de apontar caminhos, resulta em um
conjunto de ações físicas que possuem uma forte ligação com o ator.

O treinamento energético vai além das fronteiras do puramente técnico. Ele


possibilita ao ator entrar em contato e revelar, livre do crivo do intelecto e do
racional, a geografia das regiões mais profundas de sua pessoa. O “treinamento”
provoca e ocasiona uma diminuição do lapso de tempo existente entre impulso e
a ação. O ator extravasa ações corporais e sonoras genuínas, repletas de
sensações e de emoções muitas vezes contraditórias. (PUCCETI, apud
BURNIER: 2001, p. 139)

Fundamentando na exaustão física, o treinamento energético ou a dança


pessoal, propõe que a partir do cansaço físico do corpo, este se abra para
possibilidades de ação. O corpo está cansado, mas motivado, potencializado de
tal maneira que propõe ações por si mesmo, ou seja, segue um fluxo de energia
que o leve a ação.
Nesse sentido e relacionando suas proposições a de Artaud e
Stanislávski, Burnier aponta a importância de encontrar no trabalho do ator, a
materialidade, a corporeidade, dos aspectos interiores. “Esse correspondente
corpóreo, dilatado, é o que constituirá as bases da arte de ator, sem o que ele se
perde no caos das sensações, traduzidas como “sentimentos” e “emoções”.
(BURNIER: 2001, p. 142)
Nessa linha de pensamento, a ideia do “Ser” ao invés do interpretar, se
torna um importante ponto de discussão. Segundo Burnier, “o ator não
interpreta, ele é. Ele não expressa nada, mas simplesmente é com plenitude,
desse estado presente, desse ser, revela-se algo tão importante quanto
difícil...” (2001, p. 149).

32
Essa relação do “Ser” ao invés do interpretar é elucidada pelo teatro
japonês, sobretudo pela dança Butô, na qual a individualidade de cada ator ou
dançarino é a base para o encontro de técnicas próprias e particulares.
É importante a compreensão que o “Ser” a que se refere Burnier, bem
como será constantemente abordado neste estudo, não é o ser psicologizante,
mas sim a ideia de individualidade, de corporeidade, como no Butô.
Nesse sentido, a Dança Pessoal proposta por Burnier11 , colabora para
refletirmos sobre a ideia de intensidade e presença, bem como com a constante
atualização do fluxo energético, no aqui e agora da ação.

Organicidade, fluidez e espontaneidade

Na pesquisa desta potencialização corpórea e na transposição da energia


para a cena, a organicidade, no sentido de algo arraigado no corpo, ou seja,
orgânico, tornando-se assim, uma ação espontânea, natural, singela, é
constantemente revisitada.
A organicidade, para Grotówski, indica algo como a potencialidade de
uma corrente de impulsos do corpo humano, quase uma corrente biológica, que
vem do interior e é empregada na construção de uma ação precisa. Já para
Stanislávski, a organicidade significa que as leis naturais da vida, por meio de
uma estrutura e composição, aparecem na cena e se torna arte.
Entretanto, conforme apontado por Burnier (2001), existem dois planos,
sobre os quais podemos trabalhar. O primeiro é de uma organicidade “real”
interna, que tem a ver com o fluxo de vida que alimenta uma ação, ou seja,
“estamos falando do que é vivo, da vida que emana de um ator”. O segundo é a
impressão de organicidade, “da artificial naturalidade de que nos fala Craig, ou
seja, ao fluir coerente da linha de força de uma ação física ou de uma sequência
de ações físicas” (BURNIER: 2001, p.53)

11 No desenvolvimento da Dança pessoal, Burnier contou com um treinamento com Natsu


Nakajima, discípula de Tatsumi Hijakata, e tendo também trabalhado com o dançarino e
coreógrafo japonês Kazuo Ohno, que ao lado de Hijakata foi um dos grandes criadores do Butô.

33
Atreladas à fluidez, as partituras físicas desenvolvidas pelo ator, a partir
dos impulsos e dos estímulos, serão sempre renovadas no aqui e agora da ação
e, portanto, geram uma impressão de espontaneidade. Impressão, pois a
espontaneidade no trabalho do ator, é algo construído, fruto da preparação e do
processo criativo no qual o ator está inserido.
No trabalho do ator no cinema, a fluidez, bem como a espontaneidade é
algo recorrente, sobretudo na contemporaneidade, diante das opções estéticas
dos diretores. Como disse Peter Brook, realizar uma ação aparentemente
simples de modo que pareça tão natural, requer toda a competência de um
artista, pois este tem que ir muito além da imitação, para que a vida inventada
seja também uma vida paralela, para que não possa distinguir da realidade em
nível algum.
Recorrente nas artes performáticas e no teatro contemporâneo, para a
compreensão desta ideia da espontaneidade como algo construído, tomaremos
como exemplo a obra 18 happenings em 6 partes, de Allan Kaprow, apresentada
em 1959 na Reuben Gallery em Nova Iorque. Uma obra que marca o início do
happening como forma artística.
Segundo Jorge Glusberg (2009), os seis performers executam ações
simples, episódios da vida cotidiana como espremer laranjas, ler textos, produzir
filmes, sons, ruídos e pinturas. No entanto, “o caráter de espontaneidade
implícito nesta nova forma, 18 happenings foi ensaiado durante duas semanas
antes da estreia” (2009, p. 33), e, além disso, os performers seguem um roteiro
minucioso com marcação de tempo e movimento.
A espontaneidade traz consigo a singeleza e o frescor de algo que
acontece no aqui e agora da ação, tornando-se, por um lado, uma característica
estética, mas por outro um procedimento, gerando a necessidade da preparação
do ator e da inserção de um laboratório de criação.
Essa espontaneidade construída, certamente pode ser usada com a
finalidade de produzir um “efeito de verossimilhança” (BARBA: 2009), que dê a
ilusão de ação cotidiana. Entretanto, conforme explicitado por Eugênio Barba
referindo-se ao teatro, mas que podemos aplicar ao audiovisual, qualquer que

34
seja a estética adotada na construção de uma obra cênica, deve existir no
trabalho do ator uma relação entre as partituras das ações físicas e os impulsos
internos, os chamados, por Barba, de “pontos de apoio”. Ainda sobre a relação
de realismo e naturalismo, o diretor diz não existir ações naturais ou não
naturais, mas apenas inúteis ou necessárias. “A ação necessária é aquela que
compromete o corpo todo, que muda perceptivelmente a sua tonicidade, que
implica um susto de energia, mesmo na imobilidade” (BARBA: 2009, p.184).

Portanto, ao falarmos em uma dramaturgia do corpo na cena audiovisual,


apontamos com base nos procedimentos de preparação e treinamento do ator,
abordados até o presente momento, para uma cena que emerge da ação,
desenvolvida em laboratórios de criação a partir do trabalho físico do ator, que
poderá ter como base um roteiro, um livro, um quadro ou qualquer outro
referencial dramatúrgico; no entanto, é construída em cena, a partir do
desenvolvimento de partituras físicas, das improvisações que geram partituras,
das investigações e experimentações que emergem do corpo. Um corpo
potencializado, que é capaz de gerar “ações necessárias” e não inúteis. Um
corpo preparado para desenvolver ações espontâneas, para lidar com o acaso,
com a câmera e com as rupturas, ou como preferimos chamar, deslocamentos
da linguagem cinematográfica.
E é diante desta relação com a espontaneidade que nos aproximamos
dos estudos da performance, para discutir a relação entre atuação e presença.

Atuação e presença

Marcada por um movimento de rupturas, a Performance propõe uma


dessacralização da arte em busca da proximidade arte-vida, trazendo como
característica estética a espontaneidade e a ideia de tempo presente, ou seja,
a ideia de algo que é construído ao vivo, aqui e agora.
No livro “The Transformative Power of Performance” (2008), a teórica
alemã Erika Fischer-Lichte diz que desde a década de 60 há uma tendência

35
performativa na produção artística ocidental. Intitulada por Lichte como
“performative turn”, ou seja, virada performativa, esta tendência permeia todas
as formas de expressão artística.
Contudo, se a década de 60 foi marcada pelo experimentalismo, pelas
rupturas com a estética moderna vigente, foi na década de 70 com experiências
mais conceituais e sofisticadas que a Performance Art pontuou suas marcas
estéticas.
Na música, a introdução da aleatoriedade, dos ruídos e do silêncio de
Stockhausen e Jonh Cage. Na literatura, o fluxo de James Joyce. Nas artes
plásticas, assemblages e environments de Duchamp, Kaprow, Beuys. Na dança,
Isadora Duncam e Merce Cunnigham, inseriram em seus repertórios
movimentos cotidianos, o que foi um passo para a ruptura com a rigidez
coreográfica e, mais adiante, tornou-se a fundamentação da dança
contemporânea realizada por coreógrafos como Pina Baush e Willian Forsythe.
Uma dança que busca não mais bailarinos que decorem suas
coreografias e marcações, mas sim, intérpretes-criadores que propõem suas
trajetórias coreográficas segundo André Lepecki: aprendendo a escutar, a olhar
e a transpor o real para a sala de ensaio.

Ele deve saber como reescrever este real a fim de fornecer ao coreógrafo, não
mais uma matéria primeira, mas já um ʻarranjo artificialʼ. A matéria para a
composição já está composta. A tarefa do coreógrafo consiste então em
extrapolar esta matéria e encontrar uma lógica que lhe sirva melhor, sem deixar
de preservar a pureza de sua essência. (LEPECKI apud DANTAS: 2005, p.37)

Do teatro, a Performance incorporou o laboratório de Jerzy Grotówski e o


Teatro Ritual de Antonin Artaud, rompendo com a ideia de representação e
instituindo a atuação.
Como uma via de mão dupla, as propostas teatrais de Artaud e Grotówski
influenciaram os artistas da performance e esta influenciou uma nova concepção
estética para a cena teatral.

36
É importante ressaltar, como bem apontado por Renato Cohen (2007),
que na performance vão conviver espetáculos de grande espontaneidade,
criados praticamente ao vivo, mas também aqueles altamente formalizados, que
seguem um roteiro estabelecido, são ensaiados e preparados, mas que trazem
como marca a espontaneidade e a atuação.
Ao transitar, do ponto de vista estético, pela tênue linha da
espontaneidade, a performance foi responsável por abrir caminho para o
improviso e para o acaso na criação cênica.
Na produção audiovisual, a discussão acerca das relações com a
performance se estabeleceu, inicialmente, com a vídeoarte e o cinema
experimental dos 60 e 70. Na atualidade, quem ganha destaque é a New Media
Art, sobretudo por ser uma cena de simultaneidades, e abrir um amplo campo de
diálogo entre as artes cênicas, visuais, música e a tecnologia.
Entretanto, a relação com a espontaneidade e a busca pela atuação
proposta pela performance, no audiovisual, é marca fundante dos filmes de
Godard.
Jean Luc-Godard, conhecido pela sua não-direção de atores, buscava
trabalhar diretamente com a singularidade do ator e a liberdade de criação
deste, como ponto de partida para a construção de suas obras. É bastante
conhecida a frase de Godard, em que o diretor francês diz que: a melhor
preparação para o ator é andar cinco quilômetros de bicicleta para chegar ao set
de filmagens.
Frase que é empregada na prática, segundo a atriz Nathalie Baye. Em
uma entrevista, durante a Semana de Cinema de Paris, em 2008, a atriz - ao
falar sobre sua relação com Godard - faz uma comparação com o modo como
Truffaut tratava seus atores, com toda atenção. Disse que, para realizar o filme
Sauve qui peut (la vie) de 1979, dirigido por Godard, ele a acompanhou em sua
casa durante uma semana sem dizer nenhuma palavra sobre o filme, e que
antes da filmagem, ele a deixou no hotel numa pequena cidade no interior da
Suíça por uma semana, sozinha. Quando ela já estava quase desistindo,
recebeu uma ligação de Godard, pedindo-lhe que no dia seguinte acordasse

37
pela manhã, não se maquiasse, pegasse a bicicleta e fosse encontrá-lo. “Assim
é trabalhar com Godard!”, afirma a atriz.
No artigo intitulado “La non-direction dʼacteur selon Godard” (“A não-
direção de ator segundo Godard” in BINH: 2006), o diretor e crítico francês Alain
Bergala, diz que Godard partilha com Rossellini e Antonioni “a recusa, para não
dizer o horror, da interpretação”. Para esses cineastas o ator não deve
compreender, ele deve ser.
Uma das premissas dos cineastas da Nouvelle Vague era romper com a
maneira que atores e diretores trabalhavam, reinventando os corpos, para que
esses pudessem ser bons condutores de ritmo, de gesto e de ocupação do
espaço.
Em oposição à mise-en-scène, Godard propunha a liberdade de criação
para seus atores, estabelecendo um jogo entre ator e diretor, no qual a
espontaneidade e a improvisação eram fundamentais, assim como a mobilidade
da câmera em seguir os atores, e não mais os atores atuarem para a câmera.
O diretor diz ter aprendido com Bresson e Rossellini estratégias para que
o ator não ensaie sua personagem, “incorporando” um outro e não ele mesmo.
Primeiro, consiste em não dar o roteiro aos atores, mesmo que ele exista.
Segundo, se recusa a dar explicações para o ator sobre o personagem que ele
deve interpretar. “Godard sempre respondeu aos atores que lhe perguntavam
sobre as relações ou perfil das personagens que interpretariam no filme: ʻNós
saberemos quando o filme terminar, quem é este personagemʼ. (BERGALA:
2006, p. 69)
Na década de 60, o diretor praticou o “méthode de lʼoreillette”, soprando
nas orelhas dos atores o texto que o próprio ator tinha criado durante as
improvisações, mais tarde passa a trabalhar com a entrega do texto minutos
antes da filmagem, para que o ator não tivesse tempo de criar uma personagem.
Os procedimentos adotados por Godard para o trabalho com a atriz Nathalie
Baye, pontuam algumas relações estabelecidas neste estudo, pois o trabalho de
Godard com seus atores não aborda somente a conhecida improvisação no ato
das filmagens - como praticada por muitos diretores, entre eles Glauber Rocha -,

38
tampouco trabalhar com atores não profissionais; mas sim, propõe uma criação
diretamente em cena, num jogo entre ator, diretor e câmera, trazendo como
resultado estético a espontaneidade, a fluidez e a ideia de tempo presente.
Para isso Godard lança mão de um método específico de treinamento de
seus atores. No caso de Nathalie Baye para o filme Sauve qui peut (la vie), o
convívio em seu dia-a-dia para conhecê-la com mais profundidade, e uma
semana de solidão profunda, fazendo com que a atriz se aproximasse do ritmo
idealizado pelo diretor para o filme, do silêncio e das emoções necessárias à sua
personagem e às cenas.

Na atualidade, a busca pela atuação, está presente nas obras de


diretores como Mike Leigh, Ken Loach, Nomi Kawase, Apichatpong
Weerasethakul e com bastante ênfase, em grande parte das produções
brasileiras. A medida que estas propõem um processo criativo que exija “mais
presença do que representação” (LEHMANN: 2007, p.130), buscando uma cena
ativa, construída diretamente em cena, apontam para o que estamos chamando
de estética da espontaneidade.

Corporeidade e naturalismo

Segundo Renato Cohen, a preparação do ator-performer busca pelo


aprimoramento de habilidades psicofísicas e pelo seu desenvolvimento pessoal,
na qual o objetivo é criar a personagem partindo do próprio ator, num processo
denominado pelo encenador como Extrojeção: “[...] O processo vai se
caracterizar por uma extrojeção (tirar coisas, figuras suas) do que uma
introjeção”. (2007, p.105).
Na performance a ênfase é pela atuação e não pela representação.
Assim, o performer desenvolve, a partir de suas habilidades psicofísicas
trabalhadas em treinamentos, um vocabulário próprio. Que segundo Cohen, “na
construção das figuras – esse termo é mais apropriado que personagem –

39
trabalha-se com as partes da cada atuante. Elas “afloram” nos processos de
laboratório” (idem, p.106)
Dessa maneira, a performance trabalha como a ideia da individualidade
do ator-performer ou atuante. Como vimos na Dança pessoal, proposta por
Burnier, essa ideia de individualidade, do “ser” e não interpretar, está também
presente no teatro, entretanto, este pensamento se dá a partir do momento que
o ponto de partida da criação teatral se torna o corpo. Ou seja, o trabalho
começa a partir do físico, dissociando o corpo da ideia de algo meramente
emocional ou sentimental e dando ao “Ser” o sentido de estar presente, de
presença, fazendo com que a individualidade do ator torne-se parte da criação.
É deste ponto de vista, que compreendemos quando Renato Cohen diz que o
trabalho do performer é muito mais Artaudiano que Stanislavskiano.
Na linha de um teatro que busca no corpo do ator e na sua
individualidade o material expressivo, comunicacional, para o desenvolvimento
da obra, surge a denominação Teatro físico. Com forte relação com a mímica,
com a dança, com o circo e com pensadores como Jacques Lecoq, Etienne
Decroux, Philippe Gaulier, Monika Pagneux, o Teatro Físico 12, segundo a
pesquisadora Lúcia Romano (2008), tem como ponto germinal a junção entre
teatralidade e corporeidade, o que o aproxima também das propostas de
Eugênio Barba, Grotówski e Burnier.

O Teatro físico quer enfatizar a materialidade do evento; physical poderia ser


traduzido como “conectado ou relativo ao corpo”, correspondendo àquilo que
pode ser sentido ou visto e que não existe apenas numa dimensão espiritual ou
mental. A produção eclética, reunida pelo conceito Teatro Físico, é identificada
com a tensão que se apresenta no duplo legado do nome que caracteriza a
ação: uma ação sobre a fisicalidade, gerando uma certa disposição do corpo, em
função de uma teatralidade específica. (ROMANO: 2008, p. 16)

12 Segundo Romano (2008, p.16) “O termo Physical Theatre tornou-se conhecido nas artes
cênicas nas três últimas décadas do século xx, caracterizando uma nova tendência teatral.
Acredita-se que tenha sido cunhado primeiro na Inglaterra, vindo a definir uma gama bastante
diversa de criações que transitam numa área de cruzamento entre a Dança, o Teatro, a Mímica
e o Circo”.

40
Ao estabelecer uma relação entre o Teatro Físico e a Performance,
Romano diz que, “o corpo produz a obra que produz o corpo” (2008, p.47). É
uma relação cíclica. Na construção dessa corporeidade a técnica materializa o
impulso criador, “estabelecendo o fluxo comunicativo entre a pessoa do ator e
seu fazer no e através do corpo” (idem, p.180).
Ao discutirmos sobre a relação de criação a partir do corpo, dois termos
aparecerão com frequência: fisicidade e corporeidade. Para o entendimento
destes, recorreremos aos escritos de Burnier (2001, p. 55). Para o diretor a
corporeidade é a maneira como as energias potenciais do corpo se corporificam,
é a transformação destas energias em músculo, que originarão as ações físicas.
Assim, a corporeidade antecede a fisicidade “Como corporeidade entendo a
maneira como o corpo age e faz, como ele intervém no espaço e no tempo, o
seu dinamoritmo”. Já a fisicidade, “é o aspecto puramente físico e mecânico da
ação física (...) a fisicidade da ação é para nós a forma dada ao corpo”.
No entanto, ao falarmos em Teatro Físico, tão logo surge a imagem de um
teatro com ações fortemente codificadas, de um corpo “extra-cotidiano”13. Mas,
neste teatro vão conviver, assim como na performance, uma corporeidade
teatral, no sentido, de uma corporeidade codificada, “artificial” e uma
corporeidade próxima ao corpo cotidiano, as ações “naturalistas”.
Segundo o diretor Robert McCrea (in ROMANO: 2008), o resultado de
uma obra do Teatro Físico pode ser totalmente naturalista, pois o que interessa é
o ponto de partida do processo de criação, que usa o corpo dos atores um a
um. Assim, podemos falar em “naturalismo físico” e em “veracidade”, no entanto,
um naturalismo que é de outra ordem de um corpo cotidiano, é um naturalismo
cênico, como podemos acompanhar em alguns trabalhos do grupo inglês DV8
Physical Theatre ou no trabalho do diretor canadense Robert Lepage, por
exemplo.

13 Termo empregado por Eugênio Barba e Luiz Otávio Burnier.

41
Esta aproximação entre Performance, Teatro Fìsico e o corpo no
audiovisual, nos auxiliará na reflexão acerca do ator co-criador. Pois, seguindo
uma atuação que pode beirar ao naturalismo, o trabalho do ator co-criador na
cena audiovisual, ao partir de um processo de investigação que emerge do
corpo, busca por esta corporeidade e pela veracidade em cena. Neste processo
todos são criadores, e o ato criativo se dá a partir do encontro das
individualidades, do jogo estabelecido entre eles. É também o jogo, no momento
das filmagens, que conduz esses atores co-criadores a levar para a cena o
frescor da improvisação, gerando uma estética da espontaneidade, que, como
veremos adiante, está presente em grande parte da produção audiovisual
brasileira contemporânea.

42
II
O ATOR CO-CRIADOR

43
Ator e co-criação

Calvino em “Seis propostas para o próximo milênio” diz:

Quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de


experiências, “Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de
objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente
remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis. (1990, p.138)

No jogo da criação, o trabalho atoral é permeado por esse remexer e


reordenar constantemente essa enciclopédia que se encontra em fluxo contínuo.
Pois, o ator, este corpo dinâmico, reorganizável, imbricado biológica e
culturalmente a partir de uma lógica de organização, que é sempre singular,
conforme explicitado pelo biólogo Jakob Von Uexküll (apud GREINER: 2005, p.
54), repleto de experiências, que segundo Helena Katz e Christine Greiner, “[...]
são fruto de nossos corpos, de nossas interações com o ambiente e com outras
pessoas dentro da nossa cultura [...]” (2005, p.132) ao ser inserido num
processo laboratorial de criação contribui para o desenvolvimento deste.
Contribuição que tem como base de sustentação, técnicas e
procedimentos apontados por diversos pensadores da arte do ator, mas que ao
serem revisitados, são também automaticamente modificados, adequando-se às
singularidades do corpo e do processo de criação em si, pois, na construção da
corporeidade a técnica é o impulso criador.
Propor um olhar sobre a dramaturgia do corpo, sobre a relação de co-
criação do ator com a obra, é, portanto, discutir processos éticos e estéticos da
criação audiovisual.
Se, por um lado, o ator co-criador contribui com a encenação, com a
dramaturgia, com o figurino, ao apontar possibilidades para estes, por outro, traz
como marca estética para a obra, a espontaneidade, a leveza e a fluidez .
Num processo criativo que busca pela ação, quase sempre naturalista,
de um corpo em plenitude, o ator co-criador parte de sua individualidade,

44
reordenando-a a partir da relação com o outro e com o universo da obra, num
fluxo contínuo entre a pessoa ator e seu fazer no e através do corpo.
O ator co-criador atua em cena, privilegiando o ato performance, que
como exposto por Paul Zumthor (2000) terá sempre a ideia de presença de um
corpo.
A ideia de presença, deste corpo potencializado, pleno, pronto para lidar
com os acasos das filmagens, não nos distancia de um trabalho fundamentado
no desenvolvimento de partituras físicas, muito pelo contrário, pois estas
servirão, conforme dito anteriormente, para despertar a energia corpórea,
reavivar os impulsos internos, colaborando também como um procedimento para
lidar com a fragmentação das filmagens, conforme abordaremos adiante.
Podemos dividir, então, o trabalho do ator co-criador no audiovisual em
duas partes: na criação laboratorial e nas filmagens.
Na inserção do ator co-criador no desenvolvimento da obra audiovisual, o
espaço do laboratório torna-se fundamental. É o locus criador, é onde a obra
germina.
Fruto de um processo de investigação, pautado na incerteza (MORIN) e
aberto aos “acasos e erros construtores” (SALLES: 2006), o laboratório é
fundamentado em duas ações que poderão acontecer simultaneamente: a
preparação ou treinamento do ator e a improvisação das cenas.
Treinamento no sentido da preparação psicofísica do ator, ou seja,
trabalhos de voz, dança, máscara, palestras, leituras, ou outros necessários
diante da singularidade da obra a ser desenvolvida, que assim como na
performance contribuem para que o ator desenvolva um vocabulário próprio,
para que as partes de cada ator aflorem. A partir dessas partes, ou seja, dessa
individualidade, a corporeidade também é desenvolvida, e, com ela, pequenas
ações que comporão as partituras de cada ator. Essas ações aos poucos vão
crescendo e sendo contaminadas por outras, trazidas por outros corpos. São
células, que agem num processo de retroalimentação. E é a partir dessa troca,
do jogo estabelecido no ato improvisacional, que a obra começa a ganhar
possibilidades de encenação.

45
Ao acompanhar, com olhos atentos, o treinamento e as improvisações
dos atores, os diretores e preparadores lançam estímulos, gerando pouco a
pouco os desenhos das cenas. Como rascunhos que ganham mais força, mais
nitidez e começam a se articular.
Neste processo, temos então, duas partituras, a do ator e a do diretor. A
partitura do ator é incorporada, no sentido de embodied, ou seja, de
compreender no gesto e na ação da experiência humana, as possibilidades de
qualidade daquilo que foi vivido, colocando o sujeito como epicentro do
conhecimento e da cognição, da experiência e da ação (GREINER: 2005, p.35),
já a partitura do diretor é anotada, desenhada ou simplesmente registrada por
um olhar “fotográfico”.
Assim, as improvisações, acompanhadas pelos olhos atentos de
diretores, preparadores e (algumas vezes) de equipe técnica, são como molas
propulsoras da criação, impulsionam a criação atoral, alimentando a
dramaturgia, propondo possibilidades de encenação, de sons, música, objetos
de cena, figurino etc.
Munidos de suas partituras, sejam pertencentes ao corpo ou rascunhadas
em um papel, atores, diretores e equipe seguem para a segunda etapa, as
filmagens. Em busca desta estética da espontaneidade, o jogo, entre os atores
co-criadores é que conduz a transposição do frescor das improvisações para a
cena. Neste palco, mediado pelo olho da câmera, os atores atuam, performam.
O encontro com o aqui e o agora, interfere, propõe, modifica as partituras
desenvolvidas nos laboratórios, mas como diz Grotówski espontaneidade e
disciplina coexistem, e, portanto, essas modificações colaboram com a atuação,
estabelecendo novamente o jogo e a improvisação. Entretanto, neste momento
já seguindo um desenho rascunhado anteriormente.
Diante de uma estética que rompe com a representação, propondo a
“presentação”, ou seja, o estar presente, com maior ou menor compromisso com
a verossimilhança, “o ator oferece sua presença, expõe diretamente seu corpo
em ação, sem utilizar-se somente da personagem para estabelecer mediações
(...) e se aproxima de uma “ iconização crescente” (NUNES:2006, p. 19).

46
Numa alusão ao “teatro vivo” de Antonin Artaud, podemos falar em uma
cena audiovisual viva, pulsante, orgânica, fluida, desenvolvida a partir do e no
jogo entre ator e câmera, criando possibilidades de enquadramento e de
movimentação no ato da filmagem.
Ao atuar o ator co-criador rompe com a interpretação ou representação de
uma personagem já instituída por um roteiro, para lidar com o fluxo das
experiências humanas, propondo possibilidades para sua personagem e para a
obra como um todo. Entretanto, se a presença, a improvisação e o jogo
permeiam a atuação, a plenitude de um corpo em cena, como algo construído, é
a base preparatória para este ator se lançar no processo de criação.
Como característica comum, os processos de criação que contam com a
inserção do ator co-criador possuem bases de criação colaborativas, propõem
uma investigação laboratorial e se fundamentam na improvisação como
elemento propulsor da criação.

Procedimentos de criação

Laboratório – investigação e experimentação

O laboratório nas artes cênicas, ao longo dos anos, se dividiu em duas


faces de composição, uma mais voltada para a preparação do ator em si,
fundamentada no treinamento a partir de uma sistematização técnica e de
exercícios que colaborem para a sua formação, adotada por Stanislávski,
Grotówski, Eugênio Barba e aqui no Brasil por Luis Otávio Burnier e Antunes
Filho; e outra direcionada ao espaço de criação e experimentação para a
construção de uma obra específica, como nos trabalhos de Peter Brook, Robert
Lepage, DV8 Physical Theatre, La Fura del Baus, Ariane Mnouchkine, Teatro da
Vertigem, Companhia do Latão, entre outros brasileiros e estrangeiros.

47
O treinamento, segundo Luis Octávio Burnier (2001), é composto de
exercícios que trabalham os componentes da arte de atuar, ações físicas,
vocais, dinamização de energia, que buscam acordar o fluxo de vida do ator;
gerando possibilidades de viver, de ser radiante, de ser pessoal (GROTÓWSKI:
2007, p. 127).
Assim, o treinamento ou preparação do ator, no sentido de formação, está
relacionado a um processo desenvolvido para o conhecimento ou
conscientização, como dizia Antonin Artaud, para atingir a “musculatura afetiva”
ou as formas fixadas que devem reencontrar os impulsos pessoais e serem
transformadas (GROTÓWSKI: 1997). Reencontrar esses “impulsos” ou acessar
a “musculatura afetiva” exige um árduo trabalho.
Seguindo diferentes sistemas, o treinamento, em suma, parte de uma
preparação física em busca desse fluxo vital, imprescindível para a criação
atoral.
Já os laboratórios de criação, constituem-se como um espaço de
investigação e experimentação, com um objetivo preestabelecido, o
desenvolvimento de uma obra. Nestes laboratórios, a preparação do ator
configura-se como um dispositivo para estimular a emergência de uma ação
criadora. Assim, se em Capitu a proposta do diretor Luiz Fernando Carvalho era
desenvolver uma obra fundamentada esteticamente na dança contemporânea,
seria necessário preparar os atores com um bailarino ou coreógrafo
contemporâneo. Para tal trabalho foi convidada a coreógrafa e bailarina Denise
Stutz, que desenvolve uma pesquisa sobre a improvisação na dança. Já se a
base da criação é a máscara, como em Pedra do Reino, é necessário um
trabalho de criação com máscaras, e então, entra em cena a diretora Tiche
Vianna, do grupo Barracão Teatro, que se dedica à pesquisa da linguagem da
máscara, do palhaço e da commédia dellʼarte.
Nestes casos, a preparação ou o treinamento do ator são direcionados
para a criação; procedimentos que contribuem para o processo criativo do ator,
da direção e de toda equipe técnica e artística.

48
Seguindo este pensamento é que preferimos nomear a etapa, comumente
conhecida na atual produção cinematográfica brasileira como preparação de
atores, de “laboratório de criação”. Pois, diretores, preparadores e atores estão
neste espaço-tempo dos laboratórios imbricados de forma vital para o
desenvolvimento da obra, que obviamente colabora com a formação do ator,
mas não é o foco central.
Nos laboratórios de criação o foco é a obra. A criação ou o aprimoramento
do roteiro, o desenvolvimento das personagens e das relações, e a estruturação
da encenação.
Assim, ao trabalharmos com a concepção de liberdade de criação do ator,
do jogo entre câmera e ator nas filmagens, lidamos com algo construído,
pautado esteticamente na co-criação, na espontaneidade, mas fruto de um
trabalho de criação denso e rigoroso, que, do ponto de vista da criação do ator,
poderá contar com o auxílio de um ou mais preparadores, que contribuirão
tecnicamente ou com estímulos direcionadores.
Como na criação cênica, o laboratório é este espaço de experiência
investigativa. E, ao nosso modo de ver, essa é a grande diferença entre a
criação cinematográfica que se desenrola sobre o texto dramático (roteiro), e a
criação que se dá de forma laboratorial, na qual a obra pode emergir de uma
ideia, um sentimento, uma imagem, um livro e mesmo de um roteiro.
Nos processos de criação que buscam pela experiência investigativa,
trazendo o ator no epicentro, o método de leitura, compreensão e decorar de
texto, ensaio e filmagem, não são suficientes para a criação cinematográfica.
Nesses laboratórios, a preparação do ator torna-se um procedimento que, aliado
a outros, compõe o trabalho laboratorial.

Improvisação

Proposta como um rompimento com a rigidez prefixada do texto, a prática


improvisacional como princípio de criação, visa, segundo Stanislávski, uma
criação a partir de objetivos e emoções nascidos de experiências e projeções

49
pessoais do ator. Ações e emoções surgem na mesma direção do texto, mas
com a espontaneidade do momento da criação. “O caráter espontâneo da
manifestação do momento, desvinculado de ideias rigidamente prefixadas causa
à atuação verdadeiros saltos de criação e composição”. (GUINSBURG: 2002, p.
241)
Em busca desta espontaneidade, dos saltos da criação e da composição
da encenação, a prática do improviso, com toda sua carga de instabilidade e
incerteza, tornou-se a grande mola propulsora de estruturação da obra fílmica.
Alimentados por materiais diversos, preparadores, atores e direção
buscam na improvisação dos atores as possibilidades de desenhos de
encenação. De forma colaborativa, improvisação após improvisação, as relações
entre personagens são construídas, as ações surgem e a obra como um todo
emerge.

Diferentemente do lidar com acasos que acontecem durante as filmagens,


a improvisação no processo laboratorial de criação é um procedimento
instaurado em busca de possibilidades criativas advindas de uma investigação e
de descobertas e “transformações perceptivas, sensoriais e
intelectuais” (BONFITTO: 2001, p.169) dos criadores envolvidos.
Ao estabelecer este procedimento como lugar de emergência criativa,
lida-se com a ideia de liberdade de criação do ator. Porém, como dito por Cecília
Almeida Salles (2008) “A criação realiza-se na tensão entre limite e liberdade.
Limite dado por restrições internas ou externas à obra, que oferecem resistência
à liberdade”.
Na criação cinematográfica, esta tensão entre limite e liberdade envolve
variáveis como tempo de investigação, orçamento, participação efetiva da
equipe envolvida na criação, relação com patrocinadores e co-produtores, limites
impostos pelos veículos de exibição, enfim, são muitas ações externas à obra,
mas são muitas também as restrições internas, diante da proposta estética que
permeia a criação.

50
A prática improvisacional – do desenho à cena

Marcado pela estética da espontaneidade e pela fluidez criativa do ator,


este modelo de processo criativo, presente na criação cênica desde o início do
século XX, se intensificou a partir da década de 60. Propõe uma lógica
processual e orgânica de criação, estabelecendo uma relação de colaboração
entre ator, encenador e equipe.
Na produção cinematográfica, o diretor inglês Mike Leigh, sem dúvida foi
um dos principais diretores a adotar um sistema de criação fundamentado no
laboratório e na improvisação como ponto inicial de desenvolvimento da obra
fílmica. Leigh, que também é diretor teatral, desde a década de 70, produz suas
obras de forma colaborativa, empregando a prática improvisacional no
desenvolvimento do roteiro e do desenho da encenação.
No Brasil, apenas no início dos anos 2000 começamos a acompanhar
processos de produção cinematográficos que empreguem um modelo
laboratorial de criação e com isso rompem com uma tradição da interpretação
clássica da personagem presente no cinema brasileiro.
De mãos dadas, a ética e a estética proposta por alguns diretores
brasileiros, caminham em busca de uma cena viva, ou seja, de uma obra
audiovisual construída em cena, esbarrando nos obstáculos da criação e da
cena, como propunha Artaud.
Assim, em um laboratório de criação, a prática improvisacional é o
espaço-tempo da investigação da encenação. A partir de estímulos
direcionadores lançados pelos diretores ou preparadores, esta prática tanto
alimenta a imaginação com provocações e estabelece limites, quanto estimula
os atores a buscarem possibilidades de encenação para uma mesma cena.
Ações e emoções surgem da relação entre os atores e destes com o espaço
cênico. Destas relações várias soluções surgem para uma mesma cena.
Destas possibilidades, algumas são pinçadas pelo diretor-encenador, que
conduz novamente seus atores até chegarem conjuntamente a um desenho de
encenação, e assim pouco a pouco a obra vai sendo tecida.

51
São processos singulares. Cada diretor estabelece seus procedimentos
tanto para estimular os atores como para conduzir as improvisações da sala de
ensaio para o set de filmagens. Alguns optam por um preparador que conduza o
ator durante as improvisações nos laboratórios, outros preferem conduzir
pessoalmente a improvisação, estabelecendo um jogo entre ator e diretor. Neste
caso, alguns diretores convidam, ou não, preparadores para um trabalho prévio
com os atores.
A singularidade dos processos de criação é um fator extremamente
relevante, entretanto, neste momento nos parece importante lançar um olhar
abrangente para essas práticas, entendendo-as como um sistema vivo, orgânico
e auto-organizativo. Como diz Steve Jonhson (2003, p.14-15), referindo-se às
questões inerentes à biologia, são sistemas botton-up e não top-down, são
completos sistemas adaptativos que mostram comportamentos emergentes.
Pois, a emergência para Jonhson é o movimento das regras de nível baixo para
a sofisticação do nível mais alto. Numa prática improvisacional o que se tem é
um sistema complexo, com múltiplos agentes interagindo de forma dinâmica,
seguindo regras estabelecidas.

Estímulos são regras. Regras que visam ativar processos psicofísicos do


ator. Um estímulo visual, um estímulo sonoro, a instalação de uma situação,
estimulam o ator estabelecendo um jogo. Mas como todo jogo tem regras,
também há limites e restrições que, claramente, auxiliam na emergência criativa.

A partir destas improvisações, surgem ações e emoções, e com elas


alguns desenhos de encenação. Pinçados pelo encenador, as ações e os
desenhos escolhidos são associados, colados a outros, criando uma
possibilidade escolhida. São partituras, compostas a partir dos corpos.
Sérgio Penna, no laboratório de criação de Contra Todos (conforme
explicitado adiante), após algum tempo de trabalho com a atriz Leona Cavalli,
mantendo-a “presa” em uma sala, diz à atriz para que ela “pegasse suas coisas
e saísse da sala”, mas ela somente poderia ir para as ruas localizadas abaixo da
Oficina Oswald de Andrade (local do laboratório). Com este direcionamento, o

52
preparador propunha uma interação da atriz com o movimento cotidiano das
ruas, e estabelecia o jogo entre dois atores (Leona Cavalli e Ailton Graça) que se
encontrariam nessas ruas, sem avisá-los do encontro.

Esse estímulo inicial abriria espaço para uma série de possibilidades de


ação para os atores, naquela circunstância da cena. Muitas das possibilidades
apontadas pelos atores foram incorporadas ao roteiro final do filme e, no
momento das filmagens, os atores sabiam quais eram as emoções e as ações
necessárias à cena. Com uma nova improvisação instaurada e com as ações já
negociadas previamente entre atores e direção, a cena foi filmada.

Na construção das partituras de encenação de Lavoura Arcaica, o diretor


Luiz Fernando Carvalho (2002, p.113) diz que durante as improvisações, ele
observava, anotava as movimentações, ora estimulando fisicamente os
acontecimentos, criando situações, “porque as improvisações, elas eram muito
ricas enquanto mis-en-scène, os atores não paravam de criar imagens”. Como
exemplo cita a cena empurrão que o Pai dá no Pedro, na última festa, “aquilo foi
encontrado na última improvisação”, foi anotado e e foi incorporado a cena.

No entanto, uma das questões da adoção deste processo na criação


audiovisual nos parece ser a transposição dos ensaios para o set de filmagens
com a mesma espontaneidade e fluidez criativa.

Para isso os diretores lançam mão de procedimentos diferenciados,


desde levar para o set toda a improvisação do ator como em Contra Todos de
Roberto Moreira, quanto delimitar o espaço, aquecer o ator, provocá-lo
novamente e só então colocar a lente, como é feito por Luiz Fernando Carvalho.
Estabelecer que o “Ação”! Será dado pelo ator após sua pré-cena, como
proposto por Sérgio Penna e empregado por Laís Bodansky, ou ainda,
reescrever as cenas continuamente e prepará-las para a filmagem como em Céu
de Suely de Karim Ainouz.

53
Com os traços inquietantes da confusão e do inextricável, como diria
Morin, nestes processos a espontaneidade, objetivada pelos diretores e
alcançada pelos atores, estão presentes nas telas, ainda que em algumas
produções elas não fiquem em evidência diante dos procedimentos da práxis
cinematográfica.

Criação Colaborativa

O termo “processo de criação colaborativo” é empregado para nomear


uma prática coletiva, na qual a criação se estabelece a partir do diálogo entre os
criadores envolvidos.
Partilhando de um projeto poético, que segundo Cecília Almeida Salles
(2008), “são princípios direcionadores, de natureza ética e estética, presentes
nas práticas criadoras”, todos os criadores têm o direito e o dever de contribuir
para a realização da obra. É uma proposta de construção a partir de trocas, de
interferências, que traz como princípio criativo a liberdade de criação e a
improvisação.
Bastante difundido nas artes cênicas, este processo, rompe com a
organização hierárquica, propondo a horizontalidade nas relações criativas e a
preservação da individualidade de cada artista. Segundo a diretora Annabel
Arden do grupo inglês Complicité (apud ROMANO: 2008, p.99) “O processo
colaborativo exige tempo, confiança, paciência, disponibilidade, concentração e
criatividade”.
Realizada de forma processual, as obras desenvolvidas
colaborativamente dificilmente podem ser separadas de seu processo de
criação, pois são obras em constante movimento, nas quais o jogo e a
improvisação atravessam a etapa de criação e se imprimem na obra, seja para o
palco ou para as telas.

54
Calcado na incerteza e na “desordem”14, o que temos em um processo
de criação colaborativo é o estabelecimento de um organismo que possui um
projeto poético comum e que cria sua própria organização, de forma singular.
Nesse organismo há os responsáveis por determinadas áreas. No caso de uma
produção audiovisual temos, o diretor, o figurinista, o diretor de fotografia, o
roteirista/dramaturgo, o ator, entretanto, todas as áreas sofrem interferências das
demais gerando irregularidades e instabilidades, modificando e sendo
modificadas a todo momento, até mesmo no set de filmagens.
Assim, num trabalho calcado na criação colaborativa a organização se dá
de forma complexa e a retroalimentação do processo se estende às diversas
áreas da produção audiovisual, pois, a criação é delegada, é conjunta. Não há
autor, há criadores.
A escolha por esta proposta de processo criativo, na produção
audiovisual, estabelece uma relação de investigação estética dos diretores com
suas obras. Pois, ao adotar a criação colaborativa os diretores rompem com a
técnica e com o modo “clássico” da produção cinematográfica, propondo um
período laboratorial de experimentação, no qual o treinamento e a improvisação
dos atores co-criadores tornam-se a base de construção da obra. Neste
processo, vários são os deslocamentos dos modelos hegemônicos de produção
cinematográfica. O primeiro deles é o roteiro.
Na criação colaborativa o roteiro é construído de forma conjunta, a partir
da improvisação dos atores. Ainda que estimulados por um roteiro inicial, por um
livro ou por qualquer outro tipo de obra dramatúrgica, o roteiro é construído em
cena, ao ser experimentado, processado, reorganizado a partir da improvisação
e do jogo dos atores. Acompanhadas pela direção e pelo roteirista/dramaturgo,
as cenas são modificadas a partir da interferência e das proposições que
surgem durante as improvisações.

14 Seguindo o pensamento de Edgar Morin (2007, p.199/200), na desordem estão “as

agitações, dispersões, colisões, ligadas ao fenômeno calorífico; mas estão também as


irregularidades e instabilidades; os desvios que aparecem num processo, que o perturbam e
transformam, os choques, os encontros aleatórios, os acontecimentos, os acidentes (...) Para o
espírito, a desordem, traduz-se pela incerteza”. A desordem coopera para criar organização.

55
Como exemplo, podemos apontar o trabalho de Luis Alberto de Abreu na
criação do roteiro da minissérie Pedra do Reino, com direção de Luiz Fernando
Carvalho. Abreu, que possui longa carreira em teatro, sendo responsável pela
criação dos textos dos espetáculos da Fraternal Companhia de Artes e Malas-
Artes de São Paulo, da qual é o dramaturgo residente, bem como para o Grupo
Teatro da Vertigem, Galpão, entre outros; é conhecido por trabalhar de forma
colaborativa com os grupos com os quais desenvolve parceria.
Para a elaboração da dramaturgia de Pedra do Reino15, o dramaturgo
juntamente com o roteirista Bráulio Tavares e o diretor Luiz Fernando Carvalho,
desenvolveram as primeiras versões do roteiro. Entretanto, numa viagem à
cidade do Recife, capital do Estado de Pernambuco, Carvalho ao assistir uma
manifestação popular de Cavalo Marinho, decidiu trabalhar com a estrutura
cíclica desta manifestação, bem como com a composição de vários personagens
por um mesmo ator, como estrutura narrativa da minissérie. O roteiro, então, foi
todo reformulado e Abreu, foi convidado pelo diretor, a se juntar a equipe que
estava em Taperoá, interior do Estado da Paraíba, onde desenvolviam os
trabalhos laboratoriais de pesquisa, preparação e produção da obra.
Acompanhando os laboratórios com os atores, o roteiro foi sendo tecido
de forma conjunta16 , a partir das improvisações dos atores sobre o texto de
Ariano Suassuna.
Também de forma colaborativa, o diretor e roteirista Roberto Moreira,
reescreveu o roteiro do longa-metragem Contra Todos. Segundo o diretor, todos
os diálogos foram improvisados e o roteiro inicial era testado e modificado
diariamente durante o laboratório com os atores.
Assim também ocorre nos processos criativos do diretor inglês Mike
Leigh, conhecido por seu trabalho de improvisação com os atores para o
desenvolvimento da obra. Para o diretor, é imprescindível não se trabalhar com

15 Obra adaptada do romance homônimo de Ariano Suassuna e exibida pela Rede Globo de
Televisão.
16 Conforme explicitado pelo dramaturgo em entrevista coletiva durante o lançamento na
minissérie nos cinemas em 2008.

56
um roteiro ou script, mas ir criando ações, diálogos e marcações, que estão em
constante movimento.

O ponto de partida é essencial. Reúno pessoas talentosas e juntos criamos


personagens, situações e diálogos. O universo do filme ganha vida por meio de
um processo criativo que não tem uma duração. Em alguns filmes esse processo
demora mais. Minha função é guiar a equipe e ir desenhando a narrativa numa
linha que me estimule como diretor [...] o princípio básico é que só eu tenho o
conhecimento integral do filme. Cada ator conhece o seu personagem, como na
vida, onde cada um conhece o seu script e, às vezes, nem este. (LEIGH, 2009)

Contudo, se a criação do roteiro se dá de forma processual, durante o


período laboratorial de investigação, etapas como a decupagem e o roteiro
técnico, receberão outro tratamento na criação colaborativa, ou mesmo, sequer
serão realizados.
O jogo ator-câmera, que marca grande parte desta produção, é outra
característica relevante, pois diante de uma proposta de liberdade de criação,
muitos diretores optam por romper com a marcação de cena, delimitação de
espaço e iluminação precisa, propondo o jogo, conforme afirmam os diretores
Fernando Meirelles e José Padilha (2008).
Padilha diz que, em Tropa de Elite (2007), não seguiu o roteiro, nem
marcou a posição dos atores no set, a ação foi toda improvisada, utilizando
somente câmera na mão para seguir os atores. Fernando Meirelles, afirma que
os diretores brasileiros utilizam uma técnica que permitem deixar os atores mais
soltos no set, como se estivessem em uma peça de teatro. “Eles interpretam a
cena do jeito que gostariam, e a gente tenta acompanhá-los com as câmeras...”.
Já o fotógrafo Adrian Teijido17, relata que para produção da minissérie Pedra do
Reino, a técnica e os equipamentos estavam em segundo plano, o que
interessava era o humano, o jogo entre câmera e ator, intermediado por uma
lente, mas com liberdade para criar, com espaço para errar, para propor, para
improvisar.
Lidar com um processo de criação colaborativo, para a produção
audiovisual, exige novos procedimentos de organização e estruturação da

17 Durante entrevista coletiva, no momento de lançamento da minissérie nos cinemas, em 2007.

57
produção. Diante das singularidades que marcam os processos de criação
colaborativos, cada produção estabelecerá seus critérios, diante do projeto
poético estabelecido pelo diretor, entretanto, independente das singularidades
de cada trabalho e obra, lançar mão de um pensamento colaborativo como base
de criação audiovisual, requer o estabelecimento de outros paradigmas de
produção, diferenciados dos modelos de produção hegemônicos do fazer
cinematográfico.
Como diz o diretor Karim Ainouz (2009), as condições são construídas e,
portanto, a improvisação, e a liberdade de criação dos atores são sempre fruto
de uma construção.

Contribuições Estéticas

Estética da Espontaneidade

A espontaneidade, como vimos, é fruto de uma preparação técnica, de um


treinamento baseado na poiesis, “a ação de trazer algo à tona” (BONFFITTO:
2009, p.37), fazendo com que a obra emerja, a partir de princípios objetivos da
atuação.
Ao propor um processo criativo laboratorial e inserir o ator como co-
criador, almejando que este contribua com o desenvolvimento da obra, há um
rompimento com a ideia de interpretação ou representação de uma personagem
e de um contexto já dado, solidificado, em busca de um processo criativo que é
fundamentado na singularidade do ator e na extrojeção (COHEN: 2007), ou seja,
onde o ator não interpreta ou representa uma personagem, mas sim cria uma
personagem a partir de seu próprio corpo e atua ao colocá-lo em cena,
colaborando para a emergência da obra.
É a partir desta perspectiva, que apontamos a estética da espontaneidade
como uma marca da atual produção audiovisual brasileira. Ao propor uma

58
estética que valorize mais a presença do que a representação busca-se uma
ideia de tempo presente, no qual a ação se desenrola no aqui e agora.
Fruto de um processo laboratorial de criação, que visa à emergência da
obra como um sistema botton up, fundamentada na inserção do ator co-criador e
na improvisação, esta estética tem por base a colaboração do ator durante todo
o processo de produção.
Assim, nos parece importante tomarmos isso não como uma estética
realista ou uma busca pela verdade, mas sim como uma estética que prima pela
espontaneidade, pela fluidez no processo criativo, imprimindo-a na obra
entregue ao público.
Deste ponto de vista abrimos um diálogo estreito com os estudos da
Performance, tomando-os como o grande lócus de discussão teórica acerca da
criação audiovisual contemporânea. Pois, Kaprow em 18 hapennings em 6
partes, não buscava por uma estética realista, mas sim pela ideia de
espontaneidade, bem como toda a cena performática, por mais formalizada que
esta seja. Pois, como diz Zumthor (2008) “... algo se criou, atingiu a plenitude,
assim, ultrapassa o curso comum dos acontecimentos”.

É na presença do ator, a partir da potencialização corpórea e da


extrojeção, que esta espontaneidade é construída. Entretanto, como vimos, os
impulsos internos potencializados pela ação física, levam à criação, - uma
criação que se estrutura como partituras, e estas são procedimentos para a
improvisação e espontaneidade no set de filmagens.

Assim, se em Contra Todos temos atores que improvisam a todo


momento estabelecendo um jogo com a câmera no ato da filmagem, não é uma
ação naturalista ou uma estética realista que sustenta a busca estética do
diretor, mas sim a espontaneidade construída, que alicerçará toda a obra. Uma
espontaneidade fruto de uma experiência laboratorial de criação, ou seja, de
algo construído que é renovado no aqui e agora da ação.

59
Seguindo também esta linha tênue da espontaneidade e da extrojeção do
ator, Beto Brant construiu Crime Delicado (2005) propondo que os atores não
representassem uma personagem, mas performassem diante das lentes de
Walter Carvalho. À atriz Lilian Taublib, Brant propôs sua própria superação e
libertação da prótese, num ato performático, bem como a pintura dos quadros
realizada pelo artista plástico Felipe Ehrenberg, que são pinturas realizadas “ao
vivo”, durante as filmagens. No entanto, a performance de Lilian foi elaborada
pela atriz durante os laboratórios de preparação e as pinturas de Ehrenberg, são
continuidade um trabalho já desenvolvido pelo artista e que, portanto, foi
acompanhado pela equipe.
Traço que está também presente no filme O amor segundo B. Schianberg,
lançado pelo diretor, em 2009, no qual a videoartista Marina Previato cria, na
convivência com o ator Gustavo Machado, a obra intitulada O amor segundo
Gala, que comporá o filme.
Produzido inicialmente como uma minissérie exibida pela TV Cultura no
programa Direções III, a obra inspirada no personagem Benjamin Schianberg do
romance Eu receberia as piores noticias dos seus lindos lábios, de Marçal
Aquino, foi produzida com oito câmeras remotas instaladas no interior de um
apartamento, na cidade de São Paulo, onde a videoartista e o ator, conviveram
durante um mês.
Apropriando-se de cenas do espetáculo de teatro Navalha na Carne e do
vídeo resultante do processo de imersão de Mariana e Gustavo, Brant conduz
seus atores neste limiar da performance, ao propor uma cena construída que
traz a espontaneidade, a fluidez e a idéia de tempo presente como elementos
estéticos fundantes da criação.

Ainda como exemplo desta busca estética, podemos citar o filme Lavoura
Arcaica de Luiz Fernando Carvalho. O “Ser”, e não interpretar, como proposto
por Carvalho a seus atores em Lavoura, tomando Artaud como um “método” de
trabalho, já aponta para esta estética.

60
Ao lidar com um trabalho imersivo dos atores e equipe, fundamentando
todas as suas buscas na frase do poeta Jorge de Lima: “Como conhecer as
coisas, senão sendo-as?”, o diretor propõe a seus atores o rompimento com a
interpretação da personagem, em busca de um processo que chamamos de
extrojeção.

Nesse processo de criação, a partir do ator, você precisa que os atores sejam
co-autores do processo, eles não estão ali como papagaios que repetem um
texto, eles não estão ali automatizados por uma técnica, por uma mecânica, por
um modo de produção, não! Eles estão ali como artistas inventando um corpo,
inventando um personagem, num processo que eu poderia chamar de
desaparecimento. (CARVALHO, 2009).

Em Lavoura Arcaica, todo o laboratório de criação foi desenvolvido a partir


de uma vivência imersiva no espaço-tempo da obra, que fez com que o ato das
filmagens se tornasse uma extensão das atividades diárias.
Com toda a poética do cotidiano do campo, das simples ações da capina
ou do pastorear as ovelhas, às complexas relações familiares, Lavoura se
constrói neste limiar da performance e da espontaneidade. Entretanto, numa
obra altamente formalizada, com belos enquadramentos compostos, com uma
iluminação precisa, o que faz com que cada enquadramento torne-se quase uma
pintura.
Diante de sua formalização, Lavoura Arcaica, nos leva para uma
discussão também presente na performance. Pois, se a performance convive
com espetáculos altamente formalizados e outros de grande espontaneidade,
criados praticamente ao vivo, como diz Renato Cohen (2007); no audiovisual
esta estética da espontaneidade é sempre fruto de uma formalização, imposta
pelos modos de produção, no entanto, as obras apresentarão traços que
acentuam esta formalização ou as tornam menos evidente diante das
possibilidades técnicas cinematográficas. Nesta estética vão conviver obras
altamente formalizadas, como Lavoura Arcaica, e outras que já propõem em

61
suas produções a ruptura com esta formalização, como Contra Todos, Crime
Delicado e O amor segundo B. Schianberg.

Nesse sentido, a estética da espontaneidade, como propomos, se


distancia da estética proposta pelos “cinemas novos” dos anos 60, que
buscavam a partir do emprego de atores não profissionais e/ou da abertura para
o acaso e para a improvisação dos atores no momento das filmagens, por uma
estética realista. Por outro lado, distancia-se também da ideia de um “efeito de
tempo real”, conforme exposto pelo teórico francês Jean-Louis Comolli (2008),
ao analisar o cinema de Jonh Cassavetes.
Comolli no texto “Mais Verdadeiro que o Verdadeiro”( 2008, p. 225) diz
que no cinema de Cassavetes, “o corpo filmado é pulsional, e seu pulsar, suas
tensões, seus saltos de energia, mais ou menos inconscientes, encontram uma
espécie de eco cúmplice no próprio impensado da máquina cinematográfica”.
O diretor americano, que é conhecido por propor a liberdade de criação
a seus atores e a improvisação no set de filmagens, busca, como apontado por
Comolli uma “inscrição verdadeira”(Comolli), gerando a ideia de “tempo real”.
Entretanto, como diz o teórico francês, o tempo real é um artefato e
Cassavetes não o escondeu.

Muitas de suas cenas que parecem improvisadas, aquela incrível


liberdade dos corpos e da câmera (...) são, na verdade, produto de um
trabalho intenso, de dezenas de ensaios, fragmento por fragmento,
frase por frase. (COMOLLI: 2008, p. 227)

Todos esses ensaios, segundo Comolli, têm como objetivo mudar o


estatuto da cena, “fazê-la passar da dimensão da encenação àquela da
experiência vivida”.

O tempo passado nos ensaios torna-se, afinal, a matriz do tempo que


passa e, como ele, se marca nos corpos. A cena como experiência,
como performance, inscreve-se nos corpos dos atores. ( idem, p. 228)

62
No entanto, ao nos referirmos à estética da espontaneidade, falamos de
uma impressão de espontaneidade, pois, esta, como já explicitado é fruto de
algo construído, não só na relação ator - câmera e ator - direção, em ensaios ou
no ato da filmagem, mas num trabalho laboratorial que visa uma experiência
investigativa e a emergência da obra, a partir de uma dramaturgia do corpo, que
emerge da ação.

Assim, ao invés de uma transposição da encenação à “experiência


vivida”, preferimos uma partitura da encenação que emerge da ação e da
investigação do ator co-criador nos laboratórios de criação e são reavivadas,
com a interferência do aqui e agora, nas filmagens.
Quanto ao ator, não se trata de uma ação que se inscreve nos corpos,
mas sim de um corpo que propõe uma ação e, que no ato das filmagens, reaviva
seus estímulos interiores em busca de uma plenitude, pois no cinema do qual
falamos o ator não interpreta uma personagem, ele atua, ele está presente em
cena.
E este “Ser”, este corpo pulsante, potencializado, que ao ser inserido no
contexto da obra retoma e reaviva as partituras de encenação no aqui e agora
das filmagens, trazendo consigo todo o frescor e a espontaneidade gerada por
uma cena que emerge do corpo, no ato improvisacional, neste momento
“performa” diante das lentes, levando para a obra uma estética da
espontaneidade.
Uma espontaneidade construída, almejada, proposta no projeto poético
da obra.

Leveza e Fluidez

Ao falarmos nesta estética da espontaneidade, de maneira complementar,


nos referimos à fluidez do processo criativo do ator e à leveza da ação.

63
Segundo o sociólogo Zigmund Bauman, em sua obra Modernidade
Líquida (2001), os fluidos não fixam o espaço, nem prendem o tempo.
Estabelecendo uma comparação entre sólidos e líquidos, com o intuito de
analisar a sociedade contemporânea, Bauman diz, ao introduzir o leitor à sua
obra, que os fluidos não se atêm a qualquer forma e estão sempre prontos para
mudá-la. “Ao descrever os sólidos, podemos ignorar inteiramente o tempo; ao
descrever os fluidos, deixar o tempo de fora seria um grave erro” (2001, p. 8).
Ainda segundo o sociólogo, os fluidos se movem facilmente. Fluem, respingam,
escorrem, transbordam, inundam.

Apropriamo-nos da metáfora de Bauman para refletir sobre as


contribuições estéticas do ator para a produção audiovisual. A fluidez, tomada
como algo que nunca se repete e prossegue recriando-se, nos auxilia a pensar
sobre a efemeridade da criação cênica, pois a presença do ator é uma presença
sempre mutável, líquida.
Se o espontâneo está na singeleza, na “naturalidade” da ação, esta ação
se dá na fluidez, na dinamicidade. Assim, a estruturação do trabalho do ator,
que parte de partituras físicas, da improvisação e do jogo, jamais poderá ser
associada à solidez; bem como a ideia de intensidade jamais poderá ser
relacionada ao peso, e sim, à leveza. Como apontado por Bauman “a
extraordinária mobilidade dos fluidos é o que os associa à ideia de
leveza” (idem).
Construir essa ideia do aqui e agora da ação, fazendo com que isso se
torne tão presente, que esteja impresso na obra, requer uma grande articulação
em torno da fugacidade dos corpos, dos afetos e da intensidade, bem como da
fluidez dos processos criativos atorais, de sua complexidade e singularidade.
Pois, por mais rápido que as pequenas ações e relações aconteçam, foi esse o
momento no qual elas foram construídas e não um outro.
Essa percepção do tempo, da fluidez do processo criativo, onde esses
corpos dinâmicos estão imbricados de forma vital, em busca da extrojeção,

64
colabora para a construção desta estética marcada pela intensidade e pela
sutileza, à medida que estas estão contidas na leveza.
Uma leveza que segundo Denílson Lopes (2007, p. 75) se apresenta
como um destino, uma procura, e não um conceito rigoroso.

Se Calvino preferia a leveza do pássaro à leveza da pluma, preferindo a


precisão e a determinação em detrimento do vago e do aleatório, poderíamos
pensar as duas levezas como complementares. A leveza do pássaro é uma
leveza da ação (...) enquanto a leveza da pluma no ar, da espuma no mar é a
leveza da deriva, incerta, cheia de surpresas e marcada pelo acaso, no seu
próprio caminho (...) tão presente nas manifestações que incorporam o acaso, o
momentâneo, o fugaz... (LOPES: 2007, p. 77)

Numa criação pautada na presença do ator co-criador, que busca por


possibilidades e não por formas fixadas no tempo ou por certezas, - a leveza do
pássaro, no sentido de uma construção de partituras físicas que são sempre
renovadas no aqui e agora da ação; - e a leveza da pluma que sempre está à
deriva, com um rumo incerto, agindo de maneira fugaz ao explorar as
potencialidades deste corpo fluido, que transborda, inunda, respinga, jorra; estão
presentes caminhando pari passu.

65
III
O ATOR CO-CRIADOR E A CENA AUDIOVISUAL BRASILEIRA

66
Em busca do desvelamento e da co-criação

Acompanhamos, no audiovisual brasileiro contemporâneo, mais


precisamente nas produções realizadas desde o início dos anos 2000, algumas
proposições que pertencem ao campo da estética. Estas proposições nos
chamam a atenção, sobretudo, pela inserção do ator como co-criador da obra,
abrindo frente para uma ampla discussão acerca dos processos de criação
audiovisuais e da relação do ator com estas propostas.
Ao lançar um olhar sobre o processo de criação de um conjunto de obras
audiovisuais brasileiras lançadas entre 2001 e 2009, percebemos a busca por
um trabalho de criação laboratorial, fundamentado na colaboração, no qual o
ator assume um lugar de destaque, tornando-se co-criador da obra.
Como expoentes desta proposta, destacamos os filmes: Cidade de Deus
(2002) de Fernando Meirelles e Kátia Lund, Bicho de Sete Cabeças (2001) de
Laís Bodansky, Contra Todos (2004) de Roberto Moreira, Lavoura Arcaica
(2001), Pedra do Reino (2007) e Capitu (2008) de Luiz Fernando Carvalho, Céu
de Suely (2006) de Karim Ainouz, Cidade Baixa (2005), Mutum (2007) de
Sandra Kogut, Crime Delicado (2005), Cão Sem Dono (2007) e o Amor Segundo
B. Schianberg (2009) de Beto Brant e Tropa de Elite (2007) de José Padilha.
Cada um desses filmes possui singularidades em sua concepção e,
principalmente, produção, mas apresentam como ponto de intersecção o ator
co-criador, buscando nas possibilidades geradas por este ator a sustentação
estética da obra.
A inserção do ator como co-criador nessa recente produção audiovisual,
sobretudo na cinematográfica, se faz presente em oposição à hegemonia do
texto e da representação, como vimos. Contudo, é importante lembrar que o
trabalho desenvolvido pela preparadora de atores Fátima Toledo, no início da
década de 80, com o elenco mirim de Pixote - A lei do mais fraco (1981), com
direção de Hector Babenco, ao propor outra metodologia de preparação dos
atores, já apontava para esta possibilidade de inserção do ator como co-criador.

67
Porém, a inserção do ator como co-criador da obra audiovisual é fruto de
um projeto estético proposto pelo diretor, o que implica em outra ética de direção
e criação. Babenco, que também propôs um trabalho laboratorial com os atores
em Brincando nos Campos do Senhor e Carandiru, ao optar por uma direção
clássica, muitas vezes delimita o campo de criação do ator, tomando-o como
intérprete de uma personagem e não como co-criador.

Sem juízo de valores sobre os processos criativos, refletir sobre o


trabalho com os atores mirins de Pixote, de qualquer forma, pontua esta relação
de co-criação. Tínhamos ali um elenco de meninos de periferia, mas que não
eram menores abandonados, muito menos internos de reformatórios, conforme
os personagens que viveram no filme. Meninos que não sabiam ler, tampouco
escrever e que, com isso, necessitavam de um trabalho de preparação e direção
que não estivesse pautado na leitura e no decorar de um texto. Era necessário
conduzir esses atores à suas personagens. E, então, o diretor optou por
trabalhar com uma preparadora de elenco, vinda do teatro e que naquele
momento atuava como professora de teatro num reformatório para menores,
conhecido como Febem, na cidade de São Paulo.

Como resultado, temos dois elencos, com atuações bastante distintas. De


um lado o elenco mirim, que mesmo com uma direção clássica, atuava,
performava durante as filmagens, tendo passado por esse processo de
treinamento que os conduziu à fluidez criativa e à espontaneidade. De outro, um
elenco com uma interpretação que segue a estética teatral do século XIX,
fundamentada na impostação vocal, na declamação do texto e na marcação da
encenação.

Uma divisão que ainda pode ser vista, com menor intensidade, no filme
Bicho de sete cabeças (2000) da cineasta Laís Bodansky. Diante de um projeto
que envolvia uma temática singular como a loucura, e sendo seu primeiro longa-

68
metragem, a diretora convidou o diretor da companhia teatral Ueinzz18, Sérgio
Penna, para desenvolver um laboratório de criação com os atores que
compuseram o casting dos manicômios, entre eles Rodrigo Santoro, que
protagonizaria o filme.
Baseado no livro O Canto dos Malditos, de Austregésilo Carrano, Bicho
de Sete Cabeças, conta a história de Neto (Rodrigo Santoro), um adolescente
paulistano que é internado pelo pai num manicômio, quando este descobre que
seu filho está fumando maconha.
Segundo Bodansky, uma das características mais marcantes do filme é sua
“estética documental”, no sentido de causar no espectador a sensação de
sempre flagrar um acontecimento cotidiano. “A própria câmera procura mover-se
como quem espia o acontecimento com espontaneidade” (BODANSKY, 2001).
A busca por esta espontaneidade exigia um trabalho atoral aprofundado,
denominado pela diretora e pelo preparador como intimista. Sérgio Penna diz
que, durante a preparação, propôs aos atores que eles fizessem um mergulho
para descobrir a lógica, os rituais expressivos, o vocabulário e a sintaxe originais
do manicômio, buscando na experiência pessoal de cada ator, ecos,
reverberações, solidão, melancolia e desejos, numa identificação densa e
verdadeira.
Calcado em um processo investigativo, fundamentado no binômio ação-
respiração, e num treinamento energético, ações, gestos, olhares e o silêncio de
cada personagem surgiam diante da singularidade de cada ator.

Foi um mês de trabalho onde todos os dias esses atores viviam um grande
mergulho nestas questões mais subjetivas [...] as personagens realmente
nasceram dessas vivências, dessas pessoas, o roteiro estava muito livre, o
próprio personagem do Gero Camilo, o Ceará, não tinha texto verbal nenhum, a
diretora também roteirista não tinha escrito nada, ela tinha uma vaga noção do
que precisava com aquele personagem. (PENNA, 2004)

E foi durante esse processo laboratorial que a diretora e o roteirista, Luiz

18A Cia. Teatral Ueinzz, desenvolve o conceito de Teatro do Inconsciente trabalhando com
pacientes psiquiátricos.

69
Bolognesi, construíram, juntamente com os atores, o roteiro de cada
personagem, com as emoções, seus pontos de virada, com as ações que
culminam em emoções e vice-versa.
O resultado deste processo de co-criação, no qual cada personagem
nasceu no seu tempo, no seu espaço e da sua forma, mas num diálogo
constante entre atores, direção e preparação, pode ser visto nas telas,
principalmente nas cenas dos manicômios; pois no núcleo familiar, formado
pelos atores Othon Bastos e Cássia Kiss, nos deparamos com a tradicional
interpretação das personagens, tal como no elenco adulto de Pixote.
Desse ponto de vista, Cidade de Deus (2002) dos diretores Fernando
Meirelles e Kátia Lund, rompe com essa divisão. Em busca de uma estética
realista, os diretores optaram por não trabalhar com atores profissionais e
buscaram nas favelas do Rio de Janeiro o elenco do filme. O único ator
profissional que compôs o elenco foi Matheus Nachtergaele. Entretanto, é
importante ressaltar que Matheus é um ator oriundo do grupo paulistano Teatro
da Vertigem, dirigido por Antônio Araújo. Durante seu percurso junto a este
grupo desenvolveu trabalhos laboratoriais fundamentados na criação
colaborativa, na improvisação e na inserção do ator-criador para a construção de
espetáculos como O Paraíso Perdido (1992) e Livro de Jó (1995), o que o
aproxima da proposta estética e ética dos diretores de Cidade de Deus.
Retratando o crescimento do crime organizado no bairro homônimo no
subúrbio carioca, entre os anos 60 e o início dos anos 80, Cidade de Deus é
baseado em fatos reais e adaptado do romance de Paulo Lins.
Para o desenvolvimento da obra foi realizado um laboratório, com
treinamento dos atores durante oito meses, sendo seis meses com o diretor
teatral da ONG Nós do Morro, Gutti Fraga, e dois meses de trabalho com a
preparadora Fátima Toledo.
Os laboratórios foram acompanhados pelos olhos atentos de Fernando
Meirelles e Kátia Lund, que buscavam nas experiências trazidas pelos atores, os
diálogos, os gestos e as ações que ajudariam a compor o filme. Em nenhum
momento os atores tiveram contato com o roteiro original, entretanto a condução

70
das cenas previstas no roteiro partiu de um trabalho de estímulo dado pela
preparadora e pelo diretor, resultando na criação das personagens e na
alteração do próprio roteiro, conforme previsto pela direção.
Matheus Nachtergaele, sendo o único ator profissional do elenco, não foi
convidado a participar dos laboratórios, e teria acesso ao roteiro original. Ação
rejeitada pelo próprio ator, que propôs à direção seguir a mesma diretriz dos
outros atores, sem ler o roteiro do filme e com isso podendo improvisar e
contribuir para o desenvolvimento da obra.
Cidade de Deus contou com uma direção que propunha todo o tempo a
improvisação dos atores, abrindo espaço para a organização da ação no ato da
criação. Uma proposta que foi levada para o set de filmagens resultando na
improvisação de cenas importantes ao filme, como a cena da reza antes da
invasão do morro, sugerida e conduzida por um dos atores no momento da
filmagem.

Cidade de Deus (2002)


Sequência - invasão do morro comandado pelo traficante “Cenoura”
bando reza antes da guerra

Cidade de Deus e Bicho de Sete Cabeças colocaram em destaque


questões relativas ao trabalho dos atores e preparadores de elenco no cinema
brasileiro. Com eles, a importância dada aos laboratórios no processo de

71
criação, passou a fazer parte da maioria das produções, desde então, tornando-
se uma marca da criação cinematográfica no Brasil.
Entretanto, são as obras Lavoura Arcaica (2001), de Luiz Fernando
Carvalho, (bem como seu conjunto de obra após o filme) e Contra Todos (2004),
de Roberto Moreira, que aprofundam as relações de co-criação do ator em
busca de uma estética da espontaneidade, na construção da obra audiovisual.

Para a criação de Lavoura Arcaica, - filme homônimo à obra de Raduan


Nassar, que aborda a temática do filho pródigo, - Carvalho, seus atores e equipe
viveram durante quatro meses em uma fazenda no interior de Minas Gerais,
num processo laboratorial de imersão que traz a improvisação, a liberdade de
criação dos atores e a criação colaborativa como marcas das relações de
criação.
Segundo o diretor, o processo do filme tem como ponto partida a
improvisação do ator e, para isso precisava de uma revelação deste, “não um
ator que chegasse a um certo ponto de atuação, mas sim uma revelação”. Para
essa estética era imprescindível outra ética, um trabalho próximo aos atores,
onde toda a equipe se guiaria a partir das improvisações. Sem texto, apenas
baseados em sua leitura pessoal do livro.

Eu me retirei para uma fazenda no interior de Minas Gerais, esvaziei a fazenda


toda, retirei os móveis, só deixei os quartos onde nós morávamos, onde nós
convivíamos, e os salões da fazenda, que eram dois. Eram duas grandes salas
de ensaio, e ali nós fazíamos uma espécie de processo curricular, escolar, nós
tínhamos horários rígidos de trabalho, desde a manhã bem cedo, na terra
fisicamente, como proposta de reequilibrar o corpo, transportar o corpo para uma
outra dinâmica que não fosse urbana [...]. Nossos professores foram os
senhores da Lavoura, ensinavam a gente como caminhar, como colher, como
semear, como plantar, enfim, como trabalhar na enxada, onde o corpo todo vai
criando uma musculatura e uma resposta muito diferente. (CARVALHO: 2009)

Primeiro eu sentia a necessidade de colocar todo mundo igual, sem máscaras


[...] E muito trabalho com terra, improvisação na lavoura, os atores improvisavam
as relações das personagens dentro da própria ação da capina, do tirar leite de
vaca, do semear, eles mesmos plantaram uma horta de feijão, araram a terra...
Mas eles improvisavam usando não só as ferramentas da lavoura, mas usando
também outras ferramentas, as relações do pai e do filho, da mãe e do filho, do
irmão para o irmão. (CARVALHO: 2002 p. 90)

72
Com essa metodologia de trabalho fundamentada na frase do poeta Jorge
de Lima “Como conhecer as coisas, senão sendo-as?”, e de mãos dadas com a
teoria Artaudiana, Carvalho construiu uma obra de extremo rigor técnico, que ao
propor a extrojeção do ator co-criador, buscava pela fluidez das ações, pela
espontaneidade do ator e pela intensidade indiscutível diante de tal presença do
trabalho atoral.
A proposta de processo criativo empregado por Luiz Fernando Carvalho em
Lavoura Arcaica (que se tornou base para todos os seus demais trabalhos), ao
partir da necessidade de um “acontecimento” diante da lente, motivando o
diretor, estabelece um diálogo estreito com as propostas estéticas da
Performance e do Teatro contemporâneo, como abordado anteriormente.
Partindo de uma investigação laboratorial, quase sempre imersiva,
baseando-se na presença e não na representação, traz uma idéia construída de
tempo presente, mas como bem pontuado por Christine Greiner “A informação
nunca existe exclusivamente no presente como algo distinto do passado e do
futuro” (2005, p.115). O ator em contato com o ambiente que o envolve, e
mergulhado em um processo criativo, estabelece inúmeras conexões, formando
uma imensa Rede (SALLES: 2006) que naquele momento em que se apresenta
como um “acontecimento” é capturado pela lente da câmera, para compor o
filme.
Assim, quando o diretor Luiz Fernando Carvalho diz que num processo de
criação audiovisual centrado no ator, há a necessidade de que os atores sejam
“co-autores” do processo, e que esses atores não estejam ali automatizados
pela técnica, mecânica, por um modo de produção, mas sim como artistas
inventando um corpo, uma personagem - num processo que ele denomina como
desaparecimento -, o diretor refere-se à co-criação pautada no desvelamento, na
extrojeção. Um trabalho que parte deste corpo dinâmico e repleto de
experiências, para que nele possa encontrar impulsos que conduzam o ator à
criação da personagem, contribuindo para o desenvolvimento da obra em si.
Contra Todos com direção de Roberto Moreira é outra obra que explora a
co-criação, tomando como princípio criativo a liberdade de criação e a

73
improvisação dos atores. Com o intuito de romper com as marcas de um texto
decorado e em busca da espontaneidade do ator em cena, Moreira convidou o
preparador de elenco Sérgio Penna para desenvolver o laboratório de criação
junto aos atores.
Contra Todos traz no enredo o dia-a-dia de uma família de classe média
baixa da periferia de São Paulo. Violência, mentira e traição são assuntos
corriqueiros para esta família formada por uma adolescente (Soninha), um pai
(Teodoro) que, por trás da fachada de homem religioso, ganha a vida como
matador, e a madrasta (Cláudia).
O roteiro do filme é resultado da tese de doutorado do diretor, defendida na
Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo - USP. No
entanto, o roteiro original sofreu várias modificações durante todo o processo de
realização do filme, muitas delas vindas da contribuição dos atores. Uma
contribuição que foi almejada pelo diretor-roteirista.
A construção das personagens foi feita literalmente na prática, cena após
cena, improvisação após improvisação e os atores contavam apenas com as
provocações, com referências, indicações e pistas para a criação das
personagens e das cenas. “Todos os diálogos, tudo é improvisado” (PENNA:
2004)
Os atores, assim como em Cidade de Deus, não tiveram acesso ao roteiro
durante todo o período laboratorial. Segundo o diretor, no final havia cinco
versões diferentes do filme e uma sexta que foi entregue ao elenco no último dia
de preparação.
“O Penna chegava fazia um aquecimento, um trabalho físico intenso,
instaurava uma situação e os atores improvisavam, a cada improvisação o
roteiro se sustentava”. (MOREIRA: 2009)
Essa metodologia de trabalho pautada na improvisação transcendeu o
laboratório, fazendo parte do dia-a-dia das filmagens. Como diz o próprio
diretor, “os atores já tinham tudo aquilo dentro deles”.

74
Portanto, se Pixote, Bicho de Sete Cabeças e Cidade de Deus são obras
importantes por apontar aos produtores, diretores, teóricos e ao público em
geral, a importância do trabalho do ator como co-criador da obra
cinematográfica, Lavoura Arcaica e Contra Todos, nos lançam em um território
ainda mais profundo da co-criação do ator com o audiovisual aproximando esta
relação cada vez mais de uma estética e uma ética presentes na criação cênica
atual - que, claro, está em diálogo com a arte contemporânea -, apontando
inúmeras possibilidades de conexões entre as artes cênicas e as audiovisuais,
seja a partir da inserção do ator co-criador ou dos modelos de criação.

Preparação de atores

Compondo os laboratórios de criação audiovisual, no Brasil, está a


preparação de atores. Este procedimento ganha cada vez mais visibilidade no
país, sobretudo, pelo reconhecimento do trabalho dos preparadores Sérgio
Penna e Fátima Toledo, que assinam grande parte das preparações de elenco.
Atualmente, outros profissionais começam a se dedicar a esta área de atuação,
bem como, produções de baixíssimo orçamento e de curta-metragem já exibem
em seus créditos o nome de um preparador de elenco.
No entanto, a falta de estudos e bibliografia sobre o assunto, causa ainda
alguns equívocos, por parte da crítica, na compreensão do trabalho
desenvolvido pelos preparadores. Por outro lado, a falta de formação
profissional nesta área de atuação, tanto por parte dos cursos de artes cênicas
quanto de audiovisual, gera uma fragilidade nas atividades desenvolvidas por
alguns preparadores e pela concepção e importância deste trabalho por parte
dos diretores e atores.
Mesmo não visando apontar dados concretos sobre a grade curricular das
principais escolas e universidades do país, que ofereçam cursos na área do

75
audiovisual e das artes cênicas, não é difícil pontuar este déficit na formação de
atores e diretores.
Entretanto, acreditamos que - embora com este déficit, - a produção
audiovisual brasileira contemporânea, já aponta caminhos importantes para o
emprego deste procedimento, ao propor sistemas criativos fundamentados nos
laboratórios de criação e na inserção do ator co-criador, estabelecendo,
conseqüentemente, outro panorama estético.

O preparador

Um dos fatores mais importantes do trabalho do preparador de elenco é


sua relação com a direção. Visando uma preparação psicofísica e o
desvelamento do ator, através da extrojeção, a preparação é um procedimento
que auxilia na potencialização corpórea do ator, que estimula a criação, o jogo e
a improvisação.
Assim, o preparador de elenco é o responsável por estabelecer as bases
estruturantes do treinamento, mas também é aquele que lança estímulos ao
ator, que instaura situações, que propõe o jogo estabelecendo o processo
improvisacional, que pinça partituras físicas que poderão ser trabalhadas ao
longo do treinamento, enfim, é aquele que alimenta esta etapa de aproximação
entre ator e obra, ou melhor, entre o ator e o projeto poético da obra. Assim,
antes de qualquer ação, o preparador compreende as buscas e os princípios
direcionadores apontados pela direção na construção deste projeto poético.

Segundo Sérgio Penna:

O preparador é quase um assistente de direção na prática, ele vai discutir a


dramaturgia, a personagem, ele vai discutir a lógica interna de cada
personagem, ele vai discutir a ação que vai acontecer, então ele vê o profundo
do roteiro, da história e das personagens. O preparador questiona com o diretor
sobre a dramaturgia primeiramente, depois disso, de saber o que o diretor quer,
o preparador passa a fazer o trabalho com o elenco. ( PENNA: 2004)

76
A preparação nos laboratórios de criação audiovisual é realizada em dois
momentos distintos19 , mas, que caminham paralelamente no processo de
desenvolvimento da obra. O primeiro refere-se à potencialização corpórea do
ator; já o segundo momento é composto pela criação e construção da
personagem e da obra em si.
Os processos de preparação são singulares. Cada obra possui suas
especificidades e, conseqüentemente, necessidades no treinamento do ator. No
entanto, a base do trabalho desenvolvido pelos preparadores, principalmente,
por Sérgio Penna e Fátima Toledo20, segue uma busca por uma dramaturgia do
corpo, que, como vimos na primeira parte deste estudo, baseia-se na criação no
corpo e através dele.
Lançando estímulos, conduzindo o ator a superar seus próprios limites,
num desvelar-se, o preparador é, como dizia Grotówski referindo-se ao
encenador, um guia que acompanha o ator nessa descida ao profundo de si
mesmo, ajudando-o a resolver as dificuldades que ele possa encontrar, a vencer
as inibições nos quais esbarra (ROUBINE:1998, p.192), conduzindo-o assim à
fluidez criativa e a espontaneidade, ou como dito por Tadeuz Kantor:

O ator molda tão pouco seu papel quanto o cria ou o imita; permanece antes de
tudo ele mesmo – um ator rico dessa esfera fascinante que são as suas próprias
predisposições e predestinações. (...) ele se “empenha” a fundo, de uma
maneira inteiramente natural, no seu papel, para abandoná-lo desde que julgue
isso necessário, e o dissolver na matéria cênica sempre presente e fluindo
livremente. A esfera da liberdade do ator deve ser profundamente humana.
(KANTOR: 2008, p. XXXVII)

No trabalho com o elenco, a relação entre ator e preparador é uma relação


de cumplicidade e complementaridade, à medida que este se estabelece como
um Work in Process, ou seja, que opera em fluxo, com um grande número de

19 Segundo Antônio Januzelli o trabalho do ator segue duas fases práticas distintas: A primeira
circunscreve-se à preparação do seu instrumental cênico, englobando fundamentalmente corpo,
voz e emoção; e a segunda refere-se ao ato criativo propriamente dito: a criação de um papel
específico em uma encenação. (Antônio Januzelli em “A Aprendizagem do ator”, editora Ática,
1986, São Paulo. pg 6)
20 Para a realização deste estudo nos detivemos na análise do trabalho dos dois preparadores.

77
variáveis abertas, gerando possibilidades, “rascunhos” de cenas e de
personagens.
Segundo Renato Cohen (1998, p. 18), “o produto, na via do work in
process, é inteiramente dependente do processo, sendo permeado pelo risco,
pelas alternâncias dos criadores e atuantes e, sobretudo, pelas vicissitudes do
percurso”.
Diante da instabilidade dos percursos, os preparadores lançam mão de
procedimentos técnicos para auxiliá-los na condução do elenco. Como veremos
a seguir, no trabalho desenvolvido por Fátima Toledo e Sérgio Penna.
Mas, antes de adentrarmos as especificidades do trabalho de Penna e
Toledo, é importante ressaltar a diferença entre a proposta empregada pelos
preparadores e pelos coaches21 . O coach dedica-se exclusivamente à
preparação de um ator, auxiliando na pesquisa para a composição de
determinada personagem, ensaia juntamente com o ator, “passa” texto, enfim,
tem como objetivo preparar o ator para interpretar, da melhor maneira possível,
determinada personagem.
Embora esta ação surja no cinema americano, atualmente a televisão
brasileira tem recorrido aos coaches, para auxiliar a preparação de alguns
atores, como foi o caso da atriz Larissa Maciel na interpretação da personagem
Maysa, para a minissérie Maysa - quando fala o coração (2009), produzida e
exibida pela Rede Globo de televisão, com direção de Jayme Monjardim. Larissa
contou com o acompanhamento da coach Patrícia Carvalho Oliveira,
responsável também pela preparação de Alinne Morais e Matheus Solano na
novela Viver a Vida (2009), exibida pela mesma emissora.
Entretanto, os coaches dedicam-se exclusivamente ao trabalho de um ator,
para uma determinada personagem. Já no cinema brasileiro e em minisséries
como Hoje é dia de Maria, Pedra do Reino e Capitu, também exibidas pela Rede
Globo, com direção de Luiz Fernando Carvalho, os preparadores de elenco

21 O trabalho do coach surge no cinema americano. Atualmente, é bastante empregado pela


televisão brasileira, no acompanhamento de determinados atores, diante dos personagens
interpretados.

78
possuem responsabilidade de trabalhar com todo o elenco, conduzindo-os à co-
criação, para que assim possam contribuir com o desenvolvimento da obra.
São trabalhos bastante diferenciados, para resultados tão diferentes
quanto.

Sérgio Penna22

Com um trabalho sustentado pelo binômio ação-respiração e pelo


treinamento energético, Sérgio Penna (2004) propõe o conceito de ator-autor, ou
seja, um ator capaz de dialogar conceitualmente sobre o filme nos seus mais
variados setores, um ator que contribui para o desenvolvimento da mise-en-
scéne cinematográfica, interferindo em seus diálogos, propondo ações e tempos
dramáticos à direção, pesquisando em seu universo pessoal as matrizes de
criação da personagem. O “ator-autor” é um ator absolutamente consciente do
que está fazendo, de onde ele está entrando e de tudo o que está ao seu redor.

[...] é como se ele fosse lá no fundo para reescrever, ou para se colocar na pele
da personagem de uma maneira que não é simplesmente alguém de fora, ou

22 Sérgio Penna é preparador de atores, diretor teatral e professor convidado de Direção de


Atores do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA/USP;$ da Escuela Internacional
de Cine y TV - Cuba e da Academia Internacional de Cinema-SP. Em cinema, realizou a
preparação de elenco dos filmes “Bicho de Sete Cabeças”, “Chega de Saudade” e “As Melhores
Coisas do Mundo”, de Laís Bodansky; “Carandiru”, de Hector Babenco (filme e série para a TV);
“Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratton; “Contra Todos” e “Quanto Dura o Amor?, de Roberto
Moreira; “Não Por Acaso”, de Phillippe Barcinski; “Antonia” (filme e série para a TV), de Tata
Amaral; “Acquária”, de Flavia Moraes; “Sonhos de Peixe”, de Kirill Mikhanovsky (produção EUA -
Brasil); “Historias de Amor Duram Apenas 90 Minutos”, de Paulo Halm;$ “Lula o Filho do Brasil”,
de Fabio Barreto; “Bellini e o Demônio” de Marcelo Galvão; “O Homem Mau Dorme Bem” de
Geraldo Moraes; “Bróder” de Jeferson De;$ "Bruna Surfistinha, O Doce Veneno do Escorpião", de
Marcus Baldini;$ "Heleno", de José Henrique Fonseca; dentre outros. Também preparou o ator
Rodrigo Santoro para os filmes “Che” de Steven Soderbergh; “La Leonera” de Pablo Trapero; “I
Love You Philip Morris” de Glenn Ficarra e John Requa; e "There Be Dragons" de Roland Joffé.
Em artes cênicas investiga as áreas fronteiras ao teatro: dança, música, circo e
performance. É diretor da Cia. Teatral Ueinzz, na qual desenvolve o conceito de Teatro do
Inconsciente: espaço de encontro entre a arte contemporânea e a linguagem artística de
pacientes psiquiátricos, realizando os espetáculos “Dedalus” e “Gotham SP”. (informações
retiradas do site oficial de Sérgio Penna).

79
seja, é alguém de dentro que resolve contar realmente aquela história e viver
realmente aquelas emoções. Este sentido autoral, este sentido de você escrever
o texto junto com o roteirista, você quase dirigir o filme junto com o diretor, você
está tão por dentro da história, e de tudo, que você começa a sugerir detalhes do
figurino, mesmo que não fique; mas você se apodera de tal maneira, conhece
tão a fundo a sua personagem que consegue discutir com o roteirista, com o
diretor, com o diretor de fotografia, com o diretor de arte”. (PENNA: 2004)

Entretanto, para que o ator torne-se co-criador num processo criativo é


necessário um trabalho que o conduza ao desvelamento. Sérgio Penna opta por
um treinamento energético, que segundo Luis Octavio Burnier (2001), visa
ultrapassar os estereótipos e revelar a humanidade, entrando em contato e
revelando as possibilidades mais profundas da pessoa

Para Burnier, conforme abordado anteriormente, as ações físicas são


fundamentais, não só por serem a base do trabalho do ator, mas também o meio
com o qual ele acessa suas energias potenciais. “Um dos fatos mais importantes
para a arte do ator é a capacidade de ele dinamizar energias
interiores” (BURNIER: 2001, p.54). Energias que o conduzem ao “ser sincero em
cena”, como dizia Grotówski. Assim, mais do que fazer ações, o treinamento
energético visa o contato com vibrações, pulsações do ator, algo que existe em
qualquer pessoa, mas que no ator é potencializado e devolvido em cena.
No fim de um treinamento energético, o corpo está cansado fisicamente,
mas vibrante, pulsante, e a partir de então é que inicia o processo de
disponibilização para a cena. O ator não pensa como fazer uma cena, ele já está
em cena, em ação.
A ação física, este binômio movimento e respiração consegue trazer a tona
algumas emoções que, às vezes, os atores nem sabem que têm ou que
poderiam se disponibilizar para viver aquelas emoções (...) nesta relação do
corpo com a respiração você provoca situações internas muito interessantes.
(PENNA: 2004)

Com este corpo disponível, pulsante, com uma vontade interna que conduz
a ação do ator, o preparador passa a estabelecer o jogo entre atores,
alimentando-os com motes poéticos e rítmicos. Uma vez estabelecida esta
relação, o preparador instaura uma circunstância dada pelo roteiro. A

80
improvisação a partir daí gera inúmeras possibilidades dramáticas para uma
mesma cena.
Sérgio Penna acredita em uma preparação fundamentada num mergulho
vertical do ator, em um trabalho solitário e subjetivo, como descrito pelo ator
Gero Camilo.

No primeiro dia de encontro com o elenco, disseram-me para não ler o roteiro.
Que não era preciso, pra que já de cara eu não me preocupasse em construir
um personagem, pra não estereotipá-lo. Ele viria com o processo. [...] Sabia-se
apenas que era leve, ágil, feliz e perturbado como um beija-flor que sai por aí,
inconteste, cheio de sede de beijos. Com esse 3X4 e o trabalho diário de
praticamente um mês, e com o alpiste que Penna me alimentava, no sentido de
instigar, promover e colher o mais puro néctar de um jardim humano subjetivo e
comum, submergiu o Ceará. E veio que veio. No início nem falava, mas como
todo ʻpassarimʼ que se preza, foi cantando que veio ao mundo. (CAMILO: 2005)

A primeira condução de elenco de Sérgio Penna foi para o filme Bicho de


Sete Cabeças. Propondo aos atores que fizessem um mergulho para descobrir o
vocabulário e sintaxe originais do universo do manicômio, buscando na
experiência pessoal de cada ator uma identificação densa e verdadeira, Penna
buscava no trabalho realizado, as sutilezas de movimentos, de gestos, olhares,
silêncios, lamentos.

Segundo o preparador:

O trabalho em torno da questão dos pacientes psiquiátricos, da loucura que era


o tema central, nós não podíamos em nenhum momento trabalhar com
caricatura, eu tinha realmente que fazer um trabalho de muito mergulho e este
trabalho foi um trabalho em busca da solidão, do tempo diferente, de uma
maneira diferente de se relacionar com o mundo, com as coisas, com as
emoções, ou seja, foi nos aspectos humanos e não nos aspectos formais e
mais caricatos do tema. Foi um mês de trabalho onde todos os dias esses atores
viviam um grande mergulho nestas questões mais subjetivas (...) as
personagens realmente nasceram dessas vivências, dessas pessoas, o roteiro
estava muito livre, o próprio personagem do Gero Camilo, o Ceará, não tinha
texto verbal nenhum, a diretora não tinha escrito nada, ela tinha uma vaga noção
do que precisava com aquele personagem, mas o gero Camilo criou tudo. O
Gero Camilo em um hospital e o Marco Cesana em outro, todos os outros atores
estavam preparados para fazer aquilo, mas os dois começaram a trazer e foram
pinçados, foram eleitos para fazer aquelas personagens. (PENNA: 2004)

Buscando, romper com a caricatura e os clichês da loucura, Penna


estimulou o surgimento de personagens como o Ceará, do ator Gero Camilo;

81
mas também sistematizou um treinamento extremamente técnico, para o
desenvolvimento de cenas como as do ator Rodrigo Santoro no choque elétrico
e na saída da solitária.

Bicho de Sete Cabeças (2001)


Sequencia: choque elétrico
Neto é submetido ao choque elétrico

Bicho de Sete Cabeças (2001)


Sequencia: saída da solitária
Neto sai da solitária depois de tentar se matar colocando fogo no colchão

Como treinamento para a cena da saída da solitária, Rodrigo Santoro


realizou durante um mês um exercício com um balde de água. Santoro enfiava a
cabeça no balde e permanecia até não agüentar mais, ao sair buscava todo o
oxigênio possível para alimentá-lo. Para a cena do eletrochoque, foram
estudadas conjuntamente com médicos, as reações corporais, que serviram de
base para a investigação pessoal do ator.

82
O resultado da investigação pessoal do ator configura-se como partituras
físicas, “provenientes de ações recorrentes que são detectadas ao longo do
treinamento e passam a ser codificadas quase que naturalmente” (BURNIER:
2001, p. 200), que no momento da filmagem eram acionadas a partir de um
aquecimento. Este aquecimento é intitulado por Penna como pré-cena, ou seja,
um tempo do ator para que ele alcance a emoção necessária da ação a ser
filmada. “A ação do ator é dada antes da ação da equipe”. (PENNA: 2004)

As partituras físicas deram origem também a um instrumento desenvolvido


por Sérgio Penna para auxiliar tanto ator quanto diretor no momento das
filmagens. São partituras materializadas em papel, nomeadas pelo preparador
como “gráfico das emoções”, nas quais o ator desenha as ações e emoções do
percurso da personagem do começo ao fim, enquanto o diretor realiza suas
anotações pessoais sobre as anotações do ator. Uma decupagem de cena feita
a partir da improvisação dos atores e das anotações pessoais destes, pode
orientar ator, direção e equipe técnica.

Em Contra Todos, o preparador lançou mão de todos esses artifícios


criados e testados com o elenco de Bicho de Sete Cabeças e outras produções,
das quais havia participado, para colaborar com Roberto Moreira na condução
do elenco.

Com a potencialização do corpo e a disponibilização deste para a criação


no momento das gravações, o set de filmagem se tornou uma extensão da sala
de ensaio. Com isso, a improvisação e o jogo entre ator-câmera e ator-diretor,
eram constantes e naturais ao processo, pois os atores conheciam suas
personagens e seu percurso com propriedade, já que estes tinham sido gerados
por eles mesmos. Enquanto direção e equipe estavam preparados para o
estabelecimento do jogo no momento das gravações, este foi um dispositivo
gerado e testado em laboratório para o desenvolvimento do filme.

Quanto à sua participação no set de filmagens, Penna diz que quando é


convidado a ficar durante as filmagens, aproveita para trabalhar ʻuma espécie de

83
aquecimento, ativando alguns pontos chaves do atorʼ para conduzi-lo à
temperatura da cena que será filmada.

Fátima Toledo 23

Com um processo fundamentado no trabalho físico do ator, Fátima


Toledo diz que este é composto de três etapas. Num primeiro momento é
preciso olhar para essas pessoas, pois são pessoas e não atores,
simplesmente. A partir de exercícios como um abraço ou pedir para que cuide
dela, as pessoas vão revelando seus medos, ansiedades, generosidades,
embates, sonhos etc. Na segunda fase são trabalhadas as relações entre as
personagens, aproximações e conflitos presentes no roteiro. Na terceira e última
fase, a preparadora faz o que nomeia de levantamento de cena, a partir de uma
“geografia sensorial” do ator. “No meio do aquecimento eu levanto a cena, então
evito que decorem. O texto vem. A ação vem, com este aquecimento”(TOLEDO:
2009). A preparadora diz lidar o tempo todo com vidas.
O diretor Walter Salles, que trabalhou com Toledo em Linha de Passe e em
Central do Brasil, nomeia seu trabalho como uma potencialização do roteiro.
Entretanto, preferimos nomeá-lo como uma potencialização do ator, que ao ser
inserido em um sistema de criação, conforme especificado, num estado de
desvelamento, torna-se co-criador da obra, não apenas com o desenvolvimento
de sua personagem e do roteiro, mas com a obra em si
Do trabalho de Fátima Toledo com os atores, podemos destacar quatro
procedimentos fundamentais: exaustão física, aquecimento e levantamento de
cena, relação com o roteiro, imersão no espaço cênico estabelecendo uma

23 Aluna de Eugênio Kusnet, Fátima Toledo atuou como atriz e professora de teatro na Escola
Macunaíma e na antiga FEBEM. Como preparadora iniciou sua carreira em “Pixote - a Lei do
mais fraco” (1981) dirigido por Hector Babenco. Atualmente, possui em seu currículo filmes
como: “Medicine Man”, de John Mctierman com produção executiva de Sean Connery, na
preparação do elenco indígena; “Hans Staden”, “Central do Brasil”, “Cidade de Deus”, “Cidade
Baixa”, “Céu de Suely”, “Casa de Alice”, “Mutum”, “Tropa de Elite”, “Linha de Passe”, “Quincas
Berro dʼágua”, ”Tropa de Elite 2”, entre outros.
Fundadora do Studio Fátima Toledo, oferece cursos de formação de atores para cinema e
televisão. Em 2009, dirigiu juntamente com Sérgio Machado seu primeiro curta-metragem “O
príncipe encantado”.

84
relação espacial de criação.
A exaustão física é uma técnica bastante aplicada no processo de
preparação e criação do ator. Com exercícios precisos – que, segundo Eugênio
Barba (1991), são procedimentos projetados para destruir as posições inertes do
corpo do ator, alterando o equilíbrio normal e rompendo com a dinâmica dos
movimentos cotidianos -, a exaustão contribui para o abandono do impulso
intelectual, deixando que as ações nasçam a partir de impulsos físicos e
emocionais.
São exercícios que potencializam o corpo, gerando os “impulsos” que se
transformam em ação e emoção (Grotówski), que visam despertar a
“musculatura afetiva” do ator (Artaud).
Assim, quando Fátima Toledo realiza um trabalho de exaustão física com
os atores, fazendo com eles externalizem ações e emoções, a preparadora
propõe este rompimento com o equilíbrio normal do corpo cotidiano e o
abandono dos impulsos intelectuais para a construção das cenas.
Com o corpo potencializado (aquecimento), as ações e emoções que irão
compor as cenas surgem de maneira espontânea. Ao inserir as circunstâncias
dadas pelo roteiro (situações) e realizar as aproximações entre os atores,
estabelecendo o jogo entre eles, as possibilidades de movimentação e
dramaturgia para o filme vão surgindo aos poucos. Neste momento, entra a ação
do diretor em aproveitar o que os atores trouxeram, incorporar ao roteiro,
modificar, adicionar ou sobrepor estas possibilidades.
Fátima Toledo diz não saber trabalhar sem roteiro; entretanto, prefere não
distribuí-lo aos atores, para que não decorem os diálogos, nem mesmo criem
suas ações, sem antes experimentá-las. Trabalhando no âmbito da
improvisação, a partir da potencialização do corpo, da relação corpo-espaço, a
preparadora alimenta os atores com estímulos extraídos do roteiro. Neste
processo, tanto as personagens, quanto as relações de aproximação ou
distanciamento entre elas, a relação personagem espaço cênico e os diálogos
vão surgindo e sendo testados.

85
Segundo a preparadora, um dos caminhos tradicionais na condução do
ator é o estudo da construção da personagem, mas para ela a busca é pela
humanização do ator e conseqüentemente do projeto.

É necessário despertar a sensibilidade do ator para viver neste mundo ilusório e


motivar sua imaginação para construir ações reais no universo fictício (...) o foco do
treinamento é na pessoa em si, em despertar o seu desejo de estar em cena, o
prazer de buscar, revelar, jogar (...) para que possamos conduzi-los da maneira mais
apropriada ao conhecimento de si mesmo, do outro e do universo do filme a ser
realizado. (TOLEDO: 2005)24

Como diz a preparadora, “cada filme é um filme, cada elenco é um elenco”,


possuindo singularidades e necessidades específicas na condução dos
processos criativos. Entretanto os procedimentos aqui apresentados estão
presentes em seu trabalho, desde o laboratório com o elenco do filme Cidade de
Deus, até as recentes produções analisadas neste estudo.

Sobre sua atuação no set de filmagens, Toledo diz que seu trabalho termina
assim que se iniciam os ensaios de cena e as marcações.

Laboratório de criação audiovisual

Lavoura Arcaica, Pedra do Reino e Capitu:


Imersão e encenação como experiência investigativa

A criação cênica contemporânea traz como traço fundante de seu processo


criativo a estruturação de um espaço laboratorial interdisciplinar. Segundo a
pesquisadora Marta Isaacsson (2007, p.3) a arquitetura do espaço se reflete no
modelo criador, pois “ali a encenação é uma experiência investigativa”. A obra é
estruturada a partir da interação de diversas áreas da criação, dos atores, do
laboratório de imagens, estúdio de som, ateliê de cenografia e figurino, tendo

24 Depoimento extraído do site: www.studiofatimatoledo.com.br

86
como ponto de partida elementos das mais diversas naturezas. A célula inicial do
processo criativo pode ser uma fotografia, um mapa, um livro, um sentimento.
Enfim, com o abandono do texto dramático, os materiais de criação e a relação
colaborativa dos criadores de variadas áreas, imersos numa experiência
investigativa, alimentam o desenvolvimento do espetáculo cênico.
Um modelo de criação que vem sendo empregado pelo diretor Luiz
Fernando Carvalho, desde Lavoura Arcaica, quando se retirou com toda a
equipe para a Fazenda transformando-a em um grande espaço laboratorial de
interação entre as áreas de criação. Modelo que se repete na produção das
minisséries Hoje é dia de Maria, Pedra do Reino e Capitu.
Os processos criativos de Carvalho são fruto da busca do diretor por um
modelo de produção que o aproximasse dos atores e que a criação pudesse
partir deste encontro. Em meados da década de 90, após a finalização da novela
Rei do Gado, exibida pela Rede Globo de televisão, Carvalho se desligou da
emissora, num momento de profunda crise profissional, desencadeada pela
recusa ao modelo de produção televisual. Pois, para a gravação dos oito
primeiros capítulos da novela, Carvalho e sua equipe seguiram para uma
fazenda no interior de São Paulo, e lá, numa relação direta entre diretor e
equipe, gravaram os oito capítulos iniciais. No entanto após isso, retornaram
para o modelo de produção industrial, com gravações em estúdio.

Eu fiz poucas novelas, mas em todas elas eu sempre tive um grande desejo de
aumentar o numero de externas em relação aos estúdios - apesar de saber que
as cenas mais dramáticas, onde a performance do ator é mais exigida,
encontram melhor possibilidade de realização nos estúdios. Mas eu criava novos
desafios e testava essa fórmula geral, colocando nas externas também as cenas
de maior conflito dramático. Isso por conta da linguagem, pra ver se eu
ʻdesmecanizavaʼ um pouco a linguagem dos estúdios, que na maioria das vezes
é muito pasteurizada. A minha tentativa toda era de humanizar a linguagem,
excessivamente industrial. (CARVALHO: 2009)

Com a certeza de querer trabalhar próximo aos atores, após um longo


tempo de desligamento da emissora e em meio a muitas leituras e pesquisas,
Carvalho decidiu filmar a obra homônima de Raduan Nassar, Lavoura Arcaica.
Para a criação do filme o diretor mergulha em um amplo campo de

87
pesquisa que deu origem ao documentário “Que teus olhos sejam atendidos”
resultado de sua viagem ao Líbano, e de um denso material imagético recolhido
durante suas viagens ao interior de São Paulo, na cidade de Pindorama, onde
Raduan passou parte de sua vida.
Após um longo processo de seleção de elenco e ainda no estágio nebuloso
presente na criação, como nos diz Tarkovski, Carvalho seguiu com sua equipe
para a fazenda na cidade de São José das Três Ilhas, interior de Minas Gerais,
transformando o espaço da fazenda em um grande laboratório de interação e
“inter-retroação” (Morin) entre atores, diretor, direção de arte, figurinista,
cenógrafo, fotógrafo, técnico de som, compositor, montador, palestrantes,
professores de voz, dança, árabe e os “senhores da lavoura”.
O trabalho diário na lavoura foi o procedimento adotado pelo diretor para
inserir os atores neste universo do campo, da simplicidade, do silêncio, no
tempo, ritmo, composição corporal, conduzindo-os à espontaneidade proposta,
desautomatizando-os de técnicas de interpretação e criação de personagem,
para inseri-los como co-criadores da obra. Palestras, aulas de árabe, voz,
dança, completavam o trabalho com o elenco. Guiados pelo livro de Raduan
Nassar, já que para a produção do filme nunca houve o desenvolvimento de um
roteiro, as personagens, as relações entre elas, os diálogos e as cenas em si,
nasciam do dia-a-dia, da vivência cotidiana, que se estendeu para as salas de
ensaio. Pouco a pouco, improvisação após improvisação, leitura após leitura, o
filme foi sendo tecido.

Eram leituras interessantes, fazíamos numa pequena mesa redonda, onde mal
cabíamos todos [...] e o livro passando de mão em mão, eu já determinava essa
parte lê o pai, essa o André, já era uma leitura improvisada, no sentido de eu
propor quem ia ler o quê. Depois, então, levantamos e começamos a trabalhar
improvisações sobre o livro. As pessoas sabiam o livro de cor, os atores já
sabiam a trajetória de seus personagens. (CARVALHO: 2009)

O trabalho de improvisação, que segundo o diretor chegava a durar seis


horas por dia, era acompanhado por todas as áreas da criação, pois, para o

88
diretor, a câmera, a luz, o figurino, a música são ramificações do trabalho do
ator, então, devem acompanhar o processo de improvisação.

A câmera, o figurino, a luz, a música, todos estão em torno e a partir, são


ramificações do ator, não são setores que chegam, cercam e complementam,
não! O procedimento energético do personagem é que vai produzir um tipo de
música, então o compositor assiste as improvisações, o figurinista assiste as
improvisações, o fotógrafo assiste as improvisações. Porque assistindo as
improvisações vai ver: ʻolha aquele gestoʼ, então vou precisar de uma saia com
uma roda maior, eles estão contando a história o tempo inteiro em
improvisações. São improvisações que às vezes duram 6 horas, sem parar, eles
contam a narrativa toda. (CARVALHO: 2009)

Nos moldes dos laboratórios cênicos, os laboratórios de criação


cinematográficos de Luiz Fernando Carvalho são configurados para que todas
as áreas trabalhem de forma conjunta, para que haja diálogo constante entre
todos, são criadores imersos em um sistema de troca e interferências. Assim,
ficar de três a seis meses à disposição dos laboratórios e filmagem é uma
condição sine qua non ao elenco e à equipe.
Se em Lavoura Arcaica a fazenda foi o espaço laboratorial, em Hoje é dia
de Maria o diretor tomou como espaço de criação um Domo, em Pedra do
Reino, a Cidade de Taperoá e em Capitu, um antigo galpão, localizado no centro
do Rio de Janeiro.
A relação espacial nos laboratórios conduzidos pelo diretor, configura-se
sob dois pontos de vista: um, voltado para a interação entre as áreas de criação;
outro, como elemento essencial à criação do ator. Por isso, a escolha por um
trabalho de imersão.
Para a criação da minissérie Pedra do Reino, o diretor e sua equipe se
mudaram para Taperoá, interior da Paraíba. E foi lá, dentro do universo do
sertão que nasceu a minissérie.
Com um processo criativo marcado pela experimentação, pela liberdade
de criação, pelo criar e recriar, pelo fazer e refazer diante dos desvios que
aparecem num processo, para Carvalho, estar no sertão, vivenciar o espaço, era
fundamental na preparação da obra.

89
Conduzidos pelo próprio diretor, os laboratórios contam com a presença
de vários preparadores. Segundo o diretor, após determinar que linguagem de
encenação a obra terá, a própria linguagem determinará os procedimentos
técnicos necessários para o trabalho com os atores.

Existe uma escala de procedimentos técnicos [...] você vai ter ali diariamente as
aulas de canto, de voz, de corpo, de alongamento pra recolocar o corpo, para
ficar mais disponível, [...] Enfim, existem vários procedimentos técnicos, que vão
estruturar esse ator [...] os atores se apóiam nesses procedimentos técnicos
para poder pular. É como se fosse um conjunto de pára-quedas, ele sabe que
ele vai ter que pular, então ele tem que estar com excelentes pára-quedas.
Porque para saber sobre o corpo, sobre a mente, tem que ter aulas com teóricos
para aparelhar essas discussões. (CARVALHO: 2009)

Com uma composição corporal, desenvolvida a partir de um trabalho com


máscaras expressivas conduzido pela preparadora Tiche Vianna, a improvisação
dos atores sobre as cenas escritas previamente pelo dramaturgo e roteirista Luis
Alberto de Abreu e por Bráulio Tavares, era estimulada pelo próprio diretor,
colaborando com a escrita do roteiro.
Segundo Carvalho, a palavra de ordem aos atores era não cair no conforto
da certeza e da segurança, não ter medo do erro. A incerteza traduzia-se em
ordem para a criação de Pedra do Reino.
Tanto em Lavoura Arcaica quanto em Pedra do Reino e Capitu, a busca
pelo desvelamento do ator, pela relação de co-criação e pela estética da
espontaneidade, faz com que o set de filmagens seja uma extensão dos
laboratórios.
Com a necessidade de um acontecimento diante das lentes, Carvalho
propõe no set de filmagens a continuação do processo de improvisação.

Eu realmente levo para as filmagens toda a energia da improvisação, todo o


processo de improvisação [...]. Chego num set de filmagens e vou improvisar
com os atores antes. Reaqueço os atores, exatamente como nas salas de
ensaio, até que eles cheguem num ponto tal que eu, enfim, traga a lente”.
(CARVALHO: 2009)

90
Como exemplifica no livro “Sobre o filme Lavoura Arcaica” (2002), ao
descrever como foi filmada a cena de masturbação e transe da personagem
André, de Selton Mello.

Aquilo é feito uma vez só, um grande improviso. Esquadrinha o chão todo com
as pontas de foco, estimula o ator, e se começa a improvisar com o ator no
caminho da cena, e improvisar mais, improvisar, e já está toda a equipe
sabendo. E quando o ator chegava na sintonia tal, eu simplesmente olhava para
o Walter Carvalho, que estava ali vivendo aquela joça toda e “câmera” e
“Ação!”. O ator mal percebia a passagem do improviso para o momento da
câmera rodando. Eu não queria que Selton imitasse um cara em transe, eu
queria que ele estivesse em transe, que ele fosse o André. (CARVALHO: 2002,
p. 59-60)

Sempre baseados em um processo de imersão, os laboratórios de criação


de Carvalho, contam com uma preparação que busca pelo desenvolvimento de
habilidades psicofísicas e pelo desenvolvimento pessoal do ator. Nesses
processos onde elenco e equipe estão submersos no universo da obra, a
criação é fruto de uma experiência investigativa, pautada na improvisação como
um procedimento que incorpora o acaso, o momentâneo, o fugaz, mas de onde
a obra emerge, viva e orgânica.

Céu de Suely: Imersão e potencialização do ator co-criador

Em busca de criar condições para o desenvolvimento do trabalho de seus


atores para a produção do filme Céu de Suely (2006), Karim Ainouz propõe,
como um dos seus princípios norteadores, um período de trabalho laboratorial
imersivo com o elenco do filme, na cidade de Iguatu.
Segundo o diretor, em Madame Satã, ele se deparou com um elenco que
desconstruía o que ele tinha pensado para cena e propunha algo muito melhor,
sempre. Tinha um elenco entregue, que colaborava com a criação do filme;
nunca tinham feito cinema, então, se entregavam, “era algo visceral, não havia
uma preocupação com a câmera, com o olhar próximo da lente, com a

91
iluminação. Eles se entregavam, se doavam na construção do filme”. E isso o
impressionou muito como diretor, então para fazer Céu de Suely, decidiu que
queria criar uma condição para que os atores se entregassem e pudessem
achar que estavam vivendo aquilo. “Mas é uma condição artificial,
criada” (AINOUZ: 2009).
Para aproximar o elenco feminino do universo da obra, o diretor, juntamente
com a preparadora Fátima Toledo, propôs que as três atrizes morassem juntas
durante dois meses em Iguatu, na casa-locação do filme. Elas andavam pela
cidade com seus figurinos, conviviam diariamente com os problemas, medos e
angústias do cotidiano de qualquer pessoa. Dessa convivência diária nasciam as
personagens e as relações entre elas.
Segundo a preparadora a opção de colocar as atrizes morando juntas é
uma forma de criar uma aproximação entre as atrizes e ocontexto do filme. Céu
de Suely traz isso, ao invés do ator ficar copiando, elas viveram (...) Morar junto,
você se revela.” (TOLEDO: 2009)
Durante o laboratório, as personagens mudaram de nome, assumindo o
nome da própria atriz, e foram construídas, numa relação direta com o espaço-
tempo no qual estavam inseridas.
Céu de Suely, conta a história de Hermila, uma jovem cearense que após
dois anos morando em São Paulo retorna para a casa de sua Avó, em Iguatu, no
interior do Ceará, com seu filho nos braços. Ela espera a chegada do marido
que deve reencontrá-la. Mas ele nunca chega. Sozinha, Hermila tenta reinventar
a sua vida, mas continua com o sonho de ir embora para o lugar mais longe
possível.
Uma história de grande inquietude, que ao mesmo tempo em que exigia da
atriz Hermila Guedes uma proximidade com a cidade de Iguatu, propunha a
rejeição e um certo deslocamento daquele lugar, não-lugar.
A relação com a cidade de Iguatu, foi fundamental para a diluição dos
obstáculos possíveis no desvelar da atriz Hermila, para a personagem Hermila.
Mas, o laboratório de criação na cidade ultrapassou limites ainda maiores,
rompeu com todas as fronteiras que poderiam existir em um roteiro que buscava

92
retratar através da inquietude de uma personagem, a inquietude humana
presente na contemporaneidade - marcada pela “impossibilidade de atingir a
satisfação”, como nos diz Bauman (2001, p.37).
Em uma carta escrita pelo co-roteirista Felipe Bragança, publicada na
revista Contra Campo (2005), ele diz:

Te contei que estamos reescrevendo muitas e muitas cenas do filme ao longo


das filmagens? Karim aposta muito no improviso dirigido dos atores e na
descoberta emergencial dos espaços, ensaiamos com câmera várias cenas e a
partir dos ensaios redefinimos tons e passagens de cada cena, de cada espaço.
Já virei algumas noites reescrevendo seqüências para o Karim ler no café da
manhã.

Durante este período de imersão no sertão cearense, diretor, atores e


equipe iam construindo, criando e recriando diariamente, a partir das
possibilidades geradas pelos atores e pela relação com a cidade de Iguatu.

Contra Todos: Ator-autor e work in process

Como vimos anteriormente, para a produção do filme Contra Todos, o


diretor Roberto Moreira tinha como objetivo romper com as marcas de um texto
decorado pelos atores; mas acabou criando um espaço de investigação que foi
muito além do texto e da marcação. Moreira criou um espaço laboratorial de
investigação e desenvolvimento da obra em si.
Contando com a participação do preparador Sérgio Penna na condução
do laboratório de criação, diretor e preparador instauraram um sistema criativo
complexo, de retroalimentação, no qual estimulavam os atores e eram
estimulados por estes. Neste sistema, o roteiro que era a célula inicial da
criação, precisava ser testado e estava aberto a modificações, se necessário. “O
roteiro é colaborativo. Tenho dificuldade em escrever diálogos, então proponho a
colaboração [...] Os atores estão dentro da cena, eles estão vivendo
aquilo” (MOREIRA: 2009)

93
Com um período de investigação laboratorial de aproximadamente um
mês, preparador e diretor alimentavam os atores com estímulos extraídos do
roteiro inicial, e assim a obra era estruturada, testada e modificada. Cena a
cena, improvisação a improvisação, os diálogos e as relações entre
personagens foram construídos esbarrando nos obstáculos da própria cena,
como propunha Antonin Artaud (1999).
Com o objetivo de dar espaço à fluidez criativa do ator, Roberto Moreira
optou por um método de gravação que valorizasse o trabalho de improvisação
do elenco e o jogo ator-câmera, tornando a filmagem uma continuação do
processo do trabalho com os atores. “Não tem take igual, não repetíamos o
mesmo take. Eles se mexiam muito. Há poucos raccord no filme. Filmávamos
oito, onze vezes a cena. As cenas sempre eram completamente diferentes”.
(MOREIRA: 2009)

Para levar as improvisações para o set de filmagens é necessário o


estabelecimento de outros princípios que nortearão a filmagem e, em Contra
Todos, a opção foi pelo uso de pouca luz artificial, câmera digital com longa
autonomia de captação de imagens, mas principalmente pela cumplicidade do
diretor de fotografia Adrian Teijido e a compreensão de uma ética necessária
para a proposta estética do filme. Construir um filme diretamente em cena, exige
- do ator e da equipe - uma relação de cumplicidade e complementaridade, na
qual os obstáculos, como chamados por Antonin Artaud (2004), ou os erros e
acasos (SALLES: 2006) transformam-se em possibilidades.

Assim como um work in process que produz uma encenação que resulta de
um percurso, Contra Todos se estruturou levando para as telas suas impressões
processuais. No entanto, como uma obra cinematográfica, na montagem muitas
cenas foram repensadas, reprocessadas, como por exemplo, a cena em que o
pai bate em Soninha.

Esta cena, segundo o diretor, foi gravada num dia em que o preparador
Sérgio Penna estava presente no set. E, os atores, simplesmente estabeleceram

94
um jogo tão extremo que se tornou uma grande “surra”, onde Soninha desafiava
o pai, e este batia nela sem limites.

Para o diretor, embora uma ação como esta fosse completamente


verossímil, num filme como Contra Todos, diante do comportamento dos atores,
pediu para que eles repetissem a cena, embora a primeira tomada foi a melhor
e, portanto, a utilizada no filme, com muitos cortes, criando uma unidade com a
cena a seguir, em que Soninha depois da surra tem um pesadelo e se senta no
colo do pai.

No making of, bem como em todo o material de registro de processo, o qual


tivemos acesso, podemos ver claramente como as encenações vão pouco a
pouco sendo construídas, propostas, e reencenadas, num sentido literal de
novas proposições, até as que foram registradas pelas lentes de Teijido e
compõem o filme.

Segundo Renato Cohen (2008, p.21), conceitualmente a expressão Work in


Process, traz a noção de trabalho e de processo. No trabalho acumulam-se dois
momentos, a obra acabada (produto) e o percurso (obra em feitura).

Já o processo como conceito ligado à filosofia hegeliana e suas noções de


ciclo, progressão e reversão, implica na iteratividade, permeação, risco (de o
processo não se fechar). Estabelecendo uma linguagem enquanto percurso e
obra gestada, finalizada nesta trajetória.

Na construção de seu work in process, Roberto Moreira, em entrevista, diz


que sentia muito medo, mas que a cada dia saia do set feliz, alimentado. No final
havia material para muitos outros Contra Todos. O filme entregue ao público foi
uma opção daquele momento da montagem.

Crime Delicado: o percurso como espaço da criação

Desenvolvido a partir de uma tensão entre atriz/personagem, obra/


processo, atuação/representação, Crime Delicado (2005) do diretor Beto Brant,

95
dialoga com o espaço-tempo do teatro, da pintura, da cena sadomasoquista, da
escrita através da crítica e do cotidiano da noite paulistana. Vertebrando-se25
em cena, o filme estabelece um complexo jogo entre atores, linguagens e o
fazer audiovisual.
Inspirado na obra de Sérgio SantʼAnna, Crime Delicado, instaura um
triângulo amoroso entre o consagrado crítico de teatro Antônio Martins, vivido
pelo ator Marcos Ricca, a jovem musa desinibida, atraente e portadora de
inúmeros aspectos inesperados, entre eles uma deficiência física, Inês, vivida
por Lílian Taublib, e o pintor José Torres Campana, vivido pelo pintor mexicano
Felipe Ehrenberg.
Na construção da tensão ator/personagem Brant opta por trabalhar com
um pintor no papel de pintor e com uma jovem que nunca havia atuado e que
possui uma deficiência física no papel de Inês. Na construção do filme o diretor
propõe a atriz Lilian Taublib, sua própria superação e libertação da prótese, num
ato performático que compõe o filme, já à Felipe Ehrenberg, que as pinturas
fossem realizadas “ao vivo”, durante as filmagens, respeitando o tempo da
criação.
O filme ao proporcionar a aceitação e libertação da prótese pela
personagem Inês, que num ato performático deixa sua prótese na galeria junto
ao quadro que contem sua imagem, proporciona à Lílian (atriz), no mesmo ato
performático, sua aceitação da deficiência e libertação da prótese. Esta tensão,
como na performance, pode ser fundamentada na extrojecão do ator-performer,
trazendo à tona a individualidade deste.
Para realizar o filme Lílian Taublib contou com um trabalho de preparação
com o diretor de teatro Mauricio Paroni26 . Paroni trabalhou durante muitos anos
na Itália, tendo como um de seus mestres Tadeuz Kantor, com quem teve a
oportunidade de trabalhar na Escola de Arte Dramática de Milão, onde foi aluno.
No livro onde descreve o processo de criação do espetáculo “Aqui Ninguém é

25 Título utilizado para o making off de Crime Delicado


26 Que também assina a criação do roteiro com Beto Brant, Marcos Ricca, Marçal de Aquino e .

96
inocente”(2007), Paroni pontua suas influências, dizendo que com Kantor
aprendeu “O limite entre a arte e a realidade, ou melhor, a porta de comunicação
entre essas duas dimensões.”(2007, p. 34). E como num ecoar da voz do diretor
polonês traz para suas criações a frase que para sempre teria apreendido
durante sua convivência com Kantor.

O Espaço da vida é o espaço da arte; ambos confundem-se, compenetram-se


e dividem um destino comum (...) atores não podem fingir uma personagem ou
representar um texto; o drama e a vida coincidem na criação de um
espetáculo-obra de arte. (KANTOR apud PARONI: 2007, p. 39)

Com estas influências declaradas, Paroni propõe em seu trabalho que os


atores sejam o “suporte da dramaturgia”, tomando a “Deriva como
procedimento”.

A ideia é que o subtexto, ligado ás personagens, deve ser substituido pela


ideia de contexto, ligada ä ação, de modo a dar uma função ao ator dentro de
um percurso; explora conflitos suscitados nos interlocutores por situações
particulares de seu próprio cotidiano (...) O ator contemporâneo assume essa
responsabilidade que o transforma em criador, autor não só do texto, mas da
própria escritura, que é o texto feito de palavras e também os gestos, os sons,
o ritmo, a trajetória real da estória e a trajetória das subjetividades que dela
participam ( PARONI: 2007, p. 25/26)

Embora estas citações refiram-se a criação do espetáculo “Aqui Ninguém


é Inocente”, no desenvolvimento de Crime Delicado, Paroni propõe os mesmos
procedimentos de criação à Lilian, gerando uma diluição da personagem Inês e
a intensificação da atriz Lilian no desenvolvimento da obra, ou seja, esta tensão
entre ator/personagem.
A atriz ao vivenciar esta experiência, num grande ato performático, expõe
a partir de um processo artístico suas inquietações, fragilidades, medos,
desvelando-se, performando diante das lentes de Walter Carvalho.
Como escrito por Maurício Paroni em Crime Delicado ou a vida mais que
a estética 27

27 Disponível em : http://www.cronopios.com.br/site/colunistas.asp?id=962#texto

97
Quem é personagem e quem é real? Personagens são o crítico, o juiz et cetera. O Felipe
não o é. E a Lílian soube fazer de Inês uma personagem.

Portanto, o que dizer de Inês que, no final do filme, oferece à obra de arte a perna que
falta ao quadro e se sente inteira como atriz, transformando a pessoa que a interpreta,
Lílian, numa pessoa liberta?

Na preparação da Lilian Taublib, lutou-se através da superação de uma dura condição


através do esforço e da urgência de comunicar o próprio sofrimento e felicidade. Não se
é feliz sem ter uma gramática para contar a própria felicidade e se vai ao inferno
quando o próprio sofrimento não pode ser contado. Esse foi o trunfo da Lílian e do
acordo que fizemos.

O projeto poético de Brant para o desenvolvimento de Crime Delicado,


estabelece, com clareza, a zona de tensão existente nesta tênue linha entre a
estética da espontaneidade e o ato espontâneo, ao propor que o ato da
filmagem torne-se um processo de criação tal como ele é, recheado de
incertezas e acasos, lidando com o tempo da pintura, da performance, da
literatura e com as questões que são inerentes a cada forma artística. Pois, uma
das questões que permeia a feitura da obra é, qual é o tempo para se desenhar
e pintar um quadro, qual é o tempo de um diálogo?

Este tempo foi respeitado no instante da filmagem, quando Brant decide


captar o ato da pintura, dando ao ator/pintor a liberdade temporal necessária
para a realização do desenho e da pintura dos quadros, ou quando grava os
diálogos improvisados numa mesa de bar, ininterruptamente.
Ainda neste jogo, o diretor traz para dentro da estrutura do filme a cena e
o texto do teatro, olhando para este teatro com um olhar cinematográfico,
estabelecendo uma zona de tensão entre o teatro e o cinema.

Como um filme percurso ou um work in process, a feitura de Crime


Delicado começa na casa do Ator Marco Ricca, nos encontros entre Ricca,
Paroni, Brant e Marçal de Aquino, que se juntam para desenvolver o roteiro do

98
filme. Posteriormente, juntam-se a eles, Walter Carvalho, Lilian Taublib, Felipe
Ehrenberg e Luiz Francisco Carvalho Filho (Chico Fogo).
O laboratório de criação do filme, diferencia-se dos laboratórios até aqui
apresentados, à medida que Brant propõe que o laboratório seja o próprio set,
no entanto, as relações se iniciam no desenvolvimento do roteiro de forma
colaborativa, entre atores, diretor, preparador, dramaturgo e diretor de fotografia.
Como diz Paroni, não houve a necessidade de qualquer roteiro técnico ou
mesmo de um roteiro, pois Brant e Walter Carvalho já tinham incorporado a
estrutura da obra.
Ao tornar o set de filmagens o laboratório de criação, Brant propõe o jogo
da multiplicidade de linguagens, lidando com o tempo inerente de cada
expressão artística, o que o leva a dizer que este filme foi pouco a pouco
vertebrando-se. E, assim como no fazer teatral havia uma confiança na
linguagem cênica, tornando Crime Delicado o resultado de uma sinestesia da
cena.

Estes laboratórios, cada qual com sua singularidade, nos fazem refletir
sobre a importância deste espaço como lócus criador. São obras percurso,
construídas num fluxo constante, apontando muitos desdobramentos para o
fazer audiovisual.

99
IV

DESDOBRAMENTOS DE UM PRÁTICA LABORATORIAL

100
Deslocamentos

Passamos a seguir à reflexão sobre alguns importantes desdobramentos


da criação laboratorial. Até o presente momento, nos dedicamos a abordagem
sobre os procedimentos de criação do ator co-criador e a um breve panorama
sobre a inserção deste ator na produção brasileira contemporânea.
Compreendemos a estruturação de uma criação colaborativa que se dá de
forma laboratorial, a partir de um sistema Botton up (JONHSON), onde a
desordem (MORIN) e os erros e acasos construtores (SALLES) aparecem como
princípios direcionadores. No entanto, esse caminho percorrido gerou, ao longo
desta pesquisa, algumas outras reflexões referentes aos deslocamentos e
desdobramentos advindos de uma proposta de criação audiovisual pautada na
colaboração e que apresenta o ator como o epicentro do processo criativo.

Preferimos aqui falar em deslocamentos a rupturas. Este posicionamento


se dá por pensarmos, como apontado por Arlindo Machado (1997), que o
cinema não é um modo de expressão estagnado, fossilizado, mas sim um
sistema dinâmico.

“...Que reage as contingências de sua história e se transforma em


conformidade com os novos desafios que lhe lança a sociedade (...) A
transformação por que passa hoje o cinema, afeta todos os aspectos de sua
manifestação, da elaboração da imagem aos modos de produção e
distribuição, da semiose à economia.” (MACHADO:1997, p.213)

Transformações de ordem técnica e estética, que caminham juntas, pois,


por um lado, a tecnologia viabiliza determinadas experiências estéticas e
influencia novos procedimentos de produção, mas por outro, as questões
estéticas impulsionam as propostas dos realizadores.

101
Assim, os desafios lançados pela sociedade, nos movem a buscar
constantemente por possibilidades, ou seja, nos lançam diariamente em
espaços movediços, incertos, fluídos, e estes são sempre os agentes
desafiadores para a produção artística na contemporaneidade. Contudo, todo
desafio estimula e, portanto, somos constantemente estimulados.

Diante da incerteza que permeia os processos criativos aos quais nos


referimos, a nossa proposição, neste estudo, é de uma reflexão acerca de
alguns pontos de intersecção, que observamos a partir de uma análise
fundamentada pela crítica de processo, que segundo Cecília Almeida Salles
(2006,p. 169), se ocupa dos fenômenos em sua mobilidade.

A obra se dá no estabelecimento de relações, ou seja, na rede em permanente


construção(...) São obras que nos colocam de algum modo, diante da estética
do inacabado; nos incitam a seu melhor conhecimento...(SALLES:2006, p.170)

Ator Co-Criador | Diretor-encenador

Iniciamos esta reflexão pelo deslocamento dos conceitos de ator e diretor,


para co-criador e encenador.

Ao instaurar um processo colaborativo de criação, que se estabelece de


forma complexa, em busca de uma experiência partilhada, no qual todos têm o
direito e o dever de interferir, não podemos tomá-lo como um processo que
contém autores, mas sim criadores. Como explica Morin (1991), a complexidade
é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações,
determinações e acasos. Portanto, ao falarmos em processo colaborativo, nos
referimos a um sistema de co-criação, que se constrói a partir da “pluralidade de
pontos de vista e do intercâmbio de ideias” ( MORIN apud SALLES:2006).

Sendo assim, ao empregar uma prática colaborativa para o


desenvolvimento da obra audiovisual, tanto atores quanto diretores assumem

102
“funções” diferenciadas das empregadas pelos modelos hegemônicos da práxis
audiovisual.

Em processos colaborativos, enquanto o ator trabalhará no nível da


presença, do desvelamento, da extrojeção e da co-criação, o que nos leva a
chamá-lo de ator co-criador, o diretor-encenador, trabalhará no nível da
organização; e assim como o coreógrafo ou o encenador teatral, sua tarefa
consiste em encontrar uma lógica de organização para o material gerado pelos
atores-criadores durante os laboratórios, sem deixar de preservar a essência
deste material.

No entanto, numa proposta colaborativa de criação, o encenador


continua sendo aquele que decide, a partir do projeto poético da obra, os
procedimentos de criação necessários para alcançar tal proposta estética, bem
como o tipo de preparação que os atores receberão. Mas, é a partir de uma
experiência investigativa, marcada por um processo de imersão e improvisação,
que a obra se constrói.

Como diz o diretor Peter Brook, referindo-se ao processo de criação do


espetáculo A tempestade:

Cada cena foi improvisada de inúmeras maneiras (...) eu como diretor, fazia
sugestões, dava-lhes novas ideias - e volta e meia tinha que criticar minhas
próprias propostas e descartá-las, depois de vê-las realizadas pelos atores (...)
o papel do diretor é manter controle sobre o que está sendo explorado (...) Se
agir assim, esta primeira explosão de energia não será tão caótica como
parece, já que produz uma enorme quantidade de material bruto a partir do
qual podem se desenvolver as formas finais. ( BROOK:2005, p.93)

A partir desta perspectiva, o diretor-encenador é aquele que orquestra as


proposições trazidas seja pelos atores, pelo figurinista, pelo diretor de fotografia,
pelo roteirista, etc, buscando uma harmonização entre as contribuições, mas ao
mesmo tempo decidindo, pontuando o que é melhor para a obra. Entretanto, a
individualidade de cada criador é mantida e estimulada, pois diferentemente dos

103
processos coletivos, os processos colaborativos buscam pela individualidade de
cada pessoa envolvida na criação.
Como todo processo falível, é necessário o estabelecimento de critérios.
Segundo Salles (2006, p. 133), “Ao detectar algo como errado, o artista aciona
determinados princípios que balizam essa avaliação e faz cortes, adições,
substituições, deslocamentos, ou seja, qualquer tipo de modificação.
Tomando como exemplo os laboratórios, apresentados neste estudo,
poderíamos apontar claramente a ação do diretor-encenador em laboratórios e
set de filmagens, no entanto empregaremos como exemplo um depoimento do
ator Raul Cortez28 sobre seu trabalho em Lavoura Arcaica.
Cortez diz que na fazenda, num determinado ensaio, sentados à mesa,
atores e diretor puseram-se a ler partes do livro. O ator lia e relia o texto “um
sermão enorme do senhor Raduan Nassar” e Luiz Fernando Carvalho não falava
nada, depois de algum tempo lendo e relendo, Cortez se levantou e foi para o
quarto arrumar sua mala para ir embora, pois acreditava que ele não conseguiria
fazer aquele personagem.
Não disse nada a ninguém, arrumou as malas e foi beber uma água,
quando retornou havia uma carta de Carvalho embaixo da porta de seu quarto.

“... Não cobre dele além do que ele pode lhe dar, ou seja, os seus primeiros
passos, o que já é um belo começo, uma bela semente.(...) Nosso encontro de
hoje já foi mais rico que o de ontem, e é assim, passo a passo que
construímos”( trechos extraídos da carta, Nosso Diário: 2002)

“Uma carta absolutamente incrível, de um diretor para um ator, dizendo


que a proposta era difícil mesmo. No dia seguinte eu fiz o ensaio.” (CORTEZ:
2002)

Este depoimento de Raul Cortez não nos surpreende se pensarmos que a


práxis cinematográfica está fundamentada numa rígida organização prévia, e
que quando se trata do trabalho do ator, este se dá num decorar o texto, seguir

28 Disponível no making of do filme Lavoura Arcaica, intitulado Nosso Diário.

104
marcações e interpretar uma personagem já pré-estabelecida por um roteiro. No
entanto, em Lavoura Arcaica, ainda que grande parte dos diálogos dos atores
sejam textos que compõem o romance de Raduan Nassar, ditos na íntegra, o
simples decorar de um texto e a representação de uma personagem, não
compunha o projeto poético do filme, estruturado em uma criação colaborativa,
onde não havia mais fronteira entre personagem e ator, entre autor e obra, entre
diretor e equipe, pois, visava-se um processo de retroalimentação, no qual a
contribuição de cada indivíduo, imbricado neste processo, pertencia às regras do
jogo.
Assim, refletir sobre o papel do diretor num processo de criação
colaborativo para a produção audiovisual, nos aponta caminhos e diálogos
concretos com a criação cênica contemporânea, pois este diretor assume novos
posicionamentos num processo criativo, no entanto, continua com a visão macro
da unidade estética da obra. Uma unidade que se desenvolve a partir dos
corpos em cena, do jogo entre ator, diretor e equipe, tornando-se não apenas
imagem, mas também algo incorporado.
Esta incorporação, no sentido de embodied, contribui para que muitas
vezes, sequer um roteiro seja escrito, pois este já pertence a atores, diretores e
equipe, como acontece nos laboratórios do diretor inglês Mike Leigh.

Partituras de encenação

Em seu livro “Práxis do Cinema” (2008) Noel Burch pontua como


elemento desta práxis, ao realizar uma articulação entre o espaço-tempo, a
“decupagem técnica”.

No dia-a-dia da produção, a decupagem é um instrumento de trabalho. É o


último estágio do roteiro, aquele que contém todas as indicações técnicas que
um diretor julga necessário registrar no papel, e que permite a seus
colaboradores acompanharem o trabalho no plano técnico, preparando, em
função dele, a sua própria participação (...) decupagem, consiste em decupar,

105
de modo mais ou menos preciso, antes da filmagem, uma ação (narrativa) em
planos ( e em sequências) ( BURCH: 2008, p.23)

No entanto, como pensarmos numa decupagem técnica, para a


concepção de uma encenação, como procedimento organizacional numa pratica
de criação que se constrói como um work in process ?

É certo que a decupagem não existe mais no seu modus operandis


tradicional, entretanto, não podemos afirmar que esta decupagem simplesmente
desapareça enquanto procedimento de articulação tempo-espaço. Pontuamos
um deslocamento no seu processo de realização, ao trazer para esta discussão
a noção de partituras do diretor.
Conforme abordamos na segunda parte desta pesquisa, durante os
laboratórios de criação, as partituras físicas dos atores surgem pouco a pouco,
assim como as partituras das cenas são aos poucos rascunhadas durante as
improvisações.
Se o ator constrói sua partitura a partir de um trabalho físico intenso,
propondo uma dramaturgia do corpo, o diretor por sua vez desenvolve uma
“partitura da encenação”. Num processo de emergência da cena, este diretor-
encenador trabalhará no nível do sensível, da presença. Ou seja, neste jogo da
experimentação investigativa, ele é mais um elemento do jogo; é afetado e afeta,
diante das proposições emergentes.
Caminhando neste campo de possibilidades, o conceito de decupagem
desloca-se para o de partitura. Pois, a partitura está sempre pronta para lidar
com o aqui e agora da ação, com o jogo entre câmera e ator, com as
proposições espaciais que surgem deste jogo, com o acaso que permeia toda
concepção pautada na incerteza e na desordem. Uma partitura que será
revisitada e reordenada a partir das interferências do dia-a-dia das filmagens,
seguindo atéa montagem.
Diante disso, não podemos dizer que em processos colaborativos
procedimentos de articulação tempo-espaço, como a decupagem, não sejam

106
realizados pelos diretores, mas este certamente será um procedimento aberto,
um rascunho que pode ser modificado e incitado a todo momento. Pois, este não
é um procedimento que propõe o espaço-tempo, mas emerge do espaço-tempo
da ação, ou seja, de uma cena criada em cena.
Assim como as partituras físicas do ator constituem-se como a base da
atuação, as partituras do diretor são a base da encenação. No entanto, como
uma estrutura reavidada no aqui e agora da ação, estas partituras são como
apontado por Grotówski, “o leito de um rio” (apud JIMENEZ), ou seja, são formas
fluidas e estão sempre abertas à imprevisibilidade e à emergência de novas
possibilidades.
Somada a esta emergência de novas possibilidades no aqui e agora da
ação, é importante ressaltarmos o jogo estabelecido entre ator e câmera no ato
das filmagens. Pois, construindo esta rede permeada pela incerteza, ao propor o
jogo entre câmera e ator, reavivando as partituras de encenação, muitas são as
mudanças e nenhuma é a certeza dos enquadramentos desejados.
Em alguns momentos, alguns diretores optam por estimular esse jogo no
ato das filmagens, mas em outros processos, ou ainda que num mesmo, para ter
algum controle sobre as imagens captadas, lançam mão de outros
procedimentos. Como exemplo, citaremos três processos de criação do diretor
Luiz Fernando Carvalho.
Em Lavoura Arcaica, Carvalho e o diretor de fotografia Walter Carvalho,
propõem uma fotografia com enquadramentos precisos, compostos quase como
pinturas renascentistas, e para isso o diretor estimula a improvisação do ator,
num espaço cênico já estabelecido por uma iluminação bem definida,
esquadrinhada, trazendo a câmera quando o ator já está no “ponto da ação”,
conforme explicitado pelo diretor em entrevista.
Já em Pedra do Reino, a composição fotográfica está em último plano,
pois, o que interessava ao diretor na criação da minissérie era o jogo
estabelecido entre ator e câmera no ato da filmagem, propondo condições
adversas para este jogo. Nesta proposta, Carvalho tinha como um dos princípios
direcionadores da criação o rompimento com a técnica cinematográfica,

107
incorporando á obra a imagem resultante deste jogo, estando aberto á
desfoques, rastros de imagem em busca do ator e enquadramentos sem
nenhuma precisão.

Episódio II - Pedra do Reino (2007)


sequência Cárcere de Taperoá

108
Episódio III - Pedra do Reino (2007)
sequência Casa de quaderna - Moça Caetana

Entretanto, em Capitu, Carvalho propõe mais uma vez o enquadramento


preciso, ações coreografadas, mas sempre abertas ao imprevisível, já que o
diretor não muda seu procedimento de construção da encenação, partindo

109
sempre de partituras desenvolvidas nos laboratório de criação que são
retomadas e reavivadas no momento das filmagens.

Em Capitu, me interessou trabalhar muito com o corpo, mais no plano da


dança, mesmo, me aproximando um pouco do que a gente comumente
chama de teatro-dança. Então, eu chamei a Denise Stutz, o que me
ajudou muito. Toda a movimentação do Escobar, aquilo tudo é um
vocabulário criado na sala de ensaio, em que o ator no momento de rodar
as cenas, ele tem aquele vocabulário a disposição dele, então ele pode
jogar como ele quiser aquele vocabulário, começar com A e pular pro z, ir
do C, ele tem um vocabulário riquíssimo. Na hora de rodar ele inventa, ele
improvisa em cima daquele vocabulário ( CARVALHO, 2009)

Capitu (2008)
Sequência Infância Capitu e Bentinho

Capitu (2008)
Sequência Dança Escobar

110
O jogo entre ator e câmera, que como vimos está também presente em
Contra Todos de Roberto Moreira, lança outra questão fundamental para
refletirmos sobre o trabalho com partituras de encenação.
Em seu making of, Contra Todos, apresenta como as partituras dos
atores e da encenação surgiram em sala de ensaio. “Justapondo” as
improvisações dos atores e as cenas filmadas, Moreira nos apresenta a
articulação entre as partituras rascunhadas e as resultantes do momento da
filmagem, selecionadas na montagem, que compõem o filme.
Como diz Moreira “da preparação para o filme baixamos muito a
intensidade dos atores” ( MOREIRA, 2009), no entanto, as partituras físicas e as
partituras de encenação lá estão, nas células geradoras e no corpo resultante.

Contra Todos (2004)


Transposição das salas de ensaio (imagens a esquerda) para o filme
(imagens a direita)
Sequência Teodoro e Amante Terezinha

111
Contra Todos (2004)
Sequência Cláudia e Amante - Ensaios (imagens a esquerda) - Filme
(imagens a esquerda)

112
Sequência Cláudia e Waldomiro
Ensaios

Sequência Cláudia e Waldomiro


Contra Todos

113
A transposição das improvisações desenvolvidas nos laboratórios para o
momento das filmagens, nos faz retomar as partituras físicas do ator como
procedimento para lidar com a continuidade da ação.
Como vimos, no trabalho desenvolvido pelo preparador Sérgio Penna,
este criou um procedimento que denomina gráfico das emoções, como uma
forma de traçar o percurso da ação e emoção, desenvolvida pelo ator para cada
cena. Um procedimento que é usado tanto pelos atores, quanto pelos diretores.
No entanto, enquanto este procedimento torna-se algo externo, ao ser
cunhado em um papel, ele é proveniente das partituras físicas desenvolvidas
pelos atores durante o laboratório.
O gráfico das emoções, desenvolvido por Penna com os atores e
diretores, auxilia o ator, no sentido de apontar uma visão ampla de toda a
estrutura do filme, ou seja, todo o percurso a ser percorrido, cena a cena. Assim,
no momento da filmagem, ator e direção podem se orientar, para saber onde a
cena a ser filmada naquele momento localiza-se na estrutura do filme, e qual
cena vem antes e depois, e com elas as ações e emoções da personagem.
Contudo, o procedimento empregado para o despertar do ator para
determinada ação, é a partitura física, desenvolvida no laboratório de criação. É
esta que o ator retoma para reavivar os impulsos internos, disponibilizando-se
para o estar em cena, o que como já vimos, gera a impressão de
espontaneidade, almejada por grande parte dos diretores.
Esta partitura auxilia ainda o ator a lidar com a fragmentação durante as
filmagens, pois, como num “aquecimento” os atores retomam suas partituras
para se lançarem às improvisações.

114
A fluidez das etapas de produção

Como complexos sistemas adaptativos que buscam por comportamentos


emergentes, há na criação laboratorial uma diluição das fronteiras entre as
etapas de produção (pré-produção, produção e pós-produção). E, ainda que
possamos apontar procedimentos pertencentes a cada etapa, estas se tornam
fluidas, pois, é no espaço-tempo dos laboratórios que toda as providências de
produção necessárias são apontadas, discutidas e negociadas.
No entanto, essas negociações e apontamentos percorrem todo o
processo criativo estendendo-se da preparação à pós-produção. Com isso, os
modos de produção laboratoriais lançam mão de procedimentos abertos à
fluidez da criação. Procedimentos, que visam lidar com a inclusão de
necessidades que surgem diariamente diante da reestruturação, ou até mesmo
o surgimento de novas cenas, e com elas algumas readequações.
Além da inserção desses procedimentos abertos, os processos de criação
laboratoriais, contam ainda com a necessidade da cumplicidade, da imersão e
da presença de toda a equipe, durante este grande jogo que é uma criação
pautada numa experiência investigativa.
Lançando-se neste campo da instabilidade e munidos de procedimentos
abertos, toda a equipe - do roteirista ao montador- contribuem para o
desenvolvimento e estruturação desta obra construída em fluxo.
Esta instabilidade é o que nos move a apontar, estas obras, como
resultantes de processos criativos pautados na “desordem” (MORIN). Diante de
tamanha incerteza, a abertura as possibilidades advindas do processo, faz com
que estes tornem-se orgânicos, fluidos. Entretanto, com uma organização
singular, que se ajusta às necessidades que emergem do próprio processo.
Mas, é sempre importante ressaltar, que são processos guiados por um
projeto poético e, portanto, possuem princípios direcionadores que auxiliam nas
tomadas de decisões.

115
Assim, os laboratórios de criação, no sentido de espaço físico, tornam-se,
na maioria das vezes, o espaço da produção e mesmo da pós-produção. Neste
“lugar”, que pode ser um barracão, um estúdio ou uma cidade, ainda enquanto
a obra emerge, como fruto das improvisações dos atores, da relação destes com
este espaço-tempo, é já registrada pela lente de uma câmera, selecionadas e
editadas, como ocorreu em Pedra do Reino. Com isso surge um processo de
retroalimentação, no qual o resultado é analisado e torna-se feedback para o
sistema. Deste modo, a edição do material não é mais uma etapa final, mas
mais elemento deste sistema dinâmico.
Neste espaço de retroalimentação não existem fronteiras, não existem
etapas, existe um organismo vivo, pulsante, que se reconstrói a todo momento e
que requer, assim como ele, uma produção que se organiza a partir da ação.
Quando a criação sai do espaço do laboratório para a locação, ou seja,
esses são lugares diferentes, apenas o lugar é que muda, a fluidez do processo
acompanha, pois, esta é inerente ao processo em si.

Mais uma vez não falamos aqui em rupturas, pois esperamos ao expor
um processo de produção como fluxo, que este seja entendido diante de suas
singularidades e, embora tenhamos proposto a fluidez das fronteiras que
delimitam os processos de produção audiovisual tradicionais, não opomos os
procedimentos de produção destes aos modelos laboratoriais, mas sim
propomos um deslocamento, uma readequação destes procedimentos diante
das singularidades emergentes de cada processo.

Para compreendermos este fluxo dispomos abaixo mais um trecho da
carta29 do roteirista do filme Céu de Suely, Felipe Bragança à sua esposa
Marina.
Nesta, ele explicita sua relação pessoal com o espaço-tempo do
laboratório no qual estava inserido e que estão presentes na obra.

29 Retirado do site:http://www.cinemaemcena.com.br/ceudesuely/blog.asp

116
Nesta carta o roteirista ao expor suas angustias e inquietações diante
daquele lugar não-lugar, aponta para a ética de produção proposta pelo diretor
Karim Ainouz.
Para a produção de Céu de Suely, o diretor propôs à equipe sempre
trabalhar com a incerteza, para que tudo os surpreendesse. Como “encontrar
uma emoção exata de uma composição apaixonada, ás cegas,

117
tateando”(BRAGANÇA, 2006). Encontro realizado por cada membro da equipe a
cada momento em Iguatu.
Como diria Paul Zumthor (2007), referindo-se a performance como um
saber-ser, este é um saber que implica e comanda uma presença e uma
conduta, “um Daséin comportando coordenadas espaço-temporais e
fisiopsiquicas concretas, uma ordem de valores encarnada em um corpo
vivo.” (ZUMTHOR: 2007, p. 31)

Neste “encontro”, Ainouz encontrou Hermila, que logo após filmar a cena
da briga com a tia e a avó, após o jantar, afetada pela intensidade das filmagens
sai chorando pelas ruas de Iguatu. Um encontro registrado pelas lentes de
Walter Carvalho a pedido de Ainouz. Um encontro inesperado, sem o
conhecimento e o consentimento de Hermila, que segundo a própria atriz 30 a
deixou furiosa.
Ao perceber que estava sendo filmada, Hermila indignou-se, pois aquele
era seu choro e não da personagem, indignação ainda maior quando ao
questionar o diretor sobre o registro da cena, este respondeu a ela, “como é o
seu nome?
A atriz Hermila, era ali Hermila, uma atriz/personagem que surpreendia o
diretor com suas ações. E mesmo essa cena nunca tendo sido rascunhada num
papel, está presente no filme.

Assim, diferentemente da estabelecida práxis cinematográfica, em


processos laboratoriais, não é possível apontar procedimentos mais ou menos
rígidos para a realização da obra. Estes processos são dinâmicos e devem ser
estabelecidos de acordo com cada projeto poético, com cada obra.
Evidentemente existem parâmetros, mas não são parâmetros delimitadores, e
sim direcionadores. O importante, para esta equipe, é que todos estejam

30Este depoimento foi dado pela atriz Hermila Guedes, no festival do Rio durante o lançamento
de Céu de Suely em 2006, logo após ter assistido pela primeira vez ao filme.

118
conscientes que precisam se envolver artisticamente e que estão vivenciando
um processo fluido.

Desdobramentos de uma articulação entre corpo, espaço e tempo:


Figurinos e objetos de cena

Ao se configurarem como sistemas de criação baseados na Poiesis, ou


seja, na ação de trazer algo a tona, os laboratórios de criação da obra
audiovisual, não possuem finalidades pré-estabelecidas, mas sim configuram-se
como um espaço criado para que a obra emerja e com ela suas necessidades e
elementos específicos.
Como este espaço da “emergência” a partir da ação investigativa,
figurinos, cenários, objetos de cena, músicas e mesmo locações, são apontados
como parte complementar da ação. Pois, se na tradicional práxis
cinematográfica, que debruça-se sobre um roteiro, figurinos e objetos de cena
são concebidos a priori, nas práticas laboratoriais estes tornam-se
desdobramentos da relação corpo-espaço-tempo, ou seja, são elementos
necessários e complementares a ação.

Em busca de uma relação orgânica entre os figurinos, objetos de cena e
a ação, os diretores lançam diferentes maneiras de lidar com esta articulação,
no entanto, todos propõem que a equipe de arte observe as improvisações dos
atores, para que a partir dos desenhos que resultarão em partituras de
encenação, figurinos e objetos de cena sejão testados, assimilados,
transformados, descartados ou incorporados à ação e a cena.

Na criação desses figurinos, em alguns laboratórios, elementos pessoais


dos atores são trazidos por estes e incorporados aos figurinos e objetos de
cena, como aconteceu em Contra Todos, onde os atores trouxeram seus
pertences pessoais para compor o figurino do filme.

119
Em outros laboratórios, figurinos e objetos selecionados pela equipe de
direção de arte são incorporados a preparação dos atores e, poderão ou não
compor o filme.
Em Céu de Suely, sob o comando de Karim Ainouz a equipe de figurino
selecionou algumas peças que pudessem compor o figurino de cada
personagem, os atores ao chegarem em Iguatu, tiveram que deixar suas roupas
pessoais e passaram a usar as peças selecionadas. segundo o diretor o intuito
era de descobrir qual seria o figurino de cada ator, a partir da relação cotidiana
deste ator com o figurino proposto.

Em Lavoura Arcaica, os figurinos nascem com as personagens. Diante de


uma pesquisa de época e munidas de muitas referências visuais, a figurinista
Beth Filipecki, desenvolve os vestidos e vestimentas masculinas, que serão
experimentadas pelos atores durante as improvisações. As peças são
experimentadas, incorporadas ou descartadas, se não fossem necessárias as
ações e as personagens.
Como diz o diretor Luiz Fernando Carvalho à Beth Filipecki, durante uma
prova de roupa:
É como se fossem vários laboratórios.
Põe, não precisa nem acabar o vestido. Dá mais ou menos pra vestir, põe.
Sentiu?
Ih..! Não, não é, também não foi. Outro!
Até achar o vestido próprio, que uh!!!! ( gesticula o caimento perfeito de um
vestido, num deslizar das mãos).

Em Crime Delicado, são livros pessoais de Marco Ricca que comporão o


escritório de Antônio. A referência direta de Tadeusz Kantor à realização da obra,
faz com que o próprio diretor Beto Brant coloque na locação o cartaz de um
espetáculo do diretor polonês.
São figurinos, objetos de cena e mesmo locações descobertas,
vasculhadas por uma equipe, que em consonância com o projeto poético da

120
obra, encontra-se aberta as possibilidades advindas dos laboratórios, das
necessidades que aparecem durante o fluxo constante da criação.
No entanto, é importante pensarmos nestes figurinos e objetos de cena,
sob um ponto de vista colaborativo, no qual o figurino interfere e contribui com o
trabalho do ator e este interfere tanto quanto no trabalho da equipe de figurino e
de arte como um todo.
Pois, assim como o roteiro e a direção, o figurino é fruto desta troca,
deste espaço investigativo dos processos laboratoriais e, portanto, configura-se
como um desdobramento desta relação corpo-espaço-tempo.

Montagem e Organicidade

Até o presente momento apontamos deslocamentos e desdobramentos


de uma prática laboratorial no trabalho do ator, diretor, direção de arte e direção
de fotografia, entretanto, uma questão sempre levantada, em congressos, sala
de aula e apresentações nas quais expomos este pensamento é:
E a montagem? Quais são os desdobramentos de uma prática
laboratorial e colaborativa para a montagem?
Ora, se o ponto inicial de uma produção não é mais o roteiro e sim o
laboratório, se a estruturação da obra se dá a partir de partituras de encenação,
que por si só são moveis, abertas as interferências do aqui e agora da ação, a
relação diretor de fotografia e cena é o jogo entre ator e câmera “quase um balé”
como diz Roberto Moreira sobre o trabalho do fotógrafo Adrian Teijido em Contra
Todos, os diálogos são muitas vezes construídos pelos atores, o figurino é
concebido a partir da relação corpo-espaço-tempo durante este lócus gerador
que é o laboratório. Enfim, se a obra se desenrola como um work in process,
tornando-se fruto deste fluxo constante da criação, assim também será o
processo de montagem, em fluxo, recheado de “incertezas” (MORIN) e em
busca de “ acasos construtores” (SALLES).
É olhar para o material captado e deixar que ele aponte soluções, que ele
afete, assim como o ator afeta a equipe, a direção e estes afetam o ator.

121
Embora a montagem, geralmente, se dê a posteriori , isso não torna esta
etapa distante de todo o processo. Pelo contrário, esta pertence a este fluxo
criativo e trabalha em consonância com o projeto poético da obra, ou seja, a
montagem é apenas uma continuação deste “balé” entre a câmera e o ator,
iniciado nas filmagens, fazendo parte deste jogo de retroalimentação criativa.
Certamente, esse modo de produção ao partir de partituras e não mais de
decupagens, de lidar com uma cena que é construída em cena, onde não há
marcações e delimitações precisas, ocasionará alguns deslocamentos dos
procedimentos de montagem, e estes são apontados diante das singularidades
dos projetos poéticos dos diretores.
No entanto, alguns direcionamentos e necessidades da montagem são
apontadas já no decorrer da criação laboratorial, e com isso passa a ser também
processada, estruturada, desenhada, de forma orgânica e fluida tal qual o
processo de feitura da obra. Pois, diante da singularidade dos processos,
diferentes são as maneiras de lidar com o material captado, de olhar para esta
obra e descobrir o que ela propõem.
Roberto Moreira, em Contra Todos, diz que ao ter optado por trabalhar
com uma câmera digital, que lhe permitia filmar 8, 11 vezes a mesma cena na
integra e de maneiras completamente diferentes, tinha no final muito material
para montagem, o que lhe permitia montar o filme de diversas maneiras
possíveis, “a gente tinha material pra tudo, para montar o filme de ponta
cabeça”( MOREIRA, 2009).
Segundo o diretor, durante as filmagens muitos o perguntavam como ele
montaria esse filme e sua resposta era sempre a mesma:
Depois vou descobrir. No final montei sem nenhum problema, porque a cada
fala a gente variava tudo, o ângulo, a posição da Câmera, então o corte
passava. Eles se mexiam muito, tivemos poucos falsos raccord no filme, os
que tem são propositais, eu poderia ter mantido uma decupagem clássica, se
eu quisesse. (idem)

Já Luiz Fernando Carvalho em Lavoura Arcaica, segue com o livro para a


sala de montagem, no entanto, numa tradução intersemiótica várias são as

122
possibilidades de leitura. E nesta rede em construção, o diretor-montador, vai
pouco a pouco, construindo seus diálogos com a obra, redescobrindo os
caminhos apontados nos laboratórios e fazendo suas escolhas, seus cortes,
“adições, substituições, deslocamentos, ou seja, qualquer tipo de modificação”,
como diz Salles (2006).
No livro “Sobre o filme Lavoura Arcaica” (2002), ao descrever como foi o
processo de montagem de algumas sequencias, Luiz Fernando Carvalho diz:

A sequencia do pão da infância, que vem logo no momento seguinte do filme,


eu só fui descobrir a sua função na montagem, foi ali que eu compreendi, e
agora eu não poderia recuar, tive que inventar na montagem aquela
sequencia , feita das sobras de outras cenas, como uma colcha de retalhos.
Eu não havia filmado o capítulo do pão (...) E quanto à coalhada, eu também
não sabia aonde ela iria entrar. Eu tinha filmado a coalhada com o propósito de
recolher elementos míticos da cozinha, recolher como um documentarista (...)
para depois encaixar ou não na montagem, estimulado pela conversa com o
Raduan: “Não há uma cozinha árabe, mediterrânica, em que não exista uma
coalhada pingando”(...) na montagem, na minha dúvida de como sair daquela
sequencia tão agressiva do André, eu voltei ao livro, dei uma coladinha na
narrativa do texto, porque o livro ficava sempre aberto na montagem, então eu
me perguntei: “Mas daqui ele vai pra onde?” (...) Para a infância, ele foi para a
coalhada...( CARVALHO: 2002, p.108)


Em Pedra do Reino o princípio que nortearia toda a montagem e as
imagens era, conforme descrito no diário do diretor, “tratar todos os
enquadramentos e montagem de forma simbólica, mítica”. Um princípio
direcionador de todo o processo de criação e que, portanto, baliza todas as
decisões éticas e estéticas da construção da obra.
Seguindo o procedimento de imersão da equipe nos laboratórios de
criação, Carvalho propôs que o montador Márcio Hashimoto, estivesse presente
em Taperoá e, portanto, vivenciasse o dia-a-dia da criação e produção da
minissérie. Uma experiência que contribui para a organicidade entre a
montagem e o jogo proposto pelo diretor entre câmera e ator no ato das
filmagens, dialogando com a proposta de construção de uma obra cíclica e
pulsante, um “Corpo sem Órgãos” (DELEUZE & GUATTARI, 2007), como diz
Carvalho em um e-mail enviado para o diretor de fotografia Adrian Teijido.

123
E-mail enviado por Luiz Fernando Carvalho ao diretor de fotografia Adrian Teijido,
como resposta a algumas considerações de Teijido ao desenvolvimento da obra e suas referências.
(Diários, 2007)

Para finalizar esta discussão sobre os desdobramentos de uma prática


laboratorial na montagem, é importante pensarmos que estes são processos em

124
construção e, portanto, abertos as interferências. No entanto, se na tradicional
práxis cinematográfica, a montagem é responsável por uma organicidade
inerente à obra, em práticas laboratoriais a organicidade está também no próprio
processo de montagem, que assume bases fluidas, e que portanto, nos leva a
apontar um deslocamento dos procedimentos empregados na feitura da obra,
contribuindo para a diluição das fronteiras entre cada etapa e cada membro da
equipe.

125
CONSIDERAÇÕES FINAIS

126
Ao buscar estabelecer um diálogo mais próximo entre as artes cênicas e
o audiovisual, não com o intuito de sobrepor uma arte à outra, mas sim de lidar
com o espaço da intersecção, mesmo sabendo que este nos lança num campo
de análises subterrâneas, vislumbramos desde o início deste percurso, refletir
sobre as relações corpo-audiovisual e as possibilidades de criação advindas
dessa relação, o que gera a emergência de uma multiplicidade de poéticas.
Certos que é da experiência que emerge a conceituação, e não o contrário,
percorremos os processos criativos abordados nesta tese, com o objetivo de
apontar possibilidades diante da inserção do ator como co-criador da obra
audiovisual.

Embora o cinema em seus primeiros anos tenha sido construído pelas


linguagens já estabelecidas pelo romance e pelo teatro, a consolidação da
linguagem cinematográfica nas primeiras duas décadas do século passado,
formalizou certas técnicas de decupagem e direção de atores que mantiveram-
se vivas ao longo de muito tempo. Na busca de uma arte das especificidades
cinematográficas, em muitos momentos, o cinema relegou a segundo plano as
práticas atorais. No entanto, é justo que hoje num momento em que são
experimentadas passagens entre meios e linguagens (Bellour), em meio a
condição pós-midiática (Krauss), assistamos à emergência de práticas
audiovisuais que se imbricam com as mais recentes propostas das artes do
corpo.
Diante disso, pensar sobre o ator co-criador no audiovisual é refletir, ou
melhor, apontar, um campo de possibilidades poéticas, criativas e estéticas
aberto a pesquisas e experimentações. Atentos a isso, nesta pesquisa
buscamos investigar as propostas realizadas no Brasil neste campo da criação.

Como dito pela teórica alemã Erika Fischer-Lichte, temos a partir dos
anos 60, uma “virada performativa” nas artes, gerando, por um lado a diluição
das fronteiras entre as várias expressões artísticas e, por outro, propondo uma
participação ativa tanto do criador quanto do público. Somada a essas questões,

127
surge a individualidade do artista como base para uma criação pautada na
colaboração e na improvisação.
Como diz Renato Cohen (2007) na passagem para a expressão artística
performance, o trabalho passa a ser muito mais individual. “É a expressão de um
artista que verticaliza todo o seu processo, dando sua leitura de mundo, e a
partir daí criando seu texto, seu roteiro e sua atuação.” (COHEN: 2007, p. 100).
A criação se desenvolve a partir de uma relação horizontal, de colaboração.
Entretanto, se no audiovisual, a “virada performática”, foi marcada nos
anos 60, pela videoarte e pelo cinema experimental. Atualmente, é relacionada a
New Media Art, isso porque esta - ao propor uma participação ativa tanto do
público quanto do artista, como estrutura nevrálgica da obra - , fundamenta-se
na individualidade do artista e implica em uma individualidade do público,
estabelecendo uma relação de presença deste para com a obra. Tomamos aqui
a presença no sentido Artaudiano do termo, pois para Antonin Artaud a presença
se constrói na relação de afeto, ou seja, de afetar o outro, pois a presença não
está no limite do corpo, mas, sim, nesta relação.

Contudo, ao propormos que na criação cinematográfica, há também a
possibilidade de uma criação colaborativa, fundamentada na inserção do ator
co-criador e numa prática laboratorial, onde a partir da improvisação do ator a
obra emerge, podemos saudar essas propostas como pertencentes a esta
“virada performativa”.
No entanto, sabemos também que a abertura para as possibilidades
advindas do ator co-criador na produção cinematográfica, ou audiovisual como
abordada nesta tese, é fruto de uma ruptura paradigmática com a rigidez e as
especificidades da linguagem cinematográfica, bem como da diluição entre as
fronteiras Teatro – Cinema, e de uma aproximação entre as artes do corpo e o
audiovisual.
Seria, assim, extremamente errôneo de nossa parte, dizer que este
cinema é uma arte do ator, como afirmava o diretor americano Nicholas Ray em
sua “teoria da ação ou do cinema como arte do ator” (AUMONT: 2004).

128
Afirmamos sim, que esta é uma arte do encontro, de individualidades, onde
cada criador vai atrás do que é ele mesmo, mas numa integração, objetivando o
desenvolvimento de uma obra específica.
Assim, a câmera sempre vai descobrir o visível, como propõe Godard,
ainda que este possa ser chamado de acontecimento, um acontecimento que
sempre será renovado no aqui e agora da ação. Um acontecimento
fundamentado na relação de presença do ator, do diretor, de toda equipe
técnica, que transpõe as telas e afeta o espectador.

Portanto, se temos ainda um filme como resultado final destes processos


criativos, este é fruto de uma opção ética e estética, pois poderia facilmente se
desenrolar em outros palcos, intermediado por outras lentes que não apenas as
das câmeras de cinema.

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Entrevistas realizadas
Fátima Toledo- São Paulo, 2009
Luiz Fernando Carvalho - Rio de Janeiro, 2009
Roberto Moreira - São Paulo, 2009
Sérgio Penna - São Paulo, 2004

Palestras e debates
Beto Brant e Maurício Paroni, São José dos Campos/SP, 2007 - Debate sobre
Crime Delicado.
Luiz Fernando Carvalho, Luis Alberto de Abreu, Adrian Teijido e elenco da
minissérie Pedra do Reino - São Paulo, 2007 - Espaço Unibanco - lançamento
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Hermila Guedes - Rio de Janeiro, 2006 - Debate durante o Festival de cinema do
Rio de Janeiro.

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Karim Ainouz - Fortaleza, 2010 - palestra proferida aos alunos do curso de
Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará.
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