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PERIGOSAS NACIONAIS

1ª Edição
Belo Horizonte
2018

PERIGOSAS ACHERON
PERIGOSAS NACIONAIS

Copyright ©2018 Thais Lopes


Produção Editorial
Senhor da Lenda
Capa & Diagramação
Thais Lopes
Todos os direitos reservados. É proibido o
armazenamento ou a reprodução de qualquer parte
desta obra – física ou eletrônica -, sem a
autorização prévia do autor.

PERIGOSAS ACHERON
PERIGOSAS NACIONAIS

Para o Covil.
Porque, de certa forma, isso começou por causa de
vocês.

PERIGOSAS ACHERON
PERIGOSAS NACIONAIS

SUMÁRIO
AGORA
ANTES
Capítulo Um
Capítulo Dois
Capítulo Três
Capítulo Quatro
Capítulo Cinco
Capítulo Seis
Capítulo Sete
AGORA
Capítulo Oito
Capítulo Nove
Capítulo Dez
Capítulo Onze
Capítulo Doze
Capítulo Treze
Capítulo Quatorze
Capítulo Quinze
Capítulo Dezesseis
PERIGOSAS ACHERON
PERIGOSAS NACIONAIS

Capítulo Dezessete
Capítulo Dezoito
Capítulo Dezenove
Capítulo Vinte
Capítulo Vinte e Um
Capítulo Vinte e Dois
Capítulo Vinte e Três
Capítulo Vinte e Quatro
Capítulo Vinte e Cinco
Capítulo Vinte e Seis
Capítulo Vinte e Sete
Capítulo Vinte e Oito
Capítulo Vinte e Nove
Capítulo Trinta
Capítulo Trinta e Um
Capítulo Trinta e Dois
Capítulo Trinta e Três
Capítulo Trinta e Quatro
Capítulo Trinta e Cinco
Capítulo Trinta e Seis
Capítulo Trinta e Sete
Capítulo Trinta e Oito
Capítulo Trinta e Nove
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Capítulo Quarenta
Capítulo Quarenta e Um
Capítulo Quarenta e Dois
Epílogo
AGRADECIMENTOS
OUTROS TÍTULOS DA AUTORA

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QUANTO TEMPO VOCÊ VAI FICAR VIAJANDO?


Encaro a mensagem na tela do meu celular.
Viajando. Vai demorar para eu me acostumar com
isso, mas é melhor que dizer a verdade. Alguma
coisa no sentido de “ah, sumi porque meu pai
arrumou uma confusão com o que eu ainda acho
que é um grupo de traficantes e eles me mandaram
para essa casa aqui para garantir que ele não vai
contar nada para ninguém”. Preciso admitir que a
história da tal viagem é uma forma bem prática de
evitar essas perguntas.
Mas a pergunta de Bruna me faz parar para
pensar em outra coisa: quanto tempo vão me
manter aqui? Ninguém falou nada sobre isso até
agora e eu estava tão preocupada em só ficar fora
das vistas de todo mundo que nem pensei em
perguntar também. Não posso ficar trancada nesse
quarto pelo resto da vida. Deve ter algum jeito,
posso tentar denunciar... Não sei. E tenho certeza
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de que estão vigiando tudo o que eu faço, fazer


qualquer coisa nesse sentido agora é loucura. Só sei
que ficar sentada sozinha não vai resolver nada e
agora eu preciso saber o que vão fazer comigo. Se
vão me soltar ou se vão querer me manter aqui para
sempre... E nesse caso eu vou ter que pensar em
alguma coisa.
Paro na frente da porta do quarto e respiro fundo
antes de abri-la e olhar para fora. Ninguém no
corredor. Se bem que isso não é bom, preciso falar
com alguém se quiser ter uma resposta. Ou melhor,
preciso falar com Alexandre. Um arrepio me
atravessa só de pensar nisso. Não quero falar com
ele. Quero distância.
Vou na direção da escadaria e paro, olhando ao
redor de novo. Ninguém. Estranho. Tenho certeza
que vi umas tantas pessoas por aqui quando
cheguei e ouvi movimento no corredor o dia todo.
Podia estar meio fora do ar – com direito – mas não
ia ter imaginado as pessoas que vi, especialmente
porque uns tantos pareciam familiares. Não faz
sentido tudo estar vazio assim...
Escuto o barulho de algo se quebrando e dou um
passo atrás.

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Faz sentido tudo estar vazio se as pessoas


estiverem se escondendo de alguma coisa. Ou de
alguém.
Olho para a porta do quarto e de volta para a
escadaria. Não vai adiantar nada eu continuar me
escondendo. Preciso dar um jeito nisso. Respiro
fundo de novo e começo a descer a escada.
Estou quase no térreo quando escuto a voz de
Paula. Não sei porque isso me surpreende, depois
de todos os dias que ela e Alexandre passaram
trancados no seu escritório. O que quer que ele
esteja aprontando, ela sabe. Tenho certeza que
sabe. E se bobear ainda o ajuda.
Como é que eu passei dois anos trabalhando
para ela, a chamando de amiga?
Respiro fundo de novo. Eu devia estar com
medo. Ou melhor, com mais medo. Desafiar um
deles é loucura, mas... Não importa. O que eu tenho
a perder? Termino de descer a escada e sigo a voz
de Paula. Agora consigo ouvir a voz rouca de
Alexandre também. Perfeito. Paro alguns passos
depois da escadaria e olho para o saguão de entrada
e a porta fechada. Posso escapar. É só correr, abrir
a porta, e vou estar lá fora. Aí só vou precisar
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correr até o portão...


Se a porta estiver destrancada, se ninguém me
alcançar até o portão, se eu conseguir fazer alguma
coisa antes de irem atrás da minha família para
cumprir a ameaça... Isso sem mencionar que não
tenho nenhuma prova contra Alexandre. Respiro
fundo e fecho os olhos por um instante. Melhor
conversar primeiro, e depois decido o que fazer.
As vozes estavam vindo de uma das salas à
direita da escadaria, mas os dois estão em silêncio
agora. Não importa, tenho quase certeza de que sei
qual sala é. Paro de frente para a porta, pensando
no que dizer. Não sei mais porque resolvi vir atrás
dele, mas não posso continuar me escondendo.
A mensagem de Bruna. Isso. Quanto tempo eles
vão me manter ali.
Estico a mão para a maçaneta e a porta se abre
sozinha. Alexandre e Paula estão parados no meio
da sala, ao lado de uma cadeira quebrada. Tarde
demais para mudar de ideia. Respiro fundo e entro
na sala, olhando para qualquer lugar menos
diretamente para eles. Não consigo encarar Paula.
Ela está usando o mesmo saião verde com uma
camiseta branca de sexta-feira, antes do meu pai me
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contar o que tinha acontecido. Dois anos, sem fazer


a menor ideia de que ela estava ajudando um
criminoso e ia me vender assim. Me viro para
Alexandre, que parece não estar preocupado com o
que pode acontecer. Ele sustenta meu olhar sem a
menor dificuldade, e quase tenho a impressão de
que isso é um desafio.
— Quanto tempo vou ter que ficar aqui?
— Como? — Alexandre pergunta.
Dou de ombros.
— Você disse que tenho que ficar aqui. Por
quanto tempo?
Os dois trocam um olhar antes de se virarem
para mim de novo. Paula respira fundo e balança a
cabeça. Alexandre apenas me encara. Engulo em
seco. Não. Não, eles não podem estar querendo
dizer o que estou pensando. Não podem.
— Eu não vou ficar aqui para sempre, se é isso
que estão querendo dizer.
— A outra opção é eliminar sua família.
Dou um passo atrás. Como ele consegue falar
isso como se fosse a coisa mais normal do mundo?
Como Paula consegue aceitar isso calada?

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— Deve ter...
— Não.
Alexandre não fez nada, mas de repente eu só
quero fugir dali. É aquela sensação de violência
contida que ele sempre me passou, mas mais forte.
Da mesma forma que ele consegue falar de matar
toda a minha família sem nem piscar,
provavelmente me mataria sem pensar duas vezes
também.
Saio da sala, tentando não correr. Vou sair
daqui. Não quero nem saber, vou denunciar eles,
sei lá. Mas não vou ficar aqui. Não vou. Me recuso
a ser uma prisioneira pelo resto da minha vida, ficar
com pessoas que falam sobre matar toda a minha
família como se não fosse nada demais. Não. Nem
pelo meu pai eu consigo fazer isso. Tem que ter
outro jeito. Alexandre, Paula e quem mais estiver
por ali estão metidos com alguma coisa ilegal,
tenho certeza. Se for atrás da polícia às vezes eles
podem nos esconder.
Escuto passos pesados atrás de mim e corro até
o saguão do casarão. Só preciso chegar até a porta.
— Laura — Paula chama. — Você sabe o que
vai acontecer se sair.
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Me viro. Ela e Alexandre estão parados nos


degraus que separam o saguão dos corredores
laterais. Estou quase na porta, só mais alguns
passos.
— E o que vai acontecer se eu ficar aqui? —
Balanço a cabeça. Minha voz está estranha,
quebrando, e meu coração está disparado. Não
quero acreditar que isso é real, que eles realmente
acham que vão me manter aqui para sempre. —
Não quero morrer aqui.
Alexandre se vira para Paula, que suspira. Dou
um passo atrás, mais um, enquanto os dois se
encaram e não falam nada. Mais um passo. Estico a
mão para trás, esperando sentir a maçaneta a
qualquer instante.
Paula estende a mão na minha direção, ainda
sem desviar o olhar de Alexandre. Tento dar mais
um passo, mas não consigo me mexer e minha mão
parece ter batido em uma parede invisível. Não.
Não é uma parede, porque isso está ao meu redor.
Meu corpo não me obedece, parece que todos os
meus músculos estão travados, ou então que
alguma coisa está me segurando, mas não tem nada
aqui. Encaro os dois, parados no mesmo lugar. Não

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sei nem o que pensar, só sei que preciso sair daqui.


Tento me mexer, fazer qualquer coisa, mas não
consigo. É difícil respirar, como se estivesse
lutando contra um peso enorme em cima de mim.
Eu vou morrer aqui.
— Deixe ela ver — Alexandre praticamente
rosna.
Minha ex chefe suspira de novo e se vira para
mim. Quero gritar, mas não consigo me mexer nem
para fazer isso. Não sei o que estou vendo. Não faz
sentido, não é possível... Os olhos de Paula estão
verdes, brilhando de uma forma que não tem como
ser natural. E tem alguma coisa saindo da sua mão
e me cercando, raios verdes, crepitando ao meu
redor. É isso que está me prendendo aqui. Eu estou
louca. Estou vendo coisas. O que quer que isso
seja, não pode ser real. Tento mexer os braços, os
pés, qualquer coisa, mas estou completamente
imobilizada. Só consigo sentir meus olhos ardendo,
o grito ainda preso na minha garganta. E é Paula
quem está fazendo isso. A mesma Paula que me
deu um emprego e que foi minha amiga esse tempo
todo. Ela vai deixar esse louco fazer o que quiser
comigo. Meus olhos ardem de raiva. Isso, raiva.
Não vou chorar nem de medo nem de susto aqui.
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Estou com raiva demais. Ela era minha amiga,


como pode estar fazendo isso?
Sem conseguir fazer nada, sou arrastada para
perto de onde eles estão.
— Vou levar ela para o quarto. — Paula se vira
para Alexandre de novo e inclina a cabeça de uma
forma meio estranha.
Ele assente antes de me encarar. Deixo ele ver
minha raiva. É só isso que ele vai ter de mim. Não
vou deixar ele ver o meu medo. Não vou. Se ele
está esperando que eu me encolha ou algo assim,
está muito enganado. Alexandre se vira de forma
brusca e sai pelo corredor à esquerda.
Paula balança a cabeça e abaixa o braço que
ainda estava estendido na minha direção. Os raios
verdes desaparecem e desabo no chão, mal
conseguindo esticar os braços a tempo de não cair
de cara. Não dá para acreditar que Paula fez isso
comigo. O que quer que isso seja. Eles são loucos.
Todos eles. Não tem outra explicação. E agora eu
estou na mão deles.
— Me desculpe por isso, Laura. Mas era eu ou
ele, e você não ia gostar da ideia dele sobre como te
parar.
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Não respondo. Respiro fundo três vezes,


lentamente, antes de me levantar. Paula está me
encarando, no mesmo lugar, e seus olhos voltaram
ao tom castanho que eu estou acostumada a ver.
— O que você é?
— Uma bruxa.
Uma bruxa. E depois do que ela fez, não
consigo nem duvidar. Eu senti alguma coisa me
segurando no lugar. Não tem explicação. Quem
está louco? Eles ou eu? Juro que não sei mais,
porque estou levando a sério essa resposta de Paula.
Subo de volta para o quarto, com Paula atrás de
mim. Dessa vez tenho certeza de que vi pelo menos
uma pessoa nos encarando através da fresta de uma
das portas, mas o corredor continua deserto. Entro
no quarto sem falar nada e encaro o celular que
deixei em cima da cama. Uma mensagem, uma
pergunta inocente, e foi o suficiente para eu
descobrir que minha vida realmente acabou e que
minha ex chefe é uma bruxa. Isso não pode ser real.
Aperto meus braços, me lembrando da sensação de
não conseguir me mover. Isso não pode ser real,
mas aconteceu.
— Não tente sair da casa — Paula fala e me viro
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para ela, que indica as janelas com um movimento


de cabeça. Elas estão brilhando suavemente com o
mesmo tom de verde do que me segurou lá
embaixo.
Me viro para Paula de novo, mas ela já está fora
do quarto e fechando a porta atrás de si. Melhor
assim. Não faço a menor ideia do que ia falar.
Uma bruxa. Se Paula é uma bruxa... Eu estou
começando a achar que meu pai estava falando a
verdade, então, e que não se meteu com traficantes
nem nada do tipo. Mas, uma bruxa... Isso não me
deixa nem um pouco mais calma. Não consigo
acreditar. Na verdade, não quero acreditar, porque
não tenho muita opção.
Não consigo acreditar que isso é real e está
acontecendo comigo.
E acho que preciso explicar como foi que vim
parar aqui.

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CAPÍTULO UM

L AURA
SE TEM UMA COISA QUE EU ODEIO É CONFERIR ESTOQUE.
Não, mentira. Eu até que gosto bastante. É uma
delícia sair revirando os livros nas estantes. Ou,
pelo menos, era. Mas naquele dia eu já estava de
mau humor só de pensar em sair da minha mesa. Só
queria ficar sentada ali, lendo ou desenhando.
Aquela era a maior vantagem de trabalhar em um
sebo em uma cidade do interior: quase todas as
vendas eram feitas pela internet. Eu não precisava
falar com clientes e passava a maior parte do
horário de trabalho lendo.
A desvantagem estava sentada na minha frente.
Alto, com um corpo definido sem exagero e um
rosto quadrado com linhas fortes que eu adorava
desenhar, cabelos castanho claros longos o bastante

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para eu enfiar a mão, olhos cor de mel e uma boca


que era a definição da perfeição. Henrique, meu
namorado, tinha decidido me visitar no trabalho,
pela terceira vez na semana – e era quarta-feira.
Eu realmente gostava dele. De verdade. Só não
tinha paciência para aquele tipo de coisa. Mesmo
que eu ficasse o dia todo à toa, estava em horário
de trabalho. Ele não tinha nada que estar ali. Se ele
fazia o que bem entendia no trabalho dele, não era
problema meu, só que no sebo as coisas não
funcionavam assim. Aquilo me incomodava
demais, mas não adiantava falar nada. Da última
vez que falei, Rick passou quase uma semana
chateado, porque só estava querendo passar mais
tempo comigo, que aquilo era porque se importava
comigo, e... Suspirei, encarando as planilhas na tela
do computador. Sempre podia mandar uma
mensagem para Paula, minha chefe, e pedir para ela
vir mandar Rick ir embora. Mas, se fizesse isso, ele
ia passar dias falando mal dela. E não ia adiantar
nada eu pedir ele para parar, também.
Suspirei de novo e me inclinei para trás na
cadeira. Eu realmente precisava conferir o estoque.
Mas se levantasse e fosse mexer nas estantes, Rick
ia ir atrás de mim. E aí ia querer aproveitar que
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estávamos fora de vista para “dar uns beijos”. Já


tinha acontecido antes e eu não queria repetir, até
porque ele tinha probleminhas para entender a
palavra “não”. Estava trabalhando, qual era a
dificuldade dele em entender aquilo?
O pior era que eu nem podia reclamar daquilo
com ninguém. Da última vez que tinha comentado
sobre isso com minhas amigas, nesse dia que Rick
não me deixou trabalhar direito porque queria ficar
dando uns agarros entre as estantes e não adiantava
eu falar nada, elas falaram que eu era sem coração.
Que não tinha nada que estar com raiva. E Gisele
ainda completou com o “você tem sorte de ter um
namorado atencioso assim, devia aproveitar”. Não
queria aquela atenção, obrigada.
Às vezes eu achava mesmo que eu tinha algum
problema. Cheguei a pensar em procurar tratamento
umas tantas vezes, mas sempre desisti. Não era
possível que querer que meu namorado não
aparecesse no meu trabalho fosse alguma coisa
errada. Para mim, era o óbvio: eu estou no trabalho.
Você não trabalha comigo. Não tem que estar aqui.
Óbvio. Simples. Tão óbvio que chegava a ser
estúpido. Mas não. Eu estava errada. Eu tinha
algum problema, porque aquilo só queria dizer que
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ele era atencioso, que se preocupava e queria ficar


perto de mim.
— Lau?
Balancei a cabeça e me virei para Rick. Tinha a
impressão de que não era a primeira vez que ele me
chamava, mas estava com a cabeça longe.
— Desculpa, Rick, estava pensando.
— Você sempre está pensando.
Dei de ombros. Não era uma mentira.
— Mas e então, nenhuma chance da sua chefe te
deixar sair mais cedo?
Voltei a encarar o monitor e as planilhas. Devia
ter ido conferir o estoque, mesmo que fosse ficar o
tempo todo discutindo porque não queria ficar
“dando beijinhos”.
— Nenhuma. Meu horário é até as seis — falei.
Rick abriu os braços.
— Mas você está à toa aqui!
— À toa ou não, meu horário é até as seis.
E eu merecia um prêmio pelo meu autocontrole.
Ele abaixou os braços e balançou a cabeça.
Ótimo, eu conhecia aquele olhar. Rick tinha ficado

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chateado. Meu Deus, que dificuldade! Eu só queria


trabalhar... Por que ele não podia me deixar em
paz? Tudo bem que ele trabalhava na empresa do
pai – o que queria dizer que ficava no escritório
mais de enfeite que para trabalhar mesmo – mas
devia ter alguma coisa para ele fazer. Sei lá, alguém
devia estar sentindo falta da decoração...
Argh. Eu tinha que parar de pensar aquelas
coisas.
Rick se apoiou na minha mesa, empurrando
alguns livros para o lado.
— Você não era assim antes de ir para Belo
Horizonte.
Respirei fundo, peguei os livros, e os coloquei
em uma das prateleiras quase vazias atrás de mim.
— Antes de ir para Belo Horizonte, eu tinha
dezoito anos. As pessoas mudam, Rick.
— Eu ainda acho que não devia ter ido. Olha só,
quatro anos para você voltar e ficar trabalhando na
loja de livros usados!
Estreitei os olhos e o encarei, apertando o mouse
com força. Não ia falar nada que fosse começar
uma briga. Não ia. Não valia a pena

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Rick levantou as mãos, com as palmas viradas


para mim.
— Já entendi, nada de resmungar sobre sua
faculdade, tá, entendi.
Ótimo. E eu não ia responder ao comentário
sobre ter estudado quatro anos para trabalhar em
um sebo. Se fizesse isso ia começar a mesma
discussão velha de sempre. Eu queria ter feito
faculdade de Artes Plásticas, mas aquilo era coisa
de vagabundo, de acordo com minha família, com
Rick, e com boa parte da cidade. Então acabei
fazendo Letras, que era a opção menos pior entre os
cursos para gente “que valia alguma coisa”. Não
queria dar aula e meus pais não iam me deixar ficar
em BH por mais que quatro anos para eu fazer um
bacharelado. Não que eu tivesse muito interesse em
outras áreas. O resultado foi um diploma de enfeite,
mas pelo menos eu tinha saído de Monte das Pedras
por algum tempo. Melhor decisão da minha vida. Já
fazia dois anos que tinha voltado para casa e ainda
sentia saudades. Se pudesse, teria continuado por
lá.
Era melhor eu começar a trabalhar. Cliquei no
botão para imprimir as tabelas do estoque. Se Rick

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começasse a incomodar demais, eu ia mandar


mensagem para Paula, mesmo que ele fosse ficar
falando por uma semana. Ela estava cansada de
saber que ele não gostava dela e não se importava.
Então eu também não ia me importar.
Sempre tinha visto as pessoas comentando sobre
como tudo era diferente na cidade grande, mas
nunca acreditara. A diferença não podia ser tão
grande assim, certo? Errado. Sair de Monte das
Pedras e ir para BH tinha sido a mesma coisa que
entrar em um mundo diferente de tudo o que eu
conhecia. Tá, estou sendo um pouco dramática.
Mas para uma garota criada numa cidade do
interior onde praticamente todo mundo se conhecia
e todo mundo sabia o que era o “certo” e como as
pessoas deveriam agir, foi um choque. Voltar para
cá, então... Já fazia dois anos desde que eu tinha
voltado para casa e ainda não me acostumara de
novo com como as coisas deveriam ser.
Peguei as páginas impressas e respirei fundo.
Quando olhei para a frente de novo, Rick estava
virado para a porta, encarando o homem que se
aproximava. Engoli em seco. Alexandre era mais
baixo que Rick e nem de longe tão musculoso, mas
passava uma impressão de violência contida que
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sempre me fazia hesitar. Na primeira vez que o vi,


pensei que fosse por causa das cicatrizes no seu
rosto. Eu não fazia ideia de qual era a sua história,
ele tinha se mudado para a cidade enquanto eu
estava fazendo faculdade, mas não conseguia parar
de imaginar que tipo de coisa poderia causar
cicatrizes como aquelas. Elas atravessavam todo o
seu rosto, uma delas repuxando o lado direito da
sua boca, e desciam pelo seu pescoço, linhas mais
claras contra sua pele bronzeada. Só depois de
umas tantas vezes que ele tinha ido no sebo percebi
que a culpa daquela impressão não era das
cicatrizes. Era algo dele mesmo, da forma como ele
se movia e como seus olhos escuros pareciam
analisar tudo ao seu redor.
Me levantei depressa e dei a volta na mesa
assim que Alexandre entrou na loja. Rick também
se levantou e cruzou os braços.
— Boa tarde, Alexandre — cumprimentei, com
aquele tom de voz animado e amigável que sempre
usava com clientes, mesmo que provavelmente ele
não fosse comprar nada.
Ele me encarou. Engoli em seco de novo, com
aquela sensação estranha de que se só ficasse

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imóvel ele ia parar de prestar atenção em mim e


nada de mal ia acontecer. Alexandre estreitou os
olhos, como se estivesse me medindo de alguma
forma. Não falei nada. Melhor não provocar. Não
fazia a menor ideia de por que ele me passava
aquela sensação, mas não ia ignorar.
— Paula está aí? — Ele perguntou.
Soltei o ar lentamente.
— Só um minuto, vou conferir.
Passei entre as estantes, indo para os fundos da
loja. Só quando já estava fora do campo de visão de
Alexandre consegui voltar a respirar direito e parei
por um instante, tentando entender minha reação.
Por mais que ele me deixasse incomodada, minha
reação tinha sido pior que o normal. Eu já devia
estar me acostumando com aquilo, não ficando
mais intimidada ainda. A menos que tivesse
acontecido alguma coisa para deixar Alexandre
mais assustador que o normal.
Abri a porta dos fundos, que dava para a escada
que descia para o porão da loja, mais conhecido
como o escritório de Paula. As luzes estavam
acesas, mas isso não era garantia de nada. Desci
dois degraus antes de me abaixar, tentando ver
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alguma coisa ali embaixo.


— Paula? Está aí?
A única coisa visível era uma mesa com
algumas estatuetas de metal e de madeira,
encostada na parede pouco à frente da escada. Eu
não fazia ideia do que Paula tinha ou fazia ali, só
sabia que ela tinha me proibido de descer no porão.
Admito que a vontade de ir lá escondida era bem
grande, mas eu nunca sabia quando Paula estava lá
ou não e não queria arriscar meu emprego.
— Estou indo!
E aquela resposta era o motivo para eu conter
minha curiosidade. Eu tinha aberto a loja às oito da
manhã, feito meu horário de almoço ali, e Paula
não passara por mim em nenhum momento. A
única explicação era que havia uma porta dos
fundos de verdade no porão.
Vi Paula se aproximar, vinda de algum lugar à
direita da escada. Com pele marrom claro, cabelo
castanho escuro e ondulado batendo no meio das
costas, rosto em formato de coração e olhos
grandes e castanhos, ela quase sempre se vestia
com camisetas e saiões coloridos que eu achava
lindos, mas que nunca ficavam bem em mim.
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Desde que começara a trabalhar ali eu tentava


convencer Paula a me deixar desenhá-la ou pintá-
la, mas ela não aceitava de forma alguma.
— Alexandre está aí — avisei.
Ela assentiu e então estreitou os olhos.
— E o seu namorado inconveniente também,
não é?
Fiz uma careta. Nem adiantava tentar defender
Rick. Ele estava sendo inconveniente sim.
Paula suspirou e começou a subir a escada. Me
levantei e subi os dois degraus de volta, esperando
por ela antes de voltar para a parte da frente da loja.
Rick e Alexandre estavam se encarando. Eu
quase podia sentir a tensão no ar, mas ela estava
vindo apenas de Rick, que ainda estava de braços
cruzados. Era como se Alexandre não se importasse
com a ameaça silenciosa. Na verdade, alguma coisa
na sua expressão me fazia pensar que ele estava se
divertindo com a situação. Homens.
No fim das contas, eu não queria que aquilo
virasse uma briga, então quase corri de volta para
minha mesa. Rick podia ser maior que Alexandre,
mas eu não tinha certeza de que, se começassem a
brigar, ele iria se dar bem.
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Paula soltou um suspiro audível, atrás de mim, e


os dois se viraram para ela.
— Alexandre, se quiser ir descendo para o
escritório, falo com você em dois minutos — ela
falou, encarando Rick.
Alexandre passou entre nós sem dizer nada,
indo para a porta dos fundos. Aquilo já era quase
rotina. Ele aparecia ali pelo menos uma vez por
mês e descia para falar com Paula. Eu não fazia a
menor ideia do que eles tanto tinham para discutir e
por que ele sempre vinha atrás de Paula. Se bem
que eu não sabia quase nada sobre ele. Alexandre
se mudara para Monte das Pedras pouco depois que
fui para BH, e tinha comprado um casarão histórico
que ficava um pouco afastado da cidade
propriamente dita.
— Henrique, Laura tem trabalho a fazer, então
se não vai comprar nada, por favor não fique
distraindo ela — Paula falou, com um sorriso no
rosto.
Rick descruzou os braços e se endireitou.
— Pensei que ela estivesse à toa.
O sorriso de Paula se tornou gelado.
— Provavelmente porque você está aqui
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conversando. Por favor?


E nem eu discutia com Paula quando ela falava
“por favor” naquele tom. Dei a volta na mesa
depressa, sabendo que Rick ia reclamar, mesmo
assim.
— Amor, por favor — murmurei e dei um
selinho nele. — A gente se vê depois do trabalho,
pode ser?
Ele me encarou e assentiu, antes de me puxar
para mais um selinho.
— Te busco no fim do expediente, então.
Encarei suas costas enquanto ele saía e fechava
a porta de vidro atrás de si. Não queria fazer nada
com ele depois do trabalho. Queria ir para casa, ler
um pouco, talvez desenhar, quem sabe responder as
mensagens dos meus colegas de BH. Mas não
custava nada sair um pouco com Rick. Ele merecia,
levando em conta que fazia de tudo para estar
comigo e eu era a estranha que queria espaço.
— Eu queria mesmo entender porque você ainda
está com esse babaca.
Me virei para Paula, que tinha se sentado em
cima da mesa, e dei de ombros. Ela já tinha feito
aquela pergunta antes e eu já tinha tentado explicar.
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Era complicado. Rick foi meu primeiro namorado,


da época de colégio mesmo. Era um amigo,
fazíamos tudo juntos. Ele sempre fez de tudo por
mim, sempre foi o cara perfeito. Até que eu decidi
que queria fazer faculdade em Belo Horizonte e
consegui passar na UFMG. Ele queria me pedir em
casamento e eu queria ir para outra cidade. Demos
um tempo enquanto eu estava lá. Ou melhor,
terminamos mesmo, porque um “tempo” de quatro
anos é pedir demais. Na minha formatura, ele me
deu um buquê de flores, falou que estava morrendo
de saudades e que mal podia esperar para estarmos
juntos de novo. Foi aí que vi que alguma coisa
estava diferente. Mas ele ainda era Rick: meu
melhor amigo da época do colégio, meu primeiro
namorado, o cara fofo que fazia tudo para mim e
me dava flores, que aceitou sem problemas quando
disse que não queria nada mais sério que nosso
namoro porque ia estudar fora. Sem mencionar que
era lindo, que vinha de uma família tradicional e
que todas as garotas da cidade eram loucas com ele.
E tinha ido para a minha formatura, me levando um
buquê de rosas. Voltamos a namorar naquela noite.
Era tudo tão perfeito, tão romântico...
— Ele não é babaca. — Cruzei os braços. — Só
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um pouco inconveniente. Ele gosta de estar


comigo.
Paula revirou os olhos. Na maior parte do tempo
ela era tão tranquila e equilibrada que parecia ser
bem mais velha, mas nessas horas ficava óbvio que
não era bem assim. Ela tinha vinte e seis anos e era
dona de um sebo que, por algum milagre, não
estava no vermelho. Até falaria que queria ser
quando ela quando crescesse, mas ela era só um
ano e meio mais velha que eu. Quem sabe quando
chegasse nos trinta eu estivesse com minha vida
organizada como a dela.
— Ele é grudento e sem noção, para não falar
outras coisas. — Ela levantou um dedo. — E você
sabe que estou certa, não precisa tentar defender.
Suspirei. Eu concordava com ela, mas Paula e
eu éramos as esquisitas da cidade, então acho que a
opinião dela não contava tanto assim.
Paula desceu da mesa e ajeitou seu saião.
— Você tem que conferir o estoque e, se der
tempo, preparar as últimas encomendas para envio.
Pode ligar suas músicas, desde que não coloque o
volume muito alto — ela falou, indo para a porta
dos fundos.
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Sorri. Normalmente Paula só me deixava escutar


músicas bem baixo e enquanto estava na mesa.
Aquela era a vantagem das visitas de Alexandre:
ela sempre me deixava ligar o som. Tudo bem que
era para ter certeza de que eu não ia ouvir o que
estavam falando – era a única explicação – mas eu
não ia ouvir, de qualquer forma. Melhor para mim.
Sem Rick ali e com o som liberado. Meu sorriso
se alargou. Nem ia reclamar de ter que conferir
estoque.

···
A LEXANDRE
PAULA NÃO TINHA FICADO À TOA DESDE QUE SAÍRA DO
casarão. Suspirei. Devia ter imaginado que ela
estaria mais preocupada que eu. Sua mesa estava
coberta de livros, muitos abertos, alguns colocados
de qualquer jeito em cima dos outros. Aquilo não
era normal. Ela costumava ser bastante cuidadosa
com livros, especialmente com os que mantinha no
seu escritório – sua biblioteca de bruxa – que eram
quase todos antigos, alguns da coleção da sua
família, outros que ela passara anos procurando.
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Parei no meio do escritório, esperando. Não


conseguiria ficar sentado agora, muito menos perto
dos livros de Paula. Ia acabar mexendo neles e ela
não aceitava que ninguém encostasse na sua
coleção particular.
Me virei para a entrada do escritório assim que
ouvi os passos dela se aproximando da porta dos
fundos e então descendo a escada. Aquele espaço, o
porão da loja, tinha se tornado o refúgio de Paula.
De acordo com ela, todos nós no casarão éramos
curiosos, barulhentos e agitados demais para que
ela conseguisse se concentrar nas suas coisas.
Ninguém mais vinha aqui – nem mesmo a humana
que trabalhava para ela.
E aquilo levava a outra questão.
— Então aquele desperdício de oxigênio
continua vindo aqui — falei.
Paula revirou os olhos e fechou a porta do
escritório. Não que aquilo fosse fazer diferença.
Laura nunca conseguiria nos ouvir aqui embaixo,
mas Paula era mais cuidadosa que eu.
— É óbvio que continua. É o namorado dela.
— E por que não me avisou?
Ela se virou lentamente e me encarou.
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— Porque não é da sua conta. Você está um


tantinho possessivo com relação a Laura, sabia?
Rosnei. Ela levantou uma sobrancelha. Eu já
devia ter aprendido que aquilo não funcionava mais
com ela.
— Eu não estou possessivo — corrigi. — Mas
aquele humano tentou invadir nossa propriedade
duas vezes. Tenho todo o direito de saber o que ele
está fazendo, quando pode ser uma ameaça para
nós. E especialmente para você, que fica sozinha
aqui.
Os olhos de Paula brilharam com uma luz verde.
Dei um passo atrás e levantei as mãos. Tinha falado
sem pensar, e tinha falado a coisa errada.
— Então você acha que um boyzinho humano é
um perigo para mim, é? Que eu não conseguiria...
— Paula... — comecei.
As páginas dos livros abertos em cima da mesa
dela viraram de uma vez.
— Não me venha com “Paula” nesse tom, foi
exatamente isso que você falou!
— Eu sei. Me desculpe.
Ela parou. Respirei fundo e balancei a cabeça.
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— Falei sem pensar. Me desculpe — repeti. —


Mas eu estou preocupado com você, ainda mais que
alguém está conseguindo derrubar suas proteções.
Paula suspirou e esticou a mão. Seus olhos
brilharam e ouvi as páginas dos livros virando de
novo, desta vez de forma controlada.
— Eu sei. É só...
Ela deu de ombros e passou por mim, indo para
o outro lado da mesa.
Era só que estávamos todos tensos demais. Já
fazia seis anos desde que Paula e eu havíamos
decidido vir para o casarão nos limites de Monte
das Pedras. Era mais seguro: menos chances de
acidentes, mais difícil para qualquer um que
decidisse me caçar, mesmo que o Conselho não
tivesse dado nenhuma ordem naquele sentido.
Obviamente, quando avisamos que estávamos nos
mudando, Aline e Rodrigo vieram juntos. Eles
eram amigos de Paula desde muito antes de ela me
conhecer. Quando percebi, já éramos quase vinte
pessoas no casarão e então mais que isso, e todas as
pessoas ali tinham a mesma coisa em comum:
queriam se afastar das políticas do Outro Mundo e
das regras sobre como normalmente vivíamos. Não
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que qualquer regra sobre esconder nossa existência


da humanidade fosse diferente ali, mas pelo menos
funcionávamos como uma equipe. Não havia a
briga por posições na hierarquia que sempre
acontecia.
Os primeiros meses foram tensos, até todos se
acostumarem a estar junto com pessoas de outras
raças. E mais tensos ainda porque o Conselho não
queria nos dar permissão para continuar ali e nos
desafiaram abertamente. Por fim, tudo deu certo –
justamente por causa da mistura de raças no
casarão. Pensamos que aquele seria o último
problema e que teríamos paz, mas agora...
Quando conseguimos permissão definitiva para
ficar ali, sem ninguém questionar o nosso grupo –
meu bando – colocamos uma série de proteções ao
redor da propriedade. Paula criara a base, porque
bruxas como ela estavam acostumadas a trabalhar
com escudos e proteções. Depois todos os outros
membros do bando que tinham algum poder nesse
sentido fizeram a mesma coisa. Eram várias
camadas de defesa e eu seria capaz de jurar que
ninguém conseguiria derrubá-las. Mas já era a
segunda vez que elas caíam. O pior era que não era
só uma das defesas sendo derrubada. Eram todas,
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ao mesmo tempo. Aquilo não deveria ser possível,


mas estava acontecendo.
Da primeira vez, encontramos aquele
desperdício de oxigênio – Henrique – nos limites
da propriedade. Ele disse que só estava dando uma
olhada no terreno, o que até seria um bom motivo
para estar ali se estivéssemos pelo menos
negociando parte da propriedade com a construtora
onde ele trabalhava. Mas eu já havia deixado claro
que não ia vender nada, então ele não tinha
nenhuma desculpa para estar se enfiando ali. Da
segunda vez, alguns dias antes, ele não tinha
conseguido passar pelas nossas defesas, mas fugiu
assim que percebeu que havíamos notado que
estava lá. Depois daquilo, havíamos reestruturado a
vigilância. Agora sempre tínhamos alguém perto de
onde nossa propriedade se encontrava com a da
construtora. Eu só esperava que fosse o suficiente.
— Você ficou esperando tempo o bastante —
Paula começou, fechando alguns livros. —
Conseguiu alguma coisa?
Balancei a cabeça. Uma das nossas teorias era
que Henrique ou alguém na construtora eram do
Outro Mundo. Não deveria ser possível. Ninguém

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mais tinha permissão para estar naquela região e


algum de nós teria notado mais alguém por perto.
Mesmo assim, era uma ideia válida, porque não
tínhamos outra opção.
Ou melhor, teríamos que pensar em outra opção,
porque eu havia aproveitado aqueles minutos na
loja para farejar Henrique. Se ele fosse do Outro
Mundo ou tivesse passado algum tempo perto de
um de nós, eu teria notado. Mas o único cheiro
diferente perto dele era o de Laura.
— Ele é humano. Completamente humano e não
senti nenhum traço de qualquer contato com um de
nós.
Paula suspirou e encarou um dos livros abertos.
— Laura também é humana e...
Rosnei e me arrependi no instante seguinte,
quando Paula sorriu. Por que ela sempre insistia em
voltar àquele assunto?
— Laura é diferente, mas continua sendo
humana. Ela também não conseguiria derrubar as
defesas.
Havia algo de diferente em Laura, nisso todos
nos concordávamos. Só não fazíamos ideia do que
era. Agora, insinuar que ela poderia ter feito
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aquilo? Talvez, se ela fosse outro tipo de pessoa.


Mas Laura era presa, não predador. Isso estava
claro na forma como ela se encolhia sempre que eu
entrava na loja. E uma presa não provoca alguém
que pode matá-la.
— Não estou falando que ela poderia ter feito
isso — Paula falou, sem olhar para mim. — Mas se
Laura é um tipo diferente de humano, não pode ter
outros tipos por aí?
Balancei a cabeça. Não podíamos ficar tão
preocupados a ponto de perder completamente o
bom senso.
— Acho que isso é ir longe demais. Você sabe
melhor que eu que os humanos que se dizem
bruxos...
Um dos livros se fechou de forma brusca.
— Eles não conseguiriam nem notar aquelas
defesas. Eu sei. — Paula deu de ombros e puxou o
livro que tinha se fechado. — Só queria achar uma
possibilidade. E realmente, se existe um tipo
diferente de humano...
Puxei uma cadeira e me sentei. Seria mais fácil
se algo assim fosse possível. Algum tipo de
humano que conseguisse reconhecer nosso poder,
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talvez – porque não deveria ser possível que


proteções feitas com os poderes de seis raças
diferentes do Outro Mundo fossem derrubadas de
uma vez. Mas não conseguia acreditar que seria
algo assim.
— Se fosse algo do tipo, Ryan teria nos avisado.
E ele também não faz a menor ideia do que está
acontecendo.
Paula bufou e levantou a cabeça.
— Ryan? Posso confiar nele para muitas coisas,
mas não para me dar informações.
Não respondi. Ryan era dos povos das fadas, um
sidhe, e o mais velho do bando. Eu não fazia ideia
da sua idade, mas ele era antigo o bastante para se
lembrar de muitas coisas que haviam se tornado
lendas entre o Outro Mundo. Logo quando ele
chegou no casarão, pouco depois de começarmos a
nos juntar ali, Ryan foi claro comigo sobre o que
falaria ou não. De acordo com ele, havia coisas que
deveriam ser esquecidas, era mais seguro assim. E,
além disso, ele tinha restrições sobre o que podia
contar sobre alguns assuntos e até onde podia usar
seus poderes fora de algumas situações específicas.
Nenhuma surpresa, vindo de um dos antigos,
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especialmente dos povos das fadas. Mas ele me


garantira que, se soubesse de alguma coisa que
fosse fazer a diferença para a existência do bando,
me contaria.
Em qualquer outra situação, eu pensaria que
alguém do Outro Mundo estava nos atacando. Meu
primeiro suspeito seria Gustavo, o alfa da matilha
de felinos que vivia no território ao lado. Ele me
desafiara algumas vezes, nada sério ou formal, mas
as atitudes estavam ali, desde o começo. Mesmo
que ele não tivesse permissão para entrar no nosso
território – que era uma concessão do alfa da
matilha de lobos que controlava a região – Gustavo
já tinha aparecido no casarão algumas vezes.
Mas Gustavo não conseguiria desfazer nenhum
tipo de proteção. Ele era um metamorfo. Seu único
poder era a transformação.
A única forma de derrubar nossas proteções era
reunir pessoas com aqueles mesmos poderes,
trabalhando juntas. Era a resposta óbvia, mas
também era impossível. As raças do Outro Mundo
não trabalhavam juntas. Era por isso que meu
bando era considerado uma aberração. Pessoas de
praticamente todos os grupos do Outro Mundo

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vivendo juntas? Era uma afronta e algo que não


deveria ser feito, porque os riscos de um conflito
eram grandes demais. Mas estávamos ali. Ainda
assim, não conseguia levar aquela possibilidade a
sério. Se algum grupo assim houvesse se juntado,
teríamos ficado sabendo. Seria impossível esconder
algo assim do Outro Mundo.
Paula soltou o ar com força e um livro passou ao
lado da minha cabeça, indo de uma das estantes
direto para a mão dela.
— Eu vou achar um jeito.
Assenti, mas não estava prestando muita
atenção.
A questão não era mais sobre como deixar
nossas defesas impenetráveis. A questão era quem e
por que estavam derrubando nossos escudos. E o
que queriam fazer.

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CAPÍTULO DOIS

L AURA
ENFIEI A MÃO DEBAIXO DO TRAVESSEIRO E DESLIGUEI O
despertador do celular assim que ele começou a
tocar. Já estava tão acostumada a acordar às sete e
meia que nem precisava mesmo do despertador,
mas sabia que o dia que decidisse desligá-lo eu ia
perder a hora. Me sentei na cama, resmungando em
voz baixa sobre acordar cedo, só para não perder o
hábito mesmo. Marina murmurou alguma coisa e se
mexeu na cama ao lado. Me virei para ela, torcendo
para que não acordasse. Ela ainda podia dormir por
mais uma hora, e levando em conta que estava se
matando de estudar para o vestibular, eu não queria
acordá-la antes da hora. Marina queria fazer
medicina veterinária. Minha mãe ainda estava
chateada por ela também ter inventado de querer ir
para a cidade grande, mas pelo menos era um
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“curso útil”, então Marina não ia ter que brigar


tanto quanto eu para ir. E, levando em conta que
meus planos não tinham dado em nada, eu pelo
menos ia tentar fazer de tudo para que os dela
dessem certo. Alguém nessa casa tinha que
conseguir o que queria.
Eu sempre tinha sonhado em viajar, conhecer o
mundo. Era um dos motivos para querer fazer Artes
Plásticas – eu era boa com desenhos. Trabalhando
como ilustradora, dependendo só do meu notebook,
ia ser relativamente fácil juntar dinheiro e viajar
enquanto trabalhava. Tinha feito todos os planos
antes dos dezesseis anos. Mas nada deu certo. Não
consegui fazer o curso que queria, minha mãe me
obrigou a voltar para Monte das Pedras, e agora já
fazia uma boa ideia de como minha vida seria dali
para a frente: me casar com Rick, assumir a
mercearia da minha mãe, ter filhos que iam crescer
da mesma forma que eu cresci... Não queria que
fosse só aquilo, mas não conseguia ver outra opção.
Saí do quarto pisando leve. Senti o cheiro do
café fresco, o que queria dizer que meu pai estava
em casa. Devia ter chegado depois que fui dormir.
A essa hora minha mãe já estava na mercearia, que
abria às sete, por isso normalmente era eu quem
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fazia o café. Se ela fizesse, até eu e Marina


acordarmos já estaria frio, e café frio é uma coisa
que tem que ser muito louco para gostar.
Meu pai estava sentado na mesa da cozinha,
segurando uma xícara de café e encarando o jornal,
já vestido para ir trabalhar. Ele estava
supervisionando o trabalho em um dos
condomínios que a construtora da família de Rick
estava fazendo, um pouco além da cidade. Eu não
fazia a menor ideia de como estavam conseguindo
vender apartamentos em um condomínio fechado
nesse fim de mundo, mas pelo que tinha ouvido
eles até que estavam saindo depressa.
— Bom dia — falei, passando atrás dele para
pegar minha caneca.
Ele grunhiu alguma coisa em resposta, sem
desviar os olhos do jornal. Olhei por cima dele,
tentando ver o que era tão interessante assim, mas
ele estava lendo o caderno esportivo. Balancei a
cabeça, sem entender. Meu pai nunca tinha sido
muito fã de futebol ou qualquer outra coisa.
Assistia os jogos, claro, e era cruzeirense, mas não
era um daqueles fanáticos.
Dei a volta na mesa e me sentei na frente dele,
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esticando o braço para pegar a garrafa de café.


Enchi minha caneca, cortei um pedaço de rosca e
comecei a comer. Não ia tentar puxar assunto
quando meu pai estava concentrado assim em
alguma coisa e era época de obra grande. Fazer isso
seria pedir para ouvir uma resposta daquelas. Mas,
mesmo levando em conta que meu pai sempre
ficava estressado quando estava supervisionando
algum trabalho maior, ele parecia mais tenso que o
normal. Não, mentira, não era bem isso. Ele não
parecia tenso. Mas o silêncio estava
desconfortável, e aquilo não era normal.
Comi depressa e virei meu café em dois goles.
Não precisava começar o meu dia brigando, então
ia sair depressa, antes do meu pai achar alguma
coisa para reclamar de mim. Qualquer coisa virava
um problema gigantesco quando ele já estava
estressado. Não que eu pudesse julgar – sabia que
tinha herdado isso dele.
Peguei minhas roupas e fui para o banheiro. Me
arrumei depressa, não que me arrumasse mesmo
para ir trabalhar: calça jeans, a primeira camiseta
limpa que achei e meu cabelo castanho preso num
rabo de cavalo feito de qualquer jeito. Me encarei
no espelho mais uma vez antes de voltar para o
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quarto. Estava ouvindo meu pai na sala,


resmungando, então ia continuar sentada na cama
enquanto podia. Meu pai não ia vir aqui falar nada
para não acordar Marina. A melhor coisa era sair
depois dele ou tão atrasada que tivesse uma ótima
desculpa para passar direto por ele sem falar nada.
Saí em cima da hora, logo depois do meu pai.
Por sorte, Paula não reclamava se eu atrasasse
alguns minutinhos, desde que não fizesse aquilo
sempre. A rua já estava movimentada – pelo menos
para os padrões da cidade – quando cheguei e
levantei a porta de ferro. Dona Neuza, a vizinha do
lado, se inclinou sobre o parapeito da sua varanda.
— Achei que não fosse abrir hoje, menina.
Resisti à vontade de revirar os olhos e sorri.
Estava cinco minutos atrasada. Quem ouvisse ela
falar até pensaria que deveria ter aberto a loja horas
atrás.
— Estava conversando com meu pai, dona
Neuza. Acabei atrasando um pouco.
E era mais fácil falar que estava conversando
com ele do que admitir que estava evitando ficar
por perto.
— Ah, aquele Isaac...
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Destranquei a porta de vidro e acenei para dona


Neuza, sem querer ouvir o que quer que ela fosse
falar sobre meu pai.
Um olhar para a minha mesa me mostrou que as
encomendas que eu tinha empacotado ontem
haviam desaparecido. Soltei um suspiro alto
enquanto contornava a mesa e jogava minha bolsa
na prateleira mais baixa da estante. Pelo menos
desta vez Paula deixara um bilhete dizendo que ela
mesma ia no correio e que provavelmente só
chegaria depois do almoço. Mesmo assim, não
consegui deixar de ficar irritada. Estava querendo ir
no correio, só para andar um pouco. Talvez assim
conseguisse esfriar a cabeça. Não que ficar parada
na fila fosse me distrair.
E, levando em conta que eu tinha terminado de
conferir o estoque no dia anterior, não tinha nada
para fazer. Suspirei de novo e me sentei, ligando o
computador. Podia aproveitar o tempo para
desenhar, mas estava totalmente sem inspiração.
Então, ia ler. Olhei para a estante atrás de mim,
onde costumava deixar os livros que me chamavam
atenção. Os mais próximos eram da Anne Rice,
mas eu não estava no clima para eles. Queria
alguma coisa mais leve. Me abaixei, conferindo o
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restante da pilha, até achar o segundo Artemis


Fowl. Perfeito. Ainda me lembrava mais ou menos
da história do primeiro livro. Me acomodei melhor
na cadeira e comecei a ler.
Meia hora depois, eu colocava o livro de volta
na estante, resmungando. Não estava conseguindo
ler. Minha cabeça estava em outro lugar, não
conseguia me concentrar em nada. Culpa do meu
pai. Parecia que a irritação dele tinha passado para
mim só de ficar na mesma mesa no café da manhã.
Ótimo dia. Argh.
Puxei minha bolsa de qualquer jeito e enfiei a
mão dentro dela, procurando meu celular. Hora de
providenciar o passatempo de emergência:
joguinhos. Abri o jogo da cobrinha. Acho que seria
uma boa se aparecesse alguém para comprar livros,
só para variar. Ao menos eu ia precisar fazer
alguma coisa.
Estava concentrada no jogo, uns tantos níveis
depois, quando chegou uma mensagem. Encarei a
notificação, surpresa. Pouca gente me mandava
qualquer coisa no celular depois que voltei para
Monte das Pedras. Minhas duas amigas que usavam
os celulares com frequência preferiam aparecer na

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loja para conversar e por sorte Rick só usava o dele


para emergências. Os meus amigos de BH tinham
parado de mandar mensagens quando o tempo foi
passando e eu não voltava lá. Ou talvez eu tenha
sido um tanto seca demais quando respondia. Tinha
tentado me afastar deles, porque as mensagens só
serviam para me lembrar daquela outra vida que
não era para mim. E tinha conseguido.
Minimizei o jogo e abri a mensagem, erguendo
as sobrancelhas quando vi de quem era: Camila.
Ela era uma das minhas amigas de BH, se é que eu
podia chamar qualquer um de lá assim depois de
como tinha me afastado. A conheci em uma festa,
quando estava procurando carona para voltar. A
casa que Camila dividia com dois amigos não era
muito perto da minha república, mas ela passava
por lá no caminho. Depois disso ela começou a me
chamar sempre que tinha alguma festa.
Camila: O que está aprontando, sumida? Acho
que já passou tempo demais sem visitar.
Sorri. Na verdade, fazia um ano e meio que não
colocava os pés em BH. Tinha ido lá para buscar
meu diploma e uma vez antes disso, para
comemorar com alguns amigos. Sendo bem

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honesta, era tempo demais. Eu estava fugindo


mesmo, tentando nem me lembrar que havia mais
que essa cidade do interior.
Laura: Só trabalhando mesmo. Dia desses
apareço.
Nem fechei a janela depois de enviar a
mensagem. Sabia que Camila respondia depressa.
Camila: Tô ouvindo isso faz tempo demais.
Revirei os olhos, mesmo que fosse verdade. E
provavelmente não ia mudar. Não adiantava nada
eu falar que ia aparecer se não queria voltar para
BH só para ser lembrada de tudo que deu errado.
Mas talvez eu não precisasse fazer isso. Me
endireitei na cadeira, pensando. Camila conhecia
muitas pessoas, gente que trabalhava em todo tipo
de área. Talvez... Por que não?
Laura: Conhece alguém que trabalha com
ilustração? Freelancer?
Dessa vez a resposta demorou um pouco a vir.
Camila: O que você precisa, mais
especificamente?
Sorri. Mesmo por mensagem, eu quase podia
ouvir a voz de Camila me perguntando aquilo e sua
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expressão pensativa.
Laura: Quero saber como começar a fazer
freelances.
Camila: Espera um minuto que estamos
pegando a cerveja para comemorar aqui.
Ri em voz alta, balançando a cabeça. Camila e
Felipe, um dos amigos que morava com ela, tinham
passado um bom tempo falando que eu devia
arriscar e começar a pegar trabalhos como
freelancer, mesmo que não me considerasse muito
boa. Não custava nada arriscar. Bom, custava.
Porque se eu tentasse e não desse certo ia ser o fim
do meu sonho mais antigo. Na época, eu ainda
tinha alguma esperança de que as coisas iam se
resolver. Agora? Eu não tinha mais nada a perder.
Camila: Um amigo do Felipe mora com um
cara que é ilustrador. Está pegando os links e já
manda. Você precisa de material para montar um
portfólio e ter trabalhos de vitrine nos sites de
freelas.
Voltei para o meu jogo, não que conseguisse me
concentrar. Ia arriscar. Ia tentar fazer aquilo, tentar
pegar alguns trabalhos freelance, juntar dinheiro.
Quem sabe conseguir pegar um ritmo de trabalho o
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suficiente para me manter, e aí sim sair dali, mas


não para voltar para BH...
Me inclinei para trás, sorrindo feito uma idiota.
As chances daquilo dar errado eram grandes
demais. Mas pelo menos eu estava fazendo alguma
coisa, ao invés de só aceitar que ia ficar ali pelo
resto da vida.
Pouco tempo depois eu já estava abrindo os
links no computador, depois de agradecer Camila e
receber um “boa sorte” gigante. Parei em um dos
sites, vendo os portfólios dos artistas. Um dia eu
queria ser assim. Um dia. Sabia muito bem que
estava longe de ser boa como a maioria daquelas
pessoas.
Não entendia como nunca tinha descoberto
esses sites antes, mas nunca tinha feito muita
questão de ir atrás de nada profissional mesmo.
Ficar vendo artes postadas online e procurando
tutoriais eram praticamente as únicas coisas que eu
fazia na internet. Balancei a cabeça. Se não tinha
nada para fazer no trabalho, era hora de começar a
correr atrás do que eu ia fazer da minha vida. Abri
meu email. Eu salvava todos as minhas ilustrações
nele, por via das dúvidas. Era mais fácil que andar

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com pen drive para cima e para baixo. Se bem que


um pen drive ia ser mais fácil para eu conferir quais
ilustrações valiam a pena colocar em um portfólio e
quais não.
Olhei ao redor, ainda sorrindo, e dei de cara com
Alexandre parado na porta da loja. Meu sorriso
morreu e me endireitei na mesma hora. Fazia
quanto tempo que ele estava parado ali, me
encarando sem fazer nenhum barulho?
— Bom dia — falei, me forçando a manter o
tom leve que usava com os clientes. Por que é que
eu tinha a impressão de que alguma coisa estava
errada? E dessa vez não era por causa daquela
sensação de violência contida ao redor de
Alexandre.
Ele assentiu, sem desviar os olhos.
— Paula está aí?
Abri a boca para dizer que não e então pensei
melhor. Eu nunca sabia quando ela chegava,
mesmo. Apesar do bilhete dizendo que só ia vir
depois do almoço, era possível que tivesse chegado
mais cedo.
— Ela avisou que provavelmente só ia vir de
tarde, mas vou conferir. Um minuto.
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Enfiei meu celular na gaveta no canto direito da


mesa e me levantei depressa. Só quando já estava
abrindo a porta dos fundos que entendi o que estava
me deixando incomodada: Alexandre na loja dois
dias seguidos. Ele sempre vinha aqui, mas nunca
com essa frequência. Nunca mais que duas vezes
no mês, e aquilo já era raro. Dois dias seguidos?
Alguma coisa definitivamente estava errada.
Desci os dois primeiros degraus e me abaixei.
— Paula?
Nada. Me abaixei um pouco mais, tentando ver
alguma coisa ali embaixo, mas as luzes estavam
apagadas.
— Paula? — chamei de novo.
Me levantei e fechei a porta. Pelo visto ela
realmente não tinha chegado. Respirei fundo e
voltei para a frente da loja, engolindo em seco
quando vi que Alexandre estava parado ao lado da
minha mesa, encarando o computador.
— Só mais tarde mesmo — avisei, parando
entre as estantes, sem querer me sentar com ele ali
do lado.
Ele ali do lado e encarando minhas ilustrações,
que ainda estavam abertas no monitor. Eu não tinha
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nem lembrado de minimizar as janelas quando me


levantei. Ai meu Deus. Passei por trás da mesa e
me sentei depressa, minimizando tudo antes de
voltar a olhar para ele.
— Não vou comentar com Paula que estava
mexendo em outras coisas, se é isso que está
pensando. — Alexandre me encarou, sem sair do
lugar.
Balancei a cabeça depressa, tentando respirar
fundo ao mesmo tempo. Péssima ideia.
— Ela não importa, desde que não tenha nada
para fazer na loja.
Alexandre assentiu, sem sair do lugar. Será que
não tinha me escutado antes?
— Paula só vai vir de tarde mesmo — repeti.
Ele assentiu de novo, desviando o olhar de mim
para a tela do computador. Me virei para trás, só
para conferir se tudo estava mesmo minimizado.
Dei de cara com a foto de Stonehenge que era meu
papel de parede. Tudo minimizado. Então o que ele
estava olhando? E por que não ia embora logo?
— As ilustrações que estavam abertas são suas?
Me virei para ele, de boca aberta, sem conseguir

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responder. Por que ele estava perguntando


exatamente aquilo? Não tinha como saber que eram
minhas, eu não tinha mostrado aquelas imagens
para ninguém nem postado em lugar nenhum.
Alexandre deu de ombros. Precisei de um
instante para processar o gesto, era algo tão casual
e relaxado que não esperava ver nele.
— É o único motivo que consigo pensar para ter
fechado tudo tão depressa assim que me viu
olhando, se não estava preocupada com Paula —
ele falou.
Corei, percebendo que tinha me entregado.
— São — murmurei. De que adiantava tentar
negar?
— Posso ver?
Engoli em seco. Não, não pode, vai embora e
volta quando Paula estiver aqui, que aí vocês dois
se trancam no porão e me deixam em paz.
Como é que eu estava pensando em colocar
minhas ilustrações online se não tinha coragem de
mostrar para uma pessoa? Se bem que era muito
pior mostrar para alguém e ver exatamente sua
reação... E pior ainda que aquele alguém fosse
Alexandre, que me deixava nervosa só por entrar na
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loja.
Aliás, por que ele queria ver? Por que não tinha
ido embora assim falei que Paula não estava?
Não importava. Eu precisava criar coragem para
mostrar meu trabalho se quisesse ter uma chance de
ganhar dinheiro com ele. E, se mostrasse para
Alexandre, com certeza ninguém mais me deixaria
nervosa.
Respirei fundo e abri a janela de novo. As
miniaturas das ilustrações apareceram na tela e
virei o monitor para o lado. Alexandre puxou a
cadeira que ficava ali e se sentou, apoiando um
braço na mesa e se inclinando para ver melhor.
Empurrei o mouse na sua direção, deixando que
abrisse as imagens que queria. Minha vontade era
fechar os olhos e me esconder, mas não podia fazer
isso.
Impressionante como eu até tinha me esquecido
de que era Alexandre ali, o cara que sempre
deixava todo mundo com um pouco de medo. Mas
ele estava olhando minhas ilustrações.
Me forcei a encarar seu perfil, enquanto
Alexandre passava de uma ilustração para outra. A
maioria ali eram desenhos originaais, cenas do dia-
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a-dia misturadas com elementos fantásticos. Queria


alguma indicação do que ele estava pensando, mas
ele era uma rocha. Sua expressão não mudava, nem
minimamente. Eu não sabia se era culpa do que
quer que tinha causado aquelas cicatrizes ou se
Alexandre estava se mantendo impassível. Engoli
em seco e encarei o tampo da mesa. Não devia ter
deixado ele ver minhas ilustrações. Devia ter
colocado online e só.
— São inspirados em alguma coisa? — Ele
perguntou.
Balancei a cabeça, ainda encarando a mesa.
— Não. Só coisa da minha cabeça mesmo.
— Você tem um traço bom.
Levantei a cabeça, sem acreditar no que estava
ouvindo. Alexandre ainda estava olhando para o
computador. Ele tinha parado em uma das
ilustrações que eu fiz me lembrando de quando
estava BH: uma mulher de cabelos cacheados,
vestindo uma camiseta branca justa e um short
jeans, de olhos fechados e com os braços para cima,
dançando. O fundo era escuro, mas dava para ver a
silhueta de várias outras pessoas dançando,
também. Luzes coloridas brilhavam ao redor da
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mulher, como se estivessem dançando com ela.


— Acho que sei que tipo de arte está usando de
referência para a pintura — ele continuou. — Não
está no nível do pessoal que trabalha com arte para
games, mas seu trabalho está muito bom.
Pisquei lentamente e me virei para Alexandre.
Como assim, ele tinha entendido o que eu estava
tentando fazer e estava dizendo que eu era boa? Eu
estava entendendo certo? Ele me encarou, ainda
impassível, e não desviei o olhar. Esperei que ele
falasse alguma coisa, mas Alexandre ficou em
silêncio, apenas me encarando, antes de se levantar.
— Bom, volto mais tarde para tentar falar com
Paula, então. — Ele colocou a cadeira de volta no
lugar antes de se virar para mim e inclinar a cabeça
rapidamente.
Respondi ao gesto da mesma forma, sorrindo.
Ele tinha gostado das minhas ilustrações.
Alexandre, o cara estranho vindo de outra cidade
que me deixava nervosa só por entrar na loja, tinha
gostado do meu trabalho.
Talvez essa ideia de viver das ilustrações não
fosse tão impossível assim.

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···
A LEXANDRE
LEVANTEI A CABEÇA QUANDO A PORTA DO MEU
escritório se abriu e Paula entrou. Tinha desistido
de esperar por ela na cidade, mas pensei que ela
ainda fosse demorar algumas horas para voltar para
o casarão. Ainda não eram quatro horas da tarde.
Cedo demais para o normal dela.
— Mandei todas as informações que temos
sobre a construtora para Lílian — ela falou assim
que fechou a porta.
Estreitei os olhos e não respondi. Tínhamos
concordado em não pedir ajuda para o Conselho, já
que o risco de aproveitarem aquilo para desfazer o
bando era grande demais. E Paula havia repassado
informações justamente para a bruxa mais poderosa
da região.
Paula bufou e se sentou em uma das cadeiras na
frente da minha mesa.
— Acha mesmo que esconder alguma coisa dela
vai fazer diferença? Estamos falando de Lílian,
esqueceu? E ela não me trairia.
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Eu não tinha certeza sobre a última parte. Se


Paula não houvesse se tornado minha amiga, hoje
ela seria uma das vozes do Conselho dos Bruxos e
provavelmente teria um lugar no Conselho que
governava todo o Outro Mundo na região. Ela
estaria ao lado de Lílian, e não o bruxo que assumiu
o posto.
Mas ela estava certa sobre não fazer diferença
mantermos segredo ou não. Pelo menos, não com
relação a Lílian. Ela era uma vidente, uma das mais
poderosas do mundo. Era provável que ela já
soubesse que isso ia acontecer desde que decidimos
vir para cá.
— Acha que ela vai conseguir alguma coisa? —
Perguntei.
Paula balançou a cabeça.
— Não faço ideia. Mas ela tem mais contatos do
que nós, de qualquer forma.
Soltei o ar de uma vez. Qualquer um tinha mais
contatos que nós. Era o preço de nos afastarmos das
políticas do Outro Mundo.
E, talvez, aquilo desse resultados. A construtora
era a única pista que tínhamos. As defesas foram
derrubadas pela primeira vez depois que recusei a
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oferta inicial deles para comprar a propriedade. Era


óbvio que existia uma ligação, mas não
entendíamos como uma empresa humana podia
estar fazendo aquilo. Na verdade, eu já estava
começando a pensar que talvez não existisse
nenhuma relação. Talvez fosse só uma
coincidência, ou uma tentativa de desviar nossa
atenção do problema real.
E Paula continuava sentada no mesmo lugar. Ou
melhor, jogada. Eu não me surpreenderia nem um
pouco se ela arrastasse a cadeira para trás e
colocasse os pés para cima.
— Por que ainda está aqui?
Ela olhou para mim e levantou uma
sobrancelha.
— Você sempre chega em casa e vai atrás de
comida, Aline e Rodrigo, não necessariamente
nessa ordem. Se tem que dar algum aviso ou
recado, fala depressa e sai quase correndo. Por que
ainda está aqui?
Paula revirou os olhos.
— Porque se eu for para a cozinha agora vou ter
que brigar para conseguir um lugar para sentar. E
não estou com saco para ser educada com gente de
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fora.
Ou, talvez, levando em conta como Paula não
tinha paciência para as brigas que sempre
aconteciam quando pessoas de raças diferentes se
encontravam, ela não fosse ter um lugar no
Conselho, mesmo que não tivesse vindo comigo.
Balancei a cabeça. Quando ela falava assim
parecia que o casarão estava cheio de
desconhecidos. Mas, na verdade, eram só uns dez
metamorfos, a maioria lobos, que tinham vindo de
BH para passar alguns dias aqui. Eu até teria
desconfiado deles se não conhecesse todos desde
antes de vir para cá e soubesse que a maioria só
estava esperando uma oportunidade para poder se
afastar das matilhas, também.
Mesmo assim, se Paula só quisesse distância dos
visitantes, não precisaria estar no meu escritório.
Pensando bem, se ela realmente fizesse tanta
questão de ter sossego, não teria vindo embora mais
cedo. Teria esperado o fim do horário comercial.
— O que mais, Paula? — Perguntei.
Ela suspirou.
— Eu quero fazer um teste.
Certo. Cruzei os braços e me inclinei para trás
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na cadeira. Quando ela começava a falar assim, por


partes, nunca era um bom sinal.
— Que teste e com quem?
— Com Laura.
Estreitei os olhos.
— Por que você quer fazer um teste com a sua
funcionária humana que é uma presa?
Assustadiça, quase pulando sempre que me via,
com um resto de medo ao seu redor o tempo todo...
Se Paula ainda estava pensando que ela podia ter
alguma coisa a ver com as defesas...
Paula balançou a cabeça.
— Se fosse presa, você não ia fazer questão de
entrar pela porta da frente para trocar meia dúzia de
palavras com ela. Nem ia estar rosnando para mim
agora sem nem saber o que estou querendo fazer.
Eu não estava rosnando.
— Laura é humana, mas tem alguma coisa de
diferente. Vai negar? — Ela insistiu.
Respirei fundo e balancei a cabeça. Era verdade.
Tinha notado isso desde que ela começou a
trabalhar no sebo. Não era aquela sensação de outra
pessoa do Outro Mundo por perto, mas havia algo
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de diferente. Algo que me acalmava, de certa


forma.
— Ela vai para o bar hoje mais tarde — Paula
continuou, estalando os dedos. — Ouvi quando
estava fazendo planos com Rick. Só quero sugerir
que o pessoal leve os visitantes para beber na
cidade, para variar. Dar uma oportunidade, por
assim dizer.
E eu conhecia Paula bem demais para acreditar
naquilo.
— Dar uma oportunidade para outras pessoas do
Outro Mundo se encontrarem com ela e te
contarem suas impressões depois? Ou dar uma
proteção para ela depois que aquele desperdício de
oxigênio começar a beber?
Ela suspirou. Depois da primeira vez que
Henrique apareceu na nossa propriedade,
começamos a observá-lo. Eu não gostava nem um
pouco que havíamos visto. Mesmo que não
houvéssemos descoberto nada específico sobre ele,
tinha certeza de que não demoraria para alguma
história mais pesada aparecer. Pelo visto, Paula
concordava comigo.
— As duas coisas.
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Assenti.

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CAPÍTULO TRÊS

L AURA
RICK E EU COSTUMÁVAMOS SAIR JUNTOS UMAS TRÊS OU
quatro vezes por semana, de noite. Não que Monte
das Pedras tivesse muitas opções do que se fazer:
uma pizzaria, duas sorveterias, uma praça com um
carrinho de cachorro-quente e um bar. E com
aquele detalhe de que todo mundo conhecia os
donos de todos os lugares e todo mundo comentava
o que acontecia neles. Eu não tinha me esquecido
do dia que fui na pizzaria com Rick e depois tive
que aguentar minha mãe falando por dias sobre
como eu precisava prestar atenção e começar a
comer menos, porque tinha passado vergonha por
causa do tanto que tinha comido. De acordo com
ela, eu era mulher e tinha que me preocupar com
essas coisas, senão ia morrer sozinha. Foi a última
vez que fui na pizzaria.
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Mesmo assim, a gente sempre saía, na maioria


das vezes depois do meu trabalho. Desde o dia da
pizzaria tinha virado costume irmos para a praça,
comprar um cachorro-quente, e depois passar na
sorveteria. Chegava a ser engraçado... Parecíamos
dois adolescentes, mas só estávamos fazendo o que
era “certo”. O que esperavam de nós.
Eu estava cansada de fazer o que esperavam de
mim. Tinha sido por isso que avisara Rick que
queria ir para o bar, para variar um pouco.
Na verdade, Monte das Pedras não tinha só um
bar. Eram vários, pequenos e uns tantos que Camila
chamaria de botecos copo sujo. Mas um deles virou
“o bar” porque era o maior e mais sofisticado.
Meus quatro anos em Belo Horizonte me deixaram
bem amiga dos botecos copo sujo, mas ir parar em
um deles ali não era uma boa ideia por vários
motivos diferentes. Eu nem tinha tido vontade, para
ser honesta. Beber não era coisa de moça de
família. Era mais fácil evitar a falação e ficar longe
dos bares. Beber, só uma taça de vinho no Natal e
talvez uma taça de alguma coisa no Ano Novo.
Mais nada. Só que eu estava ficando cansada do
“mais fácil”. Se ia mudar e tentar fazer alguma
coisa para mim – como a tentativa de colocar as
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ilustrações online – então ia fazer isso para valer.


Eu nunca tinha sido essa garota que abaixava a
cabeça e fazia o que esperavam. Se a Laura de
quinze anos me visse assim, me acharia patética.
Eu estava jogando minha vida fora sem fazer o
menor esforço para mudar as coisas. Bom, não ia
continuar assim.
“O bar” tinha três espaços grandes ligados entre
si, dois na altura da rua e um mais baixo. Minha
impressão era que o dono havia comprado três lojas
uma do lado da outra e basicamente tirado as
paredes internas. Onde antes eram as portas da loja
estavam grades baixas, que separavam o espaço do
bar da calçada, e ainda bem que nunca inventaram
de colocar vidros ali, senão o lugar ia ser um forno.
As paredes eram pintadas numa combinação de
vermelho e creme. As cadeiras tinham armação de
metal, com almofadas combinando com as cores
das paredes, e as mesas tinham tampo de vidro – o
que para mim é a maior prova de que é um
barzinho “chique”, por falta de outra palavra.
Nas sextas e sábados à noite, ele costumava
estar lotado. Por sorte, quinta-feira ainda era bem
parado, já que todo mundo ia trabalhar no dia
seguinte, então conseguimos uma mesa sem
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nenhum problema. Estávamos em um dos espaços


no nível da rua, à direita do balcão comprido que
corria pela parede dos fundos, com bebidas nas
prateleiras atrás dele.
Olhei ao redor, sorrindo. De certa forma, estar
ali me lembrava de antes. Não de BH e das noitadas
com o pessoal da faculdade – a gente nunca ia parar
nos barzinhos “chiques” – mas de quando eu ainda
era menor de idade e mal podia esperar até meus
dezoito anos para poder entrar ali. Eu falava que
assim que fosse maior ia tirar um dia no mês, no
mínimo, para sair e me divertir sem me importar
com o que fossem falar. Sonhos de adolescente que
foram pisoteados pela realidade, no fim das contas,
mas não era tarde demais para recuperar um pouco
daquilo.
— O que deu em você hoje, Lau? Planos que
não quer contar, agora resolvendo vir aqui...
Me virei para Rick. Ele estava me encarando e
balançando a cabeça de leve, como se não tivesse
certeza do que estava acontecendo. Bom, para ser
honesta, nem eu sabia bem. Só sabia que estava
gostando daquilo.
Sorri.
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— Só estou de bom humor.


Ele se inclinou para trás na cadeira e cruzou os
braços. Meu sorriso se alargou enquanto eu o
observava. Rick, naquela posição, com a luz
batendo logo atrás dele e as cores do bar... Daria
um bom desenho. Já tinha o que fazer no dia
seguinte.
— De bom humor? — Ele ergueu uma
sobrancelha.
— Aham.
Estiquei a mão para o menu, mas Rick o pegou
antes de mim. Soltei um suspiro irritado enquanto
ele escolhia o que ia pedir. Era capaz de apostar
que ele ia tentar pedir por mim, e não queria nem
saber daquele tipo de coisa.
Talvez fosse uma boa ideia aproveitar o clima
de mudanças e repensar meu namoro com Rick. Se
parasse para pensar bem, tinha voltado com ele
porque era o que esperavam de mim. Era cômodo e
previsível. Não era assim que funcionava? Se o
cara estava sendo fofo e romântico, eu tinha que
dar uma chance, porque quem escolhe demais... Eu
não lembrava o resto do ditado. Mas se ainda
estivesse em BH eu nunca teria continuado com
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Rick depois da primeira vez que ele ficou me


enchendo o saco no trabalho. Teria falado que se
ele queria ser “atencioso” assim devia ir atrás de
alguém que quisesse aquele tipo de atenção. Teria
colocado ele para fora da loja todas as vezes que
me incomodou. Não teria ido para a casa dele
quando preferia ficar sozinha.
Engoli em seco, encarando o tampo da mesa e
minha perna balançando debaixo dela. Nunca havia
parado para pensar no tanto que voltar para Monte
das Pedras tinha me mudado. Estar ali era um
lembrete de que não tinha sido boa o bastante para
conseguir o que queria. E se já estava tudo dando
errado, por que insistir em fazer coisas que eu sabia
que iam dar briga em casa? Era mais fácil aceitar
como as coisas deviam ser e tentar agir como
esperavam.
Não. Não mais.
Olhei ao redor de novo, reparando nas pessoas
que podia ver. Um grupo de três adolescentes que
eu não tinha certeza de que eram maiores de idade
estavam sentados no fundo do espaço onde
estávamos. Um casal mais velho que meus pais
estava em uma das mesas pouco atrás de Rick, e

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mais nada ali. Levando em conta que só tinha visto


duas mesas ocupadas no caminho, ou todo mundo
tinha descido para o terceiro espaço, ou o
movimento não estava muito bom mesmo.
— Ei, Saulo! — Rick levantou o braço.
Foi minha vez de levantar as sobrancelhas
quando um dos garçons se virou na hora e veio na
nossa direção. Moreno, com o cabelo curto
espetado olhos castanho claros, ele estava usando
um avental vermelho sobre uma camiseta clara e
calça jeans. Precisei de um instante para me
lembrar dele. Tínhamos conversado um pouco em
uma festa na casa do Rick, uns meses antes. Ele só
sabia falar de academia e de como se manter em
forma. Bom, pelo menos parecia que estava tendo
resultados.
— E aí, Rick, faz tempo que não te vejo. O que
vai ser? O de sempre? Jack Daniels?
— Isso. E para Laura pode ser uma Coca...
— Uma cerveja para mim — interrompi. Como
se eu fosse entrar em um bar para tomar
refrigerante. — Tem Stella?
— Você não devia pedir cerveja — Rick falou
depressa e me virei para ele, estreitando os olhos.
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— Não combina com você. Não é feminino. Você


não devia...
Ele se calou. Eu queria pensar que era porque
tinha notado a besteira que estava falando, mas
sabia que não era. Rick não era o único cara a achar
que mulheres não deviam beber, longe disso. Era
uma visão bem comum na cidade, na verdade. Eu
só não entendia como tinha engolido aquilo por
tanto tempo. Quantas vezes Rick me disse que não
devia fazer alguma coisa e eu aceitei, só para evitar
uma briga?
Bom, se ele queria algo mais feminino, sem
problemas.
— Ele tem razão. — Me virei de volta para
Saulo. — Um Long Island Iced Tea, então.
Ele mudou o peso do corpo de uma perna para a
outra, balançando a cabeça antes de falar.
— Acho que o que você quer não é o Long
Island...
E, claro, ele sabia melhor que eu o que eu queria
pedir. Por que não me surpreendia? Já tinha um
namorado que achava que podia pedir refrigerante
para mim em um bar e que mulheres não deviam
beber, um garçom que queria fazer meu pedido por
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mim não era nada demais.


— Coca-Cola, gim, rum, vodca, tequila, curaçau
e limão — falei e vi os olhos de Saulo se
arregalarem. — É isso mesmo que quero. Vocês
têm?
Ele assentiu e se afastou depressa, sem falar
mais nada. Só então me virei para Rick, que estava
me encarando com uma expressão tão perplexa que
chegava a ser cômica. Ele abriu a boca e a fechou,
balançando a cabeça, e levantei as sobrancelhas.
— Tem certeza de que vai beber isso, Lau? Esse
drink tem cara de ser forte e você nem bebe! Não
acho que seja uma boa ideia...
Provavelmente não era. Fazia dois anos que eu
não bebia. Mas duvidava que um drink fosse me
derrubar. Os anos que passei indo para festas com
Camila tinham me provado isso. E, mesmo que
derrubasse, qual era o problema? Por que só ele
podia beber até mal conseguir ficar de pé, como
sempre fazia nas festas e quando saíamos com seus
amigos?
Eu estava cansada daquilo. Tinha aceitado tudo
para evitar brigas, porque brigar não ia adiantar
nada. Ter voltado para Monte das Pedras depois de
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tudo que precisei fazer era prova disso. Mas não


brigar significava me conformar e jogar minha vida
fora. Eu não sabia de onde tinha vindo esse surto de
fazer alguma coisa, só sabia que ia aproveitar. Se
ficasse quieta, nada ia mudar. Eu ia ter exatamente
a vida da qual sempre tentara fugir. Então estava
acabado. A Laura que aceitava calada ia deixar de
existir, porque ela nunca nem deveria ter existido.
— Eu não bebo aqui — falei, pegando o menu e
começando a olhar os aperitivos. Não queria comer
nada, na verdade, mas era uma boa forma de não
precisar encarar Rick.
— Belo Horizonte, não é? Você bebia quando
estava lá?
Revirei os olhos.
— Claro que bebia.
Rick balançou a cabeça, me encarando, sério.
— Bem que eu falei que não devia ter ido. Olha
só isso. — Ele balançou a cabeça de novo.
Saulo voltou, me poupando de responder, e
colocou nossos drinks na mesa. Tomei um gole e
sorri, encarando a rua. Não queria brigar. Mas
também não ia ficar calada enquanto Rick falava
como eu devia viver a minha vida. Talvez, se não
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falasse nada, ele deixasse o assunto para lá. Por que


tinha chamado Rick para vir comigo? Podia ter
vindo sozinha, se fazia questão de vir no bar... Mas
isso era óbvio: chamei Rick porque ele era meu
namorado. Tínhamos que sair juntos, certo? E, se
eu tinha um namorado, não podia sair para me
divertir sem ele, não é?
Tomei mais um gole do meu drink, furiosa
comigo mesma. Eu pensava que quatro anos fora
tinham sido o suficiente para me mostrar que não
era assim, que eu tinha direito de viver a minha
vida, sem estar atrelada a ninguém. Agora não
sabia se havia aprendido, de verdade, ou se só tinha
ignorado as coisas que sempre ouvi por um tempo.
Férias, por assim dizer, até voltar para casa. Porque
eu estava agindo exatamente como as pessoas que
sempre considerei um exemplo do que não ser. No
fim das contas, será que alguém realmente
conseguia escapar de tudo o que sempre ouviu? Ou
será que querer fazer isso é só uma ilusão? Uma
fantasia de adolescentes, que quando crescem se
tornam o espelho do que odiavam.
E eu não deveria ter saído para beber quando
estava com a cabeça assim.

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Não. Eu não estava com a cabeça assim quando


falei que queria vir beber. Rick me tinha me
deixado assim. Ele sempre me fazia questionar tudo
o que fazia e não de uma forma boa. Talvez esse
tenha sido um dos motivos para eu não ter
mostrado minhas ilustrações para ele, os trabalhos
dos quais realmente me orgulhava, e só os desenhos
que fazia por passatempo.
Olhei de relance para o drink de Rick. Me
lembrava bem de ver os caras pedindo whisky
quando estava em bares com algumas amigas.
Normalmente aqueles eram os caras que nós
fazíamos questão de ignorar. Era uma combinação
entre a forma como agiam, como se estar bebendo
Jack Daniels os fizesse mais machos, e como
olhavam para as mulheres, como se estivessem
escolhendo um pedaço de carne. Aprendi depressa
a manter aqueles caras à distância, eles sempre
significavam problemas. Então por que aquilo
nunca me incomodou em Rick? Só porque eu o
conhecia desde sempre? Ou porque estava
acostumada demais a assentir e aceitar sempre que
ele falava ou fazia alguma coisa, só para evitar
brigas? Eu realmente não fazia ideia. Só sabia que
não tinha certeza de por que ainda estava com ele e
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se realmente valia a pena continuar com aquilo,


mesmo que fazer qualquer outra coisa significasse
voltar a brigar com minha família e com todo
mundo que conhecia.
Mas estaria brigando por mim. Isso tinha que
valer alguma coisa. Não queria ter a mesma vida da
minha mãe, a mesma vida que muitas das minhas
amigas tinham. Eu queria mais, e me recusava a
aceitar que isto fosse algo errado.
— Então você entende de bebidas — Rick falou,
com um tom leve claramente forçado.
Me virei para ele, percebendo como estava
fazendo esforço para manter uma expressão
normal. Provavelmente ainda estava furioso.
Dei de ombros, tomando mais um gole. Não ia
mais fazer tudo o possível para evitar brigas.
Mesmo que Rick parecesse estar tentando
entender... Eu já tinha visto ele fazer aquilo vezes
demais, antes. Era sempre assim. Ele agia como se
não fosse nada demais e nos dias seguintes acabava
martelando na minha cabeça que eu estava fazendo
algo errado. Não desta vez.
— Não exatamente de bebidas. Mas conheço
uma bartender, ela é amiga de uma colega de
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faculdade. Gisa acabou nos apresentando vários


drinks quando viu que só pedíamos bebidas puras.
Ele assentiu, com uma expressão
cuidadosamente neutra. Estava furioso mesmo.
— Uma bartender?
Assenti. Não precisava fazer esforço para
entender sua pergunta: Rick provavelmente achava
que aquilo era “trabalho de homem”. Era uma das
nossas discussões mais velhas e que nunca levava a
lugar nenhum.
Rick suspirou, colocando seu copo na mesa.
— Sempre pensei que tinha ido para BH
estudar, não para sair por aí e...
Ele se calou e eu estreitei os olhos. Não queria
pensar no que ele quase tinha falado.
— Eu fui para estudar. E tanto estudei que
provavelmente tinha conseguido entrar no
mestrado, se pudesse ficar lá. Mas minha vida
nunca foi só estudar. — Dei de ombros. — Qual o
problema nisso?
Rick me encarou e balançou a cabeça antes de
pegar seu copo de novo e tomar um gole da bebida.
Quase soltei um suspiro de alívio. Não devia ter

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provocado. Eu fazia uma boa ideia de qual seria sua


resposta para isso, e se ele falasse aquilo seria o
começo de uma boa briga. No bar. Com nós dois
bebendo. Péssima ideia.
Meu celular apitou exatamente nesse momento e
puxei minha bolsa, que tinha dependurado no
encosto da cadeira, de volta para o meu colo.
Precisei de alguns instantes para achar o celular lá
dentro e dei de cara com uma mensagem de
Camila.
Camila: Não acredito que você nunca me
mostrou essas artes!
Comecei a responder, mas a próxima mensagem
chegou antes que eu terminasse a primeira palavra.
Camila: Como é que você nunca contou pra
gente que fazia trampos assim???
Camila: Felipe mandou avisar que está
repassando seu portfólio pros amigos.
Ergui as sobrancelhas. Eu não tinha nem
mandado o link para eles, como é que já estavam
comentando e repassando?
Camila: E ele falou que quer te matar por não
ter mostrado essas ilustrações antes também!

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Sorri, sem acreditar no que estava lendo.


Primeiro Alexandre e agora eles. Eu conhecia
Camila e Felipe bem o bastante para saber que
poderiam até elogiar algo que não estivesse muito
bom só para não me desanimar, mas não estariam
me ameaçando nem repassando links se não
tivessem gostado de verdade.
Meu sorriso se tornou ainda mais largo. Ia dar
certo. Eu podia fazer aquilo.
Laura: Como é que acharam o link?
Camila: Tá maluca? Te conheço. Sei que não ia
mandar o link. Então procuramos.
Um pouco da minha animação diminuiu. Se
tinham saído procurando meu portfólio
provavelmente estavam olhando no lugar errado,
então. Tomei mais um gole do meu drink antes de
digitar uma resposta.
Laura: Então como tem certeza de que é o meu
portfólio e não de outra pessoa?
Camila: Laura, tem dias que tenho vontade de
te dar uns tapas.
Camila: Você me pintou na cachoeira! Óbvio
que eu ia reconhecer!

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Camila: Aliás, quero um pôster dessa


ilustração. Bem grande.
Camila: Vou pregar na parede da sala.
Balancei a cabeça, sem acreditar no que estava
lendo. Era o meu portfólio mesmo. Tinha feito uma
ilustração baseada num dia que fomos para uma
cachoeira e Camila estava saltando lá do alto. Ela
foi a única louca o bastante para fazer aquilo e eu
amava a ilustração.
Camila: Está viva?
Laura: Não, vocês me mataram do coração.
Camila: Então revive aí porque ainda quero o
pôster.
Laura: Te mando a imagem em alta resolução e
você procura onde imprimir aí. Mais fácil.
Encarei o celular. Por que ela estava demorando
a responder dessa vez?
Camila: [Felipe aqui] vou te mandar mais uns
links depois. Tô vendo que vai ter que ser pacote
completo, mas sem problemas. Tem sites que você
pode colocar produtos com suas ilustrações à
venda.
Soltei uma risada alta, sem conseguir me conter.
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Estava começando a achar que ter conhecido eles


foi uma das melhores coisas de BH, porque se eu
fosse tentar me entender com tudo isso sozinha
estaria ferrada. Mas... Eu podia vender produtos
com minhas ilustrações? Como as almofadas,
bolsas e canecas que eu via com artes de
ilustradores que eu acompanhava? Queria era
gritar, mas não podia.
— Laura?
Levantei a cabeça. Rick estava me encarando,
parecendo preocupado. Ele não falou nada, apenas
ergueu uma sobrancelha.
— Boas notícias. — Dei de ombros, antes de
voltar a prestar atenção no celular.
Laura: Vocês são uns anjos, de verdade!
Camila: Anjos nada, só queremos mais daquela
cachaça do interior.
Camila: Traz da próxima vez que vier.
Ri de novo. Tinha comprado a cachaça nas
férias, logo antes de começar o quinto período, e
ela não durou nem dois dias depois que o pessoal
descobriu a garrafa.
Laura: Pode deixar! Obrigada mesmo!

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Camila respondeu com um emoji de um beijo


seguido de uma caneca de cerveja.
Ainda sorrindo, guardei o celular e dependurei a
bolsa no encosto da cadeira de novo, antes de me
virar para Rick.
— Me deixe adivinhar, alguma coisa sobre os
tais planos que você não quer me contar? — Ele
perguntou.
— Exatamente. — Sorri, terminando meu drink
de uma só vez e levantando a mão para chamar o
garçom. Eu merecia comemorar.
Rick me encarou, parecendo incrédulo. Levantei
as sobrancelhas e me virei para Saulo assim que ele
parou ao nosso lado.
— Mais um, por favor. — Apontei para meu
copo.
Ele olhou para Rick rapidamente antes de se
afastar. Eu esperava muito que ele não fosse ser
idiota a ponto de não trazer meu pedido. Estava de
bom humor demais, não queria nada estragando
minha noite.
— Mais um, Laura? Tem certeza que aguenta?
Me virei para Rick, respirando fundo. Não

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queria começar uma briga. Não queria.


— Aguento. — Sorri. — Mas depois desse
tempo sem beber, esse é o último.
Até porque eu tinha que trabalhar no dia
seguinte. Mesmo que soubesse que não ia ter
ressaca – a únicas vezes que tive ressaca foram
quando abusei do vinho e do champanhe juntos –
era melhor não exagerar.
— Tem certeza?
Assenti. De certa forma, era fofo ver como ele
se preocupava. As coisas entre nós haviam mudado
muito, não exatamente para melhor, mas pelo
menos aquilo ainda estava ali. Desde sempre, Rick
tinha se preocupado comigo.
E aquilo me fazia lembrar de quando estávamos
no ensino médio. Eu não era a única a ter mil
planos para depois que me formasse e fizesse
dezoito anos. Costumávamos passar horas falando
dos lugares que queríamos conhecer, de tudo o que
íamos fazer. E agora estávamos aqui...
Saulo colocou o copo com meu drink na minha
frente e tomei um gole, pensativa. Quando tudo
havia mudado? Eu não fazia ideia. Só sabia que
tinha sido antes de ir para BH, porque Rick também
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não queria que eu fosse.


— Quer pedir uma porção? — ele perguntou.
Balancei a cabeça, sorrindo.
— Não estou com fome.
— Só para forrar o estômago mesmo — ele
insistiu. — Uma porção de fritas.
Fritas. Quem recusava fritas? Encarei Rick, que
estava com o copo na mão, e abri a boca para dizer
que aceitava antes de parar e pensar melhor no que
ele tinha falado.
— Forrar o estômago?
— É. — Rick assentiu. — Se estiver comendo
vai demorar mais a ficar bêbada.
Respirei fundo e estreitei os olhos. Eu tinha
acabado de falar que aguentava dois drinks, não
tinha?
Rick virou o restante do seu Jack Daniels e
colocou o copo na mesa. Esperei, percebendo que
ele ainda não tinha terminado seu raciocínio. Não
queria ouvir o que ia vir depois. Sabia o que ele ia
falar e qual ia ser o resultado.
— Não quero você saindo daqui bêbada. Mulher
minha não dá esse vexame.
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Tomei um grande gole do meu Long Island


antes de colocar o copo na mesa de novo. Estava
calma demais. Não, aquilo não era calma.
— Engraçado, quando seus amigos vomitam
metade do seu quintal, saem correndo pelados pela
rua ou qualquer uma dessas coisas, eles só beberam
um pouco demais. Agora, se eu sair daqui
cambaleando um pouco já estou dando vexame, é
isso que você está falando?
— Lau, — ele esticou as mãos para segurar
minha mão que estava sobre a mesa, mas cruzei os
braços depressa. — É diferente...
— É mesmo?
— Você sabe que é. — Ele deu de ombros.
Porque eles eram homens e eu mulher? Não ia
perguntar. Ou a resposta ia ser “sim”, ou algo no
sentido de que “só mulheres que não se davam ao
respeito saíam bebendo por aí”.
Suspirei. Quem eu estava tentando enganar? Eu
nunca seria feliz com Rick. Podia me conformar
com isso, me apagar para encaixar no que
esperavam de mim. Mas não seria eu. Não
importava quantas vezes ele fosse fofo, ou há
quanto tempo nos conhecíamos. Aquela era a
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verdade: eu não seria feliz. E queria mais da minha


vida do que apenas me conformar. Coloquei minha
bolsa no ombro, peguei meu copo e me levantei.
— Eu não sou sua mulher. Nem sua namorada,
aliás. Cansei.
Me virei para o balcão antes que ele entendesse
o que eu tinha acabado de fazer. Não conhecia o
barman, nem precisava.
— Foram dois Long Island Iced Tea até agora.
Vou sentar lá embaixo — avisei, indicando o
terceiro espaço do bar.
— Lá embaixo? — Ele perguntou.
— Laura, volte aqui! — Rick gritou e ouvi
quando ele se levantou.
— Lá embaixo. — Assenti, me afastando
depressa.
Desci a escada e só quando já estava no último
degrau olhei ao redor, procurando onde me sentar.
As cores ali eram as mesmas, assim como as mesas,
mas o espaço estava mais escuro, porque as luzes
ficavam muito no alto. Quase todas as mesas
estavam cheias e a conversa parecia se espalhar
entre elas. Todos ali se conheciam, pelo visto. E eu
não reconhecia ninguém. Estreitei os olhos.
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Impossível. Não tinha como eu não conhecer


ninguém em um grupo de umas vinte pessoas, mais
ou menos da minha idade.
A conversa parou quando dei um passo na
direção de uma das mesas e senti os olhares em
mim. Não precisava ser um gênio para saber que
não queriam uma estranha ali. Olhei ao redor de
novo e reconheci uma mulher de cabelo escuro
cacheado e curto que já tinha comprado alguns
livros no sebo. Sorri para ela, que me encarou de
cima a baixo.
— Laura, volta aqui, você não vai fazer isso!
Olhei para trás. Rick estava no alto da escada.
Descer tinha sido uma ideia muito idiota. Não tinha
para onde ir e não conhecia ninguém. Olhei ao
redor, de novo. A mulher de cabelos curtos se
levantou, pegou uma cadeira de uma das mesas
vazias e colocou entre a sua e a de outra mulher,
antes de me encarar. Fui até ela e me sentei com
um suspiro aliviado.
A conversa ao nosso redor recomeçou, como se
nada estivesse acontecendo, enquanto Rick descia
com passos pesados. Ele ia brigar. Eu sabia que ia.
Por que tinha feito aquilo?
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A mulher colocou a mão no meu braço.


— Namorado?
Suspirei, olhando para Rick com o canto dos
olhos.
— Ex-namorado. Eu espero — murmurei.
Outra das mulheres da mesa, uma loira, se
inclinou para trás e falou alguma coisa com os
homens da mesa ao lado.
— Laura, o que você pensa que está fazendo?
Respirei fundo e me virei na cadeira. Rick
estava parado na frente da escada.
— Terminando com você, Rick. Acabou.
— Por causa de uma coisa que eu falei? Não,
Lau, vamos conversar, eu...
Balancei a cabeça com força. Eu reclamava
daquele tipo de comentário e atitude desde a época
do colégio. Se ele não tinha ouvido, não ia ser
agora que ouviria. Eu precisava seguir em frente,
não ficar me prendendo ao passado. À vida que eu
não queria.
— Vai embora, Rick.
Ele me encarou por um instante antes de se virar
e subir. A mulher ao meu lado deu um tapinha nas
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minhas costas. Eu sabia que não ia ser fácil assim.


Rick ia discutir, meus pais iam discutir, minhas
amigas iam falar na minha cabeça... E eu não me
importava.

···
A LUZ DA SALA ESTAVA ACESA QUANDO CHEGUEI EM
casa. Soltei um suspiro resignado. Eram mais de
onze horas da noite, nem minha mãe nem meu pai
deviam estar acordados. Queria acreditar que não,
mas provavelmente alguém tinha me visto indo
para o bar e contado para minha mãe. Suspirei de
novo enquanto destrancava o portão e subia a
escada ao lado da mercearia.
Destranquei a porta da sala e dei de cara com
meus pais sentados no sofá, os dois com expressões
fechadas. Levantei as sobrancelhas e me virei para
trancar a porta atrás de mim. Eu não estava fazendo
nada de mais, qual era o problema?
— Boa noite — falei, passando por eles e indo
para o meu quarto.
Ainda bem que tinha parado de beber enquanto
ainda conseguia andar normalmente. Acho que
ninguém daquele grupo tinha que trabalhar amanhã,
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porque se eu tivesse acompanhado o ritmo deles...


— Aonde pensa que vai, mocinha? — Minha
mãe perguntou, numa voz cortante.
Parei, respirei fundo e me virei para ela sem
falar nada. Se respondesse aquela pergunta seria
pior.
— Madalena veio me contar que te viu entrando
naquele bar. O que a senhorita pensa que está
fazendo? — Ela continuou.
— Eu estava com Rick, mamãe. —
Normalmente falar aquilo era o suficiente para ela
pelo menos se acalmar um pouco. Rick era de uma
família tradicional, etc e etc, então ele nunca faria
algo errado.
— Não me interessa! O que você estava
pensando, entrando naquele lugar? Um bar
daqueles não é lugar para uma moça decente!
Dei um passo atrás quando ela se levantou e
ergueu a voz. Pensei em falar que se continuasse
assim ia acordar Marina, mas sabia que qualquer
comentário daquele tipo só ia servir para fazer ela
gritar de verdade. Meu pai se levantou, também,
ainda sem falar nada, e me encarou. Eu conhecia
aquela expressão: era um aviso silencioso de que
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ele não ia ou não podia fazer nada, nunca soube


exatamente qual dos dois. Ele nunca enfrentava
minha mãe quando ela estava assim, até porque não
ia adiantar nada.
— A gente só queria fazer alguma coisa
diferente, mãe. — Usei minha voz mais baixa e
arrependida.
— E vocês tinham um monte de opções, e
resolveram ir justamente para aquele buraco? Filha
minha mão coloca o pé nesse tipo de lugar não!
Filha minha recebeu educação em casa!
Engoli em seco. Nunca tinha visto minha mãe
falar nada sobre o bar antes. Se tivesse alguma
ideia de que a reação dela seria aquela,
provavelmente não teria nem pensado em ir lá.
Não, provavelmente teria, do mesmo jeito. Só
estaria mais preparada para a briga. Agora já estava
imaginando a bomba que seria no dia seguinte,
quando ela ficasse sabendo que terminei Rick,
porque com certeza isso ia se espalhar.
— Rick é um bom garoto. Deveria saber que
uma boa mulher não entra num lugar daqueles —
ela continuou. — Mesmo assim, você deveria ter
recusado. Não te criei para ir parar nesses lugares!
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— Mas, mãe...
— “Mas, mãe”, nada! Você não devia ter ido! O
que estava pensando, Laura?
— Não foi nada demais, mãe!
— “Nada demais”? Isso é culpa sua, Isaac. Você
insistiu para ela ir para BH, agora olha o que está
acontecendo! Toda a educação que recebeu em casa
foi por água abaixo. É nisso que dá, eu falei que ela
devia ter ficado aqui. Se tivesse ficado já ia estar
casada, ao invés de estar se enfiando nesses
buracos!
— Isso não é culpa de ninguém, porque eu não
fiz nada errado! — Falei, sem conseguir me conter.
Não tive nem tempo de reagir e cambaleei
quando o tapa da minha mãe acertou meu rosto,
com toda força. Meu pai segurou o braço dela
enquanto eu a encarava. Por um instante, me vi
com dezesseis anos de novo, apanhando porque
tinha falado que queria fazer Artes Plásticas e não
um desses cursos de “gente decente”. Impotente,
quase desistindo de tudo porque era mais fácil.
Era por causa daquilo que eu tinha me
conformado. Porque não queria voltar às discussões
constantes, aos tapas, a tudo. Mas que opção eu
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tinha? Ficar calada e me conformar era o mesmo


que matar a Laura de verdade e deixar um robô no
lugar, fazendo e falando tudo o que tinha sido
programado. Eu não ia fazer isso. Não ia desistir da
minha vida, não quando, pela primeira vez, via uma
chance de escapar dali.
Sem dizer nada, me virei e fui para o meu
quarto. Só quando a porta já estava fechada e
Marina tinha se virado para a parede, vendo que eu
não queria conversar, deixei as lágrimas caírem.

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C A P Í T U L O Q U AT R O

A LEXANDRE
OLHEI PARA O CÉU CLARO E BUFEI. NEM NOVE HORAS DA
manhã, e eu já sabia que seria um péssimo dia.
Caio continuou parado na minha frente, de
cabeça baixa. Ele já tinha se desculpado tantas
vezes que eu havia perdido as contas, mas não era
culpa dele. Não era culpa de nenhum de nós.
Tínhamos reerguido as proteções e colocado
pessoal nos limites da propriedade, com Caio
supervisionando essa parte das defesas, mas não
adiantara nada. Derrubaram todos escudos, de
novo, e para piorar justamente quando Paula estava
longe da loja e do seu sistema de aviso para o caso
de algo assim acontecer.
Cheguei a pensar que tínhamos um traidor. A
hora em que derrubaram nossos escudos tinha sido
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bem escolhida demais, justamente quando Paula


estava indo do casarão para o sebo. Se ela estivesse
aqui, teria sentido as defesas caindo. Se estivesse
na loja, veria os sinais no seu espelho. Mas era fácil
demais alguém observar o casarão e marcar a hora
que seu carro passou pelo portão, ou até mesmo
fazer uma estimativa com base na sua rotina.
E também não era culpa de Paula, por ter saído.
Nenhum de nós imaginara que atacariam de novo
tão depressa – porque não havia como chamar
aquilo de outra coisa que não “ataque”. Era
loucura. Mas haviam derrubado as defesas de novo,
um humano tinha entrado na propriedade, visto o
que não devia e saído antes que pudéssemos fazer
qualquer coisa. E, agora, o humano estava cercado
de pessoas, trabalhando na construção, sem se
afastar sozinho para lugar nenhum. Rodrigo estava
sobrevoando a área e o vigiando.
Não era culpa de nenhum de nós, mas todos nós
poderíamos acabar pagando por aquilo.
Um gavião voou baixo sobre nós antes do brilho
amarelado do poder aparecer. Aline apareceu no
lugar onde ele estava, caindo de pé no chão com
uma facilidade que eu sabia que poucos dos

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metamorfos tinham. Ela suspirou, olhando para o


casarão bem atrás de nós, e então de volta para a
mata, antes de vir na nossa direção.
— Falei com Paula. Ela está vindo.
Assenti. Precisávamos dela ali. Eu não sabia o
que o humano vira quando entrou na mata, só sabia
que tinha sido um dos fey. O que, na verdade, era a
pior coisa que poderia acontecer. Os fey que
haviam escolhido vir morar conosco eram os que
estavam menos preparados para lidar com a
humanidade ou passar despercebidos. Precisava
trabalhar com a possibilidade de que um humano
tinha visto o suficiente para ter certeza de que algo
diferente estava ali.
O Outro Mundo sempre esteve ao lado da
humanidade, mesmo que eles não se lembrassem de
nós como mais que histórias e lendas. Aquilo não
era um acidente: era arriscado demais deixar que
soubessem sobre nós. Estávamos em menor
número, mesmo que tivéssemos várias vantagens
sobre a humanidade – nossos poderes e habilidades.
Manter o segredo era a única regra com a qual todo
o Outro Mundo concordava. Havia procedimentos
padrões, protocolos a serem seguidos em uma

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situação como aquela, mas tudo estava fugindo do


nosso controle depressa demais.
O ideal teria sido determos o humano e então
chamar um dos vampiros para apagar sua memória.
Se não fosse possível chamar alguém, então
deveríamos matar a pessoa que nos viu. Mas
quando Caio e o fey que ele viu notaram o que
tinha acontecido, ele já estava de volta no terreno
da construtora, fora do nosso alcance, a menos que
quiséssemos nos expor. E aquilo nos levava para o
terceiro e último protocolo: matar todas as pessoas
com quem o humano tivera contato. Garantir que,
se ele houvesse contado para alguém, aquilo não
seria passado adiante.
Respirei fundo e balancei a cabeça, encarando a
mata. Tinha que ter outro jeito. Era por isso que
queria Paula conosco. Ela costumava ter ideias fora
do padrão. Se eu quisesse fazer um massacre, não
teria me afastado do Outro Mundo. Na verdade,
não teria nem mesmo me dado ao trabalho de
conversar com Paula, anos atrás. Não faria aquilo
agora. Precisávamos pensar em uma opção.
Ninguém falou nada enquanto esperávamos.
Encarei o céu, tentando ver Rodrigo. Se ele não

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tinha dado nenhum sinal até agora, era porque o


humano não estava agindo de forma estranha. Eu só
esperava que aquilo realmente significasse que ele
não tinha contado o que vira para ninguém.
Enquanto ele não dissesse nada, poderia viver,
desde que encontrássemos algum tipo de garantia
para ter certeza de que ele nunca contaria.
A porta dos fundos do casarão se abriu. Me virei
a tempo de ver Paula sair e vir correndo pelo
gramado na nossa direção. Só quando já estava
quase nos alcançando ela parou de correr e
começou a andar depressa.
— De novo? — Ela perguntou.
Pelo visto ninguém tivera tempo de lhe contar
os detalhes.
— De novo. E um humano viu um dos antigos.
Paula parou e olhou para trás antes de me
encarar.
— Um dos antigos — ela repetiu e respirou
fundo. — E se estão aqui, não conseguiram pegar o
humano.
— É um dos funcionários da construtora —
Caio contou. — Ele voltou depressa demais.
Quando notamos...
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Ele deu de ombros, ainda encarando o chão.


— Quando notaram já era tarde demais — Paula
murmurou.
— Preciso de uma alternativa — falei.
Porque se ele falasse qualquer coisa, todos do
bando pagariam. O Conselho não nos perdoaria.
Paula encarou as árvores.
— Isso não vai ser fácil... Sabem quem foi o
humano?
Balancei a cabeça.
— Rodrigo está vigiando — Aline avisou.
E Paula tinha uma ligação tanto com ele quanto
com Aline. Havia me esquecido daquilo.
— Não me interrompam — ela falou, antes de
se apoiar no ombro de Aline e fechar os olhos.
Um gavião gritou, do outro lado da mata.
Rodrigo. Mas aquele não era o seu sinal.
Provavelmente tinha sido só a surpresa de Paula
usando a ligação para ver pelos seus olhos.
Caio olhou para mim e indicou a mata com a
cabeça. Assenti. Nós cuidaríamos do humano. Ele
precisava pensar em como garantir que, mesmo que
derrubassem nossas defesas de novo – não
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podíamos ignorar aquela possibilidade – nenhum


humano fosse ver o que não devia, sem que isso
prejudicasse os vigias dentro da mata. Mesmo que
não tivesse conseguido fazer isso, dessa vez, ele
continuava sendo a melhor pessoa para ficar
responsável pela mata. Um instante depois, Caio
desaparecia entre as árvores.
Paula abriu os olhos.
— Isaac Ribeiro.
Balancei a cabeça. O nome não me dizia nada. E
como ela tinha conseguido um nome só vendo
pelos olhos de Rodrigo? A menos que...
— Você o conhece — falei.
Ela suspirou e olhou para o alto, na direção do
terreno da construtora.
— Não conheço, exatamente. Mas sei quem é.
Talvez...
Esperei. Não queria atrapalhar seu raciocínio, se
Paula tivesse alguma ideia viável.
— Pode ser que tenha um jeito, mas... Você não
vai gostar disso — ela avisou.
Rosnei. Caio e Aline se afastaram. Fechei os
olhos e respirei fundo antes de olhar para Paula de
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novo.
— Vou gostar menos ainda se precisar matar
todas as pessoas que passaram perto desse humano
desde que ele saiu do nosso território.
Paula respirou fundo e se virou para mim.
— Isaac é o pai de Laura.

···
L AURA
— LAURA, ME CONTA ISSO DIREITO!
Levantei a cabeça e dei de cara com Bruna
entrando na loja. Baixa, com menos de um metro e
sessenta, mesmo que ela jurasse medir um e
sessenta e dois, cabelo loiro escuro e liso na altura
dos ombros e uma franja que a deixava parecendo
uns bons cinco anos mais nova, ela tinha o um rosto
de traços delicados que fazia todo mundo pensar
que era uma boa garota. Ela até podia ser, mas na
adolescência era minha companhia para fazer
qualquer coisa que não fosse exatamente certinha.
Deveria ter imaginado que não demoraria muito
para uma das minhas amigas aparecer ali. Àquela
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altura a cidade inteira já estava sabendo do que


acontecera na noite anterior. Quer dizer, pelo
menos as pessoas que conviviam conosco. A fofoca
ia ter se espalhado depressa, mesmo que ainda não
fossem nem onze horas da manhã. Não queria nem
imaginar o que ia acontecer quando eu chegasse em
casa de noite.
— O que você quer saber? — Suspirei,
colocando meu lápis de lado e um livro sobre a
folha onde estava desenhando.
— Tudo! — Ela puxou a cadeira e se sentou,
apoiando os cotovelos na mesa e se inclinando na
minha direção. — Laura Ribeiro indo para o bar,
bebendo e brigando com Rick? Como assim?
Suspirei, só então percebendo que Bruna estava
usando a blusa verde com a logo da papelaria da
sua família.
— Não deveria estar trabalhando?
Ela balançou uma mão, deixando claro que
aquilo não importava.
— Cris falou que não tinha problema ficar
sozinha por um tempo, especialmente se eu
voltasse com fofocas direto da fonte. Então. O que
aconteceu?
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Claro que sua irmã mais velha não ia achar ruim


ficar sozinha na papelaria em troca de fofocas.
Revirei os olhos.
— Eu estava de bom humor e queria ir no bar,
só para variar um pouco. — Dei de ombros. — O
que tem de mais nisso?
— Para a Laura que conheci no colégio? Nada.
— Bruna ergueu uma sobrancelha. — Para a Laura
que voltou de BH, toda comportada e concordando
com tudo?
Suspirei e balancei a cabeça. Ela estava certa.
Certíssima. Se eu ainda estivesse morando aqui
quando fiz dezoito anos teríamos ido lá, com
certeza. Eu teria enfrentado todo mundo e batido o
pé porque era o que eu queria e não estava fazendo
nada de errado. Mas meu aniversário de dezoito
anos já foi em BH. Como eu tinha me permitido ser
apagada daquele jeito?
Balancei a cabeça de novo, sem responder à
pergunta não muito escondida no seu comentário.
— Rick resolveu que ia pedir por mim, e
adivinha? Ia pedir um refri. Não aceitei, fui pedir
uma cerveja. Ele falou que cerveja não era coisa de
mulher. Eu pedi um drink. Ele não gostou muito
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quando pedi o segundo e falou que mulher dele não


dava vexame.
Bruna fez uma careta quando terminei de falar.
— Até parece que ele não te conhece.
Assenti, olhando para o livro em cima do meu
desenho. Rick me conhecia quase a vida toda, mas
às vezes eu pensava que realmente não me
conhecia de verdade. Que nunca tinha me
conhecido, na verdade, se parasse para pensar bem.
Mas... Ele gostava de mim, se importava comigo.
Ou será que todos os momentos fofos foram só
formas mais discretas de falar o “minha mulher não
dá esse tipo de vexame”?
Eu nunca mais ia conseguir ver nada que ele
fizesse do mesmo jeito, por causa de umas poucas
palavras. Aquele tipo de comentário sempre tinha
me incomodado, desde bem nova. Eu não era
propriedade de ninguém.
Dei de ombros.
— Aí eu falei que não era mulher dele e nem
namorada mais.
— Ouch. — Bruna sorriu. — E foi aí que vocês
brigaram e você colocou os esquisitos no meio.

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Franzi a testa e me inclinei para trás na cadeira.


— Hein? Não. Eu só deixei ele falando sozinho
e desci para a terceira sala do bar, aquela mais
baixa. O que estão falando por aí?
O sorriso dela se alargou. Olhei para o teto. Era
óbvio que já tinham aumentado uns tantos pontos
nessa história. Por que eu ainda me surpreendia?
— Que vocês discutiram aos berros no bar, você
foi pro meio dos esquisitos e eles queriam bater no
Rick.
Respirei fundo e soltei o ar pela boca. Deveria
ter imaginado que a história ia acabar sendo
contada mais ou menos assim, especialmente
porque os “esquisitos” estavam no meio. Eu tinha
demorado um pouco para entender quem eram as
pessoas que estavam lá embaixo e por que eu não
os conhecia: boa parte deles eram as pessoas que
moravam no casarão de Alexandre. A mulher que
tinha puxado a cadeira para mim contou para eles
que eu trabalhava para Paula e ninguém falou nada
sobre eu ficar lá. Em algum momento no meio da
conversa mencionei Camila e descobri que dois dos
caras a conheciam, e de repente todo mundo estava
me tratando como se me conhecessem há anos. Os
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que moravam ali raramente iam na cidade, ficavam


o tempo todo no terreno ao redor do casarão. Os
outros eram de BH e estavam passando alguns dias
ali, por algum motivo.
— E aliás, falaram que você estava parecendo
amiga de infância deles — Bruna completou.
Bufei.
— Às vezes eu odeio essa cidade — falei. — Eu
desci para a outra sala sem conhecer ninguém. Uma
das mulheres lá me reconheceu do sebo e falou para
eu sentar com eles. Rick levantou a voz uma vez e
ele foi o único que gritou. Eu já estava sentada.
Ninguém fez nada.
— Mas alguém deve ter ficado com medo que
fizessem. — Ela levantou uma sobrancelha.
Parei para pensar no que tinha acontecido. Rick
descendo a escada atrás de mim, furioso porque eu
tinha terminado, e eu sentada com um grupo de
mais de vinte pessoas que ele não conhecia e que
não iam ser intimidadas por seu nome ou coisa do
tipo. Soltei uma risada um pouco seca. Talvez
Bruna tivesse uma certa razão. Rick estava
acostumado a ser a última palavra. Ele não era
violento, na verdade, mas ninguém que mexia com
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ele escapava. E ele estava acostumado a usar o peso


que o seu nome tinha na cidade – sua família era
uma das mais antigas, tinham dinheiro, eram
respeitados. Naquele momento, com aquelas
pessoas, nada disso tinha valor.
— Pode ser — assenti.
Bruna balançou a cabeça, sorrindo, antes de se
inclinar para a frente.
— Agora, para falar a verdade... Não achei que
fosse terminar com Rick. Pensei que gostava dele.
Suspirei e dei de ombros.
— Eu gosto dele, mas...
Mas. Eu não sabia explicar. Gostava de Rick, de
verdade. Só não conseguia ver nós dois juntos a
longo prazo. Quer dizer, conseguia... Se estivesse
disposta a ignorar todos os meus sonhos. Egoísmo?
Talvez. Mas aquela era a verdade. Ia me colocar
primeiro, para variar.
Bruna revirou os olhos e se endireitou na
cadeira.
— Esse “mas”. — Ela balançou a cabeça. —
Não é por nada não, mas a fofoca é mais
interessante do que o que realmente aconteceu.

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Eu ri.
— Sempre é. E até o fim da noite,
provavelmente vai estar mais interessante ainda.
— Até porque Rick provavelmente vai aparecer
aqui, não é?
Inclinei a cabeça para trás até bater com a nuca
no encosto da cadeira, olhando para o teto.
— Precisava me lembrar disso?
Bruna riu e se levantou.
— Me mantenha informada!
Balancei a cabeça enquanto ela saía da loja.
Nem adiantava dizer que não ia contar o que
acontecesse. Todo mundo ia ficar sabendo, de uma
forma ou de outra. E eu tinha certeza de que Rick
não ia estar de bom humor quando aparecesse na
loja.
Tirei o livro que estava em cima do desenho que
estava fazendo. Era a imagem da noite anterior:
Rick sentado no bar, com os braços cruzados, a luz
forte logo atrás dele e as cores vivas ao seu redor.
Pelo menos, este seria o resultado final. Já tinha
desenhado Rick tantas vezes que nem precisava de
referências para a pose dele. Encarei a imagem, os

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traços escuros e o começo de sombreamento que


estavam no papel, pensando em como ia trabalhar
as cores e luzes. Queria fazer algo diferente daquela
vez.
Com um suspiro, peguei meu lápis e voltei a
mexer no sombreamento.
Não demorou muito para eu ouvir os passos de
Paula.
— Veio comentar sobre as fofocas também? —
Perguntei, sem parar de mexer no desenho.
— Não exatamente. — Ela deu a volta na mesa,
colocou a cadeira que Bruna tinha puxado de volta
no seu lugar e parou na minha frente. Levantei a
cabeça. — Só queria dizer um “até que enfim”. Isto
é, se você não estiver pensando em voltar com ele
assim que ele fizer meia promessa de que vai
mudar.
Olhei de volta para o meu desenho e então para
Paula. Não pretendia fazer aquilo, mas mesmo
assim suas palavras me incomodaram.
— As pessoas mudam, sabia?
Paula sorriu daquele jeito superior que eu
odiava: como se ela fosse muito mais velha e eu
uma criança inocente.
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— Elas mudam, se estiverem dispostas a ver que


estavam erradas. Acha mesmo que Henrique vai
aceitar que fez alguma coisa errada?
Ela não esperou uma resposta e deu a volta na
mesa de novo. Não falei nada. Sabia que ela estava
certa e era justamente por causa daquilo que não
estava nem pensando na possibilidade de voltar
com Rick. Ele não aceitava que estava errado.
Nunca aceitaria que tudo o que cresceu ouvindo
podia estar errado. Até hoje eu não entendia porque
eu tinha começado a questionar, mesmo quando
todas as minhas amigas diziam que eu estava
procurando problemas onde não existia nenhum.
— Aliás, Daiane disse que o pessoal gostou
bastante de você.
Me virei para trás, mas Paula já estava sumindo
entre as estantes. Precisei de um instante para
entender de quem ela estava falando: uma das
mulheres que estava na mesa noite passada.
Deveria ter imaginado que iam comentar com
Paula, mas por algum motivo aquilo nem tinha
passado pela minha cabeça. Suspirei. Cidade
pequena, fofocas, pessoas vigiando a vida umas das
outras... Às vezes eu realmente odiava tudo aquilo.

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E não ia ficar pensando naquilo. Ia me


concentrar no meu trabalho.
Estava terminando de embalar dois livros que
tinham sido encomendados por uma mulher do
interior de Goiás quando Alexandre entrou na loja.
Não precisava me virar para a porta para saber
disso, era uma sensação estranha, quase um
instinto, que fazia todos os cabelos da minha nuca
se arrepiarem. Será que era assim que uma presa
encurralada se sentia? Eu não duvidaria.
Respirei fundo, colocando outro livro sobre o
pacote e o rolo de fita transparente sobre ele antes
de me virar. Alexandre estava parado a alguns
passos da minha mesa, me encarando. Engoli em
seco, tentando controlar aquela sensação incômoda.
Tinha pensado que depois de mostrar minhas
ilustrações para ele e dos seus comentários eu não
teria mais tanto medo, mas estava enganada. Não,
medo não era a palavra certa... Mas eu não
conseguia pensar em nenhuma outra.
— Vou ver se...
— Não precisa — ele me interrompeu, seco, e
sua voz soava quase como uma ameaça.
Assenti, tentando não engolir em seco quando
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ele continuou a me encarar enquanto eu


empacotava os livros. Em menos de um minuto,
ouvi os passos apressados de Paula. Ela saiu do
meio das estantes e olhou para mim antes de
encarar Alexandre. Engoli em seco. Nunca tinha
visto Paula tão tensa antes. Sem dizer nada, ela se
virou e Alexandre a seguiu.
Me deixei cair sentada na cadeira assim que
ouvi a porta dos fundos se fechar. Primeiro
Alexandre, depois Paula. O que estava
acontecendo? Porque não tinha como pensar que
tudo estava normal, não depois disso tudo.
Alexandre tinha vindo na loja três dias seguidos.
Isso nunca acontecera antes. E aquela tensão de
Paula... Pensando bem, ela já não estava muito
normal quando falou comigo mais cedo. Ela nem
rendeu assunto nem resmungou sobre Rick, que
seria o que faria normalmente.
Suspirei e encarei o pacote meio fechado sobre a
mesa. Não era da minha conta. Eu não sabia o que
Paula e Alexandre tanto conversavam ali, ela já
tinha me falado que com todas as letras que eram
assuntos particulares, então não ia ficar
especulando. Tinha trabalho a fazer.

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Mas não consegui evitar a sensação de que


alguma coisa estava prestes a dar errado. Se é que
já não tinha dado errado.
Quase como se estivesse lendo meus
pensamentos, meu celular apitou. Olhei para a tela,
erguendo as sobrancelhas quando vi a notificação
dizendo que tinha uma mensagem do meu pai. Ele
raramente usava o celular.
Pai: Preciso que você venha direto para casa
hoje.
Respirei fundo e soltei o ar lentamente. Era
óbvio que as histórias sobre a noite passada já
tinham chegado no ouvido dele. Provavelmente eu
chegaria em casa e daria de cara com ele e minha
mãe me esperando para um sermão duplo. E não
adiantava nem tentar evitar.
Laura: Ok.
Joguei o celular dentro da bolsa, irritada, e
terminei de empacotar os livros. Peguei as etiquetas
com os endereços e as colei nos seus lugares, antes
de levar o pacote para a mesa nos fundos onde
deixávamos as encomendas acumularem por uns
dois dias antes de irmos no correio.
Quando voltei para a frente da loja, Rick estava
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lá. Será que eu não podia ter um pouco de sossego?


Só um pouco, ao invés de tudo acontecer ao mesmo
tempo. Não queria discutir mais e a expressão
fechada de Rick já deixava claro que qualquer
conversa não ia ser amigável.
— Lau. — Ele sorriu de forma um pouco
hesitante. — Já estava pensando que não estava
aqui.
Fechei os olhos por um instante, me contendo
para não dar a resposta que queria. Onde mais eu
estaria? A única pessoa ali que entrava e saída do
trabalho quando bem entendia não era eu.
— O que foi, Rick?
Puxei minha cadeira e me sentei, antes de abrir
o sistema de controle da loja no computador. Não
tinha mais nada para fazer, mas ia conferir se não
havia aparecido nenhuma encomenda nos últimos
quinze minutos. Qualquer coisa para eu não
precisar dar atenção para Rick.
— Precisamos conversar.
Me virei para ele. Rick estava parado na frente
da mesa, com as mãos nos bolsos e sem nem olhar
para a cadeira que ele sempre puxava.
— Estou trabalhando, Rick. E acho que já falei
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tudo o que precisava falar.


— Então depois. Você estava bêbada ontem e...
Respirei fundo e me virei de volta para o
computador. Então era naquilo que ele queria
acreditar. Que eu tinha terminado com ele porque
estava bêbada. Por que aquilo me surpreendia?
— O que está acontecendo com você, Lau? —
Ele colocou uma mão no meu ombro. — Você nem
parece a Laura que eu conheço.
Tirei sua mão do lugar com um safanão, me
virando para ele em tempo de ver quando apoiou a
outra mão na mesa para não se desequilibrar. Por
que quando eu agia de uma forma que ele não
concordava sempre começava aquela conversa de
“nem parece a Laura que eu conheço”? Eu estava
cansada. Tinha passado tempo demais agindo como
todos esperavam, verdade, mas não ia mais fazer
aquilo. Não ia me matar pouco a pouco, até que não
sobrasse nada de mim.
— E você tem certeza de que conhece a Laura?
A Laura de verdade, não a imagem que você criou
na sua cabeça sobre o que eu deveria ser? —
Rebati.
Minha mãe ia querer me matar. Eu sabia disso.
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Ela já estava furiosa na noite passada e nem sabia


que eu tinha terminado com Rick. Quando chegasse
em casa seria muito pior. Mas não ia voltar atrás.
Não podia. Era melhor brigar.
— Lau, você está exaltada...
— Não, Rick. — Apoiei a mão na mesa antes de
me levantar, sustentando seu olhar. Ele não era
muito mais alto que eu, e naquele momento nem
me importaria se fosse e eu precisasse olhar para
cima. — Eu não estava bêbada ontem e eu não
estou exaltada agora. Acabou. Não tem o que
conversar.
— Você não pode decidir isso assim, não é só
você...
Claro que eu não podia decidir, porque eu não
estava tomando a decisão que ele queria.
— Um relacionamento é feito de duas pessoas.
— Minha voz estava tão calma e fria que até eu me
surpreendi. — A partir do momento em que uma
destas duas pessoas não está mais satisfeita,
acabou. Eu decidi, Rick. Pronto. Só isso. Não tem o
que conversar.
Ele se endireitou, ainda me encarando. Vi
quando ele travou o maxilar e seus lábios se
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tornaram uma linha fina. Seu olhar endureceu, mas


mesmo assim não recuei. Não ia recuar. Já tinha
feito isso por tempo o bastante. Levantei o queixo
enquanto apertava um livro não muito grosso e de
capa dura que estava em cima da mesa, sem desviar
os olhos.
— Essa decisão não é sua, Laura. Quem você
pensa que é? Acha que pode me dar ordens? Acha
que pode me dizer o que fazer?
Bufei.
— Te dizer o que fazer? Nunca. Eu só estou
falando o que eu não vou fazer. Ou você acha que
pode decidir a minha vida?
Ele não respondeu e nem precisava. Eu
conseguia ver no seu olhar. Ele achava que podia.
Rick pensava que tinha o direito de controlar minha
vida. Como eu nunca tinha notado isso antes? Ou
melhor, como eu tinha ignorado aquilo por dois
anos?
— Acabou, Rick. Só isso.
Ele se inclinou na minha direção. Apertei o livro
com mais força, só então pensando que estava
fazendo uma loucura. Era Rick, eu o conhecia a
minha vida toda, ele não era violento, mas...
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— Você tem outro, não é? Está me traindo


desde que voltou de Belo Horizonte. Isso explica
por que você anda tão diferente. Acha que terminar
comigo vai servir de alguma coisa?
— Pelo amor de Deus, Rick! Acabou, só isso.
Não tem ninguém. Só não dá mais. Você sabe tão
bem quanto eu que isso nunca ia dar certo.
— Vai dar certo, Laura. Ou você acha que te
esperei esses anos todos à toa? Acha que alguém
vai chegar perto de você? Acha mesmo que outro
cara vai ter paciência para as suas esquisitices?
Respirei fundo, precisando fazer força para não
recuar. Não, nenhum cara ia chegar perto de mim.
Eu era a estranha desde a época do colégio, ter ido
estudar em BH só tinha piorado as coisas. Mas eu
não me importava. Precisava pensar em mim, pelo
menos uma vez na vida.
E não ia querer qualquer cara que se importasse
com isso por perto, de qualquer forma.
— Acabou, Rick. — Respirei fundo de novo
antes de falar o que ia fazer ele desistir ou explodir
— Não faça uma cena.
Rick se endireitou. Puxei o livro mais para perto
de mim. Ia usar ele para me defender se Rick
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fizesse alguma coisa. Ele sustentou meu olhar por


mais alguns instantes e saiu, pisando duro.
Me deixei cair sentada. Quando olhei para
minhas mãos, elas estavam tremendo. E eu ainda
estava segurando o livro... Um volume da coleção
de Julio Verne. Por que tinha pegado ele? Nem eu
entendia. Instinto, simples e puro. Respirei fundo e
soltei o ar pela boca algumas vezes, tentando me
acalmar. Não que adiantasse muito. Eu tinha
enfrentado Rick. Tinha terminado de vez.
E era estranho como aquilo me deixava com
uma sensação leve. Parecia que eu tinha carregado
um peso enorme por sabe-se lá quanto tempo, sem
notar, e agora estava livre, mesmo que uma parte de
mim ainda estivesse pensando se realmente tinha
feito a coisa certa.
Olhei para a mesa e dei de cara com o desenho
meio sombreado que ainda estava em cima dela. Se
parasse para pensar, nada daquilo deveria ter me
surpreendido. Nem as atitudes de Rick, em
qualquer momento, nem como eu estava me
sentindo. A verdade era que ele nunca me
conhecera, de verdade. A Laura namorada de Rick
era uma mulher que estava sempre na sombra dele,

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sem querer nada por si mesma, sem fazer nada que


fosse diferente. Ele não me conhecia... E eu não
confiava nele, não de verdade. Deveria ter notado
aquilo quando não contei meus planos para ele mas
deixei Alexandre ver minhas ilustrações. Não era
só uma questão de que a opinião de alguém que eu
não conhecia não ia ter o mesmo peso... Era
confiança. Ou melhor, a falta dela.
Coloquei uma mão sobre o desenho,
acompanhando os traços com os dedos. Rick era
parte da minha vida desde a época da escola.
Sempre esteve ali, acompanhou cada momento da
minha vida... Mas nunca realmente me conheceu. E
eu não podia nem dizer que tinha sido enganada –
sempre soube como ele era. Mas, iludida? Sim, eu
me iludi, tentando me conformar com a opção mais
simples. Tentando ser como queriam que eu fosse.
Peguei o desenho e fiz uma bolinha com a folha
antes de jogá-lo na lixeira atrás de mim.

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CAPÍTULO CINCO

A LEXANDRE
ENCAREI O COPO DE VODCA QUE PAULA TINHA
colocado na minha frente. De que adiantava beber?
Aquilo não ia mudar o fato de que nós dois
estávamos fazendo algo que não queríamos. Mas,
considerando as opções... Era melhor aterrorizar
um humano do que matar toda a equipe da
construtora.
— Como o Conselho ficou sabendo? —
Perguntei.
Paula balançou a cabeça e virou o copo que
estava na sua frente de uma vez.
— Não faço a menor ideia. E não adianta
perguntar para Lílian.
Porque se ela pudesse, já teria nos falado.
Eu sempre me perguntava se aquele “pudesse”
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na verdade não era um “quisesse”. Não tinha como


não pensar que Lílian se divertia às custas de todos
nós quando contava só a parte que lhe interessava
das suas visões. Mesmo que as previsões dela
houvessem salvado minha vida, uma vez, eu não
conseguia confiar totalmente nela.
O fato era que o Conselho tinha ficado sabendo
do nosso problema e já mandara um aviso de que
esperavam que seguíssemos os protocolos para
garantir que o segredo não se espalhasse. Não
importava se estavam discutindo a possibilidade de
revelar nossa existência para a humanidade. Até
que isso acontecesse, nossas ordens eram claras.
Não que eu pretendesse segui-las. Já tinha colocado
nosso plano em andamento: havia parado Isaac
Ribeiro quando ele saiu da construção e lhe dado
um ultimato. Ainda conseguia sentir o cheiro do
seu medo. Ele não ia contar nada para ninguém,
disto eu tinha certeza. Estava assustado demais.
Mas precisávamos de uma garantia, especialmente
se o Conselho já estava sabendo.
— Acha que isso vai dar certo? — Paula
perguntou.
— Devia ter perguntado para Lílian.

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Ela deu uma risada seca.


— Acha que não perguntei? Ela disse que tem
possibilidades demais.
Suspirei. Grande ajuda.
Talvez a vodca não fosse uma ideia tão ruim
assim.
— Vamos enfrentar o Conselho de novo, de
uma forma ou de outra — falei.
Paula não respondeu. Levantei a cabeça. Ela
estava encarando a estante que cobria a parede ao
nosso lado. Catalogando mentalmente o que
poderia usar contra os membros do Conselho, se
chegasse nesse ponto. Respirei fundo e soltei o ar
devagar, olhando para o copo de novo. Tinha
passado minha vida toda desafiando o Conselho e
eles só haviam nos deixado em paz no casarão
depois que os enfrentei. Mesmo assim, não queria
um confronto desse tipo. Uma vez tinha sido o
suficiente – e o Outro Mundo precisava do
Conselho.
Era mais importante descobrir como tinha
derrubado nossas defesas, e por quê. Se bem que...
— Acho que vão parar de derrubar nossos
escudos agora — murmurei.
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Paula se virou para mim de uma vez.


— O que... O humano. Acha que era isso que
quem está fazendo isso queria? Que um deles nos
visse?
Era a única explicação para alguém ter
derrubado nossas defesas tantas vezes e não ter
feito mais nada.
— Desde que começaram a trabalhar nesse
condomínio, o único humano que se aproximou da
nossa propriedade foi o desperdício de oxigênio —
falei e Paula revirou os olhos. Dei de ombros.
Henrique era um desperdício de oxigênio. — Por
que um deles ia decidir entrar na mata justamente
quando derrubaram as defesas? Não foi uma
coincidência.
Ela me encarou por alguns instantes antes de
assentir.
— A questão então é por que queriam quem um
humano nos visse.
E aquilo era preocupante. A única coisa que eu
conseguia pensar era que queriam forçar justamente
aquele confronto com o Conselho.
— Não podemos lutar — Paula falou. —
Provavelmente é isso que querem.
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Não respondi. Sabia que ela ia chegar à mesma


conclusão. Se queriam que enfrentássemos o
Conselho, faríamos o possível para não fazer
aquilo. Pelo menos até termos certeza do que estava
acontecendo.
— Você vai precisar falar com Lílian de novo
— avisei.
Paula assentiu. E eu falaria com Ivan, o alfa dos
lobos daquele território. Se tinha uma pessoa no
Conselho em quem eu confiava, era nele.
Precisávamos encontrar uma forma de aceitarem
nosso plano.
Inclinei a cabeça, prestando atenção nos ruídos
que vinham da loja.
— Laura está quase indo embora.
— Merda.
Olhei para Paula e levantei uma sobrancelha.
Ela balançou a cabeça, já de pé e andando na
direção da porta.
— Não confio nele. Você ouviu, mais cedo.
Me levantei também.
— Você acha que ele vai fazer alguma coisa.
— Conheço caras assim. Não me surpreenderia
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nem um pouco se ele estivesse esperando em algum


lugar no caminho para a casa de Laura.
E eu também já tinha ouvido histórias demais
desse tipo. Sem falar nada, subi para a loja atrás
dela.
Laura estava entre as estantes, conferindo as
janelas da parte dos fundos do sebo. Olhei para
Paula, que balançou a cabeça antes de se sentar na
beirada da mesa de Laura. Me encostei em uma das
estantes um pouco para trás, meio na sombra. Sabia
que Laura tinha medo de mim. Depois daquela
discussão com o desperdício de oxigênio, ela não
precisava de mais um motivo para ficar tensa.
— Você vai direto para casa hoje? — Paula
perguntou.
Laura resmungou alguma coisa antes de voltar
para a sala principal da loja. Ela começou a sorrir
quando viu Paula sentada na mesa, mas parou e
engoliu em seco quando me notou.
— Vou. Meu pai está precisando de mim.
Ótimo. Menos chances de acontecer algum
“acidente” enquanto ela estava fazendo alguma
coisa na rua.
Paula assentiu e pulou de volta para o chão.
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— Certo, me dá um minuto e...


Não.
Me endireitei e parei ao lado da mesa. Paula
seria vista como um alvo fácil. Eu sabia muito bem
que ela não era uma mulher indefesa, mas alguém
como Henrique não pensaria nisso. Ela acompanhar
Laura não faria muita diferença. Agora, se fosse eu
indo embora com ela...
— Vou te acompanhar até sua casa.
Laura olhou para mim e balançou a cabeça
devagar, antes de arregalar os olhos.
— Não. Não, vocês estão exagerando. — Ela
balançou a cabeça de novo, apertando a alça da
bolsa no seu ombro. — Ele pode ser meio babaca,
mas não a esse ponto.
Paula bufou.
— Ah, que bom, agora você admite que ele é
babaca.
Laura deu de ombros.
— Tem certeza de que ele não vai fazer nada?
— Perguntei. — Apostaria sua vida nisso?
Ela respirou fundo e soltou o ar de forma
audível antes de balançar a cabeça.
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— Ótimo — Paula falou. — Então vão indo, eu


fecho tudo aqui.
Laura respirou fundo e foi para a porta da loja.
Passei por ela depressa, saindo primeiro. Não
confiava no desperdício de oxigênio que era o seu
ex-namorado. Ela soltou um ruído irritado quando
saiu, atrás de mim, e ainda ouvi a risada baixa de
Paula. Pelo menos alguém estava se divertindo.
Sem dizer nada, Laura começou a subir a rua.
Contive um sorriso quando percebi que ela estava
fazendo um esforço para fingir que não estava
prestando atenção em mim. Como uma presa. Mas,
ao mesmo tempo, não era bem isso. Balancei a
cabeça. Mesmo que estivesse com medo, ainda
havia algo ao redor dela que me deixava... Não
exatamente calmo, mas mais tranquilo, de alguma
forma. Sem precisar fazer esforço para me
controlar e ignorar aquele impulso violento que
sempre estava ali. Um dia ainda ia achar uma
explicação para aquilo.
Não falei nada enquanto virávamos uma esquina
e entrávamos em uma das ruas principais de Monte
das Pedras. Uma mulher vindo na nossa direção
com o filho pequeno me encarou e atravessou a rua.

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Dei uma risada baixa. Típico. Já fazia seis anos que


estava morando aqui e não importava o quanto eu
tentasse não chamar atenção, ainda fugiam assim.
Não deveria me surpreender. Tinha sido ilusão
pensar que aqui seria diferente de onde cresci.
E aquele silêncio estava começando a ficar
incômodo.
— Lavínia disse que você poderia ter problemas
com seu ex — falei.
Laura parou, me encarando. Continuei a andar,
tentando não sorrir quando ela precisou quase
correr para me alcançar de novo.
— Lavínia? — Ela perguntou.
— Um pouco mais baixa que você, cabelo preto
cacheado e curto, falou que lembra de você do
sebo.
Ela estreitou os olhos e então assentiu, antes de
resmungar alguma coisa que não tentei entender.
— Ele não vai ser um problema — Laura falou.
— Ele só não está muito acostumado a ser
contrariado assim, ainda mais que me esperou
enquanto eu estudava fora e...
E ela ainda estava tentando justificar as atitudes

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dele. Nada inesperado, na verdade, mas mesmo


assim aquilo me incomodava.
— Ótimo, então.
Continuamos em silêncio até a esquina da rua da
casa dela. A mercearia ainda estava aberta e Laura
foi direto para o portão ao lado dela. Não sabia que
ela morava em cima da mercearia – o que queria
dizer que a loja provavelmente era da sua família.
Laura parou com a mão no portão e se virou
para mim.
— Não sei se me lembrei de agradecer, — ela
começou e deu de ombros. — Então... Pode
agradecer Lavínia por mim? E os outros que
estavam lá também?
Assenti.
— Tudo bem.
Ela respirou fundo.
— E obrigada por ter vindo comigo.
Sorri. Era a única resposta que podia dar. Eu
duvidava que ela me agradeceria por qualquer coisa
depois da conversa que ia ter com o pai.
Laura abriu o portão de uma vez e quase correu
para dentro.
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···
L AURA
SUBI A ESCADA DEPRESSA, AINDA SENTINDO O OLHAR DE
Alexandre em mim. Ele era perigoso. Mesmo que
tivesse se oferecido para me trazer em casa, ele
continuava sendo perigoso e não havia como eu me
esquecer daquilo. Aquele seu sorriso tinha me dado
arrepios – e não do tipo bom.
E a certeza que eu tinha daquilo era estranha.
Alexandre não era o tipo de cara que eu chamaria
de intimidante. De longe, ele até parecia um cara
bem comum – com cabelo escuro quase na altura
dos ombros, vestindo uma blusa azul escura
desbotada, calça jeans e tênis, ele não tinha nada de
especial. Não era muito alto, não era muito forte,
não tinha um cabelo de matar qualquer mulher de
inveja. Mesmo que seu rosto não fosse todo
marcado por cicatrizes, ele não seria um daqueles
caras que fazem as cabeças virarem por onde
passam. Ele era comum, apenas isso. Pelo menos,
visto de longe. De perto... Um arrepio me
atravessou. Violência contida não era o suficiente
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para descrever a impressão que ele passava.


Alexandre não chamava atenção, no sentido
tradicional. Na verdade, ele parecia afastar atenção,
porque todo mundo saía do seu caminho.
Respirei fundo de novo antes de abrir a porta.
Que situação. Estava tão preocupada que estava
analisando Alexandre para tentar me distrair.
Triste. Fazer isso não ia ajudar em nada.
Meu pai estava sentado no sofá da sala,
encarando a TV. Ele não falou nada quando entrei,
nem quando fechei a porta atrás de mim. Na
verdade, ele nem parecia estar vendo nada na
televisão. Passei por ele murmurando um boa noite
– que não teve resposta – e fui para o meu quarto.
Joguei minha bolsa em cima da cama antes de
soltar o cabelo e chutar meus tênis para debaixo da
cama. Não queria ter aquela conversa com meu pai.
O que quer que fosse, ia ser feio, eu tinha certeza.
Conseguia contar nos dedos de uma mão as vezes
que tinha visto ele encarar a TV daquele jeito, e
todas foram antes das piores brigas. Mas não ia
adiantar nada fazer hora ali. Na verdade, podia ser
pior, porque se minha mãe resolvesse fechar mais
cedo e subir... Engoli em seco, peguei a blusa e o
short que eu tinha deixado jogados em cima da
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cadeira encostada na parede e me troquei depressa.


Quando voltei para a sala, ele continuava a
encarar a TV. Respirei fundo, parada na porta, e vi
Marina parar na porta da cozinha. Balancei a
cabeça depressa. Não queria ela no meio disso, o
que quer que isso fosse. Ela levantou os ombros e
inclinou a cabeça para a esquerda. Balancei a
cabeça de novo. Não queria que ela tentasse entrar
no meio da discussão. Eu já estava ferrada, de
qualquer forma. Ela não precisava se ferrar junto.
Fui na direção do sofá antes que ela resolvesse
fazer alguma coisa.
— Pai? Queria falar comigo?
Ele balançou a cabeça, como se estivesse
acordando, e se virou para mim. Só então reparei
nas linhas novas no seu rosto e em como seu olhar
parecia... Envelhecido? Sim, era isso. Parecia que
entre ontem de noite e agora ele tinha envelhecido
uns dez anos, de tão tenso e preocupado. O que
estava acontecendo? Aquilo não tinha nada a ver
comigo terminando com Rick, isso era certeza,
mas...
Por algum motivo, me lembrei da sensação que
tive mais cedo, quando Alexandre entrou na loja.
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Não, era loucura demais imaginar que aquilo tinha


alguma coisa a ver com meu pai querendo
conversar comigo. Se bem que Alexandre aparecera
na loja por três dias seguidos, pela primeira vez em
dois anos. E hoje, quando chegou, minha vontade
era correr para o mais longe possível dele. Duas
coisas fora do normal – a forma como ele e Paula
agiram e meu pai querendo conversar comigo –
numa cidade onde as coisas raramente saem da
rotina. Um arrepio me atravessou. É, havia uma
grande chance de estarem relacionadas.
Meu pai se virou para a porta da cozinha.
— Marina? — Ele esperou até que ela
aparecesse ali antes de continuar. — Tenho um
assunto sério para tratar com sua irmã, e não quero
você nem sonhando em ouvir. Fui claro?
Ela assentiu depressa, olhando para mim
rapidamente. Balancei a cabeça de novo. Não
queria que ela fizesse nada.
— Vou ficar na cozinha estudando — ela falou
antes de assentir de novo e sumir de vista.
Meu pai se virou para mim. Eu nunca tinha visto
ele tão sério na minha vida. Engoli em seco. Nunca,
desde criança, qualquer discussão naquela casa
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tinha ficado em segredo. Nem nunca tinha


acontecido qualquer tipo de “conversa” séria sem
minha mãe estar ali também.
— O que aconteceu, pai?
Ele balançou a cabeça, travando o maxilar
enquanto se levantava.
— Para o seu quarto.
Obedeci sem falar nada e ele veio atrás de mim.
Me sentei na beirada da minha cama, encarando em
silêncio quando ele fechou a porta do quarto e
parou, olhando para o chão. Alguma coisa estava
muito errada.
— Pai, você está me assustando — murmurei.
— O que houve?
Ele se virou para mim e de novo tive a
impressão de que ele tinha envelhecido do nada –
mais uns cinco anos desde que eu tinha entrado em
casa. Ele balançou a cabeça e encarou o chão de
novo, engolindo em seco.
— Pai?
— Eu fiz uma merda gigantesca.
Pisquei depressa, balançando a cabeça. Meu pai
nunca falava palavrão. Foi ele quem ficou no meu
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pé quando voltei de BH, insistindo para que


perdesse o hábito. Se ele estava falando daquele
jeito... Cruzei os braços, segurando meus cotovelos
com força. Não ia perguntar de novo. Não mesmo.
Se ele queria me assustar, tinha conseguido.
Ficamos em silêncio por algum tempo. Não sei
se meu pai estava tentando se acalmar ou se a
intenção era me deixar mais nervosa ainda. Se fosse
a segunda opção, estava funcionando muito bem,
porque eu tinha certeza que aquilo não tinha nada a
ver com a noite passada, mas também tinha certeza
de que estava ferrada. Muito ferrada.
— Você sabe do condomínio, não é? — Ele
começou.
Revirei os olhos. A cidade toda sabia do tal
condomínio – justamente porque não fazia sentido.
Quem ia querer comprar um apartamento num
condomínio fechado nesse fim de mundo? Mas
estavam comprando, e a construtora da família de
Rick queria terminar o mais depressa possível.
— Os planos originais eram para ele ser maior.
Queriam comprar mais um terreno, mas os donos se
recusaram a vender.
Assenti de novo. Me lembrava vagamente de ter
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ouvido algo a respeito, não sabia se em casa ou na


casa de Rick. Provavelmente na casa de Rick, em
algum dos fins de semana que eu estava lá.
— Lembro de alguma coisa sobre não
entenderem porque não queriam vender, porque
não estavam usando o terreno para nada. Era só
mato — falei.
Se bem que, conhecendo Antônio, o pai de Rick,
“só mato” podia tanto ser literalmente isso quanto
ser um pedaço de mata ou até mesmo uma
plantação. Qualquer coisa que não estivesse sendo
usada para construção era “mato” para ele.
— Isso. — Meu pai assentiu, engolindo em
seco. — Eu achei que não era nada demais, mas...
Eles têm motivo para não vender.
Era óbvio que tinham motivo para não vender,
mesmo que fosse só para pirraçar o pai de Rick.
Um olhar para o rosto do meu pai me fez parar
com qualquer pensamento naquele sentido. O que
quer que fosse... Não era tão simples assim.
— Ao lado do condomínio tem uma área de
mata fechada. Eu...
Ele se calou de novo. Era mais que óbvio que
ele não queria me contar o que tinha acontecido.
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Um arrepio me atravessou e por um instante pensei


que o quarto tinha esfriado.
Mas ele não precisava continuar. O que tinha
acontecido era óbvio, mesmo que fosse idiota. E eu
não podia nem falar nada, porque provavelmente
teria feito a mesma coisa.
— Você entrou na mata — falei.
Meu pai assentiu.
— Vi alguém correndo, tinha ouvido uivos... Na
hora não pensei que isso não fazia sentido. Entrei
na mata porque pensei que alguém estava perdido
ali e tentando fugir de algum animal. Eu já tinha
visto movimento lá antes, e... — Ele se calou,
balançando a cabeça e encarando a parede atrás de
mim.
Não era preciso ser um gênio para entender o
que tinha acontecido. Ou pelo menos imaginar.
Estávamos em Monte das Pedras, verdade, mas eu
tinha passado quatro anos em BH. Ouvira umas
tantas histórias sobre o que podia acontecer em
qualquer lugar no meio do mato, mesmo que
sempre tivesse achado que fossem exagero.
— O que você viu?
Ele balançou a cabeça, ainda sem olhar para
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mim.
— Não posso contar.
— Pai, se não me contar o que aconteceu não...
— Não posso falar. Se contar vai ser pior. Se
falar com uma pessoa, que seja, estou morto.
Estamos mortos. Todos nós. — Ele fechou os olhos
e se virou para a porta.
Balancei a cabeça, sem ter certeza de que tinha
entendido certo. Ele estava falando de morrer?
Meu Deus do céu, o que ele tinha visto no meio do
mato? Queria pensar que aquilo era algum tipo de
pegadinha, mas... Meu pai não era bom ator. E
ninguém conseguiria fingir aquilo que eu reparei
mais cedo, como ele parecia dez anos mais velho
de uma hora para a outra.
E eu não sabia como reagir. Balancei a cabeça
de novo, piscando depressa, e parei quando senti
minhas unhas. Estava apertando os braços com
tanta força que estava me cortando com minhas
unhas.
— O que aconteceu, pai? — Minha voz estava
tão calma que não parecia ser minha. Era quase
como se outra pessoa estivesse usando minha boca
para falar, porque não era eu ali. Eu estava
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assustada demais para falar qualquer coisa. Não


entendia como aquilo podia estar acontecendo,
porque eu tinha certeza de que alguma coisa tinha
dado muito errado.
— Eles me deram duas opções, Lau. — Ele
continuou encarando a porta. — A primeira é me
matar... E matar você, Marina e sua mãe. A família
toda.
Meu pai tinha topado com um bando de
traficantes. Ou qualquer coisa do tipo. Só podia ser.
Maldita curiosidade, maldita vontade de ajudar.
Senti meus olhos ardendo, mas não conseguia nem
chorar. Só encarar as costas dele enquanto ele
continuava a falar.
— A segunda opção é você ir com eles. Ficar na
casa de um deles, como... Como uma refém para
terem certeza de que eu nunca vou falar nada.
Eu não podia gritar. Não podia sair correndo e
gritando. Não podia. Isso era uma ladainha na
minha mente: não pire, não pire, não pire. Se aquilo
era verdade... Respirei fundo enquanto apertava
meus braços de novo, tentando não enfiar as unhas
em lugar nenhum.
— O que é isso? — Perguntei com um fio de
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voz. — É algum tipo de castigo estranho por eu ter


ido no bar ontem? Me assustar até eu parar de fazer
essas coisas?
— Você acha que eu ia brincar com isso?
Me encolhi quando ele gritou, se virando para
mim. Não achava, mas... Mas também não
conseguia acreditar que aquilo era verdade.
Balancei a cabeça, sem ter coragem de abrir a
boca.
Meu pai se ajoelhou na minha frente.
— Eu ainda não consigo acreditar nisso, Lau.
Não consigo. Se tivesse ficado concentrado no
trabalho, ignorado a pessoa que vi correndo...
Balancei a cabeça de novo, com força. Se ele
fizesse isso não seria meu pai. Ele nunca
conseguiria ignorar alguém numa situação assim,
onde ele achasse que podia ajudar.
Ele balançou a cabeça, apertando meu braço.
— Não posso te pedir isso.
Não podia, não devia, não... Eu não conseguia
nem pensar mais. Mas segurei seu braço quando ele
se levantou e começou a se afastar.
— Se eu não for, todos nós morremos? —
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Perguntei.
Ele assentiu sem se virar para mim.
Então não importava se ele podia ou não me
pedir aquilo. Se isso fosse verdade, se fossem matar
todo mundo...
Respirei fundo. Precisava pensar. Devia ter
alguma coisa...
— A polícia... — comecei.
Meu pai balançou a cabeça, sem me encarar.
— Eles disseram que têm gente lá. E, de
qualquer forma, não tenho provas.
— Você está sendo ameaçado, isso tem que
valer de alguma coisa!
Ele só balançou a cabeça de novo.
— Não tenho provas, Lau. Não adianta tentar
fazer nada.
— Mas você é testemunha de alguma coisa, tem
que...
— Não tem nada, Lau! — Ele me encarou.
Engoli em seco, percebendo que ele já tinha
pensado em tudo aquilo. E não havia outra opção.
Ou eu ia ser uma... refém... Ou eles iam matar
todos nós.
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Senti uma lágrima escorrendo pelo meu rosto.


Não era difícil escolher. O que eu tinha a perder?
Nada. Enquanto isso, meus pais tinham a vida
deles, Marina estava tentando conseguir a vida
dela, e eu... Respirei fundo de novo. Eu não ia fazer
falta.
— Eu vou — murmurei.
— Laura... — meu pai começou e agachou na
minha frente de novo. — Você não tem que ir.
Balancei a cabeça.
— Se a outra opção é matarem a gente, eu vou.
— E era irônico que isso acontecesse justo quando
eu estava começando a tentar recuperar a vida que
queria para mim. Tarde demais. Engoli em seco de
novo. Ia fazer aquilo. — Mas quero uma coisa em
troca.
— Qualquer coisa, Lau — a voz do meu pai
estava tão tensa que quase não entendi o que ele
falou.
Levantei a cabeça e sustentei seu olhar.
— Marina vai prestar vestibular esse ano. Tenho
quase certeza de que vai conseguir passar de
primeira, mas passando ou não... Quero que ela
consiga ir para Belo Horizonte ou a cidade onde
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passar sem brigas, sem cobranças, sem ninguém


falando na cabeça dela o tempo todo. Não quero
que ela passe o que eu passei.
Ele respirou fundo duas vezes, soltando o ar
lentamente, e assentiu.
— Vou dar um jeito.
— Promete?
— Prometo.
Assenti, com um sorriso fraco no rosto. Pelo
menos para ela as coisas iam dar certo. Fechei os
olhos com força e apertei os olhos, como se fosse
conseguir segurar as lágrimas assim.
— Quando tenho que ir? — De novo, eu não
reconhecia minha voz.
— Amanhã. — Meu pai engoliu em seco. —
Eles vão vir te buscar amanhã, eu só preciso
avisar...
Sua voz morreu e ele encarou a janela do meu
quarto. Continuei olhando para a frente, para a
porta do meu guarda-roupas, sem ver o que estava
ali. Amanhã. Eu tinha horas para dizer adeus para a
minha vida.
— Você sabe... — Minha voz quebrou e precisei
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fazer um esforço para continuar. — Sabe com


quem vou ter que ficar?
Meu pai se virou para mim e assentiu.
— Naquele casarão na saída da cidade, com...
Um calafrio me atravessou.
Aquele comentário, aquele sorriso...
— Alexandre — completei.
E eu definitivamente não conseguia duvidar que
ele mataria minha família inteira para proteger o
que meu pai viu.

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CAPÍTULO SEIS

A LEXANDRE
PELO MENOS OS METAMORFOS QUE TINHAM VINDO
visitar o casarão estavam indo embora. Encarei os
carros que se afastavam, indo na direção do portão.
Eu não tinha problemas com visitantes, de forma
geral. Mas quando eram quatorze pessoas de uma
vez, ficava um pouco incômodo. Pessoas demais no
mesmo espaço, alterando como as coisas
funcionavam no casarão... Era um milagre que
nenhum dos fey tivesse começado alguma briga
com os metamorfos.
Também era um milagre que tivéssemos
conseguido esconder o que aconteceu dos
visitantes. Eu odiava manter segredos entre o
bando, até porque era quase impossível fazer isso.
Mas, dessa vez, havia sido necessário. Só Paula,

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Aline, Rodrigo e Caio sabiam sobre o humano e o


que estávamos planejando. Se bem que a essa
altura, com os carros já fora da propriedade, eles
provavelmente já tinham contado tudo para o
restante do pessoal.
Respirei fundo e saí do quarto. Provavelmente ia
chegar na cozinha em tempo de cortar a discussão
ainda no começo, porque eu tinha certeza de que
ninguém ia gostar do plano. Nem eu gostava, mas
era o que podíamos fazer. Lílian e Ivan já haviam
entrado em contato de novo, durante a noite, e
conseguimos pensar em uma justificativa para não
fazermos um massacre que o Conselho
provavelmente aceitaria. Eles já estavam pensando
na possibilidade de revelar nossa existência. Matar
para manter o segredo, agora, seria um risco grande
demais caso decidissem fazer isso. Seria muito fácil
ligarem mortes suspeitas em uma cidade do interior
ao Outro Mundo. Além disso, mantendo Laura no
casarão, tínhamos uma ótima forma de medir a
reação de uma humana convivendo conosco. O fato
de todos os metamorfos visitantes terem conhecido
Laura era algo que poderíamos usar a nosso favor.
Estava terminando de descer a escadaria quando
Jorge saiu do corredor que dava na cozinha e parou,
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me encarando.
— Ótimo.
Levantei uma sobrancelha. Aquilo tinha sido
rápido.
— Já estão discutindo?
Ele assentiu, indicando a cozinha com um
movimento de cabeça.
Jorge e Amara, sua esposa, eram os verdadeiros
responsáveis por manter o casarão funcionando. Os
dois eram fey e fortes o bastante para nenhum dos
metamorfos pensar em desafiá-los por diversão,
quando chegamos aqui. Eles eram de duas das raças
que eram protetoras e cuidadoras de casas, então
acabaram assumindo esse papel. Não tinha a menor
ilusão que ainda estaríamos ali, sem problemas, se
não fosse por eles, porque nem eu nem Paula
conseguiríamos manter as coisas básicas do casarão
organizadas. E, desde o começo, Jorge e Amara
haviam deixado claro que confiariam em mim – e
que eu pagaria se quebrasse essa confiança. Eu só
esperava que estivéssemos realmente fazendo a
coisa certa.
Entrei no corredor que levava para a cozinha.
Desde a escada já conseguia ouvir a discussão, mas
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eram pessoas demais falando ao mesmo tempo para


eu entender o que estavam dizendo. Mas dali eu já
conseguia ter uma boa noção do que estava
acontecendo.
— Isso é loucura.
— Isso é burrice, você quer dizer.
Sim, era loucura e burrice, mas continuava
sendo a única opção além de matar todos com
quem Isaac Ribeiro tivera contato. Parei apoiado no
batente da porta da cozinha, sem falar nada. As
duas mesas compridas estavam cheias, como eu
tinha imaginado, e as únicas pessoas que não
estavam entrando na discussão eram os que
estavam conosco quando Paula reconheceu o
humano. Eles entendiam.
— Não temos o menor direito de... — Daiane
começou.
— Isso é um rapto! — André interrompeu.
— Na verdade, é sequestro — falei.
Todos se calaram e olharam na minha direção.
Feys e metamorfos, todos eles. Paula era a única
bruxa no casarão, e ela já tinha ido para o sebo. E,
de todos eles, Ryan era o único que tinha chances
de ganhar se me desafiasse, mas ele era um dos que
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não falara nada. Ele entendia.


Me endireitei e entrei na cozinha, parando logo
antes das mesas e cruzando os braços.
— Uma boa parte de vocês conheceu Laura. Ela
vai vir para o casarão, e vai ficar aqui por tempo
indeterminado, como uma refém do silêncio do pai
dela. Isso não está aberto a discussão.
E nenhum deles precisava saber o quanto falar
aquilo me incomodava. Era a única coisa que podia
fazer.
— E quem pensou que isso era uma boa ideia?
— Lavínia perguntou.
Olhei para ela. Seu cabelo preto tinha mechas
brancas, o que nunca era um bom sinal. Mas, se ela
fosse atacar, já teria feito isto.
— A outra opção é matar todos com quem o
humano teve contato. Todos os trabalhadores no
terreno da construtora. Sua família, as pessoas das
lojas por onde passou.
— Se tivesse agido na hora... — ela começou.
— Teríamos que matar todos os trabalhadores
da construtora, do mesmo jeito — Rodrigo
interrompeu.

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— E qualquer um que prefira matar algumas


dezenas de humanos a achar uma solução
alternativa não deveria estar aqui no casarão.
Ninguém falou nada. Ótimo. Assim era melhor.
Eles não precisavam gostar daquilo, mas era
melhor entenderem logo o que estava em jogo.
— Laura vai ficar aqui, e nossa intenção é
transformar isso num experimento para o Conselho.
Provar que uma humana pode conviver conosco
sem problemas. Ou seja, não vou aceitar ninguém a
assustando deliberadamente, não me interessa se
gostam da ideia ou não. Ela não vai sair daqui, não
importa o quão assustada esteja, fui claro?
Alguns fey e um dos metamorfos desviaram o
olhar. Típico. Não tinha falado aquilo à toa. Seria
bem do feitio deles tentarem se livrar de Laura a
assustando até que ela fugisse.
— Lavínia, você vai ficar responsável por Laura
enquanto eu não estiver aqui.
Ela me encarou e mais mechas brancas
apareceram no seu cabelo.
— Eu não... — Ela parou e balançou a cabeça.
— É lua cheia.
Assenti. Eu não estaria no casarão naquela noite,
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nem do dia seguinte. Nem eu nem Paula, então


Lavínia era minha melhor opção. Ela era forte o
bastante para parar qualquer um que tivesse alguma
ideia sobre o que fazer com a humana no casarão.
Mesmo que estivesse irritada, eu sabia que podia
confiar nela.
— Rodrigo, você vai buscar Laura — avisei.
Ele assentiu e se levantou.

···
L AURA
AQUILO ERA UM PESADELO. SÓ PODIA SER UM PESADELO.
Encostei a cabeça na janela fechada do carro,
encarando as casas de Monte das Pedras passando
por nós. O cara que tinha ido me buscar – Rodrigo,
um dos que estava no bar quinta à noite – não
parava de falar, mas eu nem tentei prestar atenção
nele. Ainda não entrava na minha cabeça como
alguém que parecia ser tão... Tão normal pudesse
aceitar levar uma pessoa como refém. Não
importava quem ele era, se eu tinha achado ele
bonito quando o vi no bar ou qualquer outra coisa.
Rodrigo estava com Alexandre. Era cúmplice, no
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mínimo. Provavelmente um criminoso também.


Não eram nem nove horas da manhã. As lojas
ainda estavam todas fechadas e não tinha quase
ninguém na rua. Sábado de manhã. Dia de dormir
até tarde. Mas eu praticamente não tinha dormido.
Ainda estava com os olhos inchados por causa do
tanto que tinha chorado noite passada, enquanto
estava fazendo minhas malas. Quando consegui
dormir, os galos já estavam cantando. Acordei
pouco depois que amanheceu, porque tive um
pesadelo. Eu não me lembrava dele, só da sensação
ruim de ter certeza que ia morrer.
E, depois, tinha chorado outro tanto quando me
despedi de Marina e do meu pai. Minha mãe já
tinha descido para abrir a mercearia, por sorte, e eu
não queria falar com ela, de qualquer forma. Não
queria brigar. Meu pai contou que tinha falado com
ela que eu estava indo viajar. De acordo com ele,
aquilo tinha sido ideia de Alexandre, uma boa
desculpa para eu desaparecer sem que ninguém
estranhasse. Ninguém podia suspeitar do que estava
acontecendo, então eu precisava me lembrar
daquilo. Por sorte eu não era muito fã de fotos nem
vivia em redes sociais. Eu continuaria com meu
celular: se desaparecesse completamente alguém ia
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desconfiar. Mas precisava lembrar da história da


viagem, porque se pensassem que eu tinha contado
a verdade para alguém... Ele não precisava terminar
aquela frase.
Falso, tão falso. Para quê Alexandre tinha se
oferecido para me levar para casa depois de já ter
dado aquele ultimato para o meu pai? Queria
garantir que sua nova propriedade não ia ser
danificada no caminho? Argh. Respirei fundo,
fechando os olhos. E pensar que eu tinha começado
a imaginar que aquele medo que eu sentia sempre
que Alexandre estava por perto era exagero... Não
fazia ideia do quanto estava certa em ter medo.
Mas estava fazendo o que era certo. Ia valer a
pena. Eu ia descobrir um jeito de sair do casarão
sem ninguém morrer. E, mesmo se não
descobrisse... O que tinha a perder? Já tinha
quantos anos que estava jogando minha vida fora,
fazendo só o que esperavam de mim? De certa
forma, isso era a mesma coisa que antes... Só que
isso tinha vindo logo quando estava começando a
tentar fazer alguma coisa por mim. Não tive tempo
nem para pensar que essa minha ideia louca de
investir na coisa das ilustrações pudesse dar certo.

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Nem valia a pena continuar pensando nisso.


Estava decidido. Eu só esperava que pelo menos
Marina conseguisse fazer o que queria da vida. As
coisas tinham que dar certo para pelo menos uma
de nós.
Não demorou muito para estarmos fora da
cidade e eu ver a cerca alta que sabia que marcava
o terreno do casarão. A propriedade de Alexandre.
Eram os mesmos postes de madeira com arames
entre eles de qualquer cerca de fazenda, mas essa
era alta o bastante para me fazer pensar em Parque
dos Dinossauros sempre que passava por aqui
quando era mais nova. Aquela cena, não lembro em
qual dos filmes, que os personagens escalam uma
cerca elétrica ou algo assim. Já fazia anos que eu
não me lembrava daquilo, mas agora a cerca me
passava a mesma impressão: algo que deveria estar
mantendo os monstros do lado de lá, mas que não
tinha conseguido.
Pouco depois, viramos em uma estradinha de
terra. Rodrigo parou o carro para sair e abrir a
porteira, antes de voltar, passar para o outro lado da
cerca, e parar de novo para fechar a porteira. Eu
queria fechar os olhos e fingir que nada daquilo
estava acontecendo, mas não podia. Respirei fundo
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e tentei prestar atenção no caminho até o casarão.


Era melhor ter o máximo de informações possíveis
sobre onde eu estava, para o caso de ser possível
escapar depois.
Não que houvesse muito para ver: árvores, mais
árvores e, adivinha só, mais árvores. Eu não fazia
ideia de que aquele lugar fosse praticamente uma
mata. As árvores eram espaçadas, quase como se
tivessem sido plantadas ali, não que aquilo fizesse
sentido. Quer dizer, não era uma plantação de nada
e eu só tinha visto tantas árvores assim naquelas
áreas de plantação de eucalipto.
Uns poucos minutos depois, as árvores deram
lugar para a grama bem cuidada e depois um
daqueles jardins perfeitamente organizados. Jardim
francês, eu acho, com canteiros em forma regulares
e todas as plantas sob controle. Estava tão fora do
ar que mal conseguia prestar atenção, só notei que
ele tinha vários tipos de rosas. O casarão estava
logo depois do jardim e o encarei enquanto Rodrigo
manobrava o carro para estacionar.
Quando estava no segundo ano no colégio,
precisei fazer uma pesquisa sobre o casarão. Ele
tinha um nome, que nem essas mansões e palacetes

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históricos, mas eu não conseguia me lembrar de


qual era. Mas me lembrava do que tinha aprendido
na época dessa pesquisa. O casarão colonial estava
ali desde antes de Monte das Pedras ser uma cidade
propriamente dita. Talvez desde antes de ser uma
vila. Antes, ele era a sede de uma fazenda
importante, que vendia... Alguma coisa. Não me
lembrava mais. Até que quando a cidade começou a
crescer – se é que eu posso dizer que Monte das
Pedras “cresceu” – boa parte das terras foi vendida
e só ficou o casarão e a área ao seu redor. A família
que era dona da fazenda se mudou de Monte das
Pedras na mesma época e ninguém morava ali até
Alexandre aparecer. Alguém tinha cuidado da
propriedade e do casarão, certo, mas ninguém
entrava lá.
Na época da pesquisa, eu tinha conseguido
achar algumas fotos antigas e o que eu via agora
era o mesmo das fotos, mas em cores: uma casa
enorme, quadrada, com quatro andares, janelas
grandes e sacadas pequenas na frente de quase
todas as janelas. Que, aliás, eram de um tom
amarelo desbotado com detalhes brancos – e eu não
fazia ideia de como conseguiam manter aquilo
limpo. As janelas eram de madeira escura e a
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maioria estava aberta, mesmo que eu não


conseguisse ver nada lá dentro. Na frente da casa, a
parte onde ficava a porta também de madeira
escura fazia uma reentrância pequena, e contei
cinco degraus para chegar até lá. Nada de anormal.
Eu ainda achava que aquele lugar deveria ser
chamado de solar, palacete, qualquer coisa menos
casarão, mas tinha visto várias construções no
mesmo estilo enquanto estava em BH e nas viagens
que fiz com amigos.
Nada de anormal... A não ser o fato de que o
casarão estava num lugar que, na época em que foi
construído, era literalmente o meio do nada. Se
bem que essa era a lógica de fazendas enormes, não
era?
Soltei um suspiro resignado enquanto abria a
porta do carro e saía, fazendo uma careta quando
coloquei minha mochila nas costas. Estava pesada.
Rodrigo já estava dando a volta no carro e
gesticulou na direção da porta do casarão quando
me virei para o porta-malas.
— Vamos levar as malas para o seu quarto, não
precisa se preocupar com elas.
Abri a boca para insistir em subir com elas, mas
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ele levantou uma sobrancelha e indicou a porta do


casarão com a cabeça. Suspirando de novo, me
virei para lá. A porta estava aberta e outro homem
estava parado lá. Acho que eu estava imaginando
que ia dar de cara com Alexandre, mas era óbvio
que o chefão da coisa toda não ia estar me
esperando.
Mesmo que o tal chefão tivesse elogiado minhas
ilustrações e me acompanhado até em casa para
Rick não fazer nada. Soltei o ar pela boca, de forma
audível. Ele provavelmente tinha me acompanhado
só para ter certeza de que teria sua refém. Eu não
podia confiar em nada nem ninguém ali. Não fazia
ideia do que estavam fazendo, do que meu pai tinha
visto, do que poderia piorar minha situação...
E Rick. Eu não tinha nem lembrado dele. Não
que precisasse, mas... Também não tinha lembrado
das meninas. Bruna, Gisele, Samara, Cris... Não
tinha nem pensado em falar alguma coisa com elas.
Pelo menos tinham me deixado ficar com meu
celular, ia poder dar sinal de vida. Não era isso que
queriam? Que eu desse sinal de vida o suficiente
para ninguém se preocupar?
— Laura?

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Balancei a cabeça, só para Rodrigo saber que eu


tinha ouvido, e apertei as alças da minha mochila.
Não queria dar nem um passo na direção da porta.
Depois que eu entrasse ali, ia ter acabado. Não teria
mais volta. Eu ia ser uma prisioneira de um bando
de traficantes.
Com o canto dos olhos, vi quando Rodrigo
cruzou os braços e se apoiou no carro. Eu quase
queria agradecer por ele não estar falando nada,
nem me mandando entrar logo. Não que aquilo
merecesse um agradecimento.
A tal cerca estilo Parque dos Dinossauros com
certeza não manteve os monstros aqui dentro, mas
eu sabia que ia me manter aqui. Não adiantava me
iludir achando que fazia alguma diferença estar
dentro do casarão ou não. Não tinha mais volta,
desde que entramos na propriedade de Alexandre.
Eu tinha aceitado isso. Tinha concordado em ser
uma refém aqui para que não matassem toda a
família. Não adiantava mais tentar fugir. Pelo
menos, não agora, sem saber exatamente com o que
eu estava mexendo. Ia sair dali. Mas primeiro
precisava ter certeza de que ninguém ia ser morto
por causa do que meu pai viu.

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Respirei fundo e subi os cinco degraus, ainda


apertando as alças da minha mochila. O homem
que estava na porta se afastou para me deixar
passar, antes de gesticular para Rodrigo. Dei mais
alguns passos para dentro do casarão, sentindo
como se algo estivesse me sufocando lentamente.
Precisei parar e fechar os olhos para a sensação
desaparecer, e só então consegui olhar ao redor.
Estava em um saguão comprido e iluminado.
Era estranho que não tivesse conseguido ver nada
quando estava do lado de fora, porque as janelas
estavam abertas e a luz do sol batia no chão claro e
polido. O saguão estava vazio, sem nenhuma
mobília, e bem na minha frente estava uma
escadaria de madeira escura. Ela se abria para os
dois lados, subindo para o andar de cima. De cada
lado da escadaria saía um corredor e eu podia ver
várias portas, a maioria fechadas.
— Alexandre está esperando por você.
Dei um pulo quando ouvi a voz do homem.
Tinha me esquecido completamente que ele estava
ali. Foco, Laura. Eu não podia ficar distraída assim
se quisesse achar um jeito de resolver isso. Assenti,
me virando para ele e apertando as alças da mochila

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com mais força ainda.


O homem me levou pelo corredor à nossa
direita, passando por três portas fechadas e uma
aberta, mas andando tão depressa que não consegui
ver o que tinha lá dentro. Encarei suas costas,
tentando não pensar no que ia acontecer comigo.
Ele era muito alto e largo, mas eu não conseguia
dizer se era gordo, musculoso, ou uma combinação
dos dois. Estava usando calça jeans e uma blusa
marrom-claro com linhas horizontais finas verde
escuro. De relance, ele tinha parecido ser pouco
mais velho que eu, mas pela blusa eu jogaria sua
idade um tanto para cima – era o tipo de blusa que
meu pai costumava comprar, apesar de eu nunca ter
visto uma daquelas cores antes.
Ele parou na frente da porta seguinte, também
fechada, e bateu. Esperei algum tipo de resposta,
enquanto mexia em um buraquinho no tecido da
alça da minha mochila, mas não ouvi nada antes do
homem abrir a porta e gesticular para que eu
entrasse.
A sala era um escritório, obviamente, mas mal
consegui olhar ao redor. Alexandre estava sentado
atrás de uma mesa antiga, feita da mesma madeira

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escura das portas. Dei dois passos para dentro e


parei, olhando para a parede atrás dele, sem
conseguir sustentar o seu olhar. Era o mesmo olhar
da noite passada, de quando ele me deixou em casa.
Eu até pensei que havia começado a relaxar perto
dele, mas aquela expressão e a forma como eu não
queria dar nem mais um passo deixavam claro que
não tinha. Ou, se tivesse, tinha aprendido que
aquilo era uma má ideia.
Dei um pulo quando a porta se fechou com um
ruído seco. Estava trancada ali com Alexandre, o
chefão dos traficantes ou fosse lá o que fossem. Ele
podia fazer literalmente qualquer coisa comigo e
ninguém ia me ajudar. Engoli em seco, querendo
olhar ao redor mas sem conseguir desviar minha
atenção. Alexandre podia me matar ali – eu tinha
me colocado nas mãos dele por vontade própria – e
ninguém ia fazer nada. Eu não ia conseguir fazer
nada. E eu preferia ver a morte vindo, se era isso
que ia acontecer.
— Se eu quisesse alguém para torturar, matar,
ou qualquer outra coisa que você esteja pensando,
teria usado seu pai mesmo — Alexandre falou e
precisei fazer um esforço para não dar um passo
atrás. Nunca sua voz tinha parecido tanto uma
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ameaça.
Engoli em seco de novo quando senti seu olhar
em mim. E o estranho era que eu realmente podia
sentir aquilo. Uma parte de mim, algum instinto,
entendia que um predador estava me encarando, eu
era a presa, e não tinha boas opções. Se fugisse, ele
me caçaria. Se ficasse...
Soltei uma respiração trêmula, tentando me
acalmar. A música do Ney Matogrosso que tinha
grudado na minha cabeça também não ajudava,
especialmente porque só ficava repetindo aqueles
dois versos. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho
come. Respirei fundo mais uma vez, ainda
encarando algum lugar atrás de Alexandre para não
precisar sustentar seu olhar.
— Então o que quer comigo? — Minha voz saiu
fraca.
Alexandre se inclinou para trás na cadeira,
fazendo meu olhar parar no seu rosto. Desviei os
olhos depressa, encarando um ponto um pouco para
o lado na parede.
— Você vai ser a primeira a morrer se seu pai
contar sobre o que viu de alguma forma. E se você
revelar qualquer coisa sobre onde está e por quê,
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você e toda a sua família vão morrer, também. Fora


isso... — Ele deu de ombros e o movimento me fez
lembrar do dia que ele viu minhas ilustrações. Ele
tinha parecido casual... Ou pelo menos uma pessoa
normal. — Você está livre aqui dentro. Não vamos
fiscalizar seu celular ou seu notebook, só se lembre
do que vai acontecer se nos entregar. E, quando
tivermos algum assunto a tratar que você não possa
saber, alguém vai avisar para que fique no seu
quarto.
Eu balancei a cabeça, sem ter certeza de que
estava entendendo o que estava ouvindo. Ele não ia
fazer nada comigo? Eu só precisava ficar ali? Soltei
um suspiro aliviado ao mesmo tempo em que sentia
minhas pernas bambearem. Alexandre estreitou os
olhos e de alguma forma eu consegui continuar de
pé. Ele começou a se levantar, mas me virei para
sair, com a visão embaçada, tateando a porta até
conseguir achar a maçaneta.

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CAPÍTULO SETE

L AURA
EU AINDA NÃO CONSEGUIA ACREDITAR NO QUE ESTAVA
acontecendo. Nada fazia sentido. Nada. Só podia
ser um sonho. Um pesadelo, na verdade. Por que
me queriam ali, se não iam fazer nada comigo? Não
que eu estivesse reclamando, mas... Não fazia
sentido.
Eu só conseguia pensar nisso enquanto o mesmo
homem de antes me levava escada acima. Ele
estava falando alguma coisa, mas não conseguia
prestar atenção, só o segui de forma mecânica até o
segundo andar, e então dando a volta no vão da
escada para subir para o terceiro andar. Não havia
ninguém nos corredores ou na escada, mas eu sabia
que alguém estava me observando. Vários alguéns,
na verdade. Me lembrava bem de quantas pessoas

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tinham falado que moravam ali aquela noite, no


bar... Que parecia ter sido uma vida atrás.
Apertei as alças da minha mochila com força
quando o homem parou na frente de uma porta de
madeira escura como as outras e a abriu. A
primeira coisa que vi foram minhas duas malas de
pé ao lado de uma cama de casal com dossel. Tive
a impressão de ouvir um “se precisar de qualquer
coisa é só chamar” antes da porta se fechar atrás de
mim, mas não tinha certeza.
Isso estava acontecendo. Eu estava no casarão,
presa ali por sabe-se lá quanto tempo, sob uma
ameaça de morte, nas mãos de uma quadrilha... E
tinham me dado um quarto enorme com uma cama
de dossel. De alguma forma, aquilo parecia mais
absurdo que tudo até então e eu comecei a rir
enquanto ia na direção da cama e colocava minha
mochila no chão, ao lado das malas.
Sabia que minha risada era histérica, mas não
conseguia controlar. Me sentei na cama, olhando ao
redor sem realmente ver o quarto, antes de me
deixar cair nos travesseiros.
Não demorou muito para a risada virar soluços e
então um choro desesperado.
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O que eu ia fazer?
Perdi completamente a noção das horas. Chorei
até não conseguir mais chorar, e mesmo assim não
saí de onde estava. Como minha vida podia ter
dado tão errado? Como? Por que tudo tinha que
acontecer justamente comigo? Por que meus planos
não podiam dar certo pelo menos uma vez?
Mas, no fim das contas, não era a primeira vez
que eu me sentia assim. E dessa vez eu tinha um
plano que podia dar certo, que podia até funcionar
melhor por causa disso. Respirei fundo, tentando
me acalmar. Se eles não iam fazer nada comigo e
eu precisava manter contato com as pessoas que
conhecia para ninguém imaginar nada estranho,
isso queria dizer que eu ia ter acesso a internet.
Então aquela ideia de aproveitar esse tempo para
começar a trabalhar como freelancer e juntar um
dinheiro era possível. E o melhor: ia poder fazer
isso sem ninguém me enchendo o saco ou
perguntando a respeito. Pelo menos, eu esperava
que sim.
Respirei fundo de novo e me sentei, passando as
mãos no rosto com força. Não adiantava pirar. Já
estava ali, já tinha tomado minha decisão. Precisava

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fazer alguma coisa, ou pelo menos focar só no que


podia fazer. Era isso ou ficar louca de vez pensando
em como tudo estava dando errado e como parecia
que nunca havia nenhuma boa escolha para mim.
Olhei ao redor, só então prestando atenção no
quarto. Dois criados-mudos estavam de cada lado
da cama, um deles vazio e o que estava mais perto
de mim com um abajur. Um guarda-roupas enorme
estava encostado na mesma parede onde ficava a
porta. Me virei na cama. Havia uma penteadeira
encostada na outra parede, com uma cadeira na
frente dela, e um espelho de corpo inteiro ao seu
lado. E a última parede tinha duas janelas/portas
que aparentemente davam para uma sacada. Me
levantei e dei dois passos na sua direção antes de
lembrar que se fugisse naquele momento ia ser
pior. Ainda conseguia ouvir meu pai me falando
que estavam dispostos a matar a família toda. Então
respirei fundo e voltei a prestar atenção no quarto.
Todos os móveis eram antigos e feitos de
madeira escura. Encarei um dos criados-mudos,
reparando nos detalhes entalhados nele.
Definitivamente antigos e provavelmente bem
caros. Se bem que eu não fazia ideia de se era
possível serem os mesmos móveis de quando o
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casarão foi construído. Essas coisas antigas


costumam durar bastante, mas...
As paredes eram do mesmo tom pêssego que eu
tinha visto no restante do casarão, e o teto... Caí
sentada na cama para olhar melhor. O teto era
decorado, seguindo o mesmo esquema de cores
quentes, com arabescos florais e um lustre.
Balancei a cabeça, olhando de um lado para o outro
e tentando prestar atenção em todos os detalhes.
Bem que eu tinha falado que esse lugar não devia
ser chamado de “casarão”. Pelo que eu sabia, só
solares e palacetes tinham aquele tipo de teto. E
tinha um lustre no meu quarto.
Fechei os olhos e respirei fundo. Bem-vinda à
sua nova realidade, Laura. Você vai ser nossa
prisioneira, mas isso não impede que tenha todos
os luxos. Rá! Bufei, balançando a cabeça. Luxo
seria se eu estivesse em uma suíte, porque assim ia
poder me trancar ali por mais tempo. Não que isso
fosse adiantar muito.
Dei um pulo na cama quando uma batida na
porta me puxou de volta para a realidade. Abri os
olhos, encarando a porta sem saber o que fazer.
Não confiava que não iam fazer nada comigo,

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estava sozinha ali e...


— Laura? É a Lavínia. Posso entrar?
Precisei de um instante para me lembrar de
quem era Lavínia. A mulher que tinha puxado a
cadeira para mim no bar, certo. Alexandre tinha me
falado seu nome. Respirei fundo de novo. Não
queria que ela entrasse. Não queria nada com
ninguém. Mas não ia adiantar querer me trancar ali,
e era melhor falar com ela do que com Alexandre.
Ou com Paula. Engoli em seco. Paula sabia do
que estava acontecendo. Não tinha outra explicação
para as visitas de Alexandre e a tensão dos dois na
sexta. Ela sabia. E não tinha feito nada.
Respirei fundo de novo, segurando as lágrimas.
Não ia chorar de novo, e muito menos por alguém
que tinha enfiado uma faca nas minhas costas como
ela. Não, eu ia dar um jeito de sair dali, isso sim. E,
se possível, dar o troco.
— Entra! — respondi.
A porta se abriu devagar e Lavínia enfiou a
cabeça para dentro, antes de assentir e entrar. Pelo
que me lembrava da conversa no bar, ela era uma
das que morava ali, e mesmo se não me lembrasse
suas roupas iam ter me contado isso: uma calça de
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ginástica um pouco larga e uma camiseta que um


dia tinha sido azul, mas que já era quase cinza de
tão desbotada. Eu não conseguia enfiar na cabeça
que uma mulher tão comum quanto ela pudesse
estar envolvida com um bando de criminosos, mas
se ela estava ali era um deles.
— Achamos melhor que eu viesse falar com
você enquanto Alexandre está fora — ela começou
assim que fechou a porta atrás de si. — Pelo menos
já me conhece e...
Ela deu de ombros, obviamente desconfortável.
Que ótimo, pelo menos ela não estava achando
aquilo tudo normal.
Não falei nada. Sabia que estava sendo mal-
educada e que não estava com raiva de Lavínia,
especificamente, mas não me importava. Ela estava
no meio disso tudo. Mesmo assim, ela tinha razão.
Era melhor ver um rosto conhecido, mesmo que o
“conhecer” se resumisse a alguns minutos no sebo
e uma noite bebendo.
Lavínia suspirou e virou a cadeira que estava na
frente da penteadeira, antes de se sentar e inclinar o
corpo para a frente. Pelo menos ela tinha bom
senso o suficiente para não vir sentar do meu lado.
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— Como você está?


— Como você acha que estou? — A resposta foi
automática.
Ela fez uma careta.
— Pergunta idiota, resposta mais que merecida.
Levantei as sobrancelhas e dei de ombros. Se
era isso que ela tinha para falar, eu nem tinha o que
dizer. Por mais que soubesse que precisava
entender onde eu estava, como as coisas iam
funcionar para mim ali, não conseguia me forçar a
perguntar nada ou começar qualquer tipo de
assunto.
— Tá, eu sei que essa situação é uma merda. Eu
sei. Todo mundo aqui sabe. Mas era a... A opção
menos pior. A única coisa que podemos fazer é
tentar deixar isso ser o melhor possível para você.
— Claro, ficar presa com um bando de
traficantes e sob ameaça de morte. Isso é o melhor
possível. — O resmungo escapou antes de eu
pensar no que estava falando.
— Foi isso que seu pai te falou? Que somos um
bando de traficantes?
Engoli em seco. Não sabia o que estava vendo

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na expressão de Lavínia, mas tinha alguma coisa


ali que fez um arrepio me atravessar. Eu me
lembrava muito bem do medo do meu pai e de
como ele parecia ter envelhecido dez anos em um
dia. Se Lavínia estava me deixando assim, eu não
conseguia nem achar aquilo estranho mais.
— Ele não falou nada — respondi depressa. —
Só disse que não podia comentar nada. Eu deduzi o
resto, é meio óbvio que ele deve ter visto alguma
coisa bem ilegal para fazerem isso tudo.
Lavínia bufou e sorriu. Soltei um suspiro
aliviado, sem entender porque tinha ficado tão
tensa de repente, sem nenhum motivo.
— Ilegal. — Ela balançou a cabeça, ainda
sorrindo. — É uma forma de ver as coisas.
Não falei nada. Não tinha o que dizer.
Ela riu, ainda balançando a cabeça, e de repente
eu não sabia se tinha visto alguma coisa na
expressão dela ou se era só minha imaginação ou
coisa do tipo. Não tinha como eu sentir medo de
Lavínia. Não fazia sentido.
— Bom, sendo assim... — Ela olhou ao redor.
— Precisa de mais alguma coisa? Algum móvel,
talvez mais umas cadeiras, um tapete...
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E como ela agia como se tudo aquilo fosse


perfeitamente normal? Nada era normal ali. Nada.
Respirei fundo e olhei ao redor de novo. Estava
acostumada com bem menos do que tinha naquele
quarto – minhas malas não iam encher metade do
guarda roupa. Mas já que ela estava oferecendo...
— Uma escrivaninha? Ou só uma mesa mesmo.
E uma cadeira confortável.
Lavínia inclinou a cabeça antes de olhar direto
para minha mochila no chão. Eu sabia que não
precisava falar nada, dava para ver que era uma
daquelas mochilas próprias para carregar notebook.
— Eu devia ter lembrado. — Ela assentiu. —
Vou pedir para trazerem uma mesa e acho que
temos uma cadeira de escritório sobrando em
algum lugar. E agora vamos que vou te mostrar
onde ficam os banheiros e a cozinha. E te passar a
senha do wi-fi.
Me levantei e acompanhei Lavínia quase sem
perceber o que estava fazendo. De que ela devia ter
se lembrado? Eu não tinha falado nada sobre
computador quando estávamos no bar. Mas talvez
Alexandre tivesse mencionado minhas ilustrações.
E eu não queria nem pensar naquela possibilidade.
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Na verdade, eu não queria sair do quarto. Parei


por um instante, enquanto Lavínia abria a porta.
Podia escolher ficar ali. Se ninguém ia fazer nada
comigo, não precisava obedecer tudo o que
falavam.
Minha barriga roncando decidiu por mim.
Precisava comer. E era melhor conhecer o lugar
onde eu estava se quisesse dar um jeito de sair dali.

···
ENCAREI A TELA DO NOTEBOOK, TENTANDO NÃO CHORAR.
Precisava terminar de planejar a tal “viagem”, mas
não conseguia. Só ficava olhando para as imagens
no Google, vendo todos os lugares que queria
conhecer e que dificilmente conseguiria. De que
adiantava sonhar alto? Só servia para me derrubar
depois. Tinha sido assim quando briguei para ir
estudar em BH – eu tinha certeza de que ia dar um
jeito de ter a vida que queria, sem precisar voltar
para casa. Que as coisas iam dar certo de algum
jeito. E agora, quando eu estava começando a
sonhar de novo, isso.
E, como se não bastasse, eu estava com medo.
Não o medo de antes, de quando cheguei. Era uma
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sensação gelada na boca do estômago que me dizia


que alguma coisa estava muito errada, mas eu não
conseguia pensar no que mais poderia dar errado.
Sabia que tinha descido para a cozinha com
Lavínia, ontem. Tinha uma vaga lembrança de
mesas de madeira compridas e umas tantas pessoas
sentadas ao redor delas, mas...
Duas batidas na porta me fizeram levantar a
cabeça. A mesa que tinham trazido para mim estava
no rumo da porta, e por um instante pensei
seriamente em correr para a cama e fingir que
estava dormindo. Não era mais uma criança de oito
anos para fazer isso. Vinte e quatro anos deveria ser
mais que o suficiente para eu conseguir mandar
quem quer que fosse me deixar em paz, ao invés de
precisar fingir.
— Quem é?
— Sou eu.
Lavínia.
Eu esperava muito que ela não estivesse ali para
tentar me convencer a descer de novo. Não ia fazer
isso. De jeito nenhum. Já estava gelada só de
pensar na possibilidade, mas... Não sabia o que
tinha acontecido. Ou melhor, tinha a impressão de
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me lembrar de alguns momentos soltos, mas eram


borrões. Nem na época que bebia feito uma louca
com Camila aquilo tinha acontecido. Será que
tinham me dado alguma coisa? Não duvidava de
mais nada vindo de pessoas que sabiam que eu
estava ali e concordavam com isso. Talvez aquela
sensação estranha fosse “só” isso. Uma forma do
meu corpo me lembrar de não sair daqui, mesmo
que eu não conseguisse me lembrar do que
acontecera ontem.
Pelo menos, quando acordei eu não tinha
nenhuma dúvida de onde estava ou do que tinha
acontecido. Se aquilo era um pesadelo, eu estava
vivendo dentro dele. E não queria ver nenhuma das
pessoas que estavam agindo como se fosse
perfeitamente normal me prenderem ali. Sabia que
ia ter que sair do quarto e que em algum momento
ia acabar querendo fazer alguma coisa além de ficar
trancada ali. Mas não ia sair antes que fosse
absolutamente necessário, então não tinha descido
para comer. Já eram quase duas horas da tarde, meu
estômago estava roncando, e eu continuava sem
querer descer.
— Laura? — Lavínia chamou de novo.

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— Entra.
Ela entrou, fechando a porta atrás de si, e vi que
estava carregando um pote de plástico azul com
tampa branca.
— Imaginei que não ia querer descer para
comer.
Engoli em seco. Não queria mesmo.
Lavínia colocou a vasilha na mesa, ao meu lado,
e foi na direção de uma das portas para a sacada.
Sem dizer nada, ela puxou a cortina fina que eu
tinha deixado fechada e parou olhando para fora.
Obviamente eu já tinha testado as portas. Elas
estavam trancadas e eu só conseguia abrir os
vidros. Nada de sair para a sacada, mesmo que
estivéssemos no terceiro andar e fosse impossível
pular.
— Não sei o que você lembra de ontem à noite,
mas por enquanto é melhor você não sair do quarto
depois que escurecer — ela falou, sem se virar para
mim.
Bati os pés na base da cadeira, tentando me
distrair. Não conseguia me lembrar de nada depois
que escureceu, nem queria. Na verdade, quase
conseguia ver um flash de alguém entrando na
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cozinha e outra pessoa me empurrando. Engoli em


seco e apertei os braços da cadeira para esconder
como minhas mãos estavam tremendo. Não me
lembrava, não queria me lembrar, e agora entendia
melhor por que não queria descer para a cozinha.
— Certo — murmurei e me virei de volta para o
notebook.
As fotos da Nova Zelândia me encararam de
volta e soltei um suspiro. Era uma boa ideia. Era a
melhor ideia, na verdade: o mais longe possível e
com atrativos o suficiente para ninguém estranhar
se eu demorasse a dar sinal de vida. Se eu falasse
que estava indo para lá, ia ter algum tempo de
sossego para pensar melhor no que fazer sem ter
que me preocupar com pessoas pedindo notícias.
Por algum motivo – provavelmente alguma coisa
relacionada ao que acontecera na cozinha – eu tinha
acordado decidida a não deixar ninguém nem
suspeitar do que estava acontecendo. Eu não me
lembrava, mas tinha certeza de que meu pai tinha
dado de cara com algum problema muito maior do
que eu havia pensado.
— Nova Zelândia?
Dei um pulo na cadeira quando ouvi a voz de
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Lavínia bem atrás de mim. Não tinha ouvido ela se


aproximar.
— É uma boa opção. E você tem a Micronésia
bem ali também, se sua intenção é escolher lugares
onde pode se demorar e esquecer que tem celular
— ela comentou como se não tivesse notado minha
reação.
Era exatamente aquilo que eu queria, mas eu
também queria gritar com Lavínia, fazer qualquer
coisa. Como ela podia fazer aquele tipo de
comentário como se fosse algo perfeitamente
normal que eu estivesse planejando uma viagem
falsa para esconder que estava presa ali?
Mas eu não podia. Engoli em seco, me forçando
a ser fria. Não podia pirar. E Lavínia era a única
pessoa que estava conversando comigo... Não que
eu quisesse conhecer as outras pessoas que estavam
ali. Ela era minha melhor chance de conseguir
informações e de entender o que estava
acontecendo.
— Foi isso que pensei — falei, girando a
cadeira para me virar para ela.
Lavínia assentiu, olhando para o notebook antes
de me encarar.
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— Mas se falar que está indo para a Nova


Zelândia, não vão estranhar você não postar fotos?
Balancei a cabeça.
— Não gosto muito de fotos. Quer dizer, gosto,
mas não de mim, e nem para ficar postando. E não
sou a pessoa mais ativa do mundo em redes sociais.
— Dei de ombros. — Ninguém vai estranhar.
Era mais fácil estranharem eu estar viajando. E
normalmente ninguém nem ia nem procurar
notícias minhas por uns dias, então pensei que ia ter
tempo para pensar nessa viagem falsa com calma.
Mas não, lei de Murphy: se alguma coisa pode dar
errado, vai dar. Era óbvio que justamente naquele
domingo todo mundo tinha me procurado. Camila
me mandando mensagem não era uma surpresa,
tinha conversado com ela na quinta à noite,
recebido os links que Felipe mandou, e depois não
falei mais nada. Era quase óbvio que ela ia pedir
notícias. E eu não precisava falar que estava
viajando para ela. Na verdade, era melhor não falar.
Para fazer qualquer viagem para outros estados
saindo de Morro das Pedras eu ia precisar passar
por BH. E se eu falasse que tinha passado por lá e
não havia avisado, ela ia arrancar meu couro. Não.

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Não ia fazer diferença para ela se eu tinha sumido


de casa ou não.
Gisele, Samara e Bruna eram outra história.
Aparentemente elas tinham passado na minha casa
antes da missa, para irem comigo, o que era uma
forma nada discreta de dizer que queriam as
fofocas direto da fonte. Pelas mensagens delas eu
podia imaginar que minha mãe falara umas poucas
e boas sobre a tal viagem que meu pai ajudou a
acobertar. Na verdade, uma das mensagens de
Samara dizia que “eu estava tendo menos
consideração com minha família que o normal”.
Obviamente, eu não tinha respondido. Cresci
ouvindo que precisava ter consideração com minha
família, que precisava pensar nos meus pais... E
quando é que eu ia pensar em mim? Quando é que
alguém ia pensar em mim? Olha só onde eu estava
por causa dessa maldita consideração...
Respirei fundo e balancei a cabeça antes de
voltar a encarar a tela do notebook.
— Falei com as meninas que estava em São
Paulo, esperando meu voo, e estou ignorando as
mensagens delas perguntando sobre a viagem
enquanto não tenho certeza do que vou fazer.

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Lavínia parou ao meu lado, estreitando os olhos.


— Bom, se ninguém vai estranhar você não
postar fotos, realmente Nova Zelândia é uma boa. E
se precisar, consigo arrumar algumas fotos de
lugares específicos que você pode usar.
— Obrigada.
Lavínia soltou um suspiro antes de dar a volta
na mesa, batendo na tampa do pote com as unhas.
— Coma. Mais tarde subo com o jantar para
você. E se precisar de qualquer coisa é só chegar no
corredor e pedir alguém para me chamar. Ninguém
vai fazer nada com você.
Assenti, engolindo em seco enquanto ela saía do
quarto. Por que tinha a impressão de que alguém
tinha tentado fazer alguma coisa comigo?
O que quer que fosse, eu não queria me lembrar.
Não. Queria.
Peguei meu celular e comecei a responder as
mensagens, dizendo que estava indo para a Nova
Zelândia. A história era que eu tinha passado esses
anos juntando dinheiro, conseguira comprar
passagens numa promoção e estava indo na cara e
na coragem. E eu realmente esperava que ninguém
duvidasse ou pressionasse.
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Bruna: Quanto tempo você vai ficar viajando?


Encarei a mensagem, sem saber como
responder. Ninguém tinha tocado nesse assunto.
Quanto tempo iam querer me manter ali?
Alexandre só tinha falado que eu não podia sair e
nem deixar ninguém suspeitar do que estava
acontecendo de verdade, mas nunca mencionou
nada sobre por quanto tempo.
Tampei a boca com a mão enquanto meus olhos
começavam a arder de novo. Ele não podia estar
pensando em me manter ali pelo resto da vida. Não
podia. Eu tinha que sair dali em algum momento,
senão...
Respirei fundo e apertei os braços da cadeira.
Precisava dar um jeito. Talvez pudesse denunciá-
los, não sei. Meu pai tinha certeza de que iam
descobrir no momento em que alguém falasse
alguma coisa, mas talvez ele só estivesse assustado
demais. Não podia fazer isso ainda porque tinha
certeza de que estavam vigiando tudo o que eu
estava fazendo, mas... Precisava fazer alguma
coisa. Precisava pelo menos saber o que ia
acontecer comigo. E aí ia pensar em como juntar
provas para denunciar o que estavam fazendo.

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Não queria sair do quarto, mas precisava de


respostas. E a única pessoa que ia poder me
responder isso era Alexandre. Um arrepio me
atravessou quando pensei no nome dele, e não era
um arrepio bom. Era aquele arrepio de quando você
está andando sozinha na rua, de noite, e escuta
passos. Mas não adiantava me trancar ali.
Respirei fundo e abri a porta, saindo para o
corredor.

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CAPÍTULO OITO

L AURA
FICO ENCARANDO A PORTA, SEM TER CERTEZA DO QUE
aconteceu. Bruxa. Como que uma coisa dessas
pode ser possível? Como? Mas, da mesma forma...
Como Paula conseguiu me segurar? E o que é esse
brilho esverdeado que ainda consigo ver nas
janelas? Não tem outra explicação.
Paula é uma bruxa.
Tá, alguém virar para mim e dizer que é uma
bruxa não me surpreende tanto assim. Conheci
umas tantas pessoas em BH que diziam que eram
bruxos, o pessoal da Wicca e outras tradições
pagãs. Mas isso é diferente daquilo. O que Paula
fez... Isso não devia ser possível. Não tem como ser
real.
Olho para as janelas de novo e engulo em seco.
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Eu ainda estou vendo o brilho verde e sei que não


tem nada ali. Não tem como ser um truque. Eu já
mexi nas janelas de todas as formas para tentar sair
para a sacada, não tem nada de diferente nelas.
Nenhum tipo de luz escondida ou coisa assim. E
mesmo que tivesse, isso não explicaria o que
aconteceu lá embaixo.
Caio sentada na cadeira, ainda olhando para as
janelas. Isso não pode estar acontecendo. Mas está.
De alguma forma, está. Paula é uma bruxa. Ela me
segurou com esse poderzinho verde que agora que
está sumindo das janelas.
Balanço a cabeça de novo. Quero insistir e falar
que isso não é possível, mas não posso. Meu Deus.
Isso realmente aconteceu. Isso realmente está
acontecendo.
Eu estou presa em uma casa com um bando de
criminosos e uma bruxa. Se é que ela é a única
aqui.
O que aconteceu ontem à noite na cozinha?
Fecho os olhos, tentando me lembrar. Preciso me
lembrar. Posso só ter impressões sobre o que
aconteceu, mas tenho certeza de que isso tem
alguma coisa a ver com Paula. Será que foi ela que
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apagou minha memória?


Viro a cadeira para a mesa, apoio os cotovelos
nela e escondo o rosto na mão. Preciso pensar,
preciso me lembrar. Essa coisa toda é absurda e eu
tenho a impressão de que tudo ao meu redor está
girando, cada vez mais depressa, e que se eu não
entender o que está acontecendo e me segurar, vou
ser arremessada longe.
Isso não faz sentido. Mas nada faz sentido.
Noite passada. O que aconteceu? Estava
tentando não pensar nisso e naquela sensação
gelada na boca do meu estômago, mas agora... Será
que foi Lavínia quem tentou apagar minha
memória? Um arrepio me atravessa. Ela parecia tão
normal, tão amigável apesar de tudo, não é
possível...
Respiro fundo. Não. Eu não posso começar com
isso, pensar que qualquer um aqui pode ser um
bruxo também. Ou sabe-se lá o quê. Se fizer isso
vou ficar louca.
Isso se eu já não estiver louca. Bruxa.
— Puta merda.
Não costumo falar palavrão, mas não tem outra
coisa que eu possa falar agora.
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Respiro fundo de novo e solto o ar lentamente,


ainda sem levantar a cabeça. Foco. Foco. Preciso
tentar me lembrar do que aconteceu. Alguém
entrou na cozinha e eu fui empurrada. Nada
demais. Então por que eu estou tremendo?
Levanto a cabeça e me inclino para trás na
cadeira, fechando os olhos. Eu estava na cozinha.
Estava conversando com alguém... Acho que
Rodrigo, o motorista, estava lá. Lavínia e mais
alguém. Puxo o ar e o solto pela boca, lentamente.
A cozinheira? Acho que alguém mencionou que ela
era casada com outra pessoa que eu já tinha visto...
Não. Não é isso. Não preciso saber o que
conversamos ou me lembrar nomes. Preciso saber o
que aconteceu para eu voltar para o quarto. A
pessoa entrando na cozinha...
Garras. Eu vi garras. Mas eu estava na cozinha...
Respiro fundo mais uma vez e conto até três,
segurando o ar, antes de soltá-lo. O que aconteceu?
Consigo ver claramente na minha mente: a porta da
cozinha, que dá para o quintal, se abrindo e alguém
entrando. Um homem. Eu ouvi ele falar alguma
coisa, mas estava de costas, conversando com
Lavínia. Me virei para ver quem era e ela me
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puxou. Garras avançando para mim, e então


Rodrigo me empurrou. Eu tropecei em um
tamborete e caí, mas Lavínia já estava na minha
frente e...
Abro os olhos, tentando controlar minha
respiração ofegante. Estou tremendo e gelada. Não
quero me lembrar mais. Não preciso.
Engulo em seco e escondo o rosto nas mãos de
novo. Um homem entrou na cozinha e então vi
garras vindo na minha direção. Não é difícil
imaginar o que aconteceu. Não depois de Paula
dizer que é uma bruxa e de ter me segurado daquele
jeito no saguão.
Porque se bruxas são reais, então por que um
lobisomem não pode ser?
Eu estou louca. Só pode. É a única explicação.
Eu leio livros de fantasia. Esse tipo de coisa não
existe na vida real. Simplesmente não existe.
E nem Rodrigo nem Lavínia ficaram surpresos
com isso. Não com as garras e o que mais eu não
conseguia me lembrar. Eles sabiam. Sabiam e
entraram na frente do lobisomem sem pensar duas
vezes... Se eu visse um lobisomem avançando, não
ia entrar na frente para defender ninguém a menos
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que tivesse certeza absoluta de que conseguiria


fazer alguma coisa. E os dois entraram na minha
frente. Isso só me deixa com uma opção: eles não
são humanos. Nenhum dos dois.
— Puta merda.
Eu estava errada. Estava muito errada. Talvez
eles até sejam um bando de criminosos, não sei.
Mas não foi nada ilegal que meu pai viu quando
entrou na mata. Ele falou que ouviu uivos, não
falou? E viu alguém correndo... Provavelmente um
lobisomem. Um de vários?
Meu pai viu alguma coisa que não tinha como
disfarçarem. Viu um lobisomem se transformando,
talvez? Não quero pensar no que mais poderia ser.
Mas ele viu algo, ele sabe que são reais... E se
ninguém acredita que lobisomens e bruxas sejam
reais, não é à toa. Eles precisam manter o segredo a
qualquer custo.
Alexandre. Ele é quem manda. O alfa? Ele é o
dono do casarão, e todos vieram para cá junto com
ele, pelo que sei. Todos também são lobisomens?
Paula é a única bruxa? Não consigo nem imaginar
como isso funciona. Não quero. E...
Eles nunca vão me deixar sair daqui. Me levanto
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e vou para a cama, me jogando em cima dela de


bruços. Eu vou morrer aqui. Eu vi Paula usando
magia. Eu vi um lobisomem, mesmo que tenham
tentado apagar minha memória. Provavelmente vi
mais que meu pai.
Eu sei demais.
— Laura?
Prendo a respiração quando escuto a voz de
Lavínia. Agora que ela me chamou, tenho a
impressão de que ouvi batidas na porta, mas...
— Laura, eu sei que você está aí.
Claro que sabe, ela está me farejando ou me
sentindo com magia, porque ela também não é
humana. Não tem como alguém aqui ser humano,
além de mim. Mesmo assim, não respondo.
Lavínia não chama de novo, mas poucos
segundos depois escuto o barulho da porta se
abrindo.
— Vai embora — resmungo sem me virar.
Ela não responde. Sinto uma mão encostar no
meu ombro e me sento depressa, virando o braço
por puro instinto e acertando um tapa no braço de
Lavínia.

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— Não encosta em mim!


Lavínia me encara, de olhos arregalados e ainda
com o braço estendido, enquanto eu pulo para o
outro lado da cama. Estou tremendo, e com direito.
Não faço ideia do que ela pode fazer comigo. Não
tenho a menor noção do que pode acontecer, só
tenho certeza de que ela não é humana. Nem ela
nem ninguém nesse casarão.
— Laura... — Ela começa, abaixando a mão, e
eu cruzo os braços.
— Vai me dizer que estou imaginando coisas?
Que o que vi lá embaixo não aconteceu? —
Pergunto, sem nem me preocupar se estou quase
gritando.
Não sei se quero que ela fale isso. Tenho certeza
do que vi, do que me lembro, mas... Isso não pode
ser real. Às vezes posso estar tendo alucinações por
causa da falta de comida. É mais fácil acreditar
nisso do que em bruxas e lobisomens.
Lavínia suspira e balança a cabeça.
— Não. O que você viu é real. Foi por isso que
vim ver como vo...
— E você é o quê? Outra bruxa ou um
lobisomem ou seja lá o que for que estava na
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cozinha ontem à noite? — Interrompo, sentindo


meu corpo gelar.
Acho que queria que ela dissesse que era coisa
da minha cabeça, no fim das contas. Ouvir uma
confirmação de que isto realmente está
acontecendo é... Engulo em seco. Não sei nem
como descrever.
— Laura...
— Você é o quê? — Repito e dou um passo
atrás quando minha voz quebra.
Ela respira fundo e se endireita.
— Nem bruxa, nem lobisomem — ela fala e eu
engulo em seco de novo. Se ela não é nenhum dos
dois, mas confirmou que não é humana... — Nos
chamam de fey ou povos das fadas. Paula é a única
bruxa aqui. E o que você viu não foi um
lobisomem, foi um metamorfo.
Fey. Dou mais um passo atrás, tentando me
afastar, mas bato no criado-mudo. E como é que
falam mesmo? Que não se pode correr de
predadores? Algo assim. Eu leio mais que o
suficiente para saber exatamente o que ela quer
dizer com “fey”. Cresci lendo contos de fadas, tive
a curiosidade de ir atrás das versões originais e de
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procurar algumas histórias menos conhecidas. E


mesmo que não tivesse feito isso... Eu leio muita
fantasia. Meu Deus, uns dias atrás eu estava lendo
Artemis Fowl. Se bem que, aparentemente, esse
livro não tem muito a ver com a realidade, já que
Lavínia é fey.
E não consigo acreditar que estou realmente
comparando um livro de fantasia com a realidade.
Isso é loucura.
— Não é loucura.
Respiro fundo e dou mais um passo atrás,
parando ao lado do criado-mudo, antes de perceber
que falei a última frase em voz alta. Lavínia não
está lendo minha mente. Tem algum tipo de fey que
consiga ler mentes? Não que eu me lembre, mas
não faço a menor ideia de quanto posso confiar no
que li por aí... Provavelmente bem pouco.
— Não era para você descobrir assim — ela
continua, sem sair do lugar. — Todos nós sabíamos
que não ia adiantar tentar manter o segredo com
você aqui... Estamos acostumados demais a não nos
preocupar em esconder o que somos quando
estamos no casarão.
Porque para eles é normal esconder isso. Eu
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passei dois anos trabalhando para Paula, a


chamando de amiga, sem fazer a menor ideia de
que não era humana. E ali estava Lavínia. E
Alexandre. E todo mundo que mora no casarão, que
não faço ideia de quantas pessoas são. E todo
mundo que estava no bar quinta-feira? Todos eles
não são o que parecem. Eu nunca nem imaginaria...
Quantas pessoas que eu conheço estão
escondendo alguma coisa desse tipo? E o pior é que
não consigo nem pensar em alguma coisa para me
ajudar a tentar descobrir se alguém não é humano,
porque não faço a menor ideia de se o que li tem
alguma relação com a realidade... E, de qualquer
forma, o que li sobre os fey foi que a maior parte
deles consegue se passar por humano até que seja
tarde demais. Bruxas... Jogar sal? Não, mas sal
serve para quebrar magia, se uma bruxa não estiver
fazendo nada acho que não vai ter efeito. E
lobisomens... Metamorfos, como ela falou. Eu nem
sei a diferença. Metamorfos podem se transformar
em outras coisas?
Bato as costas na parede e só então percebo que
estava recuando. E estou tremendo. Como é
possível que isso seja verdade? Como?

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— Laura, respira!
Balanço a cabeça quando Lavínia dá um passo
na minha direção e me encolho. Eu estou
respirando. Sei que estou. Só... É demais. Não
consigo acreditar nisso, mesmo que não tenha
como duvidar. E nem eu consigo mais entender
meus pensamentos.
— Laura, eu sei que Alexandre te garantiu que
ninguém aqui ia fazer nada contra você. Isso
continua sendo verdade.
Mas fizeram, não fizeram? Aquela coisa na
cozinha, que eu ainda não conseguia me lembrar
direito, nem queria. E Paula me segurando mais
cedo. Eles podiam até tentar não fazer nada. Se
esforçar para serem civilizados. Mas não eram nem
mesmo humanos.
— Sai daqui — murmuro.
Lavínia suspira e se endireita antes de assentir.
Fico onde estou, encolhida contra a parede,
enquanto ela vai até a porta e para. Prendo a
respiração, esperando ela sair. Aí as coisas vão
voltar ao normal. Não. Nada vai voltar ao normal,
mas eu posso pelo menos fingir que aqui dentro
tudo é como sempre foi.
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— Coma alguma coisa — ela fala antes de abrir


a porta e sair.
Fico encarando a porta fechada por um instante
antes de escorregar para o chão e passar os braços
ao redor dos joelhos. Como é possível que isso
esteja acontecendo?

···
A LEXANDRE
PRESA. EXATAMENTE COMO UMA PRESA, NÃO IMPORTA SE
Paula notamos algo de diferente nela. Laura está
agindo como uma presa assustada, e eu não posso
dizer que isso me surpreende. Passo a mão pelo
cabelo e encaro a cadeira quebrada no chão da
minha sala, antes de dar a volta na mesa e me
sentar na cadeira que sobrou. Era óbvio que Laura
ia descer na pior hora possível. Claro. Como se as
coisas já não estivessem complicadas o suficiente.
Tomo um gole da xícara de café que peguei na
cozinha antes de voltar para cá. Não sei se café é
uma boa ideia agora, no meio dessa confusão, mas
é melhor que nada. Acho que nenhum de nós
pensou que isso ia ser tão complicado. Nem dois
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dias aqui e ela já está pensando em fugir.


Se bem que... Em parte é nossa culpa. Não
pensamos na pergunta mais simples, quanto tempo
ela ficaria aqui. Se tivéssemos uma resposta para
ela, Laura provavelmente não teria entrado em
pânico daquele jeito. E eu sei que deixar que ela
visse o poder de Paula só serviu para piorar tudo,
mas era o único jeito de garantir que ela não tente
fugir de novo. Agora isso é uma questão de
sobrevivência.
Paula entra na sala e fecha a porta atrás de si,
antes de encarar a cadeira quebrada, também.
— Você vai ter que controlar esse seu humor —
ela comenta.
Rosno sem muita vontade. Já percebi isso.
Ela suspira e se senta na beirada da mesa.
— Mandei Lavínia ir falar com Laura.
Assinto. Pelo que me falaram, elas estavam se
dando bem, ontem, antes de toda a confusão. E isso
é melhor que Paula tentar conversar com ela, agora,
e muito melhor que eu ir lá. Estamos apostando na
impressão que todos que a conheceram no bar
tiveram: que Laura não vai surtar, não a longo
prazo. Que ela vai se acalmar o suficiente para
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perceber que o pessoal do casarão ainda é o mesmo


pessoal que estava no bar com ela, mesmo que
nenhum de nós seja humano. É a chance que temos
de evitar que o Conselho faça o que quer.
— Se Gustavo não tivesse aparecido... — falo.
Escuto um estalo alto e me inclino sobre a mesa.
A cadeira quebrada se partiu em mais alguns
lugares. Pelo visto eu não sou o único que precisa
controlar o humor.
— Quero permissão para atacar se ele aparecer
aqui sem ser convidado de novo.
— Se sobrar alguma coisa depois que eu
terminar, tem permissão.
Paula se vira para mim de uma vez. Dou de
ombros. Estou no meu direito. Gustavo pode ser o
alfa dos felinos e controlar um território
considerável, mas se ele invadir o meu território
mais uma vez, isso não vai passar sem resposta.
E é interessante que ele tenha decidido aparecer
justamente na lua cheia, quando nem eu nem Paula
estávamos no casarão. Era um desafio claro:
Gustavo quase matou um dos fey que estava
fazendo a vigilância da propriedade, correu para
fora da mata antes que André o alcançasse e entrou
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no casarão, pela porta dos fundos, como se


estivesse em casa. E, assim que viu Laura, uma
humana, ele atacou.
Não foi à toa que pedi para Lavínia cuidar de
Laura. Só não esperava que isso fosse ser
necessário tão depressa, nem que ela precisasse se
mostrar para alguém de fora. Fazia anos que ela
evitava contato com o Outro Mundo, por motivos
óbvios, também.
— Lavínia... — começo.
Paula dá de ombros.
— Ela disse que é melhor assim. Que agora que
Gustavo sabe que tem mais gente aqui que
conseguiria enfrentá-lo sem problemas, é provável
que não volte.
— Infelizmente — resmungo.
Seria ótimo se ele voltasse. Seria excelente, na
verdade.
— Vamos ter que ser mais cuidadosos na
próxima lua cheia — Paula fala. — Se Gustavo ou
outra pessoa resolver tentar alguma coisa,
aproveitando que não estamos aqui...
Balanço a cabeça. Já somos cuidadosos o

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bastante. Não é isso que vai mudar.


— Avise o pessoal. Eles têm permissão para
fazer o que for preciso para conter qualquer um que
entre no nosso território sem ser convidado.
Paula me encara, de boca aberta, antes de sorrir
e assentir. Desde que chegamos aqui, uma das
minhas regras era que, se fosse preciso usar força
contra alguém de fora, ninguém tinha autorização
para fazer algo potencialmente letal. Íamos nos
conter, porque a maior parte do Outro Mundo já
nos via com desconfiança – um bando misto, com
pessoas poderosas o bastante para saírem de suas
matilhas ou grupos sem nenhum tipo de
repercussão. Pensei que seria melhor assim. Mas já
que querem nos testar, essa regra pode deixar de
existir.
— Vou avisar o pessoal e correr no sebo para
buscar alguns dos meus livros, então — ela fala e
desce da mesa.
E talvez dar carta branca para Paula não tenha
sido uma boa ideia. Ela está feliz demais com a
ideia de poder atacar algum intruso. Vou ter que
prestar atenção nisso. Não que ache que ela
realmente criaria uma compulsão para atrair
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alguém como Gustavo para cá, só para poder


atacar, mas é melhor prevenir.
Continuo no mesmo lugar enquanto ela sai da
sala e fecha a porta atrás de si. Esse é o escritório
que eu uso para receber pessoas de fora, por assim
dizer, então não estou muito preocupado com a
cadeira quebrada. Sempre posso guardar a madeira
para quando resolverem fazer alguma fogueira de
festa junina. E, se não tiver outra cadeira que eu
possa trazer para cá, também não é um problema. O
meu escritório de verdade, de onde costumo
trabalhar, fica no último andar do casarão, perto do
meu quarto.
Mesmo assim... A chegada de Laura já está
mudando as coisas aqui. Em menos de dois dias,
Lavínia já deixou todos verem que é mais poderosa
do que pensavam, ela e Rodrigo enfrentaram
Gustavo e eu acabei de dizer que minha regra mais
importante para o casarão não vale mais. E tenho a
leve impressão de que isso é só o começo.
O que não muda o fato de que continuamos sem
saber por que alguém estava derrubando nossas
defesas, seja para garantir que um humano nos
visse, seja por algum outro motivo que não

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descobrimos ainda. Não posso deixar ninguém se


esquecer disso.
Assim que saio da sala, escuto uma discussão
agitada vindo da cozinha. Paula já avisou os outros,
então. É a única explicação para isso agora.
Balanço a cabeça e começo subir a escada. Por
causa dessa confusão toda com o humano, tenho
trabalho atrasado, então vou precisar mexer nisso
em pleno domingo.
Um rosnado baixo me faz parar por um instante
e então correr escada acima. Ainda estou no
segundo lance de escada quando começo a sentir o
cheiro do medo de Laura. Não deveria ser assim.
Ela está apavorada. E alguém está perto do quarto
dela, mesmo depois de que deixei claro que não
queria ninguém andando por lá sem um bom
motivo.
Quando chego no terceiro andar, Lavínia está
parada na frente da porta de Laura, com os braços
soltos e mais mechas brancas no cabelo do que
quando ficou sabendo do plano, o que nunca é um
bom sinal. E André está parado na frente dela, a
encarando.
— O que está acontecendo aqui?
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André olha para mim, abaixa a cabeça e recua


dois passos. Lavínia não tira os olhos dele, mas seu
cabelo começa a voltar ao normal.
— Achei ele farejando a porta de Laura — ela
fala.
André mostra os dentes para Lavínia, que
estreita os olhos. Só me faltava essa, um dos lobos
achando que tem chances de desafiá-la.
— Se quiser morrer, André, existem formas
menos dolorosas de fazer isso — murmuro.
Ele olha para mim de novo. Sustento seu olhar,
rosnando baixo, até que ele se vira e desce a escada
quase correndo. Assim é melhor.
Lavínia cruza os braços e solta o ar. Minha sorte
é que ela não gosta de começar brigas, senão isso
teria saído de controle muito antes.
Olho para a porta fechada. Não escuto nada
vindo lá de dentro, mas ainda estou sentindo o
cheiro do medo.
— Vou falar com ela — aviso.
Lavínia solta os braços de uma vez e se
aproxima ainda mais da porta.
— Você não vai entrar.
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Levanto uma sobrancelha. Ela balança a cabeça,


sem sair do lugar.
— Entre o que aconteceu no saguão e ontem à
noite, ela já percebeu que ninguém aqui é humano
— ela continua.
— Lavínia...
— Você não viu como ela estava quando me
pediu para sair. Se não quer torturá-la, não entre.
E Lavínia sabe o que dizer para me fazer parar.
Dou um passo atrás, deixando claro que não vou
atacar.
— O que sugere?
— Chame Paula.
Balanço a cabeça. Não acho que isso seja uma
boa ideia, depois do que aconteceu mais cedo. Sem
mencionar que, de todo mundo aqui, Paula é a
única que Laura conhece a mais tempo. Não acho
que isso vai ser nenhum tipo de conforto, agora.
Isso vai ser visto como uma traição.
— Ela voltou para a cidade. E você sabe o que...
Lavínia inclina a cabeça e indica a porta com a
cabeça. Respiro fundo. Eu falei para ela cuidar de
Laura, e é isso que ela está fazendo. Certo.
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— Tudo bem.

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CAPÍTULO NOVE

L AURA
QUANDO DOU POR MIM, ESTOU OUVINDO PÁSSAROS
cantando, o quarto está claro e eu estou toda
dolorida por causa da posição estranha em que
dormi. Minha intenção era ficar acordada, esperar
para ver o que ia acontecer depois da conversa que
ouvi lá fora, se iam chamar Paula, se alguém ia
voltar... Na verdade, achei que não ia conseguir
dormir. De novo, estava errada.
Estico os braços, sentindo os músculos das
minhas costas doloridos. Faz tempo demais desde a
última vez que dormi de mal jeito assim. Acho que
a última vez foi no meu primeiro ano em BH,
quando fui parar numa festa improvisada. Quando
notamos as horas já era tarde demais para alguém
ter ônibus para ir embora, então preferimos dormir

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por lá mesmo. Eu tive que me enrolar em um sofá


pequeno, e isso porque tive sorte de não ter que
dormir no chão. Mas estou mais dolorida do que
daquela vez. E aliás, como foi que dormi sentada?
Balanço a cabeça e me levanto. Ontem, quando
comecei a ouvir passos, puxei a cadeira da
penteadeira e a encostei na porta. Queria ter
empurrado a mesa, mas ela é um daqueles móveis
antigos mega pesados e acabei desistindo. A
cadeira ainda está lá, do mesmo jeito, e eu começo
a ir na direção dela. Preciso ir no banheiro. Já estou
com a mão na cadeira quando percebo o que estou
fazendo. Eu realmente vou sair do quarto? Sabendo
que ninguém nessa casa é humano?
Volto e me sento na cama. Acho que não estou
com tanta vontade assim de ir no banheiro. Mas
meu estômago está roncando alto o bastante para
qualquer um no corredor escutar – não comi nada
ontem. Olho para a vasilha em cima da mesa, no
mesmo lugar onde Lavínia a deixou. Devia ter
comido antes de ir atrás de Alexandre, ontem.
Respiro fundo e fecho os olhos, ignorando mais
um ronco da minha barriga. Então estou presa em
uma casa com bruxos, fey e metamorfos – mesmo

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que eu não faça a menor ideia da diferença disso


para lobisomens. Certo. Normal. Super normal.
Acontece todo dia. Solto o ar com força. Quero
muito achar que estou ficando louca ou que estão
fazendo algum tipo de pegadinha comigo, mas...
Não consigo. Não sei se é porque estou mais calma,
ou se tive tempo para “absorver” isso, só sei que
não consigo mais duvidar. Por mais que seja difícil
de acreditar, faz sentido. Mais sentido que qualquer
coisa até agora, aliás. Eles não serem humanos
explica tudo: o isolamento, a estranheza, a
necessidade de manter o segredo a qualquer custo...
Isso explica como pessoas que parecem ser tão
normais podem aceitar eu ser uma prisioneira aqui.
É a necessidade de manter isso em segredo. E isso
só me lembra que as chances de eu conseguir
escapar são praticamente nulas.
Procuro meu celular, querendo alguma coisa
para me distrair. Acho ele jogado debaixo de um
travesseiro e não faço a menor ideia de como foi
parar ali. Provavelmente estava com ele por perto
quando apaguei. A bateria já está nos 8%, então me
viro para procurar o carregador na minha mochila.
Não desfiz as malas até agora – tenho a impressão
de que fazer isso é o mesmo que dizer que estou
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aceitando ser uma refém – então está fácil achar as


coisas. Pelo menos, por enquanto. Ligo o
carregador na tomada ao lado da cama antes de
olhar as notificações do celular. Nem me
surpreendo quando vejo mensagens de todas as
minhas amigas daqui. Falei que ia viajar para a
Nova Zelândia e depois não dei mais sinal de vida,
então isso é normal. Camila também mandou
mensagem, e isso não é uma surpresa. E Rick
também. Droga. Esqueci completamente dele.
Rick: Você foi viajar? Assim, do nada?
Reviro os olhos. A mensagem é de ontem à
tardinha, de depois que aquilo aconteceu. A essa
hora ele já sabe de todos os detalhes sobre a minha
“viagem” para a Nova Zelândia, aposto. Não vou
responder. Sorrio. Não vou mesmo. Não tenho mais
nada com ele, não devo nenhuma satisfação, não
preciso falar nada. E nem preciso me preocupar
com ele enquanto estou aqui. Okay, ao menos um
ponto positivo.
Salto as mensagens de Gisele, Samara e Cris.
Vejo a mensagem de Bruna marcada como lida,
mas sem resposta, e respiro fundo. Não preciso
responder ainda. Não que adiante muito enrolar,

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mas não posso falar “vou ficar viajando para


sempre”. Quer dizer, até posso. Meus planos eram
esses, não é? Ignoro sua mensagem e abro a de
Camila.
Camila: Estou esperando notícias sobre o meu
pôster.
Claro que ela não ia esquecer. Claro. Eles me
mandaram os links na quinta e já é segunda.
Conhecendo Camila, ela até se conteve bastante
antes de pedir notícias de novo.
Laura: Não tive tempo de olhar os sites ainda.
Vou fazer isso hoje, prometo.
Camila: Vou cobrar, sua enrolada.
Ela vai, com certeza. Suspiro. Preciso colocar a
cabeça no lugar. A mensagem dela é um bom
lembrete de que tenho que dar um jeito de
encaminhar minha vida. Não posso ficar parada. Se
eu tiver alguma chance de escapar, tenho que estar
pronta para agarrá-la. E isso quer dizer ter dinheiro
e já saber o que estou fazendo nesse meio para ter
certeza de que vou conseguir me manter.
E querer uma oportunidade de escapar quer
dizer conhecer onde estou e as pessoas aqui. Não
posso me trancar no quarto... Mesmo que esteja
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numa casa com lobisomens. Eu preciso parar de


pensar nisso. Respiro fundo e solto o ar de uma
vez. Não posso pirar. Preciso me entender com isso
tudo de alguma forma. Pensar a longo prazo. Meu
objetivo é sair daqui e ter a vida que quero para
mim. Então vou focar nisso e fazer o que preciso
para chegar lá.
Isso.
Suspiro e fecho os olhos por um instante. É
muito fácil falar. Fazer...
— Laura, abre essa porta.
Dou um pulo na cama quando escuto a voz de
Paula. Estranho, não ouvi o som de passos... Mas
talvez eu só tenha escutado ontem à noite porque já
era tarde e tudo estava silencioso.
— Vai embora. Não quero falar com você —
respondo.
E nem me importa se estou soando como uma
criança birrenta. Não quero mesmo, não depois do
que ela fez.
— A escolha é sua, ou eu ou Alexandre. Mas
você vai conversar com um de nós.
Pode escolher: a opção ruim ou a opção pior. O

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que aconteceu com o “não vamos fazer nada com


você”? Se bem que realmente não estão fazendo
nada. Me levanto, bufando. Entre Paula e
Alexandre, não preciso nem parar para pensar. Ela
eu pelo menos conheço... Acho. Mas tenho uma
ideia do que esperar. Ele, eu não faço ideia do que
pode fazer, nem consigo me esquecer de como
Paula falou que eu não ia queria saber como ele ia
me parar.
Coloco a cadeira de volta no lugar e abro a
porta. Paula me encara de cima a baixo antes de
entrar e colocar uma bandeja em cima da minha
mesa. Como é que ela conseguiu subir essas
escadas de saião e carregando uma bandeja, sem
derrubar nem derramar nada?
Continuo parada na porta, a encarando. É a
mesma Paula de sempre: o mesmo rosto, a mesma
expressão, o mesmo cabelo meio bagunçado, a
mesma combinação de saião e regata... Nada que
me faça ver que ela não é a mesma. Se bem que,
pensando melhor, ela é a mesma, eu só não fazia
ideia do que ela era, antes.
E eu realmente preciso ir no banheiro.
Olho para o corredor, mas não tem ninguém por
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perto. Estranho.
— Ninguém vai parar aqui até eu dizer que
podem — Paula fala.
Me viro para ela, que dá de ombros. Certo.
Paula, a bruxa, tem autoridade para manter todo
mundo longe do meu quarto. Tento não pensar
muito nisso enquanto praticamente corro para o
banheiro. Se bem que não devia me surpreender
com isso. Ela estava discutindo com Alexandre
ontem. Quase consigo ver a cadeira quebrada ao
lado deles de novo, quando entrei na sala, e me
lembro de como não vi ninguém nos corredores.
Aparentemente ela é uma das poucas aqui, se não
for a única, que enfrenta Alexandre. E não vou
continuar pensando nisso.
Quando volto para o quarto, Paula está parada
de frente para uma das janelas, olhando para fora.
Tenho a impressão ver o brilho verde ao redor dela
de novo, mas sei que agora só estou me lembrando
do que vi ontem. Ela não está fazendo nada... Eu
acho. Mesmo assim, preciso fazer um esforço para
fechar a porta atrás de mim.
Paula se vira assim que fecho a porta e aponta
para a bandeja em cima da mesa, ao lado do meu
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notebook.
— Você come, eu falo. Depois você pode fazer
suas perguntas.
Abro a boca para dizer o que penso dessa ideia,
mas minha barriga escolhe essa hora para roncar
alto. No fim das contas, ela provavelmente está
certa. Estou sem comer faz mais de um dia e acho
que só não estou desesperada por comida ainda por
causa do choque. Mesmo assim...
— Você não está fazendo nada comigo agora,
está?
Ela estreita os olhos. Acho que isso é uma
resposta.
— Nem vai? — Continuo.
— Não — Paula fala, seca. — Nem se eu
quisesse. Não existem bruxas capazes de controlar
as ações de alguém. Nem de forçar alguém a
acreditar no que estão falando. Agora coma que já
está dando agonia só de pensar no tempo que tem
desde a última vez que comeu.
Desvio os olhos. E de que adianta ela me falar
isso? Paula mentiu para mim por dois anos, não
tenho nenhum motivo para confiar no que ela está
dizendo. Seria muito mais fácil para ela me
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controlar se eu acreditar que não tem como fazer


isso. Não que eu saber disso vá fazer muita
diferença. Não tenho outra opção a não ser
acreditar nela. Pelo menos, não enquanto não
conseguir descobrir mais por minha conta.
Suspiro e me sento. O pote que estava em cima
da mesa sumiu enquanto eu fui no banheiro. Nem
falo nada, o que quer que estivesse ali
provavelmente já tinha estragado mesmo. Pego a
caneca que está na bandeja e quase dou pulinhos no
lugar quando sinto o cheiro do café. Acho que
estou um pouco viciada. Tomo um gole antes de
pegar um pedaço de bolo e começar a comer.
Estou pensando se pego pão ou outro pedaço de
bolo quando percebo que Paula não falou nada.
Levanto a cabeça e me viro para ela, que ainda está
na frente da janela, de braços cruzados, mas dessa
vez me encarando.
— Estou tentando achar um jeito de te explicar
o que precisa saber — ela fala, suspirando, antes de
ir se sentar na beirada da cama, de frente para mim.
Levanto uma sobrancelha e continuo comendo.
Esse bolo está muito bom.
— Acho que posso começar pelo que você
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perguntou. Ninguém aqui é capaz de te influenciar


de alguma forma. Posso te segurar como fiz ontem,
mas não te controlar para fazer o seu corpo me
obedecer. Os únicos que conseguem fazer isso são
os vampiros, e só os que já têm um certo poder.
Paro de mastigar e a encaro de novo. Vampiros.
Respiro fundo. Já devia estar esperando por isso,
mas pelo visto não estava. Era só o que faltava. Se
lobisomens, bruxas e fey são reais...
— Dizem que alguns dos fey têm poderes desse
tipo, mas não sei se é verdade ou não. O que sei é
que a única pessoa aqui que tem um mínimo de
poder nessa direção é Lavínia. Foi ela quem nublou
sua memória.
Engulo o pedaço de bolo na minha boca quando
ela responde o que eu ia perguntar. Estou
começando a achar que comer enquanto Paula fala
não é uma boa ideia. Estou mais calma... Pelo
menos acho que não vou pirar. Mas isso não é
garantia nenhuma.
E Lavínia apagou minha memória. Não, a
palavra que Paula usou está mais certa. Nublou,
porque as coisas só estão meio distantes. Sei que se
fizer esforço vou me lembrar, mas não quero.
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Tomo mais um gole de café. É estranho demais


pensar que ela seja capaz de fazer isso.
Paula suspira e balança a cabeça.
— Ninguém quer você aqui.
Aperto a caneca, sentindo o calor reconfortante
do café. Se ninguém me quer aqui, por que não me
deixam ir? Mas não faço a pergunta em voz alta, dá
para ver que Paula não terminou.
— Nenhum de nós concorda em te manter aqui,
mas não temos outra opção. A questão é... Vai
chegar o dia em que a humanidade vai saber sobre
nós. Não tem como continuarmos em segredo por
muito tempo. Mas fazer isso vai ser complicado.
Ninguém quer uma guerra.
Uma guerra? Não faz o menor sentido... Não,
faz. Coloco a caneca na mesa e me inclino para
trás. Não preciso fazer muito esforço para imaginar
o que vai acontecer quando o mundo descobrir que
esses seres mágicos estão vivendo entre nós. Só
preciso me lembrar da minha reação. Eu pirei.
Simples assim. E quando piro eu só quero me
esconder e isolar de tudo. Mas conheço pessoas
demais que ficariam agressivas e violentas numa
situação dessas. Se jogar isso em escala mundial...
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Engulo em seco. Guerra. A humanidade contra os


seres mágicos.
Acho que minha expressão está contando
exatamente o meu raciocínio, porque Paula assente.
— Ninguém quer isso. Temos planos e mais
planos para o caso de alguém ser visto, porque não
podemos nos dar ao luxo de que alguém nos
“descubra” antes da hora. São vários níveis de
segurança, literalmente tudo o que conseguimos
pensar para evitar uma situação dessas.
— Então como foi que meu pai viu um de
vocês? — A pergunta sai quase por vontade
própria.
Paula se levanta e vai até a janela. A acompanho
com o olhar, sem conseguir voltar a comer, e
espero. Ela não negou o que eu falei, o que quer
dizer que estou certa. Foi exatamente isso que
aconteceu com meu pai.
— Eu não sei. — Ela se vira para mim,
balançando a cabeça. — Não sabemos. Sempre
tomamos todas as precauções... Mas ninguém notou
seu pai até que já fosse tarde demais. E ele fugiu
depressa, não tiveram tempo de ir atrás dele antes
que chegasse onde os humanos iam vê-lo.
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Paula respira fundo e balança a cabeça de novo.


— O procedimento normal quando alguém nos
vê claramente o bastante para não ter dúvidas do
que aconteceu é apagar suas memórias. É mais fácil
nos lugares com vampiros, mas não teríamos
problemas em prender seu pai por um dia, até que
um dos vampiros de BH pudesse vir aqui.
— Mas ele já estava de volta no terreno da
construtora...
Ela assente.
— A única coisa que conseguimos fazer foi
mandar um dos nosso falar com ele que era melhor
não contar para ninguém. Ele estava assustado o
bastante para obedecer na hora, mas não podíamos
arriscar que falasse quando o susto passasse. —
Paula se vira para a janela de novo, me dando as
costas. — O segundo procedimento, quando não é
possível apagar a memória, é a morte. Um acidente,
desaparecimento... Mas isso só vale quando a
pessoa não teve contato com outros humanos, o que
quer dizer que não teve a chance de contar o que
viu. Quando isso acontece...
Mal percebo quando Paula para de falar. Eu sei
o que vem depois. Meu pai me contou.
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— O terceiro procedimento é matar todos com


quem ele teve contato — murmuro.
Toda a família. Todos os colegas de trabalho do
meu pai.
Paula assente, ainda de costas.
— Nós não viemos para cá porque concordamos
com tudo que o Conselho decide e queremos seguir
todas as suas ordens — ela continua. — Então
fizemos o que podíamos. As pessoas que você
encontrou no bar estavam lá porque eu os mandei.
Foi útil termos uns tantos visitantes aqui, mais
testemunhas para nos ajudarem... E, depois de dois
anos, eu tinha informações o suficiente para
convencer o Conselho do que queríamos fazer.
Não tenho certeza de que estou entendendo o
que ela está falando. Ou melhor, estou entendendo,
só não quero.
— Você me vendeu.
Porque é isso que ela está contando – como ela
me entregou para ser uma refém.
Paula se vira para mim de uma vez e vejo um
brilho esverdeado com o canto dos olhos.
— Eu salvei sua vida. E a vida da sua família. A

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ideia foi de Alexandre, mesmo que ele não


imaginasse que dizer que precisávamos de uma
garantia do silêncio do seu pai ia acabar dando
nisso aqui. Eu reconheci seu pai e dei os detalhes
de como poderíamos fazer isso funcionar, em vez
de sair matando. Fui eu quem negociou com o
Conselho. Seria mais arriscado seguir os protocolos
normais. Esse tanto de pessoas desaparecendo ou
morrendo em um acidente ia chamar atenção
demais. E eu tenho dois anos de convivência para
ter certeza de que você faria isso pelo seu pai e pela
sua irmã, no mínimo, e que ele não arriscaria sua
vida.
Engulo em seco. Não vou me desculpar pelo que
falei, mesmo que ela esteja furiosa. É a verdade, ela
me vendeu, mesmo que tenha sido para salvar
minha vida. Não é justo. Eles foram descuidados, e
eu que tenho que pagar por isso? Eu que tenho que
ficar aqui e...
— Eu não vou me defender, Laura. Nem
defender Alexandre. Fizemos o que podíamos.
Ela descruza os braços, mas seus movimentos
estão rígidos demais para eu acreditar que está
calma. Fico calada enquanto Paula se afasta da

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janela e passa ao meu lado, indo até a porta.


— Nós vamos te dar espaço, se é isso que quer.
Pelo menos até aceitar o que está acontecendo. Mas
não faça nenhuma loucura.
Mordo a parte de dentro da minha boca para não
falar o que estou pensando. Eu nunca vou aceitar
estar presa aqui. O erro foi deles, deveriam ter
tomado mais cuidado, deveriam ter pensado em
outras opções, e agora...
A expressão de Paula se fecha e ela balança a
cabeça antes de abrir a porta.
— Desça com a bandeja quando for almoçar, ou
deixe de fora do quarto se for se trancar aqui.
Não falo nada enquanto ela sai e fecha a porta
atrás de si. Até penso em chamar Paula de volta e
cobrar as perguntas que ela falou que eu ia poder
fazer, mas é melhor não. Depois disso tudo, não
tenho nada a perguntar, na verdade. E não sei mais
o que fazer.

···
MANDO O LINK DO SITE PARA CAMILA, COM UM PEDIDO
para ela e Felipe conferirem se não tem nada

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errado. Não sei se eles vão ter como ver isso, mas
eu não faço a menor ideia do que estou fazendo.
Pelo menos acho que fiz o upload das imagens
todas certinhas, e diz a página de ajuda do site que
ele faz os ajustes finais para encaixar as artes nas
medidas de impressão. Só posso torcer agora e
esperar para ver algo impresso, porque não tenho
como pedir para entregarem aqui.
Suspiro e rolo os ombros para trás, tentando
relaxar. Não que isso adiante muito, mas pelo
menos fiz alguma coisa. Comecei a organizar tudo
para encaminhar minha vida de vez, porque não
importa o que Paula ou qualquer outra pessoa fale,
não vou ficar presa aqui para sempre. Não vou. Só
não sei como vou escapar. Ainda.
Me levanto e vou até a janela. Daqui consigo
ver um bom pedaço do jardim, e depois dele um
espaço gramado antes das árvores começarem,
espalhadas, até a área da mata, e a serra visível
depois dela.
Lerda. Eu devia ter notado isso antes. Fico na
ponta dos pés, tentando ver mais longe, mas não sei
nem se estou olhando na direção certa. Se não me
engano a mata cerca a propriedade toda e eu não

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faço ideia de para que lado fica o condomínio. Foi


por isso que não quiseram vender o terreno para o
pai de Rick. Não era pirraça nem nada do tipo: era
a propriedade de Alexandre, dos seres mágicos. E
agora que pensei nisso, é absurdamente óbvio. Não
entendo como não percebi isso antes.
E falando em perceber... Já caiu a ficha de que
não vai adiantar nada me trancar no quarto. Na
verdade, só vai ser pior. Pode até ser mais seguro
ficar aqui – não que eu realmente acredite nisso –,
mas se não sair nunca vou descobrir o que posso
fazer para escapar. Tenho que manter isso em
mente, porque é a única coisa que importa. Ou seja:
vou aprender a lidar com bruxas, lobisomens e fey.
E vampiros. Cruzo os braços quando um calafrio
me atravessa. Acho que nunca mais vou ler um
romance com vampiros ou qualquer outro ser
sobrenatural do mesmo jeito.
Se bem que eu acho que estou segura. Ou tão
segura quanto possível. Quer dizer, Rodrigo e
Lavínia pularam na frente do lobisomem na
cozinha para me defender, não pularam? E pelo que
Paula me falou, não acho que vão me matar. Se
quisessem fazer isso não iam ter me trazido para cá.

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Respiro fundo e coloco a mão no vidro. Não


adianta ficar aqui. Não importa se vou estar segura
ou não. Ficar aqui é me conformar. É dizer que não
tem outro jeito. E eu me conformei por tempo
demais. Engulo em seco, encarando o horizonte.
Joguei dois anos da minha vida fora, agindo como
esperavam de mim. Isso sem mencionar os anos em
BH e todas as oportunidades que deixei passar.
Não. Eu já decidi que isso acabou, não decidi?
Olho para o notebook. O navegador ainda está
aberto no site que imprime os pôsteres e outras
coisas. Eu decidi que não ia mais me conformar
quando comecei a olhar seriamente a possibilidade
de ganhar dinheiro com minhas ilustrações. Preciso
me lembrar disso. Não vou abaixar a cabeça de
novo.
E se isso quer dizer que preciso engolir meu
medo e descer para encarar sabe-se lá o que vou
encontrar na cozinha, eu vou fazer isso.
Respiro fundo, pego a bandeja e abro a porta.
De novo: como é que Paula conseguiu subir com
ela sem derrubar nem derramar nada? Mas é bom
porque tenho que me concentrar na bandeja e não
nas pessoas que estão pela casa. Já faz mais ou

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menos duas horas que ouvi o movimento do lado de


fora voltar ao normal: pessoas andando e vozes,
mesmo que ninguém tenha vindo para o lado do
meu quarto.
Deixo a porta bater atrás de mim e vou direto
para a escada. Acho que tem duas pessoas vindo da
parte de trás da casa, mas não espero para ver
quem. Desço, concentrada em não deixar nada cair.
Nem sou desastrada mesmo normalmente, mas são
dois lances de escada e eu ainda não tenho certeza
de que sair é seguro então...
Estou começando a descer para o primeiro andar
quando vejo o mesmo homem que me recebeu na
casa subindo. Acho que Lavínia me falou o nome
dele. Jorge? Acho que é isso. Abro a boca para
falar um “boa tarde”, mas ele sobe depressa e pega
a bandeja antes de eu conseguir entender o que está
acontecendo.
— Não precisava descer com isso — ele fala,
balançando a cabeça. — Pode deixar que levo para
a cozinha.
Engulo em seco. Ele não é humano. Eu sei
disso. Mas parece tão normal...
E eu não vou conseguir nada se ficar pensando
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nisso o tempo todo.


— Na verdade, eu ia ver se ainda tem almoço...
— começo.
Jorge equilibra a bandeja em uma mão e
gesticula na direção do fim da escadaria. Desço
dois degraus, com ele ao meu lado, e então paro,
estreitando os olhos. O gesto dele não foi casual,
foi uma coisa antiquada e quase pareceu que ele ia
se inclinar ou algo assim. O tipo de gesto que você
espera ver em um filme de época.
— Fey — murmuro.
Porque só consigo pensar em um motivo para
aquele gesto: ele é muito mais velho do que parece.
E se não tem nenhum vampiro aqui e pelo que eu
sei nem lobisomens nem bruxos são imortais nem
nada do tipo...
Ele me encara e assente lentamente. Tudo bem.
Ele é fey. Respiro fundo e continuo a descer a
escada. Uma hora eu vou acostumar com a ideia de
que ninguém aqui é humano.
Não falo mais nada enquanto viramos no
corredor lateral e seguimos para a cozinha. Jorge
também fica em silêncio, ainda equilibrando a
bandeja em uma mão só, e eu tenho a impressão de
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que ele está olhando de esguelha para mim, mas


não vou conferir.
Estou fazendo um esforço para não ficar tensa
quando chegamos na cozinha, e paro para olhar ao
redor enquanto Jorge continua andando. Não me
lembro de quase detalhe nenhum dela, só da
impressão de que é grande. E, aliás, grande é
apelido. Isso é uma cozinha mais refeitório juntos
em um salão. Duas mesas compridas com bancos
de cada lado estão no espaço do refeitório, e por
sorte tem pouca gente aqui agora. Só vejo Lavínia,
Rodrigo e mais uma mulher de cabelo escuro preso
numa trança que tenho certeza que estava no bar
quinta-feira.
Os três se viram para mim praticamente juntos e
Lavínia gesticula para eu ir me sentar. Respiro
fundo mais uma vez e vou. Só não faço ideia do
que vou falar nem nada... Mas vou. Ela sorri
quando me sento ao seu lado e indica a outra
mulher com a cabeça.
— Acho que você não se lembra da Aline.
Aline dá de ombros e brinca com a ponta da sua
trança, e tenho a impressão de que já vi ela fazer
isso antes. Mas no bar ela estava de cabelo solto,
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então deve ser uma das coisas que Lavínia me fez


esquecer.
E eu não vou pirar.
— Lembro, do bar. Mas não lembrava o nome.
Ela levanta as sobrancelhas e joga a trança para
trás.
— Você se lembra de alguma coisa de quinta-
feira à noite? Jurava que com o tanto que bebeu ia
ter aquela amnésia.
Levanto os ombros e dou um sorriso um pouco
sem graça. Não bebi muito na quinta, pelo menos
não para o meu normal de quando morava em BH.
Pelo menos, eu acho que não.
— Nunca tive amnésia. Posso não lembrar de
todos os detalhes, mas amnésia não.
— Sortuda.
— Você que é azarada. — Rodrigo cutuca sua
cintura e Aline dá um pulo no banco, antes de se
virar para ele e estreitar os olhos.
E eu não consigo deixar de pensar que isso é
estranho. Quer dizer, acho que eu estava esperando
que eles fossem agir de alguma forma diferente,
não sei. Qualquer coisa que me deixasse falar que
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eles eram diferentes. Isso não devia me


surpreender, ainda mais levando em conta que eu já
bebi com uns tantos deles, mas... É complicado
aceitar que eles são absolutamente normais e
mesmo assim não são humanos. Nunca parei para
pensar em quantas coisas podem estar escondidas
debaixo do nosso nariz, nunca fui muito fã dos “e
se”, mas agora não consigo parar de imaginar.
— Laura?
Balanço a cabeça e encaro Lavínia. Acho que
ela falou alguma coisa e eu nem ouvi.
— Desculpa, estava pensando.
— Notamos — Rodrigo comenta, cruzando os
braços e os apoiando na mesa. — E então? Vai sair
fazendo a coleção de perguntas ou vai continuar só
pensando?
Aline dá uma cotovelada nele e Lavínia suspira.
— O que eu falei sobre não assustar ela?
— Ei, não estou assustando ninguém, estou? —
Ele se endireita e levanta os braços antes de se virar
para mim. — Estou te assustando? Não estou, viu,
Lavínia? Só é mais fácil ir direto ao assunto do que
esperar até ela criar coragem de perguntar o que
quer.
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Pelo menos agora eu já sei que a tagarelice dele


no carro, quando estava me trazendo para cá, é o
normal. E ele está certo. É mais fácil até pensar em
perguntar agora que ele literalmente jogou o
assunto na mesa, sem meios termos nem nada.
Lavínia suspira.
— E então, Laura?
— Então... O que vocês são? — Solto a primeira
coisa que vem na minha cabeça.
Aline ri e apoia um braço na mesa. Solto um
suspiro aliviado. Pelo menos ninguém se ofendeu.
— Metamorfos — ela fala.
Abro a boca para perguntar a diferença entre
metamorfos e lobisomens, mas outra voz
interrompe.
— E vocês vão deixar a menina comer antes de
começarem a dar aula.
Me viro na direção do balcão que separa a área
do refeitório da área da cozinha propriamente dita.
Uma mulher baixa e com o cabelo castanho preso
em um coque baixo está parada nos encarando.
Tenho certeza que Lavínia me apresentou para ela
no sábado também, mas não me lembro seu nome.

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Ela é a pessoa que parece ser mais velha, dos que vi


até agora, mas mesmo assim não aparenta ter nem
cinquenta anos.
— O nome é Amara, menina. Que bom que
desceu.
Não pergunto como ela sabe que eu não me
lembrava seu nome. Acho que todo mundo sabe
que não me lembro de muita coisa de sábado, e
minha expressão provavelmente me entregou, de
qualquer forma.
— Não vou passar mais um dia sem comer. —
Dou de ombros.
Ela revira os olhos e os três ao meu lado riem.
— Alguém ia subir com comida, nem que eu
tivesse que brigar com eles. Agora vem e pegue um
prato, porque a comida está esfriando e depois que
eles começarem a falar não vão parar tão cedo.
Amara aponta para uma pilha de pratos e
talheres em uma das pontas do balcão e indica a
parte de dentro da cozinha. Me levanto e obedeço,
porque tenho a leve impressão que ela está certa. A
hora que eu começar a fazer as perguntas para
valer, não vou parar mais, especialmente se me
responderem. Melhor comer primeiro.
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CAPÍTULO DEZ

L AURA
NÃO PRECISO DE UM RELÓGIO PARA SABER QUE ESTAMOS
na cozinha há horas. Só preciso olhar pelas janelas
para perceber que já está começando a escurecer,
sendo que desci era mais ou menos uma hora da
tarde.
Mas eu ganhei uma verdadeira aula sobre o
Outro Mundo – como os seres mágicos se referem a
si mesmos. Claro que podem estar inventando todas
as explicações, mas duvido. Lavínia, Rodrigo,
Aline e Amara explicaram a maior parte, mas Jorge
e outros dois metamorfos, André e Daiane, também
ajudaram por alguns minutos, e as explicações de
todos eles se encaixavam. Não tem como terem
combinado e inventado tudo isso só para me
enrolar.

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De acordo com eles, os seres mágicos existem


há tanto tempo quanto a humanidade, só estão
acostumados a se esconder. E são muitos, de várias
raças diferentes. Bem mais do que eu imaginava,
aliás. Ou bem mais do que eu teria imaginado, se
pensasse que algo assim pudesse ser real.
O Outro Mundo é dividido em cinco grandes
grupos: bruxos, metamorfos, vampiros, demônios e
fey. Cada grupo tem seu “governo” e suas regras.
Eles funcionam de forma independente e só
raramente tomam decisões em conjunto. Faz
sentido, já que estão espalhados pelo mundo todo e
escondidos.
Os vampiros são exatamente o que eu pensei: se
alimentam de sangue, mantêm “rebanhos”, em
muitos casos, e se organizam em grupos não muito
grandes em qualquer cidade de médio ou grande
porte. Existe um motivo técnico para não serem
considerados demônios, mas ninguém quis explicar
isso direito. Os bruxos se dividem em vários tipos
de usuários de magia, cada um com um tipo de
poder diferente. Feiticeiros, magos, xamãs, e por aí
vai... Os metamorfos se dividem em clãs, de acordo
com o animal no qual se transformam. Rodrigo e
Aline são gaviões. André e Daiane são lobos – isso
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explica os uivos – e deixaram bem claro que isso


não tem nada a ver com um lobisomem.
Lobisomens são um tipo de demônio, na verdade. E
os demônios não costumam interagir com a
humanidade ou com o restante do Outro Mundo.
Eles ficam em seu reino, que pelo que entendi é
quase uma dimensão paralela, e têm sérios
problemas com os bruxos por causa de uns tantos
feitiços que envolvem invocar demônios e os
aprisionar. Os fey são uma coleção de indivíduos e
uma ou outra espécie, que dividem entre os fey
menores, os fey “humanos” – eu preferi não
comentar nada sobre essa classificação – e os altos
fey, que se tornaram mais conhecidos como sidhe,
mesmo que isso englobe vários tipos diferentes de
fey. Amara é uma duende e Rodrigo um brownie,
um daqueles tipos de fey que já li a respeito mas
que não faço a menor ideia do que são, e por algum
motivo isso é uma piada interna deles. Lavínia é
sidhe, mas se recusou a me dizer exatamente o quê.
Minha impressão é de que vou passar semanas
pensando em tudo o que falaram. Algumas coisas
são iguais ou bem parecidas com o que já li. Sim,
sal interrompe magia em andamento e pode fazer
uma proteção contra alguns tipos de fey. Vampiros
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morrem se saírem no sol. Em compensação,


metamorfos não precisam da lua para se
transformar – mas lobisomens sim.
— Mas então... Bruxos não usam varinha? —
Não consigo resistir a perguntar. De alguma forma
eu relaxei nessas horas, mesmo que o que estejam
me contando seja irreal. Não que eu ainda esteja
duvidando. Quer dizer... Acho que me conformei.
Lavínia revira os olhos enquanto Rodrigo ri alto
e Aline balança a cabeça. Posso ouvir a risada de
Amara vindo da cozinha também. Levanto as
sobrancelhas.
— Nada de bruxos com varinhas — Lavínia
começa, enumerando nos dedos. — Nada de elfos
loiros e gostosos com cabelo melhor que nosso.
— Nem morenos — Aline assente.
— E muito menos vampiros que brilham. Aliás,
se algum dia você conhecer um vampiro, nem
sonhe em mencionar isso — Lavínia completa.
Levanto as mãos e rio. Não sou louca de fazer
uma coisa dessas. Na verdade, acho que se eu ouvir
falar “vampiro” ou “demônio” saio correndo na
outra direção. Nunca que ficaria por perto o
suficiente para fazer um comentário desses. E aliás,
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estou fazendo esforço para não pensar muito na


forma como eles evitaram falar qualquer coisa além
do basicão sobre os demônios. Isso nunca é um
bom sinal, ainda mais que se tem algo que eu
preferia não saber que é real, são os demônios.
— Eu ia ser mais feliz se esses elfos existissem
— Aline resmunga.
Rodrigo cutuca sua cintura de novo e ela se vira
para ele, xingando.
— Me senti ofendido agora! — Ele fala.
— Como se você se ofendesse por pouca coisa
— Paula comenta, rindo. — O que ela falou?
— Que ia ser mais feliz se os elfos daquele
filme lá existissem — Rodrigo levanta a voz e se
vira para a porta, como se nem estivesse surpreso
por ouvir a voz de Paula.
Paula já está vindo na direção da mesa quando
me viro, e percebo que Rodrigo provavelmente não
se surpreendeu mesmo. Ele é um metamorfo, tem
sentidos mais aguçados. Provavelmente ouviu
quando ela entrou no casarão.
— Se existissem ela ia perder a paciência com
eles em menos de um mês. Até parece que você não
conhece Aline — ela responde, se sentando ao lado
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deles e se virando para mim. — Que bom que


desceu.
Dou de ombros. Já ouvi isso vezes o suficiente
hoje. E não quero nenhum comentário do tipo
vindo de Paula. Quero distância dela. Ela me
vendeu. Se eu estou aqui, é por culpa dela. Dela e
de Alexandre, que deveria ter tomado mais cuidado
para que ninguém visse nada que não deveria.
Consigo me esquecer da minha situação perto dos
outros, mas não com ela ali. E, mesmo que
conseguisse, isso não muda o que ela fez. Chamei
Paula de amiga por dois anos, e ela me jogou nessa
situação. Não quero falar com ela. Não quero ver a
cara dela.
Rodrigo para no meio do que começou a falar e
se vira para mim. Aline respira fundo e se
concentra em alguma coisa no tampo da mesa.
Droga. Metamorfos, sentidos aguçados... Eles
conseguem farejar o que estou sentindo. Paula
aperta o braço de Rodrigo, sem desviar o olhar de
mim. Ela sabe. Pode não saber exatamente o que
estou sentindo, mas sabe que os dois metamorfos
perceberam algo errado.
Respiro fundo. Não posso fazer isso. Paula é

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importante aqui. Se vou escapar... preciso que ela


esteja do meu lado. Ou pelo menos que não esteja
prestando tanta atenção em mim. Me lembro muito
bem do brilho verde nas janelas e da facilidade para
me segurar. Agora, se ela pensar que estou me
acostumando aqui, que me conformei...
Respiro fundo de novo. Isso. É isso. Preciso
manter o foco nisto e deixar minha raiva escondida.
E isso quer dizer que preciso dar um jeito na tensão
que tomou conta da cozinha.
— Ninguém aqui trabalha? — É a primeira
coisa que vem na minha mente.
— E eu estou fazendo o quê? Brincando de
casinha? — A resposta de Amara vem na mesma
hora e faço uma careta enquanto Rodrigo e Aline
riem.
— Desculpa, não foi para você! — Até porque,
pelo que entendi, ela e Jorge é que fazem as coisas
funcionarem no casarão. Algo a ver com o tipo de
fey que são.
— Não, esses à toas só vivem da renda do bando
mesmo — Paula fala. — Se bem que agora
provavelmente vou ter que colocar alguém para
trabalhar no sebo. Tem noção do tanto que é difícil
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achar alguém disposto a trabalhar lá nessa cidade?


Reviro os olhos. Óbvio que tenho noção. Foi por
isso que consegui o emprego. E não vou pensar em
por que ela precisa achar alguém para trabalhar lá.
Não vou. Não vai adiantar nada.
— Bando? — Pergunto, interrompendo
Rodrigo, que se virou para falar alguma coisa.
— Os metamorfos chamam seus grupos de
matilhas — Lavínia conta, dando de ombros. —
Nós somos um grupo misto que funciona
praticamente como uma matilha, mas não somos só
metamorfos... Então decidimos usar outro nome.
— Como se alguém tivesse decidido alguma
coisa — Amara resmunga, colocando uma pilha de
pratos no balcão.
Aline e Rodrigo riem e Paula, ainda apoiada
nele, revira os olhos.
— Na verdade não foi bem um “escolhemos”
mesmo. — Aline faz as aspas com os dedos.
— Alguém falou que éramos um bando e o
nome pegou — Rodrigo completa. — Se bem que
acho que ninguém queria dizer que somos uma
matilha, de qualquer forma.

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— E por que não?


Lavínia e Paula se entreolham.
— Grupos mistos assim são raríssimos. As raças
do Outro Mundo não costumam se misturar,
existem rivalidades e política demais no meio
disso. Nós não queríamos usar um nome que nos
fizesse pensar nisso, e acho que eles não queriam
que fôssemos levados a sério. — Paula dá de
ombros.
— E “bando” é mais nossa cara — Rodrigo
termina, sorrindo.
Aline e Paula assentem.
E obviamente essa história não é tão simples
assim, mas está claro que não querem dar mais
detalhes. Não acho que seja importante para mim,
de qualquer forma, então não vou insistir.
Esqueço completamente o que estava pensando
em falar quando escuto um uivo e vejo que já está
escuro do lado de fora. Sinto meu corpo gelar no
mesmo instante e me lembro da visão daquelas
garras vindo na minha direção. Eu não perguntei
quem foi o metamorfo que me atacou. Nem vou
perguntar. Não quero saber mais, não quando estou
começando a relaxar. Mas não acho que vou
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conseguir ficar aqui, agora que já anoiteceu.


— Acho melhor eu subir — murmuro,
começando a me levantar.
Lavínia se vira para mim e estreita os olhos
antes de balançar a cabeça.
— Não precisa. Está tudo bem, o que aconteceu
sábado não vai acontecer de novo.
Paro sem me levantar totalmente. Não achei que
ela ia mencionar o que aconteceu assim,
diretamente, depois te ter tentado me fazer
esquecer.
— Você falou que ia apagar a memória dela —
Aline resmunga e Paula estica um braço para dar
um tapa no seu ombro.
— Nublar a memória — Lavínia corrige, seca.
— E também falei que não era nada garantido.
— O que aconteceu sábado foi um acidente,
Laura. — Paula suspira, ignorando as duas. — Não
esperávamos que Gustavo fosse aparecer, e... Bom,
não vai acontecer de novo.
Gustavo. Tenho certeza de que não ouvi esse
nome entre o pessoal no bar. Alguém que não mora
aqui, então? E eu estava errada. Quero saber sim. É

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melhor entender exatamente o que está


acontecendo, assim tenho mais chances de me virar
e escapar de qualquer coisa do tipo que aconteça de
novo.
— E o que realmente aconteceu? — Pergunto.
A mesa fica em silêncio no mesmo instante, e
tenho a impressão de que até Amara está parada
escutando, porque não ouço nenhum ruído vindo da
cozinha.
— Ela não precisa saber disso — Rodrigo fala.
Como não? Quem foi atacada fui eu. Abro a
boca para falar exatamente isso, mas Lavínia é mais
rápida.
— Se ela vai morar aqui e já sabemos que está
correndo risco, precisa saber.
Os dois se encaram. Não sei como é a hierarquia
do bando, se é que tem alguma, mas se tiver os dois
não sabem quem tem mais autoridade. Mas Paula
tem. Me viro em tempo de ver ela se endireitar e
suspirar. Lavínia e Rodrigo param de se encarar e
se viram para ela.
— Não sei se eles chegaram a explicar isso, mas
o Outro Mundo é dividido em áreas e territórios
que variam de raça para raça — Paula começa. —
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Normalmente as grandes cidades pertencem aos


vampiros e aos bruxos. Os fey e os metamorfos
controlam o interior. É óbvio que esses territórios
se sobrepõem, mas funciona. O que acontece é que
nosso bando não é muito bem visto. Aquilo que
falei sobre normalmente as raças não se misturarem
assim. — Ela dá de ombros.
— Todos nós temos permissão dos nossos
superiores para vivermos aqui e assim — Amara
fala, colocando um copo de suco de maracujá na
minha frente. — Viemos para cá porque esta região
não tem quase nenhuma presença fey e faz parte do
território dos lobos.
— O alfa que comanda os lobos nesse território
tem uma companheira meio demônio — Paula
explica. — Sabíamos que ele não ia criar problemas
para nós.
Interessante, mas...
— O que isso tem a ver com sábado?
— Estamos no limite do território dos lobos. O
território ao lado é de uma matilha de felinos, e o
alfa deles tem um problema conosco — Aline dá de
ombros, puxando sua trança para a frente e
começando a brincar com a ponta de novo.
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— Gustavo, o alfa deles, não quer a gente aqui


— Paula continua. — Não entendo qual é o seu
problema, mas...
— Gustavo nos considera uma ameaça —
Alexandre fala e eu dou um pulo, quase derrubando
meu suco.
É a primeira vez que vejo Alexandre desde que
ele mandou Paula me segurar, e pisco algumas
vezes para ter certeza de que não estou vendo
coisas. Claro que todo mundo está vestido da forma
mais casual possível – estamos dentro de casa, não
é? Eu estou de short, camiseta e chinelo. Mas não
esperava ver ele de regata e chinelo também,
mesmo que esteja vestindo calça jeans. E a regata
me deixa ver o que sempre suspeitei: as cicatrizes
passam pelos seus ombros e descem pelo seu corpo,
deixando só seus antebraços sem marcas. E do
pescoço para baixo elas parecem ser cicatrizes de
queimaduras.
Não vou reagir, não vou reagir, não vou reagir.
Começo a repetir isso mentalmente. É a mesma
lógica da minha reação quando vi Paula: não posso
deixar eles perceberem como estou me sentindo de
verdade. Preciso que Alexandre pense que estou me

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conformando com isso aqui. Preciso que todo


mundo pense isso, porque assim vão relaxar e vou
ter mais chances de escapar.
Alexandre se senta no mesmo banco que eu
estou, dando alguns palmos de distância entre nós,
antes de apoiar um cotovelo na mesa e se virar para
me encarar. Ele não fala nada por alguns instantes,
só sinto seu olhar fixo em mim.
Aline joga algo nele – acho que é uma bolinha
de papel – e Alexandre se vira para ela. Solto a
respiração que nem vi que estava prendendo. Ele
balança a cabeça e me encara de novo.
— Um alfa se torna um alfa porque é o mais
forte. Gustavo não gosta da nossa presença aqui
porque não tem certeza de que conseguiria me
vencer sozinho e sabe que nunca conseguiria tomar
o bando.
— Mas se vocês têm permissão para estar aqui...
— me forço a perguntar.
— Tecnicamente, não preciso de permissão. —
Alexandre sorri e um arrepio me atravessa. — Não
estou na hierarquia dos metamorfos.
— E os metamorfos não são como os vampiros,
que ficam realmente presos às ordens dos seus
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mestres. Não são obrigados a obedecer. Gustavo


sabe que temos permissão, mas não se importa —
Paula explica.
— Então...
— Quem o denunciar vai ir parar no meio de um
pesadelo político — Amara fala, do balcão. — Se
um felino o denunciasse, seria um assunto interno.
Mas não temos nenhum felino aqui, o que quer
dizer que os alfas de todos os envolvidos seriam
convocados, e isso provavelmente terminaria em
algum tipo de reunião do Conselho...
— Só sei que vim para cá justamente para fugir
de política, não vou me enfiar nisso de novo por
causa de um felino com problemas de insegurança
— Paula completa.
Levanto as sobrancelhas para ela e vejo todo
mundo assentir. Pelo visto ela não é a única
fugindo de política.
— Não foi a primeira vez que Gustavo apareceu
aqui — Aline conta.
— Foi minha culpa — Lavínia fala. — Não
devia ter ficado com você aqui na cozinha até tão
tarde num dia que Alexandre e Paula estavam fora.
Ainda mais depois...
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Ela para e dá de ombros. Certo. Não quero saber


como ela ia terminar essa frase.
Abro a boca para falar que não é culpa dela, mas
penso melhor. Não é verdade. Se ela sabia que
existia esse risco, devia ter pensado melhor. Engulo
em seco quando me lembro das garras de novo.
— Se for para colocar a culpa em alguém que
não seja Gustavo, ela é minha — Alexandre avisa.
— Ele só veio aqui sábado porque sabia que tanto
eu quanto Paula estaríamos fora. Mas não esperava
você, Lavínia.
Ela sorri e vejo aquela coisa estranha no olhar
dela de novo, a mesma coisa que me fez gelar
quando ela me perguntou sobre o que meu pai tinha
me contado.
— Ah, ele esperava por mim. Só não fazia ideia
do que eu posso fazer. — Ela levanta uma mão e
encara as unhas, como se tivesse algo muito
importante ali. Aposto que se ela tivesse uma lixa,
ia estar lixando as unhas só para completar o efeito.
Não faço a menor ideia de o que ela quer dizer,
já que não quer me contar o que é, mas Paula e
Rodrigo riem.
— Exato. — Alexandre assente.
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— E sendo Gustavo e levando em conta que ele


quer a gente fora daqui, é óbvio que a primeira
reação dele ao ver uma humana aqui foi atacar —
Paula comenta.
— Ele falou alguma coisa sobre estarmos
agindo contra as provisões de sigilo antes de
avançar — Rodrigo conta.
Falou? Eu não me lembro de ter ouvido nada.
Alexandre assente de novo.
— Não acho que ele vai tentar alguma coisa de
novo, mas não vou arriscar. Dei permissão para
Caio colocar algumas armadilhas na mata. Ele e
André vão continuar se revezando na vigilância,
mas agora... — Ele sorri e engulo em seco. Se ele
sorrisse assim para mim eu sairia correndo na outra
direção. — Gustavo não vai conseguir chegar aqui
de surpresa de novo.
Vejo os sorrisos se abrindo ao redor da mesa,
mas não faço a menor ideia do que ele quis dizer.
André é um dos metamorfos, um lobo, então
imagino que vai ficar de vigia. Agora...
— Caio?
— Ele estava no bar, mas não sei se vai lembrar
dele — Aline fala.
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— Ela quer saber o que ele é. — Rodrigo dá


uma cotovelada nela antes de se virar para mim. —
Curupira.
Oi? Balanço a cabeça. Eu entendi certo?
— Curupira? O curupira?
Aline revira os olhos e Rodrigo ri. Lavínia
balança a cabeça.
— Um curupira. Não tem isso de “o” — Paula
me corrige.
— Mas...
Tá, eu estou conversando com uma bruxa, dois
metamorfos, uma duende, uma fey que não sei
exatamente o que é e um cara que é mais forte que
todos eles. E estou achando estranho mencionarem
um curupira. Mas... Respiro fundo. Certo. Hora de
tirar umas tantas coisas que li a respeito na época
de escola da cabeça. Mas...
— Mas o curupira é uma criatura brasileira,
então como que encaixa nos grupos que vocês
falaram?
Isso, Laura, excelente. Continue assim. Aja
como se nada fosse absurdamente bizarro.
— Os grupos são só uma forma de nos dividir,
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não importa em qual lugar do mundo você está. —


Alexandre dá de ombros, me encarando. — Se não
for assim, é impossível ter qualquer tipo de
autoridade que nos policie.
— E curupiras são considerados fey — Lavínia
completa.
Respiro fundo. Tem um curupira fazendo a
segurança da casa, que é cercada por uma mata.
Certo. Okay. Acho que vai ser meio complicado
alguém que não tenha permissão chegar aqui.
Solto o ar com força. Sabe a Alice e a toca do
coelho? Pois é, pelo menos ela conseguiu ver que
tinha ido parar em uma realidade diferente. Porque
eu pareço estar na mesma realidade de sempre, mas
tenho certeza que não estou.
— Relaxa, daqui a uns dias você já se
acostumou — Rodrigo fala.

···
A LEXANDRE
OLHO PELA JANELA DO MEU ESCRITÓRIO, ENCARANDO A
mata, antes de voltar a andar de um lado para o

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outro. Eu realmente espero que Rodrigo esteja certo


sobre Laura se acostumar. Pelo menos ela não fugiu
correndo depois que explicaram tudo, nem quando
Paula e eu chegamos, mesmo que todo mundo na
cozinha tenha notado que ela estava com medo e
com raiva. Com tanto medo, na verdade, que eu
ainda estou agitado só por ter ficado aquele tempo
perto dela. Isso não é bom. Até agora, Laura
sempre teve o efeito contrário em mim.
— Você não devia estar assim logo depois da
lua cheia — Paula fala.
Olho para a porta e um rosnado escapa antes que
eu consiga me controlar.
— E você não devia entrar aqui de surpresa.
Ela cruza os braços e encosta no batente da
porta.
— Não cheguei de surpresa. Fiz barulho o
suficiente para você ter me ouvido. Não é minha
culpa se está distraído demais.
Me viro de uma vez e volto para perto da janela
enorme na parede dos fundos. Ela provavelmente
fez isso, e se não ouvi... Não é um bom sinal.
— Caio estava voltando para a mata sorrindo de
orelha a orelha — ela comenta.
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Cruzo os braços e olho para ela. Paula entrou na


sala e está apoiada no encosto de uma cadeira.
— Ele veio conferir se realmente podia fazer
qualquer coisa com invasores — conto.
Ela faz uma careta.
— Você sabe que isso quer dizer que se alguém
entrar na mata sem ser convidado com certeza vai
morrer, não é?
Dou de ombros. Essa é a ideia.
— Não vou aceitar ninguém se aproveitando da
ordem de não usar força letal para ferir um dos
meus, como Gustavo fez.
Se fosse um metamorfo de vigia quando
Gustavo entrou aqui, e não um fey, ele
provavelmente o teria matado. Eu não vou deixar
que algo assim aconteça de novo. Se ele quer me
desafiar, pode fazer isso de forma direta. Ou então
pode enfrentar todo o meu bando.
Paula sorri.
— Isso vai ser interessante.
Quase tão interessante quanto uma humana
vivendo entre nós. O que, na verdade, é mais um
risco no meio de todos esses problemas.
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— Não posso ficar me preocupando com ela —


resmungo.
Paula revira os olhos.
— Ia ser mais fácil se você admitisse de uma
vez que sempre teve curiosidade sobre Laura, sabe
— ela comenta.
Respiro fundo e solto o ar lentamente. Não vou
responder. Não sei por que Paula enfiou na cabeça
que tenho algum tipo de interesse em Laura.
Curiosidade? Sim, por causa daquela coisa
diferente que ela tem, que normalmente me acalma
quando estou perto dela. E só. Não o que Paula
insiste em dar a entender.
— Não adianta me ignorar, Alexandre. Seja
honesto com você mesmo.
Já estou ao lado da mesa e indo na direção de
Paula antes de pensar no que vou fazer. Ela sorri e
seus olhos brilham. Paro.
— Está vendo? Irritado demais, sensível demais.
— Ela dá de ombros. — Não é à toa, aposto.
— Isso é sério, Paula. Não é uma das suas
brincadeiras de “vamos tentar arrumar um par para
quem está sozinho”.

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Ela se levanta de uma vez e vai na direção da


porta.
— Que seja, então. Só queria avisar que Bárbara
concordou em ir comigo conferir os limites da
propriedade. Ryan vai conosco.
Assinto, mesmo que Paula esteja de costas.
Bárbara é uma das fey, também, e provavelmente
quem tem mais sensibilidade para magia no
casarão. De forma geral, ela evita se misturar até
com o restante de nós, mas até os fey mais antigos
entendem o risco que isso tudo é. Um ataque no
casarão, sem explicação, sem nenhuma pista...
Tudo o que construímos aqui pode estar correndo
risco e, nesse caso, eles também vão sair perdendo.
Precisamos descobrir quem derrubou nossas
defesas e como, e nem a complicação que é a
presença de Laura aqui pode nos distrair. E, se
Ryan vai com elas, não preciso me preocupar com
algum tipo de armadilha. Se tem alguém no casarão
que conseguiria escapar de qualquer coisa, é ele.
Mesmo alguns dias depois de tudo, deve ter algum
vestígio de magia que as duas, juntas, vão
conseguir achar.
Ainda assim... Eu nem pensei em pedir Bárbara

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para verificar os limites da propriedade porque


tinha certeza de que ela ia negar. Ela nunca nos
ajuda. Precisei que Ryan entrasse no meio para que
ela concordasse em ajudar na defesa do casarão...
Ah. Isso faz sentido.
— Foi Bárbara? — Pergunto.
Paula para logo antes da porta e se vira para
mim.
— Que Isaac viu? Foi. E eu com certeza vou
aproveitar que ela está com a consciência pesada o
suficiente para ajudar.
Tinha que ser Bárbara. Suspiro. Nem eu sei qual
é sua forma natural e tenho minhas suspeitas de que
só Ryan sabe, na verdade.
— Faz bem. E eu vou avisar Ivan do que
aconteceu — falo.
Paula abre a porta e para.
— Tem certeza de que isso é uma boa ideia?
Não.
Dou de ombros.
— Se existe o potencial de um alfa ser morto no
que tecnicamente ainda é o território dele, é melhor
Ivan estar avisado.
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E sempre existe uma boa chance de Ivan


concordar comigo que isso é o melhor a ser feito.
Mesmo que eu tenha passado anos na sua matilha,
nunca consigo ter certeza de qual vai ser sua
posição. Quando falei com ele sobre vir para o
casarão pela primeira vez, foi uma aposta,
pensando que ele não teria tantos problemas com
um grupo misto quanto a maioria dos líderes do
Outro Mundo, já que sua companheira é mestiça.
Mas nem naquela época eu tinha certeza de alguma
coisa. Costumo pensar em Ivan como um aliado,
mas não consigo esquecer que, por bem ou por mal,
ele é parte do Conselho. Ou seja, ele é o único
membro do Conselho em quem confio, mas não é
alguém em quem eu posso confiar cegamente.
Paula assente e fecha a porta.
Suspiro e me sento, encarando o telefone. Sei
que ela não faz por mal. Não é a primeira vez que
Paula tenta bancar o cupido, mas isso é perda de
tempo. Não tenho nenhum tipo de interesse em
Laura. Nem vou ter, nem nela nem em ninguém. É
perda de tempo pensar nisso, sendo que qualquer
tipo de interesse desapareceria na primeira vez que
eu notasse que a outra pessoa estava com medo –
ou que simplesmente não tinha coragem de dizer
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“não”, preocupada com minha reação. E é


exatamente isso que aconteceria. Então não. Além
disso, já é um milagre que eu ainda esteja vivo e sei
que a maioria do Conselho ainda está esperando a
primeira oportunidade para dar a ordem para me
matar. Prefiro não dar nenhum motivo fácil – nem
um alvo – para eles. É melhor assim.
Pego o telefone e disco o número de Ivan.

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CAPÍTULO ONZE

L AURA
ENCARO O TETO DO QUARTO, TENTANDO IGNORAR O SOL
que está entrando pelas cortinas abertas. Hábito é
uma coisa impressionante: não tenho que trabalhar,
mas estou acordada às sete da manhã. E não acho
que ter fechado as cortinas fosse fazer alguma
diferença. Estou acostumada demais a acordar
nesse horário.
Se prestar atenção, consigo ouvir movimento no
casarão. Já tem gente de pé, mesmo que Paula
aparentemente seja a única que trabalhe fora. E é
interessante que ninguém tenha me explicado como
vivem assim, se ninguém trabalha. Se bem que
acho que a culpa disso foi minha, porque mudei de
assunto.
Me viro de lado, encarando a porta, e puxo a
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coberta para cima da cabeça. Não vou levantar


agora de jeito nenhum. Posso continuar
aproveitando a cama. E pensar.
Noite passada comecei a imaginar um plano
para escapar. Foi uma coisa muito de momento,
mas acho que tem potencial. Estou cercada por
seres mágicos. Uma bruxa colocou uma proteção
ao redor da casa toda que me impede de sair.
Mesmo que conseguisse sair, os metamorfos me
rastreariam bem depressa, tanto por terra quanto
por ar. É impossível. Então preciso fazer eles
confiarem em mim, até poder sair do casarão e
andar pela propriedade. Aí, quando ninguém estiver
esperando por isso, posso sumir. Quando
perceberem, já vou estar longe.
Vou precisar de dinheiro. Minha família toda
vai precisar desaparecer, e não é só uma questão de
nos mudarmos de bairro. Vamos ter que ir para
longe.
Isso vai ser bem demorado. Não posso ter
pressa, porque se der errado não vou ter uma
segunda chance. Ou vão me matar, ou nunca mais
vou ter uma oportunidade. Mas, mesmo que eu
demore anos para juntar o dinheiro que preciso para

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fazer isso, é melhor que que passar a vida toda


presa aqui.
E, enquanto isso, preciso aprender o máximo
possível sobre o Outro Mundo e todos que estão
aqui. Sorrio. Agora que tenho um plano, a ideia de
estar cercada por seres mágicos não é mais tão
assustadora. Quer dizer, é. Mas eu não posso deixar
isso me parar, então vou ignorar esse detalhe.
Jogo a coberta para o lado, me levanto e ligo o
notebook antes de me sentar. Tenho todos os sites
que Camila e Felipe me passaram, os de portfólio e
os de freelance. Já olhei alguns, mas foi coisa
rápida, enquanto ainda estava no sebo. É hora de
realmente estudar um por um e ver o que posso
fazer, que tipo de trabalho posso oferecer e a faixa
de preço.
Pensando bem... Acho que estar aqui quer dizer
que vou ter mais material ainda para minhas
ilustrações. Se eu já costumava fazer todos os meus
desenhos com um tom um pouco fantástico, agora,
então... Sorrio. Isso pode ser bom.
Minha barriga ronca, me lembrando de
providenciar o café da manhã antes de me
empolgar na frente do computador. Se não fizer
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isso agora sabe-se lá que horas vou lembrar de


comer.
Troco de roupa depressa e paro na frente da
porta. Metamorfos e sidhe. Nada além do normal.
Nada mesmo, se eu levar em consideração que
provavelmente já conheci outros tantos seres
mágicos e nunca nem imaginei que não fossem
humanos. Respiro fundo. Espero que Rodrigo
esteja certo e uma hora dessas eu me acostume com
isso.
Quando entro na cozinha, só tem uma mulher
sentada em uma das mesas compridas, com comida
o suficiente para umas duas pessoas na sua frente.
Daiane, uma das metamorfas que passou pouco
tempo conosco ontem, mas que ajudou na “aula”
sobre o Outro Mundo. Olho para a área atrás do
balcão, mas não tem nem sinal de Amara ali.
— A essa hora, ela está dormindo — Daiane
fala.
Me viro para ela, que gesticula para eu esperar
enquanto engole.
— Amara não desce antes das dez da manhã.
Quem chega na cozinha primeiro faz o café. Caio
fez o de hoje, então está bem forte. — Ela aponta
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para um armário de madeira do outro lado do


balcão. — Se quiser chá, estão em uma das gavetas
do primeiro armário. Tem leite, suco e frutas na
geladeira. Pães, roscas e biscoitos no armário. E se
não me engano tem um bolo de laranja em algum
lugar.
— Entendi — murmuro.
Pego um prato pequeno em cima do balcão e
então mudo de ideia. Já sei que a comida aqui é
boa, melhor pegar um prato grande de uma vez.
Encho o prato, pego uma das garrafas de café e
levo tudo para a mesa, antes de voltar e pegar uma
xícara. Daiane sorri quando me sento na frente
dela, mas não fala nada. Acho que está concentrada
demais na comida, e não a culpo.
Comida boa, quarto luxuoso, internet rápida... É
bem possível que se alguém tivesse vindo atrás de
mim e me oferecido uma estadia aqui por tempo
indeterminado, eu ia ter aceitado, sem essa coisa
toda de ser uma refém e prisioneira. Idiotice deles.
Se eu tivesse sido convidada dificilmente ia querer
sair daqui.
Tomo um gole de café e quase cuspo. Meu
Deus, o que é isso aqui? Porque não dá para chamar
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de café não.
Daiane ri e empurra o pote de açúcar para mim.
— Se você encher de açúcar até parecer um
xarope fica bebível.
Faço uma careta, pego uma colher e começo a
jogar açúcar na xícara. Acho que nunca tentei
tomar um café tão forte, e olha que sou quase
movida a cafeína.
— Quem é que bebe isso aqui? — Resmungo.
Mesmo depois de jogar açúcar, essa coisa ainda
está quase intragável.
— Caio — Daiane responde, indicando a janela
atrás de mim com a cabeça.
Olho para trás. Consigo ver duas pessoas
conversando no gramado. André, o outro
metamorfo lobo, alto, negro e com dreads grossos
que vão até no meio das suas costas, e um cara bem
mais baixo, com o cabelo ruivo, quase vermelho
mesmo, quase na altura do ombro. Pelo visto as
histórias que aprendi na escola estavam certas ao
menos na questão da cor do cabelo do curupira. Na
verdade, em mais de uma coisa. Tenho quase
certeza de que ele está fumando, mas eles estão
longe demais para eu ter certeza.
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Certo. Tem um louco que gosta desse café.


Gosta mesmo, ou será que só não sabe fazer de
outro jeito? Balanço a cabeça e dou uma mordida
no meu misto quente.
Quase pulo quando escuto a porta dos fundos se
abrir e me viro para ela, segurando a alça da minha
xícara com força. Na pior das hipóteses, tenho pelo
menos alguma coisa para arremessar.
— Relaxa — Daiane fala, sem nem levantar a
cabeça.
Respiro fundo quando Caio entra. Eu
definitivamente preferia que Lavínia tivesse
apagado minha memória de sábado. Pelo menos eu
não ia estar com medo da porta se abrindo.
Me forço a me concentrar no meu misto quente
e não ficar encarando enquanto Caio passa pelas
mesas e vai direto para o balcão que separa a área
do refeitório da cozinha propriamente dita.
— E aí, Laura.
Ele pega uma caneca, para do meu lado e pega a
garrafa de café. Não vou olhar para baixo para
conferir se os pés dele são virados para trás. Não
vou. Hmm, não são. Estranho. Será que eu estou
confundido as lendas?
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— Eu falei que ela não ia durar cinco minutos!


— Caio grita, olhando para fora.
Consigo ouvir a risada de André. Mas o que...
Droga. Ele está falando de mim. Ele me viu
olhando. Sinto meu rosto queimar. Nem sei por que
estou com vergonha. Sei lá, é estranho. Tá, na
verdade eu sei porque estou com vergonha. Se
fosse eu, não ia gostar de ser analisada assim.
— Os metamorfos têm uma forma humana —
ele fala antes de eu conseguir dizer qualquer coisa,
indicando Daiane com a cabeça enquanto enche sua
caneca de café. Levanto as sobrancelhas. Esse café
está super forte e ele vai beber como se fosse Coca-
Cola? — Os fey têm um tipo de magia específica
que nos deixa passar por humanos. Como acha que
nos escondemos esse tempo todo?
— Faz sentido — murmuro.
Admito que nesse momento estou mais
assustada com o tamanho da caneca que ele encheu
de café mega forte.
— Os fey e os demônios — Daiane resmunga.
Me viro para ela. Como foi que demônios
vieram parar no assunto?

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— O quê?
— Os fey e os demônios. — Ela me encara. —
São os dois tipos de seres do Outro Mundo que têm
esse tipo de habilidade. Dizem que são aparentados.
Espera, os fey e os demônios são aparentados?
Engulo em seco. Estou numa casa cheia de fey.
— Ignore ela — Caio fala, se sentando ao meu
lado e esticando o braço para pegar o pedaço de
bolo que está no meu prato antes de dar um gole
enorme naquele café. — Ela só está sentida por
causa de um dia que fiz ela passar umas boas horas
dando voltas na mata sem conseguir achar o
caminho de volta para o casarão.
Levanto as sobrancelhas, olhando de um para o
outro. Daiane resmunga alguma coisa baixo demais
para eu ouvir e mostra o dedo do meio para Caio.
Ele ri e dá de ombros.
Loucos. Mas... Digamos que se ignorar o fato de
que Daiane é uma metamorfa e Caio é um curupira,
meu tipo de loucos.
Acho que fingir que estou me conformando em
ficar aqui não vai ser tão difícil assim.
Caio sai da cozinha pouco tempo depois,
levando sua caneca – que ele encheu de novo.
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Sério, como é que ele consegue beber isso como se


fosse Coca? E eu pensava que eu gostava de café
forte. O dele é uma coisa fora do normal. Nunca
mais. Tomo mais um gole do meu café. É, nunca
mais mesmo.
— Tem algum problema se eu subir com
comida? — Pergunto assim que termino.
Daiane para com um biscoito de polvilho a meio
caminho da boca.
— Bandejas no segundo armário. Deixe as
garrafas de café grandes aqui embaixo, tem
algumas menores no mesmo armário. E desça com
as coisas quando voltar na cozinha.
Balanço a cabeça. Que tipo de lugar é esse?
Esse casarão é tão grande que poderia funcionar
como uma daquelas pousadas turísticas. Espaço não
ia faltar. E, pelo visto, nem utensílios ou
atendimento. Eu ainda não faço ideia de quantas
pessoas moram aqui, mas o tanto de comida que vi
quando estava fazendo meu prato é mais que o
suficiente para um hotel pequeno.
Faço café, pego uma das garrafas térmicas
pequenas, uma bandeja, esquento alguns
salgadinhos congelados no micro-ondas e volto
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para o meu quarto. Não vejo ninguém enquanto


estou subindo, mesmo que escute Alexandre e
Jorge conversando em uma das salas perto da
escada e mais alguém no segundo andar. Não sei se
estão me dando espaço ou se foi coincidência, mas
não vou reclamar.
Coloco a bandeja na mesa e encaro a tela escura
do notebook por um instante. Comida,
computador... Só falta a música. Olho para a minha
mochila. Pegar ou não pegar minhas caixinhas de
som?
Respiro fundo. Se querem me manter presa aqui
pelo resto da vida – ou até quando o Outro Mundo
resolver se mostrar para a humanidade – vão ter
que aguentar a Laura de verdade. Não vou ficar
pensando se estou incomodando ou não. Eles não
pensaram se estavam incomodando antes de me
colocarem nessa situação.
Pego as caixinhas de som, ligo no notebook e
escolho uma das minhas playlists favoritas. Hora de
começar a trabalhar.

···
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A LEXANDRE
QUEM É QUE RESOLVEU DESENTERRAR A PLAYLIST FUNDO
do baú? Inclino a cabeça, tentando localizar de
onde essa música está vindo. Alguém resolveu
começar a beber antes do meio dia? Porque só
assim para colocarem... Isso é ABBA?
Jorge franze a testa, me encarando, e balanço a
cabeça.
— Só tentando descobrir quem é que está
ouvindo velharias a essa hora — falo.
Ele olha para a estampa da minha camisa – a
capa de um álbum do Judas Priest que foi lançado
algumas décadas atrás. Dou de ombros. Uma coisa
é alguém colocando velharias de rock e metal. Isso
é o normal do casarão, na maior parte do tempo.
Não que rock e metal fiquem velhos. Outra coisa
muito diferente é alguém colocando ABBA.
Jorge solta o ar de forma audível antes de
balançar a cabeça.
— Se parecer que vamos ter algum problema
com os antigos, te aviso.
Assinto. Foi por isso que ele veio falar comigo –
alguns dos fey mais antigos, os que normalmente
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preferem se isolar, estão incomodados com Laura


aqui. Não acho que isso possa dar algum problema,
ainda mais se Ryan concordou com nosso plano e
disse que vai ajudar no que puder. Mesmo assim,
sempre é bom ter mais alguém prestando atenção
na situação.
Jorge sai da sala e deixa a porta aberta. De
propósito, claro. Olho para cima. A playlist de
velharias continua tocando. Quem...? Idiota. Laura.
Ela está em um quarto sem isolamento acústico,
justamente para sabermos o que ela está
planejando. Balanço a cabeça. Paciência. No
mínimo, vai ser divertido ouvir os resmungos do
pessoal.
E eu devo um pedido de desculpas para ela.
Suspiro e me levanto. Não queria pensar nisso
agora, mas foi minha ideia. É melhor fazer isso de
uma vez.
Subo para o segundo andar, reparando nas
portas fechadas. Quando reformamos o casarão,
colocamos isolamento acústico no máximo de
quartos que conseguimos e em todos os cômodos
que podiam precisar de privacidade. Eu só queria
saber se as portas já estavam fechadas antes de
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Laura começar a ouvir música ou se fecharam para


não ouvirem a playlist dela.
Paro na porta do quarto de Laura e bato.
Nenhuma resposta. Se bem que, com o volume da
música, duvido que ela escute alguma coisa. Abro a
porta. Laura está praticamente debruçada sobre o
notebook, encarando a tela e mexendo uma mão
lentamente. Usando o touchpad para pintar? Como
é que ela consegue? Se as ilustrações que eu vi
foram feitas assim, Laura é muito melhor nisso do
que pensei.
Bato na porta de novo. Ela não dá o menor sinal
de ter ouvido.
— Laura — chamo.
Ela pula na cadeira e coloca uma mão no peito.
Resisto à vontade de sorrir.
— Eu bati, mas imagino que não tenha ouvido.
Laura respira fundo, solta o ar de uma vez e
pausa a música. Se não estou confundindo nada,
agora é Roxette. Eu definitivamente nunca ia
imaginar que ela escuta essas velharias.
— Estava trabalhando — ela fala e dá de
ombros.

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— Notei.
E isso é bom. Se ela está trabalhando, é porque
está disposta a seguir em frente. Ela tem futuro
como ilustradora, se conseguir parar para investir
nisso, o que não acho que teria acontecido se
tivesse continuado como estava. Mas nada disso é
problema meu. Não vou começar a criar
justificativas e pontos positivos para Laura estar
aqui. A única justificativa que eu preciso é a
mesma que dei para o pessoal do casarão: entre
manter uma pessoa como refém e matar sabe-se lá
quantos, sempre vou preferir a refém.
Laura cruza os braços e continua me encarando.
Estreito os olhos. Tem alguma coisa de diferente
aqui...
— Você não está com medo.
Ela abre a boca para responder e para, antes de
balançar a cabeça.
— Deveria estar?
E estamos falando de Laura. Não deveria estar
surpreso com essa reação – nada que ela faz é o
esperado.
Balanço a cabeça.

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— Não de mim. Não aqui.


Ela suspira e se inclina para trás na cadeira,
olhando para os lados como se estivesse
procurando uma forma de fugir, mesmo que não
esteja com medo. Estreito os olhos.
— Fique de pé.
Laura coloca as duas mãos nos braços da
cadeira e inclina a cabeça. Ela não precisa abrir a
boca para eu entender o que ela quer dizer: quem
eu penso que sou para dar ordens assim?
— Isso vai dar trabalho... — murmuro.
Puxo a cadeira que está na frente da penteadeira
e a coloco do outro lado da mesa. Laura não fala
nada, só me acompanha com o olhar.
— A maioria dos seres do Outro Mundo que
você vai conhecer aqui são predadores. Mesmo que
você não tenha certeza, seu subconsciente
provavelmente vai ter. É instinto. — Me sento e ela
relaxa na mesma hora. Estava certo. Ela reconhece
isso. — Quando você tem uma pessoa de pé e uma
sentada, a pessoa de pé está em uma posição de
poder. A maioria das pessoas, humanos ou não, não
percebe isto conscientemente. Mas se um predador
estiver de pé e você estiver sentada, seus instintos
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vão avisar que tem algo errado.


Laura respira fundo.
— É uma posição vulnerável. De presa.
Assinto. E ela continua sem medo. Isso é uma
surpresa, de novo.
— Então da próxima vez que algum de vocês
chegar assim, eu mando sentar? — Ela pergunta. —
Se tenho que prestar atenção nisso de linguagem
corporal, fazer isso não seria um desafio?
— Você não tem que prestar atenção na
linguagem corporal. Só expliquei porque você
estava desconfortável enquanto eu estava de pé.
Com o meu pessoal, pode mandar se sentarem.
Agora, com pessoas de fora...
Ela faz uma careta.
— É melhor eu me levantar. E sair do caminho,
se possível.
Eu acrescentaria um “e achar alguém que
consiga te proteger”, mas não acho que seja uma
boa ideia dizer isso agora.
— Entendi. Agora, se me dá licença... — Laura
gesticula na direção do notebook.
Ela está me mandando embora? Quem diria.
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Mas ainda não falei o que preciso.


Apoio os dois braços na mesa e me inclino para
a frente.
— Eu te devo um pedido de desculpas. Disse
que avisaria quando não fosse seguro sair do seu
quarto.
Laura me encara e assente devagar, sem falar
nada.
— Não imaginei que Gustavo fosse chegar a
esse ponto, ou teria dado instruções para que não
saísse do quarto, já que eu não estaria aqui —
continuo. — Como falei ontem à noite, isso não vai
se repetir.
— E por que não estava aqui? — Ela pergunta.
Porque não era seguro estar aqui.
— Posso morar aqui, mas minha vida não está
restrita ao casarão — falo.
Laura se afasta e cruza os braços. Agora ela está
com medo. Perfeito. Eu devia só ter pedido
desculpas e saído, sem mais nada. Suspiro e
balanço a cabeça. As malas ao lado da cama
chamam minha atenção e me viro para encará-las.
Está tudo como quando ela chegou.

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— Você ainda não desfez suas malas.


E, por algum motivo, isso me incomoda.
— O que você quer, Alexandre?
Olho para ela. Pensei que fosse óbvio.
— Conversar.
Ela me encara, de boca aberta.
— Não temos nada a conversar.
— Laura...
— Me deixa trabalhar.
Suspiro e balanço a cabeça.
— Não sou o vilão aqui.
Laura se endireita e estreita os olhos.
— Não. Você é a pessoa que me forçou a
abandonar minha vida. Acho que tenho o direito de
não querer conversar, não é?
Olho para ela. Não tenho certeza de que entendi
certo. Mas não. Laura, a garota humana que eu teria
jurado que é uma presa, acabou de falar isso.
Me levanto e saio sem dizer mais nada. Eu disse
que ela não precisava ter medo de mim, então isto é
a única coisa que posso fazer. Se continuar no
quarto vou ter que responder a esse desafio –
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porque foi um desafio, mesmo que também tenha


sido a mais pura verdade.

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CAPÍTULO DOZE

L AURA
JÁ SÃO QUASE CINCO HORAS DA TARDE QUANDO DESÇO
para a cozinha – e isso só porque meus lanches
acabaram e minha barriga está roncando. Arrancada
da frente do computador por causa da fome. Sorrio.
Acho que nunca consegui passar o dia todo assim,
sem precisar me preocupar com nada, só
trabalhando em alguma ilustração. É bom, mesmo
que eu sinta falta de Marina aparecendo e dando
palpites enquanto tento acertar algum detalhe.
Do corredor já consigo ouvir várias vozes.
Dessa vez parece que desci em um horário de
cozinha cheia, mesmo que ainda esteja cedo para o
jantar. Eu só espero que tenha algum resto do
almoço em algum lugar.
Rodrigo, Daiane, Lavínia, André, Aline e mais
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dois caras que não conheço, mas me lembro


vagamente de ver no bar, estão sentados em uma
das mesas. Eles se viram para mim assim que entro
e paro na porta. Não preciso ter medo. Certo.
Vamos repetir isso até eu me acostumar.
— Por que eu tenho a impressão de que estavam
falando de mim? — Pergunto.
— Porque estavam, menina — Amara responde,
aparecendo do outro lado do balcão.
E ela não precisava confirmar. Suspiro e
atravesso a área do refeitório, tentando ignorar
como todos ainda estão me encarando. Qual é o
problema? Nunca viram uma humana?
Coloco a bandeja no balcão e olho para a área
da cozinha. Amara está mexendo em alguma coisa
no fogão que está cheirando muito bem, mas ainda
está cedo...
— Metamorfos comem demais — ela fala
quando me vê parada. — Deixe essa bandeja aí e
pegue alguma coisa para forrar o estômago
enquanto a comida não fica pronta.
Não discuto com ela, só vou até o armário e
pego um pacote de bolacha Maria. Pego requeijão
na geladeira, uma faca no balcão, e volto para a
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mesa. Se é para “forrar o estômago”, vou


aproveitar.
Olho ao redor assim que me sento. Quando
desci, estavam conversando tão alto que eu estava
ouvindo do corredor. E agora mal e mal estão
falando alguma coisa. Mesmo se Amara não tivesse
confirmado, eu ia saber que estavam falando de
mim. Estou me sentindo de volta no colégio e essa
não é uma boa comparação. Ignoro os comentários
em voz baixa e começo a passar requeijão nas
bolachas.
— E então? — Rodrigo pergunta.
— E então o quê? Não sou adivinha —
resmungo.
— O que você fez com Alexandre? — Lavínia
explica.
Paro e coloco a bolacha que estou segurando em
cima da mesa. O que eu fiz com Alexandre? Só
falei o que estava pensando. Isto é, se estiverem
falando sobre o que aconteceu quando ele foi no
meu quarto.
— Hein? Do que vocês estão falando?
Eles se entreolham e Rodrigo apoia os dois
braços na mesa, se inclinando para a frente.
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— Sabemos que Alexandre foi conversar com


você. E vimos quando ele saiu do casarão e foi
direto para a mata...
— Para perto do terreno da construtora —
André interrompe.
Rodrigo assente.
— Isso. E alguém ouviu ele falar alguma coisa
sobre “aproveitar para conferir as defesas”.
Respiro fundo e dou uma mordida na minha
bolacha. Por que estão me contando isso?
Lavínia suspira e dá um tapa no ombro de
Rodrigo.
— O que esses fofoqueiros estão tentando dizer
é que Alexandre saiu daqui depressa, mal olhando
no rosto de quem estava em casa, bem incomodado
com alguma coisa. Se bem que não sei se
incomodado seria a palavra certa — ela conta e
olha ao redor da mesa.
— Irritado — um dos caras que não conheço
fala.
— Fora do ar — Daiane completa.
— Surpreso. — Amara bate com uma bandeja
sobre o balcão, fazendo todo mundo se virar para
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ela. — Ele estava surpreso. E um tanto quanto


pensativo.
Dou de ombros. Não tenho que me importar
com isso. E, aliás, que tipo de pessoa fica surpresa
depois de ouvir o que eu falei? Faria mais sentido
se ele tivesse ficado irritado. Foi ideia dele me
pender aqui, não foi? Na verdade, ele não tinha
nem que ficar irritado ou incomodado.
— A questão é, — Lavínia continua,
gesticulando como se a palavra certa não
importasse. — Alexandre foi conversar com você
justamente quando nenhum metamorfo estava no
casarão. Pode ter sido só uma coincidência, mas
acho que ele queria ter certeza de que ninguém ia
ouvir vocês. E depois saiu surpreso e pensativo e
foi direto para uma área que ele evita ir durante o
dia. Então. O que você fez?
Falei a verdade, só isso. Respiro fundo.
— Você sabe que vocês estão parecendo um
bando de velhas fofoqueiras, não é?
— É exatamente isso que somos. Um bando de
velhas fofoqueiras. — Rodrigo assente e Aline
balança a cabeça, revirando os olhos. — Vamos,
fala logo.
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— Eu mandei ele sair. — Dou de ombros.


— Só isso? — Lavínia insiste.
Suspiro. Eles não vão parar.
— Ele falou que queria conversar. Eu falei que
não tinha nada para conversar com ele. Ele falou
algo sobre não ser o vilão e eu falei que ele é a
pessoa que me fez abandonar minha vida.
Alguém solta um assobio baixo. Rodrigo e
Lavínia se inclinam para trás e trocam um olhar que
não sei interpretar. Daiane olha para um dos caras
que não conheço e os dois riem, enquanto Aline
parece estar contando alguma coisa nos dedos. Eles
definitivamente são loucos. Olho na direção da
cozinha. Amara está parada atrás do balcão, me
encarando com uma expressão surpresa. Ela
também?
— Vocês têm problemas — murmuro antes de
voltar a comer minhas bolachas com requeijão.
— Ahhh não. Nós não — Aline fala. — Você
tem.
Todos assentem e Daiane solta mais uma risada.
Olho para o teto. Não quero nem pensar em mais
problemas. Estar aqui já é o suficiente. Não vou
perguntar. Só vou comer minhas bolachas, voltar
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para o quarto e continuar a mexer na ilustração que


estou fazendo antes de descer para jantar.
— Isso vai ser interessante — um dos caras na
outra ponta da mesa fala.
— Bem interessante. — Aline assente.
— Vamos ter diversão. — Rodrigo cruza os
braços atrás da cabeça, sorrindo.
Meu olhar para em Lavínia, que está me
analisando. Até ela? Bufo e tampo o copo de
requeijão. Pensei que tinha ficado livre de velhas
fofoqueiras, mas estou começando a achar que eles
são piores que Dona Neuza. E isso definitivamente
não é um elogio.
— O que eles não estão falando é que, depois
disso, Alexandre provavelmente está interessado
em você.
Quase cuspo o pedaço de bolacha que estou
mastigando quando Amara fala. O quê? Alexandre,
interessado em mim? O que esse povo andou
bebendo?
— Provavelmente? Eu diria um “com certeza”.
— André assente, se levantando e gesticulando
para os dois caras que nem lembrei de perguntar o
nome. E nem vou perguntar agora.
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Os outros dois se levantam e quando vejo os três


já estão abrindo a porta dos fundos e saindo. Não
sei se acho bom ou ruim ter menos gente aqui,
especialmente se o assunto vai ser esse. E eu ainda
acho que eles estão é loucos.
A bolacha que estou segurando cai quando vejo
um brilho amarelado cercar André e no instante
seguinte um lobo enorme e castanho está parado
onde ele estava. Puta merda. Um dos caras fecha a
porta, mas eu continuo olhando para o mesmo
lugar. Uma coisa é ouvir eles dizerem que são
metamorfos. Outra coisa é ver o que eu acabei de
ver. Ele...
— Fecha a boca, Laura — Rodrigo fala.
Obedeço.
Eu realmente vi André virar um lobo. Certo. Eu
já sabia que ele é um metamorfo, mas... Ele acabou
de se transformar, e...
— Instantâneo? — Pergunto. — Sem ossos se
quebrando para mudar de formato nem...
Lavínia solta uma gargalhada e os outros
metamorfos na mesa se encolhem.
— Caralho, mulher, que tipo de filmes você
anda assistindo? — Daiane pergunta.
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Encolho os ombros. Na verdade, a questão é o


que andei lendo, mas acho que não vem ao caso.
Aline pega a bolacha que deixei cair.
— Transformação instantânea, sem nada dessas
coisas aí de filmes de terror. — Ela se encolhe de
novo. — Consegue imaginar que maravilha que
seria se transformar se toda vez... Ai, não gosto
nem de pensar.
Faz sentido. Mesmo assim... Olho para a porta
de novo. Tá, eu não estava esperando ver aquilo.
Não sei por que, mas não estava. E aquele brilho
em volta de André... Certo, é magia. Pare de tentar
achar alguma explicação lógica.
— E ela não está com medo — Rodrigo
comenta, rindo.
Aline joga um pedaço de bolacha nele. Boa.
Ofereço o pacote para ela enquanto ele resmunga.
— Sem guerra de comida na minha cozinha! —
Amara grita.
Aline me devolve o pacote, suspirando.
E eu acho que guerra de comida, transformação
instantânea e eu estar ou não com medo não são o
que eu quero saber. Estreito os olhos. Não esqueci

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o que eles falaram antes de André se transformar.


Aponto para Lavínia com o pacote.
— Explique essa coisa toda que vocês
arrumaram sobre Alexandre estar interessado.
Ela ri e cruza os braços. Tento não prestar
atenção na reação dos outros, especialmente de
Rodrigo, senão tenho certeza de que eles vão me
distrair de novo.
— Você o desafiou — Lavínia fala. —
Alexandre é o nosso líder porque é o mais forte.
Deuses, se ele entrasse no meu quarto e falasse que
queria conversar comigo, eu ia parar o que
estivesse fazendo e ouvir, porque não sou louca de
mandar ele sair ou dizer que estou ocupada.
Dou de ombros, olhando para o tampo da mesa.
Acho difícil de acreditar nisso. Lavínia parou o
outro alfa – Gustavo – praticamente sozinha, pelo
que entendi. E ia abaixar a cabeça assim para
Alexandre?
— Ele falou vezes demais que eu não precisava
ter medo — murmuro.
— E é exatamente esta a questão. Mesmo
quando ele ia no sebo, você não tinha medo dele —
Lavínia continua.
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Levanto a cabeça.
— Não era bem assim...
— O que foi que Paula falou, mesmo? —
Daiane pergunta.
— Que ela sentia que ele era um predador, mas
não congelava nem fugia — Amara responde. Pelo
visto ela é quem tem boa memória aqui.
O comentário dela está bem perto da verdade.
Não vou falar que não sentia medo. Se é que posso
chamar aquela sensação estranha de medo. Mas
nunca evitei Alexandre por causa disso. Nem teria
evitado, como via as pessoas da cidade fazendo.
E aliás, por que é que sabem disso?
— Paula ficou falando de mim? — Pergunto.
Lavínia balança a cabeça.
— Ela contou isto quando Alexandre sugeriu te
trazer para cá. Ninguém achou que seria uma boa
ideia...
— Uma humana, que não faz a menor ideia de
que o Outro Mundo é real, no meio de nós? —
Rodrigo gesticula indicando o casarão. — Não
daria certo. Pelo menos, não com as pessoas que
conhecemos em Monte das Pedras.
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Abro a boca para responder e mudo de ideia. Ele


está certo. Me lembro muito bem de ver Maria
Alice atravessando a rua para não passar ao lado de
Alexandre, quando ele foi comigo até em casa. Se
ela tivesse vindo parar aqui... Melhor nem
imaginar.
— E isso tudo não explicou nada — falo.
Lavínia e Aline se entreolham e Aline dá de
ombros. Lavínia suspira.
— Você não recuou. Você o desafiou, mesmo
sabendo que ele é muito mais forte que você. Você
deixou claro que não vai aceitar o que ele falar e
ponto. Isso é mais que o suficiente para fazer ele
prestar atenção em você, porque não é qualquer
uma que conseguiria fazer isso com um alfa como
Alexandre.
— E porque eu não obedeci calada, ele vai ficar
interessado? — Nem tento esconder minha
surpresa.
Não consigo deixar de me lembrar de todas as
vezes que discordei de Rick, que sempre
terminavam em briga. Pelo que eu sei, dizer o que
eu penso e agir como quero são as formas mais
fáceis de garantir que alguém nunca vai ter
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interesse em mim. Foi o que sempre vi acontecer


com minhas amigas. E ouvi mais de um amigo de
Rick lhe dar parabéns pela paciência que ele tinha
comigo.
— Qual é a graça de estar com alguém que
sempre abaixa a cabeça para você? — Rodrigo
pergunta, se desviando de uma cotovelada de Aline.
Engulo em seco e encaro o pacote de bolachas
na minha frente. Não sei como responder. É o
certo, não é? Se meu namorado fala, eu tenho que
concordar. Ou, se for discordar e discutir, não
posso fazer isso na frente dos amigos dele, porque
tira a moral dele. E eu nunca percebi o quanto esse
tipo de coisa está enfiado na minha cabeça, mesmo
que eu nunca tenha concordado, se parasse para
pensar.
Amara avisando que a comida está pronta me
poupa de falar qualquer coisa.

···
A LEXANDRE
ENCARO OS ALICERCES DOS PRÉDIOS, DO OUTRO LADO DA
cerca. Assim que tiver certeza de que não vamos ter
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nenhuma surpresa, vou construir um muro ao redor


da propriedade. Quando viemos para cá, pensei que
a cerca fosse ser o bastante. Estamos no interior,
numa área rural. Cercas são o normal. Mas, agora
que estão construindo um condomínio bem ao
nosso lado, um muro é mais seguro. Bem alto, de
preferência. Quem teria imaginado que iam fazer
um condomínio aqui? Eu queria entender como
estão conseguindo vender.
— Ainda não cansou de ficar encarando isso aí
não? — Caio pergunta.
Pelo menos desta vez eu não estava tão distraído
a ponto de não ouvir quando ele se aproximou.
— Vamos ter que fazer um muro ao redor da
propriedade — falo, me virando.
Caio está encostado em uma das árvores, de
braços cruzados. Minha sorte é que foi ele quem
me encontrou aqui, e não Paula. Ela ainda deve
estar na loja. Tenho certeza de que a essa hora Caio
já sabe o que aconteceu mais cedo, quando fui falar
com Laura, mas ele não tem coragem de fazer
nenhuma brincadeira sobre isso. Ah, ele e os outros
podem até falar nas minhas costas, mas têm medo
demais de fazer esses comentários onde posso
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ouvir. Paula é a única que faz isso, e às vezes


Rodrigo.
Acho que posso colocar Laura nessa lista.
Depois de como ela me mandou embora, não tenho
a menor ilusão de que ela vai pensar duas vezes
antes de fazer qualquer tipo de comentário ou
brincadeira. Isso é, se sua raiva passar o suficiente
para ela se divertir às minhas custas. O que ela
disse é verdade – eu fiz com que abandonasse sua
vida. Mas não vou me desculpar por isso. A
alternativa era pior e duvido que Laura discorde
disso.
E ela me desafiou. Sorrio. Uma humana, logo
depois de descobrir sobre o Outro Mundo, que está
como uma refém entre nós, e ela me desafiou.
Paula estava certa. Laura não era uma presa,
mesmo que não fosse um predador. Ela era algo
diferente, e agora eu fazia questão de descobrir o
quê.
Caio faz um ruído estranho. Estreito os olhos.
Tenho a impressão de que isso foi ele tentando
segurar uma risada.
Ele limpa a garganta.
— Jorge mandou avisar que tem um recado
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urgente para você.


E, sendo Caio, não adianta nem perguntar
porque ele não falou isso primeiro, já que é
urgente. Assinto e começo a correr na direção do
casarão. Já conheço a mata tão bem que mesmo em
forma humana não tenho o menor problema em
correr pelas trilhas estreitas. Em poucos minutos
estou no gramado, já com o casarão à vista. Paro de
correr quando estou no meio do jardim que cerca a
casa. Não me esqueci do que aconteceu da última
vez que alguém entrou correndo na cozinha. Prefiro
evitar irritar Amara.
A porta se abre logo antes de eu esticar a mão
para a maçaneta. Amara me encara dos pés à
cabeça e assente.
— Ela viu André e os outros lobos se
transformarem.
Levanto uma sobrancelha. Não pensei que
alguém fosse correr o risco de se transformar perto
de Laura tão cedo.
Amara sorri.
— A primeira pergunta dela foi se a
transformação não devia envolver ossos se
quebrando para mudar de forma.
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Reviro os olhos. Previsível. Laura trabalhava em


um sebo e eu tenho uma boa ideia de como a
transformação é mostrada em uns tantos livros.
Aliás, em jogos e filmes também.
— Onde ela está? — Pergunto.
— Assistindo filme. E Jorge está te esperando
no escritório.
— Obrigado.
Vou direto para o escritório. Se Jorge está lá, é
porque é melhor que mais ninguém escute o que
tem a me dizer. Eu espero que não sejam problemas
com os fey.
Mas, pelo menos, Laura está se acostumando
aqui mais depressa do que imaginei. Quando o
pessoal se junta para assistir algum filme, sempre é
tudo muito relaxado e a maioria dos metamorfos
não fica na forma humana. Se chamaram Laura
para ir com eles, é porque ela não vai achar isso
estranho nem se assustar. Bom.
Entro no escritório e fecho a porta atrás de mim.
Jorge está parado de frente para a janela, olhando
para fora.
— O que houve? — Pergunto.

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Ele olha para mim e balança a cabeça antes de


apontar para o telefone.
— Ivan mandou você ligar para ele o mais
rápido possível. E ligar no celular, não no telefone
da fazenda.
O que quer dizer que, seja lá qual for o assunto,
ele não quer correr o risco de alguém da sua
matilha chegar na fazenda e ouvir o que não deve.
Assinto e Jorge sai sem falar mais nada. Se ele
precisar saber do que for discutido, vou lhe contar
depois.
Ivan atende no primeiro toque.
— Ótimo. Não me deram certeza de que você ia
voltar logo.
— O que houve?
Ivan respira fundo e escuto o ruído suave de
passos e então de uma porta se fechando. Ele está
garantindo que não vai ser ouvido.
— Gustavo fez uma reclamação formal sobre
seu bando, dizendo que foi atacado sem
provocação. Alguém fez questão de garantir que eu
fosse o último a ficar sabendo disso.
Porque o problema aconteceu no território dele,

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ou porque imaginavam que ele ficaria do nosso


lado? Mas não vou perguntar isso agora. Conheço
Ivan bem o suficiente para saber quando ele não
terminou de falar.
— Me questionaram sobre quais providências
eu tomaria, já que o ataque aconteceu no meu
território. O que, por si só, já deixa claro que não
foi um ataque não provocado, mas é melhor não
entrar nesses detalhes agora.
Respiro fundo. Desta vez Gustavo foi longe
demais. Uma denúncia formal para o Conselho,
manipulando a situação para tentarem nos expulsar
daqui – que é o que qualquer alfa faria... Ainda bem
que eu avisei Ivan sobre o que aconteceu.
— O que você vai fazer?
Ivan ri.
— Eu informei o Conselho de que o ataque não
aconteceu no meu território, é claro. E que se
Gustavo tem alguma reclamação, deveria resolver o
problema diretamente com você, como um alfa
deveria fazer.
Preciso de alguns segundos para ter certeza de
que entendi certo. Se Ivan está querendo dizer o
que eu acho que está...
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— Estou oficialmente lhe dando esta parte do


território — ele continua. — Tanto o Conselho
quanto Gustavo foram notificados. Isso quer dizer
que o Conselho vai aproveitar a primeira chance
para fazer uma visita oficial, mas você tem tempo.
Faça o que precisar fazer.
Eu não esperava por algo assim. Ivan nos dando
o território? Nunca teria pensado nessa
possibilidade. Os alfas, especialmente os que
controlam grandes regiões, não cedem território
assim. É um risco. Mas, como ele falou, também é
uma forma de nos dar tempo, porque se Ivan foi o
último a saber da reclamação de Gustavo, sendo
que foi algo que aconteceu aqui no casarão, é
porque alguém dentro do Conselho está tentando
nos prejudicar.
Mais um problema para a lista.
— Obrigado.
— Não me agradeça. Só faça valer a pena — ele
fala e desliga.
Ah, eu vou. Pode ter certeza disso.
Encaro o telefone desligado. Paula vai precisar
falar com Lílian de novo. E eu não tenho a menor
condição de pensar em todas as possíveis
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ramificações disso agora.


Saio da sala e subo para o segundo andar. Se o
pessoal organizou uma noite de filme, só tem um
lugar onde podem estar.
Entro na sala de entretenimento sem fazer
barulho. Ela é uma das maiores salas do casarão,
com a maior televisão que conseguimos comprar
montada contra uma parede e sofás marrons
encostados nas outras paredes, além de almofadas
espalhadas pelo chão. Paula chegou em algum
momento enquanto eu ainda estava na mata, porque
está em um dos cantos da sala, deitada no chão,
usando uma almofada de travesseiro. Rodrigo está
sentado do seu lado, encostado no sofá, e Aline está
em forma de gavião e empoleirada na perna dele.
Lavínia está deitada em um dos sofás. Juliano está
transformado, também, e estirado na frente da TV.
Caio também está aqui – deve ter voltado correndo
logo depois de me dar o recado de Jorge, já que
ainda não está no horário que ele assume a
vigilância – e está deitado em uma pilha de
almofadas, cutucando o gato-do-mato enorme que é
Juliano com o pé. E tem uma pilha de quatro lobos
deitados no maior sofá.

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Só quatro do meu pessoal em forma humana, e


Laura está sentada no chão, encostada em um dos
sofás perto da porta, sem a menor preocupação.
Isso é bom. Olho para ela de novo e então para a
TV. Estão assistindo Harry Potter, não sei qual dos
filmes. Acho que é o quinto, que saiu ano passado e
quase ninguém aqui viu ainda. Pensei que Laura
gostava desse tipo de história, mas ela está
parecendo irritada.
— Não gosta do filme? — Pergunto.
Laura se vira de uma vez e respira fundo. Rio
em voz baixa e me sento no chão, ao seu lado.
Tenho que parar de assustá-la assim, eu sei, mas é
mais forte que eu.
— Gosto dos livros. Dos filmes, nem tanto —
ela resmunga.
Rodrigo se vira na nossa direção e levanta uma
sobrancelha antes de dar uma cotovelada em Paula,
que olha de relance para nós e volta a encarar a TV.
Laura balança a cabeça com força e Rodrigo sorri.
Eu sabia que eles estavam falando pelas minhas
costas enquanto eu estava na mata. Suspiro e não
falo nada. Laura aperta a almofada que está no seu
colo, claramente irritada, mas pelo menos não está
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com medo. E a irritação é só por minha causa. Ela


está mais à vontade aqui do que imaginei.
Quando o tempo vai passando e eu não falo
mais nada, ela acaba relaxando. Olho para a frente,
sem prestar atenção na história. Tenho quase
certeza de que não vi esse filme, mas não me
lembro o suficiente da história dos outros para
acompanhar. Na verdade, nem se me lembrasse
conseguiria prestar atenção. A oferta de Ivan vai ter
repercussões que não estamos preparados para
enfrentar. Ele é um dos nomes mais respeitados
entre os metamorfos, e se está nos dando esse
território é porque confia em nós. De certa forma,
ele está se afastando das possíveis consequências
do que fizermos, mas ao mesmo tempo está
dizendo que está ao nosso lado. E pensar que eu só
queria me afastar da política do Outro Mundo...
O filme termina. Deixo eles discutirem, com
Paula e Laura ameaçando os outros com spoilers, já
que só as duas leram os livros, pelo visto. Eu
realmente não esperava que Laura fosse ficar tão à
vontade tão depressa, mas foi isso que aconteceu.
Alguém acende a luz.
— Vai ter filme amanhã de novo? — Rodrigo
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pergunta.
E acabou o momento de diversão.
— Não — respondo.
Todos se viram na minha direção. Laura se
arrasta para o lado, se afastando, ao mesmo tempo
em que me levanto e olho ao redor.
— A partir de amanhã, estamos em negociações
com os felinos — continuo. — Quero todos alerta e
nossas defesas no máximo, porque Gustavo não
está feliz com meus termos. Além disso, existe a
possibilidade de membros do Conselho virem nos
visitar para verificar nossa solução alternativa.
Ninguém fala nada. Não preciso falar que o
território agora é oficialmente nosso, eles
entenderam. Mas todos sabem que qualquer tipo de
negociação com Gustavo não vai ser pacífica. E
ninguém precisa ser lembrado de que uma visita do
Conselho nunca é um bom sinal.

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CAPÍTULO TREZE

L AURA
NÃO SEI COMO CONSEGUI DORMIR, ESPECIALMENTE
depois que Alexandre e Paula saíram para fazer
planos e Lavínia me contou o que uma visita do
Conselho significa. Quando me explicaram sobre o
Outro Mundo, eles disseram que cada grupo é
governado de forma independente. O que não
mencionaram foi que existe um Conselho com
representantes de todos os grupos dos seres
mágicos, que funciona como a última palavra em
casos que afetam o Outro Mundo em geral. Este
Conselho só se reúne em casos extremos e, pelo
visto, a situação com meu pai foi considerada algo
assim. Algo sobre ser um risco de exposição alto
demais, num momento complicado, sem uma
solução fácil. E me usarem como refém é algo novo
e uma ideia que não agradou boa parte dos seres
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mágicos.
Um arrepio me atravessa e me viro na cama,
encarando as cortinas fechadas. Quando eu pensei
que já estava me acostumando com isso tudo e que
não ia mais pirar... Mas uma coisa é estar no
casarão, cercada de seres mágicos que não têm o
menor problema comigo. Outra coisa é ficar
sabendo que o cara que me atacou vai passar dias
vindo aqui negociar e que outras pessoas que
concordam com ele podem vir também.
Respiro fundo e me levanto. Ainda está escuro,
mas um olhar para o meu celular me mostra que
não vai demorar muito para o dia clarear. E eu
tenho uma coleção de mensagens não lidas me
esperando. Encaro a tela do celular por um instante
antes de deixar ele no criado-mudo. Não estou com
cabeça para responder ninguém, e já falei que estou
viajando. Isso deve ser o suficiente para explicar a
demora.
Vou até a janela e puxo a cortina. Não sei o que
estou esperando ver a essa hora, só não quero ficar
parada. Nem quero ligar o notebook agora. Forço a
maçaneta, mas a porta que dá para a sacada nem se
move. Suspiro. Ia ser bom sair agora e sentir o ar

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frio do fim da madrugada no rosto.


Olho para onde o jardim termina e paro. Tem
alguém ali. Alexandre. Só ele se move assim. Não
consigo reconhecer a outra pessoa que está com ele,
mas parece que eles estão lutando. Ou melhor,
treinando, porque estão se movendo com calma
demais. Me lembro de ver Camila e Felipe
praticando, eles tinham um ritmo parecido.
Continuo encarando os dois corpos, pouco mais
que silhuetas mais escuras contra a paisagem. Os
movimentos deles são seguros, controlados. Não é
um treinamento, com uma pessoa mostrando para a
outra como agir, o que fazer. Nem é uma disputa,
com um tentando derrubar o outro. É simplesmente
prática... Movimentos repetitivos de pessoas que se
conhecem e confiam um no outro.
Me viro de volta para o quarto. Onde foi que
coloquei minhas coisas de desenho? Reviro minhas
malas depressa, pego papel e lápis, volto para a
janela e começo a desenhar.
Quando desço para a cozinha, ainda estou
pensando mais no desenho que em qualquer outra
coisa. Vou fazer este completamente à mão, sem
usar o computador para finalizar a pintura. Não que

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eu tenha como fazer isso agora. Antes, eu


escaneava meus desenhos no trabalho. Agora, se
quiser fazer algo no computador, tenho que fazer
tudo direto nele. Se bem que provavelmente tem
um scanner aqui em algum lugar. Levando em
conta o tamanho deste casarão, uma impressora
multifuncional não é pedir demais. Mas não vou
precisar disso. Tenho certeza de que esse desenho
vai funcionar melhor sem eu mexer com pintura
digital. Ou fazer qualquer ajuste. Até porque, não é
uma ilustração que vou tentar vender ou colocar em
portfólio. Hmm, talvez coloque em portfólio, só
para mostrar que trabalho com outras técnicas. Mas
este desenho é para mim.
Caio está sentado quando entro na cozinha.
Olho para a caneca de café na sua frente, para a
garrafa na mesa, e então para sua expressão
irritada. Daiane está na área da cozinha,
empilhando comida em uma bandeja. E tem uma
xícara de café na mesa, ao lado de uma bandeja
com bolo. Se ela está tomando café e Caio está com
aquela expressão, posso ter esperanças de que não
foi ele quem fez o café hoje?
— Tem pão de queijo — Daiane avisa assim
que me vê. — Se eu fosse você, aproveitava antes
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de mais alguém aparecer aqui.


— Opa!
Quase esqueço do café enquanto entro na área
da cozinha e pego um prato grande. Os pães de
queijo são daqueles pequenos, os meus favoritos,
não os grandes, de lanchonete. Não faço ideia de
quem arruma as comidas do café da manhã, já que
Amara ainda está dormindo, mas eles ainda estão
quentes. Encho o prato de pães de queijo e penso
em pegar mais alguma coisa. Melhor não. Pego
uma xícara, coloco tudo na mesa, e volto para
buscar um copo de requeijão e uma faca. Pão de
queijo quentinho com requeijão, não tem nada
melhor. Coloco um pouco de café e provo. É, não
foi Caio quem fez. Sorrio e encho a xícara. Ele me
encara e estreita os olhos.
— Bom dia para você também — falo.
Daiane ri enquanto ele estica a mão para pegar
um pão de queijo. Sentei do outro lado da mesa
justamente para ver se ele não roubava minha
comida, mas não adiantou muito.
— Bom dia — ele responde antes de dar uma
mordida.
Reviro os olhos e começo a passar requeijão nos
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pães de queijo. Minha ideia era comer qualquer


coisa depressa e voltar para o meu quarto, para
terminar o desenho. Mas pão de queijo quentinho é
uma coisa que não se recusa. Posso esperar. A
imagem de Alexandre e Rodrigo – eu o reconheci
quando o dia começou a clarear – treinando está
bem clara na minha mente.
Desta vez eu não pulo quando a porta dos
fundos se abre, mas é por pouco. Rodrigo e
Alexandre entram, os dois sem camisa. Olho de
volta para o meu café da manhã, mas não resisto a
dar uma olhada para eles com o canto dos olhos.
Pela forma como vi os dois se movendo mais cedo,
deu para notar que estão em forma. Não que eu não
tivesse reparado nisso antes, mas... Levanto a
cabeça de novo. Isso é estar em forma. Com todo o
tipo de ênfase possível. Braços definidos não
tinham me preparado para esses começos de
tanquinho.
Alexandre se vira para mim.
O que é pior? Desviar o olhar e fingir que não
estava encarando, ou continuar encarando? Me
lembro do que falaram sobre ele estar interessado
em mim. Droga.

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Rodrigo também se vira, levantando uma


sobrancelha, e sorri.
— Quer que eu vire de costas? Flexione?
Daiane coloca uma mão no rosto e consigo
ouvir seu suspiro. Caio solta uma gargalhada.
Sinto meu rosto queimar. Devo estar vermelha
que nem um pimentão, mas ah, quer saber?
— Já que está oferecendo, pode virar de costas e
flexionar?
Ele ri e obedece. Acho que minha manhã está
um pouco melhor. Rodrigo não tem músculos de
academia – a expressão que Camila usa para os
caras que só querem “crescer” — ele só é definido.
Muito bem definido, aliás, o que é fácil de entender
depois de passar um bom tempo assistindo
enquanto ele praticava. E a mesma coisa vale para
Alexandre, mas não vou olhar para ele de novo.
Rodrigo se vira de frente, flexiona mais um
pouco, e pisca um olho.
— Um bom dia para vocês.
Não consigo me conter e solto uma gargalhada
alta. Ele sorri e se vira na direção da cozinha. Com
o canto dos olhos, vejo Alexandre balançar a

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cabeça antes de fazer a mesma coisa, resmungando


um bom dia.
Caio estica o braço para roubar mais um pão de
queijo e eu estreito os olhos. Ele para com a mão
estendida.
— Vai ser melhor se você correr na cozinha e
encher outro prato grande, sabe — comento.
Ele ri e pega outro pão de queijo mesmo assim.
— Gosto de você, Lau. As coisas aqui
definitivamente estão mais divertidas depois que
chegou.
Reviro os olhos, mas não consigo evitar um
sorriso. Daiane resmunga alguma coisa em voz
baixa demais para eu ouvir, também sorrindo. Dou
de ombros e volto a comer.
Alexandre e Rodrigo se sentam do outro lado de
Daiane. De alguma forma, consigo não soltar um
suspiro aliviado. Não quero Alexandre do meu
lado. Ele pode estar sem camisa, pode ter um corpo
que merece ser encarado – começo de tanquinho é
muito mais sexy que tanquinho, porque quer dizer
que o cara não é um maníaco que vive em função
de ter um corpo perfeito – mas continua sendo a
pessoa responsável por eu estar aqui, presa, mesmo
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que seja uma prisão confortável. E eu não posso


ficar pensando nisso se quiser fazer eles relaxarem
o suficiente para ter uma chance de escapar.
Hora de pensar em qualquer outra coisa. Olho
de relance para os dois. Eles trouxeram bandejas de
comida tão grandes quanto a de Daiane e agora
entendo exatamente o que ela quis dizer sobre o
pão de queijo acabar depressa. Se tiver sobrado
alguma coisa, é milagre. Será que isso quer dizer
que ele é um metamorfo?
Tomo mais um gole de café. Não tinha pensado
nisso antes, mas eu sei o que todos que conheci são.
Mesmo que Lavínia não tenha falado exatamente
que tipo de fey que é, ela confirmou que é sidhe.
Mas Alexandre não falou nada sobre o que é. Só
disse que está fora da hierarquia dos metamorfos. E
Rodrigo, que fez questão de contar o que cada um
é, não falou nada sobre Alexandre. Ou seja, é meio
óbvio que ninguém vai falar. Por quê? Mesmo
assim, ele come como um metamorfo. Estreito os
olhos, olhando de relance para onde os dois estão
antes de voltar a me concentrar na minha comida.
André e Daiane são lobos, então se Alexandre for
um metamorfo, tem que ser mais forte que eles. Um
felino? Eu sei que falaram que não tem felinos
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aqui, mas tinha um na sala ontem, quando


estávamos assistindo o filme. Mas não. Se ele fosse
um felino, acho que teria mais problemas com o
outro alfa, o que me atacou. Um urso? Não, não
acho que ele tem cara de urso. E isso é um
argumento ridículo, mas a lógica não é exatamente
a regra aqui. Se eu fosse chutar alguma coisa, diria
que ele é um metamorfo, um lobo, também. Mas
não acho que isso seria o suficiente para ele ser
mais forte que Paula, que é uma bruxa e já deixou
claro que está logo abaixo dele na hierarquia do
bando.
E eu tenho a leve impressão de que posso passar
o dia inteiro pensando nisso e não vou chegar em
nenhuma conclusão.
Quando termino de comer e coloco meu prato e
minha xícara no balcão, Alexandre, Rodrigo e
Daiane ainda estão concentrados na sua comida.
Caio continua tomando goles de café com uma
expressão irritada, mas assente quando saio da
cozinha. Hoje não vou levar comida para o quarto.
Quero terminar de colorir aquele desenho agora de
manhã, sem me esquecer de descer para o almoço.
E acho que está na hora de desfazer minhas

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malas de vez.

···
É QUASE MEIO DIA QUANDO ALGUÉM BATE NA PORTA.
Levanto a cabeça, surpresa. O movimento nesse
andar voltou ao que acho que é o normal da casa,
mas ninguém além de Alexandre veio aqui depois
que comecei a descer. E eu não quero falar com ele.
— Quem é?
— Eu — Lavínia responde.
Reviro os olhos.
— Entra.
Ela abre a porta e olha ao redor. Sim, eu desfiz
as malas. Levanto as sobrancelhas, esperando
algum comentário, mas Lavínia não fala nada antes
de dar a volta na mesa e parar do meu lado.
— Só queria saber se ia ficar trancada no quarto
o dia todo, mas pelo visto tem um bom motivo para
ficar aqui.
Dou de ombros. Não adianta nem tentar
esconder o desenho: ele está em cima da mesa, com
meus lápis de cor espalhados ao redor. Acho que
ele está pronto, pelo menos por agora. Vou esperar
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uns dias para ver se não resolvo mexer em nada,


mas por ora... Está pronto. Eu só não queria mostrar
para ninguém ainda. Se é que ia mostrar para
alguém.
E eu preciso parar de tentar esconder meus
desenhos. Se quero viver disso, tenho que me
acostumar a mostrar para as pessoas e ouvir a
opinião delas.
Lavínia estica a mão para o desenho e o pega
quando não falo nada. Ela encara a folha,
levantando as sobrancelhas. Não é nada muito
elaborado. Alexandre e Rodrigo são silhuetas mais
escuras contra grama e a mata mais ao fundo, e
nada está muito definido. Quis desenhar do jeito
que vi a cena mais cedo: ainda estava escuro
demais para ver detalhes, então é mais um jogo de
sombras que qualquer outra coisa.
— Paula e Alexandre comentaram que você
mexia com arte digital — ela começa e para,
inclinando o desenho antes de olhar pela janela e de
volta para o desenho. — Achei que fosse só um
passatempo, mas isso aqui é excelente. Você viu os
dois praticando hoje cedo?
Assinto, sem nem tentar conter meu sorriso. Ela
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gostou. Não tem como ela estar fingindo, eu vi sua


surpresa quando Lavínia percebeu o que é o
desenho.
— Quero ver suas ilustrações. Anda. Tenho
certeza que tem mais coisa. — Ela coloca o
desenho em cima da mesa de novo. — Estou
falando sério!
— Eu não... — começo e paro.
O que estava pensando agora mesmo? Pois é.
Acostumar a mostrar meu trabalho. Sorrio. Meu
trabalho. Essas duas palavras têm um peso
diferente. As ilustrações são meu trabalho, não são
só um passatempo de criança ou uma perda de
tempo, como cansei de ouvir.
Respiro fundo.
— Espera que nem liguei o notebook hoje ainda.
Lavínia não fala nada enquanto puxo o notebook
e o abro. É estranho, mas quando estou fazendo
qualquer arte no computador, gosto de ouvir
música. E alta, de preferência. Não foi à toa que
comprei as caixinhas de som. Mas quando estou
desenhando à mão, raramente lembro de colocar
alguma música.
Abro a pasta com minhas ilustrações, clico na
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primeira imagem, e viro o notebook na direção de


Lavínia. Ela se inclina para ver, antes de fazer um
ruído irritado e ir puxar a cadeira da penteadeira.
— Vou falar para subirem com pelo menos mais
uma cadeira — ela resmunga antes de se sentar e
puxar o notebook.
Cruzo os braços, sorrindo. Não precisa pedir
outra cadeira, porque não vou ficar convidando
ninguém para vir aqui. Mas se ela faz questão, e
levando em conta que parece que mobília aqui é a
coisa mais fácil de se conseguir...
E Lavínia arrastou a cadeira quase como eu
arrastaria. Ela não é pesada, mas também não é
leve. Quer dizer, para alguém com mais preparo
físico, a cadeira não seria pesada. Para os
metamorfos, pelo que já vi, carregá-la não seria
nada demais. Se Lavínia a arrastou assim, quer
dizer que não é mais forte que uma humana. Então
como foi que ela parou Gustavo, no sábado?
Estreito os olhos, mas desisto de perguntar
quando vejo ela se inclinando e dando zoom nas
ilustrações. Ela realmente gostou.
— Ei, eu conheço esse teto — ela aponta para o
monitor.
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Me inclino para ver o que é. Lavínia parou em


uma das minhas ilustrações mais velhas, que fiz
usando uma foto de um dia que Camila me levou
para uma festa. A imagem é de uma pista de dança,
com várias pessoas dançando, as luzes e sombras
criando silhuetas que parecem saídas de um livro
de fantasia – ou de terror, dependendo do ponto de
vista – ao redor delas. Foi uma boa festa, com
música dos anos 80, que eu amo, e dançamos até o
dia amanhecer. Na ilustração dá para ver um pouco
do teto baixo do lugar, quadriculado e colorido.
— Matriz — assinto.
— Sem ofensa, mas não parece ser seu tipo de
lugar. — Lavínia se vira para mim.
Dou de ombros. O Matriz é uma casa de shows
um tanto quanto underground, pelo que sei. Nunca
ia ter ouvido falar dele se Camila e Felipe não
tivessem me arrastado para lá, fato. Mas não é
porque gosto de música pop e de umas coisas mais
velhas que não posso gostar de rock. Ou de
discotecagem anos 80 e o que mais que fosse
aquela mistura que tocavam no Matriz. Não fui lá
muitas vezes, admito, e nunca nos dias de show, só
nas festas com discotecagem. Mas uma coisa não

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impede a outra.
— Uma amiga vai muito lá — comento. — Ela
me levava.
Lavínia sorri.
— Já fui lá algumas vezes, na época que
passava mais tempo em BH.
Ela continua a passar as imagens, parando e
dando zoom em algumas, sorrindo quando vê
outras.
— Ei! — Lavínia para e aponta para o monitor
de novo. — Então era dessa Camila que vocês
estavam falando no bar! Por que ninguém falou que
era a Camila de cabelo branco? Como se eu fosse
lembrar...
É a mesma ilustração que Camila pediu um
pôster: ela saltando do alto de uma cachoeira numa
das viagens que fizemos.
Solto uma risada.
— Eu me lembro perfeitamente de ter falado
que a Camila minha amiga tem o cabelo pintado de
branco. E olha que você não bebeu metade do que
eu bebi.
Ela resmunga alguma coisa sobre resistência a
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bebidas que nem tento entender enquanto dá zoom


na imagem.
Espera. Espera. Eu mencionei Camila no bar,
quinta passada... Quando estava bebendo com
pessoas do Outro Mundo. E uns tantos lá a
conheciam. Tá, metade do pessoal que estava lá
mora em BH, mas mesmo assim. E agora Lavínia
também a conhece. Quais as chances de isso ser
uma coincidência?
Deixo Lavínia olhando a ilustração e vou atrás
do meu celular. Ele está em um dos criados-mudos,
ainda com a notificação de mensagens não lidas. E
elas vão continuar sem serem lidas. Vou direto para
minha conversa com Camila. Todas as mensagens
que ela mandou nos últimos dias... Vejo a última
mensagem dela de relance, falando que tudo no site
que vende os pôsteres está okay. Não quero que
isso faça sentido, mas não preciso ver as datas e
horas das mensagens para perceber. Depois de uns
dois meses sem falar nada, Camila me manda uma
mensagem. E rende assunto. Me dá todos os
incentivos que preciso para continuar firme, manter
a cabeça no lugar... Que era o que eu precisava para
terminar com Rick logo antes de ser trazida para cá.
E, de novo, quando eu estava pirando, ela me
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lembrou que eu tinha algo meu, mesmo que


estivesse presa.
Não tem como isso ser coincidência.
Digito minha mensagem depressa, apagando as
palavras umas tantas vezes, porque estou tremendo.
Laura: O que você é?
Eu sabia. Sabia. Não foi à toa que uma das
primeiras coisas que pensei foi em quantas pessoas
eu conheço podem não ser humanas. Primeiro
Paula, agora Camila. E Felipe também. Eles
cresceram juntos, o que provavelmente quer dizer
que são de um mesmo grupo. Mesmo clã, não é
assim o certo? E ela estava me manipulando esses
dias todos.
Camila: Mensagem picada? Não entendi.
Respiro fundo. É óbvio que ela não vai falar.
— Laura?
Me viro para Lavínia.
— O que Camila é?
Ela franze a testa e se encolhe rapidamente,
antes de se endireitar de novo e me encarar. Acho
que não era para eu saber, então. Tarde demais.
Posso ser humana, mas não sou lerda.
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Encaro a tela do celular de novo.


Laura: Lavínia acabou de te reconhecer na
minha ilustração.
Envio a mensagem e levanto a cabeça para
encarar Lavínia, que empurrou meu notebook para
trás e continua sentada. Me dando a posição de
poder, percebo. Ela suspira.
— Metamorfa. Um dos lobos.
O celular vibra na minha mão.
Camila: Merda.
É uma boa resposta.
Coloco o celular onde estava, em cima do
criado-mudo. Não vou responder. Se responder
agora, vou falar alguma coisa que vou me
arrepender, tenho certeza. Respiro fundo de novo,
encarando a madeira escura do móvel. O problema
não é ela nunca ter contado o que é. Já entendi que
ninguém pode saber sobre o Outro Mundo. O
problema é ela ter me manipulado.
Engulo em seco. Se me virar para trás, vou ver
meu notebook ligado, papéis e lápis espalhados
pela mesa, tudo na frente de uma pessoa que estava
gostando de ver minhas ilustrações. Isso é real,

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mesmo que a ajuda de Camila tenha sido


manipulação.
— Laura?
E eu não vou pirar por causa disso. Respiro
fundo. Certo. Camila é uma metamorfa. Felipe
também. E se bobear mais umas tantas pessoas que
iam conosco para as festas e bares, a essa altura não
duvido de nada. O que importa é: nada mudou. E
não mudou mesmo. Paro, surpresa. Não faz
diferença que sejam metamorfos, bruxos ou até
mesmo demônios. Eu conheço Camila e ela é
minha amiga.
Então por que é que estou tão incomodada com
isso tudo? Com a história toda com Paula, também?
Se não é porque são seres mágicos...
É porque mentiram para mim. Me manipularam.
Se eu parar para pensar, minha raiva é só essa. Ter
sido usada e enganada. Não saber que são do Outro
Mundo? Isso não é nada.
Me viro para Lavínia, que continua sentada, me
encarando com uma expressão preocupada. Ela
abre a boca para falar alguma coisa, mas balanço a
cabeça.
— Esquece — começo e estreito os olhos. Uma
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boa parte das minhas ilustrações, especialmente as


mais velhas, foi feita usando cenas reais como base.
E minha curiosidade não vai me deixar em paz. —
Camila e quem mais? Felipe? Mais alguém?
Felipe não apareceu em nenhuma das
ilustrações, mas se Lavínia conhece Camila, com
certeza o conhece também. Os dois são quase
inseparáveis.
Ela me encara por um instante antes de assentir.
— Só reconheci Camila. Ela e Felipe são da
mesma matilha — ela sorri. — Que por acaso é a
mesma que controla este território.
A matilha que o alfa não ia se incomodar com o
bando porque sua companheira era meio demônio,
ou algo assim? Se bem que isto nem me surpreende
mais.
Suspiro e me deixo cair sentada. Aponto para o
notebook.
— Vai querer continuar vendo?
Lavínia puxa o notebook para perto na mesma
hora e eu solto uma risada.

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C A P Í T U L O Q U AT O R Z E

L AURA
NO FIM DAS CONTAS, LAVÍNIA SE LEMBROU QUE SUBIU
para me chamar para o almoço. Quando descemos
para a cozinha, ela já está cheia. Quer dizer, para
mim doze pessoas na cozinha é muita gente,
mesmo que ainda tenha espaço de sobra nas mesas.
E eu tenho certeza de que isso não é nem metade
das pessoas que moram no casarão. É muita gente
para uma casa só. Quase todos que eu conheço
estão aqui, incluindo Jorge, que não vi ontem, e
Caio. Isso quer dizer que André está vigiando a
casa a essa hora. E Alexandre também não está
aqui. Ótimo. Vejo mais alguns rostos que não tinha
visto aqui antes, mas que estavam no bar. Ninguém
oferece nomes, então não pergunto, só me sento e
começo a comer.

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Escuto as conversas ao redor da mesa enquanto


como – já mencionei que a comida é excelente?
Alguém se mudou para tal território, não sei quem
está resmungando sobre um alfa que todo mundo
aqui conhece, um dos príncipes sidhe está em
Minas Gerais... E é surreal pensar que, por mais
estranho que o assunto pareça, eles provavelmente
estão falando de pessoas que eu nunca pensaria que
não são humanas. O fato de Camila ser uma
metamorfa é uma prova disso.
Lavínia e eu não falamos mais nada sobre
Camila ou sobre minha reação, e acho melhor
assim. Na verdade, agora que entendi realmente o
motivo da minha raiva, estou bem mais tranquila. É
bem simples, na verdade. Estou com raiva de Paula,
porque ela me vendeu. Estou com raiva de Camila,
porque ela me manipulou. E estou com raiva de
Alexandre, porque ele foi um irresponsável de
várias formas, me colocou nessa situação e foi o
responsável pelo que aconteceu sábado à noite,
mesmo que de forma indireta. Nada disso tem a ver
com serem ou não do Outro Mundo. Eu já entendi
que quase todos aqui são predadores, são muito
mais fortes que eu, qualquer pessoa sã teria medo e
blablabla, mas realmente não acho que preciso ter
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medo. Se alguém quisesse fazer alguma coisa


comigo, teriam feito. E, no fim das contas, eles são
como quaisquer outras pessoas ao redor do mundo:
tocando a vida deles e mais nada. Não é porque são
mais fortes que tenho que pensar imediatamente
que vão me atacar ou algo assim.
— ... desenha?
Me viro na direção de Lavínia quando pego o
final da pergunta de um dos caras que não conheço.
Tenho a impressão de que ouvi meu nome, e isso
quer dizer que Lavínia estava falando alguma coisa
sobre meus desenhos.
Ela se vira para mim e dá de ombros antes e
encarar o homem do outro lado da mesa.
— E desenha bem. Tem que ver uma ilustração
que ela fez da Camila... A Camila dos lobos?
Lembra quando ela comentou sobre uma cachoeira
que foi? Acho que foi essa.
Abaixo a cabeça e finjo me concentrar no meu
prato. Tenho certeza que estou ficando vermelha
feito um pimentão. Mesmo assim, quero saber o
que vão falar, então continuo prestando atenção no
assunto.
— Espera — Daiane interrompe. — O pôster? A
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ilustração que a Camila estava falando que ia


mandar fazer um pôster para colocar na sala?
Se eu não estava vermelha feito um pimentão,
agora estou. Camila comentou sobre a minha
ilustração? Não sei se saio comemorando – porque
isso quer dizer que ela realmente gostou e não
estava elogiando só para me animar – ou se procuro
um buraco para enfiar a cabeça. Que vergonha.
— Laura, para de fingir que não está ouvindo —
Rodrigo chama.
Respiro fundo e levanto a cabeça. Não vou
mostrar o dedo do meio para ele. Ainda não tenho
esse tipo de intimidade. Ainda. Me inclino para o
lado a tempo de me desviar de alguma coisa que
Aline jogou em mim. Acho que foi uma bolinha de
papel, mas na mesa do almoço não dá para ter
certeza.
— A menos que outra pessoa tenha desenhado
Camila quando ela estava pulando da cachoeira...
É, é a minha ilustração — resmungo, sem jeito.
— Agora eu quero ver essas ilustrações —
Daiane fala.
— Com certeza — Rodrigo completa.
— Eu também. — Não vejo quem falou, na
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outra ponta da mesa.


Meu prato sobe, levitando alguns centímetros
acima da mesa. Engulo em seco. Todos os pratos da
nossa mesa estão levitando. A conversa morre no
mesmo instante e só então eles voltam para o lugar,
batendo na mesa de leve.
— Comam primeiro, depois vocês infernizam a
menina. Não tive esse trabalho todo para
resolverem ir fazer sabe-se lá o que e voltarem
daqui a uma hora pedindo mais comida — Amara
fala, sentada na outra mesa.
Sorrio e abaixo a cabeça. Acho que não é à toa
que ninguém discute com Amara. Levitar todos os
pratos, enquanto ela está sentada na outra mesa e
nem consegue ver tudo aqui direito... Sei lá, na
minha cabeça qualquer coisa que envolva levitação
ou algo assim precisaria de contato visual. Acho
que preciso começar a pesquisar sobre os tipos de
fey. Se bem que acho que vou conseguir descobrir
mais coisas se der corda para a tagarelice de
Rodrigo do que se for para o Google. Vou fazer
isso na primeira oportunidade que aparecer.
Levanto a cabeça quando uma bolinha de papel
me acerta e estreito os olhos para Aline. Ela dá de
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ombros e aponta para Caio. Aliás, ele é outro que


come quase tanto quanto os metamorfos. Faz uns
bons anos que não encho meu prato do jeito que
faço aqui, sem me preocupar com alguém falando
que “é feio” mulher comendo muito, e mesmo
assim tenho a impressão de que estou comendo
pouco.
— Sobre esses desenhos aí... — Caio começa.
— Quanto você cobra?
— Eu... — começo e paro, pensando melhor.
Acho que estou acostumada demais com todo
mundo que sempre quis que eu fizesse algum
desenho de graça. — Depende do que você quer.
Ele se vira de lado, joga o cabelo para trás e
coloca a mão no queixo.
— Acha que eu daria um bom modelo?
Não sou a única que ri da sua pose, mas dá para
ver que ele está falando sério. Pensando melhor,
minhas ilustrações sempre tiveram um toque de
fantasia mesmo...
— Tem um scanner aqui em algum lugar?
Caio se vira para Aline, que cutuca Rodrigo, que
dá de ombros e se inclina para trás, na direção da
outra mesa.
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— Jorge? Scanner?
Ele se vira para nós.
— No escritório. Se souber usar não precisa
nem me procurar.
Sorrio. Sendo assim, acho que o que estou
pensando pode funcionar.
— Então acho que você daria um bom modelo
sim — falo, encarando Caio. — E nem vou cobrar,
dessa vez. Mas você de verdade, sem a magia que
falou que te dá forma humana.
Não preciso olhar ao redor para saber que
praticamente todo mundo está me encarando.
Consigo sentir o peso dos olhares deles. Caio
levanta as sobrancelhas e se inclina para a frente na
mesa, sorrindo. Tenho certeza que ele ainda está
usando a tal magia, mas de repente seu sorriso não
parece tão humano.
— Tem certeza?
— Tenho. Se me deixar terminar de comer. —
Levanto as sobrancelhas.
Ele ri e se endireita.
Abaixo a cabeça e volto a comer. Por algum
motivo nem me surpreendo quando ninguém me
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interrompe, dessa vez. Curiosos.


Assim que todo mundo termina de comer, desço
com meu notebook, folhas e alguns lápis para a
cozinha. Vou fazer a base do desenho de Caio à
mão primeiro, escanear e fazer toda a pintura no
computador. Não faço ideia de como vai ser um
curupira sem estar usando magia para parecer uma
pessoa comum, então estou partindo do pressuposto
que vai ser mais fácil trabalhar tudo no
computador.
Caio está sentado em uma das mesas, com uma
caneca na sua frente. Reviro os olhos. E eu pensava
que eu era movida a cafeína. Ele é mil vezes pior.
— O que foi? — Ele pergunta.
— Nada. — Dou de ombros e coloco minhas
coisas em cima da mesa. — Só achei alguém mais
viciado em café que eu.
— Isso aqui é água suja. Não dá nem pra
chamar de café.
Ah, sim. Claro. Então não foi ele quem fez o
café. Bom saber. Ligo o notebook primeiro, por
puro hábito. O que eu posso fazer? Não tenho como
nem pensar em um cenário ou algo assim enquanto
não ver Caio de verdade. E eu espero muito não
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pirar.
— E então? O que vai ser?
Levanto a cabeça e encaro Caio. Boa pergunta.
— Vamos descobrir. Não tenho como saber o
que vou fazer sem ter uma ideia do que vou ver. —
Dou de ombros.
Ele ri e se inclina para trás, virando a caneca de
um gole só. Isso me dá medo.
Aliás, agora que estou percebendo que não tem
mais ninguém na cozinha. Me viro para a bancada
que separa as duas áreas. Acho que Amara está do
outro lado, porque estou ouvindo alguém mexendo
em alguma coisa ali, mas ela não dá sinal de vida. É
meio surpreendente não ver mais ninguém aqui,
ainda mais depois do interesse de todo mundo
quando falei que ia desenhar Caio.
— Cadê todo mundo? — Pergunto.
— Já almoçaram, oras.
Estreito os olhos.
— Você sabe exatamente do que estou falando.
Caio se apoia na mesa de novo, completamente
sério.
— Quanto menos de nós aqui, menos chances
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de você pirar.
Que fofo, eles estão preocupados comigo. Isso
quer dizer que vou fazer um esforço e não vou
revirar os olhos. Se bem que, para ser honesta...
Eles até têm motivos para se preocupar, levando em
conta minha reação quando descobri tudo. Não que
eu ache que vá surtar assim, agora.
Suspiro.
— Acho que a essa altura não piro mais.
— Tem certeza?
Reviro os olhos.
— Desistiu? — Levanto as sobrancelhas.
Ele ri e se levanta, dando a volta na mesa. Cruzo
as pernas e me viro de lado do banco, encarando
Caio. Num instante ele parece um cara
completamente comum – baixo, ruivo, de bermuda
jeans, tênis e blusa cinza que acho que um dia foi
preta. No instante seguinte, não tem como ele se
passar por humano. O disfarce desaparece, simples
assim, sem nem aquele brilho de magia de quando
André se transformou. Agora o cabelo de Caio
realmente parece ser fogo. Não, não é bem isso. Eu
ainda consigo ver os fios, mas ele está voando para
cima e a cor está muito mais viva. Na verdade, a
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cor realmente está mudando, como se fosse fogo.


Seus olhos são de um verde vivo que eu nunca vi
ninguém conseguir, nem com lente de contato, com
as pupilas fendidas como um gato. Ele ainda está
vestindo a mesma bermuda jeans e blusa desbotada,
mas está descalço. E seus pés são virados para trás
mesmo.
Ainda bem que já estava pensando em fazer a
pintura toda no computador, porque eu nunca que
ia conseguir acertar essas cores à mão.
Quero levantar, ver se seu cabelo esquenta como
fogo, se posso colocar a mão, fazer mil perguntas.
Mas acho que isso vai ser um tanto quanto
grosseiro, então não. Ou melhor, não dessa vez,
enquanto eu não tenho certeza do que estou
fazendo e ninguém aqui tem certeza sobre mim.
Respiro fundo.
— Nessas horas dá vontade de saber fazer
aquelas pinturas realistas estilo card game —
comento e puxo papel e lápis para perto. Minha
primeira ideia é colocar ele no meio da mata, mas
não sei se isso vai ser muito clichê. Tá, vai ser
clichê. Mas acho que consigo fazer ficar legal.
Caio sorri. Os dentes dele são pontudos. Não
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chegam a ser triangulares, mas... Eu preciso


desenhar ele sorrindo.
Estreito os olhos, o encaro por mais um instante,
e começo a desenhar.
Não demora muito para Caio parar atrás de
mim. Acho que querer ver enquanto um desenho é
feito é a reação natural de todo mundo, porque isso
sempre acontece.
— Sem palpites até eu pedir, porque isso é só o
rascunho do rascunho — aviso.
Ele não fala nada, só continua a olhar o que
estou fazendo. Não demora muito para eu me virar
e puxar seu braço até ele dar alguns passos para o
lado. Não, a forma como estou desenhando o
cabelo não está legal. Começo a refazer os
contornos.
Não demora muito para eu ter uma base que dá
para trabalhar. Abro o Photoshop, puxo Caio para o
lado de novo, e começo a escolher as cores
principais. Não vou pintar nada aqui agora, só
quero escolher as cores mesmo, aproveitando
enquanto ele está aqui. É mais fácil assim, depois
acerto qualquer detalhe que precisar. Vão ser
muitos detalhes, tenho certeza, mas uma coisa de
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cada vez.
E alguém está me encarando, tenho certeza.
Levanto a cabeça e olho ao redor. Caio continua
praticamente atrás de mim. Lavínia e o cara que
perguntou sobre meus desenhos mais cedo estão
sentados na outra ponta da mesa, conversando em
voz baixa. E Alexandre está encostado na parede ao
lado da porta. Respiro fundo. Qual é o problema
dele? Sustento seu olhar por um instante, mas ele
não fala nada nem se mexe. Com um ruído irritado,
volto a prestar atenção no que estou fazendo. Se ele
quer ficar me encarando, problema dele.
Quando paro o que estou fazendo de novo,
Alexandre não está mais na cozinha. Ótimo. Olho
para o desenho mais uma vez e então para Caio.
Acho que já deu.
— Vou só escanear isso aqui e subo para o
quarto — falo. — Depois com certeza vou precisar
de você para acertar os detalhes.
— Quero só ver como vai ficar. — Caio sorri e
a aparência humana está de volta, sem nenhum
sinal de magia.
Até eu quero ver como vai ficar. Eu estou
fazendo uma ilustração com um curupira, usando
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um curupira de verdade como modelo. Isso pode


até ser meio surreal, mas é muito legal.
— Por que não fica aqui? — Lavínia pergunta.
Me viro para ela.
— Aqui na cozinha?
Ela assente.
— Já que de noite vai ser melhor você ficar no
quarto, se continuar nesse ritmo vai passar o dia
todo trancada lá.
Encaro a mesa. Ela tem razão, eu vou ficar
trancada no quarto. Quase me esqueci da tal
negociação. Mas nem vou notar, porque vou estar
concentrada nas ilustrações. É só eu ter um bom
estoque de comida. Não que ficar aqui seja uma má
ideia. Não me desconcentro fácil. Na verdade, se
empolgar com algum desenho, o mundo pode
desabar ao meu redor que não vou ver. A questão é
outra.
— Eu trabalho melhor com música.
— E música alta. — Lavínia revira os olhos. —
Entendi. Então só lembre de não descer depois que
escurecer. Antes do pôr-do-sol, podemos dar um
jeito em qualquer um que resolva chegar mais cedo.

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Depois disso, fica complicado por causa dos


acordos que foram feitos...
Assinto.
— Onde fica o escritório?
— Te levo lá — Caio oferece.
Fecho meu notebook, pego minhas folhas e
lápis, e acompanho Caio para fora da cozinha. Hora
de escanear esse desenho e então a diversão vai
começar.

···
A LEXANDRE
ENCARO AS ANOTAÇÕES QUE PAULA ESPALHOU PELA
minha mesa. São linhas, símbolos, palavras que
devem significar alguma coisa, mas que não faço a
menor ideia do que querem dizer, mais símbolos,
algo que parece ser uma fórmula... E tudo em um
código de cores que eu também não sei o que
significa. Notações bruxas.
— Paula, você sabe que não entendo isso —
falo.
Parece que ela não me ouviu, porque continua
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andando de um lado para o outro na frente da mesa,


resmungando em voz baixa e depressa demais para
eu entender. Ou melhor, ela está usando termos que
eu não conheço, pelo menos não nesse contexto.
Se bem que não é tão difícil assim deduzir o que
essa papelada quer dizer, se ela está tão agitada.
— Nem mesmo um demônio conseguiria
derrubar nossas defesas — murmuro.
Paula se vira para mim de uma vez, com os
olhos brilhando.
— Acha que não sei disso? Eu fiz a base das
proteções. Só um dos demônios maiores
conseguiria derrubá-las, e mesmo assim não tenho
certeza.
Levanto as mãos e dou um passo atrás. Em
qualquer outro dia, com qualquer outra pessoa, eu
estaria respondendo à altura. Mas Paula não fica
assim. O que quer que ela tenha descoberto, é pior
do que eu pensei.
Ela respira fundo e solta o ar lentamente.
Continuo olhando para Paula, mas tenho a
impressão de que minha mesa está tremendo.
Espero que ela se lembre que não estamos em uma
sala com proteções contra uma explosão de poder.
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Esse é o meu escritório, não o escritório público, no


térreo do casarão.
— Um demônio comum não conseguiria
derrubar as proteções, mas só um bruxo conseguiria
invocar um demônio — Paula fala.
Merda.
— Eu tenho certeza de que Lílian não está
brincando conosco... — ela continua, lentamente.
— Mas tenho certeza de que tinha algum bruxo
envolvido. Agora, como...
Cruzo os braços e espero enquanto Paula se
aproxima da mesa e começa a mexer nas folhas
espalhadas, as organizando de uma forma que
continua não fazendo o menor sentido para mim.
Ela aponta para a primeira folha, que está rabiscada
com tons mais apagados e uma coleção de símbolos
que parecem um tipo de estenografia.
— Todos os poderes do Outro Mundo deixam
algum tipo de assinatura mágica, sem exceção.
Qualquer um de nós consegue perceber alguém do
Outro Mundo por perto, mesmo que não consiga
identificar de que raça a pessoa é — ela começa,
com a mão no papel.
Assinto. Nada disso é novidade, mas se Paula
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precisa começar do básico para chegar onde


precisa, não vou interromper seu raciocínio.
— Existem encantamentos para identificar os
detalhes de uma assinatura mágica, mesmo que o
bruxo que o esteja usando não seja naturalmente
sensível para isso. Quanto mais recente a
assinatura, mais informações ela pode passar e é
possível até mesmo traçar sua origem.
Inclino a cabeça, olhando das folhas espalhadas
na mesa para Paula.
— Você quer dizer identificar quem usou seus
poderes em um determinado lugar?
Ela assente.
— Se a assinatura estiver fresca o bastante.
E com toda a confusão, ela não conseguiu ir
olhar isso até três depois do que aconteceu. Aliás...
— Se você tinha como identificar a assinatura
mágica, por que não tentou fazer isso desde a
primeira vez?
Paula rosna para mim. Levanto as sobrancelhas
e tento não sorrir, mesmo que seja divertido ver
uma bruxa tentando rosnar.
— Esse não é um dos encantamentos menores
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— ela resmunga. — Enquanto estavam “só”


derrubando as defesas, não valia a pena correr o
risco de tentar traçar a assinatura do poder. Era uma
inconveniência, mas não um risco. Não foi isso que
você falou, da primeira vez?
Não respondo.
— Foi por isso que fiz questão que Ryan fosse
conosco. Eu não ia estar em condições de me
defender de nada depois do encantamento — ela
continua. — E já tinha passado tempo o suficiente
para a assinatura se dissipar quase completamente,
por isso aproveitei a consciência pesada de
Bárbara. Ela consegue reviver as assinaturas, de
alguma forma.
E isso é uma informação interessante. Dos fey
que estão aqui, o único que realmente ofereceu
informações sobre o que pode fazer é Ryan. Os
outros preferem manter o segredo, até entre si. É
algo relacionado a não querer serem reconhecidos
por causa de lendas que podem existir com nomes
que usaram no passado e o costume de esconder
qualquer coisa que possa ser usado por um inimigo.
Mesmo assim, Paula não precisava estar dando
tantas voltas.
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— Direto ao assunto — falo.


Paula passa a mão pelas folhas, respirando
fundo, antes de levantar a cabeça.
— Eles invocaram pelo menos um demônio.
Isso é o tipo de magia que deixa resíduo o
suficiente para confundir qualquer assinatura, por si
só. E...
Solto o ar com força.
— E?
— É um grupo de pessoas. E eles usaram o
demônio para quebrar as defesas. Não diretamente,
mas... — Ela aponta a folha com mais símbolos. —
Tem sinais de algum tipo de luta e então uma
explosão de poder forte o suficiente para esgotar
nossas defesas.
Não. Não.
— Eles usaram poder o suficiente para esgotar
todas as camadas de defesa? — Pergunto.
Paula assente.
Respiro fundo e fecho os punhos com força.
Não posso perder o controle agora, especialmente
depois de ficar sabendo disso.
Eles esgotaram nossas proteções. Não quero
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imaginar a luta que aconteceu para conseguirem


fazer isso, nem como conseguiram esconder o que
estava acontecendo. Se não houvéssemos colocado
tantas camadas de defesas...
— Alexandre — Paula chama.
Respiro fundo de novo e olho para ela.
— Eles provocaram um demônio até que ele os
atacasse de volta, o que quer dizer que ele não
estava em uma contenção. E fizeram isso de forma
controlada, mais de uma vez. Se nos atacarem
diretamente... — Ela para, engolindo em seco.
Se nos atacarem diretamente, eles vão conseguir
parar a melhor defesa do casarão. Eu.
Não vou pensar nessa possibilidade. Ainda
tenho uma reunião com Gustavo daqui a pouco, se
começar a me preocupar demais com isso agora
vamos ter problemas.
— Mais alguém sabe disso?
Paula balança a cabeça.
— Não, mas...
— Então não conte para ninguém.
Ela se afasta da mesa, com os olhos brilhando.
— Isso é loucura. Se você está querendo se
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matar...
Dou a volta na mesa de uma vez e seguro seus
pulsos. Paula me encara e sinto seu poder se
espalhando ao meu redor.
— De que vai adiantar os outros ficarem
sabendo disso agora? Que diferença vai fazer, além
de deixar todo mundo mais tenso? Acha mesmo
que é uma boa ideia ter todos tensos num bando
como esse, especialmente agora?
Paula continua me encarando, mas não sinto
mais o poder, mesmo que seus olhos ainda estejam
brilhando. Estou certo e ela sabe disso. Não
podemos fazer isso agora. Todos no casarão
precisam saber, sim, mas não quando já estamos
em uma situação tensa. Depois que resolvermos o
problema com Gustavo e o Conselho, aí sim.
Ela assente. Solto suas mãos e me afasto.
— E talvez isso nem seja uma preocupação real
— falo. — Não foi isso que pensamos? Que quem
estava derrubando nossas defesas já tinha
conseguido o que queria?
Paula balança a cabeça, passando por mim e
parando na frente da janela.
— Até poderia ser, mas... — Ela dá de ombros.
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Mas se eles estão invocando demônios e os


provocando, não é só para garantir que um humano
nos veja. Eu sei. Não preciso que ela fale isso.
Ainda assim, queria poder acreditar que não vamos
ter mais problemas.
Vou na sua direção.
— É melhor você descer — Paula avisa. —
Gustavo chegou.
E precisamos garantir que ele entenda que, da
próxima vez, vamos responder a qualquer atitude
que possa ser vista como um desafio.
Respiro fundo mais uma vez, antes de sair do
quarto. Um grupo de pessoas do Outro Mundo,
invocando demônios. Paula está mais que certa.
Isso é algo bem maior do que uma tentativa de nos
expor.

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CAPÍTULO QUINZE

L AURA
DE ALGUMA FORMA, CAÍ EM UMA ROTINA. DE DIA, CAFÉ
da manhã na cozinha, volto para o quarto para
mexer nas minhas ilustrações, desço para o almoço
e fico na cozinha ou na sala de entretenimento com
quem mais estiver fazendo hora por ali. Não
consigo acreditar que já tem mais de uma semana
que estou aqui. Na verdade, é complicado. Às vezes
acho estranho já ter tanto tempo, às vezes não
acredito que se passou tão pouco tempo assim. Foi
tanta coisa acontecendo que parece que se passaram
meses. Mas na verdade foram apenas dias. Dez dias
desde que coloquei os pés no casarão pela primeira
vez, cinco dias desde que pedi para ver a forma real
de Caio e comecei a sua ilustração.
Cinco dias desde que descobri que Camila é

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uma metamorfa. Olho para o celular em cima do


criado-mudo. Acho que ele está sem bateria. Aliás,
não acho, tenho certeza, porque não coloco para
carregar desde domingo passado. A bateria dele
pode durar muito, mas querer que dure uma semana
é pedir demais. E eu acho que já está passando da
hora de eu parar de ignorar as mensagens que
deixei acumular.
Rolo na cama e pego o carregador na gaveta do
criado-mudo. A quantidade de tomadas espalhadas
pelo casarão é a maior prova de que em algum
momento fizeram uma reforma daquelas, porque
não faz sentido uma construção antiga assim ter
tomadas para todo lado. Ligo o carregador e rolo de
volta para o meio da cama, encarando o teto. Tenho
três ilustrações em andamento, mas não quero
mexer em nenhuma delas agora. A que eu já estava
fazendo antes de vir para cá, a de Caio e uma que
nem sei porque comecei, de Alexandre. Na
verdade, eu comecei porque não sabia que ia ser
com ele. Foi uma daquelas ideias que surgiram
meio do nada, juntando imagens de um sonho que
não consigo me lembrar bem. É o pátio de um
castelo medieval, e as paredes são cobertas por
roseiras. As rosas são grandes, de cores tão vivas
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que são quase impossíveis, e um homem está preso


no meio delas. Eu só podia ter usado qualquer
outra pessoa ao invés de Alexandre, mas quando
dei por mim os traços já estavam feitos e qualquer
tentativa de mudar deixou a ilustração soando falsa.
Se bem que eu acho que sei por que acabei
desenhando Alexandre. Andei reparando demais
nele nos últimos dias, por mais que tente evitar.
Não tenho como escapar: ele sempre está por perto.
Quase sempre quando estou na cozinha
conversando com alguém vejo que ele está me
encarando. Isso é um tanto quanto estranho, mas já
me acostumei. E percebi que é o normal dele,
também. Alexandre está sempre afastado, apenas
observando enquanto o restante do bando se
diverte. É estranho. Ele é o alfa, o chefão dessa
coisa toda. Deveria estar no meio deles, não? Ou
pelo menos interagir com eles. Mas, tirando aquele
dia em que todos me explicaram sobre o Outro
Mundo, nunca mais vi ele se sentar e conversar
com mais de duas pessoas ao mesmo tempo. Na
verdade, nunca vi ele conversar mesmo com
alguém além de Paula e Jorge. E Rodrigo, se eu
contar aquele café da manhã depois que os vi
treinando.
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O fato é: ele sempre está por perto e eu não


consigo ignorá-lo. Não tem como, não com a
presença que ele parece exalar. Não sei descrever
isso. É como aquela aura de violência contida que
sempre senti, mas diferente. Mais sutil. Acho que
isso sempre esteve ali, eu só não tinha notado. E de
alguma forma ele foi parar em uma das minhas
ilustrações. Nunca que vou deixar alguém ver isso.
Essa vai ficar guardadinha no fundo das minhas
coisas, porque desenhar o cara que pensou que me
transformar em uma prisioneira aqui fosse uma boa
ideia é um atestado de idiotice. Eu devia é deletar o
que fiz, mas gostei demais da ideia em si para fazer
isso.
Pego o celular. Carregou o suficiente para dar
para ligar, pelo menos. Abro minha caixa de
mensagens. Impressionante como é só eu sumir e
de repente todo mundo lembra que eu existo. Tem
mensagem de gente que se eu falar “oi” uma vez
por mês é muito. E acho que a história da viagem
se espalhou – nenhuma surpresa nisso – porque
todo mundo está pedindo lembrancinhas. Nem se
eu estivesse viajando mesmo. Bando de falsos.
A primeira mensagem que digito é para meu pai,
que por incrível que pareça não falou nada até
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agora. Aliás, isso nem é tão surpreendente. Ele sabe


a verdade e provavelmente não sabe se posso entrar
em contato ou como. Penso um pouco antes de
enviar o que escrevi e então apago. Não posso
correr o risco de alguém ver uma mensagem no
celular dele. Ou seja, tenho que mandar alguma
coisa genérica, e de preferência ao menos tentar
avisar que está tudo bem.
Laura: Está tudo ótimo aqui. Amando a
viagem.
Não espero resposta. Ele provavelmente vai
demorar a ver a mensagem, não costuma ficar com
o celular por perto ou prestar atenção nele. Próxima
mensagem da lista... Vou ignorar quase todo
mundo sim, não quero nem saber. Especialmente
Rick. Ele pode mandar quantas mensagens quiser,
não vou responder. Mas posso responder Bruna.
Ela provavelmente vai repassar a maior parte do
que eu falar e estou contando com isso, mas pelo
menos não vai vir com a falação de “falta de
consideração” para o meu lado.
Laura: Está tudo bem aqui. Estou amando. Isso
aqui é lindo. Ou seja: não adianta ficar esperando
eu responder mensagens.

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Desta vez eu espero, porque Bruna trabalha com


o celular do lado. Se não estiver atendendo algum
cliente vai estar jogando ou conversando com
alguém.
Bruna: Nem estou esperando. Mas você podia
ao menos responder quando vai voltar, ou vai ficar
por aí pro resto da vida?
Ah, essa pergunta. Fecho os olhos por um
instante. De alguma forma, ser lembrada de que
querem me manter aqui pelo resto da vida – ou até
a humanidade descobrir sobre o Outro Mundo, o
que vier primeiro – não me deixa mais em pânico.
Vou dar um jeito de sair daqui, custe o que custar.
Então não preciso entrar em pânico, só preciso ter
paciência.
Laura: Vou ficar enquanto puder, óbvio!
É o que eu responderia se estivesse viajando
mesmo.
Olho as outras mensagens. Um monte de
Camila. E de Felipe. Levanto as sobrancelhas.
Acho que ele nunca me mandou mensagens antes.
Tá, eu fui um tanto grossa por ignorar Camila
completamente depois que descobri que ela é uma
metamorfa. Mas me recuso a ficar com a
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consciência pesada. Ela também me manipulou.


Então não tem nada que reclamar por eu não ter
respondido suas mensagens. Todas as mensagens
dela são dizendo que quer conversar comigo e
perguntando se pode me ligar. Aliás, agora que
estou vendo isso paro e olho as chamadas não
atendidas. Oito ligações dela. E as mensagens de
Felipe são falando para eu não fazer nenhuma
loucura e deixar Camila explicar primeiro. Ele acha
que isso ajuda? Suspiro.
Laura: Tem alguma coisa a explicar? Você me
manipulou, só isso.
Nem me surpreendo quando a resposta chega
segundos depois.
Camila: Estou te ligando.
Suspiro e me acomodo melhor na cama,
tomando cuidado para não esticar o carregador
demais. Ele sempre dá problema se eu faço isso.
Não demora muito para o celular tocar.
— Primeiro você me escuta, depois pode me
xingar de quantos nomes quiser — Camila fala
antes de eu dizer um “oi” que seja.
Vai adiantar discutir? Óbvio que não. E eu
quero ouvir o que ela tem a dizer. Não quero
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acreditar que Camila também me manipulou e me


usou, sem pensar nas consequências. Ou pior,
sabendo das consequências.
— Tá bom.
Escuto o suspiro aliviado de Camila, seguido de
um “sai pra lá, Felipe” abafado. Sorrio. Nada
diferente do normal.
— Eu não podia contar nada. É questão de
segurança, a ordem vem de bem acima de nós e
qualquer quebra do sigilo...
— Eu sei que você não podia contar. — Sei que
ela pediu para falar primeiro, mas isso é mais que o
óbvio. — E sei sobre os procedimentos de
segurança também.
Ela fica em silêncio por alguns instantes.
— Então por que você estava me ignorando?
Respiro fundo. Sério mesmo que ela está
perguntando?
— Você me manipulou, Camila. Me manipulou
para Alexandre e Paula me usarem. E
provavelmente sabendo das consequências, não é?
Sabendo que eu ia ter que abrir mão da minha vida
e de todos os planos que estava começando a fazer.

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E eu odeio que minha voz esteja quebrando.


Queria conseguir falar isso friamente, mas não
consigo.
— Eu não... Merda! Espera... Ah, caralho, não
tinha percebido... Tá, me escuta primeiro — ela
continua antes de eu conseguir falar qualquer coisa.
— Eu não fazia ideia. Juro. Só fiquei sabendo do
que estava acontecendo aí quinta à noite, depois
que conversamos, e só tive certeza que era você
mesmo quando um dos lobos que estava no bar
comentou comigo que tinha encontrado uma
humana que me conhecia.
— Vai me falar que mandou mensagem um dia
antes do meu pai ver um de vocês, depois de meses
sem falar nada, por pura coincidência?
E eu quero muito que ela responda que sim.
Engulo em seco. Se não for coincidência, isso quer
dizer que planejaram me trazer para cá desde o
começo. Não sei o que vou fazer se isso for
verdade. Não sei mesmo.
— Não foi uma coincidência. Mas também não
foi planejado. Não como você provavelmente está
pensando. — Ela suspira. — Foi só um daqueles
casos de que eu estava pensando demais em você.
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Quando cheguei no ponto de sonhar com você,


apelei e mandei a mensagem. Pensei que só estava
precisando de um empurrão com a coisa das
ilustrações.
Ah, claro, agora ela é uma vidente. Não. Melhor
nem brincar com isso, não duvido nada que existam
videntes. Quer dizer, acho que isso seria mais
normal que metamorfos. Não sei o que responder,
mas Camila continua antes do silêncio ficar
estranho.
— Eu tenho uma posição alta na matilha. Só
por isso fiquei sabendo do que aconteceu e nem
pensei que fosse ser você. Era coincidência demais.
Mesmo assim, eu acompanhei as discussões do
Conselho. E quando me confirmaram que você era
a Laura que estavam pensando em levar para o
casarão de Alexandre, pedi para Daiane e André
me informarem de qualquer coisa sobre você. Não
vou negar. A mensagem que mandei na segunda de
manhã foi por isso. Se quiser ficar puta porque te
manipulei, fique puta por isso, mas foi a única vez.
André me falou que você estava surtando. Estava
exalando medo e mesmo sem te conhecer ele estava
preocupado com o que podia acontecer. Foi a
única forma que consegui pensar de mudar seu
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foco.
Me lembro de domingo passado, à noite, quando
André parou na porta do meu quarto e Lavínia
mandou ele ir embora. Eu estava surtando, nem
tento negar. E com direito. A mensagem de Camila
foi o que me fez começar a esfriar a cabeça e
pensar em outra coisa além do fato de que estava
em uma casa cheia de seres mágicos. Ela me
manipulou, sim, mas não consigo ter raiva disso. Se
o que ela falou é verdade, sobre ter me mandado as
primeiras mensagens por causa de uma intuição...
— ...porque eu não vou pedir desculpas, já que
funcionou. E eu não quero nem...
— Tá bom, Camila, tá bom! Já entendi — rio.
Esse quase desespero dela para se justificar e ao
mesmo tempo não se justificar é o suficiente para
eu saber que está falando a verdade. Conheço
Camila. — Desculpe por ter te ignorado.
Ela fica em silêncio por um instante.
— Me ignorar foi uma reação mais educada do
que eu teria, se estivesse na sua situação.
E eu não vou perguntar o que ela pensa sobre
essa “situação”. Considero Camila uma amiga, uma
das poucas que tenho. Não quero ser obrigada a me
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afastar se ela concordar com o que está


acontecendo, mas não vou conseguir manter a
amizade se ela disser isso.
— De qualquer forma, — ela continua. — Eu já
estava quase mandando mensagem para André ou
Daiane, para te falarem para ligar o celular.
Tenho informações sobre as tais negociações e
acho que você vai precisar saber disso.

···
QUANDO CAMILA FALOU QUE TEM UMA POSIÇÃO ALTA NA
matilha, não estava brincando. Tenho a impressão
de que ela me contou coisas que nem mesmo uma
boa parte do pessoal que mora no casarão sabe. E
não sei se isso é bom ou ruim. Às vezes é melhor
não saber. Se bem que preciso admitir que foi bom
ela ter me avisado antes, ou quando Lavínia veio
me falar sobre hoje à noite eu ia ter entrado em
pânico.
As negociações estão terminando.
Aparentemente os problemas com Gustavo vão ser
resolvidos sem muitas complicações... Ênfase em
“aparentemente”. Mas a minha presença aqui ainda
incomoda gente demais. Alguns membros do
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Conselho vão estar no casarão essa noite e exigiram


me ver. Camila me avisou que iam fazer isso e que
Alexandre não teria como recusar. Dizer não seria o
mesmo que dizer que ele não confiava nas pessoas
que estariam presentes, o que seria uma ofensa, e
também que não se considerava capaz de proteger
uma humana dos demais, o que faria ele perder
status. O mais provável seria ele organizar um
jantar relativamente formal, porque assim todos do
casarão estariam presentes, não só quem está
envolvido na negociação. Seria uma forma de
mostrar que Alexandre tem o apoio do seu bando –
pelo que entendi, todos que estão aqui têm um certo
“nome” entre o Outro Mundo – e ao mesmo tempo
garantir que, se algum dos visitantes decidisse
atacar, eu estaria bem defendida.
A conversa toda me deixou com um nó na
cabeça, mas no fim das contas Camila estava certa.
Alexandre vai fazer um jantar para os visitantes e
eu tenho que descer também. Respiro fundo e
encaro o guarda-roupas aberto. Isso não vai prestar.
Como uma pessoa se veste quando está indo
para um jantar “formal” onde vai ser única humana
e uns tantos dos convidados querem matá-la?

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Camila também me contou um pouco sobre


quem ela sabe que vai vir. O alfa dela vai estar aqui
– ele é o alfa deste território, o que mencionaram
antes que tem uma companheira meio demônio. De
acordo com Camila, Ivan, seu alfa, concorda com
Alexandre, então se o pior acontecer não preciso
me preocupar com ele. Os maiores problemas são a
alfa das aves e um príncipe dos sidhe. Camila
contou que os povos das fadas – como ela chama os
fey – são os que mais insistem para o Outro Mundo
parar de se esconder. Minha presença aqui é uma
prova de que podem continuar se escondendo
indefinidamente sem tomar medidas drásticas, mas
ao mesmo tempo é uma prova de que podem se
revelar e a humanidade vai se adaptar, então ela
não faz ideia de qual vai ser a posição dele. A alfa
das aves, de acordo com ela, é fanaticamente
decidida a manter o Outro Mundo o mais afastado
da humanidade possível, não importa o custo, então
vai ser o maior risco.
E não foi só isso que ela falou... Mas não sei
como lidar com o restante do que Camila me
contou.
Respiro fundo e pego uma blusa azul mais
bonitinha. Ela, calça jeans justa e botas de salto
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baixo são o melhor que dá para fazer com o que


tenho no guarda-roupas. É passável, mas o mais
importante é que as roupas são confortáveis e
consigo correr.
— Está pronta? — Escuto Lavínia perguntar, do
lado de fora.
— Quase. Entra.
Ela entra no quarto e fecha a porta atrás de si
antes de ir se sentar na cadeira que pediu André
para trazer. Lavínia e Rodrigo foram os que
passaram mais tempo comigo ou em algum lugar
por perto do meu quarto esses dias, para garantir
que nenhuma das pessoas vindo para as
negociações “se perdesse” pela casa. Já me
acostumei com eles aqui.
Lavínia não fala nada enquanto vou para a
frente da penteadeira e procuro minhas coisas de
maquiagem. Lápis e máscara devem ser o
suficiente – Lavínia não está usando nada de
maquiagem e a roupa dela não é tão diferente da
minha, então imagino que o conceito de “jantar
formal” deles não seja a mesma coisa que eu pensei
inicialmente.
— Ótimo — Lavínia comenta quando puxo duas
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mechas de cabelo, uma de cada lado, e as prendo na


nuca. — Prático, mas não casual demais.
— Obrigada.
Ela sorri e se levanta, inclinando a cabeça para
um lado e depois para o outro, quase como se
estivesse querendo estalar alguma coisa. Só agora
estou reparando que seu cabelo tem algumas
mechas brancas. De onde veio isso?
Abro as gavetas da penteadeira. Tenho certeza
de que tenho ao menos um colar com um pingente
bonitinho em algum lugar aqui... Achei. Abro o
fecho e paro. Lavínia está encarando o pingente
com uma expressão estranha.
— Isso é prata — ela fala.
Assinto.
Lavínia balança a cabeça e se afasta.
— Não use esse colar enquanto estiver aqui. E
hoje então... Sem chances.
Levanto as sobrancelhas. Certo, então. Não vou
discutir, mas...
— Por quê?
Ela me encara, séria, antes de suspirar.
— Você vai me jurar que nunca vai repetir isso
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para ninguém.
Engulo em seco. Acho que nunca ouvi Lavínia
usar esse tom de voz antes. O que quer que isso
seja, é sério. Muito sério.
Faço que sim com a cabeça.
— O Outro Mundo também tem suas fraquezas.
Prata absorve nossos poderes, cobre bloqueia. Se
você descer com um colar de prata...
— Vai ser visto como um desafio, na melhor
das hipóteses — completo.
— Ou como uma arma a ser usada contra o
Conselho — Lavínia termina.
Guardo o colar de volta na penteadeira. Preciso
lembrar de colocar ele na minha mochila depois,
então. Se é algo que vai ser perigoso para o Outro
Mundo, não vou deixar aqui onde qualquer um que
entre no meu quarto pode ver ou mexer, sem
perceber que é de prata.
Lavínia suspira, olhando para a porta.
— Vamos. E não se esqueça, qualquer sinal de
confusão...
— E eu caio fora o mais depressa que conseguir.
Lavínia ri, abrindo a porta do quarto.
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— Eu ia falar para colocar um de nós entre você


e quem quer que esteja começando a confusão, mas
isso também funciona. Mas não corra se um de nós
não estiver por perto.
Assinto, fechando a porta e a acompanhando até
a escada. Predadores. Isso até eu sei: o primeiro
instinto de um predador é perseguir a presa que
corre. Respiro fundo de novo. O mais seguro, na
verdade, é eu não agir como presa, de forma
alguma. Mas isso pode acabar tendo efeito
contrário e ser visto como um desafio,
especialmente pelos membros do tal Conselho, que
são todos acostumados a serem o ponto mais alto
da hierarquia.
E é bizarro que uma pessoa que nunca se
interessou nem pela política da cidade agora tenha
que lidar com política de seres mágicos.
No primeiro andar, Lavínia segue pelo corredor
à direta da escada. É a direção oposta à da cozinha,
mas deveria ter imaginado que um jantar “formal”
não seria nela. Casual demais. Não andamos muito
antes de Lavínia parar e se virar para mim,
levantando as sobrancelhas. Só então escuto as
vozes vindo de uma porta logo à frente.

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— Pronta? — Ela não fala em voz alta, só mexe


os lábios, mas é fácil entender.
Pronta? É óbvio que não.
Tenho a impressão de que a sala onde entramos
é enorme e linda, mas não consigo prestar atenção
no que está ao meu redor. Minha atenção está toda
na mesa antiga que ocupa o centro dela. Pensei que
a conversa fosse morrer dramaticamente quando eu
entrasse na sala, mas graças a Deus isso não
acontece. Sinto uns tantos olhares em mim, mas só
presto atenção em Rodrigo, que levantou o braço e
está indicando duas cadeiras vazias ao seu lado.
Sorrio e vou na direção dele, ignorando as outras
pessoas na mesa. Me sento na cadeira de encosto
alto, que também parece ser da mesma idade que o
casarão, e Lavínia se senta do outro lado. Perfeito.
Rodrigo pode ser uma das pessoas mais
brincalhonas que eu conheço, mas tenho certeza
que esses músculos todos não são enfeite. E
Lavínia... Continuo não fazendo ideia de como ela
parou Gustavo, logo que cheguei aqui, mas isso
quer dizer que ela está longe de ser indefesa.
Só então paro e olho ao redor. Estamos perto da
ponta da mesa, que não está ocupada. Imagino que

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a cadeira vazia seja de Alexandre. Faz sentido, já


que Rodrigo está sentado de um lado e Paula do
outro. Ela me encara por um instante e inclina a
cabeça, séria. Respondo do mesmo jeito. Posso
estar com raiva dela, mas não sou idiota. Ter uma
bruxa por perto é uma ótima ideia. A cadeira do
outro lado de Paula, na minha frente, está vazia.
Daiane está sentada na cadeira seguinte, e então
dois dos caras que até hoje não decorei os nomes,
mas que tenho quase certeza que são lobos também.
A mulher ao lado de Lavínia é sidhe – não lembro o
nome dela porque é uma das que raramente desce
para a cozinha.
A outra ponta da mesa é toda dos visitantes.
Passo o olhar por eles rapidamente, sem querer
encarar. Ou melhor, querer eu quero, mas tenho
certeza de que se fizer isso vou ter problemas. A
tensão na sala é quase palpável, parece que a
qualquer momento vão explodir e não quero ser a
pessoa que vai dar uma desculpa para fazerem isso.
Mas eles são cinco: quatro homens e uma mulher,
que eu imagino que seja a tal alfa das aves. E um
dos homens está encarando Lavínia com uma
expressão furiosa que me faz ter certeza que ele é
Gustavo, mesmo que eu não tenha conseguido ver
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seu rosto quando me atacou.


— Pronto, a humana chegou. Agora só falta
Alexandre se dignar a dar as caras — um deles
comenta.
Escuto os rosnados baixos do nosso lado da
mesa e fecho os punhos com força debaixo da
mesa. Se já está assim antes do jantar começar...
— Se nosso horário for inconveniente para
você, Oswaldo, não se sinta na obrigação de
continuar aqui. Não vamos nos ofender — Paula
fala, sorrindo.
Respiro fundo e me concentro e não reagir,
mesmo que esteja batendo palmas por dentro. Não
que ficar impassível adiante muito numa sala cheia
de metamorfos. Com certeza eles conseguem
farejar minha reação... E talvez isso não faça a
menor diferença, porque Daiane e os lobos ao seu
lado estão sorrindo.
O homem não responde e as conversas em voz
baixa continuam. Rodrigo me dá uma cotovelada.
— Terminou a ilustração?
Reviro os olhos. Acho que metade do casarão
está no meu pé para ver a ilustração de Caio pronta.
Bando de curiosos apressados.
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E tenho certeza que as pessoas na outra ponta da


mesa estão prestando atenção em mim. Odeio isso.
Não sou uma atração turística.
— Ainda não. Estou terminando os detalhes do
cenário e aí ainda quero mexer mais no cabelo...
Não estou conseguindo deixar o fogo vivo como
quero.
— Quando terminar a dele, avisa que tenho uma
proposta para você — Daiane fala.
Assinto e abro a boca para responder, mas ela
balança a cabeça e se vira na direção da porta. Faço
o mesmo. Alexandre entra, com Caio um passo
atrás dele e sem estar usando a forma humana.
Levanto as sobrancelhas. Não preciso que ninguém
me explique que estão deixando claro o tipo de
poder que está reunido no casarão. Caio me contou
alguns dias atrás que os seres do Outro Mundo
nativos do Brasil normalmente não se misturam
com os outros. Eles são poucos – aquela mesma
história toda de colonização e povos nativos sendo
mortos – mas são fortes.
Caio se senta na cadeira vazia à minha frente e
sorri, mostrando os dentes afiados. Estreito os
olhos, encarando seu cabelo. O que falei com
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Rodrigo é a mais pura verdade. Não importa o que


eu faça, não consigo acertar isso na ilustração.
— Bem-vindos — Alexandre fala, parando ao
lado da cadeira vazia na ponta da mesa. — Não
cabe dizer mais nada agora, então tenham um bom
apetite.
Solto um suspiro aliviado quando ele se senta.
Por um momento pensei que ele ia fazer um
discurso ou coisa assim, e quanto mais depressa
isso acabar, melhor.
Uma porta estreita mais para o fundo da sala se
abre e pratos e talheres entram na sala, levitando.
Nem me surpreendo quando pairam na frente de
cada um de nós por um instante antes de pararem
sobre a mesa, sem um ruído. Outra demonstração
de poder, certo. Respiro fundo. Se eu já estava
pensando que isso não ia prestar, agora tenho
certeza.
As travessas de comida começam a flutuar até a
mesa. Amara caprichou – mas isto também não é
nenhuma surpresa. Só espero que alguém tenha
apetite para comer tudo isso com a tensão que está
no ar. Solto o ar com força e balanço a cabeça. A
mesa está cheia de metamorfos. É óbvio que eles
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vão comer tudo isso, tensão ou não.


E definitivamente isso não é o que eu esperava
quando falaram “jantar formal”, mas não vou
reclamar. Muito melhor assim. Estico a mão para a
colher na travessa de arroz e começo a me servir.
Para minha surpresa, o começo do jantar não é
muito diferente de qualquer refeição no casarão.
Metamorfos comem e o restante de nós tenta não
ficar sem nada, basicamente. De alguma forma,
consigo comer, apesar de ter pensado que nada ia
descer por causa da tensão e da minha preocupação.
Olho de relance para Alexandre, que parece
estar completamente concentrado na sua comida.
Acho que eu preferia que Camila não tivesse me
contado tudo o que contou. Enquanto as únicas
pessoas que me falaram sobre o que estava em jogo
e os procedimentos de segurança eram parte do
bando, eu podia pensar que estavam falando o que
era conveniente para eles, de alguma forma. Mas eu
conheço Camila bem o bastante para saber quando
ela está mentindo, e ela falou a verdade. Foi por
muito pouco que não morremos. Muito pouco
mesmo. Se Alexandre e Paula não tivessem sido tão
rápidos para propor me usar como refém, era bem

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provável que um dos vampiros tivesse vindo cuidar


do problema, porque a decisão do Conselho já
estava tomada. E esta era a parte que Camila não
tinha certeza se Alexandre sabia. A decisão já
estava tomada. Tudo já estava sendo preparado
para a execução da minha família e dos
trabalhadores da construtora, apenas porque meu
pai viu algo que não devia por acidente, porque as
proteções deles falharam.
E eu não consigo nem manter a minha raiva
sobre essa falha de segurança, de novo por causa de
Camila. De acordo com ela, o tipo de proteção que
existe ao redor de todas as áreas de convívio dos
seres do Outro Mundo não falha assim, do nada.
Ela tem que ser desfeita. Podem ter feito isso de
propósito? Claro que podem. Mas Camila tem
certeza de que não foi o caso. Não existe nenhum
motivo prático para me quererem aqui. Nada que vá
ajudar o bando, no sentido político. E eu não tenho
nada que possa lhes interessar. Camila ainda fez
questão de mencionar que eu não tenho uma gota
de sangue do Outro Mundo ou ela teria sentido, só
para deixar claro que não existe realmente nenhum
motivo para fazerem tudo isso de propósito para me
trazer para o casarão.
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Respiro fundo, esticando o braço para me servir


de mais salpicão. E agora quatro pessoas do mesmo
Conselho que estava se preparando para matar
minha família estão aqui, junto com um alfa que já
me atacou uma vez. De verdade, como é que estou
conseguindo comer? Mas não adianta ficar
pensando em nada disso aqui.
Quando dou por mim, Caio, Rodrigo, Lavínia e
eu estamos na mesma briga/brincadeira de sempre
por causa de comida. Estou fazendo o possível para
ignorar os olhares da outra ponta da mesa. Se eles
querem ver como a humana interage com o Outro
Mundo, estão vendo.
— E vocês acham que vai demorar muito tempo
para sermos forçados a nos mostrar?
Não sou a única que para e encara quando um
dos homens na outra ponta da mesa, de cabelo
castanho escuro cortado curto e barba um pouco
grande demais para o meu gosto, levanta a voz.
Rodrigo se inclina na minha direção.
— Ivan — ele murmura.
Então ele é o alfa dos lobos. Não sei se ele
estava falando para a mulher que obviamente é a
alfa das aves ou para o homem sentado ao lado
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dela, que tem um rosto tão definido que não me


surpreenderia se alguém em dissesse que é modelo.
— Menos de um ano. — Paula fala, antes que
alguém responda.
Todos se viram para ela e Alexandre levanta a
cabeça.
— Menos de um ano até o Outro Mundo se
revelar para a humanidade. Se forçados ou não, não
sei.
— Como tem certeza? — A alfa pergunta, com
a voz gelada.
Paula dá de ombros e a encara com uma calma
estranha que faz os cabelos da minha nuca se
arrepiarem.
— Me disseram isso antes de me afastar dos
bruxos. Que eu ia ter uma amiga humana que ia
saber o que eu sou. E que ela teria um lugar entre
nós. Quando isso acontecesse, seria porque o tempo
de nos escondermos estava acabando. Um ano, no
máximo. Talvez menos.
O silêncio é tão completo que daria para ouvir
um alfinete caindo.
— Lílian? — Alexandre pergunta suavemente.

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Ela assente.
Olho para Rodrigo.
— Bruxa. Vidente, para ser específico. De BH
— ele murmura.
Ninguém fala mais nada depois disso, mas de
alguma forma a tensão na sala parece ter
aumentado. Não faço ideia de quem é essa Lílian,
obviamente, mas a palavra dela tem peso. E não é
difícil ver que as pessoas na outra ponta da mesa
não gostaram disso.

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CAPÍTULO DEZESSEIS

L AURA
DE ALGUMA FORMA, O JANTAR CONTINUA SEM MAIS
nenhuma interrupção. Pena que eu sei que esperar
que continue assim até os visitantes irem embora é
querer demais. Tento ignorar a tensão e continuar a
comer, repetindo mentalmente que ninguém vai
fazer nada comigo. Não quando estou sentada entre
Rodrigo e Lavínia, com Paula e Caio na minha
frente e Alexandre na ponta da mesa. Não importa
que eu ainda esteja com raiva deles... E na verdade
nem estou mais com tanta raiva assim. Culpa de
Camila e de tudo que ela me contou.
Quando todos estão mais conversando que
comendo, as travessas de comida levitam para fora
da sala. Logo depois vão os nosso pratos e talheres
e eu realmente não quero pensar no que mais

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Amara pode fazer, se quiser. Andei pesquisando


sobre brownies e duendes, para tentar entender as
piadas entre ela e Jorge, mas a única coisa que
encontrei foi que normalmente brownies gostam de
cozinha e cuidar da casa em geral. Sobre duendes,
não achei nada. Ou melhor, achei tanta coisa e tudo
tão genérico, que não consegui aproveitar nenhuma
informação. E sempre que Rodrigo está no casarão
eu estou concentrada demais nas minhas
ilustrações, ou seja, não lembro de perguntar.
As sobremesas levitam para dentro da sala.
Mousses, tortas, pudins... Ainda bem que Amara
não faz sobremesa todo dia, senão eu já ia ter
engordado uns dez quilos no mínimo nesse pouco
tempo que estou aqui. Os pratos e talheres vêm
logo em seguida, de novo sendo colocados na
frente de cada um de nós. Espero os metamorfos se
servirem – avançarem é uma palavra melhor –
antes de pegar um pedaço de torta gelada.
Bem que os visitantes podiam ficar tão
empanturrados de comida a ponto de esquecerem
de começar confusão.
E me lembrar disso quase faz meu apetite
desaparecer. Continuo comendo – qualquer coisa

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que Amara faz é deliciosa – mas já sei que não vou


repetir a sobremesa. Quero estar em condições de
correr, se for o caso.
Caio estica o braço e enfia o garfo no meu
pedaço de torta.
— Ei!
Como se adiantasse falar alguma coisa. Ele ri,
colocando a torta no seu prato, e me dá um sorriso
inocente.
— Qual é a dificuldade em pegar um pedaço
para você? — Resmungo, me esticando para pegar
outro pedaço.
— Essa torta é dura. Não consigo partir assim
— ele fala, com uma expressão inocente que não
me enganaria nem se fosse a primeira vez que ele
estivesse fazendo algo assim.
Não consegue partir, sei.
— É a primeira vez que ouço falar de força
seletiva.
Lavínia ri e Rodrigo se estica para partir a torta
para mim, sorrindo. Muito divertido.
— Como vocês conseguem tolerar isso? — Um
dos homens na outra ponta da mesa levanta a voz.
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Tenho quase certeza que é o que se chama


Oswaldo, mas não quero me virar para conferir.
Puxo meu prato de volta lentamente, tentando
não chamar atenção, mas isso não faz diferença.
Todos ao meu redor se viraram para encarar o
homem que falou. Faço o mesmo.
— Tolerar o quê? — Alexandre pergunta.
— Uma humana entre vocês, agindo como se
tivesse o direito de estar aí, como se não fosse uma
abominação que ela saiba... — ele continua.
Um dos outros homens, o que eu acho que
poderia ser modelo, bate a mão na mesa. Ele não
coloca muita força nem faz muito barulho, mas
mesmo assim o gesto faz todos os meus pelos se
arrepiarem.
— Abominação é vivermos como vivemos hoje
— ele fala, sem levantar a voz, e de alguma forma
suas palavras são perfeitamente audíveis.
— De novo aquela história sobre como a
humanidade e o Outro Mundo viviam juntos, Avés?
Nem mesmo os vampiros mais antigos têm
memória disto — o primeiro homem retruca.
Então este é o príncipe dos sidhe. Camila
mencionou seu nome. Agora entendo por que ela
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estava preocupada com qual posição ele tomaria.


Existe algo sobre ele que me faz querer fugir e me
esconder no primeiro lugar que encontrar.
— Eles não têm memória disto porque tudo
aconteceu bem antes dos vampiros existirem —
Avés responde. — O que não muda o fato de que
nossas raças foram feitas para existirem juntas, não
separadas e muito menos conosco nos escondendo.
— Os sidhe pensam que sabem de tudo apenas
porque têm mais registros do passado — a alfa das
aves interrompe. — Mas se esquecem do que
aconteceu quando tentamos nos revelar no passado.
Avés se vira para ela e vejo seus olhos de
relance. Eles são dourados. Não daquele tom
amarelado que as pessoas gostam de chamar de
âmbar ou dourado para parecerem mais misteriosas
ou sei lá o quê, mas dourados de verdade. E
brilhando de uma forma que definitivamente não é
humana.
— E os metamorfos sabem o que aconteceu
quando tentamos nos revelar? Sabem a verdade?
Que fomos forçados a fazer isso por causa dos
ataques do...
— E vocês estão discutindo assuntos do Outro
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Mundo na frente de uma humana! — Oswaldo


grita, interrompendo Avés.
E eu pensei que a confusão seria eles me
atacando, não brigando entre si.
— Que diferença faz se ela sabe sobre o Outro
Mundo ou não? Laura é uma pessoa comum, que
aceitou nossas condições sobre continuar aqui —
Alexandre fala, num tom calmo que eu nunca vi ele
usar antes. Tentando acalmar os ânimos? — Que
diferença isso faz? Quem não deveria saber sobre
nós já sabe.
Eles o encaram por um instante e então a mulher
se vira para Ivan.
— Você contou para ele — ela praticamente
sibila.
— Contei. É o meu território, minha
informação, minha decisão. E não se esqueça de
com quem está falando.
— Existe uma forma simples de resolver isso —
Gustavo fala tão baixo que mal o escuto.
A discussão para no mesmo instante e Oswaldo
empurra sua cadeira para trás, se levantando.
— Sim, existe.

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Lavínia me empurra para trás e caio em cima de


Rodrigo. Ele me puxa, o tempo todo olhando para a
frente, e preciso de um instante para entender o que
aconteceu. Onde Oswaldo estava agora está uma
onça-pintada enorme. Não sei qual é o tamanho de
onças “normais”, mas tenho certeza que não são
mais altas que a mesa. Me desembolo da cadeira,
que caiu para o lado, e obedeço quando Rodrigo me
empurra para trás de si. Quando foi que ele ficou de
pé?
— Não corra — ele murmura.
De relance, vejo que Caio pulou em cima da
mesa e escuto Paula cantarolando algo em voz
baixa, num ritmo hipnótico. O cabelo de Lavínia,
que está parada alguns passos na frente de Rodrigo,
entre nós e Oswaldo, está completamente branco e
se movendo como se ela estivesse no meio de um
vendaval. Os lobos se afastaram na direção da
parede, saindo do caminho, mas vejo o brilho que
mostra que estão se transformando. Na outra ponta
da mesa, Gustavo também se transformou: não faço
ideia do nome disso que ele é, mas é um felino
grande e de pelo bege escuro. Ivan e Avés
continuam sentados calmamente, mas a mulher está
de pé e vejo garras afiadas no lugar dos seus dedos.
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— Vocês atacariam seus iguais para proteger


uma humana? — Ela pergunta.
Nunca vi alguém usar “humano” como um
insulto antes, mas é óbvio que é isto que ela acabou
de fazer.
A onça-pintada gigante salta na nossa direção.
Um dos lobos se choca com ela ainda no ar e mais
dois lobos acompanham o primeiro. Gustavo salta a
mesa, mas algo o agarra no ar e o joga no chão. O
último lobo está sobre ele antes que consiga se
recuperar. Rodrigo, Lavínia, Caio e Paula não se
movem e a outra mulher sidhe desapareceu. E não
tenho coragem de me virar para Alexandre.
A alfa das aves avança para onde os lobos estão
lutando contra Oswaldo e agarra um deles pelo
pescoço. Vejo suas garras afundarem na carne. Ela
puxa o lobo e o joga na parede, já estendendo a
mão para o próximo.
— Vai. — Escuto Paula murmurar.
— CHEGA!
O grito de Alexandre não é humano. Não tem
como ser. Agarro os braços de Rodrigo, sem ter
coragem de olhar para trás. Esse som não é
humano, mas também não é de nada que eu consiga
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dar um nome. É grave, pesado, com quase um


rosnado na voz e algo mais, que eu não consigo
descrever, mas que me faz querer me virar e correr
para o mais longe possível da criatura que fez esse
som.
— Eu disse que CHEGA!
O segundo grito corta pelo meio da luta
enquanto todos se viram para encarar Alexandre.
Avés se levanta e dá um passo atrás, lentamente, na
direção da porta. Ivan espera mais alguns segundos
e então faz a mesma coisa, o tempo todo encarando
o ponto em algum lugar atrás de mim, onde
Alexandre está. A alfa das aves já está quase na
porta e o que quer que estivesse prendendo Gustavo
no chão o soltou, porque ele está se arrastando na
direção da saída, assim como Oswaldo.
Escuto uma risada baixa e grave que faz todos
os meus pelos se arrepiarem. Rodrigo está
tremendo e sinto a tensão nos seus braços. Isso não
é bom. O que quer que seja... Não é bom.
— Vocês desrespeitaram as regras da
hospitalidade. Fora da minha casa, agora.
E nem mesmo o tom mais baixo, sem ser um
grito, tira o rosnado e aquela outra sensação
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estranha da voz de Alexandre. Sei que ele está


falando com os visitantes, que desapareceram pela
porta antes que ele terminasse de falar, mas não
consigo deixar de dar um passo na direção da saída
também.
— Todos vocês, fora.
Mal vejo os lobos se movendo, os que estão
bem se transformando e carregando os feridos para
fora. Tem uma mancha de sangue na parede onde a
mulher jogou um dos lobos. Rodrigo me puxa para
a frente, ao mesmo tempo em que Caio pula de
cima da mesa e passa por nós, sem olhar para trás.
— Você não, Laura.
Paro. Sei que insistir em sair vai ser um desafio
e não sei se quero desafiar Alexandre... Seja lá o
que ele for. Pelo menos, não dessa vez. Mas não
quero ficar sozinha nesta sala com ele. Não me
esqueci de que não faço ideia do que Alexandre é.
Rodrigo aperta o meu braço de leve e então me
solta, indo para a porta.
Dou mais um passo à frente, querendo sair dali
enquanto posso, mesmo que Rodrigo tenha fechado
a porta atrás de si. Sei que é um desafio, mas não
consigo evitar. Não depois de ver como os
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membros do Conselho, que em teoria são os mais


fortes dos seres mágicos, fugiram daqui.
— Laura.
Paro e engulo em seco quando ele me chama.
Sua voz está mais rouca que o normal, mas perdeu
aquele tom sobrenatural que me fez querer fugir. E
eu não quero me virar para Alexandre. Não quando
não consigo continuar tendo raiva dele pelo que
fez. Depois disso aqui, de Oswaldo se
transformando e avançando para mim, e depois de
tudo que Camila me contou, não consigo deixar de
pensar que ele pode ter razão. Não é certo. Não
existe justificativa para o que ele fez, me mantendo
como refém aqui. Mas não consigo continuar
sentindo a raiva cega de antes.
— Laura...
Respiro fundo e solto o ar lentamente. Não
adianta tentar ignorá-lo. Eu sei disso. Sei que se
insistir, posso sair daqui e ele não vai dizer nada.
Só preciso falar algo como o que falei aquela vez
que ele foi no meu quarto, algo como “não quero
falar nada com a pessoa que me fez abandonar
minha vida”. Se disser isso ele não vai me parar.
Mas... Não consigo. Por algum motivo, não tenho
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coragem, e isso não tem nada a ver com ter medo


de Alexandre. Respiro fundo de novo e me viro.
Não sei o que eu esperava ver. Aquele quase
rosnado na voz de Alexandre quando os alfas
fugiram da sala me fez pensar em lobos, de novo,
mesmo que eu já tenha certeza que ele não é um
metamorfo. Mas alguma coisa deve ter acontecido
para todos fugirem da sala. Se aconteceu, se ele se
transformou, já voltou ao normal. Ele está parado
ao lado da cadeira onde estava sentado, com uma
mão no seu encosto. Por um instante, acho que vi
uma expressão aliviada passar pelos seus olhos,
mas no instante seguinte ele está impassível. Como
sempre. Respiro fundo mais uma vez. Agora estou
vendo coisas. Isso aqui não é um conto de fadas
para eu ficar imaginando reações de Alexandre ou
perder a coragem de falar o que sei que vai fazer
ele se afastar. Preciso parar com isso.
Mas não consigo deixar de pensar que só estou
viva agora por causa dele.
Preciso sair daqui. Preciso dar um jeito de
escapar, antes de começar a pensar que o que
fizeram é aceitável ou algo assim. Só que não tenho
como fazer isso. Mesmo que saísse do casarão, o

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que ia fazer? Escuto a voz de Camila de novo, me


dizendo que o Conselho já tinha decidido matar
minha família. Como conseguiria me esconder
deles? Não tenho mais ilusões de que isso daria
certo, não depois de tudo o que aconteceu até
agora.
Não depois de ver a forma como todos saíram
quase correndo da sala.
— Aceitar fazer este jantar hoje, com você aqui,
foi um erro.
Pisco, surpresa. Não esperava por isso. Não
mesmo.
— Peço desculpas por isso. Pensei que já
tivéssemos chegado a um acordo — ele continua.
— Obviamente, estava enganado.
E eu acabei assistindo a uma discussão entre
membros do Conselho que me deixou com mais
perguntas ainda e poderia ter sido morta. Engulo
em seco. Não sei como ainda estou calma, mas
tenho quase certeza que quando conseguir parar
para pensar no que aconteceu, vou desabar. Eu
poderia ter sido morta. Foi essa a solução
“simples” que Gustavo sugeriu e que Oswaldo
estava mais que disposto a colocar em prática.
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E se Alexandre realmente não for o vilão nessa


história toda? E se ele realmente estiver fazendo o
possível para evitar problemas muito maiores? E se
eu estar aqui realmente for a única forma de salvar
a vida da minha família?
Não. Balanço a cabeça. Não vou seguir essa
linha de raciocínio. Não vou. Não vou ser a garota
idiota criando desculpas para as merdas que um
cara faz. Só preciso olhar para a mesa, para os
pratos cheios abandonados e os copos derrubados,
para me lembrar que ele não é uma boa pessoa. As
próprias pessoas que o chamam de amigo têm
medo dele.
— Laura... — Ele balança a cabeça e dá um
passo à frente. — Você não deveria ter visto isso. E
eu não deveria ter colocado sua vida em risco a
deixando perto dos membros do Conselho,
especialmente depois do que Gustavo fez. É melhor
que não veja mais do que deve sobre o nosso
mundo.
— Como se isso fosse fazer alguma diferença.
Ele para. Se não estivesse tão tensa,
provavelmente teria sorrido. Acho que consegui
surpreender o chefão desse lugar, ou seja lá como
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realmente o chamem. Não acho que alfa seja a


palavra certa, aqui.
— Isso faz diferença. — Sua voz está baixa e
pesada, e as cicatrizes no seu rosto parecem ficar
ainda mais claras. — É a diferença entre você viver
ou morrer. Você viu a opinião de parte do
Conselho.
Engulo em seco e faço um esforço para não dar
um passo atrás. Ele não precisa me fazer pensar
nisso. Estou conseguindo ignorar o que aconteceu
aqui nos últimos minutos, mesmo que ainda
consiga ver a mancha de sangue na parede com o
canto dos olhos. Não preciso que Alexandre me
diga que é uma questão de vida ou morte. Eu
entendi. Eles não vivem pelas mesmas regras que
eu. Eles não pensam como eu. Não vou me
esquecer.
— E eu não quero que você morra.
Levanto a cabeça, sem ter certeza do que ouvi.
As palavras estão ecoando na minha cabeça, se
repetindo na voz rouca de Alexandre. Ele realmente
falou isso? Falou. Falou. Está ali, na forma como
ele está me encarando, tenso, com uma expressão
carregada... Quase como se ele mesmo não tivesse
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certeza do que disse. Meu coração dispara e solto


uma respiração trêmula. Isso não está certo. Estou
tendo uma alucinação, estão brincando comigo,
não...
— Eu não quero que você morra.
Ele repetiu. Ele falou aquilo de novo. Desvio o
olhar, encarando as paredes sem saber o que fazer.
Não sei como reagir a isso, a esse olhar, a essas
palavras faladas desse jeito. Não consigo nem
sentir raiva pelo que ele fez quando ele me encara
desse jeito.
— Laura.
Escuto seus passos, se aproximando. Ele está
andando devagar, como se não tivesse certeza da
minha reação ou não quisesse me assustar. Fico
onde estou, sem querer recuar mesmo que não
tenha a menor ideia do que está acontecendo aqui.
Não sei mais o que esperar.
Alexandre para tão perto de mim que sinto o
calor do seu corpo me envolver. Um arrepio me
atravessa, e não é de frio. Lentamente, viro o rosto
na direção dele de novo. Ele continua me
encarando com aquela expressão intensa que não
sei descrever. As linhas das cicatrizes no seu rosto
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se destacam da pele bronzeada, e esse é o único


sinal que tenho de que ele não está tão seguro
quanto parece.
Respiro fundo. Não deveria me sentir assim.
Não mesmo. Não depois do que ele fez e do que eu
vi aqui. Do que quase aconteceu aqui. Não sem
nem mesmo saber o que ele é. Mas... Não consigo
evitar.
Sustento seu olhar, sem ter a menor ideia do que
ele está vendo na minha expressão. Não consigo
fugir. Não quero, na verdade. É quase como se ele
fosse o predador hipnotizando sua presa, a
mantendo imóvel... E esta comparação não deveria
me fazer querer sorrir. Não mesmo.
Ele se aproxima ainda mais, até que nossos
corpos estão quase se tocando e posso sentir a sua
respiração no meu rosto. Alexandre levanta a mão
direita e um arrepio me atravessa quando seus
dedos tocam meu rosto. Seu toque é leve,
cuidadoso... carinhoso. Respiro fundo, sem
conseguir desviar meu olhar do dele, enquanto ele
acaricia minha bochecha e então deixa a mão ali.
— Você não merece isto — ele murmura, tão
perto que sinto sua respiração nos meus lábios.
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O que está acontecendo aqui? Eu deveria estar


me afastando, fazendo qualquer coisa que não seja
ficar parada aqui.
— Então me deixe ir. — É a única coisa que
consigo dizer.
Ele abaixa a mão e dá um passo atrás. O espaço
entre nós parece gelado, agora que não tenho mais
o calor do seu corpo quase tocando o meu. Fecho
os punhos com força, resistindo à vontade de
esticar as mãos e puxá-lo para junto de mim. O que
está acontecendo comigo?
Alexandre respira fundo antes de abaixar a
cabeça.
— Não posso. Você sabe que não posso. Você
viu...
Assinto antes de virar as costas para ele e ir na
direção da porta.
Desta vez não olho para trás quando ele me
chama.

···
A LEXANDRE
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DE TUDO QUE ELA PODERIA TER FALADO... “ME DEIXE


ir”. Solto o ar de uma vez e paro, segurando uma
das cadeiras. Arremessá-la contra a parede não vai
adiantar nada. Pode piorar, na verdade, porque
estou ouvindo a voz de Laura fora do salão. Ela
ainda não subiu.
E isso não vai me fazer me arrepender de ter
trazido Laura para cá, especialmente depois desse
jantar. A reação do Conselho foi pior do que eu
esperava. Ou melhor, a reação de Oswaldo e Vânia
foi. Para eles estarem disposto a atacar assim, sem
nenhum motivo, é porque sabiam que não teriam
repercussões. Avés e Ivan também não se
surpreenderam com isso, mesmo que não tenham
ajudado. Ou seja, em algum momento, alguém deu
a ordem para matar o pai de Laura e seguir os
protocolos normais. É a única explicação possível.
A questão é quem e quando, porque eu só
comuniquei o Conselho quando já tínhamos nosso
plano em andamento. Eles não teriam tomado uma
decisão para algo que já estava resolvido. Era perda
de tempo.
O que quer dizer que poderíamos ter problemas
na cidade.

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Saio do salão depressa, sem nem olhar para trás


quando a cadeira que estava segurando cai. Laura já
subiu para o seu quarto, mas todos os meus ainda
estão ali, no corredor. A essa altura, os membros do
Conselho e Gustavo já estão fora do casarão, talvez
até mesmo fora da propriedade.
Olho ao redor. Ninguém tem ferimentos graves,
pelo menos. Nada que não vá estar curado amanhã
de manhã, mesmo que eu tenha quase certeza de
que Daiane vai precisar pegar leve por alguns dias.
Ótimo. Ou não tão ótimo assim – seria bom poder
exigir algum tipo de reparação do Conselho. Paula
para o que está fazendo e vem na minha direção, se
desviando dos metamorfos espalhados pelo chão.
Balanço a cabeça.
— Preciso de Ryan.
Paula abre as mãos e seus olhos brilham. Seu
poder sobe como uma onda, brilhando e se
espalhando pelo casarão. Excelente.
— Se alguém precisar de mim, vou estar no
escritório — aviso e saio.
Ela assente e para Caio com um olhar quando
ele abre a boca para falar alguma coisa. Melhor
assim. Sigo pelo corredor depressa. Pensei que
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dessa vez seria mais fácil controlar uma


transformação parcial – mesmo com as contenções
de Paula para garantir que eu não perdesse o
controle, isso não é algo que gosto de arriscar –
mas, mesmo que tenha continuado calmo nos
primeiros instantes depois que todos saíram,
enquanto Laura ainda estava por perto, aquilo foi
uma ilusão. Consigo sentir a fúria crescendo dentro
de mim. Eles nos atacaram dentro da nossa casa.
Não deveriam ter o direito de sair sem pegar.
Balanço a cabeça e abro a porta do escritório. É
melhor ficar aqui até ter certeza de que estou calmo
de verdade e que não vou me transformar – o que
não vai acontecer se ficar vendo os membros do
meu bando feridos.
— Alexandre? — Ryan chama.
Me viro de uma vez e ele dá um passo atrás, me
encarando com o canto dos olhos. Respiro fundo e
balanço a cabeça. Não ouvi quando ele se
aproximou, o que quer dizer que ele não desceu
andando.
— Me pegar de surpresa não é uma boa ideia
agora — murmuro.
Ele assente de forma brusca e não fala nada,
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ainda sem olhar para mim diretamente. Respiro


fundo mais uma vez. Preciso de Ryan. Certo.
— O Conselho pode decidir fazer uma limpa em
Monte das Pedras — falo.
Ele assente de novo.
— Vou chamar mais alguns dos antigos e ir para
a cidade.
Ryan corre para a saída, mas eu entro no
escritório e fecho a porta atrás de mim, cortando os
sons que vêm do corredor. Menos uma
preocupação. Se Oswaldo decidir ir atrás do pai de
Laura ou qualquer coisa do tipo, Ryan e os fey que
ele chamar vão ser mais que suficiente para pará-lo.
É provável que Ryan nem mesmo precise de ajuda,
na verdade, considerando que já vi Avés, o príncipe
dos sidhe, o tratar com o tipo de respeito que só se
dá para um adversário mais forte. Não preciso me
preocupar com isso.
Paro na frente da minha mesa e apoio as mãos
nela. O Conselho já está fora da propriedade a essa
hora. A tal visita que tanto insistiram a respeito
acabou, e agora podemos voltar à nossa rotina
normal. Eu não preciso me transformar e ir atrás
deles, ainda mais tão longe da lua cheia. Não.
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Alguém bate na porta. Me viro de uma vez,


rosnando antes de conseguir me conter.
— Ivan deseja falar com você.
Jorge. Respiro fundo e solto o ar pela boca.
Péssima hora para Ivan querer conversar, mas...
— Mande ele entrar — respondo.
Estou olhando para o chão quando a porta se
abre. Não tenho nenhum problema em sustentar o
olhar de Ivan, mesmo que ele seja um membro do
Conselho desta região e que tenha sido meu alfa
por anos, mas não quero correr riscos. Já estou
tenso demais.
— Alexandre — ele fala, se virando para fechar
a porta.
Assinto, ainda sem olhar para ele diretamente.
E eu tenho uma obrigação com Ivan, por ter
confiado em mim desde a primeira vez que
mencionei a vontade de formar o meu bando.
— Se Oswaldo e Vânia tentarem alguma coisa
em Monte das Pedras, não dou nenhuma garantia
de que vão escapar vivos.
Ivan dá uma risada seca.
— Não acho que nenhum deles está em
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condições de pensar em fazer isso, agora.


Respiro fundo e levanto a cabeça. Isso não é
bem uma surpresa – existe um motivo para aqueles
como eu serem caçados e mortos, normalmente.
Mas eu esperava mais do Conselho. O que me
lembra...
— Existe uma ordem de morte.
Ivan assente.
— Foi para avisar sobre isso que voltei. Gustavo
notificou o Conselho da brecha de segurança horas
antes de você, passando detalhes de localização e
quantidade de pessoas potencialmente expostas ao
Outro Mundo — ele conta.
Gustavo. Claro. Pena que sei que ele não tem
condições de invocar nem mesmo um dos
demônios menores. Esse tipo de poder é
exclusividade dos bruxos. Se não fosse assim, eu
teria quase certeza de quem era o responsável por
derrubar nossas defesas.
— Ele também contou que nossas proteções
foram derrubadas três vezes?
— Não — Ivan fala, com aquele tom de voz
controlado de quando ele está preocupado.

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— Imaginei. O Conselho se reuniu por causa do


aviso dele, não é? E deram uma ordem de morte
que ainda não foi rescindida.
Ivan se vira para uma das paredes, a encarando
como se houvesse algo interessante ali. Respiro
fundo. Não posso perder o controle.
— Lílian e eu estamos averiguando a situação
— ele continua. — Se descobrirmos algo que possa
afetar o bando, vamos avisar.
Desta vez não consigo conter um rosnado.
— Como avisaram sobre a ordem de morte?
E o fato de Ivan continuar encarando a parede,
sem responder ao desafio, é o motivo para ele ser o
alfa mais forte entre os lobos da região: controle.
— A ordem de morte era um assunto do
Conselho, não do seu bando, até o momento em
que Oswaldo decidiu agir por conta própria. Não
tente estender sua autoridade longe demais,
Alexandre.
Não falo nada enquanto ele sai da sala e fecha a
porta atrás de si.

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CAPÍTULO DEZESSETE

L AURA
OS PÁSSAROS AINDA ESTÃO CANTANDO QUANDO ACORDO.
Me viro na cama, afundando a cabeça no
travesseiro. Me lembrei de fechar as cortinas, para
variar, então o sol não vai me incomodar, mas a
vontade de esconder o rosto é mais forte que eu.
Pelo menos não estou chorando, mesmo que sinta
que meus olhos estão inchados.
Eu podia ter morrido.
Abraço o travesseiro com força. Depois desses
dias aqui no casarão eu já quase tinha me esquecido
que os seres mágicos podem ser perigosos. Estava
tranquila demais, porque nunca vi o menor sinal de
violência ou qualquer coisa do tipo. Enfiei na
cabeça que eles são apenas “pessoas comuns” com
algumas habilidades a mais. Mas não são. Respiro
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fundo. Noite passada deixou isso perfeitamente


claro. Não é à toa que se chamam de Outro Mundo.
O mundo deles é completamente diferente do meu.
A violência, o sangue... Ninguém naquela mesa se
surpreendeu quando Oswaldo, Gustavo e a outra
mulher se transformaram. Parece que estavam
esperando por isso. Ninguém nem piscou para os
ferimentos dos que entraram na luta ou para as
manchas de sangue na parede. Ninguém. É como se
para eles isso fosse normal. Que mundo é esse?
Eu vi os metamorfos depois que saí da sala:
todos estavam feridos. Até a mulher que estava ao
lado de Lavínia, a sidhe que desapareceu, estava
com um rasgo na perna. Pelo que entendi, ela se
transformou em ar ou algo do tipo. E o lobo que foi
jogado na parede e deixou aquela mancha de
sangue, que eu cheguei a pensar que estava morto?
Daiane. Quando saí da sala, ela estava consciente e
xingando enquanto Aline colocava seus ossos no
lugar para que se curasse direito. Os outros estavam
fazendo piadas sobre como os membros do
Conselho praticamente fugiram do casarão e rindo
em voz baixa, como se aquela luta não tivesse sido
nada demais.
Onde foi que eu vim parar?
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Engulo em seco, ainda apertando o travesseiro.


Isso tudo só me faz pensar que eu poderia estar
morta agora. Se ninguém nem pensou nada demais
sobre aquela luta, teriam pensado alguma coisa
sobre matar uma família inteira para continuar a
manter o segredo? A decisão já estava tomada. Se
não fosse por Alexandre e Paula...
Alexandre. Me viro na cama e encaro o teto. O
que foi aquilo depois da luta? Consegui não pensar
nisso até agora, mas não posso evitar. Tenho a
impressão de que ainda consigo sentir sua mão no
meu rosto. Aquilo foi tão inesperado, tão... Não sei.
Eu simplesmente não sei. Não faço a menor ideia
do que aconteceu. Uma coisa é ouvir Amara e os
outros falando que Alexandre está interessado em
mim, outra bem diferente é ver aquela expressão no
seu rosto e ele agir assim.
Eu não quero que você morra. A forma como
ele falou isso, como agiu, se aproximando de
mim... Logo depois de ter feito membros do
Conselho fugirem.
Respiro fundo. Isso não é um conto de fadas.
Posso estar cercada de seres mágicos, mas isso não
quer dizer que eu tenho que virar uma garota

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cabeça oca que vai derreter só por causa de umas


palavras e um olhar mais intenso, especialmente
vindas do cara que me transformou em uma
refém... Mesmo que para salvar minha vida. Não
sou assim. Nunca fui. Então por que ainda estou
pensando nisso?
Eu deveria estar me concentrando em descobrir
como escapar daqui, isso sim. A noite passada
deixou claro que minha ideia maluca de juntar
dinheiro e desaparecer com minha família nunca
vai funcionar. Se estivesse fugindo só de
Alexandre, quem sabe. Mas tenho que me lembrar
do Conselho. Mesmo que dois dos visitantes da
noite passada parecessem estar do lado de
Alexandre, não tenho a menor ilusão de que me
deixariam viver se eu fugisse. Não preciso de
detalhes sobre eles para saber disso.
Ou seja: se eu sair daqui... Quando eu sair
daqui, tem que ser com a permissão de Alexandre.
De alguma forma, preciso que ele me deixe ir e me
proteja dos outros. Bato a mão fechada no colchão.
Como é que vou conseguir fazer isso? Não é como
se eu tivesse alguma coisa que ele queira, ou como
se pudesse chantageá-lo ou manipulá-lo para...

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Sorrio. Eu posso manipulá-lo.


Não. Isso é loucura. Vai ser literalmente cutucar
a onça com uma vara curta. Ou o lobo?
Eu devia ter me virado ontem, às vezes assim ia
ter descoberto o que ele é.
Mas... Eu posso manipulá-lo, sim. Posso me
aproximar dele, ganhar sua confiança. Se ele está
interessado em mim – e depois de ontem à noite
não tenho a menor dúvida – isso pode dar certo.
Engulo em seco. Eu vou estar manipulando
alguém usando suas emoções. O tipo de coisa que
minha mãe fez comigo por anos e que eu sempre
odiei e jurei que nunca ia fazer. Mas que outra
opção eu tenho? Fica presa aqui para sempre? Até
sabe-se lá quando? Não posso aceitar isso. Não
depois de ter passado a minha vida toda presa e
finalmente ter pensado que tinha uma saída. E não
consigo pensar em outra solução.
Me aproximar de Alexandre. Respiro fundo. Eu
posso fazer isso.
Mas é loucura.
Se bem que tudo o que está acontecendo é
loucura.

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Jogo a coberta para o lado e me sento na cama.


Ainda está muito cedo, mas não consigo ficar
parada. Me levanto e ligo o meu notebook.
Só paro de novo quando minha barriga começa
a roncar. Arrancada de frente do computador pela
fome – isso já está virando hábito. Minha intenção
era terminar a ilustração de Caio. Tá, eu terminei.
Mas não pretendia começar outra. Se bem que essa
vai direto para o meu portfólio. E vou mudar o
rosto dele o suficiente para não dar para ninguém
reconhecer. É aquela coisa: eu estudei folclore
brasileiro na escola. Acho que todo mundo estuda,
pelo menos um pouco. Mas só conhecia a versão
Turma da Mônica e Sítio do Pica-pau Amarelo de
todos os mitos. Depois de ver Caio a primeira vez,
já passei um bom tempo pesquisando e tentando
descobrir mais sobre os seres mágicos brasileiros,
mesmo que seja quase impossível encontrar alguma
coisa para ler. E se já é difícil achar algo para ler,
ilustrações que não sejam infantis são raridades,
então essa aqui vai direto para o meu portfólio
online, sim.
Encaro o monitor do notebook. Acho que nunca
fiz um desenho direto no Photoshop tão depressa
assim. Nem precisei passar muito tempo
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procurando referências. A imagem de Caio


agachado na mesa, inclinado para frente, com uma
mão na mesa, a outra apoiada no joelho e dentes à
mostra está clara na minha mente. Na ilustração, eu
o coloquei nessa mesma posição, mas no galho de
uma árvore. E se continuar nesse ritmo, termino em
no máximo dois dias.
Fecho a imagem no Photoshop e encaro o outro
arquivo que está aberto. A conversa com Alexandre
– se é que posso chamar meia dúzia de palavras de
conversa – se repetiu tanto na minha cabeça que
não consegui deixar de abrir esta ilustração
também. Não deveria ter feito isso. Já devia ter
deletado este projeto, isso sim. Mas não consigo.
Eu mudei uns tantos detalhes nesta ilustração.
Agora o foco não está mais na cena completa: o
castelo, o muro, as roseiras e o homem entre elas.
Eu cortei a imagem para focar no homem preso
pelas roseiras. E agora ele realmente está preso
entre elas. Dá para ver os galhos se enrolando nos
seus braços, os espinhos os prendendo na sua pele
enquanto ele tenta se soltar, fazendo um contraste
um tanto quanto macabro com as rosas abertas. Eu
já pintei o muro, também. Ele não é cinzento, como
pensei antes, mas de um tom bege, quase cor de
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areia, com símbolos e espirais mais escuros. Já a


roseira... Eu desativei todas as camadas de cor
delas, porque mexi no desenho. E não entendo por
que fiz isso. Na verdade, não entendo nada sobre
essa ilustração. De onde a ideia veio, por que é o
rosto de Alexandre ali, por que não consigo largar
esse projeto para lá.... Nada.
E não quero parar para pensar em por que refiz
o desenho assim e o que isso pode significar.
Nem em por que as primeiras palavras que
consegui falar para ele, ontem, foram “então me
deixe ir”.
Passo um dedo pela tela, sobre o rosto de
Alexandre. São só traços, mas qualquer um o
reconheceria ali. E o que estou fazendo? Fecho o
arquivo de uma vez, fecho o Media Player e desligo
o notebook.
Tá, é fácil entender isso. Fácil até demais. A
questão é que eu gosto daqui. Gosto das pessoas,
gosto da dinâmica do casarão... Me sinto bem aqui.
Me sinto confortável, em casa, apesar de tudo. E é
estranho pensar nisso se eu me lembrar que pouco
mais de uma semana atrás estava pirando por
descobrir sobre os seres mágicos. Mas é a verdade.
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Eu gosto daqui, e ao mesmo tempo não quero


gostar, porque uma coisa não mudou: eu sou uma
prisioneira. Nada vai me fazer tirar isso da cabeça.
Nada. Então eu não quero gostar de estar aqui.
Quero ter raiva. Mas não consigo, porque me sinto
melhor aqui que em qualquer outro lugar. E quero
ficar... Só que não como uma refém.
Acho que foi isso que quis dizer... “Me deixe
ir”, porque eu voltaria por vontade própria. Com
certeza voltaria. Me jogo de bruços na cama e
afundo a cabeça no travesseiro. Por mais que isso
pareça idiota, é a verdade. Isso é tudo o que eu
quero: saber que não estou presa, que estou aqui
porque quero.
E aí, se eu voltasse por vontade própria, não ia
me sentir tão culpada por gostar de estar aqui,
mesmo que me achassem uma idiota por fazer isso.
Nem ficaria culpada por ficar repassando a tal
conversa na minha cabeça. Ou me lembrando da
sensação da mão de Alexandre no meu rosto e do
calor do seu corpo envolvendo o meu.
Preciso parar de pensar nisso.
Minha barriga ronca de novo, me lembrando de
por que desliguei o notebook. Hora do almoço,
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certo. Hora de descer, então.


Me levanto e troco de roupa depressa. Deveria
estar preocupada e pensando naquela luta de ontem,
mas isso praticamente sumiu da minha mente. Não
faz sentido, mas é o que aconteceu. Acho que
cheguei no meu limite de surtos. E, se as pessoas
que se feriram não consideraram aquilo nada
demais, não sou eu quem vai fazer isso.
Rodrigo, Daiane e André estão na cozinha
quando entro. Rodrigo e André estão conversando,
mas Daiane está com a cabeça apoiada em um
braço e comendo lentamente. E olhando assim, não
consigo ver nenhuma marca da luta de ontem à
noite, mesmo que ela tenha sido jogada contra a
parede. Certo. Metamorfos. Regeneração
acelerada.
Consigo ouvir Amara do outro lado do balcão e
a pilha de pratos em cima dele termina de me
contar que o horário do almoço já passou. São
quase duas horas da tarde, na verdade. Ainda bem
que sempre tem comida nessa casa e nem mesmo
os metamorfos conseguem acabar com tudo que
Amara faz.
— Terminou a ilustração? — André pergunta
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assim que pego um prato limpo no balcão.


— A do Caio? Terminei — respondo enquanto
começo a me servir.
Espera, André puxando assunto? E ainda por
cima perguntando sobre a ilustração? Paro com a
concha de feijão na mão, resistindo à vontade de
me virar para ele. Normalmente André é o mais
calado de todos os metamorfos.
— Isso quer dizer que não vou mais acordar
ouvindo Britney Spears? — Rodrigo pergunta.
Coloco meu feijão, deixo a concha dentro da
panela, e me viro para ele.
— Nem coloquei o som alto — falo antes de me
virar para pegar estrogonofe. Está no restinho, mas
pelo menos ainda tem alguma coisa. Eu ia xingar
demais se tivesse perdido justamente o dia que
Amara fez estrogonofe.
Daiane ri alto e se vira para mim, antes de
balançar a cabeça e voltar a se concentrar na
comida.
— Não foi alto para uma humana — Rodrigo
completa.
O quê... Ah. Metamorfos. Sentidos apurados,

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isso quer dizer audição melhor. Droga. Não vou


parar de colocar música enquanto estou trabalhando
e não gosto de fone de ouvidos, então...
— Não foi alto — Amara fala, saindo de onde
estava mais no fundo da cozinha. — Não é culpa
dela se seu ouvido ficou sensível e não consegue
ouvir nada além daquela gritaria.
Levanto as sobrancelhas e continuo a colocar
comida enquanto Rodrigo e André discutem com
Amara sobre as “gritarias” que eles escutam. Bem
que reparei que camisas de bandas de rock e metal
são quase uniforme aqui, junto com as camisas de
jogos. Não vou chamar nada de “gritaria” – mesmo
que ache que umas tantas bandas que Camila e
Felipe me mostraram sejam só isso mesmo – mas
agradeço mentalmente por Amara ter entrado no
meio.
Me sento na frente de Daiane, que continua com
a cabeça apoiada em um braço e comendo
lentamente. Estou começando a achar que isso é
por causa do que aconteceu ontem. Bom saber que
não é como não tivesse nenhuma consequência. Ela
levanta as sobrancelhas para mim e sorri, indicando
os dois homens inclinados na direção do balcão e

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defendendo as bandas que curtem como se suas


vidas dependessem disso.
— Homens — ela murmura.
Rio em voz baixa, tentando não chamar atenção,
enquanto começo a comer. Na verdade, depois do
comentário de Amara, tenho quase certeza que já
ouvi música alta vinda de várias partes do casarão
antes. E ninguém reclamou. Vão implicar comigo
só porque gosto de música pop? Ah, não.
A discussão acaba quando já estou terminando
de comer. Amara olha para mim e assente, e sorrio
em agradecimento. Entendi o que ela fez. Se não
fosse assim, Rodrigo não ia ter me deixado comer
em paz. A essa altura eu já sei mais sobre os
subgêneros de rock e metal do que preciso. Não
que eu vá me lembrar de qualquer coisa sobre isso
amanhã.
Rodrigo olha de Amara para mim e estreita os
olhos.
— Era só ter me mandado calar a boca.
Rio alto e até André me acompanha.
— Rodrigo, você fala mais que eu depois de
bêbada — comento.

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Ele resmunga alguma coisa que não escuto e


Daiane responde em voz baixa. Metamorfos,
audição mais apurada, e isso quer dizer conversas
que a humana aqui não consegue ouvir. Pelo menos
tenho certeza de que Daiane está concordando
comigo.
Começo a contar mentalmente enquanto dou as
últimas garfadas. Não chego no número quinze
antes de Rodrigo se inclinar na minha direção.
— Posso te perguntar uma coisa?
Quando alguém começa assim, é porque não
vem boa coisa. Rodrigo começando assim? Pior
ainda.
André coloca uma mão no rosto e balança a
cabeça. É, não é boa coisa.
— Poder, pode.
— Ela só não garante que vai responder —
Daiane completa.
Sorrio. Eu não queria ser mal-educada, mas já
que ela falou por mim...
Rodrigo mostra o dedo do meio para ela e se
vira de volta para mim.
— Pensei que você não fosse nem sair do quarto
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hoje. — Ele dá de ombros, parecendo sem jeito. —


Depois do jantar, e...
Ele dá de ombros de novo e me encara. Minha
vontade é provocar e falar que isso não foi uma
pergunta, mas ele está tão sem jeito que não tenho
coragem. Ele realmente se preocupou. Eles se
preocuparam, na verdade, se as expressões de
Daiane e André são uma indicação.
— Honestamente? Boa pergunta. — Também
dou de ombros, colocando meu garfo no prato e
indicando Daiane e André. — Mas vocês dois
lutaram. Aquela mulher jogou Daiane na parede
como se não fosse nada.
— Eu odeio aquela vadia — Daiane resmunga.
— Quem não odeia? — Rodrigo completa.
Paro. Espera, Rodrigo não é um gavião? Isso
quer dizer que a tal mulher deveria ser a alfa dele.
E, aliás, Aline não estava na mesa do jantar ontem,
e ela é a única outra aqui que se transforma em uma
ave.
Balanço a cabeça quando vejo que eles estão me
encarando. Depois penso nisso.
— A questão é: vocês lutaram e estão agindo
como se não fosse nada demais. Por bem ou por
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mal, eu estou aqui, e continuar surtando com


qualquer coisa que for diferente não vai me ajudar
em nada. Então se vocês estão agindo como se não
fosse nada demais, vou tentar fazer a mesma coisa.
O prato vazio na minha frente se levanta,
flutuando alguns centímetros acima da mesa antes
de ir na direção da cozinha. Bom saber que Amara
também está prestando atenção na conversa.
— Metamorfos têm regeneração acelerada,
então brigas e lutas são algo bem comum.
Quase pulo quando escuto a voz de Alexandre.
Não vi ele entrar, mas parece que os outros viram,
porque só assentem na sua direção enquanto ele se
aproxima e se senta no mesmo banco que eu,
deixando alguns palmos de distância entre nós.
Respiro fundo enquanto a conversa de ontem à
noite se passa na minha cabeça de novo. A forma
como ele falou e se aproximou de mim... Nossos
olhares se encontram. Eu tenho que parar de pensar
nisso.
— Terminou a ilustração? — Alexandre
pergunta.
Ah não, mais um.
André ri em voz baixa.
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— Vai vir me falar que te acordei com Britney


Spears também? — Resmungo.
— Na verdade, foi Backstreet Boys.
Respiro fundo enquanto Rodrigo e Daiane riem.
— Qual é o problema de vocês com música
pop?
— Nenhum problema. Tem que ver eles
bêbados no karaokê — Lavínia fala, entrando na
cozinha. — Sabem todas as músicas. Aliás, acho
que tenho um vídeo de algumas pessoas cantando e
dançando Lady Marmalade.
— Ei! — Rodrigo e André gritam juntos.
Tento imaginar Rodrigo e André dançando Lady
Marmalade. Preciso ver eles bêbados.
— Eles fazem a coreografia direitinho? —
Pergunto.
— Depende do que você considera
“direitinho”...
— Você para com isso que temos vídeos seus
também! — Rodrigo ameaça.
Não presto atenção na resposta de Lavínia
porque me virei para Alexandre. Ele está me
encarando da mesma forma que ontem e não sei
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como reagir. Uma coisa é ver isso depois da luta,


na adrenalina do momento, ou seja lá o que foi.
Mas ver essa expressão agora, quando estamos
rindo na mesa da cozinha... Um arrepio atravessa
meu corpo. Eu posso não saber o que Alexandre é,
mas sei que ele é o mais forte aqui. E ele não tem
nenhum motivo para me olhar assim, nada...
— Posso conversar com você?
Respiro fundo e tento prestar atenção no que ele
falou. Lavínia, Rodrigo e André ainda estão
discutindo sobre o tal vídeo, mas não consigo nem
entender o que estão falando. Só consigo ver o
rosto de Alexandre na minha frente. Tenho certeza
que ele é algum tipo de metamorfo. Não tem outra
explicação. Mas o que daria cicatrizes como as dele
para um metamorfo?
— Laura?
Conversar comigo. Certo. Conversar em
particular, imagino.
Isso não é uma boa ideia.
— Claro — respondo.
Alexandre se levanta e faço a mesma coisa.
Começo a ir na direção da porta da cozinha, mas
ele indica a porta dos fundos. Me viro, tomando
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cuidado para não olhar na direção de Rodrigo ou


dos outros.

···
A LEXANDRE
ASSIM QUE SAÍMOS DA COZINHA, LAURA PARA E ENCARA
o jardim. Olho ao redor. Não tem nada aqui para
ela ter parado assim, a menos que esteja encarando
as roseiras de Paula. Olho para ela de novo.
Exatamente isso. Sorrio e começo a andar na
direção dos canteiros. Quando chegamos no
casarão, o jardim era um emaranhado de mato e
roseiras mortas. Se dependesse de mim, teria
arrancado tudo e colocado fogo, para depois pensar
no que fazer com os canteiros. Sendo bem honesto,
se fosse só eu aqui, no começo, não teria pensado
em plantar jardins nem nada do tipo. Só teria
limpado a coisa toda e deixado por isso mesmo.
Ainda bem que tive bom senso o suficiente para
nunca falar isso perto de Paula, porque ela olhou
para os canteiros pela primeira vez e já começou a
fazer uma lista do que faria.
Entro no caminho entre os maiores canteiros e
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Laura vem atrás de mim, andando devagar. Não sei


se isso é porque ela ainda está encarando as roseiras
ou se é um resto de medo da noite passada. Respiro
fundo. Nenhum sinal de medo, mas ela também não
está calma. É melhor assim, na verdade. Laura se
acostumou aqui depressa demais. Ela precisava de
algo que deixasse claro que não somos humanos,
para sua segurança, mesmo que eu não queira nem
pensar em qual teria sido minha reação se ela
tivesse olhado para mim com medo, quando entrei
na cozinha.
— Eu ouvi o que você falou lá dentro —
começo, sem parar de andar. — Mas vou perguntar
mesmo assim: você realmente está bem depois do
que aconteceu ontem?
Ela solta o ar com força.
— Não fui eu quem foi jogada na parede, para
estar perguntando se estou bem.
Sorrio e olho para ela antes de parar, cruzando
os braços.
— Não foi isso que eu quis dizer e você sabe
disso.
Ela respira fundo e olha para as roseiras, de
novo. Tenho a impressão de que ela encararia até
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uma parede branca agora, só para não olhar para


mim. Mesmo assim, continuo não sentindo nenhum
sinal de medo.
— Das duas uma: ou eu estou em choque e vou
surtar completamente a qualquer momento, ou eu
realmente estou bem — ela fala.
Se eu tinha alguma dúvida sobre sua reação,
essa resposta acabou com elas. Rio em voz baixa e
ela se vira para mim de uma vez, me encarando de
boca aberta. Dou de ombros.
— Não acho que esteja em choque. Se estivesse,
não teria saído do seu quarto e muito menos
entrado naquela discussão agora há pouco.
Laura suspira e balança a cabeça antes de passar
por mim e se sentar no banco de cimento um pouco
mais à frente. Ela apoia os braços no encosto e
levanta a cabeça, de olhos fechados.
E isso é algo que eu deveria ter pensado antes.
Laura já está aqui faz uma semana e meia, e passou
esse tempo todo trancada dentro do casarão. Eu
poderia ter falado com Lavínia ou Rodrigo para
saírem com ela, qualquer coisa assim, ou então
deixado o pessoal avisado de que ela podia sair,
desde que alguém estivesse vigiando. Mas nada
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daquilo passou pela minha cabeça e Laura nunca


falou nada.
Talvez ela não esteja tão à vontade aqui quanto
pensei.
— Eu não faço ideia do que aconteceu ontem —
ela começa, sem abrir os olhos. — Simples assim.
Nada faz sentido, nada parece real. Foi tudo tão
rápido que... Não sei. Só não sei.
Me sento ao seu lado. Ela continua na mesma
posição, sem dar o menor sinal de que percebeu
meu movimento.
A questão é que entendo como ela se sente. Essa
estranheza, o não saber se o que viu é verdade ou
não – como pode ser verdade, porque dessa vez a
diferença não é só um poder estranho. É toda uma
forma de agir e principalmente de reagir. Outra
coisa que eu deveria ter me lembrado antes, porque
ninguém aqui vai entender o que está passando pela
cabeça dela.
— Para quem não cresce nesse mundo, sempre é
um choque. — Dou de ombros e me inclino para
frente, apoiando os braços nas pernas. — A forma
como os conflitos são resolvidos, os fatores que
influenciam as decisões... Tudo é diferente demais
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do mundo humano. Tem que ser, porque nós não


somos humanos.
Laura não fala nada, mas percebo quando ela se
endireita. Balanço a cabeça e me viro para ela.
— Eles queriam ver como você interagia
conosco. Viram o que queriam. E viram uma
humana que se manteve calma mesmo quando um
dos nossos a ameaçou.
Uma humana que confia em nós para protegê-la,
se precisar, e que não vai entrar em pânico diante
de um predador do Outro Mundo. Paula me
lembrou desse detalhe, mais cedo. A atitude de
Laura deixou claro para todos que estavam naquela
mesa que ela é uma de nós. É parte do bando.
— E vocês também provaram que são
superiores ou algo assim, não é? — Ela pergunta.
Sorrio. Chega a ser difícil acreditar que pensei
que ela era uma presa e mais nada, no começo.
Laura aprende depressa demais.
— Três alfas, sendo dois do Conselho, não
conseguiram passar pelo meu pessoal, sem que eu
precisasse me envolver. É uma mostra clara de
força.
Ela assente.
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— Lei da selva.
— De certa forma.
Laura continua me encarando, esperando uma
explicação. Dou de ombros.
— Se fosse realmente lei da selva, a lei do mais
forte, o Conselho não teria autoridade sobre nós.
Depois de ontem, eles não vão se meter nos nossos
assuntos por algum tempo, mas mais cedo ou mais
tarde vão achar outra desculpa para tentar interferir.
Ela bufa e se inclina para trás de novo.
— Pelo menos Gustavo não pode mais entrar no
território do bando, não é?
Qual vai ser sua reação se eu falar os termos
reais do acordo – que é praticamente uma
permissão escrita para matar qualquer invasor? Mas
não vou testar isso agora. Mesmo que ela diga que
está bem, ainda assim...
— Não — respondo.
— Já é alguma coisa — ela fala e fecha os olhos
de novo.
Balanço a cabeça.
— Você devia ter falado alguma coisa antes —
murmuro.
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Laura franze a testa e olha para mim.


— Falado o quê?
Indico o jardim com a cabeça.
— Que queria sair.
Ela abre a boca, para, balança a cabeça e me
encara como se eu fosse louco. Suspiro. Pode até
parecer que o que falei não faz sentido, mas faz.
— Eu já falei, não sou o vilão aqui. Acho que o
jantar de ontem serviu para você ver isso, não é?
E lá vamos nós de novo. Não me esqueci da
resposta de Laura da outra vez que falei isso.
Ela balança a cabeça e olha para o casarão, antes
de se virar para mim.
— Serviu.
Desta vez eu sinto o cheiro do seu medo.
Suspiro. Não queria assustá-la, mesmo que ela não
dê a menor indicação disso. Na verdade, ela voltou
a apoiar os braços no encosto do banco, como se
não tivesse nenhum motivo para se preocupar.
— Se tiver algo que algum de nós possa fazer
para deixar as coisas mais fáceis para você, vamos
fazer — murmuro.
Eu só não posso te deixar ir.
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Mas dessa vez Laura não fala nada. Só assente,


antes de fechar os olhos de novo.

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CAPÍTULO DEZOITO

L AURA
DE NOVO, OS PÁSSAROS AINDA ESTÃO CANTANDO. POR
que é que não posso acostumar a acordar tarde? Me
levanto e vou até a janela. Pelo menos acostumei a
fechar a cortina, não que vá fazer muita diferença
se eu continuar acordando nesse horário. O dia mal
clareou e eu não estou com nem um pingo de sono.
Não vou descer para tomar café da manhã agora,
porque provavelmente vou topar com o “café” de
Caio. Ou seja, hora de ir trabalhar.
Ligo o notebook, abro o Photoshop e o Media
Player e paro. Ontem todo mundo ficou falando da
minha playlist. Quer dizer, todos os metamorfos e
alguns dos fey. Não é minha culpa se eles não
gostam de música pop, nem se acordam com
qualquer ruído. Se bem que tenho minhas dúvidas

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de que acordei alguém.


Se fizeram esse estardalhaço todo por causa de
Britney Spears e Backstreet Boys, o que será que
vão falar se eu colocar Sandy e Junior? Abro o
YouTube. Isso vai ser divertido. Não mandei
tirarem o dia para pegar no meu pé, ontem.
Paro com o mouse em cima do botão de play em
A Lenda. Acho que tenho uma ideia melhor. Me
lembro de ter escutado umas versões estranhas de
músicas bem conhecidas um dia, na casa de
Camila. Acho que era uma versão de Living La
Vida Loca. Quais as chances de eu conseguir
descobrir qual era fuçando no YouTube? Não que
eu tenha algo melhor para fazer.
E coloco “A Lenda” para tocar enquanto
procuro, só de vingança por ninguém me ter me
deixado ver o tal vídeo do karaokê.
Demoro um pouco, mas consigo achar a versão.
E o melhor: é de uma banda que tem um CD só de
versões metal de músicas pop. Inclusive algumas
das que resmungaram a respeito ontem. Perfeito.
Monto uma playlist e dou o play. A primeira
música é Gimmie Gimmie. Dessa vez não podem
reclamar que é pop da década passada. Essa é um
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pouco mais velha. E eu não vou começar a cantar


junto. Não hoje. Tenho que conseguir ouvir isso
sem rir primeiro.
Aumento o volume, abro a ilustração nova, e
começo a trabalhar.
Não consigo deixar de achar estranho como
ontem foi como se nada de mais houvesse
acontecido. As brincadeiras, a tranquilidade de todo
mundo... O único sinal de que nem tudo era o que
parecia foi quando Paula chegou, de tardinha, e
saiu logo depois para conferir as defesas do
território. Pelo menos, foi isso que entendi. E
Lavínia, Jorge e outro dos fey já tinham feito a
mesma coisa mais cedo. Eles não estão confiando
que Gustavo não vai tentar nada.
Mesmo assim, dentro do casarão foi como se
nada tivesse acontecido. Eu quase preferia que
estivessem preocupados e tensos, assim teria
ouvido menos piadinhas, tanto sobre meu gosto
musical quanto sobre minha conversa com
Alexandre.
Digamos que teria sido muito bom se Lavínia
tivesse me passado o tal vídeo de Lady Marmalade.
Não é justo eu não ter nada para zoar eles de volta.
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Se bem que acho que minha nova playlist vai fazer


um bom trabalho.
Ainda estou cantarolando Gimmie Gimmie
quando desço para o café da manhã. Essa música já
é grudenta, e eu deixei a playlist se repetir umas
tantas vezes. Ninguém fala nada quando entro na
cozinha. Dessa vez não perdi a hora, pelo menos.
Ainda são nove e pouco da manhã, o que quer dizer
que ainda tem bastante gente aqui.
Vou direto para o balcão, pego um prato e entro
na área da cozinha para ver o que ainda tem de
comer. Os pães de queijo acabaram, obviamente,
mas tem biscoitos de queijo e eles ainda estão
quentes. Ótimo. Pego uma xícara e volto para a
área do refeitório.
Chega a ser engraçado como todos estão em
silêncio e me encarando: Rodrigo, Aline, Daiane,
Lavínia e mais três metamorfos que não sei o
nome. Coloco meu prato na mesa e me sento ao
lado de Aline, me esticando para alcançar a garrafa
de café. Lavínia a empurra na minha direção, sem
nem tentar disfarçar um sorriso. Viro o café na
minha xícara, coloco açúcar e pego uma colher para
misturar.

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— E então, gostaram da minha playlist nova? —


Pergunto.
A gargalhada de Lavínia quebra o silêncio, antes
de Rodrigo começar a resmungar em voz baixa.
Faço um esforço para não ouvir, não preciso
aumentar minha coleção de xingamentos criativos –
não é porque não costumo falar palavrões que não
sei xingar. Especialmente depois de alguns anos
convivendo com Camila.
Me viro um pouco de lado, apoiando um braço
na mesa enquanto começo a comer. Assim consigo
ver quase todo mundo. Lavínia ainda está rindo,
enquanto Rodrigo, Daiane e os outros metamorfos
resmungam.
— O que foi? Arrumei uma playlist metal, ora
essa — comento antes de dar uma mordida em um
biscoito de queijo. Hmm, muito bom.
Aline começa a rir também e cutuca Rodrigo
com o cotovelo.
— Vocês pediram. Agora aguentem — Lavínia
fala, se inclinando para a frente e levantando a mão.
Me estico e bato na mão dela.
— Isso não é justo — Rodrigo resmunga.

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···
QUANDO SAIO DA COZINHA, CAIO ESTÁ VINDO NA MINHA
direção. Ele para e abre um sorriso enorme assim
que me vê. Ótimo. Ele já sabe que terminei a
ilustração. Não que isso seja uma surpresa. Todo
mundo aqui já sabe disso. E nem vou me
surpreender se Camila me mandar mensagem
falando que já sabe que a ilustração está pronta,
também. Bando de fofoqueiros.
— Sim, já terminei. Quer o arquivo? —
Pergunto.
Ele ri e apoia o braço no meu ombro quando
passo ao seu lado.
— Na verdade, quero um pôster que nem o da
Camila.
Paro e me viro para ele. Já fiz a ilustração de
graça, para matar minha curiosidade mesmo. Não
vou pagar pela impressão e...
— Como é que você sabe do pôster? Porque ela
só me falou que ia mandar imprimir.
O sorriso de Caio fica ainda mais largo.
— Ela mandou imprimir. E já chegou. Ela
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pregou na parede da sala do apartamento e mandou


uma foto pro André.
Claro. Por que me surpreendo com isso?
Deveria ter imaginado.
E André bem que podia ter me mostrado a foto.
— Se você não se incomodar, eu coloco a
imagem no site que ela imprimiu. Mas você paga a
impressão.
— Óbvio. Mas por que está perguntando se eu
me incomodo? Que eu saiba não pediu permissão
para nenhuma das pessoas nas suas ilustrações.
— Porque eu mudei as outras pessoas o
suficiente para não ficar claro quem eu usei de
referência. Camila se reconheceu por causa da cena
toda, não porque é ela na imagem. A sua, eu não
mexi em nada.
Pelo menos, não nessa primeira. A que fiz com
ele no galho de uma árvore é outra história.
Caio assente.
— Entendi. Então pode colocar online, onde
quiser. Não me incomodo. E depois...
Quando dou por mim, estou no chão, encolhida
contra a parede, com Caio agachado na minha
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frente. Acho que escutei um grito, mas não tenho


certeza. Só sei que ainda estou vendo pontos
escuros na minha frente e não faço ideia de como
vim parar no canto da parede.
— O que... — começo.
Caio se inclina para a frente e tampa meus
ouvidos com força. Desta vez tenho certeza que
ouvi um grito... Mas ninguém deveria ser capaz de
gritar assim, por tanto tempo, com tanta força que
minha visão está ficando escura de novo. Caio se
desequilibra e quase cai em cima de mim, mas não
me solta. Aperto minhas mãos sobre as dele,
tentando abafar mais o som, mas o grito está em
toda parte, quase como se estivesse dentro de mim
também, me cortando pouco a pouco...
— Tire ela daqui!
Escuto a voz de Alexandre e percebo que o grito
parou. Pisco e balanço a cabeça. O que está
acontecendo aqui? Abro a boca para perguntar, mas
minha garganta está seca e dolorida, como se eu
tivesse gritado também.
Caio desaparece da minha frente e Rodrigo está
no seu lugar. Quando consigo entender o que
aconteceu, ele está me carregando e já está subindo
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a escada, tão depressa que preciso fechar os olhos


ou vou ficar tonta. Se bem que isso pode ser
resultado daquele grito...
Rodrigo abre a porta do meu quarto e me joga
na cama.
— O que... — começo de novo.
— Não saia do quarto até algum de nós voltar
aqui. Nem abra a porta — ele fala antes de sair e
fechar a porta.
Não escuto seus passos se afastando. Não sei se
ele continua na porta do meu quarto – me
guardando como quando ainda estavam negociando
com Gustavo – ou se eu só não consegui ouvir
quando ele se afastou. Meus ouvidos ainda estão
zumbindo, quase como nas vezes que Camila me
arrastou para shows de bandas de metal.
O grito começa de novo e pego meu travesseiro
para enfiar a cabeça debaixo dele. Mas... Não, é
diferente. Não sei se é porque estou mais longe da
pessoa que está gritando, mas agora não tenho a
impressão de que o grito está me cortando por
dentro. Ele parece um lamento, de alguma forma.
Um grito de desespero. Abraço o travesseiro com
força. Quem quer que esteja gritando, está fazendo
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isso como se tivesse perdido tudo. Como se sua


vida tivesse sido destruída por completo.
Aperto o travesseiro com mais força ainda
quando o grito para e não começa de novo. Não sei
o que é pior: ouvir aquilo, ou o silêncio.

···
A LEXANDRE
ENTRO NA COZINHA CORRENDO. JORGE APONTA PARA A
porta, que se abre sozinha. Não preciso que ele fale
nada. Saio, ainda correndo, com Caio logo atrás de
mim. Derrubaram as proteções, de novo. Pelo
menos já estávamos preparados para essa
possibilidade. Um gavião grita, acima de nós.
Ótimo. Os metamorfos que saíram atrás de nós ou
vieram correndo das áreas ao redor do casarão
olham para cima. Alguns continuaram nos
acompanhando, outros se afastaram. Rodrigo ou
Aline viram alguma coisa, então.
Depois de todas as negociações e do jantar com
o Conselho, pensei que teríamos alguns dias de paz.
Ou, no mínimo, que Laura estaria segura. Ainda
estou ouvindo Lavínia gritar, em algum lugar do
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casarão. Vendo a morte de Laura. E, o que quer que


ela tenha visto, não vai ter condições de nos contar
até se acalmar.
O grito para de forma brusca, ao mesmo tempo
em que algo brilha acima das árvores. Um instante
depois, escuto um som baixo, como um trovão
distante. É mais uma sensação que um ruído real,
mas sei que não sou o único que ouviu porque
Juliano ruge, ao mesmo tempo em que Caio deixa
seu poder escapar. Um dos fey grita alguma coisa,
mas não paro para tentar entender. Me transformo,
continuando a correr. Como lobo – um lobo gigante
– consigo ir mais depressa. E vai ser mais fácil
atacar.
Entramos na mata. Não tem nada de diferente
aqui, ainda, mas não espero achar nada até estar
quase nos limites da propriedade – e se
encontrarmos mais um humano, desta vez minhas
ordens são claras. Não importa o que façam,
qualquer um que seja pego aqui não vai voltar para
o terreno da construtora.
Caio solta uma risada alta e sinto seu poder se
espalhando de novo. O caminho na minha frente
desaparece por um instante, antes de Caio colocar

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uma mão em mim, sem parar de correr. Algum


intruso está dentro da mata – e essa pessoa não vai
conseguir encontrar o caminho de volta.
O som se repete, ainda baixo, mas com uma
vibração mais forte, como se estivesse vindo de
dentro de mim. Rosno, tentando ir ainda mais
depressa. A mata não é tão grande assim, já
deveríamos estar chegando...
Paro de uma vez quando vejo o fim das árvores
e Caio salta para um galho. Os metamorfos que
estavam conosco ficaram para trás, provavelmente
pegos pelo poder de Caio, também. Me aproximo
da cerca que separa as duas propriedades, tomando
cuidado para não fazer nenhum ruído. Não tem
mais ninguém ali. Respiro fundo de novo. Tem
cheiros estranhos – algo do Outro Mundo, alguém
que não reconheço – mas quem quer que seja já se
afastou.
Alguém pula no espaço logo antes da cerca,
pouco à minha frente. Paro um instante antes de
avançar para ela, reconhecendo seu cheiro. Bárbara.
Ela se vira para mim, estreitando os olhos antes de
se levantar e encarar alguma coisa mais adiante.
Rosno, me aproximando, e escuto Caio fazendo a

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mesma coisa.
Bárbara me segura pela nuca e me puxa para
trás com força assim que chego ao seu lado. Viro a
cabeça, quase fechando a boca no seu braço. Ela
me solta e dá um passo para o lado. Rosno de novo
e ela estende o braço na minha frente.
— Não. E vocês não deviam nem ter pensado
em vir para cá assim — ela fala.
— Queria que a gente fizesse o que? Esperasse?
— Caio pergunta, do alto de uma das árvores.
—Sim! — Bárbara se vira para trás. Ela nem
parece humana, agora. Sua pele tem um tom
prateado que está brilhando na luz e seus olhos são
completamente negros. — Machos...
Fey ou não, poderosa ou não, ela não tem
liberdade para agir assim comigo. Rosno,
avançando na sua direção. Ela dá um passo para o
lado e abaixa a mão, voltando a encarar a cerca e
algo do lado de lá.
— Se Paula ainda estivesse no casarão, vocês
não teriam vindo sem ela, não é? — Ela continua.
Paro. Ela está certa. Se Paula ainda estivesse no
casarão, teríamos esperado e vindo com ela, para
que conferisse se não havia nenhuma magia que
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não conseguíamos perceber. Isso ter acontecido no


horário de trabalho dela pode não querer dizer
nada, já que Paula fica quase o dia todo na cidade,
mas também não podemos pensar que não foi
proposital.
Solto o ar com força, só para Bárbara ter certeza
de que a ouvi.
— Tem algo ali — Caio fala.
Bárbara assente, sem olhar para trás.
— Algum tipo de armadilha.
Ela sai do meio das árvores e vai até a cerca.
Começo a ir na sua direção, mas Bárbara se vira de
uma vez e balança a cabeça. Certo, então. Eu
confiaria se fosse Paula ali. Paro. Ela se abaixa e
passa entre os fios da cerca, parando encostada
nela, com o olhar fixo em algo que eu não consigo
ver.
Bárbara dá um passo para a frente e algo estala.
Não tem nenhuma luz desta vez, mas sinto aquela
mesma vibração nos meus ossos. A pele dela
começa a brilhar, de dentro para fora, e Bárbara ri.
É um som estranho, mais parecido com sinos de
vento do que com algo que deveria sair de uma
garganta humana.
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Me transformo de novo. Agora consigo ver um


círculo mais escuro marcado no chão, ao redor de
Bárbara. Algum tipo de contenção, mas ela
continua rindo. Ou ela está louca, ou o que fizeram
não é o suficiente para prendê-la. Sei o suficiente
sobre o passado dela para apostar na segunda opção
e não me aproximar.
Algum tempo depois, a vibração para. Bárbara
para de rir e respira fundo antes de se virar para
nós.
— Era uma armadilha — ela fala, passando
entre os arames da cerca de novo e dando de
ombros, enquanto o tom prateado começa a
desaparecer da sua pele. — O primeiro que
chegasse ali....
Olho para Caio. O primeiro a chegar seria um de
nós, em qualquer tipo de cenário. Ele é o mais
rápido dentro da mata, e eu sou o mais rápido dos
lobos. Rodrigo e Aline têm ordens de se manter no
ar em qualquer situação daquele tipo, não teriam
descido. O que quer dizer que o alvo pode ser
qualquer um de nós. Se é que sabiam o suficiente
para imaginar aquilo – é possível que só quisessem
pegar um de nós, qualquer um. Agora, por quê?

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— Você prendeu alguém — falo.


Caio sorri e assente.
Ótimo.
— Descubra o que sabem.
Seu sorriso fica ainda mais largo.
— Até onde posso ir?
Paro, sem querer dar minha primeira resposta
por puro hábito. Mas não. Já tinha decidido o que
fazer com qualquer um que invadisse nosso
território. Estou no meu direito, não importa o que
faça.
— Até onde precisar — respondo.
Caio dá uma gargalhada e salta do galho onde
está. Um instante depois, ele desapareceu entre as
árvores.
— É melhor voltarmos — Bárbara fala.
Me viro para ela, que está batendo as mãos nas
roupas, como se tivesse tirando poeira. Não que
tenha alguma coisa ali. Talvez vestígios de poder.
E é bom saber que ela é capaz de absorver magia –
não tenho como pensar que ela fez outra coisa ali.
— Paula vai querer voltar aqui, quando chegar,
para analisar os traços de energia — aviso.
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Ela assente, passando por mim e começando a


seguir o mesmo caminho que fiz vindo para cá.
— Ninguém vai se aproximar daquilo ali, pode
ter certeza. Quando ela chegar, a trarei aqui.
Certo, então. Olho para trás mais uma vez antes
de segui-la. Vou precisar de grupos de vigilância na
mata até Paula chegar para fazer a base das nossas
proteções de novo. E, talvez, alguém encontre mais
algum sinal de quem está fazendo aquilo. Mais
cedo ou mais tarde, eles vão cometer algum erro.
Com sorte, o erro já está conosco – nas mãos de
Caio.

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CAPÍTULO DEZENOVE

L AURA
O HORÁRIO DO ALMOÇO CHEGA E PASSA, E NINGUÉM
apareceu ainda. Não ouvi mais gritos, mas também
não estou ouvindo os barulhos normais do casarão
desde que Rodrigo saiu do quarto. Tentei ver
alguma coisa pelas janelas, mas também não vi
nem sinal de vida de ninguém. Não faço a menor
ideia do que está acontecendo, e isso responde
aquela pergunta de dois dias atrás: é melhor saber o
que está acontecendo, mesmo que isso me assuste.
Cruzo os braços com força. Ficar trancada aqui
definitivamente não ajuda. Alguém podia ter ao
menos falado o mínimo necessário. Um “estamos
sendo atacados” ou “alguém está morrendo” já teria
ajudado muito. Mas não, só me jogaram aqui.
Me afasto da janela e olho para o meu notebook
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em cima da mesa. Não tenho nada melhor para


fazer, não é mesmo?
Ligo o notebook, abro o navegador e vou direto
para o Google. Se estou numa casa cheia de seres
mágicos e de repente escuto um grito que nem
aquele, posso imaginar que é um tipo de ser
mágico, certo? E eu tenho certeza de que já ouvi
falar de algo assim. Ou li em algum lugar, não sei.
Não consigo me lembrar. Digito “mitologia grito”
na caixa de pesquisa e espero a página de
resultados carregar.
Banshee. É o primeiro resultado. É tão óbvio
que não sei como não me lembrei antes. Não
preciso nem mesmo abrir o link. Banshees, as fadas
da morte ou lamentadoras, que previam a morte das
pessoas e gritavam de uma forma que podia matar
ou enlouquecer quem as ouvisse.
Quem vai morrer?
Abro o primeiro link e começo a ler o artigo.
Não me lembro de ver em nenhum lugar sobre
como elas previam a morte de alguém, se era
possível evitar ou se as banshees só eram ouvidas
quando não havia como mudar o futuro. Profecias e
visões são a coisa mais comum em livros de
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fantasia, e sempre se pode tentar mudar o futuro


que foi previsto assim... Não que isso sempre dê
certo. A história de Édipo é um exemplo claro
disso: a profecia se concretizou justamente porque
tentaram evitar aquele futuro.
E eu não vou ficar pensando nisso.
Especialmente porque não tem nada aqui sobre se é
possível evitar uma morte que uma banshee previu.
Respiro fundo e vou fechar a página quando
noto um detalhe no começo do artigo, que nem li.
Banshee vem de bean sídhe. Sidhe...
Lavínia.
Faz todo sentido. Ela é sidhe, se recusou a falar
que tipo de sidhe e ninguém deixou escapar nada
sobre isso, mesmo levando em conta o tanto que
são fofoqueiros e tagarelas...
Engulo em seco. A mulher divertida que se
tornou minha amiga nesses dias é uma banshee.
Isso explica como ela conseguiu parar Gustavo, no
meu primeiro fim de semana aqui, e porque ela foi
uma das pessoas que ficou comigo quando as
negociações ainda estavam acontecendo. Mesmo
que ela pareça inofensiva, ela provavelmente é
uma das mais fortes aqui, pelo que eu aprendi sobre
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os metamorfos e sobre os outros fey. E sobre Caio.


E se não estou surtando com isso, acho que
realmente não surto mais.
Uma banshee.
Desligo o notebook e me jogo de volta na cama
antes de pegar meu celular. Só tenho uma fonte de
informações confiáveis sobre o Outro Mundo:
Camila. Faço uma careta quando olho para a tela e
vejo duas mensagens não lidas dela, as duas de
anteontem.
Camila: Me conte o que aconteceu assim que o
jantar acabar.
Camila: Eu quero te matar por não falar nada e
me deixar preocupada, mas se Oswaldo está
furioso é porque não conseguiu o que queria. DÊ
SINAL DE VIDA!
É, eu sou uma péssima amiga. Deveria ter
avisado para ela que tudo correu bem... Tá, não
exatamente bem. Mas deveria ter avisado, ainda
mais depois de todas as informações que ela me
passou. Não que eu estivesse em condições de
pensar em alguma coisa depois do jantar. Nem
tenho o hábito de olhar o celular o tempo todo... Na
verdade, estou prestando menos atenção no celular
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do que costumava. Quando eu trabalhava no sebo,


pelo menos ficava jogando nele.
Laura: Dando sinal de vida!
Laura: Correu tudo dentro do esperado, pelo
que entendi. O jantar terminou em luta, Alexandre
botou os brigões para correr.
Não deixa de ser verdade, mas falando assim
parece uma briguinha de crianças, não o que eu vi.
E, a essa altura, aposto que alguém já contou todos
os detalhes para ela. Camila mandou a foto do
pôster para André, não mandou? Deve ter pedido
informações também.
Camila: Finalmente! Achei que só ia lembrar
do celular semana que vem.
Camila: Quero mais detalhes que isso.
Então a central das fofocas não funcionou desta
vez?
Laura: Depois. Preciso saber de uma coisa.
Camila: Eu vou cobrar. Mas fala.
Laura: É possível evitar uma morte depois que
uma banshee grita?
Camila: Vou te ligar.
Traduzindo: a resposta é complicada. Suspiro e
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me viro na cama, esperando, e atendo o celular


assim que ele começa a tocar.
— Me conta isso direito — Camila começa, sem
dizer nem um “oi”.
— É só isso que perguntei mesmo. Tem como
evitar uma morte depois que uma banshee grita?
— Banshees têm tipos de gritos diferentes. Nem
sempre quando gritam estão prevendo uma morte.
Se alguém ouviu uma, se é que foi uma...
-— Lavínia é uma banshee, não é? —
Interrompo. A última ligação já me ensinou que
Camila vai dar todas as voltas possíveis para não
contar nada que eu não possa saber, então tenho
que ser direta.
— Eu...
— Eu tinha acabado de sair da cozinha. Estava
conversando com Caio, e do nada estava no chão,
com Caio na minha frente tampando meus ouvidos
e sentindo como se estivesse sendo cortada de
dentro para fora. E depois, parecia um grito
desesperado — conto depressa.
Camila não fala nada por alguns segundos.
— É Lavínia — ela confirma. — Não sei muito

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sobre banshees. Os povos das fadas não convivem


muito com nenhuma das outras raças do Outro
Mundo. O que sei é o que ouvi dos lobos que
passaram algum tempo no território de Alexandre.
O grito de uma banshee pode matar. Se você estava
sentindo que estava sendo cortada, provavelmente
era algo desse tipo.
-— Mas os outros têm audição mais sensível
que a minha e não pareciam estar tendo
problemas... Caio tampou meus ouvidos. E depois,
quando Rodrigo e Alexandre apareceram, eles
estavam normais. Eu estava completamente
desorientada, mas nenhum deles...
— Merda — Camila me interrompe. — Merda,
merda, merda. Você falou que depois parecia um
grito desesperado?
Tá, agora eu estou começando a ficar muito
preocupada. Como se esse silêncio no casarão não
fosse o suficiente para me deixar nervosa.
— Isso.
— Tem certeza que os outros estavam bem?
Caio, Rodrigo e Alexandre, foi isso que você falou?
E Paula não está aí?
— Nesse horário, Paula está no sebo. Sim, tenho
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certeza que os outros estavam bem. Fala logo o que


é!
— Merda. Se só você reagiu assim, é porque o
grito era para você.
Afasto o celular da orelha e olho para a tela.
Bem que queria ver o rosto de Camila agora. Se era
para mim... Eu espero muito que isso não queira
dizer o que eu estou pensando.
Coloco o celular na orelha.
— O que isso quer dizer?
Não seja o que estou pensando, não seja o que
estou pensando, não seja o que estou pensando...
— Quer dizer que ela previu a sua morte.
Engulo em seco. Exatamente o que eu não
queria ouvir.
Mas então... Por que me trancar no quarto, por
que esse silêncio todo no casarão?
E isso quer dizer que minha primeira pergunta é
mais importante ainda.
— Tem algum jeito de evitar isso? Ou a
previsão de uma banshee é certeza?
— Não sei. Vou ver se alguém aqui sabe
alguma coisa sobre isso. Se fosse antes do jantar,
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eu ia falar para não ir, mas isso já passou, não


faço ideia do que pode acontecer...
Respiro fundo e solto o ar pela boca,
lentamente. Então Lavínia previu minha morte.
Certo. Não que seja algo exatamente inesperado,
levando em conta que parte do Conselho deles quer
me matar. Ou que sou uma humana vivendo no
meio de seres do Outro Mundo. Mas não quero
pensar no que pode ser. Camila pode estar errada.
Ela já falou que não sabe muito sobre banshees. E
pode ser que as pessoas que escutam o grito de uma
banshee morram justamente por tentarem evitar a
morte. De novo aquela coisa de Édipo. É fácil
demais imaginar uma pessoa entrando em pânico
depois daquele grito e fazendo alguma besteira.
Não. Não vou ficar pensando nisso. Essa técnica
funcionava muito bem para meus problemas em
casa, vai continuar funcionando aqui. Não vou
pensar nisso enquanto puder evitar, porque vai ser
uma preocupação à toa que não vai adiantar em
nada.
— Laura?
— Desculpa, estava...
— Estava pensando — Camila completa, com
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uma risada um pouco forçada. — O que você vai


fazer?
— Tem alguma coisa que eu possa fazer? —
Devolvo a pergunta.
Ela suspira.
— É, não tem. Mas já que não vai fazer nada,
quero os detalhes sobre o jantar.

···
SÓ DEPOIS DE PASSAR HORAS TRANCADA NO QUARTO,
sozinha e tensa demais para trabalhar que percebo o
tanto que fiquei mal-acostumada enquanto
trabalhava no sebo. Queria algum livro para ler,
mas não tenho nada aqui. Sempre li os da loja e
antes disso, vivia na biblioteca. Meu dinheiro nunca
sobrou para poder comprar livros: antes de ir para
BH, mal recebia alguma coisa; depois, todo o
dinheiro era para me manter lá. E depois que voltei
para Monte das Pedras a maior parte do meu salário
já ia direto para minha parte nas contas da casa.
Camila ficou no telefone comigo pelo máximo
de tempo que podia. Não vou negar que a conversa
me distraiu por um bom tempo. De certa forma, foi
bom poder contar para alguém tudo o que
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aconteceu no jantar e como eu ainda não entendia


como todos estavam tratando aquilo como se não
fosse nada demais. Mesmo que seja um deles, uma
metamorfa, Camila me conhece. Posso desabafar
de verdade com ela... Eu acho.
No fim das contas, ela não ficou sabendo de
todos os detalhes sobre o jantar porque os membros
do Conselho não comentaram nada a respeito e sua
“fonte de informações” no casarão, André, estava
na mata ao redor da propriedade quando tudo
aconteceu. Ele sabia o que Daiane contou, o que
não era muito.
Uma coisa que Camila falou não sai da minha
cabeça. Ela não se surpreendeu quando contei os
detalhes da luta e como os outros alfas
praticamente saíram correndo assim que Alexandre
levantou a voz. Eu teria feito a mesma coisa, se não
estivesse praticamente pregada no lugar. Mas eu
esperava mais do Conselho. Eles eram os mais
fortes do Outro Mundo, não eram? Pelo menos, os
mais fortes na região. Quando contei isto, Camila
só riu, disse que não era nenhuma surpresa e que
era bom que o Conselho se lembrasse de quem
Alexandre era, antes de decidirem se meter nos
assuntos do casarão.
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O que leva uma pessoa em sã consciência a


fazer um comentário desses e não completar me
contando o que ela quer dizer com isso? É óbvio
que tem algo a ver com o que Alexandre é, mas
Camila fingiu de surda quando perguntei isso para
ela. Já faz alguns dias desde que perguntei para
Rodrigo e Lavínia sobre isso e, obviamente, eles
desconversaram. Também perguntei para Caio, que
riu na minha cara. O que é que Alexandre tanto
esconde? Por acaso ele é um dragão?
Isso até faz sentido, na verdade. Já entendi que
Alexandre é absurdamente mais forte que todos os
outros. Não vou me surpreender se no fim das
contas ele for um dragão mesmo. Mas um dragão
seria imune ao fogo, não? Então como ele arrumou
aquelas cicatrizes? Uma luta com outro dragão?
Suspiro. Um dia vou criar coragem e perguntar
tudo isso diretamente para ele. Não que eu ache que
vai fazer alguma diferença. O mais provável é ele
desconversar, também.
Olho para a janela quando percebo um brilho
esverdeado no quarto. As linhas quase parecendo
raios que vi no dia que tentei fugir estão brilhando
nas janelas e se espalhando pelas paredes. Paula.

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Mas ainda é cedo. São três e quinze, ela não devia


estar aqui. Devia estar no sebo, trabalhando.
Engulo em seco. Se eu tivesse dúvidas de que
alguma coisa está muito errada, ver o poder – ou
feitiço, sei lá – de Paula teria acabado com elas.
Mas pelo menos eu estou ouvindo alguma coisa
no casarão. Uma porta batendo, vozes altas em
algum lugar, outra porta batendo... Acho que isso é
bom. Quer dizer, qualquer coisa é melhor que
aquele silêncio assustador.
Abraço o meu travesseiro e me concentro no
que consigo ouvir pela casa, tentando ignorar o
brilho verde do poder de Paula.
Não demora muito para eu ouvir alguém vindo
na direção do meu quarto.
— Laura, pode sair.
Quase pulo da cama quando escuto a voz de
Rodrigo. Já estou com a mão na maçaneta quando
paro. Lavínia previu minha morte, todo mundo saiu
do casarão como se o mundo estivesse acabando –
ou pelo menos foi o que pareceu – e o feitiço de
Paula brilhou no meu quarto todo. Posso estar
sendo paranoica ou criando teorias mirabolantes
demais, mas foi Rodrigo quem me falou para nem
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abrir a porta do quarto. E desde quando ele para na


porta educadamente, ao invés de sair entrando sem
nem saber se estou vestida ou não?
— O que me garante que é você mesmo? —
Pergunto.
Ele não fala nada por um instante.
— Se você abrir a porta, eu te ensino a
coreografia de Lady Marmalade.
É a voz de Rodrigo e ele está fazendo o tipo de
comentário que sempre faz, usando um assunto que
estávamos conversando ontem. Certo. Acho que
não vou conseguir nada melhor que isso. E acho
que estou ficando paranoica demais.
Abro a porta.
— Não quero aprender a coreografia, quero ver
o vídeo.
Rodrigo sorri e cruza os braços.
— Desiste.
Solto um suspiro aliviado. Não sei mais o que
esperar. Não teria me surpreendido se tivesse
aberto a porta e não fosse Rodrigo ali. Como é que
são todos aqueles contos de fadas com bruxas se
passando por outras pessoas? Pois é. E se banshees
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são reais, por que alguma coisa assim não seria?


— Estou ficando paranoica — murmuro.
Rodrigo me encara, sério, antes de assentir de
forma seca.
— Isso é bom.
Abro a boca para responder, mas não sei o que
dizer. Isso é bom? Não no meu mundo. Balanço a
cabeça.
— O que aconteceu?
Ele desvia o olhar e encara a escada. Ah, não,
desconversar agora não vai ser uma boa ideia. Se é
a minha vida que está em risco eu tenho todo o
direito de saber o que está acontecendo aqui.
Minha barriga ronca alto, me lembrando que
não comi nada desde o café da manhã, umas boas
seis horas atrás.
— Acho melhor você ir comer — Rodrigo fala.
Desconversando. Que ótimo.
— Não adianta tentar mudar de assunto... —
começo.
Ele balança a cabeça.
— Não estou mudando de assunto. Mas não sei
tudo que aconteceu. E ninguém almoçou.
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Ou seja, eles vão discutir isso na cozinha. Não


sei se é a melhor ideia, levando em conta que
vamos estar todos no primeiro andar, num cômodo
com janelas grandes e uma porta que dá para os
fundos da casa, ao invés de em alguma sala mais
fechada, com menos chances de alguém conseguir
entrar e...
Eu estou ficando paranoica demais.
Quase paro na porta, quando chegamos na
cozinha. É a primeira vez que vejo os metamorfos
conversando para valer enquanto comem. Eles
param por um instante, mas Daiane dá de ombros e
o assunto recomeça quase na mesma hora. E retiro
o que falei alguns dias atrás sobre a cozinha estar
cheia. Sério que tem esse tanto de gente no
casarão? Tem bem mais de vinte pessoas aqui.
Onde que todo mundo se esconde? A única pessoa
que não está aqui é Caio, o que provavelmente quer
dizer que ele está na mata ao redor da propriedade.
Não. Corro os olhos pelas mesas de novo.
Alexandre também não está aqui. Isso não é tão
estranho assim, já que é raro ele descer para comer
nos horários que a cozinha está cheia, mas hoje é
diferente. Todo mundo está aqui, até umas tantas

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pessoas que eu nunca vi antes, mesmo que já esteja


no casarão há quase duas semanas. Ele deveria
estar aqui também, não? Especialmente levando em
conta que todos estão discutindo o que aconteceu...
Rodrigo me empurra na direção do balcão.
Certo. Pegar comida primeiro, perguntas depois.
Minha barriga ronca de novo, concordando com
ele. Pego um prato e passo para o outro lado.
Almoço depois das três da tarde. Acho que nunca
fiz isso antes. Nem os almoços de família no
domingo. Minha avó sempre fala que horário de
almoçar é meio dia, não meio da tarde.
Procuro meu lugar de sempre na mesa, perto dos
que já se tornaram meus amigos. Vejo Lavínia na
mesma hora. Seu cabelo ainda está com umas
tantas mechas brancas, como no jantar. E tem um
lugar na sua frente, do lado de Daiane. Coloco meu
prato na mesa e me sento.
— O cabelo é por causa dos seus poderes? —
Pergunto.
Lavínia franze a testa e começa a balançar a
cabeça.
— O quê?
Suspiro. Não preciso olhar para os lados para
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saber que tem umas tantas pessoas me encarando.


Rodrigo se senta do meu lado e se vira para me
encarar. Já falei que não sou atração turística?
— As mechas brancas no cabelo — aponto. —
Elas aparecem quando você usa seus poderes ou
está se preparando para usá-los, não é? Que nem no
jantar, e agora depois de ter gritado a minha morte.
A conversa para de novo. Olho para o teto e
solto o ar pela boca de forma bem audível.
— Como... — Lavínia começa antes de olhar
para alguma coisa à minha esquerda.
Olho para o lado e vejo Paula se sentando ao
lado de Aline. Ela coloca seu prato na mesa, cruza
os braços e encara Lavínia, sorrindo.
— Fiz uma pesquisa no Google e falei com
Camila — falo, olhando para Lavínia de novo. — É
ou não é por causa dos seus poderes?
Ela sorri e balança a cabeça.
— É minha aparência verdadeira. Não consigo
manter a forma humana quando estou usando meus
poderes.
Estreito os olhos. O que foi que eu li sobre
banshees? Algo sobre elas terem cabelos cinzentos.

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Ou loiros. Ou pretos. Ou ruivos. Tá, o artigo que eu


li estava mais indeciso sobre a aparência delas do
que eu em um buffet: coloca tudo que dá mais
certo.
Assinto e começo a comer antes de minha
barriga roncar de novo. Faz sentido, de alguma
forma. E se eu estou pensando que algo aqui faz
sentido, então definitivamente já me acostumei com
a ideia de que seres mágicos são reais. Quem
diria...
— Eu falei — Paula comenta.
Lavínia resmunga alguma coisa e Rodrigo ri.
Me viro para o lado.
— Falou o quê?
Paula sorri, empurrando Rodrigo para trás para
conseguir olhar para mim.
— Que não ia demorar para você se acostumar.
Começo a sorrir de volta e me lembro que estou
com raiva de Paula. Mas... Tá, ela me usou, mas se
não tivesse feito isso eu ia estar morta agora. Eu e
toda a minha família. Não sei se algum dia vou
conseguir confiar em Paula como confiava antes,
mas não consigo continuar com raiva dela.

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No fim das contas, só dou de ombros antes de


voltar a prestar atenção no meu prato.
Estou quase terminando de comer quando
desisto de tentar entender o que aconteceu ouvindo
as conversas dos outros. Já ouvi alguma coisa sobre
os limites do território, outra sobre conflitos entre
proteções de uma bruxa e de um fey e alguma coisa
sobre limites de resistência de metamorfos. E nem
sinal de Alexandre, ainda. Não que eu tenha algum
motivo para estar procurando por ele. Mas é
estranho ele não estar aqui.
Levanto a cabeça e encaro Lavínia até ela olhar
para mim.
— Alguém vai me explicar o que aconteceu?
As conversas pela mesa param. De novo? Isso
está virando passatempo?
Lavínia suspira e coloca os talheres no prato.
— Já sabe que previ sua morte. Quase sempre,
quando vejo a morte de alguém, é algo que vai
acontecer logo, em uma questão de horas. Por isso
te levaram para o quarto. Era o mais seguro.
— Eu fiquei de guarda na porta — Rodrigo
interrompe e me viro para ele. — E Ryan protegeu
seu quarto, já que Paula não estava aqui.
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— Ryan? — Eu repito o nome do jeito que


Rodrigo falou, “Rí-ãn”.
Ele aponta para o outro lado da mesa. Me viro.
Uma das pessoas que eu nunca vi antes se inclina
para a frente e levanta a mão. E ele realmente
parece fey, ou com o que eu imaginaria se alguém
me falasse que eles existiam antes de vir parar aqui.
Tem traços delicados, quase etéreos e um tanto
andróginos, pele de um tom marrom claro e cabelo
preso em uma trança que é pouco mais escuro que
sua pele. E ele não parece ter nem dezoito anos.
— Eu tirei seu quarto deste plano enquanto eles
iam descobrir o que aconteceu — Ryan fala,
apontando na direção dos lobos.
Preciso de alguns segundos para ter certeza de
que entendi o que ele falou.
— Tirou meu quarto deste plano — repito.
Ele assente.
Certo. E o que isso quer dizer? Abro a boca para
perguntar e então penso melhor.
— Eu não quero saber.
Ryan sorri, mostrando dentes afiados. Acho que
isso quer dizer que essa é a forma verdadeira dele,

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então.
— É melhor não saber — Paula fala.
E pelo tom de voz dela, eles não me contariam
se eu perguntasse. Tenho a leve impressão de que
esse é um dos segredos do Outro Mundo – não que
eles tenham poucos segredos.
Assinto e paro, estreitando os olhos.
— Então foi por isso que eu não estava ouvindo
nenhum ruído vindo de fora do quarto.
Ryan assente, ainda sorrindo.
Certo, um mistério explicado. E eu não vou
pensar demais nessa coisa de “tirar meu quarto
deste plano”.
— E...? — Olho para Lavínia de novo.
Ela aponta para André.
— Eu ainda estava tentando recuperar o controle
depois da visão — explica.
— Jorge deu o sinal de que as proteções dele ao
redor da propriedade tinham sido derrubadas —
André conta. — Todos nós que estávamos na mata
nos aproximamos da casa, para não deixar ninguém
passar.
— Trancamos o casarão. Seria preciso um
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coven completo para quebrarem as proteções que


temos aqui — Amara completa.
— E então eles fizeram grupos de patrulha na
mata até eu chegar — Paula fala, num tom tão
controlado que chega a ser artificial. Ela está
furiosa. — Refizemos as defesas mágicas, que
alguém conseguiu quebrar pela quarta vez. Minhas
proteções, as de Lavínia, as de Jorge, as de Jorge
e...
Paula olha para Ryan, que dá de ombros.
— Sei de pelo menos mais três proteções sobre
as de vocês.
Quarta vez... E uma delas foi quando meu pai
viu o que não devia. Engulo em seco. Pensei que
tinha sido algum descuido ou, sei lá, desleixo
mesmo. Não que fossem sete tipos de proteções
feitas por seres mágicos diferentes. E todas elas
quebradas.
— Já falei para me deixarem colocar as
minhas... — Ryan comenta.
Paula balança a cabeça.
— Você é o único aqui que foi treinado no
Santuário. Não vamos te usar para defesa. Você é
uma das nossas armas de último caso, e sabe disso.
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Levanto as sobrancelhas. Ryan, que parece um


adolescente, arma de último caso? Essa coisa de
planos me pareceu ser algo mais defensivo, não
algo que pudesse ser usado como arma. E esse tal
“santuário”...
— Laura, não pergunte — Paula fala depressa e
me viro para ela. — Essa é uma das coisas que é
mais seguro se não souber nada.
Suspiro.
— E faz alguma diferença o que eu sei ou não, a
essa altura do campeonato?
Ninguém ri. Paula continua me encarando, séria.
Acho que nunca a vi tão séria assim.
— Faz.
Caramba. Entendi. Se souber demais, estou
morta. Certo. Nada de novo. Uma banshee já previu
minha morte hoje, isso não é nada.
— Tá, vocês refizeram as proteções... E Ryan
trouxe meu quarto de volta para esse plano? —
Pergunto.
Paula assente.
— Isso. Logo antes de eu reforçar as proteções
ao redor do seu quarto.
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As luzes verdes que brilharam antes de Rodrigo


me chamar e que ainda estavam brilhando quando
saí do quarto. Se seguirem o mesmo padrão que da
outra vez, vão demorar umas boas oito horas ou
mais para desaparecerem.
Respiro fundo e olho para o meu prato. Meu
apetite desapareceu.
Lavínia viu minha morte, e quase ao mesmo
tempo as proteções ao redor do terreno do casarão
foram quebradas. Não preciso ser um gênio para
entender o que aconteceu.
— Alguém está atrás de mim — murmuro.
Isso nem deveria me surpreender, depois de
como Oswaldo se transformou e estava pronto para
me matar, no jantar, mas mesmo assim...
— Não necessariamente — Lavínia interrompe
meu raciocínio. — Pode ser que você só seria uma
vítima. Alguém que estava no lugar errado na hora
errada.
E eu estar aqui agora significa que a previsão de
uma banshee pode ser evitada. Respiro fundo e
solto o ar pela boca. Não consigo deixar de pensar
que estavam atrás de mim, mas o que ela falou faz
mais sentido. Por que alguém se daria a todo esse
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trabalho para vir atrás de mim?


— Não é a primeira vez que quebram as
proteções, e das outras vezes você nem estava aqui
— Daiane fala. — Provavelmente isso não tem
nada a ver com você.
Talvez. Mas eu estou aqui agora por causa do
que aconteceu numa das outras vezes que as
proteções foram quebradas. Pode ser paranoia, mas
não consigo deixar de pensar que tudo está ligado.

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CAPÍTULO VINTE

L AURA
O QUARTO DE ALEXANDRE É NO ÚLTIMO ANDAR. OU EU
deveria dizer “seus aposentos”? Porque tenho a
impressão de que só ele vem aqui. O corredor onde
estou está limpo, mas mesmo assim não consigo
deixar de ter uma impressão de abandono. Respiro
fundo antes de soltar o corrimão da escadaria e
continuar na direção da porta da sala onde Amara
disse que Alexandre estaria.
Ainda não tenho certeza de que vir aqui é uma
boa ideia. Mentira. Eu tenho certeza de que não é
uma boa ideia. Mas não tenho outra opção. Minha
única chance de escapar é me aproximar de
Alexandre e convencê-lo a me deixar ir. E, depois
daquele jantar, depois de Lavínia prever minha
morte, eu sei que preciso sair daqui. O que foi que

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falaram na cozinha? Que talvez eu nem fosse o


alvo, mas só uma vítima acidental? Uma humana
vivendo entre seres mágicos, não seria difícil de
algo assim acontecer.
Respiro fundo de novo. Me aproximar de
Alexandre. Certo.
Se bem que, depois daquela conversa no jardim
e do tempo que passamos sentados ali, em silêncio
e mesmo assim confortáveis, isso não parece tão
impossível. Acho que acabei me acostumando com
a presença de Alexandre, de alguma forma.
Bato na porta.
— Está aberta — Alexandre responde.
Abro a porta e paro. A sala do outro lado não é
muito grande – menor que meu quarto – e a
primeira coisa que noto é a janela enorme na parede
na minha frente. Na verdade, a janela é quase a
parede toda. E tem um pôster de um jogo de
computador na parede ao lado dela. Ou melhor,
vários pôsteres. Levanto as sobrancelhas. Não
pensei que Alexandre fosse ser do tipo fã louco de
jogos a ponto de ter as paredes cobertas de
pôsteres.
— Laura? — Ele chama.
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Balanço a cabeça e paro de encarar os pôsteres.


Alexandre está parado na frente da janela, meio de
lado, como se estivesse olhando para fora e não
quisesse se virar completamente na direção da
porta.
— Posso falar com você? — Pergunto.
Ele gesticula na direção da janela. Entendo isso
como um “sim” e fecho a porta atrás de mim, antes
de contornar a mesa com um computador de última
geração e ir até onde ele está.
Eu não tinha reparado antes, mas o último andar
do casarão é menor e só ocupa esse espaço da
frente da casa. Da janela, eu consigo ver a abertura
do teto do jardim interno e as telhas vermelhas que
são o telhado do terceiro andar. Dá para ver um
pouco dos jardins, um pedaço do gramado e então a
mata.
Alexandre suspira.
— Você não veio aqui só para ver como é a
vista da minha janela.
Me viro para ele, estreitando os olhos. Foi
impressão minha ou ele está se divertindo com a
minha distração?
E qual era a desculpa que eu tinha arrumado
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para vir aqui mesmo?


— Queria saber se tem problema fazer compras
online e mandar entregarem aqui. Não sei se tem
algum problema em usar o cartão e...
Alexandre se vira para a mesa, pega um pedaço
de papel, uma caneta, e começa a escrever.
— Sem correr riscos. Se vai fazer compras
online, é melhor não usar o seu cartão. Não quero
nenhum sinal de que está aqui. Sabe o endereço?
Sei que aqui ainda é considerado Monte das
Pedras, só.
— Não.
Ele escreve mais alguma coisa no papel antes de
se endireitar e esticar a folha para mim. Tem os
dados de um cartão de Alexandre e o endereço
completo do casarão.
— Compre o que quiser. Se fizer questão, pode
acertar comigo quando for embora — ele fala.
“Quando”, não “se”. Um dia eu vou embora.
Mas não vou ficar parada esperando alguém decidir
que já é hora de me deixar ir.
Encaro o papel na minha mão e penso no que
ele falou.
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— Que tipo de pessoa entrega um número de


cartão de crédito e fala “compre o que quiser” sem
dar nenhum tipo de limite de valor? — Pergunto.
Não que eu esteja planejando abusar do cartão.
E faço questão de pagar cada centavo depois, só
para não dar motivos para nenhum deles se lembrar
que eu existo.
Alexandre sorri, se virando para me encarar
enquanto para na frente da janela de novo.
— Você não compra mais do que precisa. Está
acostumada demais a controlar suas despesas para
começar a gastar com coisas que não sejam
realmente necessárias.
Estreito os olhos. Eu estou há menos de duas
semanas aqui e ele acha que já me conhece tão
bem? Não que ele esteja errado, mas...
— E se eu disser que a primeira coisa na minha
lista de compras são alguns pôsteres?
Ele levanta as sobrancelhas, ainda sorrindo.
— Eu vou deduzir que são os pôsteres das suas
ilustrações, que você finalmente colocou online, e
avisar que provavelmente consegue vender mais
uns tantos aqui. Os outros desceram para a cozinha
hoje, não é? Tenho certeza que vão gostar de
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algumas das suas artes.


Encaro Alexandre, de boca aberta, sem
conseguir responder. Seu sorriso se alarga e ele
volta a olhar pela janela, mas não consigo desviar o
olhar do seu perfil. Ele realmente deu a entender
que pôsteres das minhas ilustrações seriam algo
necessário? Engulo em seco. Posso ter me
acostumado com o fato de que ninguém aqui é
humano, mas não consigo me acostumar com como
eles veem as coisas de um jeito tão diferente da
minha família e de quase todo mundo em Monte
das Pedras. A única vez que preguei um pôster no
meu quarto, minha mãe me deu um esporro épico,
porque eu estava estragando a parede com coisas de
criança e já tinha idade o suficiente para não fazer
essas coisas. Não que isso fosse uma surpresa,
levando em conta como todos pensavam que meus
desenhos eram um passatempo, no máximo, e que
ouvi vários comentários sobre como já estava velha
demais para continuar mexendo com qualquer coisa
envolvendo fantasia. Aqui... Ninguém se incomoda.
Na verdade, eles entendem.
Respiro fundo e me forço a olhar pela janela.
Não vai demorar muito para o sol se pôr, mas ainda
está claro. Consigo ver a mata se estendendo para
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todos os lados, muito maior do que eu pensei que


fosse. E em algum lugar do outro lado dela, está o
tal condomínio fechado que estão construindo.
— Ali. — Alexandre aponta para a direita.
Me viro, tentando ver, mas é só mais mata.
— Não estou vendo nada.
Ele suspira.
— Acho que está longe demais para você.
Provavelmente. E eu deveria estar indo embora,
não estar parada aqui, ao lado de Alexandre,
olhando pela janela. Ou melhor, deveria. É
exatamente isso que eu deveria estar fazendo. E não
vou nem fingir que estou achando ruim. É calmo
perto de Alexandre. Quase como se eu estivesse no
olho da tempestade, aquele ponto tranquilo e
seguro no meio de um temporal.
— Eu queria entender o que estão tentando fazer
— Alexandre murmura, ainda olhando na direção
que apontou. — Por que derrubar nossas defesas
assim e não fazer nada, como estão fazendo isso...
— Isso te incomoda. — Nossa, jura, Laura? Não
tinha nada mais óbvio para falar?
Ele se vira para mim, sério.
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— As pessoas que estão aqui, vieram para cá


porque confiam em mim. Somos um bando de
desajustados, que não nos adaptamos em nenhum
outro grupo. E eles abandonaram o que tinham para
vir para cá comigo, confiando que eu conseguiria
nos manter a salvo. Então sim, isso me incomoda.
Me incomoda demais.
Assinto, sem saber como responder. Isso é algo
que eu já notei sobre Alexandre. Até mesmo as
pessoas aqui têm medo dele. Camila comentou
sobre o Conselho fugindo dele como se não fosse
nada inesperado. Posso não ter a menor ideia do
que ele é – e ainda acho que ele ser um dragão é
uma boa possibilidade – mas sei que não vi nada
do que ele pode fazer. Ele é forte o bastante para
uma banshee não ter coragem de desafiá-lo. Mas
não tinha entendido a questão da proteção, de como
ele se sente responsável por todos aqui.
Dou um passo à frente, parando tão perto que
consigo sentir o calor do seu corpo, e levanto a
mão. Não sei o que deu em mim, mas é a única
coisa que consigo pensar em fazer.
Alexandre segura meu pulso. Minha mão está
quase no seu rosto, mas sei que não adianta tentar

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me soltar. Levanto as sobrancelhas, sem entender,


enquanto ele me encara. Seu olhar é quase tão
intenso quanto naquela conversa depois do jantar,
mas ainda consigo perceber sua preocupação. Na
verdade, acho que é mais que isso. Esse assunto do
que estão tentando fazer não está só incomodando.
Ele é a única coisa na sua mente. Conheço essa
sensação.
E não entendo porque tenho tanta vontade de
poder ajudar, de alguma forma.
— E você? Como está? — Ele pergunta.
Balanço a cabeça, soltando o ar de uma vez.
— Não sei. Às vezes acho que eu não estar
surtando é a maior prova de que estou louca.
Alexandre sorri, mesmo que eu ainda esteja
vendo aquela preocupação nos seus olhos.
— Ah, você não tem como evitar. Somos todos
loucos aqui.
Rio alto. Pode até ser que ele não tenha falado
isso querendo fazer uma referência, mas esta é uma
das minhas falas favoritas do gato Chesire, em
Alice no País das Maravilhas. Ou melhor, todas as
falas dele são as minhas favoritas.

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Acho que isso quer dizer que sou louca, sim.


— Na verdade, não é bem isso — Alexandre
continua e solta meu pulso.
Fico sem reação por um instante e então coloco
a mão no seu rosto. Sua pele está um pouco áspera
onde sua barba começou a crescer. Não sei por que,
mas pensei que Alexandre não tinha barba, ele
sempre está com o rosto liso. Mas acho que agora
entendi o motivo: as cicatrizes. Acompanho a linha
de uma delas com a ponta dos dedos e ele fecha os
olhos, respirando fundo.
O que eu estou fazendo?
Foco. Preciso falar alguma coisa... O que foi que
Alexandre falou mesmo? Que não era bem eu ser
louca?
— Não? — Pergunto.
— Não — ele repete, abrindo os olhos. — É o
que Paula sempre falou, desde a primeira vez que
perguntei sobre você: que você é mais forte do que
parece. E ela estava certa.
E eu não tenho a menor ideia de como responder
isso. Ele perguntou sobre mim? Antes de eu vir
para cá?

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Alexandre coloca uma mão no meu ombro e me


puxa mais para perto. Nossos corpos estão quase se
tocando, e não consigo nem pensar em recuar.
Alguém bate na porta. Alexandre respira fundo
e não fala nada, o tempo todo sem desviar o olhar
de mim.
— Ligação para você — Jorge avisa, do outro
lado. — É Lílian.
Ele suspira e se afasta. Por que é que esse nome
me é familiar?
— Preciso atender — Alexandre fala, passando
a mão no meu rosto antes de dar mais um passo
atrás.
A vidente. Tenho quase certeza que é esse o
nome da bruxa que falou com Paula sobre quando o
Outro Mundo vai parar de se esconder. A que fez o
Conselho se calar só porque mencionaram seu
nome. É claro que ele precisa atender,
especialmente levando em conta tudo o que
aconteceu.
E eu não sei se acho bom ou ruim terem nos
interrompido.

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···
A LEXANDRE
DEPOIS DE TUDO – DO JANTAR, DOS PROBLEMAS HOJE –
eu nunca teria imaginado que Laura viria atrás de
mim, ainda mais sem nenhum motivo aparente. Ela
não é uma má mentirosa, mas vai ter que melhorar
se quiser me enganar. Aquela pergunta sobre poder
fazer compras online foi uma desculpa, e das
fracas.
Jorge me encara, ainda parado na porta, que
Laura deixou aberta quando saiu.
— Vou atender daqui — falo.
Ele continua me encarando por mais alguns
instantes antes de assentir e puxar a porta. Suspiro.
Em menos de dez minutos o casarão inteiro vai
saber que a ligação de Lílian veio na hora perfeita
para interromper alguma coisa, mesmo que
ninguém tenha certeza de o que estava acontecendo
aqui.
E, se depender de mim, ninguém vai saber.
Nunca me importei com as fofocas do casarão – são
só a forma de todos aqui cuidarem uns dos outros.
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Mas isso com Laura, o que quer que isso fosse, eu


quero guardar para mim enquanto puder. Ou, no
mínimo, até ter certeza do que está acontecendo.
Me sento e puxo o telefone. Escuto um clique
assim que o coloco no ouvido, o que quer dizer que
alguém desligou a extensão. Ótimo.
— Lílian — falo, como cumprimento.
— Já faz muito tempo, Alexandre.
Não respondo. Já fazem seis anos desde a última
vez que nos vimos e mais tempo ainda desde a
última vez que nos falamos. Mesmo que eu só
esteja vivo hoje em grande parte por causa de
Lílian – ela falou a meu favor nas reuniões do
Conselho que decidiram sobre a minha ordem de
execução – não confio nela. E, na verdade, não sei
se existe alguém que realmente consiga confiar em
uma vidente, ainda mais uma que sempre fez
questão de ser parte do Conselho e de qualquer
decisão que afete o Outro Mundo.
Ela suspira e consigo imaginar sua expressão
irritada.
— Existe uma ameaça. Não consigo ver
detalhes, mas tem algo de perigoso aí.
E é óbvio que Lílian Delaro não ligaria para dar
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boas notícias. Não que eu precise de uma


confirmação de que temos alguma ameaça aqui,
depois do que aconteceu mais cedo. Consigo pensar
em pelo menos quatro possibilidades sem nem
fazer esforço.
— Que tipo de ameaça?
— Se soubesse, falaria. Existem possibilidades
demais ao redor do casarão nos últimos tempos.
Solto o ar com força. Ela realmente não
precisava ter ligado se fosse dizer só isso. Não é
nada que não sabemos.
— Isso não está ajudando.
Lílian resmunga algo que não entendo. Sorrio.
Consegui fazer Lílian Delaro resmungar. Isso é
uma raridade. Ela é controlada demais para esse
tipo de coisa, normalmente.
— Eu não sei o que está acontecendo aí, mas
vai ter repercussões para todo o Outro Mundo —
Lílian fala. — Ou melhor, pode ter repercussão...
O que quer que esteja acontecendo, é caótico
demais para eu entender o que precisa acontecer, o
que está acontecendo e o que são só planos e
possibilidades que não foram colocados em
prática. O que eu posso dizer é que agora, nesse
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instante, você tem uma ameaça por perto.


Respiro fundo. Pela forma como ela está
falando, só consigo pensar em uma coisa: a pessoa
que Caio capturou.
Hora de resolver isso, então.
— Obrigado.
Lílian desliga sem responder. Típico.
Um instante depois, já estou descendo as
escadas e saindo do casarão. Existe um motivo
simples para não conseguir confiar em Lílian. Ela
vê as possibilidades do futuro, e manipula o
presente para conseguir o resultado que quer. Em
teoria, isso é algo bom, mas na prática... Quem
garante que ela está fazendo o que realmente é
melhor para todos nós, e não só o que é melhor
para ela? É como se todos nós fôssemos peças em
um jogo que só ela consegue jogar.
Amara me encara quando atravesso a cozinha.
Então Jorge já contou que Laura estava no meu
escritório. Suspiro e saio do casarão, indo na
direção da mata. Se bem que eu já devia ter me
conformado com as fofocas a partir do momento
em que chamei Laura para conversar no jardim.
Não que ninguém vá dizer nada na minha frente,
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mas... Suspiro. Não é nada demais. É só


curiosidade. Ela é uma humana que de alguma
forma se adaptou entre nós e que tem algo que me
acalma, desde antes, quando ainda estava com
medo. Só quero entender o que é isso, por que ela é
diferente. Mais nada.
Um gavião grita. Olho para cima e balanço a
cabeça. Eles não precisam levar nenhum recado
para os grupos que estão espalhados pela
propriedade e, depois do aviso de Lílian, prefiro ter
Rodrigo e Aline no ar.
Paro na entrada da mata e olho para os lados.
Tudo parece normal, e espero que realmente esteja
normal. A maior parte do meu pessoal está
espalhada pela mata, procurando sinais de outras
armadilhas ou qualquer coisa que possa ter se
aproveitado das horas em que ficamos sem
proteção. Rodrigo e Aline estão no ar justamente
por isso: se alguém disparar alguma armadilha, eles
conseguem avisar Bárbara a tempo. Mas a questão
é que temos pessoal entre as árvores, então Caio
precisa conter seu poder, ou ninguém vai conseguir
fazer nada.
Um dos gaviões grita de novo, voando na

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direção da estrada antes de voltar. Assinto, mesmo


sem ter certeza de que vão conseguir ver meu
movimento, e começo a ir para lá. Tenho quase
certeza de que sei onde Caio está, então: uma das
áreas de mata mais fechada que fica a alguns
metros da entrada da propriedade.
Não me surpreendo quando escuto o barulho de
passos. A pessoa que Caio prendeu obviamente
ainda está ali, e correndo. Pela respiração ofegante
que consigo ouvir, já está correndo faz um bom
tempo. Respiro fundo. E com muito medo. Vou na
direção da parte mais fechada da mata, olhando
para cima.
Caio está agachado em um galho. Suspiro
quando ele aponta para outro galho, na árvore ao
lado, e pulo para lá. Um instante depois um homem
– um elfo – passa debaixo de onde estamos, sem
nem olhar para os lados. Me viro para Caio e
levanto uma sobrancelha. Ele dá de ombros.
— Ele não quis me contar nada, então disse que
podia tentar escapar. Se saísse da mata, eu deixaria
ele vivo.
Ele aponta para a direção de onde vim e
gesticula para eu esperar. Não demora para o elfo
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passar correndo debaixo de nós de novo. Caio não


precisa fazer mais nada, ele vai correr em círculos
até não conseguir mais. Em algum momento seu
corpo vai falhar, seja por cansaço, fome ou sede, e
então Caio teria mais uma conversa com ele. Ou,
pelo menos, é o que aconteceria se eu estivesse
disposto a correr esse risco.
— Nenhuma informação? — Pergunto.
Ele balança a cabeça.
Olho para baixo quando o elfo passa de novo. O
simples fato de ele estar ali já é uma informação.
Um elfo não tem o tipo de poder necessário para
fazer uma contenção como a que Bárbara absorveu,
muito menos para invocar e atacar demônios, como
Paula detectou da outra vez.
— Termine isso, então — falo.
— Agora?
Assinto, pulando do galho e indo na direção do
casarão. Caio sabe o que fazer e como se livrar do
corpo. Hora de falar com Ryan, então. Ele conhece
os jogos políticos dos fey melhor que qualquer um
no casarão e tenho a impressão de que também
conhece bem Avés, o príncipe sidhe que faz parte
do Conselho. Vou precisar da opinião dele sobre o
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que quero fazer.

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CAPÍTULO VINTE E UM

L AURA
JÁ ESTOU TRABALHANDO QUANDO O DIA AMANHECE.
Abri a segunda ilustração de Caio e a de Alexandre
no Photoshop, intercalando entre as duas. Passei
algum tempo nos sites de ilustrações e trabalhos
freelance, mas não faço ideia de como atrair
clientes. Acho que é hora de mandar mensagem
para Camila de novo. Mas, primeiro, quero
terminar essa ilustração e colocá-la no meu
portfólio.
E isso me lembra que preciso enviar o link do
site que faz os pôsteres para Caio. Quando levantei,
dei de cara com um bilhete enfiado debaixo da
porta me lembrando disso e com o email dele
anotado. É óbvio que eu já tinha esquecido que ele
me falou que podia colocar a ilustração online.

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Com toda a confusão de Lavínia gritando minha


morte e as horas trancadas no quarto sem saber o
que estava acontecendo...
E eu realmente espero que ela esteja certa e o
que quer que viu tenha sido sobre como derrubaram
as defesas, não sobre alguma coisa que ainda vai
acontecer. Nem vou ficar pensando nisso.
Abro meu email e finjo que não estou vendo as
mais de cinquenta mensagens não lidas. A maioria
não é nada importante e aposto que vai ter algumas
propagandas de alongamento peniano no meio. Juro
que não entendo de onde essas mensagens brotam.
Garanto que não cadastrei em nada que daria
motivo para me mandarem algo assim.
Copio o link do pôster da ilustração e mando
para Caio, cantarolando Livin la Vida Loca. Estou
adorando essa playlist nova. Espero que Rodrigo e
os outros também estejam gostando. Ainda encaro
o monitor por alguns segundos, pensando
seriamente em começar a encomendar minha
coleção de pôsteres – nada mais justo que eu ter a
versão impressa das minhas artes, não é? Mas não,
vou terminar essa aqui primeiro, colocar online, e
aí mando imprimir tudo de uma vez. Pagar um frete

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só.
Volto para o Photoshop e encaro a ilustração de
Alexandre. A ilustração das roseiras. Não de
Alexandre. Ele apareceu ali de intrometido. Não
quero pensar no que quase aconteceu ontem. Sei
que foi minha ideia ir atrás dele, mas não esperava
aquilo. Não tenho certeza do que aconteceu naquela
sala ou do que deu em mim para me aproximar
daquele jeito. Só sei que não consigo me
arrepender. E que nem estava pensando em sair do
casarão quando fiz aquilo.
Droga.
Me recuso a mexer nessa ilustração hoje. Eu não
tinha nem que ter começado isso.
Fecho o arquivo e volto a encarar a ilustração de
Caio. Só estou trabalhando os últimos detalhes
agora. Acho que consigo terminar hoje, e aí dou um
ou dois dias de “descanso” antes de voltar e ver se
preciso arrumar mais alguma coisa.
Eu realmente estou vivendo uma vida louca.
Mas não é nenhuma mulher me deixando doida. É
um homem que eu não sei o que é e que não
deveria me afetar desse jeito.
E realmente espero que ninguém esteja
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pensando que tem um motivo para eu ter colocado


essas músicas. Só agora que prestei atenção nas
letras. Só foram as primeiras que eu achei em
versão metal...
A música acaba e escuto alguém batendo na
porta. Espero que não seja ninguém me mandando
abaixar o volume. Penso em pausar a playlist, mas
não. Não esqueci de todas as piadinhas que
fizeram. Me levanto e vou abrir a porta enquanto
começa a tocar Wannabe. Droga. Eu devia ter
prestado atenção nas letras das músicas antes.
Quase dou um passo atrás quando abro a porta e
dou de cara com Alexandre. O que ele está fazendo
aqui?
— Bom dia.
O que ele está fazendo aqui me dando bom dia
como se isso fosse a coisa mais normal do mundo?
— Bom dia — respondo, mudando o peso de
uma perna para a outra.
Definitivamente ir atrás dele ontem foi uma má
ideia.
— Queria conversar. — Alexandre dá de
ombros, olhando para qualquer lugar menos
diretamente para mim. Ótimo, não sou a única que
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não sabe o que fazer depois de ontem. — Posso


entrar?
Solto a maçaneta e me afasto da porta. Ele entra
e a fecha atrás de si, enquanto volto para a minha
cadeira. Não consigo deixar de me lembrar da outra
vez que ele veio aqui. Nem parece que faz pouco
mais de uma semana. Paro na frente do notebook,
enquanto ele já está puxando a outra cadeira.
O que ele quer conversar?
— Não vou abaixar o volume, se for isso que
veio falar — falo a primeira coisa que vem na
minha cabeça para quebrar o silêncio.
Alexandre ri em voz baixa, inclinando a cabeça
antes de me encarar. Não faço ideia do que essa
expressão dele significa, mas sei que um arrepio me
atravessa. E isso não é ruim.
— Não tenho o menor problema com as suas
músicas. Na verdade, estou achando isso bem
divertido. — Ele dá de ombros. — Por mim,
continue arrumando versões. E pode até aumentar o
volume.
Definitivamente esta não é a resposta que eu
esperava. Sorrio e me sento.
— Se alguém reclamar do volume, vou falar que
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você autorizou.
Ele sorri.
— Pode falar. Ninguém vai duvidar.
Sério? Alexandre, o cara que só observa todos
os outros, me dando autorização para aumentar o
volume na minha playlist zoada antes das oito da
manhã? E ninguém vai duvidar? Ou estão
acostumados a não duvidar de nada vindo dele, ou
o pessoal conhece um lado dele que não vi nem
sinal nesses dias que estou aqui.
Dou de ombros, sem saber como continuar o
assunto. Na verdade, puxar assunto nunca foi meu
forte. Nem mesmo depois de alguns drinks, quando
estava em BH.
— Posso ver o que está fazendo? — Alexandre
pergunta.
Abro a boca para falar que não, porque a
ilustração ainda não está pronta, e paro. Alexandre
foi a primeira pessoa desconhecida a elogiar meu
trabalho, quando eu ainda queria manter o máximo
de distância dele possível e nunca tinha falado nada
com ele além de avisar que Paula já estava vindo
ou que não estava na loja. O primeiro elogio de
alguém de fora, que não tinha motivo nenhum para
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falar que minhas ilustrações estavam boas só para


eu não ficar chateada. Acho que não tenho nenhum
motivo para não mostrar o que estou fazendo,
mesmo que seja uma arte em andamento.
Viro o notebook para ele. Alexandre se inclina
mais para perto da tela antes de resmungar alguma
coisa e puxar sua cadeira mais para perto dele e de
mim. Não sei se fico lisonjeada ou ofendida por ele
se concentrar totalmente na ilustração, como se não
tivesse acabado de arrastar sua cadeira até estar
praticamente do meu lado.
Como da outra vez, ele encara a imagem, dá
zoom, presta atenção nos detalhes. A impressão que
eu tenho é que Alexandre tem ao menos uma noção
do assunto, mas não consigo pensar num motivo
para isso.
— Você está usando o que viu no jantar, não é?
— Ele pergunta. — Sem fotos de referência?
— Isso.
Ele resmunga mais alguma coisa e continua
encarando a tela. Vejo quando move o cursor de
um lado para o outro, resmungando mais um
pouco. Acho que ele está acostumado a usar mouse.
Nada contra, mas depois de cinco anos usando
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notebook e fazendo pintura digital com o touchpad,


nem sei mais onde enfiei o mouse do notebook.
— Você realmente tem uma técnica boa e olho
bom. Essa aqui está excelente, e isso antes de você
terminar.
Tenho certeza que estou vermelha feito um
pimentão agora. É a segunda vez que ele fala algo
assim sobre minhas ilustrações e eu realmente não
sei como responder.
— Obrigada — murmuro.
— Era isto que eu queria saber... — Ele levanta
a cabeça e olha para mim. — Você está tentando
conseguir trabalhos como freelancer?
Assinto.
— Só não sei como conseguir clientes. — Dou
de ombros.
— Posso te indicar para alguns contatos.
Balanço a cabeça devagar, sem ter certeza do
que ouvi. Uma indicação seria a melhor coisa
possível agora, mas...
— Que tipo de contatos?
Alexandre sorri e empurra o notebook de volta
na minha direção.
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— Como você acha que eu e o pessoal aqui


ganhamos dinheiro?
Boa pergunta.
— Algum dos fey é um leprechaun e faz potes
de ouro aparecerem? Porque quando perguntei o
que faziam, todo mundo desconversou.
Ele estreita os olhos.
— Se for a conversa que estou pensando, você
desviou o assunto para discutir sobre a diferença
entre uma matilha e o nosso bando.
Tá. Ele pode estar certo.
E como é que ele sabe disso? Posso não me
lembrar dos detalhes dessa conversa, mas sei que
Alexandre não estava lá.
— Boa parte de nós trabalha com jogos digitais
em geral. Estou na área de programação, não de
arte, mas conheço muita gente.
Agora os pôsteres e as camisas de jogos fazem
todo o sentido. Admito que nunca ia ter imaginado
isso. Nunca fui muito de games – provavelmente
porque nunca tive onde jogar – mas sei lá, não
achei que fosse encontrar com alguém que
trabalhasse com isso aqui nesse fim de mundo.

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— Trabalham online? Óbvio — completo no


mesmo instante e paro para pensar no que ele
ofereceu. Ser indicada para o pessoal no meio de
games? Meu sonho. Sempre usei essa estética como
referência. Mas tenho noção do que consigo fazer.
— Não tenho nível para trabalhar com jogos.
— Nem jogos digitais nem card games, ainda —
ele concorda. — Mas isso é uma questão de tempo,
pelo que vi. Ilustradores em geral conhecem outros
ilustradores e repassam indicações. Você pode não
estar pronta para o mercado de jogos, mas tem
nível mais que o suficiente para outros mercados.
E eu ainda acho estranho ouvir alguém falar
sobre ilustrações e arte como trabalhos reais, não só
como um passatempo. De certa forma, ter vindo
parar aqui foi a melhor coisa que poderia me
acontecer.
— Então aceito. Com certeza aceito. Obrigada.
Alexandre balança a cabeça.
— Não agradeça. É o mínimo que posso fazer.
Ele não completa a frase, mas eu quase consigo
ouvir o restante: depois de me forçar a abandonar
tudo e vir para cá. Não consigo nem sentir raiva
disto mais. Já entendi que era a melhor opção que
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ele tinha – a única que não envolvia um banho de


sangue. Nem vou negar que gosto de estar aqui.
Dou de ombros e encaro o notebook. O curupira
no galho de uma árvore me encara de volta. Se
Alexandre continua aqui, sentado perto demais de
mim, depois de já ter falado o que queria, acho que
posso tentar matar minha curiosidade, não posso?
Me viro para ele.
— Posso fazer uma pergunta?
Ele ri e eu faço uma careta. É, já entreguei que é
uma pergunta indiscreta.
— Pergunte.
Se ele nem falou nada no sentido de “pode
perguntar, mas não garanto que vou responder”,
acho que é um bom sinal.
— O que você é?
Seu sorriso fica ainda mais largo e minha
vontade é arrastar minha cadeira para mais perto
dele. Esse é um lado de Alexandre que eu
realmente não tinha visto antes: tranquilo, quase
divertido. Nunca teria esperado isso.
— Minha mãe era uma metamorfa.
Sem respostas diretas. Não que isso seja um
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problema.
— Loba?
Ele levanta as sobrancelhas. Dou de ombros e
espero.
— Loba — ele fala, depois de alguns segundos
me encarando. — A mãe da sua amiga Camila era
amiga dela, aliás.
— Isso ela não me contou — resmungo e
Alexandre ri.
E isso quer dizer que eu estava certa quando
pensei que ele tinha tudo para ser um lobo. Mas...
Não faz sentido. Se ele fosse só um lobo não seria
tão mais forte que todos os outros. Mesmo que
fosse o alfa dos alfas, isso não seria o suficiente
para fazer membros do Conselho saírem correndo
assim que ele mandou eles irem embora.
— E seu pai? — Pergunto.
— Meu pai cresceu em uma cidadezinha não
muito diferente dessa.
Estreito os olhos. Existem formas mais discretas
de tentar fugir do assunto. Ele sustenta meu olhar.
Certo, entendi, ele não vai falar.
— Não vou te contar tudo o que quer saber de
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uma vez — ele fala, ainda sorrindo, mas tem uma


tensão nos seus braços que não estava ali antes. —
Se fizer isso, qual vai ser a graça depois?
O que quer que seja que faz Alexandre ser tão
mais forte que os outros vem do lado do seu pai.
Vou continuar com a minha teoria de dragão, então.
Um metamorfo meio lobo meio dragão?
Definitivamente o suficiente para fazer o Conselho
fugir.
E se ele está fazendo tanta questão de fingir que
o assunto não é nada demais, não vou insistir.
Ninguém evita um assunto assim à toa. Não que
isso vá me fazer esquecer disso.
— Tenho certeza de que consigo arrumar
alguma “graça” depois. Nem que seja achar uma
playlist que te incomode também — respondo.
Alexandre sorri e vejo quando a tensão
desaparece. Ótimo.
— Boa sorte com isso.
Levanto as sobrancelhas. Adoro desafios. Ele ri
em voz baixa e se levanta, colocando a cadeira de
volta no lugar. O acompanho com o olhar,
pensando se tenho alguma desculpa para fazer ele
continuar aqui. Droga, não tenho.
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— Procure alguma versão de Poker Face.


Rodrigo odeia essa música — ele fala, antes de
abrir a porta.
Balanço a cabeça, sorrindo, mas já estou abrindo
o YouTube e digitando o nome na busca.
Paro antes de dar o play no primeiro resultado.
Eu estou gostando da companhia de Alexandre.
Isso não estava nos planos. Definitivamente, não
estava nos planos.
Por que é que nada na minha vida pode ser
simples? Ah, claro, estou querendo simplicidade
sendo que estou morando numa casa cheia de seres
mágicos. Por que é que ainda tenho alguma ilusão?
Droga. Uma coisa é a atração quase magnética
que senti ontem, quando fui atrás dele. Isso é
simples. Extremamente simples. Agora, estar
confortável com ele, me sentindo bem com
Alexandre por perto, rindo junto com ele... Isto é
bem mais complicado. Bem. Mais.

···
NÃO ESTOU AQUI HÁ DUAS SEMANAS E MEU SHORT
favorito já está apertado. Paro na frente do guarda-
roupa e olho para baixo. Ele estava largo antes de
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eu vir para cá. Não é difícil descobrir o motivo


disso: a comida de Amara, mais essa minha rotina
de passar o dia todo sentada. Na verdade, essa
sempre foi minha rotina normal, eu só não comia
tanto assim. E não vou voltar a comer pouco. Não
tem como fazer isso, levando em conta como
Amara cozinha bem. Se é que ela cozinha. Ainda
tenho minhas suspeitas de que ela tem algum tipo
de poder que faz a comida se materializar.
Mas o fato é: se eu continuar assim, daqui a
pouco roupa nenhuma serve em mim. Antes de vir
para cá, eu pelo menos andava um pouco pela
cidade, e meu normal é andar bem depressa. Agora,
estou completamente parada. Droga. Vou ser
obrigada a começar a fazer alguma coisa... Se bem
que isso não é tão má ideia assim, já que estou
numa casa cheia de seres mágicos. Vai ser bom se
eu ao menos conseguir correr um pouco. Sabe-se lá
quando isso pode ser necessário...
Por exemplo, se Lavínia gritar minha morte de
novo e alguém entrar no casarão.
Balanço a cabeça e pego uma blusa. Não vou
ficar pensando nisso. Ela previu minha morte, mas
não deu em nada. O que quer que planejaram fazer

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quando derrubaram as proteções ao redor a


propriedade, não deu certo. Posso relaxar. Ou, pelo
menos, fingir que relaxei, já que ficar pensando
nisso não vai adiantar absolutamente nada.
A cozinha está vazia quando entro e até me viro
para o relógio pregado na parede, acima da porta,
para conferir se não estou ficando louca. Uma e dez
da tarde. A essa hora deveria ter mais gente aqui.
Quando desci para o café da manhã, tudo estava
normal. O que aconteceu nesse meio tempo?
Pelo menos Amara está na área da cozinha.
Passo para o outro lado do balcão, pegando um
prato no caminho e levanto as sobrancelhas quando
vejo ela colocando uma forma de vidro na
geladeira. Hmm, torta. Não é à toa que minhas
roupas estão ficando apertadas.
— Cadê todo mundo? — Pergunto quando ela
se vira.
— Conferindo a propriedade.
Minha expressão deve ter deixado claro que não
entendi, porque Amara ri.
— Todo o pessoal do casarão está vasculhando
a propriedade atrás de armadilhas ou qualquer sinal
de um intruso desde a noite. A maioria dos grupos
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está fora desde cedo e quase ninguém vai almoçar


aqui hoje.
Isso quer dizer que provavelmente nenhum
metamorfo estava no casarão quando Alexandre foi
falar comigo. De novo.
E por que é que isso é a primeira coisa na minha
mente? Eu deveria estar me preocupando com a
possibilidade de alguém ter conseguido entrar ou
terem plantado algum tipo de armadilha... Vai
saber. Mas deveria estar pensando em qualquer
coisa desse tipo antes de pensar em Alexandre indo
conversar comigo sem querer ser ouvido.
Droga.
Começo a me servir depressa. É melhor me
concentrar na comida do que ficar pensando nisso,
porque eu não quero saber onde meus pensamentos
vão parar. Não quero mesmo.
Já coloquei meu prato na mesa e estou voltando
para pegar um copo e uma jarra de suco quando
Amara para e me encara, sem falar nada. Levanto
as sobrancelhas e ela sorri, balançando a cabeça.
— Só estava pensando em como você não
parece ser nada demais... Uma humana como
qualquer outra. E mesmo assim, está fazendo bem
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para essa casa.


— Hein?
Tá, eu sou uma humana como qualquer outra –
obrigada por me lembrar, aliás. Agora, fazendo
bem aqui? Não sei de nada disso.
Amara assente.
— Eu nunca vi essa casa tão tranquila depois de
algum incidente, por assim dizer. Todas as outras
vezes que tivemos algum problema, por menor que
fosse, todos ficaram com os nervos à flor da pele.
Não que não estejam assim... Mas não estão
começando brigas porque alguém respirou alto
demais perto de alguém que pediu silêncio.
E o que isso tem a ver comigo?
Dou de ombros.
— Coisa de época, não é não? Porque não acho
que isso tenha alguma coisa a ver comigo —
comento. — Na verdade, é mais fácil ser o
contrário. Olha só os problemas depois que eu vim
para cá...
Ela balança a cabeça de novo, cruzando os
braços.
— Problemas, nós sempre temos. É o que
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acontece quando se reúne um grupo de predadores


de raças diferentes e os coloca juntos. E problemas
com o Conselho também não são nada de novo para
nenhum de nós. Mas o bando está mais tranquilo
desde que você chegou. Ryan conversou com
você...
Levanto as sobrancelhas. O que tem de mais em
alguém conversar comigo?
E é melhor eu fechar a geladeira, senão daqui a
pouco estou tremendo de frio e alguém vai vir
reclamar da conta de luz. Tiro uma jarra de suco, a
coloco no balcão atrás de mim e me viro de volta
para Amara, que está sorrindo.
— Você conheceu uns tantos de nós, mas não
todos que moram aqui. Os mais velhos entre os fey
não gostam de se misturar com os mais jovens e
menos ainda com os humanos. Ryan é um dos mais
velhos aqui...
— O mais velho aqui.
Me viro de uma vez. Ryan está parado do outro
lado do balcão, sorrindo como uma criança
travessa. E ele é o mais velho aqui? Ele, que parece
um adolescente?
Ele pega a jarra de suco e a leva para mesa, se
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virando para me encarar. Certo. Tenho companhia


para o almoço. Me viro para um dos armários,
olhando para Amara de relance. Ela dá de ombros
enquanto eu pego dois copos e volto para a mesa.
— Amara está certa — Ryan fala assim que me
sento. — Nós não gostamos de nos misturar,
especialmente com humanos. Vocês são
complicados demais, dão trabalho demais, causam
problemas demais. Ah, as histórias que eu ouvi e as
coisas que eu já vi...
E todas as vezes que eu tive que ouvir algum
parente desfiando tudo o que pensavam que estava
errado no mundo... Deixo Ryan falando e começo a
comer. Pode até ter algo interessante na falação
dele – as histórias que alguém que viveu séculos
pode saber! – mas não vale a pena prestar atenção
nisso quando ele só quer resmungar. Aprendi isso
lidando com um tio-avô: é só deixar falar mal até
cansar que consigo as histórias interessantes e sem
lições de moral no meio.
Paro e olho para Ryan por um instante. É
estranho pensar que ele, que parece ser bem mais
novo que eu, com certeza é bem mais velho que
meus tios-avôs.

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Já estou terminando de comer quando ele para


de falar. Escuto a risada baixa de Amara e vejo
quando Ryan se vira na direção da cozinha.
— Acho que entendi o que vocês querem dizer
— ele comenta.
— Sobre? — Pergunto.
— Sobre você. — Ryan se vira para mim e
sorri. Se a intenção é me intimidar com seus dentes
afiados, não deu certo. Os dentes de Caio são
maiores.
E agora que a sessão resmungos terminou, posso
começar a perguntar. Depois de anunciar que é o
mais velho aqui e de tudo o que falou, Ryan não
pode nem reclamar. Eu teria que ser completamente
idiota para não ficar curiosa.
— Você realmente já estava vivo na Idade
Média?
O sorriso de Ryan se alarga e escuto a
gargalhada de Amara.
— Menina, eu já estava viva na Idade Média —
ela fala.
Me viro para a cozinha, de boca aberta. Amara?
Viva na Idade Média? Ela pode até parecer ter uns

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quarenta e tantos anos, mas levando em conta todas


as nossas conversas, nunca que eu ia imaginar que
ela tem séculos de idade.
— A maioria dos fey tem vida longa, comparada
com a dos humanos — Amara explica. — Quase
todos os sidhe são o que você considera imortais.
Eles não morrem a menos que sejam assassinados.
E se ela já estava viva na Idade Média e é
considerada uma das fey “jovens”...
Me viro de volta para Ryan.
— Minhas aulas de história estão enferrujadas.
Me dá um ponto de referência?
Ele solta uma risada alta que tem alguma coisa
definitivamente não humana. Parece que estou
ouvindo vários sons sobrepostos, vozes
sussurrando, junto com pássaros cantando... Que
tipo de ser mágico faz isso?
— Acho que não vai reconhecer nenhum ponto
de referência que eu der.
Ele apoia um cotovelo na mesa e me encara.
Desta vez, eu quase recuo. Tem alguma coisa no
olhar dele que é bem diferente de tudo que já vi. É
frio e antigo, perigoso, tão distante da humanidade
que não sei como interpretar.
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Ryan ri e assente, desviando o olhar.


— Não sou velho o bastante para ter visto a
época em que a humanidade e o Outro Mundo
viviam juntos, mas sou velho o bastante para ter
ouvido muitas histórias de quem estava lá, na época
da guerra, e sobreviveu.
Eu não teria me surpreendido se ele falasse que
estava vivo desde antes do surgimento do homo
sapiens.
E espera...
— A humanidade e o Outro Mundo já viveram
juntos?
Ryan ri de novo e cruza as pernas sobre o banco.
Empurro meu prato vazio para o lado, esperando.
Isso eu quero saber.
— Ryan... — Amara começa.
— Se acalme, não vou falar nada que ela não
pode saber. — Ele balança uma mão na direção da
cozinha.
Isso quer dizer que essa história de humanos e
Outro Mundo vivendo juntos tem mais alguns
daqueles segredos que eu não posso saber porque
vai ser perigoso demais. Aparentemente, as

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melhores histórias são as proibidas. Por que será


que isso nem me surpreende?
— Isso foi há tanto tempo que não restaram nem
lendas entre a humanidade. Mas quando vocês
surgiram, o Outro Mundo já era antigo. Estamos
aqui desde o início dos tempos. Vocês são as
crianças do mundo. E, no começo, aprenderam
conosco. Trabalharam junto conosco, até criarmos
uma cidade como o mundo nunca mais viu. Era um
centro de conhecimento, um mercado que
negociava com povos de todos os continentes. Os
fey chamam esta época de Era de Ouro. Nós
estávamos no nosso auge: a magia era mais forte,
nunca havíamos entendido tanto sobre nossos
poderes e como afetávamos o mundo e as pessoas
ao nosso redor. Nunca havíamos tido tecnologias
como as que desenvolvemos com a humanidade,
mudando completamente a forma como todos nós
vivíamos, e este “todos” inclui os humanos.
Eu quase consigo ver imagens se formando no
ar. Luzes fortes e azuladas, ruas de pedra, edifícios
altos que não são de nenhum tipo de arquitetura que
já vi antes, contrastando com o mar calmo e de
águas esverdeadas. Símbolos dourados pintados na
parede de uma casa, enquanto pessoas trabalham lá
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dentro...
As imagens desaparecem. Ryan balança a
cabeça. Como ele fez isso? Tá, ele não é humano.
Mas ele disse que não chegou a ver essa cidade.
— E como um lugar assim pode desaparecer
sem deixar nem lendas? — Pergunto. — Deveria
ter sobrado alguma coisa, nem que fosse...
— Existem algumas menções, se você souber
procurar. Mas a história, o que a cidade realmente
era, já se perdeu — Ryan fala.
— Isso foi há tanto tempo que até o Outro
Mundo já teria esquecido, se não fosse pelos mais
velhos de nós, como Ryan e mais alguns — Amara
completa.
— E sobre como um lugar assim pode
desaparecer... Com a guerra. Com o conhecimento
que vai parar nas mãos erradas. Com um homem
humano que queria mais do que podia ter. — Ryan
suspira e se levanta.
Acho que descobri por que os mais velhos não
gostam da humanidade, então.
Ryan inclina a cabeça para trás, de olhos
fechados, antes de se endireitar e olhar para Amara.

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— Se precisarem, não tenho problemas em ficar


no casarão para proteger Laura — ele fala antes de
sair da cozinha.
Isso explica por que ele está aqui, se todo
mundo está conferindo a propriedade. Mas agora
estou quase arrependida de ter conversado com ele,
porque tenho um milhão de perguntas e sei que
ninguém vai responder nenhuma delas.

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CAPÍTULO VINTE E DOIS

L AURA
A PRIMEIRA COISA NA MINHA MENTE QUANDO DESÇO
para o café da manhã é falar com Daiane. Queria
ter feito isso ontem, mas não vi quando começaram
a voltar para o casarão. Depois da conversa com
Ryan no almoço, eu peguei uns tantos salgados e
biscoitos, subi para o quarto, e fui ter aquela
conversa com meu amigo Google. Jogar “mitologia
imagens no ar” me rendeu listas de mitologia grega
e uns tantos artigos sobre a interpretação de mitos.
Nada que me ajudasse a descobrir o que Ryan é. E
jogar “cidade desaparecida” também não foi muito
melhor. Alguns resultados sobre cidades que
desapareceram, mas todas são recentes demais para
terem sido a que Ryan mencionou.
“Civilizações desaparecidas” me fez perder

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horas e mais horas lendo artigos, sem chegar a


nenhuma conclusão. Descobri o nome de uma ruína
que sempre achei linda – Angkor Wat, devidamente
adicionada à lista de viagens futuras – e que ela é
parte de uma cidade que foi construída por uma
civilização que ninguém sabe como desapareceu.
Promissor, até eu chegar na parte que falava que
essa civilização existiu durante a Idade Média.
Recente demais. Parei para ler sobre os maias e os
olmecas. Acho que até poderiam ser antigos o
bastante, mas nada nas fotos de cidades deles me
fez lembrar das imagens que vi enquanto Ryan
estava falando.
No fim das contas, foi uma tarde bem
interessante, mas nada produtiva. Quer dizer, acho
que tenho algumas ruínas novas para usar de
referências em ilustrações, pelo menos. Devia ter
imaginado que fazer uma pesquisa dessas não era
uma boa ideia. Eu não tenho nem palavras-chave
decentes para jogar na busca, só por algum milagre
eu ia achar alguma coisa útil. E nem deveria estar
pesquisando isso, se é o tipo de informação que
pode fazer os seres do Outro Mundo ficarem loucos
atrás de mim para me matar, que foi o que Amara
deu a entender mais cedo. Já escapei da morte
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vezes demais, preciso parar de brincar com essas


coisas.
Daiane e Caio estão sentados em uma das mesas
quando entro na cozinha. Acho que tudo voltou ao
normal, então. Espera. Droga, Caio está aqui, e
tomando café com cara boa. Isso quer dizer que é o
café intragável.
— Por favor, me diz que tem outra garrafa de
café — resmungo.
Caio dá uma gargalhada e Daiane levanta a
cabeça antes de apontar para o balcão. Vejo uma
garrafa de café meio escondida atrás de uma pilha
de pratos e solto um suspiro aliviado.
— Ei, qual é o problema com o meu café?
— Nenhum, desde que eu não precise beber ele.
E nem vem falar que não sou obrigada a nada —
completo enquanto pego um prato e entro na área
da cozinha. — Café de manhã é obrigatório, sim.
— Fraca!
Ignoro a resposta de Caio enquanto pego os
últimos pães de queijo, um pedaço de bolo, uma
xícara, coloco tudo na mesa e volto para buscar a
garrafa de café. Assim que me sento, Caio se estica
e pega um dos meus pães de queijo. Seguro sua
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mão e pego de volta. Intimidade é uma bosta, fato.


Não que eu tenha precisado dar intimidade antes de
Caio começar a fazer isso, para começo de
conversa, mas...
Me concentro no meu café da manhã, ignorando
os resmungos de Caio. A essa altura, já conheço ele
bem o suficiente para saber que só está se
divertindo às minhas custas mesmo.
Estou terminando quando me lembro do que
pensei ontem: preciso começar a fazer alguma
coisa, nem que seja correr em círculos. Estou
comendo demais e passando tempo sentada demais.
Como não vou parar de comer e não estou a fim de
renovar todo o meu guarda-roupas...
Encaro Daiane discretamente. Naquele jantar
com o Conselho, ela foi uma das primeiras a atacar.
Foi meio inesperado saber que uma mulher estava
tomando a frente numa situação dessas, mas
também foi bom. E se ela estava atacando...
— Você só luta como loba? — Pergunto antes
de perder a coragem.
Ela se vira para mim e franze a testa.
— Como assim?
— Você lutou no jantar, mas estava como loba.
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Luta como humana também?


Daiane coloca a xícara que está segurando em
cima da mesa e cruza os braços, me encarando.
— O que você realmente quer saber?
Respiro fundo.
— Se você pode me ensinar alguma coisa. Não
precisa ser nada de luta, eu só pensei... — Dou de
ombros e paro de falar.
Na verdade, eu não pensei, só saiu. Mas não
acho que saber lutar, ao menos o básico, alguma
coisa que eu consiga fazer para me defender, seja
uma má ideia. E não só por estar numa casa cheia
de seres mágicos. Já entendi que não consigo fazer
praticamente nada contra eles, se chegar nesse
ponto. Mas um dia eu vou sair daqui, e nunca se
sabe o que pode acontecer. A única certeza que
tenho é que não vou voltar para a vida que tinha
antes, aceitando o que me diziam para evitar
conflitos, dependendo de outras pessoas porque é o
que esperam de mim. Então preciso começar a
mudar, também.
Daiane sorri.
— Isso é bom. Mas por que eu? Por que não
Rodrigo, Aline, ou até mesmo Alexandre?
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Caio solta uma risada baixa e se levanta. Faço


um esforço para não corar. Não quero nem pensar
no que aconteceria se pedisse isso para Alexandre.
Não mesmo, especialmente levando em conta o que
acontece toda vez que estamos perto demais. E
treinar qualquer coisa com envolveria ele
colocando as mãos em mim... E por que é que eu
pensei que isso era uma má ideia mesmo?
Balanço a cabeça. Foco. O que Daiane
perguntou mesmo?
— Porque você parece uma pessoa normal —
respondo. — Todos os outros estão em forma,
mesmo que não pareça. Quer dizer, Alexandre, por
exemplo. Ele nem parece ser muito forte. Não
comparado com o pessoal que eu sempre vi na
cidade. Nada de músculos gigantes ou coisa do
tipo, mas eu vi ele treinando com Rodrigo. Não é
uma questão de tamanho...
E por que eu estou falando do corpo de
Alexandre mesmo? Droga, não quero ficar
vermelha agora.
— A questão é: quase todo mundo aqui parece
estar mega em forma. Aqueles certinhos chatos de
vida saudável. Das mulheres, você é a única que eu
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sei que luta e que parece ser gente normal.


Daiane se inclina e dá dois tapas na coxa – que é
maior que a minha, e eu nunca fui magra.
— Gosto demais dessa bunda e dessas coxas
para querer “ficar em forma”, como você diz. E dos
meus peitos. — Ela sorri. — Posso tentar te ensinar
alguma coisa, mas você vai ter que me avisar se
estiver exagerando. Não tenho muita noção de
força e resistência de humanos.
Assinto e então paro. Ela falou que vai me
ensinar? Sério mesmo?
— Tem certeza? — Daiane pergunta.
Está brincando?
— Tenho!

···
A LEXANDRE
TEM DIAS EM QUE EU REALMENTE QUERIA QUE O
comentário de Laura – sobre um dos fey ser um
leprechaun e estar arrumando potes de ouro – fosse
verdade. Não é que eu não goste do meu trabalho.
Não tem coisa melhor que ver os projetos tomando
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forma depois de umas tantas linhas de código. Mas,


às vezes, só quero não precisar cumprir esses
prazos. Se não tivesse que entregar esses ajustes
amanhã, estaria lá fora, também, para ter certeza de
que não havia nenhuma ameaça que não notamos
antes. Mas, com todos os imprevistos dos últimos
dias, acabei deixando o trabalho de lado.
Para piorar, Paula confirmou que invocaram o
demônio e o usaram para derrubar nossas defesas,
de novo. E a contenção que Bárbara absorveu era
forte o bastante para prender qualquer um do
casarão, inclusive eu. Se Bárbara não tivesse nos
parado, Caio ou eu teríamos sido pegos na
armadilha. E continuo sem ter ideia de quem está
fazendo isso ou por quê. Tudo está tão genérico que
não consigo imaginar um motivo plausível para os
ataques.
Meu celular toca. Salvo o que estou fazendo
antes de esticar a mão para ele. Já não estou
rendendo muito, se perder o que já fiz... Não quero
nem pensar.
Número desconhecido. Levanto uma
sobrancelha. Espero que seja uma boa notícia, para
variar.

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— Alô.
— Me avisaram que você queria falar comigo.
Avés. Não pensei que ele ligaria. Na verdade,
não tinha certeza de que ele entraria em contato,
mesmo depois de pedir Ryan para falar com ele. Eu
até tenho autoridade para ir atrás de um dos
membros do Conselho, agora que Ivan nos deu o
território, mas Avés não é só um membro do
Conselho.
— Sim, mas não acho que seria uma boa ideia
fazer isso por telefone — falo.
Ele não responde. Posso estar sendo paranoico
demais – vigiar ligações é algo feito por humanos,
não pelo Outro Mundo, e mesmo assim não é algo
comum. Mas nada nessa situação toda é normal,
então não vou correr riscos que posso evitar.
— Imagino que isso queira dizer que também
não é uma boa ideia ir até aí.
E também não vou falar que tenho certeza de
que estão nos observando.
— Não.
— Compreendo. Então a melhor opção é você
vir aqui. Fale com Ryan, ele vai te encaminhar para

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um dos nossos postos de transporte. Amanhã de


manhã.
Ele desliga. Encaro o telefone na minha mão por
um instante. Tenho a impressão de que Avés sabe
de mais alguma coisa, ou não teria oferecido os
transportes dos fey. Eles raramente permitem que
alguém de outra raça os use, e quando permitem
cobram caro. Pode até ser que esse convite seja
uma armadilha. Se bem que, de acordo com Ryan,
Avés nunca faria ou autorizaria algo envolvendo
demônios. E, também de acordo com Ryan,
podemos confiar nele, desde que não coloquemos
os fey em risco. Isso é algo que entendo muito bem.
Levanto a cabeça quando escuto a risada de
Bárbara vindo de algum lugar do casarão. Me
esqueci completamente que tinha deixado a porta
aberta. E, se quero terminar esses ajustes hoje, para
poder me encontrar com Avés amanhã, é melhor
cortar as distrações. Se acontecer alguma
emergência não vai ser uma porta fechada que vai
impedir de me avisarem.
Paro com a mão na maçaneta. Alguém está
subindo a escada depressa, quase correndo. Era só
o que me faltava. Mais problemas. Respiro fundo e

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saio do escritório. É Laura. Por que ela está subindo


a escada correndo? Me apoio no parapeito e olho
para baixo praticamente ao mesmo tempo em que
Rodrigo ri. Laura está dois andares abaixo, apoiada
no corrimão, bufando. E Rodrigo está encostado no
parapeito, ainda sorrindo. Estreito os olhos. O que
ele está fazendo ali?
— Continue rindo... — Laura começa, ainda
ofegante. — E vou fazer uma playlist só de Sandy e
Júnior. De quando eram infantis. Com aquela
música dos Power Rangers. E coloco Xuxa junto,
se provocar demais.
Rodrigo para de sorrir na mesma hora. Não vou
reclamar se Laura cumprir essa promessa. Ele não
tinha nada que estar ali, muito menos rindo dela,
por qualquer motivo que seja.
Respiro fundo e balanço a cabeça. Não. Rodrigo
está perto da porta do seu quarto. Tem todo direito
de estar ali. Eu que não tenho o direito de ficar
irritando porquê... Não tenho nem um motivo para
estar irritado.
Isso está saindo de controle.
Laura continua a subir a escada, ainda mais
depressa do que o normal, mas mais devagar do
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que eu ouvi antes. Ela para no andar de baixo e


olha na direção da porta do seu quarto, antes de
balançar a cabeça e se apoiar no corrimão,
abaixando a cabeça. Qual é o problema nisso? Ela
realmente está cansada assim só por ter subido a
escada quase correndo? Humanos...
— Playlist de Sandy e Júnior e Xuxa? —
Pergunto.
Ela não pula, mas tenho a impressão de que foi
por pouco e só porque está cansada demais. Laura
olha para os lados e então para cima. Sorrio.
— Se for rir de mim também, juro que arrumo
uma playlist que até você vai implicar!
— Alguém sabe se ela que está muito fora de
forma mesmo ou se humanos realmente quase
morrem para subir uma escada correndo? —
Daiane pergunta, de algum lugar lá embaixo, alto o
bastante para eu e Rodrigo ouvirmos, mas Laura
não dá o menor sinal de ter escutado.
Rio, balançando a cabeça. Não faço a menor
ideia, mas agora pelo menos já entendi que essa
coisa de subir as escadas é entre Laura e Daiane.
Laura estreita os olhos, me encarando. Levanto
as mãos e me afasto do parapeito. Certo. Sem rir
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dela, então.
Ainda estou sorrindo quando entro no escritório
de novo e fecho a porta. Vai ser divertido se ela
tentar fazer uma playlist para me irritar. Não sou
chato musical como Rodrigo.
E Laura continua presa dentro do casarão.
Respiro fundo e paro na frente da janela. Não me
esqueci de como ela se sentou de olhos fechados,
só aproveitando o sol, aquele dia no jardim. Mas
foram tantos problemas que acabei não falando
nada a respeito de deixar ela sair. Está passando da
hora de remediar isso.

···
L AURA
ESTOU ESTIRADA NA CAMA QUANDO ALGUÉM BATE NA
porta. Não quero me levantar. Na verdade, não
quero me mexer. Quando pedi para Daiane me
ensinar alguma coisa de luta imaginei que fosse
acabar apanhando um bocado, não que ela fosse me
colocar para subir e descer escadas. Estou exausta.
Morta. Acabada.
— Não responder não costuma adiantar muito
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aqui, sabe — Alexandre fala. — Consigo te ouvir.


Sei que está acordada.
— Então o que eu faço se quiser sossego?
Mando quem está batendo na porta cair fora?
Tenho a impressão de que ele ri, mas é baixo
demais para eu ter certeza.
— Não seria a primeira vez que faz isso.
É verdade. Eu já fiz praticamente isso, e com
ele.
Mas se Alexandre está batendo aqui...
Pulo para fora da cama. Estava pensando em
tudo que aconteceu e me contaram nos últimos
dias. Tenho uma coleção de perguntas que não
tenho certeza se Rodrigo ou Lavínia responderiam,
então vou perguntar direto para ele. Se Alexandre é
o chefão disso aqui, é óbvio que ele vai saber as
respostas.
Abro a porta.
— Como foi que eu usei o celular e a internet se
Ryan tinha tirado meu quarto desse plano? Se fui
parar em uma dimensão paralela ou coisa do tipo
não faz sentido nada disso ter funcionado.
Ele levanta as sobrancelhas, com uma expressão
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incrédula. O que foi que eu falei?


— Tá, eu sei que nada disso faz sentido, se parar
para pensar, mas tudo tem uma lógica. A menos
que eu tenha entendido essa coisa de “planos” de
forma completamente errada.
Alexandre balança a cabeça e solta uma risada
rápida, em voz baixa, antes de gesticular para eu
sair do quarto. Me apoio no batente da porta. Não
quero andar. Não mesmo. Ele ri de novo.
— Tenho algo que você vai querer ver.
Respondo suas perguntas no caminho.
Estreito os olhos. Isso é golpe baixo. Alexandre
cruza os braços e me encara, sorrindo.
Droga.
Me endireito e fecho a porta, saindo para o
corredor. Alexandre começa a andar na direção da
escada. Faço um ruído irritado. Já subi e desci
escadas que chega para uma vida.
— Falar que Ryan tirou seu quarto deste plano é
a forma mais simples de explicar o que ele fez. Na
verdade, é um pouco mais complicado que isto —
ele começa e se vira para me encarar. Suspiro e o
acompanho escada abaixo. — O que Ryan fez foi
deslocar seu quarto um pouco para fora desta
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“dimensão”, como você falou. Existem poucas


pessoas que ainda são capazes de deslocar um lugar
totalmente para fora deste plano. Então mesmo que
não estivesse aqui, por completo, também não
estava tão afastada que não fosse conseguir usar o
celular e a internet.
— Mas então por que eu não estava ouvindo
nada na casa? Se não estava “tão afastada” assim...
Alexandre para e se vira para mim. Faço o
mesmo, sustentando seu olhar. Agora ele está sério,
sem nem meio sinal do sorriso de agora há pouco.
— Não posso te contar os detalhes sobre isso.
Nem sei todos os detalhes, na verdade. Esses
segredos não são meus e seria perigoso demais se
qualquer um fora daqui suspeitasse que você sabe
demais. O que eu posso dizer que é o que Ryan fez
funciona melhor contra seres vivos que contra
objetos ou qualquer coisa inanimada.
Assinto. Tá, agora faz um pouco mais de
sentido. E é a terceira vez que alguém fala que eu
não posso saber detalhes sobre o que Ryan faz
porque é perigoso demais. Óbvio que isso só está
me deixando mais curiosa ainda. Mas não vou
brincar com a morte... De novo. Ou seja, nada de
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tentar descobrir mais detalhes sobre esse poder de


Ryan ou sobre o tal santuário. Vou engolir minha
curiosidade.
Alexandre continua a descer a escada. Espero
muito que o que quer que ele queira me mostrar
seja no segundo andar. Não quero ir até lá embaixo
e ter que subir tudo de novo.
Desço mais dois degraus e paro.
— Isso não faria Ryan ser mais forte que você?
— Não exatamente — ele responde sem se virar
e continua descendo.
O que leva uma pessoa em sã consciência a
achar que “não exatamente” é uma resposta
decente?
Continuo a descer a escada, quase correndo para
alcançar Alexandre, já no último degrau. Por favor,
que o que quer que seja esteja aqui no segundo
andar.
— Não exatamente, como?
— Em um caso de vida ou morte, Ryan é o
único aqui que conseguiria me parar, mas só em
uma situação extrema. No dia a dia? — Alexandre
se vira para mim e sorri. — Continuo sendo o mais

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forte aqui.
Sustento seu olhar. Ele está achando o quê, que
vai me assustar? Já passei desse ponto faz muito
tempo. Vão ter que arrumar alguma coisa bem
diferente para me surpreender.
Alexandre ri e volta a andar. E ele está seguindo
o corredor do lado direito da casa. Sem descer mais
escadas, oba! Não sei o que tem aqui, na verdade.
Só vim no segundo andar nas vezes que fomos
assistir algum filme na sala de entretenimento
menor, e ela fica no corredor da esquerda.
Bom, pelo menos eu sei que Alexandre não está
me levando para o seu quarto. Não que isso fosse
ser exatamente uma má ideia... Droga.
Ele para na frente de uma das portas fechadas e
me espera. Paro ao seu lado e levanto as
sobrancelhas. Certo. Hora de descobrir o que ele
tem para me mostrar.
Alexandre abre a porta. É uma sala um pouco
menor que meu quarto, com três janelas que vão do
chão quase até o teto e que servem de portas para
uma varanda pequena. Uma mesa mais pesada, com
três cadeiras ao seu redor, está no centro da sala, e
duas mesas menores estão encostadas nas paredes.
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Na verdade, tenho a impressão de que colocaram


esses móveis aqui faz pouco tempo. A sala ainda
tem um pouco daquele cheiro de lugar fechado que
só o tempo consegue tirar.
Entro e vou direto para uma das janelas. Nem
tento abrir a porta para a varanda, provavelmente
ela está trancada e tem um feitiço para garantir que
eu não consiga abrir, como no meu quarto e no
escritório que fica no primeiro andar. A varanda é
logo em cima da parte dos jardins perto da cozinha,
onde conversei com Alexandre alguns dias atrás.
Coloco uma mão na janela e começo a procurar o
banco onde nos sentamos. Tenho certeza que dá
para ver ele daqui, só preciso me localizar melhor...
Respiro fundo e me viro para Alexandre.
— O que tem essa sala?
Ele fecha a porta atrás de si e se encosta nela,
cruzando os braços. Acho que já está virando rotina
eu estar em uma sala fechada com Alexandre.
— Se você quer trabalhar como freelancer,
precisa aprender a separar seu espaço do seu lugar
de trabalho. Trabalhar no próprio quarto é ótimo,
em teoria, mas na prática quer dizer que não existe
separação entre horário de trabalho e horário de
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descanso ou lazer, e você precisa criar essa


separação para ter uma rotina saudável.
Abro a boca para questionar mas penso melhor.
Alexandre trabalha em casa. Ele e sabe-se lá mais
quantos aqui do casarão. É óbvio que eles vão
entender disso muito melhor que eu. E, aliás, não
duvido nada que o tal contato de Felipe que passou
os links e tudo mais seja do Outro Mundo.
— Esta sala pode ser seu escritório, sala de
trabalho, ou como preferir chamar — Alexandre
continua. — E está longe o bastante dos quartos
para não acordar ninguém se você quiser começar a
trabalhar cinco horas da manhã.
Levanto as sobrancelhas.
— E aquela fala sobre eu poder até aumentar o
volume?
Alexandre sorri e vem na minha direção.
— Não estou falando isso para você diminuir o
volume nem nada do tipo. Mas quando não estiver
mais usando as playlists de vingança, sabe que
pode vir para cá e não vai acordar ninguém. E mais
uma coisa...
Ele para ao meu lado e puxa uma das
portas/janelas. Pisco e balanço a cabeça, sem ter
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certeza do que estou vendo. Ela não estava


trancada. Alexandre sai para a varanda e se vira
para me encarar. Tem alguma armadilha aqui, só
pode. Respiro fundo e saio.
— Se eu te deixar sair do casarão, te deixar livre
na propriedade, você vai tentar fugir?
Engulo em seco e me viro para Alexandre. Ele
está com aquela expressão fechada e impassível
que é seu modo de “negócios”. Não tinha percebido
o tanto que isso é diferente de quando ele fala
comigo. Na verdade, acho que faz tempo demais
que não vejo essa expressão.
E... Me deixar livre na propriedade quer dizer
que as portas e janelas vão estar abertas. Que eu
posso simplesmente sair pela porta da frente, ir dar
uma voltinha e sumir. Mas o que vai acontecer se
eu fizer isso? Não preciso nem pensar muito: o
Conselho vai vir atrás de mim e da minha família,
isso se Alexandre não vier atrás de mim primeiro.
Não consigo me esquecer do aviso de Camila, de
que o Conselho já tinha se decidido sobre nos
matar, nem de como Oswaldo estava pronto para
me atacar no jantar. Não é tão simples assim. Não
adianta eu só sair do casarão. Preciso sair daqui

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com uma garantia de que vou estar em segurança...


E a única pessoa que pode me dar esta garantia é
Alexandre.
— Não — respondo.
Ele inclina a cabeça para a direita, sem desviar o
olhar de mim, ainda com a expressão fechada e
distante.
— Não?
Balanço a cabeça.
— Sei que não vou sobreviver se tentar fugir.
Então não.
Alexandre sorri, mas esse sorriso é diferente.
Estreito os olhos e cruzo os braços, me apoiando no
parapeito, enquanto ele se aproxima de mim. Das
outras vezes que estávamos perto assim, havia algo
quase elétrico entre nós. Mas não agora. É quase
como se Alexandre estivesse se contendo...
É isso. A expressão distante pode ter
desaparecido, mas ele ainda está hesitante. Por quê?
— Acha que se fugisse, eu te mataria?
Está explicado.
E eu não tenho a menor dúvida sobre como
responder.
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— Não.
Não sei de onde vem essa certeza, mas é a
verdade. Nunca nem pensei na possibilidade de
Alexandre me matar, mesmo se eu fugir daqui. Ir
atrás de mim, com certeza. Me matar, não. Não a
menos que eu me transforme numa ameaça para as
pessoas no casarão.
— Acha que eu não seria capaz?
Balanço a cabeça, sustentando seu olhar. Sei que
deveria estar com medo, especialmente levando em
conta a resposta para essa pergunta, mas não
consigo. E não é nem uma questão de estar além do
medo. É simplesmente... Alexandre. Aquela aura de
violência contida continua ao seu redor, aquela
força que eu sempre senti, desde a primeira vez que
ele entrou no sebo. Mas mesmo que eu entenda que
ele é perigoso, não consigo ter medo dele. Não
mais.
— Tenho certeza que seria. — Sorrio quando
ele arregala os olhos. Pelo visto, não esperava
minha resposta. — Mas você não me mataria a
menos que fosse para manter as pessoas que
confiam em você em segurança.
Alexandre se aproxima ainda mais de mim. Seu
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olhar mudou, não está mais hesitante ou distante,


está aqui, carregado com aquela intensidade que já
está se tornando familiar. Respiro fundo, sentindo
meus braços cruzados a milímetros de distância do
corpo dele. Se eu me inclinar para frente um pouco
que seja, vou estar apoiada nele. Ou se eu der meio
passo para a frente.
— E mesmo assim, você não está mais com
medo — ele fala.
Isso é quase uma repetição de uma das nossas
primeiras conversas.
— Deveria estar?
Ele ri em voz baixa, uma risada rouca que faz os
cabelos da minha nuca se arrepiarem, ao mesmo
tempo em que quero me aproximar mais.
— Não. Você está certa. Eu faço de tudo para
manter os meus em segurança. E agora você é uma
dos meus.
Encaro Alexandre. É a minha vez de estar
surpresa. Uma deles? Mas não vou pensar nisso
agora, não com ele tão perto de mim, com seu calor
me cercando e seu olhar preso ao meu.
Alexandre segura meus braços cruzados e puxa
de leve. Os solto e ele desce as mãos por eles, até
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entrelaçar nossos dedos. O que eu estou fazendo?


Não sei e nem quero saber. Dou um passo à frente,
colando nossos corpos. Ele é quente, mesmo
através do tecido das nossas roupas, e sinto os
músculos que vi uma vez e não consegui tirar da
cabeça. Quero passar as mãos pelo seu peitoral,
pelas suas costas, mas Alexandre ainda está
segurando minhas mãos.
Ele sorri e inclina a cabeça na minha direção.
— Vai fugir?
— Parece que estou fugindo?
Ele ri mais uma vez, tão baixo que é quase só
uma vibração no seu peito, e solta minhas mãos.
Quando dou por mim, estou com os braços ao redor
da sua cintura, sentindo seus lábios nos meus
enquanto Alexandre me segura com cuidado, quase
como se estivesse com medo de me assustar.
Como se ele pudesse fazer alguma coisa que
fosse me assustar, agora.
Mordo seu lábio inferior ao mesmo tempo em
que aperto suas costas. Não quero um beijo só de
lábios. Não quero Alexandre se contendo. Se vou
fazer isso, eu quero tudo. Mordo seu lábio de novo,
puxando, desta vez, e ele praticamente rosna para
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mim. É minha vez de rir em voz baixa e Alexandre


estreita os olhos. Sorrio, afastando o rosto por um
instante e levantando as sobrancelhas. Acho que
não preciso falar nada.
Quando nossos lábios se encontram de novo, ele
não está mais se contendo.
E eu não faço ideia do que estou fazendo, só sei
que não quero parar.

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CAPÍTULO VINTE E TRÊS

L AURA
— VOCÊ BEIJOU ALEXANDRE???
Afasto o celular do ouvido. Já entendi que
Camila está surpresa, mas ela não precisa gritar. Do
jeito que ela está falando, está parecendo que
somos duas adolescentes. Por favor, né.
— Camila, foco. — E é estranho que seja eu a
pessoa a estar mandando alguém ter foco.
Ainda não acredito no que aconteceu. Não que
seja alguma surpresa, depois daquela cena no fim
do jantar. Se bem que, para ser bem honesta, não
foi só depois de vir para cá que comecei a prestar
atenção em Alexandre. Mesmo quando eu ainda
trabalhava no sebo e tinha medo dele, não deixava
de encarar e compará-lo mentalmente com Rick.
Rá! Como se tivesse alguma coisa para comparar.
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E depois de um beijo que me deixou sem ar e


com as pernas bambas, Alexandre riu, falou que eu
precisava pensar no que queria e saiu da sala. Foi
uma daquelas ocasiões que mereceu um “puta
merda”. Tudo o que eu não queria era ter tempo
para pensar, porque agora minha cabeça está uma
zona.
Nem vou tentar negar que estou interessada. É
Alexandre, afinal. Esse homem tem alguma coisa
que parece ser um ímã me puxando para ele. Não
tem outra explicação. Mas, ao mesmo tempo... Ele
ainda é a pessoa que está me mantendo presa aqui.
Mesmo que tenha feito isso para me manter viva.
Mesmo que agora eu esteja livre para sair do
casarão, desde que fique na propriedade. Não
consigo deixar de pensar que isso está errado.
Acho que Alexandre imaginou que isso ia
acontecer. É o único motivo para ele ter agido
assim e para quando eu desci para a cozinha, no
horário do almoço, não ter ouvido nenhuma
piadinha, mesmo que os olhares de Rodrigo e Aline
tenham deixado claro que sabem o que aconteceu.
Alexandre deve ter avisado para não falarem nada,
porque não acho que nenhum dos dois conseguiria
se conter sem algum tipo de ameaça. Eles não têm
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filtro o suficiente para isso.


Mesmo assim, eu comi depressa e em silêncio,
peguei um pote de biscoitos de polvilho e subi para
o meu quarto assim que acabei. Precisava conversar
com alguém, e minha única opção era Camila,
mesmo que enquanto eu estava em BH ela fosse a
menos interessada em qualquer coisa envolvendo
romance e pegação. Agora estou pensando se isso
não pode ser porque ela é uma metamorfa... Mas
acho que não, porque Felipe nunca teve o menor
problema com isso. Cansei de ver ele saindo
acompanhado de festas.
E Camila está agindo como se eu ter beijado
Alexandre fosse coisa de outro mundo. Pensei que
ela fosse ser a voz da razão, mas pelo visto estava
bem enganada.
— Se você tem algum motivo para estar pirando
com isso, ia ser ótimo se me contasse, sabe —
resmungo.
Ela respira fundo e solta o ar de forma audível.
— É só que... Alexandre tem nome. Posso não
conhecer ele, mas já ouvi histórias demais.
Reviro os olhos.
— Então eu beijei um famoso do Outro Mundo.
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Só isso, ou tem mais alguma coisa?


— Você já devia ter imaginado que ele é
famoso. Ou está achando que qualquer um sai
desafiando o Conselho que nem ele fez? Mas tá,
você me pegou de surpresa. De onde que veio essa
história de vocês dois?
— Ótima pergunta. Nem eu sei. Ia dizer que
tudo começou depois do jantar, mas é meio óbvio
que não foi. Aquela conversa só foi quando eu
percebi o que já estava acontecendo. — E não
quero pensar muito nisso. — Isso não vem ao caso
agora. A questão é o que eu vou fazer.
— Ir atrás dele, óbvio, porque já mais que deu
para notar que você está no mínimo interessada
nele. A essa altura, eu até diria que tem grandes
chances de estar um tantinho apaixonada...
— Cala a boca! — Posso estar conversando com
ela pelo telefone, mas sei que estou vermelha feito
um pimentão. — Não estou apaixonada por ele. Eu
nem conheço ele direito e ele é o cara que me
prendeu aqui...
Paro de falar e respiro fundo. Sempre volta
nisso, não é? E a minha ideia era me aproximar de
Alexandre para manipulá-lo e conseguir sair
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daqui... Não me envolver de alguma forma. E não


tenho como negar que isto está acontecendo,
também, especialmente levando em conta que é a
primeira vez que me lembro do meu plano idiota
desde... Desde que entrei na sua sala, anteontem.
— Agora eu entendi qual é o problema.
Não, ela não entendeu.
— Que tanto que você é leal ao Conselho? —
Pergunto depressa, antes de perder a coragem.
Camila ri.
— Se isso é sobre o plano para escapar que
tenho certeza que você está fazendo, não tenho a
menor obrigação de contar nada para eles. Nem
vou contar. Mas também não vou te ajudar,
porque...
— Porque eu não vou sobreviver se tentar fugir,
já entendi essa parte — interrompo.
Respiro fundo de novo. Não tenho certeza de
que falar o que pensei em fazer é uma boa ideia,
mas preciso falar com alguém. E Camila não
precisava ter me dado nada das informações que
me passou antes do jantar ou sobre banshees. Se
bem que ela pode estar fazendo tudo isso para me
manipular também, como já fizeram não sei nem
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quantas vezes... E se eu continuar seguindo essa


lógica, nunca mais vou conseguir confiar em
ninguém.
— Laura?
— A única forma de sair daqui seria se
Alexandre me deixasse ir — murmuro.
— Pelo menos você entendeu a situação
perfeitamente. Ai. Não. Você não fez o que eu estou
pensando. Por favor, me fala que não fez isso.
E é assustador como ela entende depressa.
— Não fiz. — Acho que estar tão aliviada ao
dizer isso é um sinal de que o comentário de
Camila está perto demais da verdade. — Mas a
ideia era essa. Me aproximar dele, porque já sabia
que ele estava interessado. Usar isso para fazer ele
me deixar ir. Não me envolver. Não me importar.
— Laura... Ai, merda. Eu não sei nem o que
falar.
— São as duas coisas. Ele é o cara que me
prendeu e o cara que eu queria usar para conseguir
sair daqui. Por que é que eu fui me envolver, e
como foi que isso aconteceu em tão pouco tempo?
Isso é errado de tantas formas...

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Camila não fala nada, mas escuto seu suspiro.


Me viro na cama, dando as costas para as janelas.
— Eu sou a pior pessoa do mundo para dar
qualquer tipo de conselho... — ela começa.
É, Camila sempre foi péssima com qualquer
coisa do tipo. Mas é a única pessoa que eu tenho,
agora, porque não posso explicar essa novela toda
para mais ninguém. Lavínia pode ter se tornado
uma amiga, de certa forma, mas não confio nela o
bastante para ter coragem de falar que estava
planejando como escapar daqui.
— Este não é o seu mundo, Lau. Não é à toa
que nos chamamos de “Outro Mundo”. As regras
que você está acostumada não são necessariamente
o que funciona para nós. Ficar pensando no que é
certo e errado de acordo com o mundo humano
não vai te ajudar agora.
— Ótima amiga, você. Eu falo que estou
interessada no cara que me prendeu e você
basicamente solta um “manda ver”, se é que
entendi isso certo — resmungo.
Ela suspira de novo.
— Queria o quê? Que eu aparecesse aí para te
sacudir até criar bom senso? A questão é que sua
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situação é complicada demais para olhar assim,


como se tudo fosse preto e branco. Não é. Ele te
prendeu aí, certo. Mas você sabe o motivo. Sabe
que ele salvou a sua vida e a vida da sua família
fazendo isso. Não tem como você pensar em
“certo” e “errado” como verdades absolutas.
Ai. Isso foi quase um tapa na cara, mas acho que
precisava disso.
— Olhando por esse lado...
Camila ri.
— Tente ver as coisas assim e se lembrar que
nosso mundo é muito mais complicado que o seu.
Se bem que a essa altura acho que já é seu mundo
também, não é?
Talvez. Alexandre falou que sou uma deles
agora, mas não faço ideia do que isso quer dizer e
estava ocupada demais para perguntar.
— Tenho que ir agora, prometi para Felipe que
dava carona para ele. Só pense nisso, está bem? E
me conte o que acontecer! Nada de soltar outra
bomba dessas do nada!
Me despeço rindo e desligo. Não sei se essa
conversa adiantou como eu esperava. Na verdade,
não sei o que esperava. Que ela me mandasse criar
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vergonha na cara, talvez? Ela fez isso, mas não no


sentido que imaginei. E Camila está certa. Estou
olhando para a situação toda de uma perspectiva
totalmente humana, mas não estou lidando com
humanos. Esta é a minha visão de mundo, certo,
mas quantas vezes minha visão de mundo já
mudou, desde que cheguei aqui? Não adianta ficar
me prendendo nisso. Posso pelo menos tentar
ignorar a voz que fica repetindo na minha mente
que isso é errado. Não é tão simples assim. E
Alexandre, essa atração ou o que quer que seja
entre nós... Não vou desperdiçar isso. Eu me sinto
bem com ele, tanto que nem me lembrei de nada
disto enquanto estávamos juntos. Quero explorar o
que está entre nós e ver até onde isso vai.

···
EU DEVERIA ESTAR REVIRANDO OS SITES DE FREELANCER,
tentando pegar algum trabalho, mas já fiz isso
vezes demais e não consegui nada. Não que eu
esteja em condições de me concentrar em algo
assim. Tanto não estou que abri justamente a
ilustração de Alexandre... A que não sei até hoje
por que inventei de começar.

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Aliás, ainda não entendi a ilustração, também.


Tinha pensado que as roseiras poderiam representar
o casarão – não tem como não fazer a relação com
os jardins e os vários tipos de rosas ao redor da
casa. Mas, na imagem, as roseiras estão prendendo
o homem, que está tentando escapar delas com
todas as suas forças. Depois desse tempo e do que
ele falou sobre fazer de tudo pelos que estão aqui,
confiando nele, não consigo imaginar Alexandre
querendo escapar do casarão, assim. Ou da
responsabilidade que isso representa. E mesmo
assim a ilustração continua parecendo certa para
mim. Ou seja, as roseiras significam outra coisa.
Ou nada disso significa nada, foi só um sonho
estranho com umas imagens legais e Alexandre se
enfiando no meio porque ele não sai da minha
cabeça.
Suspiro e encaro a ilustração. Estou pintando as
roseiras agora. Devia fazer Alexandre primeiro,
mas por algum motivo estou deixando por último.
Que seja. Uma hora eu termino e vejo se isso
prestou. E tento mudar o rosto dele para não ficar
tão reconhecível e poder postar online.
Alguém bate na porta. Já são quase cinco horas

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da tarde, isso quer dizer que eu tive mais de cinco


horas de sossego. Levando em conta o que
aconteceu mais cedo e o bando de fofoqueiros
tagarelas que vivem aqui, isso é um milagre.
— Quem é?
— Estava imaginando se já se arrependeu —
Alexandre fala.
O quê?
Respiro fundo.
— Entra. E por que eu teria me arrependido?
Alexandre entra no quarto e fecha a porta atrás
de si. Respiro fundo de novo, só o encarando
enquanto ele vem na minha direção. Se alguém tem
motivos para ter se arrependido de alguma coisa, é
ele, não eu. Como é que vou me arrepender de estar
me envolvendo – nem vou fingir que foi só um
beijo ou que qualquer coisa que acontecer vai ser
“só isso”, de alguma forma – com um homem que
consegue prender minha atenção só por andar na
minha direção?
— Não sei, mas imaginei a possibilidade
quando você resolveu passar a tarde toda escondida
aqui. — Ele para do outro lado da mesa e cruza os
braços.
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— Não estou escondida.


O que ele esperava que eu fizesse? Que eu fosse
atrás dele para continuar de onde paramos? Admito
que a ideia passou pela minha cabeça, mas eu não
sou assim. Ele levanta as sobrancelhas. Droga.
Olho para o tampo da mesa. Era exatamente isso
que ele queria. E não é verdade que não sou assim.
Eu já fui exatamente assim. Eu era a garota que
sempre falava o que queria, como queria, com
quem queria. Quando foi que perdi a coragem de
tomar qualquer tipo de iniciativa? Suspiro.
Provavelmente na mesma época que percebi que
continuar insistindo para ter uma vida diferente do
que esperavam de mim só ia servir para me quebrar
aos poucos.
Levanto a cabeça, sem saber como responder.
— Pensei que fosse aproveitar para trabalhar na
outra sala — ele comenta.
Olho para o notebook e para a ilustração que
ainda está na tela, e então para Alexandre dando a
volta na mesa. Ah, não. Abaixo o monitor.
— Não estou trabalhando. Isso é diversão.
Alexandre olha para o notebook fechado e então
para mim, sorrindo.
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— Diversão. Sei.
Droga. Estou vermelha, tenho certeza. Mas não
vou falar o que é a ilustração nem vou deixar ele
ver. Não mesmo. Eu realmente devia ter apagado
isso.
Aperto os braços da minha cadeira, resistindo à
vontade de me levantar. Eu falei que queria ver até
onde isso entre nós vai, mas já estou estragando
tudo. Que ótimo.
— Não estou acostumada a ir atrás... — Encaro
o tampo da mesa de novo. Não sei nem como
terminar essa frase. — Não me arrependi, me
desculpe se...
Alexandre praticamente rosna alguma coisa que
não consigo entender e se abaixa ao lado da minha
cadeira. Continuo encarando o tampo da mesa por
alguns segundos, até que não consigo mais ignorar
o olhar dele e me viro.
— Eu não estou com pressa — ele sorri, mas
seus olhos estão sérios. — Acho que já deixei bem
claro o que quero. Se você quer ir devagar, sem
problemas. Se não quiser nada, sem problemas,
também. É sua escolha. Só fale, está bem? Não vou
ficar te julgando por falar o que quer.
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Levanto a cabeça de uma vez. Como é que ele


sabe que é justamente isso que eu estava pensando?
Porque é assim que as coisas funcionam em Monte
das Pedras. Cansei de ver os amigos de Rick
falando que queriam mulheres decididas, e logo
depois chamando qualquer uma que tivesse
coragem de chegar neles e falar o que queria de
vagabunda. Mulher que só serve para pegar, não
para levar para casa. Na verdade, cansei de ouvir
Rick falar isso para mim – que eu tinha que parar
de agir como uma vagabunda qualquer, sendo que
era uma moça de boa família.
— Está lendo a minha mente?
Alexandre balança a cabeça, ainda com aquele
sorriso estranho e olhar sério.
— Ninguém consegue ler mentes, no sentido
que você está falando. Mas isso era óbvio. Já estou
em Monte das Pedras há tempo suficiente para
entender como as coisas funcionam por aqui. E
antes de vir para cá passei mais tempo com
humanos que com o Outro Mundo. Esse tipo de
coisa? Julgar alguém por saber o que quer? Não sou
assim.
Engulo em seco. Já notei que ele não é assim,
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mas se Alexandre está fazendo questão de deixar


isso claro, acho que Paula falou um pouco demais
para ele sobre meu namoro com Rick e as
discussões no sebo. Não sei se queria que ele
soubesse disso. Nem queria que essa conversa
estivesse fazendo me lembrar de Rick. Quero
apagar ele da minha mente.
E quase queria que Alexandre tivesse tomado a
decisão. Que tivesse entrado no quarto, me beijado
e me jogado na cama. Não ia reclamar. E seria
muito mais fácil. Ver que ele está se preocupando
comigo, de verdade, não só agindo da forma que
vai ser mais conveniente para ele... Droga. Camila
estava certa.
Respiro fundo e sorrio, girando a cadeira para
ficar de frente para Alexandre.
— E você não precisa ter pressa mesmo, não é?
Se é praticamente imortal, alguns meses não devem
ser nada...
Ele ri e se levanta, antes de estender uma mão
para mim.
— Eu posso esperar alguns meses. Preferia não
esperar tudo isso, mas se for assim que quer... —
Ele sorri e desta vez não tem nenhum sinal de
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seriedade no seu olhar. Sorrio em resposta e me


levanto quando ele me puxa. — Mas não sou
imortal. Nem perto disso.
Levanto as sobrancelhas.
— Algumas centenas de anos mais velho que
eu, então?
Ele vai na direção de uma das janelas, sem
soltar minha mão, e abre a porta que dá para a
sacada. Aqui, as sacadas são pequenas: só um
espaço estreito na frente de cada uma das janelas,
cercado por um parapeito branco, de cimento. Nem
me surpreendo quando ele sai e se encosta no
parapeito. Paro apoiada no batente da porta.
— Isso é um interrogatório?
— Nada mais justo, se você estava perguntando
sobre mim para Paula desde sabe-se lá quando. —
Cruzo os braços. — E então?
— Desde a segunda ou terceira vez que te vi no
sebo.
Balanço a cabeça, sem ter certeza do que ouvi.
Esse tempo todo? Que motivo ele podia ter para
perguntar sobre mim? Nós nunca trocamos mais
que meia dúzia de palavras antes do dia que mostrei
as ilustrações para ele.
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E não foi isso que perguntei.


Estreito os olhos e Alexandre ri.
— Na verdade, sou pouco mais velho que você.
Vinte e oito anos, se faz questão de saber.
Quatro anos mais velho que eu, então. Isso
definitivamente é uma surpresa. Eu já estava
criando toda essa história de que o casarão sempre
foi de Alexandre, desde o começo, e que ele ficou
afastado para ninguém que convivia com ele
perceber que não envelhecia ou algo assim. Certo,
menos livros de vampiros para mim.
Mas...
— Eu estou sendo indiscreta. Não precisa
responder. — Paro para ver se ele vai falar alguma
coisa e continuo quando Alexandre só levanta uma
sobrancelha. — Mas como é que, com vinte e oito
anos, você teve dinheiro para comprar o casarão e
essa propriedade enorme? A menos que seja
alguma herança de família ou algo assim, você teria
que ser podre de rico. Programadores ganham bem,
mas acho que não tão bem assim.
Ele toma impulso e se senta no parapeito.
Louco. Estamos no terceiro andar e esse parapeito
não é dos mais largos. Posso não ter medo de altura
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para valer, mas nunca que faria uma coisa dessas.


Alexandre estica uma mão para mim.
Cruzo os braços de novo e balanço a cabeça.
— Nem em sonho que eu vou chegar perto de
você enquanto está sentado aí. Vai que eu te
desequilibro?
Ele ri e se inclina para a frente até conseguir
segurar meu braço e me puxar. Se a sacada fosse
um pouco menos estreita...
— Sou meio metamorfo, esqueceu? Posso não
ser um felino, mas essa altura não é nada, mesmo
que conseguisse me desequilibrar.
Respiro fundo e vou. Alexandre passa um braço
ao redor da minha cintura e me puxa até que estou
entre suas pernas, com as costas contra o seu peito.
Quase fecho os olhos quando sinto o calor dele me
cercando de novo. Eu realmente posso me
acostumar com isso aqui, e não seria nada mal.
— Eu não comprei o casarão, nem conseguiria,
se fosse o caso — Alexandre começa, me apertando
por um instante. — Seu chute foi certo, é uma
herança de família. Do lado do meu pai, antes que
pergunte. A família é antiga.

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Para ser dona de um casarão desses, a família


tem que ser antiga e mais do que tradicional. Não
me esqueci que ele se recusou a falar sobre o pai
antes, quando perguntei o que ele era. Mas também
notei como ele está fazendo um esforço para
parecer casual, agora. Não é preciso ser um gênio
para entender que Alexandre não quer falar sobre
esse lado da família, e eu sei o suficiente sobre
famílias complicadas para não insistir.
Só não sei sobre o que falar. Queria perguntar
mais sobre o casarão, mas isso só vai levar de volta
para o assunto da família do pai dele.
— Passei o link do seu portfolio para o pessoal
que eu conheço ontem. Pelo que um deles falou, é
possível que uma ou duas pessoas pelo menos
entrem em contato com você — Alexandre fala.
É, ele realmente não quer falar sobre sua
família.
E alguém entrar em contato é bem diferente de
fechar um trabalho, mas já é mais do que eu
consegui sozinha.
— Obrigada.
Sinto o movimento quando ele assente, mas
Alexandre não responde.
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E esse é um bom assunto.


Me afasto dele e paro ao seu lado, apoiando um
braço no parapeito.
— E como é que um meio metamorfo virou
programador de jogos?
— Do mesmo jeito que os outros metamorfos e
fey. — Ele se vira para mim, sorrindo.
Estreito os olhos e Alexandre ri.
— No meu caso, foi sorte e contatos. Quando
comecei a me interessar pela área Ivan falou com
alguns dos seus conhecidos, que me arrumaram
uma vaga como estagiário. — Ele dá de ombros. —
Era um emprego que me dava mais liberdade que
qualquer outra coisa que pudesse conseguir, então
fiz de tudo para ser contratado e continuar na área.
— Ivan? O mesmo Ivan...
Alexandre assente.
— O mesmo Ivan que é o alfa dos lobos nesse
território. Passei alguns anos com a matilha dele,
quando estava na faculdade.
Faz sentido. Ele falou que sua mãe tinha sido
amiga da mãe de Camila, então é quase óbvio que
tenha crescido com a matilha. Mas ele foi bem
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específico, falando que passou só alguns anos com


ele.
Suspiro. Quero fazer um monte de perguntas,
mas todas vão parar no único assunto que ele já
deixou claro que não quer falar: a família do lado
do seu pai. Porque pela forma como ele disse isso
sobre a matilha, tenho a impressão de que ele só
passou os anos da faculdade com eles. Então, onde
estava no resto do tempo? Com a família do seu
pai? Tento imaginar uma “matilha” de dragões,
mas não consigo. Acho que dragões seriam
solitários.
— Posso te ver? Como lobo?
Só percebo o que falei quando Alexandre
levanta as sobrancelhas. Acho que ele não esperava
por isso.
— Por quê?
Dou de ombros.
— Curiosidade. Já vi quase todo mundo aqui se
transformando, então...
Ele solta o ar com força e desce do parapeito, se
virando para me encarar.
— Tem certeza? Eu não quero te assustar. Você

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viu os outros lobos, mas eu não sou igual a eles.


É a minha vez de levantar as sobrancelhas.
— Já é meio tarde demais para o lobo mau
conseguir me assustar. — Sorrio. — E é óbvio que
você não é igual a eles, ou não seria o chefão da
coisa toda.
Se bem que isso aqui não tem nada de
Chapeuzinho Vermelho, mas foi a primeira
resposta que me veio à cabeça.
Ele me encara por alguns segundos e então
assente. Um brilho amarelado aparece ao seu redor
e no instante seguinte estou encarando um lobo
enorme. Acho que entendi por que ele estava com
medo de me assustar. Ele é gigante. Quase o dobro
do tamanho dos outros lobos que vi. Seus ombros
dão mais ou menos na altura do meu peito e ele é
cinzento, com pelos mais escuros no alto da cabeça
e nas costas, e olhos escuros com um tom
esverdeado. O pelo no seu focinho e descendo pelas
patas da frente tem umas tantas falhas,
provavelmente por causa das suas cicatrizes. Por
algum motivo, pensei que elas nem fossem
aparecer quando ele se transformasse.
O lobo gigante que é Alexandre solta um ganido
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e então dá um passo atrás. Será que ele realmente


está achando que me assustou? Lobos não deveriam
ter olfato apurado? Farejar quando as pessoas estão
com medo e coisa assim?
Estico uma mão na sua direção.
— Posso te tocar?
Ele vem na minha direção e bate a cabeça na
minha mão.
— Tem certeza que não é parte felino? Porque
você está igualzinho a um gato pedindo atenção.
Alexandre mostra os dentes. Ui, que dentes
grandes você tem...
Tá, melhor mudar de história logo.
Passo a mão na sua cabeça e coço atrás das suas
orelhas. Alexandre se aproxima mais, me forçando
a me virar. Ele pode ser um lobo, mas realmente
está agindo como um gato. E um gato exigente,
ainda por cima.
Bato as costas na porta da sacada e estreito os
olhos. Não, acho que ele não estava agindo como
um gato. Estava agindo como um lobo levando sua
caça para onde quer.
O brilho amarelado aparece de novo e no
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instante seguinte Alexandre está na minha frente,


com um braço de cada lado da minha cabeça e algo
no olhar que já está se tornando familiar.
— Não está com medo? — Ele pergunta,
sorrindo.
Coloco uma mão no seu rosto, traçando seu
lábio inferior com um dedo. Alexandre se aproxima
mais, até que sinto cada centímetro do seu corpo se
colando ao meu.
— Morrendo de medo — murmuro. — E o que
é que você vai fazer?
Ele ri em voz baixa, daquele jeito que faz meu
corpo todo se arrepiar, antes de segurar minha nuca
e me beijar.

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CAPÍTULO VINTE E Q U AT R O

L AURA
EU ACHO QUE TEM ALGUÉM BATENDO NA PORTA. POR
que é que alguém está batendo na porta do meu
quarto de madrugada? Porque levando em conta o
horário que estou acordando todo dia, só pode ser
madrugada. Me viro na cama e abro os olhos.
Já é de manhã.
Encaro as cortinas fechadas, vendo a luz
passando por baixo delas. Desde quando eu durmo
tanto assim?
— Laura, acooooooorda! — Escuto Lavínia
falar do outro lado da porta, antes de bater de novo.
O que ela quer a essa hora? Ou melhor, o que
deu na cabeça dela pra ela vir me acordar?
— Me deixa dormir!

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— Laura!
— Eu te odeio.
— Laura, abre essa porta logo!
Como que se mata uma banshee? Preciso
pesquisar, porque com certeza tem algum jeito.
Jogo a coberta para o lado, me levanto e vou até
a porta. Lavínia está com a mão levantada quando
eu a abro, pronta para bater de novo. Que desespero
todo é esse?
— Finalmente! — Ela se abaixa e pega uma
bandeja no chão ao lado da porta. — Trouxe café.
Anda.
Quando vejo ela já está dentro do quarto,
colocando a bandeja em cima da mesa. Sem
escapatória. Certo.
— Como que se mata uma banshee?
— Essa aqui, de curiosidade. — Ela aponta para
a garrafa de café na bandeja. — Vou ter que
colocar café para você?
Reviro os olhos. Sem escapatória. Quando foi
que eu achei que era uma boa ideia ser amiga das
pessoas do casarão mesmo?
Coloco café na xícara que ela trouxe, reparando
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que tem alguns pedaços de bolo na bandeja


também. Lavínia definitivamente não quer que eu
desça e eu estou com sono demais para perguntar o
motivo. Tomo metade da xícara de café antes de
começar a me sentir gente. Não deveria estar tão
morta assim. Não costumo dormir até tão tarde, e
não tenho nem a desculpa de dizer que fiquei
acordada até tarde ontem. Não que isso fosse ter
sido ruim.
E isso é o suficiente para eu terminar de acordar.
Alexandre realmente veio atrás de mim, de
novo. E ele realmente se transformou. E a gente
realmente quase terminou a noite na cama. Ainda
estou querendo esganar ele por causa da conversa
de “não querer correr porque tudo isso é muito
novo para mim”, mas ao mesmo tempo não consigo
deixar de pensar se não é exatamente isso que ele
quer. Eu não consigo tirar Alexandre da cabeça,
não consigo parar de imaginar como vai ser, entre
nós. Não duvido nada que ele esteja fazendo isso de
propósito. E também não consigo evitar uma certa
satisfação por ele estar insistindo em não correr.
— Ótimo, acordou!
Me viro para Lavínia. Não vou desperdiçar o
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café jogando a xícara na cara dela, mas admito que


a ideia passou pela minha cabeça. Eu estava
dormindo. Tem coisas que não se faz, acordar
alguém sem ser por uma emergência é uma delas.
— O que você quer? — Resmungo.
Lavínia puxa uma cadeira e se senta. Solto o ar
pela boca, com força, antes de desabar na minha
cadeira. Nem para me deixar voltar a dormir, droga.
— Me conta tudo!
Abaixo a xícara de café e olho para ela.
— Não se faça de desentendida, Laura. Todo
mundo reparou nessas suas conversinhas com
Alexandre. Quer dizer, não só conversas, não é?
Aline estava voando ontem e viu vocês na sacada.
— Ela sorri.
Ah, claro. Bando de fofoqueiros tagarelas.
Devia ter esperado isso.
Reviro os olhos e pego um pedaço de bolo,
ignorando Lavínia. Ela me acordou. Agora me
deixe pelo menos comer primeiro.
— Tá, entendi, pode comer primeiro... Mas
come depressa porque senão Alexandre vai voltar.
Isso explica... Ele comentou que tinha uma
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reunião com o príncipe fey ou algo assim, e que ia


precisar ir em BH de manhã. Eu ainda quero saber
como ele ia fazer essa viagem de ida e volta tão
depressa, mas isso nem era a coisa mais estranha
aqui.
E eu não quero dar detalhes de nada para
Lavínia.
Levanto as sobrancelhas.
— Ah, sim, você está fazendo a mesmíssima
coisa que ele faz, então.
Lavínia dá de ombros.
— É claro. Se ele pode aproveitar quando
nenhum dos metamorfos está em casa para vir
conversar com você, eu também posso aproveitar
quando ele saiu de casa para vir perguntar
exatamente o que está rolando. Especialmente
depois que ele deixou claro que não quer ninguém
passando dos limites com as brincadeiras, porque
não quer que você se assuste.
Paro de mastigar. Ele fez isso? Tá, isso explica
porque ninguém falou nada ontem no almoço,
mas...
Alexandre realmente está preocupado assim
sobre não me assustar?
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E, aliás...
— Claro. Justíssimo você aproveitar que ele não
está aqui — comento e Lavínia sorri. — E também
é justíssimo eu aproveitar que você está aqui para
desenterrar mais informações sobre Alexandre,
sabe.
O sorriso congela no rosto de Lavínia e eu dou
uma risada. Não vou perder essa oportunidade de
jeito nenhum.
— Não tenho tanta certeza... — ela começa.
— Ele estava perguntando de mim para Paula
praticamente desde que comecei a trabalhar no sebo
— interrompo. — Acho que é bem justo, viu. Troca
de informações.
Lavínia abaixa a cabeça e resmunga alguma
coisa em voz baixa. Nem tento entender, só tomo
mais um gole de café. Tenho certeza que ela vai me
responder em troca das fofocas que está querendo.
— Tem coisas que eu não posso contar — ela
avisa. — Não é que são segredos, mas... É pessoal
demais.
Nenhuma surpresa nisso. Quanto tempo faz
mesmo que perguntei para Rodrigo o que
Alexandre é e ele não respondeu? Se nem a pessoa
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mais língua solta do casarão me contou, ninguém


vai contar. E tentar descobrir isso e a história da
família de Alexandre através de outra pessoa... Sei
lá, eu não faria isso. Por mais que esteja curiosa,
seria uma invasão de privacidade. Como Lavínia
falou, é pessoal. Se Alexandre quiser que eu saiba,
ele vai me contar.
— Imaginei. — E já tenho outras perguntas na
fila aqui. — É verdade que ele tem só vinte e oito
anos?
Lavínia estreita os olhos.
— Eu primeiro.
— Não mesmo. Você já me acordou. Me
responde primeiro e depois te dou as fofocas.
Ela faz um ruído baixo que é quase um rosnado.
Penso em zoar e falar que ela não é uma
metamorfa, mas seguro a língua. Meu café é
prioridade. Meu café e minhas respostas, na
verdade.
— É melhor não ter uma lista infinita de
perguntas, porque se Alexandre voltar antes de
você me contar o que aconteceu eu vou ficar muito
puta.
Reviro os olhos. Quanto drama.
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— Não sei a idade certa de Alexandre, mas acho


que é por aí mesmo — ela conta.
Vinte e oito anos, dono de um casarão antigo em
uma propriedade enorme, sendo o alfa de um bando
que tem pessoas que estão vivas desde sabe-se lá
quando, desafiando o Conselho...
— Como é que isso aqui aconteceu? —
Gesticulo indicando a casa. — O bando, como
estão separados do restante do Outro Mundo, como
todos seguem Alexandre, até Ryan...
— E é óbvio que você não ia perguntar nada
fácil de responder. — Ela bufa e se inclina para trás
na cadeira. — Foi meio por acaso, na verdade. Só
aconteceu. Alexandre sempre teve problemas com
o Conselho, pelo que sei. Na primeira chance que
teve, veio para o casarão... Acho que seu pai já
tinha reformado aqui, ou algo assim. Ele já era
amigo de Paula há um bom tempo, na época, e ela
resolveu vir com ele. E foi aí que as coisas ficaram
mais sérias. Paula é uma das bruxas mais fortes no
país. Se não odiasse política, seria parte do
Conselho.
Oi?
— Espera, o Conselho? O mesmo Conselho que
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controla o Outro Mundo na região toda?


Lavínia começa a tamborilar os dedos na mesa.
— Provavelmente. Na verdade, existem vários
Conselhos. O dos metamorfos, o dos bruxos, os
conselhos locais e os regionais. Não sei detalhes de
como a hierarquia dos bruxos funciona, mas sei que
o conselho deles sempre tem duas pessoas que são
os “presidentes” e têm a palavra final. A vidente
Lílian é uma dessas pessoas no Conselho dos
bruxos local. Paula seria a outra pessoa, se não
tivesse deixado tudo para trás e vindo para cá com
Alexandre. Quando ela se afastou dos bruxos, todo
mundo ficou sabendo. Rodrigo e Aline vieram para
cá logo em seguida.
Paula, Rodrigo e Aline. Isso faz sentido,
levando em conta como eles são praticamente
inseparáveis. Isso me lembra de outra coisa.
— Qual é a história dos três?
— Você quer que eu explique sobre Alexandre e
o bando ou não? E não faço a menor ideia, só sei
que Aline e Rodrigo já estavam juntos desde antes
de Alexandre formar o bando e que eles e Paula já
eram amigos bem próximos antes de virem para cá.
Certo então.
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— Acho que se Alexandre tivesse vindo para cá


sozinho, ou com pessoas que não fossem tão
conhecidas como Paula já era, o Conselho teria
ignorado. Mas óbvio que mandaram alguém para
tentar “colocar ordem” nas coisas. — Ela faz aspas
com os dedos e então dá de ombros. — Não faço
ideia do que aconteceu, só sei que não deu certo e o
Conselho ficou puto. Acho que foi nessa época que
Ryan e os outros, os mais velhos, decidiram vir
para cá.
— E se o Conselho já não estava gostando da
coisa antes, aposto que gostaram menos ainda
disso.
Lavínia assente.
— Foi aí que o bando realmente começou a se
formar. Eu vim para cá nessa época. Alexandre
mandava, claro, porque a casa é dele, mas ele não
era nosso alfa, por assim dizer. E o Conselho sabia
disso. Eles começaram com a história de que não
podiam aceitar isto aqui, porque Alexandre não
conseguiria nos controlar caso alguém começasse a
ignorar todas as regras, que éramos uma ameaça
para a estabilidade do Outro Mundo...
Reviro os olhos.
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— Exatamente — ela continua. — O Conselho


decidiu acabar com essa loucura e mandou seu
pessoal nos atacar. As ordens eram para nos
prender e nos devolver às respectivas autoridades,
se possível, e nos matar se não fosse possível.
Tá. Por essa eu não esperava. Tudo bem que
agora que ela falou, é meio óbvio que o Conselho
faria isso, mas mesmo assim...
— Nós estávamos prontos para lutar. Acho que
já comentaram isso com você, não é? Ninguém
aqui tem paciência para política ou quer se
envolver com isso. Todos nós temos nossos
motivos para querer estar fora da hierarquia
normal. — Lavínia dá de ombros e encara a janela.
— Alexandre não nos deixou lutar. Foi a primeira
vez que ele realmente deu uma ordem para todos
nós. Mandou ficarmos dentro da casa e saiu
sozinho. Eu não sei como ele fez isso, acho que
ninguém aqui sabe. O fato é que Alexandre,
sozinho, lutou contra o pessoal do Conselho, matou
dois vampiros, um sidhe e feriu gravemente outros
tantos. Depois disso, aceitaram negociar com
Alexandre e nos deixar manter nossa
independência. E ele ganhou nossa lealdade,
porque teria sido muito mais fácil deixar todos nós
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lutarmos.
Matou dois vampiros, um sidhe, e feriu mais sei
lá quantos gravemente? Sozinho? Eu ouvi isso
mesmo? Meu Deus...
E eu continuo pensando que ele só pode ser
meio dragão para ter conseguido fazer isso.
— O Conselho...
Lavínia se vira para mim.
— O Conselho teria aceitado manter nossa
independência da mesma forma, se tivéssemos
lutado juntos. A preocupação deles era com sermos
uma ameaça. Teríamos provado que estávamos
trabalhando juntos, seria o suficiente. Mas
Alexandre assumiu a responsabilidade e foi
sozinho, mesmo quando dissemos que era loucura.
— Ela sorri. — E provou para todos nós que ele é
forte o suficiente para nos manter sob controle, por
bem ou por mal.
Assinto, sem ter certeza de como reagir. Sempre
imaginei que Alexandre fosse mais forte que todos
os outros. Isso é óbvio pela forma como agem ao
redor dele. E não tem como me esquecer de como
todos fugiram da sala, no dia do jantar com os
membros do Conselho. Mas ouvir Lavínia contando
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assim... Puta merda.


— E essa é a história. Minha vez — Lavínia fala
e começa a bater com os dedos na mesa de novo.
— Conta tudo!

···
A LEXANDRE
ENCARO A TELA DO COMPUTADOR, SEM REALMENTE VER
nada ali. Mandei as alterações de madrugada, o que
quer dizer que a qualquer hora agora vão me dar
um retorno sobre elas. Não que eu esteja em
condições de pensar a respeito disso. A ida para
BH, mais cedo, não deu o resultado que eu
esperava. Continuamos sem saber nada.
Não. Pelo menos tenho certeza de que Avés não
está envolvido com o que quer que esteja
acontecendo, e que qualquer fey nos atacando não
está fazendo isso por ordens dele. Eu só não sei o
que é mais preocupante: saber que estou lidando
com feys dispostos a desobedecer aos príncipes
sidhe, ou saber que temos no mínimo um fey e um
bruxo trabalhando juntos. Isso não é normal. Um
grupo misto, de qualquer forma, é uma anomalia
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dentro do Outro Mundo. Mas não consigo imaginar


o que mesmo um grupo misto iria querer conosco.
Olho para o computador de novo, batendo os
dedos na mesa quando vejo meu supervisor online
no Skype. Preciso esperar um retorno sobre as
alterações, mas estar aqui é a última coisa que
quero fazer. Não que tenha opção.
Quando cheguei no casarão, minha vontade era
ter ido atrás de Laura. Mas ela estava trabalhando e
eu conheço os horários do meu supervisor. Além
disso, Rodrigo me contou sobre a conversa que ele
ouviu ontem, quando eu estava trancado aqui no
escritório. Não me surpreende nem um pouco que
Laura tenha pensado naquilo – se aproximar de
mim para conseguir que eu a deixasse ir. Era a
única opção viável que ela tinha, se tivesse
coragem de ir até o fim. Talvez eu estivesse me
iludindo, mas não acho que ela conseguiria. E, de
acordo com Rodrigo, ela falou que não fez isso.
E ele também me contou que ela falou que
“estava interessada no cara que a prendeu”. Suspiro
e giro minha cadeira, olhando pela janela. Eu sei
em que quero acreditar e nem posso sonhar em
deixar Laura ir, considerando tudo o que está

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acontecendo. Mas também não vou dar uma


oportunidade fácil, se ela voltar a pensar em me
manipular. Então não vou atrás dela, mesmo
sabendo que Laura não se sente à vontade indo
atrás de alguém. Não importa se é o que eu quero
fazer – manter o bando em segurança, Laura
inclusa, vem em primeiro lugar.
Me viro de volta para o computador quando
escuto a notificação de chamada. Se continuarmos
a ter problemas assim, vou começar a pensar
seriamente em chamar um leprechaun para morar
aqui. Vai ser mais fácil do que tentar pensar no que
está acontecendo e manter o trabalho em dia.
Coloco o headset e aceito a chamada. Por algum
motivo, meu supervisor sempre prefere resolver
tudo por chamada, mesmo que seja bem mais
prático mandar um email. Já me acostumei, mas
isso não quer dizer que goste, especialmente porque
tenho que me concentrar o suficiente para
conversar em inglês.
Nem tento prestar atenção enquanto ele me diz
que está tudo certo nas alterações e começa a falar
sobre os acréscimos que preciso entregar em um
mês. Já tenho todos os detalhes sobre esse projeto

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no meu email e também tenho tempo para conferir


qualquer coisa. O que quer dizer que, pelo menos
por alguns dias, posso me concentrar no que está
acontecendo no casarão, sem me preocupar com
trabalho.
Me despeço dizendo que já vou começar a
mexer no novo projeto, o que é a forma mais fácil
de encerrar qualquer assunto. Esses acréscimos vão
ser algo mais simples que as alterações que
entreguei de madrugada, então não estou
preocupado com o prazo. Fecho o Skype e tiro o
headset, balançando a cabeça.
Paro no meio do movimento. Laura está parada
na porta. Eu não esperava isso. Depois de como ela
me falou que não estava acostumada a ir atrás de
alguém, hesitando e desviando o olhar como se
aquilo fosse algo errado, não imaginei que ela
fosse subir. Tudo bem que tinha decidido que não
iria atrás dela, mas pensei que se ela fosse se
aproximar, seria quando estivéssemos na cozinha
ou algo assim, não no meu escritório.
Ela sorri.
— Um meio metamorfo não tem sentidos
aguçados, não?
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Balanço a cabeça e sorrio de volta, colocando o


headset na mesa. Ter, temos. Isso não quer dizer
que não nos distraímos ou pensamos que estamos
imaginando coisas. Não que eu vá falar isso.
— Todos nós aprendemos a bloquear uma parte
do que percebemos a mais, ou vamos ficar loucos.
Imagine se eu fosse prestar atenção em todas as
conversas aqui dentro, ou se sentisse todos os
cheiros quando vou na cidade.
Ela faz uma careta.
— Mas e Rodrigo e minhas músicas, então?
Rio. Claro que ela ia pensar nisso. Claro. E eu
me recuso a ficar irritado por ela se lembrar de
Rodrigo na mesma hora. Isso não importa – Laura
escolheu vir aqui. Cruzo os braços e me inclino
para trás na cadeira.
— Implicância musical. Ele é chato nesse
assunto. Se fizesse um esforço, conseguiria ignorar.
— Espero que continue sem fazer esforço — ela
resmunga.
Dou uma gargalhada. Acho que todos no
casarão, até os antigos, concordariam com ela. Essa
história da playlist está mais engraçada do que
Laura imagina. Ela não consegue ouvir os
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resmungos de Rodrigo, de manhã.


E eu duvido que Laura tenha subido para falar
sobre isso.
— Está precisando de alguma coisa? —
Pergunto.
Ela levanta as sobrancelhas.
— Ah, não, só vim ver a vista da sua janela
mesmo.
Não me esqueci que falei isso para Laura,
quando ela veio aqui a primeira vez. Nem de como
aquela “visita” poderia ter terminado. Sorrio. Ela se
vira para fechar a porta e para com a mão na
maçaneta.
— Eu devia te deixar trabalhar.
Respiro fundo. Como se eu fosse conseguir
trabalhar. Já estava difícil antes que ela aparecesse
aqui, agora, então... Balanço a cabeça. Se ela se
arrependeu, é melhor ser mais direta que isso.
— Fugindo?
Ela olha para mim e cruza os braços. Não, Laura
não está fugindo. Sorrio de novo. A incerteza que
estou vendo agora não é de alguém que quer fugir.
É de alguém que não sabe o que fazer, mas sabe o
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que quer.
Laura dá de ombros.
— Não quero atrapalhar. Você tem o seu
trabalho. Mais de um trabalho, na verdade, se eu
levar o bando em conta.
Isso eu entendo. E não é muito diferente do que
eu estava pensando, logo antes da ligação.
— E se alguma vez eu realmente não puder
parar o que estou fazendo, eu vou avisar. E espero
que você faça o mesmo.
Ela assente, mas não está olhando para mim.
Suspiro. Conhecendo as histórias sobre o
desperdício de oxigênio que é o seu ex, não é difícil
imaginar o motivo.
Me levanto. Laura olha para mim, mas não fala
nada. Paro na sua frente e seguro seu rosto. Não sei
se algum dia vou me acostumar com como ela não
tem medo, como se tivesse certeza absoluta de que
eu nunca vou fazer nada contra ela.
— Nós conversamos, Laura. Você tem o seu
trabalho e o seu espaço, e eu também tenho o meu.
E mesmo que a questão não seja essa, vai ser
resolvida do mesmo jeito. Eu não vou ignorar o que
você tiver a dizer.
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Ela suspira e faz que sim quando solto seu rosto,


mas a forma como ela desvia o olhar me faz ter
certeza de que ela não acreditou. Sem problemas,
só quer dizer que vou ter que mostrar que isso é
verdade. Não estou com pressa.
Estico o braço e empurro a porta até ela se
fechar completamente. Laura fica no mesmo lugar,
com nossos corpos quase se tocando. Sorrio.
Apesar de tudo, ela está aqui.
— Então você subiu por minha causa —
murmuro e coloco uma mecha de cabelo atrás da
sua orelha.
Ela dá de ombros, passando a língua pelos
lábios.
— Subi. Já você gosta de se esconder aqui em
cima, achei que ia ser mais fácil.
Dou mais um passo para a frente, ainda com
uma mão na porta. Laura recua, sem desviar o olhar
de mim, até estar encostada nela. Se não fosse pela
forma como ela está me encarando, até pensaria
que está fugindo, mas não. Isso é outra coisa.
— Me esconder? — Repito.
Laura assente.

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— Se esconder. Você sempre tenta se manter


afastado, só observando os outros...
E não pensei que ela notaria aquilo. Me
aproximo dela, até que nossos corpos estão quase
se tocando de novo, mas desta vez ela não tem para
onde recuar.
— Estava me vigiando?
Ela fica vermelha e respira fundo antes de
colocar a mão no meu ombro e começar a brincar
com a gola da minha camisa. Respiro fundo. Não
vou avançar nela, não assim.
— Talvez.
Talvez. Nesse tom de voz, isso é melhor que um
“sim”. Respiro fundo de novo quando Laura passa
os dedos no meu pescoço. Não devia ter respirado
fundo. Agora é impossível ignorar o cheiro dela.
Faço um esforço para sorrir.
— Desde quando?
— Não sei.
Não duvido disso. Eu só sei desde quando estou
observando Laura porque Paula percebeu e não
parou de fazer brincadeiras com isso, mesmo
quando era só curiosidade sobre a mulher humana
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que por algum motivo me acalmava quando estava


por perto.
Estreito os olhos e coloco a outra mão na porta,
prendendo Laura entre meus braços. Ela engole em
seco e passa a língua pelos lábios, de novo.
Contenho um grunhido. Quero puxá-la para perto,
mas também não quero que ela se assuste. Isso...
Respiro fundo de novo e fecho os olhos.
— Se você está aqui, acho que isso quer dizer
que tomou uma decisão.
Abro os olhos em tempo de ver Laura assentir,
ao mesmo tempo em que ela aperta meu ombro.
E eu quero aceitar isso, mas preciso ouvir ela
dizer que realmente é isso o que quer.
— Tem certeza?
— Tenho.
Respiro fundo e fecho os olhos por um instante,
antes de me afastar e segurar a mão de Laura. Ela
não fala nada, só obedece quando a puxo o
suficiente para conseguir abrir a porta e saio para o
corredor, sem soltar sua mão. Se não fizer isso, não
vou me importar se o que está atrás de Laura é uma
porta, minha mesa ou até mesmo o chão, e não
quero isso dessa vez. Não a primeira vez.
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Quem estou tentando enganar? Se meu quarto


não fosse bem ao lado eu não ia nem pensar nisso.
Paro na frente do meu quarto e me viro para
Laura, que estreita os olhos.
— Se me perguntar se tenho certeza mais uma
vez, vou começar a pensar que você não tem
certeza — ela fala.
Balanço a cabeça, rindo, antes de abrir a porta
do quarto e puxar Laura para dentro.

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CAPÍTULO VINTE E CINCO

L AURA
O BARULHO DA PORTA SE FECHANDO PARECE MAIS ALTO
do que realmente é. Respiro fundo de novo quando
Alexandre me solta e vai na direção das janelas.
Decidir vir atrás de Alexandre quando Aline me
avisou que ele tinha chegado não foi difícil, mas
agora que estou aqui... Não é que estou com medo,
exatamente, mas é só que... E se depois Alexandre
não quiser mais nada, porque já conseguiu o que
queria?
Continuo no mesmo lugar enquanto ele fecha as
cortinas. Para quê isso...? Ah. Metamorfos. Bando
de curiosos. Melhor fechar a cortina sim. Estico a
mão para o interruptor perto da porta e acendo a
luz.
Não quero pensar que Alexandre faria algo
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daquele tipo, de só querer o que não pode ter, e isso


nem passou pela minha cabeça antes, mas...
Sem “mas”. Eu não vou acreditar que ele faria
isso. Isso é coisa da minha cabeça, culpa de anos
ouvindo minha mãe e da convivência com Rick.
Alexandre não é assim. Não me esqueci de como
ele falou aqueles “eu não quero que você morra”,
depois do jantar. Aquilo não foi coisa de alguém
que só quer sexo. E eu me recuso a continuar
deixando as merdas que ouvi em Monte das Pedras
decidirem o que eu faço ou não.
Alexandre para na minha frente.
— Você está preocupada.
E acho que vou ter que me acostumar com o
fato de que não dá para esconder nada de um meio-
metamorfo. Pensando bem, isso não é ruim.
Seguro sua mão e a coloco na minha cintura.
Mesmo através da minha blusa, consigo sentir o
calor dele. E isso é bom, é certo. O que quer que
aconteça depois... Eu quero isso. Cansei de ter
medo.
— Estou — respondo.
Alexandre me encara e aperta minha cintura,
levantando uma sobrancelha. Respiro fundo e
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levanto a mão, passando os dedos pelo seu pescoço


antes de segurar sua nuca.
— Me faça esquecer.
Ele ri daquela forma rouca que é mais uma
vibração que um som e me puxa para perto. Sinto
seu calor me envolvendo e é como se até mesmo
aquela sensação de violência contida ao redor dele
se abrisse para me deixar passar. Estou no olho da
tempestade. Mas não é só isso que eu quero.
Alexandre me beija, e dessa vez não tem nada
de delicado ou de hesitante. Me seguro nele
enquanto sua língua me invade, sem mais nenhum
tipo de controle. Sei que estou respondendo do
mesmo jeito, me agarrando a ele como se mais
nada no mundo importasse – e não importa. Quero
esquecer as preocupações, as coisas que ouvi na
cidade, mas disso aqui faço questão de me lembrar.
Isso é certo, é o que quero fazer há não sei quanto
tempo. E eu nunca vou me esquecer da sensação
das mãos de Alexandre entrando por debaixo da
minha blusa, quentes contra minha pele, quase
como se ele estivesse me marcando. E não
reclamaria se estivesse.
Ele me empurra até que bato as costas na
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parede. Gemo, sentindo seu corpo me apertando,


sua ereção contra mim. Me aperto ainda mais
contra ele, me segurando nas suas costas, sem
soltar sua boca. Isso é o que estava faltando esse
tempo todo.
Alexandre se afasta, ofegante, e grunhe alguma
coisa que não entendo antes de avançar para mim
de novo. Passo uma perna ao redor do seu quadril,
o prendendo no lugar, enquanto mordo seu lábio de
leve. Quero mais, muito mais disso. Me aperto
contra ele de uma vez e desço a mão pelo seu
corpo, até parar no cós da sua calça.
Alexandre segura minha mão de uma vez e se
afasta. Olho para ele, sem abaixar a perna que
coloquei ao redor do seu quadril. Ele não vai parar
agora. Não mesmo.
— Não na parede. Não dessa vez — ele fala, e
sua voz já está tão rouca que é quase um rosnado.
— Eu não... — começo.
Ele rosna alguma coisa que não entendo e
balança a cabeça, mas seu olhar está pregado na
minha boca.
— Dessa vez, não — ele repete.
Abaixo a perna. Alexandre dá um passo atrás,
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ainda sem soltar minha mão, e me puxa na direção


da cama, o tempo todo olhando para mim. Um
arrepio me atravessa. Estou trancada no quarto com
o lobo mau. Passo a língua pelos lábios, vendo
como o olhar dele acompanha o movimento. Por
que eu estava com medo do que poderia acontecer,
depois? Não tem como ele estar fingindo isso. Só
não tem.
Não consigo falar nada enquanto Alexandre me
para de frente para a cama e tira minha blusa e
então meu sutiã, antes de me segurar pela cintura e
começar a fazer uma trilha de beijos seguindo a
linha da minha coluna. Gemo baixo, sem querer me
mexer. Ninguém nunca fez isso antes. E eu nunca
pensei que beijos nas minhas costas podiam me
fazer perder a ar assim. Abro e fecho as mãos, sem
saber o que fazer. Isso... Engulo em seco quando
Alexandre sobe as mãos pelo meu corpo, até estar
segurando meus seios, sem parar de beijar minhas
costas. Seguro seus braços. Preciso me segurar em
alguma coisa, qualquer coisa para me lembrar de
que não existe só o calor correndo pelo meu corpo
e os lábios de Alexandre na minha pele.
Ele se levanta lentamente, ainda beijando
minhas costas, e cola seu corpo no meu de novo,
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sem me soltar. Gemo baixo quando sinto sua ereção


contra minha bunda. Alexandre apoia o queixo no
meu ombro e desce uma mão para a minha barriga,
me apertando ainda mais contra ele. Pelo menos ele
também está ofegante.
— Você não tem ideia de há quanto tempo eu
quero fazer isso — Alexandre murmura.
Não tenho. E não consigo pensar em responder
quando ele morde o lóbulo da minha orelha, antes
de beijar meu pescoço e soprar. Inclino a cabeça
para o lado. Ele continua beijando meu pescoço,
chupando e soprando. Mordo o lábio, tentando
conter um gemido, enquanto outro arrepio me
atravessa. Não estava esperando por isso, essa
paciência e a forma como parece que todo o meu
corpo está sensível, porque qualquer toque de
Alexandre, suas mãos passeando pelo meu corpo,
me fazem arder.
Alexandre abre meu short. Seguro seu braço
com mais força ainda e ele dá uma risada baixa
contra o meu pescoço. Isso não é justo... Mas não
vou reclamar.
Ele desce a mão mais um pouco, enfiando os
dedos por baixo da minha calcinha.
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— Quer isso? — Ele pergunta enquanto desce


mais a mão, até...
Ele tira a mão de dentro da minha calcinha.
— Não ouse — resmungo, tentando segurar seu
braço no lugar.
Ele ri e se afasta. Isso é guerra, então. Se ele
quer me provocar...
Puxo meu short e minha calcinha para baixo de
uma vez, antes de me virar para ele. Alexandre para
de rir. Eu ia cruzar os braços, mas a expressão dele
enquanto me encara... Não. Quero que ele continue
olhando assim para mim. Ou melhor, quero que
pare de olhar e faça o que está querendo, porque
não tem outra explicação para o calor do seu olhar.
— Vai ficar parado?
Ele puxa o ar de uma vez, ainda me encarando,
antes de balançar a cabeça e me segurar pela
cintura.
— Você está brincando com fogo — ele
praticamente rosna enquanto aperta nossos corpos
juntos.
Rio e enfio as mãos por baixo da sua camiseta,
passando os dedos de leve pela sua pele, sentindo

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quando ele arrepia e os músculos que se contraem


sob meu toque.
— A graça é essa — respondo antes de morder
seu lábio inferior e puxar.
Alexandre segura meus braços e me empurra
para trás, até que bato as pernas na cama. Ele
continua me empurrando, me segurando pelos
braços até que estou deitada. Estou completamente
nua, deitada na sua cama, com Alexandre me
encarando. Nunca me senti tão exposta na minha
vida, mas também nunca me senti tão bem assim.
Sorrio e levanto as sobrancelhas, abrindo as pernas.
O olhar de Alexandre acompanha o movimento e
vejo quando ele respira fundo.
— Vai ficar parado? — Pergunto de novo.
Ele rosna alguma coisa que não consigo
entender, antes de esticar o braço para o interruptor
perto da cama. Me sento de uma vez e seguro seu
braço. Não. Dessa vez, com ele... Não quero só dois
corpos no escuro. Quero ver Alexandre e o que
estamos fazendo.
— Deixa acesa — falo.
Ele me encara por um instante e abaixa o braço.
O solto e me deito de novo, cruzando os braços
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debaixo da minha cabeça para conseguir ver


melhor. Alexandre respira fundo antes de tirar sua
camiseta, e de repente ele está parecendo tão
incerto quanto eu estava, mais cedo. O que...? As
cicatrizes. É por isso que ele queria apagar a luz.
Como se eu me importasse.
Sustento seu olhar por alguns segundos antes de
descer os olhos pelo seu corpo. Não me esqueci do
que vi aquele dia na cozinha, mas agora é diferente.
Daquela vez, foi um acidente, por assim dizer. Só o
vi sem camisa porque por acaso estava na cozinha
quando ele entrou. Dessa vez, é para mim, e isso
muda tudo.
Alexandre não tem o corpo mega definido, mas
tem aquele começo de tanquinho que agora eu não
consigo parar de encarar. O corpo de alguém que
tem motivo para estar em forma, mas que não vive
em função disso. Perfeito. As cicatrizes descem
pelo seu peito e terminam quase no seu quadril, se
espalhando em linhas menores pelo seu abdome.
Estreito os olhos quando Alexandre continua
parado no lugar. Ele dá aquela risada rouca quando
nossos olhares se encontram de novo e consigo
notar quando relaxa. Ele estava esperando o quê?

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Algum comentário sobre as cicatrizes? Como se eu


já não tivesse visto elas antes.
— E isso está mudando meus planos — ele
murmura.
— Planos?
Alexandre ri de novo e sobe na cama, parando
em cima de mim, com um braço de cada lado da
minha cabeça. Coloco as mãos no seu peito,
descendo devagar, passando as unhas nos seus
mamilos. Ele fecha os olhos e um grunhido escapa.
Repito o que fiz, sem nem tentar esconder meu
sorriso. Ele segura meu pulso.
— Acha que eu não tinha pensado no que ia
fazer, se você me desse meia oportunidade?
Passo a unha no seu mamilo de novo, usando a
mão livre. Ele fecha os olhos e respira fundo.
— E o que você tinha pensado em fazer? —
Pergunto.
Desço a mão pelo seu corpo, sentindo seus
músculos se contraindo sob meu toque. Quero
sentir sua pele na minha, mas ele está fazendo
questão de se segurar alguns centímetros acima de
mim. Estreito os olhos. Alexandre gosta de brincar,
pelo visto. Vou ter que me lembrar disso. Mas
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agora... Eu só quero voltar para o clima de antes de


pedir para deixar a luz acesa.
Ele solta minha mão e abre os olhos. Passo a
língua pelos lábios. Esse olhar... É isso que eu
quero.
— Alexandre?
Ele abaixa a cabeça. Passo os braços ao redor do
seu pescoço quando Alexandre me beija, ainda se
segurando acima de mim. Jogo uma perna ao redor
do seu quadril, sentindo a textura da calça jeans
contra minha pele. Eu quero ele, não a calça. Não
essa distância.
— Paciência... — ele murmura, me soltando.
Estreito os olhos, mas antes de eu conseguir
falar alguma coisa ele está beijando meu pescoço,
fazendo um caminho de beijos até meu ombro, e
então passando pelo meu peito, descendo entre
meus seios. Ele chupa um mamilo e depois o outro,
e depois disso ele pode brincar o tanto que quiser.
O tanto que quiser, porque meu Deus... A trilha de
beijos continua descendo pelo meu corpo, passando
pelo meu umbigo, e mais baixo, até que Alexandre
está ajoelhado no chão e me puxando mais para a
beirada da cama. Me agarro nos lençóis, sentindo
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sua respiração quente contra minha pele.


Alexandre passa dois dedos pela parte interna
das minhas coxas e levanta a cabeça.
— Sabe que consigo sentir seu cheiro? — Ele
fala, rouco. — Não consigo me esquecer dele ou
não prestar atenção desde o jantar.
Não sei. Não quero saber. Não quero ele falando
nada. Enfio uma mão no seu cabelo e seguro sua
cabeça. Ele ri em voz baixa, quase sem som, e
consigo sentir sua respiração em mim.
— Alexandre... — começo.
Um grito escapa quando sinto sua boca em mim,
me chupando, sem aviso nenhum. Puta merda.
Tento respirar fundo, mas não consigo. Ele
intercala chupadas e lambidas, me explorando com
a boca e a língua, indo do clitóris até minha entrada
e então voltando, antes de parar para chupar meus
lábios e começar tudo de novo. Fecho os olhos com
força, sem nem tentar segurar meus gemidos.
Alexandre está segurando minhas pernas abertas,
de um jeito que eu não consigo me mover nem
quando ele me chupa com força, me fazendo gritar.
Solto seu cabelo e seguro o lençol, tentando
continuar parada no lugar, ao mesmo tempo em que
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arqueio as costas. Alexandre continua me


segurando e eu não consigo me mover e nunca
pensei que fosse achar isso bom, mas é, porque ele
continua me chupando, sem parar, sem perder o
ritmo.
E tem uma pressão crescendo pelo meu corpo,
se espalhando até que eu não consigo pensar em
mais nada, só sentir. As mãos de Alexandre nas
minhas pernas, sua boca em mim, sua língua me
explorando, sua respiração... Não existe mais nada
além das sensações e da pressão, crescendo e
crescendo.
A pressão explode. Arqueio as costas de uma
vez e caio de volta na cama, sem conseguir fazer
nenhum ruído, só tentar respirar enquanto aquilo se
espalha pelo meu corpo e eu estou tremendo, me
segurando no lençol e apertando Alexandre com as
pernas.
Ele me solta, mas não consigo nem pensar em
me mexer. Meu Deus. Respiro fundo e Alexandre ri
daquele jeito rouco, levantando a cabeça para me
encarar. Solto o ar de forma trêmula, sem conseguir
falar nada, enquanto ele continua me segurando no
lugar.

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— Eu imaginei fazer isso todas as vezes que


sentia seu cheiro — ele murmura, ainda com a voz
rouca.
Um arrepio me atravessa. Alexandre passa um
dedo pela minha entrada, subindo de novo até o
meu clitóris. Fecho as pernas de uma vez,
prendendo sua cabeça. Não. Agora não. Não
consigo.
— Você vai me matar — murmuro.
Ele ri de novo e gemo quando sinto sua
respiração em mim.
— Isso foi só o começo — Alexandre fala,
segurando minha perna no seu ombro. — Ainda
tenho planos demais.
Só o começo. Planos. Meu Deus.
Ele continua brincando com um dedo na minha
entrada, circulando meu clitóris e pela primeira vez
acho que entendo o que quer dizer estar sensível
demais, porque puta merda, eu não consigo. É
demais. E mesmo assim não consigo me afastar,
porque é bom demais.
Aperto sua cabeça com minhas pernas, sentindo
a pressão começando a crescer de novo. Alexandre
solta aquela risada baixa e rouca de novo, antes de
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me lamber, e agarro seu cabelo de uma vez. Não.


Agora não. Eu quero mais. Não, eu preciso de mais
que isso, porque...
Puxo seu cabelo até que Alexandre olha para
mim.
— Você. Eu quero você — falo.
Ele engole em seco e respira fundo antes de me
soltar. Não falo nada enquanto ele se levanta e para
na minha frente, me encarando enquanto abre sua
calça, tirando tudo de uma vez. Ótimo. Passo a
língua pelos lábios, encarando sua ereção. Ótimo,
porque por mais que a ideia de um show enquanto
ele tira as roupas seja interessante, vai ficar para
depois. Agora eu só quero ele dentro de mim, sentir
sua pele na minha e...
Droga. Droga. Me esqueci completamente...
— Eu não... — começo e paro quando
Alexandre se inclina na direção da mesa de
cabeceira.
Ele abre a gaveta e tira uma camisinha. Sorrio.
— Tinha tanta certeza assim de que eu ia vir? —
Pergunto enquanto ele abre o pacote.
Ele me encara daquele jeito que me faz perder o

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fôlego: como se eu fosse a coisa mais importante


do mundo nesse momento.
— Não. Mas não queria perder a chance, se
você viesse.
Como se tivesse perigo de que ele “perdesse a
chance”. Como se eu fosse deixar um cara desses
escapar.
Começo a me sentar e Alexandre balança a
cabeça.
— Não. Só... Fique assim.
Passo a língua pelos lábios de novo e vejo
quando o olhar dele trava na minha boca.
Alexandre rosna alguma coisa que não entendo,
mas não preciso entender, se a velocidade como ele
coloca a camisinha serve de indicação.
— Você vai me matar — ele fala, parando entre
minhas pernas.
Sorrio, ainda ofegante.
— Eu não...
Me esqueço completamente do que ia falar
quando ele me segura pela bunda e passa minhas
pernas ao redor da sua cintura. Meu Deus.
Alexandre vai me matar. Sinto sua ereção contra
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mim, enquanto ele me encara e levanta minha


bunda devagar. Agarro o lençol com força com a
sensação. Isso é tortura, mas eu não quero que ele
pare.
Não.
Solto o lençol e seguro sua ereção. Alexandre
para, me encarando de novo. Subo e desço a mão
uma vez, apertando de leve, e ele rosna. Sorrio e
repito o que fiz. Se ele quer me torturar, também
posso fazer a mesma coisa.
Alexandre puxa minha mão e entra em mim de
uma vez assim que o solto. Me seguro no seu braço
com força, o puxando para mais perto com as
pernas. Isso... Era isso que estava faltando. Solto o
ar de forma trêmula, sentindo como ele me
preenche. Eu devia ter feito isso antes. Bem antes.
Ele se afasta e volta, devagar. Mordo o lábio,
sem conseguir desviar o olhar de Alexandre, da
expressão no seu rosto, enquanto ele se afasta de
novo e volta. E de novo, mais depressa, acertando o
ritmo.
Dessa vez, quando aquela pressão explode e se
espalha pelo corpo, eu estou gritando. E tenho
certeza que vi estrelas.
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···
ACHO QUE EU ESTAVA ESPERANDO QUE A CAMA DE
Alexandre fosse como a minha, mas a dele é uma
cama box com colchão de mola. E eu não quero
sair daqui. A única vez que dormi num colchão
desses foi quando viajei com um pessoal da
faculdade e acabamos em um hotel um pouco mais
caro. Paraíso.
Ou melhor, quase paraíso. Paraíso foi o que ele
fez comigo aqui. Se eu soubesse que ia ser tão bom,
não ia ter demorado tanto para fazer alguma coisa.
Provavelmente ia ter pulado em cima de Alexandre
no primeiro dia que falaram que ele estava
interessado em mim... Não. Não chega a tanto. Mas
quase. Eu nem sabia que podia ser tão bom assim.
As coisas que ele fez... Meu Deus.
Admito que pensei em levantar e voltar para o
meu quarto. Não sei bem as “regras” para o que
estamos fazendo aqui, especialmente por estarmos
na mesma casa, e... Só não sei. Mas Alexandre
jogou um braço sobre mim, não exatamente me
puxando para perto, só conferindo se ainda estava
ali. Ou seja, continuei na cama. Não que eu
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estivesse querendo sair, na verdade. Quero é mais,


isso sim. Mas não estou com pressa. Ficar assim,
deitada ao lado de Alexandre, com o braço dele em
cima de mim, é bom de uma forma que não sei
explicar. É como se só estivéssemos nós dois aqui,
sem mais nada...
— Ai meu Deus.
Pego um travesseiro e coloco em cima do meu
rosto. Não acredito que não lembrei disso. Estou
num casarão cheio de metamorfos fofoqueiros. Eles
provavelmente ouviram cada detalhe do que
fizemos aqui. Ai meu Deus.
— Laura?
Aperto o travesseiro com mais força no rosto
quando sinto que Alexandre está tentando puxá-lo.
Ai meu Deus, como foi que não lembrei disso?
— Laura, o que foi?
Só solto o travesseiro por causa da tensão ou sei
lá o que é isso na voz de Alexandre. Ele está de
lado, apoiado em um braço, me encarando, com
aquela expressão impassível que é quase a sua
“expressão de negócios”. Droga.
— Todo mundo deve ter ouvido... — murmuro.

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Ele me encara por mais um instante e então


sorri, balançando a cabeça.
— Não precisa se preocupar.
Puxo o travesseiro de novo. Não preciso me
preocupar, certo. Não é ele que vai querer um
buraco para se esconder quando olhar na cara de
Rodrigo depois disso.
Alexandre ri e me puxa pela cintura. Solto o
travesseiro e coloco um braço entre nós. Não. Não
mesmo. Sem chances.
— Meu quarto tem isolamento sonoro — ele
fala, ainda sorrindo. — Te garanto que ninguém
ouviu nada. E não foi à toa que fechei as cortinas.
Estreito os olhos. Isso está conveniente demais.
— Então porque sempre teve todo o cuidado de
ir conversar comigo quando nenhum metamorfo
estava em casa?
Ele solta mais uma risada e para de tentar me
puxar.
— Meu quarto tem isolamento sonoro. O seu,
não.
Não falo nada. Continuo achando muito
conveniente.
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Alexandre suspira e coloca uma mecha de


cabelo atrás da minha orelha, antes de se virar de
bruços, colocar uma mão debaixo da cabeça e a
outra em mim. Estou começando a achar que todos
os metamorfos gostam e muito de contato físico.
Pelo menos, é o que parece pelo que vi no casarão
até agora, e Alexandre só está comprovando isso.
— Quando viemos para cá definitivamente,
mandei reformar os quartos, mas só os dos
membros do bando. Não valia a pena fazer isso na
casa toda. Quem chegou depois também não tem
isolamento sonoro, e muito menos os quartos de
hóspedes.
Tá, até que faz sentido, eu acho.
Não que terem ouvido ou não faça alguma
diferença. A essa altura, todo mundo no casarão
sabe que Alexandre e eu estamos no seu quarto.
Ninguém precisa ser um gênio para deduzir o que
aconteceu. Que vergonha.
Alexandre solta uma risada baixa.
— Eles vão fazer piadas, sim, se é isso que está
pensando. Você já conhece o pessoal. Não leve a
mal, é só que...
— Eles me zoam porque estão confortáveis
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comigo. — Dou de ombros e me viro, rolando até


deitar com a cabeça no ombro de Alexandre. Já
estou me conformando. — Eu sei. Só não sei onde
vou enfiar a cara. Mas sei que não vão falar nada
demais.
E não sei nem de onde vem essa certeza. Eu
estou com vergonha, fato, mas não estou tão
preocupada assim com as piadas que vão fazer.
Nem tenho motivo para estar, na verdade. O pior de
todos no assunto zoação é Rodrigo e ainda tenho a
ameaça da playlist de Sandy e Júnior.
O que me faz pensar em outra coisa.
Apoio um cotovelo no colchão e levanto a
cabeça para encarar Alexandre.
— Eles não brincam com você.
Na verdade, agora que estou pensando nisso,
tenho quase certeza que a expressão surpresa de
Rodrigo quando eu estava subindo e descendo
escadas ontem foi por causa da risada de
Alexandre. É a única coisa que faz sentido.
Alexandre não fala nada. Continuo o encarando,
esperando. E ele continua se fazendo de surdo.
Certo.
— Como foi que você falou mesmo? Ah, é: não
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responder não costuma adiantar muito.


Ele solta o ar de uma forma que quase parece
uma risada. Já notei que ele não quer falar sobre
isso, mas Alexandre é uma pilha de coisas que não
quer falar, pelo visto. Ou seja, eu vou fazer o que
qualquer pessoa com um mínimo de curiosidade
faria: cutucar. Até porque, se ele não quiser mesmo
entrar nesses assuntos, sei que vai desconversar ou
dar um jeito de deixar isso claro com todas as
letras.
— Eles não se sentem à vontade comigo.
— Isso eu notei.
Alexandre olha para o teto, suspira, e então se
vira de lado, me encarando.
— Lembra de quando falei que as regras deste
mundo são diferentes das do seu? — Ele espera eu
assentir antes de continuar. — Se você já estava
confusa, imagina para alguém que deveria ter sido
criado dentro deste mundo, mas não foi?
Encaro Alexandre, sem falar nada. Não quero
entender o que ele está me falando. Me lembro que
ele falou que seu pai veio de uma cidadezinha não
muito diferente de Monte das Pedras. Se a sua mãe
era amiga da mãe de Camila, acho que isso quer
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dizer que é sua família do lado do pai que não tem


contato com o Outro Mundo... Mesmo que isso não
faça sentido. E eu tenho uma boa ideia do que é ser
a pessoa diferente numa cidade do interior. Se foi
isso que aconteceu...
Ele assente, sério.
— Paula é uma amiga, de verdade. Tanto que é
a única que tem coragem de discutir comigo.
— É, eu me lembro dos gritos e da cadeira
quebrada. Sabia que dava para ouvir vocês
discutindo do meu quarto?
Alexandre sorri e me puxa mais para perto.
Apoio a cabeça no seu braço e passo um braço ao
redor da sua cintura. Entendi que ele está dando um
jeito de não olhar para mim enquanto fala, mas está
um pouco mais relaxado. Pelo menos essa cena do
dia em que descobri sobre o Outro Mundo serviu
para alguma coisa.
— Acho que não fizemos tanto barulho assim
— ele comenta.
— Ah, fizeram. Lembro que quando saí do
quarto e desci a escada vi umas tantas pessoas
olhando por frestas das portas. Fizeram barulho o
bastante para todo mundo se esconder.
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E eu, como boa idiota que sou, desci e


questionei Alexandre, mesmo depois de ouvir ele
discutindo com Paula quando ainda estava no
terceiro andar do casarão e eles no primeiro. É,
acho que meu histórico de desafiá-lo começou bem
antes do que pensei.
Sinto o peito de Alexandre vibrar e acho que ele
está rindo de forma silenciosa. Ele me puxa ainda
mais para perto, me abraçando com força, e pela
primeira vez na vida não me sinto incomodada com
isso.
— Para os outros, eu fui um meio. — Sua voz
está séria de novo. — Uma forma de escaparem do
Conselho e do que queriam deixar para trás nos
grupos comuns do Outro Mundo. Mas nenhum
deles era um amigo, nem perto disso. Com alguns,
eu já tinha trocado algumas palavras. A maioria, eu
não conhecia. E depois do que precisei fazer para o
Conselho nos deixar em paz... Eles não estão à
vontade comigo. Considerando que eu continuo não
me dando bem com muitas das coisas que deveriam
ser naturais para qualquer um do Outro Mundo, é
mais fácil me manter à distância.
Passo a mão pelas suas costas, sentindo suas

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cicatrizes, antes de o apertar, colando nossos


corpos, e jogar uma perna por cima das dele. Nem
me surpreende que ele não goste de falar sobre isso.
Nem sobre a família do pai, se eu entendi certo
mesmo. E agora estou imaginando o que pode ter
acontecido para Alexandre ter ficado coberto de
cicatrizes assim e só consigo pensar que espero
muito estar errada. Tanto espero estar errada que
não tenho nem coragem de perguntar.
Alexandre coloca uma mão na minha nuca,
enquanto a outra sobe e desce pelas minhas costas.
Me acomodo melhor contra ele, virando o rosto e
descendo o corpo um pouco, sem querer me afastar.
Não depois do que ele me contou.
— Mas você se encaixou aqui — ele começa. —
Se acostumou com tudo tão depressa e olha só onde
está agora.
— Na cama com a fera — murmuro. Acho que
isso faz mais sentido que falar “na cama com o
lobo mau”, levando em conta o que aconteceu e do
que Alexandre é capaz.
Ele ri, sem me soltar.
— Qual é seu problema com contos de fadas?
— Nenhum. Só acho que encaixam na situação,
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sabe. É que nem Alice no País das Maravilhas.


Nada faz sentido, então é a escolha mais lógica
para fazer comparações.
Sorrio quando Alexandre ri de novo. A tensão
de quando ele estava falando sobre não estar à
vontade desapareceu. Nada mais justo que eu fazer
ele relaxar depois de insistir no assunto.
E então me lembro do que ele comentou.
Suspiro.
— Camila falou a mesma coisa quando nos
conhecemos. Que eu me acostumava com as coisas
muito depressa.
Eu era uma garota do interior que tinha ido para
a cidade grande, por assim dizer, mas depois do
susto da primeira semana já me sentia em casa. E
foi a mesma coisa quando voltei para Monte das
Pedras.
— Como você faz isso?
É a primeira vez que consigo acreditar que
Alexandre realmente é pouco mais velho que eu.
Ele está soando incerto, parecendo até mesmo
inseguro. Mas faz sentido, eu acho. Ele também
teve que se adaptar a uma realidade diferente, e de
forma muito mais drástica pelo que entendi.
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Subo a mão pelas suas costas e desço de novo.


Minha vontade é apertar sua bunda, na verdade –
Alexandre pode ser magro, mas tem uma boa
bunda.
E agora quem está querendo evitar o assunto sou
eu.
Não tenho certeza de que eu sei como faço isso.
Só acontece.
— Minha mãe falava que eu não tenho
personalidade própria. Que mudo quem eu sou e o
que acredito de acordo com onde estou — começo.
Alexandre me aperta e fala alguma coisa, mas
sua voz está parecendo demais com um rosnado
para eu conseguir entender.
— Não sei. Sempre fui assim — continuo. —
Eu me assusto com as coisas, posso até surtar, mas
depois que isso passa... Acabou. Não tenho que
entender e questionar tudo de acordo com como
vivo. Só tenho que aceitar que o mundo é bem
diferente da minha vida. E acho que não fiz o
menor sentido.
Ele ri em voz baixa, relaxando de novo. Sorrio,
mesmo que ele não esteja vendo meu rosto.
— Talvez minha mãe tenha um pouco de razão.
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Talvez eu sempre tenha me adaptado tão fácil


porque não sei quem eu realmente sou, por mais
idiota que isso soe.
E não vou completar falando que acho que
agora estou me descobrindo de verdade. Mas
realmente acho que é o que está acontecendo. Essa
Laura que apareceu nesses dias aqui é um lado meu
que nunca cheguei a ver, de verdade. E, no fim das
contas, estou gostando muito desta versão de mim
mesma.
Alexandre suspira e me solta.
— Ou talvez você simplesmente aceite que nem
tudo é o que espera, e que isso não torna algo
errado.
Me afasto o suficiente para olhar para o seu
rosto e não sei interpretar o que estou vendo.
Quando ele fala assim, até parece que essa coisa de
me acostumar em qualquer lugar é boa. E, vendo
por esse lado... Acho que realmente não é.
Alexandre suspira e balança a cabeça, sem
desviar os olhos.
— Você não se incomoda com as cicatrizes —
ele murmura.
Sustento seu olhar e passo a mão pelo seu rosto,
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acompanhando uma das linhas mais claras na sua


pele.
— Por que me incomodaria?
E eu não vou perguntar o que aconteceu, não
quando ele está calmo e me olhando assim.
Especialmente porque já imaginei algumas
possibilidades e todas elas... Melhor não perguntar.
Alexandre rola na cama e quando vejo já está
sobre mim, com um braço de cada lado da minha
cabeça.
— Eu sei que quer perguntar. Obrigado por não
insistir, e... Um dia. Eu prometo que um dia eu te
conto.
Engulo em seco e assinto. Ele está sério, quase
distante, mas ao mesmo tempo tem algo de solene
nos seus olhos. Preciso de um instante para
entender: essa promessa quer dizer mais de uma
coisa. Um dia ele vai me contar, porque ainda
vamos estar juntos. E eu gosto bastante dessa ideia.
Seguro sua nuca e puxo seu rosto, ao mesmo
tempo em que jogo uma perna ao redor do seu
quadril e aperto seu corpo no meu. Acho que não
tem nenhum problema em querer mais, não é?
Alexandre sorri antes de me beijar. É, nenhum
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problema.

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CAPÍTULO VINTE E SEIS

L AURA
PASSO A MÃO NO ESPELHO DO BANHEIRO,
desembaçando o suficiente para ver meu reflexo.
Mesmo cabelo castanho, mesmo rosto redondo, um
pouco mais fino agora por causa dos exercícios que
Daiane me colocou para fazer, e pele ainda um
pouco mais clara que o meu normal, mesmo que eu
tenha passado bastante tempo lá fora nas últimas
duas semanas. Mesmo assim, não consigo deixar de
pensar que tem alguma coisa de diferente. Só não
consigo entender o que é.
Duas semanas.
Respiro fundo e encaro o espelho que já está
embaçado de novo. Eu amo o chuveiro do banheiro
de Alexandre – ele é mais quente que o do banheiro
perto do meu quarto. Em Monte das Pedras, numa
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propriedade no meio do nada e cercada de mata, no


fim de maio? O frio pode não ter começado para
valer, mas passei tempo demais acostumada com
BH, que é mais quente que Monte das Pedras, e
aqui é mais frio que a cidade. Ou seja: quanto mais
quente o chuveiro, melhor. É, duas semanas desde
que vim atrás de Alexandre. E não me arrependo
nem um pouco.
Me enrolo na toalha e saio do banheiro para o
quarto, dando pulinhos para tentar não esfriar muito
depressa. Não estou exatamente dividindo o quarto
com Alexandre, mas admito que passei mais da
metade das noites desde aquele primeiro dia aqui.
Nem tinha como não fazer isso depois que
Alexandre me avisou que uma escova de dentes
extra e mais toalhas tinham aparecido no seu
banheiro. De acordo com ele, isso era coisa de
Amara.
Pego minhas roupas, que deixei jogadas em
cima da cama, e vou me vestindo depressa assim
que me seco. Alexandre saiu do quarto enquanto eu
tomava banho – nenhuma surpresa, já que ele falou
que queria conferir as defesas da propriedade de
novo antes da viagem de trabalho que tem que fazer
amanhã. Mas ele teve tempo para trocar o short que
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eu tinha deixado em cima da cama por uma calça


de moletom velha. Levanto as sobrancelhas e a
visto. Tá, ele percebeu que eu já estou sentindo um
pouco de frio. Só não tinha pegado minhas calças
ainda porque ninguém aqui parece estar se
incomodando com o tempo e fico meio sem graça
de ser a única friorenta. Pode até ser frescura
minha, mas... É, é frescura. Eu sei.
Desço direto para a cozinha. São pouco mais de
oito horas, aquele horário que só Daiane e Caio
estão tomando café. Cumprimento os dois, arrumo
uma bandeja, encho de comida, pego a garrafa de
café menor – que a essa altura já é “minha” garrafa
– uma xícara, e subo para minha sala. Nenhum dos
dois tenta me parar na cozinha. Tenho trabalho a
fazer e todo mundo sabe disso. Quer dizer, acho
que todo mundo ouviu meus gritos quando fechei
um pacote de sete ilustrações com um autor
independente.
Por incrível que pareça, não foram as indicações
de Alexandre que me renderam este primeiro
trabalho – segundo, se eu contar a primeira
ilustração que fiz, para o cara ter certeza de que
meu estilo ia funcionar para o que ele queria. Estou
conversando com algumas pessoas que entraram
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em contato por causa das indicações dele, mas o


responsável por esse cliente foi Caio. Pelo que
entendi, ele tirou uma foto do pôster com ilustração
que fiz, já na parede do seu quarto, e mandou para
Deus e o mundo. E Deus e o mundo repassaram a
tal foto ainda mais, até que chegou na mão desse
meu cliente, que achou meu portfólio online e
entrou em contato.
Meu cliente. Sorrio e empurro a porta com a
bunda antes de ir colocar a bandeja na mesa, do
lado do meu notebook. Posso não ser a pessoa mais
empolgada e escandalosa do mundo, mas não
consegui deixar de gritar e sair dando pulinhos pela
sala quando fechei o contrato com ele. Eu tenho um
contrato assinado. Para fazer ilustrações. Pagas. E
bem pagas. Preço de mercado. Nada de “ah, te pago
um cachorro-quente se fizer esse desenho para
mim”. Eu ainda não tenho certeza de que consigo
acreditar nisso.
Essa foi a primeira vez nessas semanas que eu
realmente senti falta da minha família. Queria
comemorar com Marina, contar para o meu pai,
mas para todos os efeitos ainda estou viajando.
Troquei algumas mensagens com eles nesses dias.
Marina decidiu que vai fazer alguns vestibulares no
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meio do ano para “se preparar psicologicamente”


para a prova da UFMG no fim do ano. Não acho
que isso vai fazer muita diferença, mas se ela
prefere, que seja. Falei para ela ligar para Camila se
precisasse de qualquer coisa enquanto estivesse em
BH para as provas e avisei Camila que fiz isso. O
bom é que nenhuma das duas questionou. E meu
pai conseguiu a promoção que já faz dois anos que
queria. Mais uma coisa que seria ótimo comemorar
com eles, mas não posso. Não consigo deixar de
ficar incomodada sempre que me lembro que não
posso sair daqui, no sentido “sou uma prisioneira”,
mas acho que me conformei. Querendo ou não, isso
tudo foi o melhor que poderia ter acontecido
comigo – eu tenho um cliente! – e não me esqueci
que o Conselho do Outro Mundo tinha dado a
ordem para nos matar.
Ligo o notebook, abro o Photoshop, o
navegador, e vou conferir se tem alguma coisa nos
meus emails enquanto o arquivo da primeira
ilustração carrega. Acho que vou precisar de um
notebook novo daqui a pouco.
— Laura?
Levanto a cabeça. Paula está parada na porta,

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com a mão na maçaneta.


— Viu Alexandre? — Ela pergunta antes de eu
falar qualquer coisa.
— Ele falou que ia conferir as proteções —
conto e estreito os olhos. — O que você está
fazendo aqui? Não devia estar na loja?
Tudo bem que hoje é sábado, mas o sebo
sempre ficou aberto até as duas horas da tarde no
sábado. Nunca entendi o motivo, já que era quase
milagre aparecer alguém para comprar, mas Paula
insistia nisso.
Ela dá de ombros, sem sair do lugar.
— Fernanda consegue cuidar do sebo sozinha
por um dia.
Levanto as sobrancelhas. Isso eu sei. Paula
suspira.
— Nós provavelmente só vamos voltar segunda
à noite. Quero ver com Alexandre se não
esquecemos de deixar nada organizado...
Ah, claro. Deixar tudo organizado. Faz todo
sentido.
Abro a boca para perguntar, mas Paula sai e
fecha a porta atrás de si. Covarde.
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Encaro a tela do notebook, sem prestar atenção


no que está ali. Se eu já estava estranhando essa
coisa de viagem de negócios, Paula me fez ter
certeza de que posso estranhar. Quem iria sair em
pleno domingo à tarde para voltar na segunda à
noite? Não faz sentido. Nem os horários batem. E
Alexandre deu todas as voltas possíveis para não
me dizer exatamente o que é essa tal viagem. Agora
me chega Paula dizendo que “quer ver se não
esqueceram de deixar nada organizado”? Não tem
como eles serem mais óbvios. É alguma coisa do
Outro Mundo, daquela listinha maldita do que eu
não posso saber.
Olho de relance para o calendário ao lado do
notebook. A ilustração de um dragão vermelho
enrolado em um crânio é linda, mesmo que um
pouco mórbida. O calendário foi o meu primeiro e
único “gasto desnecessário” no cartão de
Alexandre, para comemorar quando fechei o
contrato. As ilustrações são da Anne Stokes, uma
artista que eu amo e que faz os melhores dragões
que já vi. Mas não consigo prestar atenção na
imagem. Logo que o calendário chegou, cismei de
marcar as fases da lua nele. Não que isso faça
diferença, mas acostumei a ter calendários com as
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fases da lua. Mesmo que já tenham me falado que


isso não tem nada a ver para o Outro Mundo, não
consegui resistir.
Amanhã é lua cheia.
Suspiro e me inclino para trás na cadeira. O que
é que vai acontecer dessa vez? Por que não adianta
ninguém vir me falar que não tem nada a ver, sendo
que Alexandre e Paula vão sair numa “viagem de
negócios” misteriosa e que não faz o menor sentido
bem na lua cheia.
E nem adianta perguntar. Estou tentando
descobrir o que é isso desde a primeira vez que
Alexandre mencionou a tal viagem e nada. Quando
é assim, quando ele não quer falar sobre alguma
coisa, ninguém no casarão toca no assunto.
Paciência. Pelo menos já sei que realmente vou me
trancar no meu quarto amanhã e torcer para Ryan
estar prestando atenção no que quer que esteja para
acontecer, já que Paula não vai estar aqui.
Olho para a tela do notebook de novo. Certo.
Não adianta ficar pensando nisso, que não vou
chegar a lugar nenhum. Hora de trabalhar.

···
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A LEXANDRE
ENCARO O PONTO ONDE BÁRBARA ABSORVEU A
armadilha, algumas semanas atrás. Consigo ver o
brilho fraco das nossas defesas logo antes da cerca.
Todas as nossas proteções, e elas não vão adiantar
nada se quem quer que está por trás disso resolver
aproveitar que não estarei no casarão. Pensei que
conseguiríamos resolver isso antes da lua cheia,
que depois de Ivan ter nos dados o território
oficialmente tudo seria mais fácil, mas não.
Continuamos no mesmo lugar, sem saber de nada.
Eu tenho uma garantia de que Gustavo não vai
invadir de novo, especialmente depois daquela
jantar, mas só. É um problema a menos, mas não é
nem mesmo o menor problema.
Não faz sentido. Quantas vezes já derrubaram
nossas barreiras e não fizeram nada? Quer dizer...
Não. Fizeram. Deixaram o pai de Laura ver
Bárbara em um momento em que ela não tinha
nenhum resto da sua forma humana. Deixaram uma
armadilha que teria sido o suficiente para me
prender – o que é outro problema, considerando
que estão usando um demônio para quebrar as
defesas. Eu não duvido mais que conseguiriam me
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conter, o que quer dizer que são uma ameaça para


todos no casarão. E colocaram um elfo dentro da
nossa propriedade... Um elfo que estava correndo
para perto do casarão, e não tentando se afastar.
Isso logo depois de Lavínia gritar a morte de Laura.
Aquilo tudo foi uma armadilha, sim, e eu ainda
não tenho certeza de quem queriam prender, eu ou
Caio. Ele tem histórias o suficiente para eu não
descartar essa possibilidade. Mas, além disso,
estavam atrás de Laura. Não é a primeira vez que
penso isso, nem vai ser a última. É a única
explicação para Lavínia ter gritado a morte dela. O
elfo entrou na nossa propriedade para buscar Laura.
E o que fariam depois que ela estivesse fora daqui...
Balanço a cabeça. Essa possibilidade não existe
mais, pelo menos. O problema é que não sei o que
podem fazer agora, e os próximos dias são uma
oportunidade boa demais para ignorarem. Não
quero sair do casarão e deixar Laura aqui, correndo
risco, mas não tenho outra opção.
Escuto alguém se aproximando. Só tem uma
pessoa que viria atrás de mim agora. Suspiro, sem
desviar o olhar da cerca. Queria que tivesse outro
jeito e eu pudesse ficar aqui. O risco é grande

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demais. Eles vão tentar de novo, tenho certeza.


— Você não contou para ela — Paula fala.
Continuo encarando a cerca enquanto escuto os
passos dela, ainda no meio das árvores.
— Alexandre! Você me prometeu que não ia
continuar com essa história de “viagem”!
Prometi, porque era o que precisava falar para
ela me deixar em paz. Nunca foi uma promessa que
eu pretendia cumprir.
Paula sai do meio das árvores sem fazer o menor
esforço para ser discreta. Continuo parado no
mesmo lugar e escuto quando ela solta o ar com
força antes de vir na minha direção.
— Quer parar de se fazer de surdo?!
Me viro de uma vez quando ela coloca a mão no
meu ombro.
— E de que ia adiantar contar? Ela mal se
acostumou com a gente! Quer ver ela se trancando
no quarto de novo?
Paula para com uma mão erguida antes de
abaixar o braço e me encarar dos pés à cabeça.
— Você não está preocupado com ela. Está
preocupado só com você — ela fala.
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Como ela ousa? Avanço para Paula, erguendo


uma mão que agora tem garras no lugar de dedos e
bato em uma parede invisível.
— Se controle, Alexandre.
Respiro fundo antes de forçar a parede de magia
na minha frente. Ela parece se dissolver, mas ao
invés de avançar estou sendo empurrado para trás e
uma força impossível está me obrigando a abaixar
os braços. Encaro Paula, sem me importar se seus
olhos estão brilhando e se ela está usando seu poder
para me segurar. Ela cruza os braços e continua
parada no mesmo lugar.
— Vai dizer que estou mentindo? Você não está
preocupado com se Laura vai ficar com medo o
suficiente para surtar de novo. Você está
preocupado com as consequências disso para você,
só isso. Se ela vai se afastar ou não.
Mostro os dentes. Isso não é da conta dela.
Paula tem um trabalho, só isso.
Ela suspira.
— Se controle, Alexandre. Isso não é você.
Respiro fundo de novo e tento pensar além da
fúria e do desafio. Ela está certa, isso não sou eu. É
o monstro assumindo controle... Mas ainda é cedo
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demais.
— E qual você acha que vai ser a reação dela se
eu contar?
Paula dá de ombros, mas vejo as primeiras gotas
de suor aparecerem na sua testa. Ela ainda está me
segurando, mas não é tão fácil quanto parece.
Ótimo. Isso quer dizer que não vai demorar muito...
Não. Paula é uma amiga. Não vou atacá-la.
— Não sei. Sendo Laura... Não faço ideia. —
Paula estreita os olhos. — Mas tenho certeza de
que vai ser melhor que a reação dela se descobrir
por conta própria. E ela vai descobrir, não importa
quantas vezes você proíba todo mundo de contar
para ela.
Olho para o chão e balanço a cabeça. Ela pode
até estar certa – provavelmente está – mas não
quero arriscar. Ou melhor, não tenho coragem. Não
quero ver a reação de Laura quando souber. Ela
pode parecer ter se acostumado aqui, conosco, mas
se até mesmo as pessoas do Outro Mundo têm
medo...
Dou um passo atrás e o poder me segurando
desaparece.
Paula cruza os braços e suspira.
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— Se ela se afastar com medo do que você é,


então é porque nunca a teve de verdade, não acha?
Bufo.
— Falar é fácil.
— Mas não deixa de ser verdade. Continuar
assim... Eu te conheço, Alexandre. Eu estou vendo
o tanto que você se importa. Acha mesmo que é
justo com você tentar seguir em frente escondendo
isso?
Não é. Nem comigo, e muito menos com Laura.
Solto o ar com força e balanço a cabeça, antes de
me virar para encarar a cerca de novo. Paula
continua parada onde está.
— Você não devia estar tão irritadiço assim
ainda — ela fala.
Não respondo. Estou assim desde que deixei
Laura dormindo e saí do casarão. O que quer que
seja, não quero parar para pensar em um motivo
agora. Isso é bom, por um lado. Se o monstro está
tão ansioso para aparecer, quer dizer que vai estar
mais alerta. Se qualquer coisa acontecer...
— Eles vão atacar de novo — falo.
— Provavelmente.

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Paula para ao meu lado, sem falar mais nada.


— Como consegue estar tão calma?
Ela dá de ombros.
— Ryan se preocupa com ela, também. Isso
quer dizer algumas restrições a menos sobre o que
ele pode fazer. E se alguma coisa conseguir passar
por ele para levar Laura, então você e eu estarmos
aqui não ia fazer diferença, de qualquer forma.
Assinto. Ryan nunca nos contou muito sobre o
que pode fazer e as restrições sobre as habilidades
que ele trouxe do Santuário, mas fez questão de
explicar sobre essa restrição em particular. A
menos que ele tenha um motivo pessoal para se
envolver, não consegue usar quase nenhum desses
poderes. Proteger o casarão é um motivo pessoal, já
que ele mora aqui e quer continuar aqui. Mas se ele
fizer questão de proteger alguém, vai poder fazer
muito mais.
E Paula está certa. Se quem está fazendo isso
conseguir passar por Ryan, conseguiria passar por
mim também, sem o menor problema.
— Só mais uma coisa... — Paula começa.
Olho para ela, que está encarando alguma coisa
mais para a frente.
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— Posso ser amiga de vocês dois, mas não vou


te defender quando ela descobrir. E é melhor
voltarmos logo.
Solto o ar com força e não respondo. Eu sei que
ela está certa, mas mesmo assim...
Continuo em silêncio enquanto Paula se vira e
vai na direção da mata. Não adianta nada eu ficar
aqui, encarando as proteções. Suspiro e me viro
para ir atrás dela.

···
L AURA
EU NUNCA MAIS VOU DEIXAR DE CUMPRIR UMA
promessa feita para uma metamorfa. Nunca. Mais.
Daiane está querendo me matar, só pode.
Desabo de costas na grama e fecho os olhos.
Não tenho mais pernas. Tenho uma massa disforme
de dor. Só isso. Eu odeio correr. Andar? Certo, sem
problemas. Até mesmo fazer trilhas no meio do
mato e morro acima, que nem fazia às vezes
quando morava em BH. Agora, correr? Detesto.
Odeio. E, por algum motivo, Daiane acha que
correr é parte indispensável de qualquer tipo de
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treinamento que eu queira fazer.


Ou seja, quando ela foi passar alguns dias na
fazenda da matilha de lobos perto de BH, é óbvio
que aproveitei para passar alguns dias sem essa
tortura voluntária chamada correr, mesmo depois
de prometer para Daiane que não ia ficar parada. E
agora ela está me fazendo pagar por esses três dias
de paz. O caso é tão sério que estou pensando
seriamente em usar o “não fiquei parada, já estou
fazendo exercício o suficiente de noite”, mesmo
sabendo que se fizer isso nunca mais vou ter
sossego. As zoações sobre Alexandre e eu estarmos
juntos estão começando a diminuir, mas se soltar
uma dessas, não quero nem imaginar o que vai
acontecer.
Mas admito que estou me sentindo melhor
depois que comecei a fazer alguma coisa e sou
masoquista o suficiente para não parar. Não que o
fato de eu estar durando duas semanas sem desistir
queira dizer muita coisa.
E nem a exaustão e a dor nas pernas conseguem
me fazer parar de pensar nessa coisa toda da
“viagem de negócios” de Alexandre. Quando desci
para o almoço, o único assunto na mesa eram os

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preparativos e as medidas de segurança extra. Pela


forma como estavam falando, não parece que isso é
realmente novo. Só estão mais preocupados, por
causa da coisa toda de derrubarem as defesas do
casarão, mas medidas de segurança extra por causa
de alguma “viagem”? Nada além do normal.
Se eles acham que vão acreditar que isso é uma
viagem, então não me conhecem. É óbvio que
quando subi para minha sala depois do almoço
fiquei pensando nisso enquanto trabalhava. Já tinha
reparado que amanhã vai ser a lua cheia, e também
vai ser a primeira noite desde que cheguei aqui que
Alexandre vai passar fora do casarão. Nesse tempo
todo, a única outra vez que isso aconteceu foi
justamente no primeiro dia que eu estava no
casarão, na noite que Gustavo tentou me atacar.
Que, adivinha só, também foi uma lua cheia.
Eu tenho certeza de que isso não é coincidência.
Não tem como ser. Mas não me lembro de nada
sobre fases da lua no que me explicaram sobre o
Outro Mundo até hoje. E uma boa hora no Google
também não adiantou nada – não que eu soubesse
exatamente o que pesquisar. Já devia ter aprendido
que essa coisa de procurar informações sobre seres
mágicos e lendas em geral quase sempre vai mais
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confundir minha cabeça que ajudar.


Mas mesmo assim: lua cheia, mesmo padrão de
horário nas duas vezes que Alexandre não estava
aqui...
E acho que estou cansada demais para pensar
direito, no fim das contas.
— Anda, sua preguiçosa. Levanta!
Se eu soubesse que Daiane ia gostar tanto de me
torturar não ia ter falado com ela.
Levanto o braço e mostro o dedo do meio para
ela. E já estou me mexendo demais. Posso ter
acostumado a subir e descer escadas, mas correr é
pior. Não devia ser. Mas eu não estava correndo
escada acima e escada abaixo igual estava correndo
ao redor do jardim. Por que foi que eu tive essa
ideia mesmo?
Daiane ri. Filha da mãe. E ela está quase me
fazendo soltar palavrões. Isso não é bom.
— Você falou que queria aprender alguma coisa
de luta, lembra?
Se ela tem alguma ilusão de que vai conseguir
me fazer sair dessa grama fresquinha, confortável e
deliciosa, está muito enganada.

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— Já ouviu falar de pontos de pressão?


Opa!
Me sento de uma vez e me viro para ela, que
está parada alguns passos atrás de mim.
— Eu assistia Xena.
Ela revira os olhos.
— Não é exatamente a mesma coisa de Xena,
mas acho que você tem noção do que quero dizer,
então. Os meninos me lembraram disso, pode ser
útil para você.
Retiro o que pensei. Falar com Daiane foi uma
ótima ideia. Excelente, na verdade. Me levanto e
bato a mão na bunda e na parte de trás das pernas
para tirar aquelas graminhas chatas que sempre
ficam grudadas.
— Não precisa ser a mesma coisa, só adorei
essa ideia — falo.
Daiane ri e rola os ombros para trás.
— Vem aqui.
Obedeço.
Não demora para eu perder completamente a
noção das horas enquanto Daiane me mostra alguns
pontos estratégicos. São alguns nervos que você só
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precisa saber onde e como apertar, como um no


pulso e outro no cotovelo. Tenho certeza que vi
Rick usar esse truque de apertar o pulso para fazer
um dos amigos dele soltar alguma coisa, só não me
lembro direito do que foi. Não é tão fácil quanto
parece, porque tenho que aprender o lugar certo e
como apertar. Quando Daiane acha que aprendi
isso direito, ela começa a me segurar em várias
posições e me fazer usar os pontos para fazer com
que me solte. Isso é mais complicado, porque tenho
que descobrir como apertar do jeito certo partindo
de outros ângulos, mas entendo porque ela está
fazendo isso. É aquela velha diferença entre teoria e
prática.
A última coisa que ela me ensina é a apertar um
certo ponto no pescoço, logo debaixo da orelha,
que se eu segurar por alguns segundos faz a pessoa
desmaiar. Adorei isso, diga-se de passagem. Juro
que achava que esse tipo de coisa era invenção que
usavam em filmes e só.
— Explicou para ela a diferença entre usar isso
com humanos e com alguém do Outro Mundo?
Meu consolo é que não sou a única a me
assustar com a voz de Alexandre. Daiane se vira de

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uma vez, meio na minha frente, antes de fazer um


ruído irritado que é quase um rosnado. Alexandre ri
em voz baixa e continua vindo na nossa direção.
— Ia explicar depois que terminasse de ensinar
— Daiane fala. — Custa muito fazer algum
barulho?
Alexandre levanta as sobrancelhas e eu cruzo os
braços, assentindo. Pensei que era só eu que nunca
ouvia quando ele estava chegando.
Daiane faz outro ruído irritado e se vira para
mim.
— O que ele quer que eu te explique é que
existem diferenças. Se você usar os pontos dos
nervos em um humano, isso deve te dar mais ou
menos um minuto para reagir ou fugir. Com
alguém do Outro Mundo? Alguns segundos, no
máximo. Tempo para gritar por ajuda. E se for um
vampiro, dependendo da idade, nem isso.
Respiro fundo. Bom saber. Não que eu tenha
criado alguma ilusão de que conseguiria lutar
contra alguém do Outro Mundo, mas...
— E o do pescoço, se usar em humanos, tem
alguns minutos até a pessoa acordar, pelo que sei.
Em alguém do Outro Mundo, depende. Contra
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vampiros, isso só funciona se for um recém-


transformado.
— Contra os outros, quase todos de nós têm
regeneração acelerada — Alexandre completa,
parando na minha frente, ao lado de Daiane. — Isso
quer dizer que, com sorte, teria alguns segundos.
Provavelmente nem isso.
— Metamorfos só ficam zonzos. Se
desmaiarmos, é uma questão de segundos para
acordarmos. — Daiane dá de ombros quando
Alexandre se vira para ela. — Se ia ensinar, nada
melhor que testar primeiro.
Eu não vou imaginar um bando de metamorfos
lobos revezando para testar isso. Não vou.
Alexandre não fala nada e ela dá de ombros de
novo.
— Acho que já fizemos coisa demais hoje.
Amanhã, às quatro, aqui. — Ela aponta para mim.
— Acho que correr vai ser melhor para você que a
escada.
Reviro os olhos. Ela gosta de me torturar
mesmo.
— Certo.

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Daiane assente e se afasta, indo na direção do


casarão. Espero ela estar a uns tantos passos de
distância antes de soltar um suspiro resignado.
— Odeio correr.
Alexandre olha para Daiane se afastando e então
para mim.
— Se odeia, por que não falou nada?
Dou de ombros. É um pouco complicado. Subir
escadas eu pelo menos posso fingir que é útil. Quer
dizer que não vou estar morrendo sempre que
precisar ir depressa para outro andar. Agora,
correr? É uma perda de tempo, por assim dizer. Só
estou ficando exausta à toa. A menos que eu pense
pelo lado de que vou ser mais rápida se tiver que
fugir de alguém... Não que a velocidade que eu
corro vá servir de alguma coisa contra alguém do
Outro Mundo.
Mas nessas duas semanas, eu já não perco o
fôlego depois de subir até o quarto andar. Nem
estou querendo morrer e mal conseguindo andar no
outro dia depois de subir e descer os quatro andares
algumas vezes. E tenho certeza que não ia ter
conseguido correr meia hora – mesmo que a passo
de tartaruga, de acordo com Daiane – no começo
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disso.
— Porque isso está me deixando mais forte. —
Dou de ombros de novo. — Disso eu gosto.
E não é só disso que eu gosto. Olho para
Alexandre e sorrio.
— Eles estão brincando com você — murmuro.
Duas semanas atrás, Daiane não teria feito
aquele comentário sobre ele fazer mais barulho ao
se aproximar. Ela não é a única, na verdade. Foram
pequenas coisas nos últimos dias, alguns
comentários mais divertidos e até mesmo algumas
piadinhas – pelo menos não sou a única sendo
zoada – que ninguém teria feito antes.
— Notei.
Levanto a sobrancelha quando ele não fala mais
nada. Alexandre ri em voz baixa e passa um braço
ao redor da minha cintura, me puxando para perto.
— Culpa sua.
Ele passa um dedo pelos meus lábios e eu
sorrio, sentindo o calor do seu corpo me
envolvendo. Definitivamente estou me
acostumando com isso.
E não tenho tanta certeza assim de que a culpa é
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minha... Na verdade, a culpa é toda dele, que está


mais relaxado quando se mistura com os reles
mortais – eu falei isso uma vez e ele riu tanto que a
expressão grudou na minha cabeça. Como esse
pessoal do Outro Mundo percebe qualquer
detalhezinho sobre alguém, não demorou para
notarem isso.
Na verdade, eu estava torcendo para justamente
isso acontecer. Não me esqueci de como Alexandre
falou que os outros não estavam confortáveis perto
dele, mas não foi essa a impressão que eu tive. O
que sempre pensei foi que todos aqui – ou pelo
menos os que eu conheço melhor – têm uma
senhora admiração por ele, isso sim. Eles o
respeitam. Só preciso me lembrar da expressão de
Lavínia quando me contou sobre como todos
vieram parar no casarão. Aquilo não era nada de
“não estar confortável perto dele”. Mas Alexandre
nunca deu uma chance para agirem de outra forma.
Sei que entrar nesse assunto não vai dar em
nada, então não respondo, só me apoio nele.
— Você não vai me contar o que é essa viagem
de verdade, não é?
Alexandre passa o outro braço ao redor da
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minha cintura e me aperta. É a resposta que


imaginei, mas ele demora para falar em voz alta.
— Não.
Não consigo conter meu suspiro meio resignado
e meio irritado.
— Não é culpa sua — ele continua, ainda me
apertando. — Mas tem coisas...
— Que é melhor eu não saber — interrompo. —
Já entendi.
Mas entender não me impede de ficar irritada
com isso. Irritada e preocupada, na verdade,
especialmente hoje, depois de ouvir os planos na
mesa do almoço.

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CAPÍTULO VINTE E SETE

L AURA
ALEXANDRE JÁ SAIU DO QUARTO QUANDO ACORDO.
Suspiro e rolo na cama. Não estava planejando
levantar tão cedo – nove horas da manhã num
domingo é cedo – mas esse sumiço de Alexandre
acaba com qualquer vontade de continuar na cama.
Minha ideia não era ficar aqui sozinha, para
começar. E é estranho ele ter saído tão cedo, sem
falar nada, depois de como passou a maior parte da
noite me abraçando com força.
Não quero nem pensar no que pode acontecer
essa noite ou na tal “viagem”. Não mesmo. Acho
que ter parado para pesquisar sobre lua cheia ontem
não foi uma boa ideia, porque agora estou com a
cabeça cheia de histórias de terror e coisinhas sobre
maldições. Nada de bom.

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Desço para o meu quarto ainda de pijama.


Assim que paro para abrir a porta e presto um
pouco de atenção no resto do casarão, escuto os
gritos de “toma essa” e “anda logo” vindos do
segundo andar, e logo depois um “filho da puta,
você me matou”. Não quero nem saber qual é o
jogo dessa vez. Rodrigo e Aline me colocaram para
jogar com eles alguns dias atrás. Apanhei tanto que
não quero repetir a dose tão cedo. Melhor eu ficar
com as minhas ilustrações e minhas playlists
estranhas do que me meter no meio de um bando de
viciados em jogos.
Entro no meu quarto e fecho a porta atrás de
mim. As cortinas estão abertas – não lembrei de
fechar ontem de tarde, já que não ia dormir aqui – e
a luz do sol bate diretamente no quarto. Suspiro,
indo até uma das janelas. Só percebo que tinha
esperanças de ver Alexandre lá fora quando fico
desapontada por não ver ninguém. Espero muito
que ele não tenha mudado o horário da tal
“viagem” e saído de manhã sem falar nada. Espero
mesmo.
Encaro meu notebook fechado em cima da
mesa, mas me prometi que não ia trabalhar hoje. Se
bem que eu tenho as minhas ilustrações para mexer,
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as que não são contratadas. Tecnicamente, isso não


é trabalhar. Mas se eu começar a mexer nelas, não
vou lembrar de descer para comer antes do almoço,
se lembrar de almoçar.
Meu estômago ronca. Certo. Entendi. Café da
manhã primeiro.
Troco de roupa depressa e olho para o espelho
na porta do guarda-roupas. Meu cabelo está uma
zona, mas nem vou tentar ajeitar isso agora. Vou
ouvir piadinhas estando impecável ou não, então
vou me poupar o trabalho. Dou um jeito nisso
depois de comer.
Paro assim que chego na porta da cozinha.
Domingo, mais de nove horas da manhã, e só Caio
está aqui? A essa hora, normalmente já tem pelo
menos umas cinco pessoas aqui. Por alguns
minutos eu quase me esqueci da tensão toda de
ontem e dos planos de defesa. Culpa dos gritos por
causa do jogo, que são a coisa mais normal do
mundo aqui. Dar de cara só com Caio é o suficiente
para eu me lembrar que não tem nada de normal
hoje.
— Cadê todo mundo?
Caio olha para mim e abaixa sua caneca de café,
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balançando a cabeça.
— Quem não está de guarda lá fora ou está
dormindo ou está jogando.
Já estou pegando meu prato e uma xícara
quando entendo o que ele quis dizer. Não faz
sentido que estejam dormindo, porque nove horas,
no domingo, quase todo mundo aqui já está
acordado. Mas quem ficou de guarda na
propriedade noite passada está dormindo para
repetir a dose essa noite, que é quando estão
esperando que alguma coisa dê errado.
Engulo em seco e paro com um pedaço de bolo
na mão. Não tenho certeza de que vou conseguir
comer. Não depois de me lembrar disso. O pessoal
do casarão está se preparando para algum problema
dos grandes. Algo bem pior que a visita do
Conselho aqui, ou a semana que Gustavo passou
vindo aqui negociar. E eu não quero nem pensar no
que pode ser pior que isso.
Meu estômago ronca alto. É, acho que consigo
comer. E passar fome não vai fazer a menor
diferença para o que quer que estão esperando.
Termino de montar meu prato e procuro a outra
garrafa de café. Nada. Olho para a mesa e Caio
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sorri. Pelo visto mais ninguém desceu. E se desceu,


não fez café. Ou seja: ou eu bebo essa coisa que o
Caio faz, ou faço café, ou... Abro a geladeira.
Ótimo, tem iogurte. Estou com fome demais para
esperar o café ficar pronto, vai isso mesmo.
Me sento de frente para Caio. Agora, perguntar
ou não perguntar? Dou uma mordida em um pão de
queijo, pensando. O que tenho a perder?
— O que é que acontece na lua cheia?
Caio levanta uma sobrancelha e se inclina para
olhar na direção da cozinha. Preciso de um instante
para entender que ele está fingindo que está
encarando o calendário pregado ao lado de um dos
armários. Espertinho. E isso quer dizer que ele não
vai me responder. Pelo menos, não com o que
quero saber.
— Dizem que é bom pra cortar o cabelo e
começar novos negócios. Dá mais volume — ele
fala.
Coloco a mão no rosto e respiro fundo. Sério
mesmo?
Caio ri e toma mais um gole da coisa intragável
que ele chama de café. Bom, valeu a tentativa.
Bem que eu queria dizer que vou descobrir o
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que é que vai acontecer de uma forma ou de outra.


Mas, sendo bem honesta, quando anoitecer eu não
vou nem querer saber disso. Vou é me trancar no
quarto e torcer para nada acontecer e, se acontecer,
para conseguirem dar um jeito na situação. É
melhor assim. Já vi o suficiente sobre o Outro
Mundo para ter um mínimo de bom senso e não
sair me metendo onde não devo

···
LEVANTO A CABEÇA QUANDO ESCUTO A BATIDA NA
porta, já minimizando o Photoshop com a
ilustração de Alexandre. Consegui esconder ela até
hoje e vou continuar fazendo isso.
— Quem é?
— Eu.
Respiro fundo e pauso minha playlist.
Alexandre passou a manhã toda sumido e também
não deu as caras no almoço. Já são quase três horas
da tarde, agora. Não é que eu esteja virando uma
dessas mulheres que quer satisfação de tudo que o
parceiro está fazendo, mas... Com essa tensão toda
no casarão, teria sido bom se ele falasse qualquer
coisa. Ou simplesmente tivesse deixado um recado
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para mim, já que desapareceu quando eu ainda


estava dormindo. Isso não seria nada demais.
— Entra.
Ele entra e fecha a porta atrás de si, vindo na
minha direção.
— Pensei que ia aproveitar o dia para descansar.
Não tinha falado que não ia trabalhar no domingo?
— Não é trabalho. Só estava olhando umas
ilustrações no DeviantArt.
Alexandre para na frente da minha mesa e cruza
os braços, levantando uma sobrancelha.
— Você não coloca as músicas nessa altura
quando não está mexendo em alguma ilustração.
Droga.
Dou de ombros.
— Mais no DeviantArt que no Photoshop, de
qualquer jeito.
Ele sorri.
— É a tal ilustração que você está escondendo
de todo mundo, então. Vai me deixar ver o que é
algum dia?
Estreito os olhos. Nem vou tentar negar, não vai
adiantar.
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— Talvez.
Um “talvez” que com certeza quer dizer “não”.
Abaixo a tela do notebook quando Alexandre dá a
volta na mesa. Ele já sabe que estou escondendo
mesmo, não preciso nem tentar ser discreta.
— Por que não subiu?
Olho para Alexandre e respiro fundo. Sério que
ele está perguntando isso? Deixa eu ver... Não subi
porque não é meu quarto e não tenho nada o que
ficar fazendo lá sendo que não fazia nem ideia de
onde ele tinha se enfiado. Balanço a cabeça e abro
o notebook de novo. Nem vou responder. É melhor
eu arrumar alguma coisa para fazer antes de falar
demais.
— Laura.
Não respondo de novo, só vejo com o canto dos
olhos enquanto ele se aproxima e para atrás de
mim.
— Você está com raiva.
Gênio.
Ah, quer saber? Não tenho nada a perder
mesmo. Me levanto de uma vez e me viro para
encarar Alexandre, cruzando os braços.

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— Com raiva? Imagina. Por que eu ficaria com


raiva? Só porque eu precisei perguntar Caio onde
você estava, porque tinha certeza que tinha ido para
essa tal “viagem” sem nem se despedir?
Alexandre respira fundo e solta o ar lentamente.
Estou esperando alguma desculpa esfarrapada para
o sumiço dele de manhã e por que não podia deixar
nenhum recado, mas ele não fala nada. Levanto as
sobrancelhas. Ele suspira de novo e balança a
cabeça.
— Eu não pensei — ele murmura e dá um passo
à frente, parando quase encostado em mim. — Foi
automático. Não achei que fosse demorar. Nem que
você fosse se importar.
Solto o ar com força, sentindo minha raiva ir
embora junto. Acho que isso é a única coisa que ele
poderia ter falado para me desarmar. Como assim,
ele pensou que eu não ia me importar,
especialmente depois de como ele passou a noite
toda grudado em mim? Ele nunca fez isso antes...
Solto os braços e empurro seu ombro, sem muita
força.
— É claro que eu ia me importar. O que quer
que esteja acontecendo, todo mundo está
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preocupado. Você está preocupado. — Suspiro e ele


balança a cabeça de leve quando me aproximo e
coloco a mão no seu rosto. — E você não age
assim.
Alexandre passa os braços ao meu redor e me
puxa para perto.
— Me desculpe — ele murmura quase no meu
ouvido. — Um dia você vai entender... Eu espero.
Não respondo, só o abraço de volta. O que eu
entendo é que ele não confia em mim. Apesar de
tudo, eu sou uma humana e ele é do Outro Mundo,
meio metamorfo, meio sabe-se lá o quê. Por que
confiaria em mim?
E eu não sei de onde esse pensamento veio, mas
estou odiando essa linha de raciocínio.
Respiro fundo e balanço a cabeça, me afastando
e olhando nos olhos dele. Acho que nunca vi
Alexandre tão tenso assim, e tenho a impressão de
que, apesar de ainda estar me segurando, ele está se
afastando.
— Tudo bem. O que quer que seja... Só espero
que isso se resolva logo.

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···
QUANDO ENTRO NA COZINHA, DAIANE ESTÁ PARADA NA
porta dos fundos, de braços cruzados e com uma
expressão um tantinho irritada.
— Estou atrasada, eu sei, eu sei — resmungo.
Meia hora atrasada, para falar a verdade.
Admito que só lembrei de descer para a sessão de
tortura voluntária porque Rodrigo ou Aline – não
sei diferenciar os dois quando estão transformados
em gaviões – ficou batendo com o bico em uma das
minhas janelas e gritando até eu sair da frente do
computador. Alexandre não ficou muito tempo
comigo, no fim das contas. Só estava se despedindo
antes de ir viajar. Ou seja, assim que ele saiu eu
voltei para o Photoshop.
Na verdade, não sei por que ele insiste em dizer
que está indo para uma viagem de trabalho. A essa
altura, já tenho até minhas dúvidas de que ele vai
viajar mesmo, e tenho certeza que não é algo “de
negócios”. Pelo menos, não no sentindo que eles
querem que eu pense. Pode muito bem ser algum
negócio do Outro Mundo. Alguma coisa mais no
estilo daquele jantar... Aí sim eu acreditaria. Mas
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não uma viagem de trabalho no sentido humano. E


é estranho demais eu estar pensando em algo “no
sentido humano”.
— Aposto o que você quiser que se eu não
tivesse pedido Aline para te chamar você não ia
nem lembrar. — Daiane abre a porta e espera eu
passar por ela.
Abro a boca para responder, já do lado de fora
do casarão, e então paro. Acho melhor não falar
nada mesmo. Ainda mais que só estamos
começando e ela já avisou que ia me colocar para
correr mais. Melhor não provocar senão isso aqui
realmente vai virar uma tortura.
— Que bom que você admite — ela resmunga.
Escuto a risada de Amara antes da porta se
fechar e eu me virar para acompanhar Daiane. Não
vou negar que me distraí e perdi completamente a
noção das horas. Não que isso seja algo incomum.
Se eu falar isso, só vão voltar a pegar no meu pé
para eu usar meu celular pelo menos como
despertador. Não, obrigada, estou amando não ter
que prestar atenção no celular. É a forma mais fácil
de ignorar as mensagens que chegam de tempos em
tempos e deixar para responder só quando eu tenho
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tempo para pesquisar mais coisas sobre a Nova


Zelândia.
E, de certa forma, Daiane ter praticamente me
obrigado a descer foi uma ótima coisa. Começo a
xingar mentalmente quando ainda estamos na
metade do alongamento. Isso quer dizer que não
vou conseguir ficar pensando no que pode ser essa
tal viagem ou no que pode acontecer essa noite.
Só espero muito que eles estejam certos e não
aconteça nada de dia... Mesmo que já seja fim da
tarde. Sei lá, levando em conta a preocupação de
todo mundo, eu não confiaria tanto assim. Mas já
que insistem...
— Você não está fazendo isso direito — Daiane
fala. — Estica os braços. Você consegue pelo
menos colocar os dedos no chão, anda.
Por que foi que eu pensei que isso era uma boa
ideia mesmo? E isso é só o aquecimento.
Vinte minutos depois eu estou bufando e
querendo desabar no chão. Não precisa nem ser
exatamente na grama. Só desabar e já vou ficar
satisfeita. Olho para o céu. Já deve ser umas cinco
horas. Cinco e pouco, com sorte, dependendo do
tanto que atrasei. Será que se eu falar que daqui a
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pouco vai anoitecer Daiane me deixa parar? Tudo


bem que esse “daqui a pouco” é daqui a umas duas
horas, mas vai que cola.
— Laura!
Me viro para Daiane e quase caio porque parei
de uma vez. Aperto minha cintura, sentindo uma
pontada de dor. Odeio correr.
— Laura, volta!
Começo a balançar a cabeça, sem entender o
que Daiane está falando, mas ela não está olhando
para mim. Está encarando a mata que cerca a
propriedade, uns bons metros para a nossa frente.
Escuto um gavião gritar e me viro na mesma
direção ao mesmo tempo em que escuto outro grito.
Rodrigo e Aline estão voando em círculos e um
deles desce de uma vez.
— Laura!!!
Olho para Daiane, que está apontando para o
casarão. Começo a correr. Estamos na outra ponta
do jardim, o mais longe da casa que vamos nessas
corridas. Eu não faço a menor ideia do que
aconteceu, mas tenho quase certeza de que um
gavião descendo daquele jeito é porque está
atacando. E se Rodrigo ou Aline estão atacando
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alguém na mata...
Eu devia ter continuado no Photoshop. Devia ter
falado que não ia sair para correr em pleno
domingo. Puta merda. Eles tinham certeza de que
não ia acontecer nada de noite, mas...
— Mais depressa!!!
Abaixo a cabeça e tento ir mais depressa. Estou
sentindo pontadas de dor na minha cintura, minhas
pernas estão doendo e eu estou bufando, mas tenho
quase certeza de que ouvi rosnados atrás de nós.
Isso não é bom. Isso não é nada bom.
Desta vez tenho certeza de que ouvi rosnados.
Puta merda. E passos. Ou melhor, patas. Não vou
olhar para trás. Não vou. Só vou continuar
correndo.
Não vou olhar para trás.
Vejo uma forma mais escura com o canto dos
olhos. Tento me desviar, mas Daiane me empurra
com força para o lado. Caio e rolo no chão, me
virando em tempo de ver ela se transformar e
mostrar as presas para o segundo lobo que está
vindo na nossa direção... O primeiro está se
levantando. Foi a forma escura que vi.
E eles estão entre eu e o casarão. Engulo em
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seco, sem ter coragem de me mexer. Os dois lobos


rosnam para Daiane, que continua parada no lugar.
Puta merda. Não estamos tão longe do casarão, mas
não estamos tão perto também e...
Grito e abaixo a cabeça quando escuto uma
explosão. Os lobos rosnam e um deles avança. Me
arrasto para trás. Não tenho como escapar. Não
tenho. Isso não são dois lobos. São dois
metamorfos.
Daiane avança para eles. Os lobos rolam no
chão e vejo pelos e sangue voando, acompanhando
os rosnados e alguns ganidos.
Preciso sair daqui. Dar um jeito de ir para o
casarão. Estávamos contornando o jardim, porque é
mais fácil, mas se eu pegar o caminho entre os
maiores canteiros...
Me levanto e começo a correr. Vou ter que dar
uma volta, mas se Daiane continuar segurando os
dois lobos acho que consigo chegar. Escuto um
rosnado alto, o barulho de patas, e então mais um
rosnado e um ganido. Não vou olhar para trás. Não
vou. Continuo a correr. Olhar para trás não vai
adiantar nada. Só preciso continuar correndo e...
Puta merda. Tem fumaça subindo de onde
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Rodrigo e Aline estavam. E fumaça escura, quase


preta.
Eu sabia que não era uma boa ideia ter saído do
casarão com todo mundo preocupado. Sabia.
Entro no caminho entre os canteiros. Não
consigo continuar correndo muito tempo. Não
consigo. E não acho que alguém do casarão vai vir
nessa direção. Não com a fumaça e os gritos de
gaviões na outra direção. E Daiane e os outros
lobos... Eu quase não consigo ouvir mais nada
deles.
Diminuo o passo e respiro fundo. Não devia
fazer isso, eu sei, mas não consigo. Minhas pernas
estão bambas, as pontadas de dor na minha cintura
estão tão fortes que até respirar está doendo e...
Puta merda. Não acredito que isso está
acontecendo. Não pode ser real. O que quer que
seja...
Respiro fundo e começo a correr de novo.
Preciso voltar para o casarão. Só isso. Dez minutos
correndo, no máximo. Menos que isso, na verdade.
Eu consigo aguentar. Aí eu posso desabar. E não
vou pensar nos lobos nos atacando.
Vejo um vulto com o canto dos olhos. Mais um.
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Não. Isso não.


Mais um vulto.
Um lobo pula na minha frente, mordendo o ar.
Dou um pulo para o lado e por pouco não caio.
Tem cinco... Seis lobos me cercando. Mais. Vejo
mais vultos se aproximando entre as flores do outro
canteiro. Puta merda. Olho ao redor. Nada que eu
possa usar para me defender... Não que eu tenha
alguma chance contra eles.
Entro num dos caminhos menores entre os
canteiros, de costas. Os lobos estão todos na minha
frente, talvez... Não. Engulo em seco e sinto meus
olhos enchendo de água. Esse é um dos caminhos
que leva para longe do casarão. Foi de propósito.
Eles me pararam aqui de propósito, para me levar
para mais longe. E não posso fazer nada. Estou no
meio das roseiras, se pelo menos achasse algum
galho quebrado, mas não, elas são bem cuidadas
demais.
Dou mais um passo atrás e os lobos avançam
mais um passo. Pai, Marina, eu queria ter me
despedido. E espero que mantenham o acordo
mesmo se eu morrer aqui e não façam nada com
vocês.
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Um dos lobos avança. Dou mais um passo atrás


e ele me mostra suas presas, rosnando. Sem saída.
Estou completamente sem saída.
O lobo pula. Me abaixo e me encolho, sem nem
me preocupar se estou gritando. Fazer barulho não
vai fazer diferença agora.
Escuto um rosnado mais grave, algo caindo no
chão com força e então um ganido. E o lobo não
me atacou. O que...?
Abaixo os braços que coloquei ao redor da
cabeça, devagar, ao mesmo tempo em que escuto
mais rosnados e então algo batendo em uma das
roseiras e ela se quebrando.
Tem mais um lobo aqui. Um bem maior que os
outros, que pularam nele e... Alexandre? É o único
lobo maior que eu já vi. E ele está sacudindo os
outros lobos e os jogando longe como se não fosse
nada demais. Ou melhor, os jogando longe depois
de fazer uns tantos rasgos. Encaro um lobo que caiu
não muito longe de mim, com a barriga aberta e os
olhos já vidrados.
Respiro fundo e olho para a luta de novo. Não
quero ficar vendo isso. Mas não tenho para onde
fugir. E... O outro lobo se levanta.
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Isso não é um lobo. Não é Alexandre. É um


monstro. Se ele não tem dois metros de altura, tem
pouco menos, e é coberto de pelos escuros. Suas
mãos têm garras enormes e a cabeça... Eu diria que
é uma cabeça de lobo, mas não é exatamente isso.
É a cabeça de um monstro. Algo que só pode ter
saído de algum pesadelo.
O monstro continua a lutar contra os lobos. Me
encolho na beirada do caminho, quase entrando no
meio das roseiras, vigiando. Não que eu precise
fazer isso, os lobos todos se concentraram no
monstro. E eles continuam voando. Vejo o monstro
puxar um dos lobos, que pulou nas suas costas, o
segurar e sacudir com força. Mesmo de onde estou
consigo ouvir o estalo do pescoço se quebrando.
Puta merda.
Ele joga o lobo morto no chão e se vira para o
único que ainda está de pé. Sangrando e mancando,
mas está de pé. Os dois se encaram por alguns
segundos antes do lobo correr na outra direção.
Acabou.
Acabou, e eu sobrevivi. Solto um suspiro
aliviado. Estou viva. Não sei como, mas estou.
O monstro se vira para mim e vem na minha
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direção com passos lentos. Acho que comemorei


cedo. Devia estar me encolhendo ainda mais,
tentando fugir, mas acho que passei do meu limite
de medo. Não consigo sentir mais nada. Me levanto
lentamente e encaro o monstro enquanto ele se
aproxima.
Ele para a alguns passos de distância, ainda me
encarando. Seus olhos são amarelos e seu focinho
está todo molhado de sangue. Não vou olhar para
baixo. Não quero ver suas garras de perto.
Ficamos parados assim até que escuto passos.
Paula aparece, vindo do caminho principal, e para
assim que nos vê, levantando as mãos com as
palmas viradas para a frente. O monstro se vira
para ela e rosna alto. Paula dá um passo atrás.
— Se abaixe, Laura — ela fala, num tom tão
calmo que parece artificial.
O monstro na minha frente rosna de novo e se
vira de lado. Assim ele consegue ver nós duas.
Engulo em seco.
— Ele não vai te reconhecer, Laura. E não
consigo fazer nada com você tão perto dele —
Paula continua.
Como se eu fosse ter a menor chance de escapar
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desse monstro. Ele só está parado na minha frente


porque eu estou imóvel também. Não sei como
tenho certeza disso, mas não duvido nem um pouco
desse meu instinto. E o que quer que Paula esteja
pensando em fazer para parar ele...
Alexandre. Engulo em seco. Admito que
imaginei isso quando ele apareceu e atacou os
outros lobos, mas depois que realmente vi o que
tinha me salvado... É imaginação demais. Só que
não é. Isso é Alexandre. O que ele não deixa
ninguém falar a respeito.
Lobisomem.
Demônio.
E eu só quero que isso acabe. Só isso. Sinto uma
lágrima escorrendo pelo meu rosto.
— Sai daqui — murmuro.
O monstro que é Alexandre me encara.
Não sei quem fica mais surpresa quando ele se
vira e corre na direção da mata.

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CAPÍTULO VINTE E OITO

L AURA
VIRO NA CAMA E PUXO UM TRAVESSEIRO PARA TAMPAR A
luz. Droga, esqueci de fechar a cortina de novo.
Não que faça diferença. Não quero levantar agora.
Quero dormir mais umas quatro horas, no mínimo,
porque tive um pesadelo horrível e a impressão que
tenho é de que não dormi nada. Estou
completamente esgotada.
Aperto o travesseiro e me mexo, tentando achar
uma posição confortável. Meu braço está ardendo...
Meu braço está ardendo.
Jogo o travesseiro para o lado e me sento de
uma vez, olhando para os meus braços. Estou cheia
de esfolados e arranhões e agora acho que entendo
porque minhas pernas estão doloridas também.
Acho que não fico tão arranhada assim desde que
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era criança e inventamos de fazer um skate com


uma tábua e rodas de patins velhas. E é mais fácil
me lembrar disso do que pensar que meu pesadelo
foi real.
A fumaça escura para lá da mata. Rodrigo e
Aline no céu, gritando. Daiane me mandando
correr. Os lobos me perseguindo pelo jardim, entre
as roseiras. E então...
Alexandre.
Faz sentido. Faz todo sentido. Ninguém me
explicou nada sobre lobisomens, só falaram que são
um tipo de demônio. Por quê? Eu não perguntei
mais nada sobre isso, mas tinha comentado sobre
lobisomens antes, pensando que fosse a mesma
coisa que os metamorfos. Me contaram mais
detalhes sobre todos os seres mágicos que eu
mencionei em qualquer momento aqui no casarão.
Por que não falar nada sobre lobisomens? Para eu
não entender que é isso que Alexandre é,
obviamente.
Lobisomem. Um tipo de demônio.
E um demônio que me obedeceu quando mandei
ele ir embora. Tenho quase certeza de que me
lembro de Amara e Ryan comentando sobre isso,
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quando voltei para a cozinha: como era estranho


que ele ter obedecido, porque normalmente um
lobisomem não obedece a ninguém. O que Paula
faz na lua cheia é criar contenções ao redor dele
para que ele fique em uma área restrita, onde não
vai poder atacar ninguém.
Respiro fundo e me levanto, fazendo uma careta
quando sinto uns tantos arranhões e o que acho que
é um corte mais fundo na minha perna. Amara
limpou os arranhões e fez curativos ontem de noite,
enquanto ainda estavam tentando entender o que
aconteceu... E provavelmente me deu alguma coisa
no chá para me fazer apagar desse jeito. Se já é
manhã, quer dizer que dormi mais de doze horas.
Eu nunca faço isso.
Paro na frente da janela. Aparentemente não tem
ninguém lá fora, o que quer dizer que ainda
estamos com todas as medidas de segurança
possíveis e que deve ter bastante gente na mata. Só
assim para o gramado e o jardim ficarem vazios. E
para a casa ficar silenciosa. Se bem que isso pode
ser coisa de Ryan... Não. Da outra vez o silêncio
era absoluto. Dessa vez eu consigo ouvir alguma
coisa – alguém falando alto do outro lado do
casarão, alguns ruídos vindos lá de fora...
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Certo. Hora de descer, então. Quero saber o que


aconteceu, e o jeito mais fácil de descobrir isso é na
mesa da cozinha. E, depois, Alexandre e eu vamos
ter uma conversa. Ele precisava mesmo mentir para
mim?
Fecho a cortina de uma vez e me viro para o
guarda-roupa, resmungando enquanto procuro uma
camiseta e uma calça largas para vestir. Odeio
arranhões e esfolados. Eles são mil vezes mais
irritantes que um corte – especialmente porque
nunca é só um arranhão. São vários. Por toda parte.
Argh.
Quando entro na cozinha, Daiane, André,
Rodrigo, Caio, Aline, Lavínia, Ryan, um dos fey e
dois metamorfos que ainda não sei o nome estão
nas mesas. Rodrigo está com o braço esquerdo
numa tipoia e me lembro de Paula chegando com
ele na cozinha, quase o carregando. Seu braço
esquerdo estava pingando sangue e eu não
continuei olhando para saber o que tinha
acontecido. Daiane está sentada do lado dele, com a
cabeça apoiada em um braço e quase dormindo
sentada. Na verdade, Rodrigo não está parecendo
muito acordado, também, o que faz sentido levando
em consideração o que já vi sobre a regeneração
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acelerada dos metamorfos. Quando precisam se


curar de coisas demais, eles ficam sonolentos. Pelo
menos estão bem.
E nem sinal de Alexandre. Já é de manhã, isso
quer dizer que ele já deveria ter voltado, não?
— Laura!
O grito de Lavínia me faz parar onde estou.
Tenho um segundo para respirar fundo e ela
praticamente pula em cima de mim, me abraçando
com força. O que foi isso?
— Você tem que parar de me fazer ver sua
morte!
— O que... — começo. — Lavínia, você vai me
esmagar!
Ela me solta e dá um passo atrás, parecendo sem
jeito.
— Desculpa. É que dessa vez... Eu realmente
pensei que não íamos conseguir fazer nada.
Engulo em seco. Uma coisa é eu pensar que
quase morri. Outra bem diferente é Lavínia falar a
mesma coisa. E não foi só ela que pensou isso, se
as expressões dos outros servem de indicação.
Respiro fundo e assinto, sem conseguir falar nada.

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Lavínia volta para a mesa enquanto vou pegar


um prato e ver o que ainda tem para comer. Por
algum milagre, ainda tem pães de queijo, então
pego alguns antes de me sentar ao lado de Lavínia.
Alguém já colocou uma xícara limpa ali e Caio
empurra uma garrafa de café na minha direção.
Levanto as sobrancelhas.
— É a água suja que vocês chamam de café —
ele resmunga.
Puxo a garrafa e encho minha xícara, respirando
fundo de novo antes de colocar açúcar. Certo, a
confusão toda já passou, hoje é outro dia, e eu
quero entender o que aconteceu.
— Então você gritou minha morte de novo? —
começo, me virando para Lavínia, sem ter certeza
de como perguntar.
Ela assente.
— Alexandre e Paula estavam saindo.
Normalmente eles passam a lua cheia nos limites
da propriedade, quase sempre dentro da mata. Saem
daqui de tarde, antes de Alexandre ser forçado a se
transformar, porque assim tem menos riscos de
algum acidente... — Ela para e olha para mim.
Solto o ar com força e resisto à vontade de bater
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minha xícara na mesa. Eu posso ser um pouco lenta


com essa coisa toda de Outro Mundo – com direito,
porque nunca imaginei que isso fosse ser real – mas
não sou burra.
— Lobisomem. Lua cheia. Já entendi. Agora faz
o favor e não me faz ir para o Google, porque fazer
isso vai ser pior.
Não que eu tenha alguma ilusão de que vou
saber separar o que é real e o que é só lenda
mesmo.
Aline dá uma risada abafada e André resmunga
alguma coisa que não consigo entender. Olho para
o lado deles da mesa. Ryan está sorrindo. Certo.
Isso é preocupante.
— Você lembra que lobisomens são um tipo de
demônio, não é? — Caio pergunta e espera até eu
assentir. — Na maior parte do tempo, eles são
pessoas normais. Quando se transformam são
monstros no sentido literal da palavra. Seguem seus
instintos e mais nada.
— E os instintos deles são sanguinários, para
não falar outra coisa — Lavínia completa.
A imagem do lobo morto, com a barriga aberta,
aparece na minha frente. É, notei que são
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sanguinários.
— Existem poucos deles, pelo menos aqui. Já
ouvi boatos que alguns dos lordes demônios têm
vários lobisomens os servindo, mas isso é nas
cidades dos demônios... Fora deste plano — ela
continua.
— Não são boatos — Ryan interrompe.
Olho para ele, que dá de ombros, encarando o
pedaço de bolo na sua frente. Ninguém fala nada.
Certo, então.
— Eles são forçados a se transformar toda lua
cheia, sem escapatória. — Aline continua. — Não
existe como evitar. Sei que vários dos fey já
tentaram isso e sei que Paula está tentando há anos.
E um lobisomem pode se transformar fora da lua
cheia, se quiser, mas nesse caso a transformação
vai ser dolorosa. Como você pensou a primeira vez
que viu André se transformando.
Com aquela coisa toda de ossos se quebrando
para mudar de formato e tudo mais. Engulo em
seco enquanto um arrepio me atravessa. Isso é uma
coisa que não quero nem imaginar. É uma coisa ler
isso num livro. Outra bem diferente é pensar nisso
acontecendo com alguém que conheço.
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— Um lobisomem transformado não pensa, não


como nós — Ryan fala. — Alexandre não deveria
ter te obedecido quando mandou ele embora. Não
deveria nem ter parado e te encarado.
E isso é mais ou menos a mesma coisa que ele e
Amara falaram de noite. Suspiro. Não estou
reclamando – ainda bem que ele obedeceu – mas...
Seria bom se mais nada de estranho acontecesse ao
meu redor.
Levanto a cabeça e dou de cara com Caio me
encarando. Esquece. Impossível não acontecer nada
estranho, considerando onde estou.
Me viro para Lavínia de novo.
— Tá, então eles estavam saindo quando você
gritou minha morte de novo...
Ela assente e engole em seco.
— Alexandre se transformou assim que
entendeu o que estava acontecendo. Pensei que se
os lobos não te matassem, ele ia.
Desvio os olhos e encaro minha xícara de café.
Não sei porque estou reagindo assim agora, mas
preciso fazer um esforço para meus olhos não
encherem de água. Ela estava preocupada comigo.
Comigo, Laura, de verdade, e não só porque sou
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alguém que está no casarão e que ela deveria


proteger ou coisa assim.
— Eles derrubaram as nossas proteções de novo
— Caio conta. — Todas as proteções.
— Ninguém deveria conseguir fazer isso —
Aline resmunga.
Os outros assentem e Caio continua.
— Eu achei sinais de uma invocação bem no
limite da propriedade. Demônios — ele explica
quando abro a boca para perguntar. — Os bruxos
os invocam, às vezes.
— Não que isso dê muito certo — Lavínia
comenta.
Caio dá de ombros.
— Chamamos todo mundo, porque se alguém
fosse usar demônios para nos atacar... Digamos que
seria uma luta complicada.
— Pelo menos foi só um, e dos demônios
menores — Rodrigo interrompe e levanta o braço
na tipoia. — Se fosse um dos maiores, ele não ia ter
errado o golpe e acertado meu braço.
Espera. Se foi “só” um demônio... Mas eu me
lembro de ter ouvido uma explosão e de ter visto
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fumaça subindo da mata.


— Foi uma armadilha — falo. — Uma
distração.
Todos assentem.
— E uma distração muito bem planejada,
porque tinham uma série de feitiços e
encantamentos envolvendo magia dos bruxos e fey
que dispararam assim que começamos a vasculhar a
propriedade — André conta.
— A explosão e a fumaça?
Eles assentem de novo. Não sei se acho bom ou
ruim eu estar conseguindo acompanhar o raciocínio
deles tão facilmente. Uma pessoa normal não
pensaria que isso está fazendo sentido.
— A explosão, a fumaça e as construções —
Aline completa. Balanço a cabeça e ela para. —
São... Acho que posso comparar com robôs? Mas
feitos totalmente de magia e programados para um
objetivo específico. Pensamos que o objetivo delas
era nos atacar para valer, mas eram outra distração.
As construções desapareceram logo depois que...
Ela para de falar e olha para mim. Sustento seu
olhar, sem saber o que ela espera que eu fale.

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— Depois que Alexandre correu para fora do


terreno — Caio completa.
Estreito os olhos. Isso não faz sentido. Por que é
que essas tais construções iam desaparecer logo
depois de Alexandre sair...?
Ah.
— Ele deixou um dos lobos ir — conto.
— Isso explica — um dos metamorfos que não
sei o nome fala.
O último lobo, que Alexandre encarou e que eu
vi fugindo. Um sobrevivente, para contar o que
aconteceu para quem quer que estava por trás disso
tudo. E se essas construções são feitas de magia,
então era só desfazer o que quer que fosse, já que
não ia adiantar mais.
— Então alguém derrubou as defesas de vocês,
invocou um demônio e fez mais essas coisas todas
aí para os lobos conseguirem se aproximar do
casarão sem ninguém ver? — Pergunto.
Caio olha para André e estreita os olhos. O
metamorfo dá de ombros.
— Eu falei que não ia apostar. Ela já se
acostumou. Sabia que ia perder essa também.

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Reviro os olhos. Bom saber que ainda estavam


apostando sobre as minhas reações. Mas... É
verdade. Me acostumei. E o fato de eu ter
perguntado isso a sério, sem nem pensar que estou
ficando louca e que nada disso pode ser real, é a
maior prova.
— É um bom resumo — André completa, se
virando para mim.
— Mas então... Por que mandar os lobos? É
trabalho demais, se for só por minha causa.
E não consigo nem pensar que é paranoia dizer
que vieram atrás de mim: os lobos foram direto
para onde Daiane e eu estávamos.
— Os dois lobos que nos atacaram primeiro
eram solitários. Renegados, na verdade — Daiane
fala, levantando a cabeça. — Não são parte de
nenhuma matilha porque ninguém quer eles por
perto. Normalmente ficam fora dos territórios
controlados pelas matilhas, porque se causarem
problemas vão ser mortos sem direito a julgamento.
Os outros...
— Todos solitários ou renegados — André
assente. — Não faço ideia de como conseguiram
juntar tantos deles.
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— A questão não é como. É quem — Lavínia


interrompe e suspira. — Paula e Bárbara estão
conferindo a área ao redor da propriedade, tentando
descobrir alguma coisa. Mas bruxos, fey e
metamorfos trabalhando juntos não é algo comum.
Muito pelo contrário.
Assinto. Isso eu já imaginava. Não me esqueci
que o bando – as pessoas que moram no casarão –
são os “estranhos” do Outro Mundo justamente por
serem várias criaturas diferentes trabalhando juntas.
— Mas não adianta ficar especulando. É melhor
esperar eles voltarem e torcer para terem
descoberto alguma coisa — Lavínia completa,
balançando a cabeça.
Certo. Esperar. Não que eu possa fazer alguma
coisa, mas odeio a sensação de ficar parada sem
fazer nada, só esperando.
Isso me lembra...
— E Alexandre?
— Paula está rastreando ele — Ryan avisa. —
Ele saiu da propriedade e está sentado logo além do
limite do nosso terreno.
Okay. Acho que cheguei no meu limite de
entender coisas estranhas.
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— Tá... Mas já é de manhã...


— Mesmo que a lua não esteja no céu, ainda é
lua cheia — Rodrigo explica. — Ele só vai
conseguir voltar à forma humana mais tarde.
Não tenho tanta certeza de que isso faz sentido,
mas certo.
— Então ele está transformado e fora da
propriedade. Isso não deveria ser preocupante? O
normal não seria ficarem em algum lugar dentro da
propriedade.
Ryan ri e balança a cabeça. Caio e Aline
também estão sorrindo. Por que é que não gosto
disso?
— Isso é o que normalmente acontece, mas... —
Lavínia para e olha para Ryan.
— Ele está fora da propriedade, sentado, sem
fazer nada, como se estivesse esperando permissão
para entrar — Ryan conta, me encarando.
Isso não faz sentido nenhum. E não faço ideia
de por que estão olhando para mim como se
esperassem alguma coisa. Não tenho nada a dizer.
Isso não faz sentido, só isso. Não...
Puta merda.

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— Eu mandei ele sair daqui — murmuro.


Ryan assente.
— Como...?
— Temos nossas teorias — Ryan conta.
— Temos? — Caio pergunta.
— Mas só Alexandre vai poder confirmar isto,
então não vou falar nada — Ryan termina como se
não tivesse sido interrompido.
E tenho a leve impressão de que o “temos” dele
não inclui ninguém que está na mesa. Não. Lavínia
está me encarando de um jeito que me faz ter
certeza de que ela sabe do que Ryan está falando.
Ela balança a cabeça.
— Se quiser saber mais detalhes que isso, vai ter
que perguntar para Alexandre.
Suspiro e assinto, olhando de volta para o meu
café... Que está esfriando. Eles responderam até
mais que eu esperava, na verdade, mas acho que
nunca vou ficar satisfeita mesmo. Quero entender o
que está acontecendo, por que os lobos vieram
justamente atrás de mim, mas dá para notar que
nem eles conseguiram entender isso ainda. Então
não adianta insistir.
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E... Quando Alexandre estava falando da tal


“viagem”, disse que iam voltar na segunda de
tardinha. Deve ser o horário que ele vai conseguir
se transformar de volta, então. Isso quer dizer que
tenho até de tarde para organizar minha cabeça
sobre Alexandre. Quer dizer... Nós temos alguma
coisa, sim, mas... Ele mentiu para mim. Ele ia
continuar mentindo para mim por sabe-se lá quanto
tempo, provavelmente, inventando viagens para
não me contar a verdade. Respiro fundo e pego um
pão de queijo. Eu não faço a menor ideia do que
isso quer dizer, para nós.

···
A LEXANDRE
VOLTAR PARA O CASARÃO DEPOIS DE ME TRANSFORMAR É
sempre a pior parte. Sempre fica aquele medo de
ter feito alguma coisa, de Paula não ter conseguido
conter o monstro. Pelo menos dessa vez eu tenho
certeza de que não fiz nada. É a primeira vez que
consigo me lembrar da maior parte do que
aconteceu enquanto estava transformado, e não é
difícil deduzir o motivo para isso: Laura. Laura,
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que me acalma desde a primeira vez que a vi, no


sebo, mesmo que ficasse tão nervosa que eu sempre
esperava que fugisse. Eu devia ter prestado mais
atenção nisso. Devia ter procurado os motivos, ao
invés de só aceitar aquilo como sendo algo normal,
quando não era. Se tivesse entendido antes...
Não ia ter feito a menor diferença. Respiro
fundo quando saio da mata e começo a atravessar o
gramado. Não tem mais nenhuma marca do que
aconteceu ontem em lugar nenhum. Um dia, e já
apagaram tudo como se nunca tivesse acontecido.
Mas não consigo me esquecer do grito de Lavínia,
de como seu poder se espalhou de uma forma que
eu nunca vi antes. Foi a primeira vez que percebi
que das outras vezes que ela gritou a morte de
Laura foi algo fraco – era uma possibilidade, só.
Ontem, foi quase uma certeza. Teria sido certeza,
se não fosse por esse detalhe que eu ignorei esse
tempo todo.
Mas nada disso importa, agora. Qualquer coisa
com relação a Laura... Respiro fundo mais uma
vez, resistindo à vontade de olhar para a janela do
escritório dela. Paula estava certa. Eu devia ter
contado a verdade para Laura antes. Qualquer coisa
era melhor do que deixar que descobrisse assim.
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Não que ela estivesse errada quando me encarou


como se eu fosse um monstro. Pela primeira vez, eu
estava consciente do que estava acontecendo, mas
continuava sem ter o menor controle.
Eu devia ter contado a verdade, porque tentar
me proteger quase a matou.
Encaro a parede ao lado da porta da cozinha por
um instante antes de levantar o braço e socá-la com
força. A parede afunda e sinto o poder de algum
dos fey se espalhando ao meu redor ao mesmo
tempo em que a porta se abre. Balanço a mão,
ignorando os cortes nos meus dedos, e me viro.
Amara, Lavínia e Caio saíram e estão me
encarando. O cabelo de Lavínia tem mechas
brancas, mas não foi o poder dela que senti. Foi o
de Amara.
— É melhor você pensar duas vezes antes de
continuar estragando minha casa — ela fala.
Respiro fundo e dou um passo atrás, abaixando
a cabeça. O casarão pode estar no meu nome, mas
Amara é uma duende que escolheu essa casa como
sua. Ela pode não ser um brownie, que é um dos
fey que tradicionalmente cuida da casa onde mora,
mas sei que considera o casarão como seu
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território. E eu tenho sorte que Jorge não estava na


cozinha, também.
— Agora, vai falar para quê isso? — Lavínia
pergunta.
Às vezes eu sinto falta de como as coisas eram
antes, quando a única pessoa que teria coragem de
me questionar assim seria Paula. Balanço a cabeça
e passo por eles, entrando na cozinha.
— Drama, drama, drama — Caio resmunga.
Não é drama. É a realidade.
— O que foi? — Rodrigo pergunta.
Estranho, ele não saiu da cozinha junto com os
outros. Nem ele nem Daiane. Olho para onde eles
estão, perto da parede. Não é difícil entender
porque ficaram aqui: ainda estão se recuperando do
ataque. E eu ainda não faço ideia do que aconteceu
nos limites da propriedade para ninguém ter visto
os lobos se aproximando.
— Drama — Lavínia responde. — É mais fácil
você dar uma olhada.
Me sento numa das mesas, puxo uma xícara e a
garrafa de café, ignorando a conversa em voz baixa
enquanto Rodrigo sai da cozinha. Preciso entender

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o que aconteceu ontem. Isso tem que ser minha


prioridade, não Laura. É por isso que estou aqui:
para garantir a segurança do casarão e das pessoas
que escolheram vir conosco. Então não vou ficar
pensando em como Laura me olhou com medo nem
imaginando qual vai ser sua reação agora... Se é
que ela vai pelo menos falar comigo.
Tomo um gole do café antes de perceber que foi
Caio quem fez. Devia ter prestado mais atenção.
Rodrigo entra na cozinha rindo alto e se senta na
minha frente.
— Pra quê tudo isso?
É por isso que sinto falta de quando só Paula me
questionaria. Minha sorte é que ela não está na
cozinha também – o que quer dizer que
provavelmente está na mata com Bárbara. Mas,
antes de Laura, antes disso tudo, nem mesmo
Rodrigo estaria insistindo assim depois que já dei a
entender que não quero falar sobre alguma coisa. E
eu sei que eles vão continuar insistindo até eu falar.
— Eu demorei meses para conseguir falar com
Laura sem ela fugir — falo, encarando a xícara de
café. — Depois de ontem, voltei para a estaca zero.
Ou até pior que isso, na verdade. Não quero
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pensar em qual vai ser a reação dela.


Amara ri. Estreito os olhos e me viro para a
cozinha, mas não consigo ver onde ela está.
— Eu não vou nem falar nada — Lavínia
resmunga e se vira para a porta.
Rodrigo passa uma mão no rosto.
— Quem diria...
— Quem diria o quê?
Ele revira os olhos e aponta para cima.
— Alexandre, só escuta.
Respiro fundo e obedeço. Normalmente sempre
tem ruídos demais pelo casarão, alguém jogando ou
ouvindo música, e isso desde bem antes de Laura
vir para cá...
Mas só tem uma pessoa nessa casa que colocaria
Ney Matogrosso para tocar, ainda mais nessa
altura. Olho para cima, sem ter certeza de que estou
ouvindo certo.
Amara ri de novo e Daiane abafa uma risada.
Sério mesmo? Laura está ouvindo O Vira? De
todas as músicas... Balanço a cabeça quando o
refrão começa a tocar. Vira, vira, vira homem, vira,
vira lobisomem.
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— Acho que a playlist do momento não é para


me irritar, sabe — Rodrigo comenta.
Não. Ela nunca colocou Ney Matogrosso antes.
Não vai ter colocado agora por acaso. Balanço a
cabeça, sem querer acreditar. Só Laura para fazer
uma coisa dessas.
— Vai resolver as coisas com ela — Amara
fala, saindo de trás do balcão. — Não adianta tentar
entender o que aconteceu nem planejar nada até
Paula e Bárbara voltarem, de qualquer forma.
— Não que ele fosse conseguir se concentrar em
qualquer coisa agora, não é? — Rodrigo completa.
Daiane ri. Suspiro. Acho que posso me
considerar feliz por Caio não ter voltado para
dentro da cozinha. A essa altura ele já deve estar na
mata, o que quer dizer que pelo menos uma pessoa
não ouviu essa conversa.
— Ficar esperando não vai facilitar as coisas
para você — Amara avisa.
Não, não vai. Respiro fundo e me levanto.
Ninguém fala nada enquanto saio da cozinha,
nem vejo ninguém pelo casarão, quando subo para
o segundo andar. O que quer dizer que estão se
escondendo de propósito, provavelmente para ouvir
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o que vai acontecer. Eu devia ter arrumado uma


sala com isolamento acústico para Laura.
Bato na porta da sala. A música mudou para
uma que eu não conheço, mas não tem nenhum
sinal de que Laura me ouviu. Não que isso seja uma
surpresa. Abro a porta e paro. Ela está sentada na
frente do notebook, mas está olhando diretamente
para mim. Então ela ouviu quando bati.
— Posso entrar? — Pergunto.
Ela estreita os olhos e não responde.
— Laura...
— Você mentiu para mim.
— Não era...
Ela fecha o notebook e cruza os braços.
— Se você vier dizer que “não era seguro que
eu soubesse”, pode procurar outra desculpa. Essa
não vai colar. Isso não tinha nada a ver com ser
seguro ou não. Não era política do Outro Mundo.
Foi só você mostrando que não confia em mim.
De todas as reações possíveis, eu não esperava
essa. Respiro fundo, só para ter certeza do que
estou entendendo. Ela não está com medo. Está
com raiva porque eu não contei a verdade. Mas
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não está com medo de mim.


Uma gargalhada escapa antes de eu entender o
que estou fazendo. Laura não está com medo. Ela
não conseguiria esconder algo assim de mim.
— Cai fora — ela fala.
Balanço a cabeça, sem conseguir parar de rir. Eu
tinha tanta certeza de que ela não ia nem querer
olhar para mim depois do que aconteceu, que ia se
trancar no quarto de novo, com medo dos
monstros...
Laura se levanta e vem na minha direção.
— Sai daqui.
Minha risada morre. Isso foi a mesma coisa que
ela falou ontem, depois... Depois.
E não posso sair sem pelo menos tentar me
explicar. Dou um passo para dentro da sala e fecho
a porta.
— Não, Laura...
Ela avança até estar na minha frente. Não me
surpreenderia se ela me empurrasse para fora da
sala, pelo que consigo ver na sua expressão.
— Sai daqui — Laura repete.
Balanço a cabeça, encarando o chão.
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— Isso foi estúpido — murmuro e balanço a


cabeça de novo antes de olhar para ela. — Não
devia ter rido, me desculpe.
Ela estreita os olhos e cruza os braços. Se fosse
alguém do Outro Mundo, a essa altura já teria me
atacado. Suspiro.
— Eu não devia ter rido — repito. — Mas...
Não era isso que eu esperava ouvir.
Laura levanta as sobrancelhas.
— Esperava o quê? Alguma falação de “ai, você
é um monstro, fica longe de mim”?
Rio baixo, dessa vez sem humor nenhum. Era
exatamente isso que eu esperava. Exatamente.
Porque, no fim das contas, é isso que eu sou: um
monstro. Alguém que não deveria nem estar vivo
agora.
Ela respira fundo e solta o ar com força.
— Tem um mês que estou aqui. Nesse meio
tempo, já vi como todo mundo aqui te trata, já te vi
colocar membros do Conselho para correr sem
precisar fazer esforço, e isso levando em conta que
teoricamente eles são os mais fortes do Outro
Mundo. E já ouvi as histórias sobre como vocês
vieram parar aqui. É óbvio que já sabia que você
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não era parte lobo e parte... Sei lá, parte cacatua.


Posso até demorar para entender essas coisas todas
do Outro Mundo e tudo mais... Mas não sou tão
lerda assim.
Continuo olhando para ela, sem ter certeza de
que ouvi certo. Não esperava por isso. Nunca teria
imaginado essa reação. Assinto e levanto a mão,
sem desviar o olhar do dela. Tenho quase certeza
de que ela vai se afastar, mas Laura fica no mesmo
lugar, mesmo que ainda esteja com aquela
expressão série que parece estranha nela. Coloco a
mão no seu rosto e passo os dedos pela sua
bochecha. Já ficamos parados assim tantas vezes,
mas agora é diferente. É a primeira vez que ela não
relaxa.
E Laura merece toda a verdade.
Me afasto e me viro para a parede. Se estiver
olhando para ela não vou conseguir falar o que
preciso.
— Sabe o que acontece com lobisomens? Aqui,
em qualquer lugar do mundo, nós somos caçados.
Assim que descobrem um de nós, os Conselhos
regionais dão ordens para sermos mortos o mais
rápido possível. Fora deste plano, entre os
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demônios, somos armas. — Respiro fundo e solto o


ar lentamente. — Um lobisomem transformado não
tem quase nenhum controle do que faz. Às vezes,
quando a transformação é voluntária e não forçada
pela lua, conseguimos nos lembrar de algum
objetivo, mas nem isso é uma certeza. E nunca nos
lembramos do que fazemos. Se existe algum ser do
Outro Mundo que pode realmente ser chamado de
monstro, somos nós. Um lobisomem transformado
não é como um metamorfo. Ele não pensa, é só
uma coleção de instintos básicos. E estes instintos
são violentos e sanguinários, para resumir. Somos
máquinas de destruição em massa, sem o menor
controle, e é por isso que somos caçados.
Escuto os passos de Laura e me viro. Ela voltou
para a mesa e se sentou em cima dela, de pernas
cruzadas. Ótimo. É melhor ela se manter distante.
— Quase todos os lobisomens são mortos antes
de terem filhos, pelo menos neste plano. Não
somos como uma das outras raças do Outro Mundo,
que se reproduzem como os humanos. Um
lobisomem nasce por causa de uma maldição,
ninguém sabe ao certo como. Mas aquela história
de sétimo filho do sétimo filho tem uma boa dose
de verdade. Eu fui a primeira criança mestiça de
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lobisomem e outro ser do Outro Mundo. Isso, junto


com o fato de que só me transformei pela primeira
vez na adolescência, foi o que salvou minha vida,
ou o Conselho teria mandado me matar, também.
Isto, ser chamado de monstro, os insultos e
acusações, as pessoas se afastando... Isto é minha
vida. Não que estejam errados. Eu sei o que sou. E
eu sinto muito que tenha ficado ofendida com o que
fiz, mas... Não vou me desculpar.
Ela fecha os olhos e solta o ar com força.
— Você sabe que poderia ter feito as coisas de
outro jeito, não é? Sem essa história toda de
viagem. Poderia ter falado que ia passar dois dias
longe do casarão, que era algo seu, algo necessário.
Balanço a cabeça, sem sair do lugar.
— Você é curiosa. Ia insistir.
Laura cruza os braços de novo. Tenho a
impressão de que dei a resposta errada.
— Alguma vez eu insisti em algum assunto que
você realmente não queria falar?
Suspiro. Ela está certa. Por mais que Laura seja
curiosa, até hoje ela não perguntou sobre as
cicatrizes, nem insistiu em perguntar sobre meu pai
e a família do lado dele, nem sobre o que eu
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realmente sou. Quando ela percebe que não quero


falar, de verdade, ela não insiste.
E ela tem todo direito de estar furiosa.
— Eu devia ter confiado em você. Eu sei.
Mas estava com medo demais da sua reação
para fazer qualquer outra coisa.
Ela não fala nada por alguns instantes. Desvio o
olhar de novo. O que falei antes é verdade: não vou
me desculpar por ter escondido que sou um
lobisomem. Sei muito bem o que acontece quando
descobrem o que sou. Sei que tipo de reação posso
esperar. Ao mesmo tempo, ela também está certa.
Eu deveria ter confiado nela, sim. Pensado que ela
poderia não reagir da mesma forma que sempre
acontece, especialmente com humanos, porque
nada é normal perto de Laura. Ou, no mínimo, lhe
devia a verdade antes que ela decidisse se envolver
comigo.
Laura desce de cima da mesa e me viro para ela.
— Sobre o que aconteceu... — ela começa. —
Obrigada. Você salvou minha vida.
Só isso?
Ela suspira e dá de ombros.

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— Admito que Alexandre em modo monstrão é


um pouco assustador, mas... — Ela dá de ombros
de novo. — É você. E eu teria morrido lá.
Solto um risada. Por que é que eu ainda me
surpreendo quando Laura age de uma forma que
ninguém espera? Balanço a cabeça e vou na sua
direção, ainda sorrindo.
— “Modo monstrão”? — Repito.
Ela sorri.
— Tem outro nome para isso?
Demônio e abominação são os mais comuns,
depois de monstro. E aí vem Laura e usa esse tom,
como se isso fosse uma brincadeira. Se eu já não a
conhecesse, ia dizer que é louca.
Balanço a cabeça de novo e paro na sua frente, a
segurando pela cintura.
— Vários — respondo. — Mas gostei do seu.
E se essa é sua única reação, se a raiva era só
por eu não ter contado a verdade, se ela não está
com medo...
Puxo Laura para mais perto, colando nossos
corpos. Ela passa os braços ao redor do meu
pescoço ao mesmo tempo em que a beijo. E se eu
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não sei como falar tudo o que queria, agora, isso é a


única coisa que consigo fazer. Eu não faço a menor
ideia de como Laura veio parar na minha vida, mas
não quero perdê-la. Não importa o que aconteça...
Não posso perdê-la.

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CAPÍTULO VINTE E NOVE

L AURA
APOIO UM COTOVELO NO COLCHÃO E LEVANTO A CABEÇA
para encarar Alexandre, que está deitado ao meu
lado, com uma mão na minha cintura.
— Vai me explicar o que aconteceu?
Ele suspira e olha para mim.
— Acho que isso é um recorde. Você aguentou
quanto tempo sem perguntar mesmo?
Dou um tapa na sua barriga e ele ri.
— Não olhei as horas — resmungo.
Estava ocupada demais para pensar nisso, na
verdade.
Alexandre aperta minha cintura, mas continua
na mesma posição. Não falo nada. Sei que ele não
está acostumado a conversar sobre isso e que não
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gosta de tocar no assunto. Aquele quase discurso


mais cedo na minha sala deixou isso bem claro.
Mas... Dessa vez eu tenho certeza de que preciso
saber o que aconteceu de verdade.
— O que você quer saber? — Ele pergunta.
Respiro fundo e tento colocar as coisas em
ordem na minha cabeça, mesmo que a mão de
Alexandre, subindo e descendo pela minha cintura,
esteja me distraindo.
— Todo mundo falou que você não deveria ter
me reconhecido, muito menos obedecido quando
falei para sair. E você falou que quando se
transforma é só instintos e não se lembra do que
fez... — Paro de falar. — Droga. Isso quer dizer
que você também não sabe o que aconteceu.
Ele ri em voz baixa.
— Pela primeira vez, eu me lembro de alguma
coisa. Não é muito, só... — Alexandre balança a
cabeça e encara o teto. — Eu me transformei assim
que entendi que Lavínia estava gritando sua morte.
Era um risco, mas se algo tinha dado tão errado, era
a única chance que tínhamos. E o monstro sempre
foi atraído para você, então pelo menos tinha
certeza de que iria na sua direção.
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Oi?
Apoio o cotovelo no colchão e levanto a cabeça
de novo. Alexandre ri e me puxa para baixo.
— Vou chegar nisso, curiosa. Espere um pouco.
Suspiro e dou mais um tapa na sua barriga.
Espero muito que essa história do “monstro ser
atraído para mim” não seja o que estou pensando.
— Depois disso, me lembro de sentir o cheiro
do seu sangue e me virar para onde você tinha
tentado se esconder. E você se levantou e ficou
parada, me encarando. — Ele aperta minha cintura.
— Não preciso falar que isso foi loucura, não é?
— Não — murmuro.
— A... Raiva não é a palavra certa, mas é a
única coisa que eu consigo pensar para explicar. O
monstro está sempre com raiva, procurando algo
para matar... — Ele para e se vira para mim. — E
não precisa fazer nenhuma piadinha sobre Hulk.
Abafo uma risada no seu ombro. Dessa vez eu
nem tinha pensado em falar nada, poxa.
Alexandre coloca uma mão na minha cabeça,
massageando de leve.
— Se continuar fazendo isso eu vou dormir —
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aviso.
Ele para e olha para mim, antes de começar a
fazer cafuné de novo.
— E se eu dormir não vou esquecer que tenho
um monte de perguntas para fazer depois —
completo.
Ele suspira e para. Sorrio e me viro, jogando
uma perna por cima de Alexandre e me
acomodando no seu ombro.
— Então o monstro é parente do Hulk... — falo,
cutucando sua cintura.
Alexandre segura minha mão.
— Perto de você, o monstro se acalma. É por
isso que consigo me lembrar disso. Ele estava
calmo, acho que... Satisfeito. Essa é a palavra. E
queria te agradar. Ele faria qualquer coisa que
pedisse. Eu consigo me lembrar, mas mesmo assim
não estava no controle. Ou então não teria passado
o dia sentado no limite da propriedade.
Rio. Não tem como dizer que não é engraçado.
Eu falei um “sai daqui”, e o monstrão obedeceu ao
pé da letra. Preciso me lembrar disso e tomar
cuidado com o que falar na próxima lua cheia.

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— Tá, mas... Como? — Pergunto, levantando a


cabeça. — Todo mundo falou o tempo todo que sou
cem por cento humana, então como é que isso
aconteceu? E a coisa que você falou de “o monstro
ser atraído para mim”... Por favor, não venha falar
que é uma dessas coisas de “companheiros”. Não
tenho paciência para isso nem nos livros.
Alexandre sorri e olha para mim, levantando
uma sobrancelha. Certo, então. Continuo.
— É forçado. Essa coisa de companheiros
predestinados... Não consigo levar isso a sério.
Sempre tenho a impressão de que é um atalho.
Aquela coisa de as pessoas quererem que algo dê
certo sem fazer esforço.
— Eu acho que tive que fazer bastante esforço
com você.
Estreito os olhos.
— Vai dizer que estou mentindo? Olha quanto
tempo eu precisei para conseguir falar com você
sem que saísse correndo. E ainda acho que ia ter
feito isso, se não estivesse tão preocupada com suas
ilustrações.
Abro a boca para discordar e paro. É verdade.
Nos dois anos que trabalhei no sebo, sempre fiz
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questão de manter a maior distância possível de


Alexandre. A aura de violência contida ao redor
dele me assustava, como se a qualquer momento
ele fosse perder a cabeça e... Sei lá. Mesmo que eu
tentasse ignorar isso, o medo estava ali. Até o dia
que ele viu minhas ilustrações e eu estava tão
preocupada com o que alguém de fora ia falar delas
que me esqueci completamente que deveria estar
com medo.
— Por favor, me fala que não é isso — repito.
Alexandre ri.
— Não é. Essa coisa de “companheiros” não
existe na vida real.
Solto um suspiro aliviado.
— Então o que é?
Ele volta a subir e descer a mão pela minha
cintura, encarando o teto. Espero, tamborilando
com os dedos na sua barriga.
— Para ser honesto, não tenho certeza. Nem
tenho como ter certeza. Mas existem histórias de
mulheres que conseguiam controlar lobisomens. É
uma lenda europeia, não sei de nada assim aqui. Se
bem que pode ser porque os lobisomens no Brasil
nunca vivem o suficiente para se encontrarem com
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uma delas. As chamam de fadas dos lobos ou


peeiras.
— Espera, se são um tipo de fada...
Alexandre balança a cabeça.
— Isso é só um nome. As histórias sempre
falaram que são mulheres humanas, não do Outro
Mundo. Mas isso é tudo que eu sei, e só porque
Ryan me contou depois das primeiras vezes que te
vi. É mais uma daquelas coisas que se perderam
depois que o Outro Mundo e a humanidade se
afastaram.
Tá, vou ter que ir para o Google depois, mas é
bom saber que tem um nome para isso, o que quer
que isso seja. E que não tem nada a ver com a tal
história de “companheiros”.
E...
— Depois das primeiras vezes que me viu?
Ele assente.
— Logo que começou a trabalhar no sebo. Da
primeira vez, achei que só estava mais calmo
porque na cidade estava longe dos problemas que
estava tendo aqui. Depois que notei que era culpa
sua. Comentei sobre isso com Paula, que foi atrás

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de Ryan.
— Que é a fonte oficial de informações
obscuras — completo. — Fada dos lobos... Gostei
disso. Como é o outro nome que você falou
mesmo?
— Peeira.
— Estranho.
— E duvido que vai achar mais do que o que
falei quando for para o Google.
Dou mais um tapa na sua barriga antes de me
deitar em cima dele. Alexandre passa as mãos ao
redor da minha cintura, me segurando no lugar.
— Então eu consigo te acalmar mesmo no modo
monstrão. Gostei disso.
E isso me faz pensar em outra coisa. Droga. Só
porque eu estava de bom humor...
— Foi por isso que propôs o tal acordo? Me
trazer para cá... Foi por causa disso?
O resto do sorriso de Alexandre desaparece na
mesma hora e ele fica sério.
— Não. Eu nunca... Não. — Ele balança a
cabeça e me aperta. — Eu teria proposto esse
acordo mesmo se você me irritasse só por estar por
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perto. Teria oferecido isso para qualquer pessoa na


mesma situação. Isso aqui é algo que eu realmente
não esperava que fosse acontecer.
Reviro os olhos. Auto estima mandou
lembranças.
E eu posso estar sendo idiota por isso, mas
confio em Alexandre. Se ele está dizendo que isso
não teve nada a ver, então não teve. Sinto quase
como se um peso enorme estivesse saindo de cima
de mim. Não queria pensar que isso entre nós só
existe por causa de alguma coisa que nenhum de
nós tem controle. É outro motivo para eu odiar essa
coisa de companheiros. Se é tudo por causa de
algum tipo de característica, algo de nascença ou
sabe-se lá o que, não existe sentimento de verdade.

···
A LEXANDRE
— POR FAVOR, ME DIZ QUE VOCÊ TEM ALGUMA IDEIA DO
que aconteceu aqui — Paula fala.
Balanço a cabeça e me inclino para trás na
cadeira, enquanto Rodrigo resmunga em voz baixa.
Me contaram o que aconteceu nos limites da
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propriedade, Paula completou com o que Bárbara e


ela descobriram – mais armadilhas espalhadas perto
da cerca – mas nada disso quer dizer que entendo o
que está acontecendo. Se entendesse, já teríamos
resolvido isso há muito tempo.
Foi justamente por isso que pedi para nos
encontrarmos na sala de reuniões principal, que tem
isolamento sonoro. Não quero que todo o casarão
escute o que discutirmos. Não acho que temos um
traidor, mas não vou arriscar. Laura, Paula,
Rodrigo, Lavínia, Ryan, Jorge, Amara e Caio estão
aqui. Eles são a nossa versão do Conselho, mesmo
que essa comparação nunca seja feita em voz alta.
Balanço a cabeça de novo quando ninguém fala
nada.
— Provavelmente sei menos que vocês.
— Bruxos, fey e metamorfos trabalhando
juntos... Não gosto disso — Amara murmura. — É
verdade que é o que nós fazemos, mas...
— Mas nós somos a exceção — Jorge completa.
E é exatamente esse o problema. Eu teria ficado
sabendo se um grupo assim se formasse de forma
legítima. Mas uma coisa de cada vez.
Me viro para Paula.
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— Isso pode ter sido obra de só um bruxo, ou


estamos lidando com um grupo?
Ela balança a cabeça.
— Não vou dizer que é impossível ser só um,
mas é bem improvável. Fiz as proteções mais fortes
que consigo. Isso quer dizer que sei de todos os
bruxos capazes de derrubá-las sozinhos que estão
nesse continente. E, se alguém forte assim tivesse
se aproximado da propriedade, eu teria sentido seu
poder quando fui ver o que aconteceu. É melhor
pensar que temos um grupo de bruxos.
— E o que eles usaram de magia fey também
indica um grupo com pessoas de raças diferentes —
Ryan completa.
Assinto. Seria minha próxima pergunta. Um
grupo de bruxos e um grupo de fey trabalhando
juntos. Se fossem só eles, não seria tão impossível
assim. Bruxos e fey costumam conviver bem,
especialmente quando estão em alguma cidade.
Não são exatamente aliados, mas não são inimigos.
Agora...
— Isso, mais um grupo de lobos renegados ou
solitários, que é uma coisa que nem deveria existir
— Rodrigo resmunga. — Acho que está na hora de
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sair da defensiva.
Os outros assentem. Laura olha de um lado para
o outro, parecendo perdida. Ela me perguntou
várias vezes se tinha certeza mesmo de que queria
que ela viesse, mas faço questão de que esteja aqui.
Laura não é do Outro Mundo, o que quer dizer que
pode ver as coisas por um lado que nenhum de nós
consideraria. Isso sem mencionar que ninguém
mais tem dúvidas de que quem quer que esteja nos
atacando está atrás dela.
— É o que querem — Caio fala.
Me viro para ele. Caio, se recusando a começar
um confronto, não é algo comum. Mas também não
é uma coisa que me surpreende, agora. Sabia que
pelo menos ele teria notado isso.
— Se vocês pararem para pensar, os problemas
aqui começaram quatro anos atrás. Lembram?
Quando alguém estava atacando nossas defesas?
Que pensamos que era só algum grupo do Outro
Mundo irritado com o bando?
— Ou provavelmente Gustavo — Lavínia
completa e assente. — Acha que estão ligados?
— Espera — Laura interrompe. — Isso está
acontecendo há mais tempo? Isso de derrubarem as
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defesas?
— Temos problemas desde que viemos para cá
— conto. — Não a ponto de derrubarem as defesas,
isso é recente. Mas testaram nossas proteções vezes
demais, quando viemos para cá, e depois dois anos
atrás, logo antes da construtora comprar o terreno
ao lado.
— Espera. — Paula se inclina para a frente na
mesa e puxa o ombro de Rodrigo. — Quatro anos.
Alexandre, quatro anos.
Respiro fundo e solto o ar de uma vez. Como é
que não pensei nisso antes?
— O que aconteceu quatro anos atrás? — Ryan
pergunta.
— Quatro anos atrás, o governo entrou em
contato com Ivan pela primeira vez — conto. —
Pouco tempo depois, entraram em contato com os
ratos também.
— Dois anos atrás, entraram em contato com os
felinos e os vampiros admitiram que já tinham
recebido mensagens. Não no Brasil, mas mesmo
assim... — Paula continua.
— Assim, não é por nada não... — Laura
interrompe.
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Lavínia olha para mim e assinto. É melhor que


ela saiba disso.
— O governo humano sabe sobre nós — ela
explica. — Lembra do que Paula falou sobre não
demorar muito para nos revelarmos? É por isso.
Não tem como a gente continuar se escondendo
quando governos e grandes organizações sabem
sobre nós.
E eles não entraram em contato de forma
exatamente amigável. Não sei detalhes sobre as
mensagens para os outros grupos do Outro Mundo,
mas a que Ivan recebeu tinha um tom claro de
ameaça. Eles querem nos usar, não que isso seja
uma surpresa.
Agora, o que Caio insinuou, que os ataques
estão ligados aos contatos da humanidade com o
Outro Mundo...
— Tem certeza disso, Caio? E por que nós? —
Pergunto.
Ele dá de ombros.
— Só acho que as datas são coincidência
demais. Tudo bate. E partir para a ofensiva numa
situação dessas é idiotice.
Rodrigo resmunga uma resposta que faço
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questão de não entender.


Ryan balança a cabeça.
— “Por que nós” é fácil de responder.
Visibilidade.
— Potencial para desastres, você quer dizer —
Lavínia completa.
Ele dá de ombros e olha ao redor da mesa. Faço
o mesmo, vendo Amara e Jorge assentirem. Não
preciso nem pensar no restante do pessoal. Só entre
quem está aqui, temos uma banshee, um curupira,
uma das bruxas mais poderosas dessa geração, um
sidhe treinado no Santuário da Morte e um
lobisomem. Se pensar no restante do casarão...
Potencial para desastres é uma boa definição.
Temos um grupo forte demais, aqui. Se qualquer
um de nós perder o controle, ou pior, tiver motivos
para mostrar o que pode fazer onde um humano
pode ver...
— Foi por isso que algumas raças dos fey não
sobreviveram — Amara fala. — E por isso que os
demônios se isolaram. Se algum deles saísse de
controle, o potencial para desastre e exposição era
grande demais.
— Como o que aconteceu trinta anos atrás —
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Jorge completa.
Abaixo a cabeça. Merda. Não queria me lembrar
disso. Trinta anos atrás, quando um dos demônios
maiores escapou, de alguma forma. Não conheço
detalhes sobre o que aconteceu – duvido que
alguém saiba – mas sei que foi quando Ivan
começou a trabalhar com Lílian e quando conheceu
sua companheira, que é meio demônio. É dessa
época que vem o respeito que o restante do Outro
Mundo tem por ele.
— O quê... — Laura começa.
— Não — Paula fala, depressa. — Dessa vez
não.
Laura olha para mim e balanço a cabeça. Dessa
vez, é melhor ela não saber. Algumas coisas, o
Outro Mundo se esforçou demais para manter em
segredo para eu arriscar a contar para ela.
— Eu deveria ter pensado nisso antes —
murmuro.
Lavínia balança a cabeça.
— Então todos nós deveríamos ter pensado
nisso. Somos um alvo fácil, nesse sentido. Se
qualquer um de nós perder o controle...

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— Só um louco pensaria em algo assim —


Rodrigo fala.
Caio dá de ombros.
Mas Rodrigo não deixa de estar certo. Se
alguém está fazendo isso de propósito, é louco.
Depois que um de nós perder o controle, não vai ter
volta.
Não qualquer um de nós. Eu.
— Eles querem que eu perca o controle — falo.
Ryan me encara, estreitando os olhos. Amara
balança a cabeça.
— Você não é o único aqui que conseguiria
fazer estrago o suficiente.
— O suficiente para quê? — Laura pergunta.
— Para nos forçar a fazer de tudo para que os
humanos esqueçam que existimos, porque seria
arriscado demais nos revelar depois de um
massacre — Paula responde.
— Isso quer dizer convencer os mestres
vampiros a interferir, porque só os vampiros
conseguem alterar memórias assim. E se os
vampiros se envolverem nessa escala, a balança de
poder do Outro Mundo vai mudar completamente.
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— Jorge apoia os cotovelos na mesa, se inclinando


para a frente.
— Todos nós ficaríamos devendo aos vampiros.
Isso nunca é uma boa ideia — Rodrigo fala.
O que abre outra possibilidade, mas...
— Não podem ser os vampiros fazendo isso,
então? — Laura continua e dá de ombros quando
todos se viram para ela. — Se sairiam ganhando
numa situação dessas, não podem ser eles
manipulando os outros para trabalharem juntos e
atacarem o casarão?
Paula olha para mim. Balanço a cabeça de leve.
Não acho que seja possível, mas não tenho como
dar garantia nenhuma.
— Não aqui — Ryan responde, olhando para
Laura antes de correr o olhar ao redor da mesa. —
Estamos no território de Semele. Ela não faria algo
assim. E, mesmo que Minas Gerais não tenha
vampiros muito fortes, ela ficaria sabendo se outro
dos Mestres estivesse agindo de qualquer forma no
seu território. A essa altura, já estaria aqui lidando
com os problemas diretamente.
— Se não são os vampiros, então... — Laura
começa e para, balançando a cabeça.
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— É alguém que não quer que o Outro Mundo


se revele — Paula fala.
— Mas nunca nos atacaram desse jeito antes. E
realmente parecia que o alvo era Laura. — Caio se
vira para ela.
Ryan assente.
— Exato. E eu quero saber porque você tem
tanta certeza de que estão atrás especificamente de
você, Alexandre.
Indico Laura com a cabeça.
— Por que outro motivo iriam atrás de Laura?
— Pergunto.
— Porque ela é uma humana vivendo entre nós,
sem problemas — Paula responde. — Porque eu
falei sobre a visão de Lílian, de que eu teria uma
amiga humana que saberia o que sou e que isso
seria um marcador de quando nos revelaríamos.
Balanço a cabeça, sem ter coragem de olhar para
Laura. Se fosse assim, teriam ido atrás dela antes
que soubesse sobre nós. Alguém teria que saber
sobre a visão de Lílian para tentar impedir esse
futuro, e mesmo assim Laura era só uma medida de
tempo, não a causadora da mudança.

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— Eles foram atrás de Laura porque se eu


perder o controle, ela é a única pessoa que tem uma
chance de me parar.
Ninguém responde. Respiro fundo antes de
continuar.
— Se conseguirem me fazer perder o controle, a
medida de segurança é Ryan, e só existe uma coisa
que ele pode fazer. Com Laura por perto, vocês vão
tentar evitar mandar Ryan atrás de mim enquanto
puderem, porque existe uma chance...
Paro e balanço a cabeça. Tenho certeza de que
já falei o suficiente para todos entenderem. A
primeira opção deles seria Laura tentar me acalmar,
o que é algo que não sei se ela conseguiria, se o
monstro estivesse totalmente fora de controle, e só
mandariam Ryan para me matar quando não
houvesse mais outra opção. Agora, sem Laura por
perto para me conter, por menos que fosse... Quem
está por trás disso teria o desastre que quer.
— Isso é tudo especulação — Paula fala e olha
ao redor. Ninguém discute com ela. — O que
podemos fazer é tomar cuidado e ficar atentos. E
quem tem contatos úteis, tentar descobrir alguma
coisa.
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Assinto. Podemos continuar discutindo pelo


resto do dia e não vamos chegar a lugar nenhum
sem mais informações.
— Isso vale para você também, Laura —
completo.
Ela abre a boca para me responder e para,
levantando as sobrancelhas e assentindo. Ela pode
ser humana, mas também tem seus contatos.
Camila dos lobos é conhecida e está numa posição
alta da hierarquia.
Os outros também assentem e começam a se
levantar, conversando em voz baixa. Caio tira o
celular do bolso antes de chegar na porta e vejo
quando começa a digitar depressa. Os seres nativos
estão espalhados, mas costumam manter contato
entre si. Se algum deles souber de alguma coisa, vai
repassar para Caio... Espero.
Seguro a mão de Laura quando ela passa atrás
da minha cadeira. Ela olha para mim e balanço a
cabeça. Ainda não. Ela suspira e não insiste.
Só quando Paula – a última a sair – fecha a
porta, Laura se vira para mim de novo.
— O que foi?
Respiro fundo e balanço a cabeça de novo, antes
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de olhar para ela.


— Quero que tome cuidado. Mais cuidado.
— Eu... Não. — Ela balança a cabeça. — Sério,
não tem como saberem que eu sou essa coisa
estranha.
Talvez.
— É possível que não saibam que é uma peeira.
Mas também é possível que saibam. Não vou correr
riscos. E, além disso, estão observando o casarão
desde o começo. Quais as chances de não saberem
que estamos juntos?
Ela solta o ar com força.
— Certo... Acho que isso quer dizer que posso
ficar mais paranoica.
Coloco uma mão no seu rosto e Laura morde o
lábio. Ela é a mulher humana que me viu
transformado e continua sem ter medo de mim. E
continua ao meu lado. Não vou deixar que nada
aconteça com ela.
— Pode. Por que não importa o que aconteça, eu
vou te defender.
Essa é a verdade. Eu vou defendê-la, sem me
preocupar com as consequências ou pensar no que
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vai vir depois.


Laura dá uma risada fraca.
— Porque sou uma dos seus?
Balanço a cabeça.
— Porque é você, e eu não quero te perder.

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C A P Í T U L O T R I N TA

L AURA
JÁ É TERÇA DE MANHÃ E EU NÃO CONSIGO DEIXAR DE
pensar na declaração de Alexandre. Não tem como
eu interpretar o que ele falou – que não quer me
perder – de outro jeito. Alexandre sabe que querem
que ele perca o controle, e mesmo assim falou que
faria qualquer coisa para me defender. Engulo em
seco e encaro a tela do meu notebook, sentindo
borboletas no meu estômago. Não faço a menor
ideia de quando foi que chegamos nesse ponto.
Quando ele passou a pensar em mim assim. E eu
faria a mesma coisa por ele... Mesmo que eu dizer
isso não tenha o mesmo impacto.
Eu sou uma idiota. Foi só quando ele falou
aquilo que me lembrei daquela minha ideia
retardada, de me aproximar de Alexandre para

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convencê-lo a me deixar ir. Ir para onde? Para a


vida planejada que eu tinha antes? Ou para mais
uma rodada de brigas com minha família, para
tentar correr atrás dos meus sonhos e ver tudo dar
errado? Não. Eu não quero sair daqui, não de
verdade. O que eu tenho aqui – os amigos, o
trabalho que comecei, e até mesmo Alexandre – é
muito mais que qualquer coisa que tenho em Monte
das Pedras ou qualquer outro lugar. Para que vou
querer sair daqui?
Coloco minha playlist maluca para tocar e abro
a ilustração de Alexandre, que não terminei até
hoje. No fim das contas, a verdade é essa. Não
tenho nenhum motivo para querer sair daqui, a não
ser por pirraça. Só porque estou proibida, por assim
dizer. Mas... De acordo com Paula, em um ano no
máximo o Outro Mundo vai se revelar para a
humanidade. Aí não vai mais ser necessário me
manter aqui como uma refém – não que eu me sinta
assim.
Um ano. Eu posso ficar aqui por um ano, sem
problemas. Ainda mais se tem algum louco
querendo me matar justamente porque estou aqui e
estou com Alexandre. E depois disso...
Provavelmente vou continuar aqui. Viajar um
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pouco, quem sabe, se continuar fechando trabalhos


como o pacote de ilustrações que estou fazendo.
Mas vou voltar para cá, porque mesmo sem
Alexandre no meio da situação, me sinto bem aqui.
Melhor do que me sentia na casa dos meus pais, da
minha avó, ou até mesmo em BH. E não importa o
que aconteça entre Alexandre e eu, não acho que
isso vai mudar.
Respiro fundo e reativo a camada com o rosto
de Alexandre, no Photoshop. Não adianta tentar
tirar ele desta ilustração. Por algum motivo, é ele e
ponto. Então, que seja.
E acho que essa é a resposta que eu estou
procurando desde que ele falou aquilo para mim.
Que seja. Aconteceu, estamos juntos mesmo, e não
me arrependo. Então não preciso ficar com a
consciência pesada. Posso ter me aproximado de
Alexandre com segundas intenções, mas para ser
bem honesta, já faz um bom tempo que isso não
importa mais.
Aumento o volume e começo a cantarolar junto
com minhas músicas, enquanto termino de pintar a
ilustração. Tenho tempo, estou adiantada com o
pacote que o autor contratou. Posso me distrair um

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pouco com uma ilustração feita para mim.


Só me lembro de parar para almoçar porque
baixei um programa que funciona como
despertador. Podia usar o celular para fazer isso, eu
sei, mas ele está ficando mais tempo sem bateria
que qualquer outra coisa. É melhor assim. Salvo a
ilustração e paro encarando a tela. Quase pronta. Só
falta acertar os detalhes agora, mas isso faço
amanhã. De tarde, vou mexer nas ilustrações
contratadas. E eu ainda queria saber de onde essa
imagem apareceu na minha cabeça e o que ela quer
dizer. Não que tenha que necessariamente ter um
significado, mas... A ideia toda é específica demais
para ser algo aleatório. Aposto qualquer coisa que é
meu subconsciente me pregando peças. Isso não
seria nenhuma novidade.
Levanto a cabeça quando escuto uma batida na
porta e Alexandre coloca a cabeça para dentro.
— Está ocupada?
Minimizo o Photoshop na mesma hora.
Consegui esconder a ilustração até agora e vou
continuar fazendo isso, se possível.
— Parando para ir almoçar. O que foi?
Ele termina de abrir a porta e dá alguns passos
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para dentro.
— Só tive uma curiosidade... Já viu o vídeo do
passarinho cantor?
Por que é que eu tenho a impressão de que não
vou gostar disso?
— Não.
Alexandre se vira para a porta, que deixou
aberta.
— Rodrigo, você que salva essas porcarias, me
diz que tem o vídeo do passarinho cantor.
Suspiro. Já me acostumei com como quase todo
mundo na casa consegue ouvir qualquer coisa sem
precisar de gritos. Podem não prestar atenção em
tudo que se fala pela casa, mas se o nome deles for
mencionado, vão ouvir. Mas pelo menos quando
sou eu perguntando alguma coisa, me respondem
num volume que consigo ouvir. Se Rodrigo
respondeu alguma coisa, eu não ouvi.
Cruzo os braços, esperando, e Alexandre não
fala nada nem sai do lugar. Não demora muito para
eu escutar passos. André entra na sala, Lavínia vem
logo depois, e por último chega Rodrigo. Estreito
os olhos. Eu definitivamente não vou gostar disso.
Jorge entra atrás deles e para na porta. Certo. Agora
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estou preocupada.
— Não tenho mais o arquivo, mas já colocaram
no youtube — Rodrigo fala, levantando minha
cadeira comigo em cima e a colocando um pouco
para o lado. Metamorfos.
— Ei! Custa pedir licença? — Reclamo.
— Licença. — Ele repete.
Balanço a cabeça. Caso perdido. Ele se inclina
para mexer no computador e menos de um minuto
depois se afasta. Encaro o monitor como se fosse
explodir.
— Não vai dar play? — Alexandre pergunta.
Eu não vou gostar disso. Certeza. Aperto o play.
Ahh... Um passarinho azul pousado em um fio e
tocando um violão. O que pode ter de mal nisso? E
eu adoro Still Loving You. Acho que estava
cantando ela mais cedo. Sei lá, minha playlist já
passou por tanta coisa. E o passarinho cantando é
fofo... Não. Espera. Retiro o que disse. Retiro.
Gente. Que gritaria. Que... Puta merda. E eu não
consigo parar de rir. Meu Deus. Isso. Taca alguma
coisa pra fazer ele calar a boca, está matando a
música e...

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Ai.
Me viro para Alexandre. Ele está sorrindo.
— Se isso foi um comentário sobre eu
cantando... — Paro quando escuto uma risada
abafada. — Se isso é um comentário sobre eu
cantando, só tenho uma coisa a dizer.
Alexandre levanta as sobrancelhas.
— Tampa o ouvido.
Lavínia dá uma gargalhada e Rodrigo tenta
abafar a risada.
— Ou então me arranjem uma sala com
isolamento acústico. — Cruzo os braços. — Porque
não vou parar de cantar.
— Cantar? Tem certeza que estava cantando? —
Rodrigo pergunta.
Pego um lápis que está em cima da mesa e jogo
nele. Rodrigo pega o lápis e se afasta quando estico
a mão atrás de qualquer outra coisa para
arremessar.
— Agora tudo faz sentido... — Jorge começa.
Estreito os olhos. Até ele? Isso é o quê, tiraram
o dia para me zoar de novo?
— Ela está querendo uma sala com isolamento
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acústico. Faz todo sentido — ele repete e dá de


ombros, olhando de mim para Alexandre.
— Ei!
— Foi você quem falou isso — André entra no
meio.
Puxo o notebook para perto de mim, abro a
playlist, volto até Still Loving You e dou play.
— E se vocês não me deixarem em paz, aí que
vão ter que ouvir minha cantoria mesmo. E vou
fazer questão de cantar o mais alto que consigo.
— O quê? Alguém falou alguma coisa? —
Rodrigo comenta e começa a assobiar enquanto vai
na direção da porta.
Cruzo os braços e olho para André, Lavínia e
Jorge. Lavínia levanta as mãos e sai também, com
os outros dois logo atrás. Ótimo. Não sou obrigada.
Vou trabalhar cantando sim, e se estão achando
ruim eu ser desafinada, se virem e não prestem
atenção.
Alexandre ri em voz baixa e fecha a porta atrás
deles. Estreito os olhos. Não esqueci que foi ele
quem começou isso.
— Engraçadinho — resmungo e pauso a

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música.
Ele sorri e vem na minha direção.
— Não consegui resistir depois que te ouvi
cantando Still Loving You. Acho que o pessoal
precisa organizar uma noite de karaokê, isso vai ser
divertido.
Divertido. Certo. Não falo nada, só continuo
encarando Alexandre. Ele dá de ombros e para na
minha frente.
— Se serve de consolo, me proibiram de cantar
nas noites de karaokê.
Okay, isso parece divertido.
— Proibiram porque era bom demais ou ruim
demais?
Alexandre faz uma careta.
— Por que acha que eu conhecia esse vídeo?
Rio alto, me inclinando para trás na cadeira.
Pior que eu, então. Pelo menos nunca ninguém me
proibiu de cantar em karaokê. Na verdade, o
pessoal de BH se divertia às minhas custas mesmo.
Alexandre se inclina na minha direção. Quando
dou por mim, ele está mexendo no meu notebook.
— Ei!
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Me levanto de uma vez, puxando sua mão, mas


ele já clicou no ícone do Photoshop. Droga. Paro
entre ele e o notebook e cruzo os braços. Alexandre
levanta as mãos, com um sorriso travesso no rosto.
Se alguém visse ele assim ia pensar que era até
mais novo que eu – é impressionante a diferença
que um sorriso faz.
— Não vou olhar se você não quiser. Mas
queria pelo menos saber porque tanto esconde essa
tal ilustração. Especialmente de mim.
Suspiro. Especialmente dele, que foi a primeira
pessoa de fora que viu meu trabalho e disse que eu
tinha potencial. Entendi. Na verdade, eu não tenho
motivos para esconder... A não ser o fato de que é
ele na ilustração. Isso fazia alguma diferença
quando eu ainda estava insistindo para mim mesma
que não tinha o menor interesse em Alexandre, mas
agora...
Suspiro de novo.
— Não ria.
Ele levanta uma sobrancelha e eu saio da frente
do notebook. Seja o que Deus quiser. Admito que
estou com medo de ver qual vai ser a reação dele,
mas não consigo deixar de encarar seu perfil
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enquanto Alexandre olha minha ilustração, daquele


jeito de sempre, como se estivesse analisando cada
detalhe.
— De onde você tirou esse desenho? — Ele
pergunta sem desviar o olhar da tela.
Dou de ombros.
— Foi meio que um sonho estranho que eu tive
um tempo atrás.
Alexandre balança a cabeça. Não consigo
entender se ele gostou da ilustração ou não e isso
está me deixando ainda mais nervosa.
— Faz sentido... Eu acho — ele murmura. — E
você me desenhou com as cicatrizes.
— E por que não desenharia?
Ele balança a cabeça de novo e não responde.
Respiro fundo e espero enquanto Alexandre dá
zoom na imagem, aproximando e depois afastando
para ver a ilustração completa.
— O castelo, as roseiras, a forma como elas
estão me segurando... — ele continua, balançando a
cabeça. — Faz todo sentido.
— Faz? — Paro ao lado dele e apoio um braço
no seu ombro. — Então me explique, porque eu
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estou sem entender desde que comecei a rascunhar


essa ilustração.
Alexandre ri e se endireita. Deixo meu braço
cair quando ele se afasta do notebook.
— De certa forma, estou preso aqui. — Ele dá
de ombros e vai até uma das janelas. — É o único
lugar onde estou seguro e não sou um risco para as
outras pessoas. É uma prisão, mas por minha
escolha.
Não falo nada enquanto Alexandre acompanha o
desenho de uma das roseiras com um dedo. Não
tinha pensado por esse lado, mas realmente faz
sentido. O que continua sem explicação é por que
essa imagem apareceu na minha cabeça, mas tá,
isso não é nada de novo. As ilustrações que faço
totalmente da minha cabeça sempre são as que não
consigo entender de onde a ideia veio.
— E essa conversa está ficando séria demais
para essa hora — ele fala.
Está mesmo. Levando em conta que ele
apareceu aqui para me zoar e agora já está parado
na janela olhando para fora, o que é o normal dele
quando não quer falar sobre alguma coisa...
— É falta de comida — comento.
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Alexandre ri e se vira para mim.


— Pode ter alguma coisa a ver.
Sorrio e indico a porta com a cabeça.
Já estamos descendo a escada quando percebo
que não faço a menor ideia de quando foi que
comecei a tentar fazer Alexandre sorrir mais
vezes... Ah, pelo menos isso eu já resolvi. Que seja.

···
ME SENTO NA MINHA CAMA E LIGO O CELULAR. TIVE
que colocar para carregar de novo – para variar, a
bateria acabou e eu nem vi. Quase bate um peso na
consciência por estar deixando o celular assim, mas
é melhor. Se deixar ele ligado, vou querer
responder as mensagens. E se começar a responder
as mensagens na hora, vou deixar alguma coisa
passar. Vou responder numa hora que não deveria,
falar algo errado... Alguma coisa assim, e alguém
vai notar que não estou na Nova Zelândia.. Melhor
não.
Eu até poderia conversar normalmente com meu
pai, mas todas as vezes que trocamos mensagens
ele pareceu tão tenso, mesmo através do celular,
que prefiro evitar. Até entendo a posição dele – ele
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não sabe o que está acontecendo de verdade, não


tem como ter certeza de que não estou mentindo
quando falo que estou bem. Ele só sabe que o Outro
Mundo existe, mas não entende o suficiente. Então,
melhor não.
E a única outra pessoa com quem eu poderia
conversar é Camila. Ela sabe onde estou, sabe
exatamente o que está acontecendo e sou capaz de
apostar que André ainda está mantendo ela
informada. Não que ela fosse esperar alguma
mensagem. Camila me conhece. Nem quando
morava em BH usava muito o celular. Só lembrava
de mandar mensagem quando precisava combinar
onde ia me encontrar com ela, nos dias que saíamos
juntas.
E sim, tem mensagem de Camila aqui. E de
Marina. Encaro o celular, surpresa. Marina sabe
que tenho uma tendência enorme a esquecer que
meu celular existe se não estiver no auge do tédio e
usando ele para jogar. E ela me mandou mensagem
pouco tempo atrás, falando que ia tentar os
vestibulares no meio do ano. Será que aconteceu
alguma coisa?
Abro a mensagem.

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Marina: Onde você está?


Levanto as sobrancelhas. Que pergunta...
Deixa eu pensar, o que tem na Nova Zelândia
que eu faria questão de visitar e que consigo fotos
relativamente fácil se precisar?
Laura: Fui visitar a vila dos hobbits. Lembra?
É igualzinho no filme mesmo!!!
E okay, agora eu realmente queria estar viajando
para a Nova Zelândia. Tinha me esquecido desse
detalhe. Tá, um dia ainda dou um jeito de ir para lá.
Suspiro e abro a mensagem de Camila. Mesmo
se Marina estiver esperando uma resposta – e eu
duvido que esteja, porque sua mensagem é de dois
dias atrás – provavelmente vai demorar um pouco
para me responder. Ela não costuma ficar com o
celular na mão.
Camila: O dia que você lembrar que tem
celular, quero detalhes.
Olho a data da mensagem. Logo depois do
ataque. Provavelmente André contou o que
aconteceu e Camila teve um daqueles momentos de
querer saber direto na fonte.
Laura: Você provavelmente já tem mais

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detalhes do que eu. Continuo sem entender o que


aconteceu.
Camila: É verdade que você mandou Alexandre
sair e ele te obedeceu? Transformado?
Coloco a mão no rosto, tampando um olho.
Ótimo. Os fofoqueiros... É óbvio que iam ter
comentado disso. Óbvio.
Laura: É.
Camila: Eu vou ter que me ligar pra você me
contar direito?
Se ela ligar, vou ficar duas horas no telefone, no
mínimo, porque ela não vai sossegar enquanto não
tirar cada detalhe de mim. E o que eu falei é
verdade: não entendi o que aconteceu até agora.
Nem quero ficar pensando demais no que
aconteceu e como eu quase morri. Não.
Laura: Alexandre diz que eu sou uma peeira.
Acho que é assim que escreve.
Desta vez ela demora a responder. Quase
consigo ver Camila gritando Felipe, perguntando se
ele sabe o que é isso, e então os dois mandando
mensagem para alguém que vai saber dar detalhes.
Deixo o celular em cima da cama, ainda ligado

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no carregador, enquanto procuro uma muda de


roupas para amanhã de manhã. Já me acostumei a
subir com roupas para o quarto de Alexandre e ele
já falou várias vezes para eu “me mudar” para lá de
vez, mas não quero isso. Sei lá, gosto de ter um
espaço para chamar de meu, mesmo que passe mais
tempo no quarto dele. E acho que ele entende isso
muito bem.
Quando pego o celular de novo, já tem cinco
mensagens de Camila.
Camila: Caralho...
Camila: Isso faz todo sentido.
Camila: Como é que nunca pensamos nisso
antes?
Camila: Se bem que eu nunca ia pensar nisso
mesmo, faz muuuuuuuito tempo desde a última vez
que ouvi histórias sobre peeiras.
Camila: Mas faz todo sentido.
Reviro os olhos.
Laura: Que bom que faz sentido pra você,
porque eu ainda estou tentando entender essa coisa
toda de ser 100% humana mas afetar o Outro
Mundo.

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Camila: Só os lobos. Qualquer tipo de lobo.


Camila: E isso explica por que eu e Felipe
ficávamos menos irritados quando saíamos com
você.
Encaro o celular, sem ter certeza do que li.
Menos irritados? Eu nunca vi os dois irritados para
valer. Mas lembro de alguns amigos em comum
falando que era raro eles ficarem nas festas até
quase de manhã, que era o que sempre fazíamos,
porque não tinham paciência.
Laura: A coisa de virar a noite nas festas?
Camila: Isso. Estar no meio de tanta gente e
com tanto barulho é incômodo. Mas quando você
estava com a gente, era mais fácil ignorar isso.
Pensando bem... Como é que eles aguentavam?
Levando em conta a audição dos metamorfos aqui
do casarão, devia ser quase um inferno ir para as
festas com discotecagem. Até os bares onde íamos
parar já deviam ser complicados, porque todos
tinham música relativamente alta e bastante gente.
Laura: Muito prazer, Laura, calmante portátil
para lobos.
Camila responde com emojis de risada. Sim,
pode rir. Sem problemas.
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Camila: Mas você está de boa?


Estreito os olhos.
Laura: De boa com o quê?
Sorrio quando Camila demora a responder. Ela
está achando o que, que vai fazer a pergunta
genérica para ver o que está na minha cabeça?
Estou de boa com muitas coisas e não tão de boa
com outras tantas. Seja mais específica.
Camila: Odeio quando você faz isso.
Camila: Já sei que não preciso perguntar sobre
você e Alexandre. Essa fofoca já chegou aqui com
bastante detalhes. Mas sobre essa confusão toda...
Camila: Aliás, é verdade que você colocou O
Vira para tocar quando Alexandre voltou para o
casarão?
Dou uma risada. Por que é que alguém ainda se
surpreende com isso? Era a música perfeita, poxa.
Não dava para perder a oportunidade.
Laura: É verdade.
Laura: E eu nem consegui entender essa
confusão toda ainda. Só sei que vieram atrás de
mim... E isso é bizarro. Não quero nem ficar
pensando no que aconteceu.
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Camila: Com direito. Não vou ficar


perguntando, então.
Camila: E vou ver se consigo descobrir alguma
coisa aqui.
Laura: Obrigada.
Espero um pouco e Camila responde com mais
alguns emojis. Quando ela não pergunta mais nada,
deixo o celular em cima da cama e pego minha
pasta de desenhos, que deixei dentro da gaveta de
um dos criados-mudos. Não faço a menor ideia do
que estou procurando, mas paro no desenho que fiz
pouco depois que cheguei aqui, de Alexandre e
Rodrigo treinando.
É estranho pensar em quanta coisa aconteceu
desde aquela manhã. Nem parece tem menos de um
mês desde que fiz esse desenho, de tanto que as
coisas mudaram. E, sendo bem honesta, mudaram
para melhor. Passo um dedo pela silhueta de
Alexandre. Quem diria, não é?
Meu celular vibra e me viro para ver o que é.
Marina me respondeu. Já tinha até esquecido que
ela perguntou onde eu estava.
Marina: Está aí mesmo?
Marina: NÃO ACREDITO QUE FOI NA VILA
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DOS HOBBITS!
É, isso realmente está estranho. Não a parte do
grito, porque Marina sempre foi alucinada com o
filme de Senhor dos Anéis, mas ela estar insistindo
em perguntar se eu realmente estou viajando. Tudo
bem que a história toda da viagem apareceu do
nada, mas se ela fosse desconfiar já teria começado
a questionar bem antes. Não assim, do nada.
Laura: O que foi que aconteceu que você está
perguntando onde estou, hein?
Marina: Não muda de assunto! Você foi na vila
dos hobbits! Quero lembrancinha!
Droga, agora me complicou. Bem, eu tenho um
cartão de crédito liberado para compras
internacionais, não tenho? E comprar
lembrancinhas da tal viagem vai ser necessidade,
então posso tentar arrumar alguma coisa. Se é que
existe lembrancinha de lá... Droga.
Laura: Vou ver o que consigo levar. E me
responde.
Marina: Vou cobrar! E não foi nada, só uma
coisa que ouvi falarem por aqui. Devo ter
entendido errado.
Encaro o celular. Alguma coisa que ouviu
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falarem em Monte das Pedras? Ela só vai para BH


mês que vem, então tem que ter sido por aqui.
Agora, por que é que alguém de Monte das Pedras
ia pensar que não estou viajando mesmo? Estranho.
E vai ficar muito na cara se eu perguntar agora.
Vou ter que lembrar de perguntar isso depois e dar
um jeito de ser discreta.
Laura: Tá, pode cobrar.
E não vou responder mais porque teoricamente
estou em outro fuso horário e não faço ideia de que
horas seriam na Nova Zelândia. Não sou nem um
pouco boa nisso. Pena que já entendi que realmente
é necessário.
Escuto uma batida leve na porta e me viro a
tempo de ver Alexandre entrar e parar na porta.
— Vai subir?
Assinto.
— Só estava pegando roupas e conferindo meu
celular. Falei com Camila, aliás.
Alexandre sorri.
— Ótimo. Mesmo sem estar na fazenda o tempo
todo, ela fica sabendo das coisas. Se alguém vai
conseguir descobrir de onde vieram aqueles lobos,

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é ela.
— Me use pelos meus contatos mesmo —
comento.
E é estranho pensar que tenho contatos dentro
do Outro Mundo.
Ele ri e vem até a cama, se abaixando para pegar
minhas roupas. Desligo o carregador do celular e o
enfio em uma das gavetas do criado-mudo, antes de
me virar para pegar minha pasta de desenhos.
Alexandre está parado encarando a pasta aberta.
Ah. Ele também não tinha visto esse desenho. Pelo
visto ele tirou o dia para ver todas as ilustrações
que eu estava escondendo. Não que eu tenha feito
muito esforço para esconder essa...
— Agora eu entendi porque você ficou
vermelha assim que Rodrigo e eu entramos na
cozinha, esse dia — ele comenta. — Você passou
quanto tempo nos observando?
E estou ficando vermelha de novo. Mas não vou
negar.
Dou de ombros.
— Não marquei no relógio.
Ele balança a cabeça.
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— Você me deixa escanear? Quero guardar essa


também.
Ele quer guardar a ilustração que eu fiz por
passatempo logo depois de acordar? Então tá.
— Claro. Mas... “Também”?
Alexandre assente, sorrindo. Puxo a pasta
quando ele não fala nada e a guardo na gaveta onde
estava.
— Também — ele responde quando me viro. —
É óbvio que vou querer uma cópia da que vi mais
cedo.
A ilustração das roseiras. Assinto.
E isso me lembra...
— Você ficou surpreso por eu ter te desenhado
com as cicatrizes. Quer que eu tire?
Ele balança a cabeça e olha para a janela.
— A maioria das pessoas, quando está
desenhando, pintando ou qualquer coisa assim, tira
qualquer imperfeição dos seus modelos.
— Eu desenho pessoas, não ideais. — E acho
que minha resposta saiu um pouco seca demais,
mas levando em conta o tom de voz dele, isso é
bom.
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Alexandre se vira para mim de forma brusca.


Consigo ver que o peguei de surpresa com essa
resposta também, mas é a verdade. Qual é a graça
da perfeição? Ela é impessoal, sem personalidade,
sem história.
Não falo nada quando ele me puxa e me abraça,
em silêncio. Homem complicado. Mas acho que
consigo entender por que isso foi uma surpresa e
por que ele está me segurando assim. Passo os
braços ao redor do seu corpo e espero, sentindo o
calor de Alexandre me cercando.
Não sei quanto tempo ficamos parados assim. É
tempo o suficiente para eu ter certeza de que,
mesmo que Alexandre normalmente aja como se as
cicatrizes não fossem nada demais, elas são algo
que o incomoda muito.
— Você nunca perguntou — Alexandre fala,
sem me soltar. — Sei que está curiosa.
Solto o ar com força, me afastando um pouco
para olhar para ele.
— E eu já entendi que você não quer falar sobre
isso. Além disso... Você falou que cresceu numa
cidadezinha não muito diferente de Monte das
Pedras. Acho que consigo deduzir um pouco...
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Ele suspira e me aperta com força. Enfio as


mãos por baixo da sua blusa, sentindo sua pele
quente sob meus dedos e seus músculos tensos. É
por isso que não pergunto. Por mais que eu esteja
curiosa, não vou fazer ele me contar algo que
obviamente não é uma boa história.
— Sabe aquela coisa de queimar o que pensam
que é coisa do demônio? Que assim iam purificar e
afastar o mal...?
Merda. Eu não queria ter pensado certo. Subo as
mãos pelas suas costas, sentindo seus músculos
ainda mais tensos.
— Algumas pessoas ainda acham que queimar
algo que consideram “coisa do demônio” é a forma
mais fácil de se livrar dela — ele termina.
Não que ele precisasse falar com todas as letras.
— Algumas pessoas... Alguns lugares ainda
estão presos na Idade Média — murmuro. Não faço
ideia do que falar depois disso.
— Eu me transformei...
A voz de Alexandre é tão baixa que não tenho
certeza de que ele queria que eu ouvisse. E preciso
de um instante para entender o que ele quer dizer.
Depois do que fizeram – durante, provavelmente –
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ele se transformou. E depois disso, quando ele


fosse para o modo monstrão...
— Por favor, me diga que os matou.
Os braços de Alexandre relaxam e desta vez é
ele quem se afasta para olhar para o meu rosto.
Surpreso de novo? Não sei por quê.
Ele me encara por alguns instantes e então
assente.
— Ótimo. Tiveram o que mereciam. — E essa
conversa já está um tanto mórbida demais. — Não
ia subir?
Pego minhas roupas, ainda em cima da cama, e
me viro para Alexandre. Ele continua parado me
encarando. O que ele achou que eu ia falar? Que
estavam certos? Ou que ia defender a ideia absurda
deles dizendo que só estavam com medo e coisa
assim? Não, tem coisas que simplesmente não se
faz. Essa é uma delas. Qualquer pessoa que tivesse
coragem de fazer algo assim merecia o que veio
depois.
Seguro a mão de Alexandre e o puxo na direção
da porta.

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C A P Í T U L O T R I N TA E UM

L AURA
ENCARO A PAREDE QUEBRADA PERTO DA PORTA DA
cozinha, do lado de fora do casarão, e balanço a
cabeça. Quando saí de casa pela primeira vez
depois daquela confusão toda e vi isso, perguntei o
que era. Amara me contou que Alexandre tinha
dado um soco na parede quando voltou para o
casarão, depois da lua cheia. E tem gente que diz
que eu sou dramática... Não viram nada. Ela
também falou que não vão arrumar a parede tão
cedo, porque aparentemente é divertido ver a cara
que ele faz quando vê a parte quebrada. Vendo
como Alexandre olha para a parede e desvia o olhar
depressa, com uma expressão envergonhada, sou
obrigada a concordar com Amara.
— O que foi? Algum problema com a parede?

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— Pergunto, sorrindo.
Alexandre me empurra com o ombro e
resmunga alguma coisa baixo demais para eu
entender.
Faz pouco mais de duas semanas desde o
“incidente”. Não tivemos mais nenhum sinal de
problema depois disso e ninguém conseguiu
descobrir nada sobre o que realmente foi aquilo. As
defesas do casarão estão no máximo, todo mundo
está em alerta, os metamorfos e alguns dos fey
começaram a verificar a propriedade a cada duas ou
três horas... Mas a impressão que eu tenho é de que
nada mudou.
E foi tempo mais que o suficiente para eu ter
certeza de que Alexandre estava, sim, com
vergonha daquela parede quebrada. Admito que eu
acho fofo, mesmo que um tantinho dramático
demais. Foi a reação dele quando pensou que ia
entrar no casarão e ver que eu estava com medo
dele de novo. Bem que eu queria ter visto a cara
dele quando entrou e percebeu que música eu
estava ouvindo. Porque sim, ele e o casarão inteiro
ouviram O Vira na minha playlist aquele dia. Não
tem outro motivo para Rodrigo e Aline terem

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começado a cantarolar ela perto de Alexandre.


— Você está atrasada.
Resmungo em voz baixa quando escuto Daiane
saindo do jardim. Estou só quinze minutos atrasada,
ela não precisa usar esse tom de “vou te torturar por
me fazer esperar”.
— A culpa é dele. — Aponto para Alexandre.
Ele se vira para mim e estreita os olhos. O que
foi? Não estou mentindo.
— Sei — Daiane comenta, parando na nossa
frente e cruzando os braços. — Nem vou falar nada
sobre por que se atrasou, então. Mas nem pense que
vai escapar dos cinco quilômetros.
Solto um gemido. Por que é que eu achei que
era uma boa ideia pedir para Daiane me treinar
mesmo? Ah, é, porque achei que ela não ia ser uma
louca fitness. Se eu soubesse...
Alexandre ri em voz baixa e dou uma
cotovelada nele. Muito bonito, rindo da desgraça
alheia. Correr cinco quilômetros não é legal. Não
mesmo.
Daiane revira os olhos.
— Resmungona. Se não quisesse mesmo já
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tinha falado para parar, então chega de drama.


Abro a boca para responder e paro. Droga. Não
tenho como retrucar. Ela assente, sorrindo.
Olho para o caminho ao redor dos jardins. Faz
uma semana que Daiane me colocou para correr
aqui fora de novo, depois que o pessoal colocou
proteções extra. Nem discuti. Não me esqueci dos
lobos daquele dia tentando me fazer ir para longe
do casarão. Qualquer proteção a mais é bem-vinda,
porque vai me dar mais tempo para fugir, se for o
caso. E o fato de que eu consigo pensar nisso sem
surtar é prova do tanto que minha vida virou uma
loucura.
Escuto um uivo vindo da direção da mata e dou
um pulo. Alexandre e Daiane riem e um instante
depois reconheço André vindo na nossa direção,
transformado. Okay, acho que nunca mais vou
ouvir um uivo sem me assustar.
Daiane olha de André para Alexandre e levanta
as sobrancelhas.
— Você vai com ele hoje?
Alexandre dá de ombros.
— Vou.

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Ela se vira para mim e aponta para Alexandre.


Sorrio e dou de ombros. É, eu sei que é estranho.
Sim, Alexandre vai se transformar e acompanhar
André na ronda pela propriedade. Nessa última
semana ele começou a relaxar um pouco sobre a
questão de todo mundo ter medo dele e não se
transformar de forma alguma perto de ninguém.
Não que ele esteja planejando ir para o modo
monstrão, mas Lavínia me contou que é raro ele se
transformar até mesmo em lobo.
André nos alcança e olha para Daiane. Tenho a
impressão de que eles têm toda uma conversa sem
trocar uma palavra, porque ela solta um suspiro
pesado e se vira na direção do caminho marcado.
— Qualquer coisa... — Alexandre começa.
— Eu corro para o casarão — interrompo. Acho
que consegui não soar nem irritada nem
impaciente, aliás. Por mais que eu entenda a
preocupação dele, não sou idiota. Isso foi o que eu
tentei fazer da primeira vez.
— Ou corre na minha direção — ele corrige,
sério.
Assinto. Isso é novidade, mas faz sentido, já que
ele vai estar aqui fora também. Se alguma coisa
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acontecer, posso ir atrás dele, que nem em modo


monstrão ele vai me atacar. Vantagens de ser essa
coisa estranha que não entendi direito até hoje.
Mas eu espero mesmo que nada aconteça. Está
muito bom assim, obrigada.
Me viro para acompanhar Daiane, que já está
parada me encarando com aquela expressão
resignada. Certo. Hora de começar a tortura
voluntária.
Para ser honesta, já me acostumei a correr. Por
um lado isso é bom, porque só tenho que seguir o
mesmo caminho, praticamente em piloto
automático, e posso deixar a cabeça viajar. É um
tempo que eu tenho para pensar na vida sem estar
exatamente pensando na vida... Se é que isso faz
sentido. E para discutir comigo mesma sobre como
finalizar as ilustrações e o que posso melhorar ou
técnicas diferentes para conseguir algum efeito...
Nunca falei que eu era muito normal. Pensar em
coisas de trabalho virou o meu normal, não que eu
esteja achando isso ruim. Acho que é porque estou
fazendo o que realmente gosto, então não consigo
tirar isso da cabeça. É que nem Alexandre falou:
preciso me policiar para não trabalhar o dia todo

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todos os dias.
E falando em Alexandre...
Faço o um esforço para não olhar para trás para
ver se ele está por perto. Já aprendi que olhar para
trás correndo não é uma boa ideia. E provavelmente
ele não vai estar à vista mesmo. Mas o que eu
estava pensando é que nessas semanas, eu conheci
um lado de Alexandre que nunca teria imaginado
que existia, na época que ele aparecia no sebo.
Divertido, fofo, romântico...
De uma forma ou de outra, ele fez muito por
mim. Se eu parar para pensar na Laura de antes de
vir para cá, a Laura que aturava o Rick, que tinha se
conformado a ficar em Monte das Pedras e deixar
essa bobagem de mexer com desenhos para lá...
Mal consigo me reconhecer. E isso é bom. Muito
bom, na verdade. Não quero voltar a ser aquela
pessoa.
O fato é... Gosto de ver Alexandre mais
tranquilo, menos preocupado com o que os outros
estão pensando dele. Ou melhor, parando de
imaginar que estão esperando o pior dele o tempo
todo ou coisa assim. Vai entender. Acho que nunca
conheci ninguém mais complicado que esse
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homem. Mas a impressão que tenho é que até


aquela aura de violência contida ao redor dele
diminuiu. E eu gosto de ver isso e saber que, de
certa forma, é culpa minha. Que ele está mais leve,
está sorrindo, e que eu fiz isso com ele.
E estou muito feliz que Camila esteja lá em
Belo Horizonte, porque se ela me visse assim as
piadas nunca mais iam acabar. Especialmente
depois de como eu neguei na primeira vez que ela
falou que eu estava interessada em Alexandre.
Pagar língua é isso aí.
Acho que já corri mais da metade da distância
que Daiane marcou quando escuto patas pesadas
atrás de nós. Respiro fundo e continuo a correr.
Ninguém deu nenhum alarme, Daiane está correndo
quase do meu lado sem se preocupar, então não é
nada demais. Provavelmente só André e Alexandre
nos alcançando. Não preciso entrar em pânico.
Certo. Mais fácil falar que fazer.
Me concentro em continuar correndo até que
André passa por mim e esbarra em Daiane, alguns
passos na minha frente. Ela resmunga alguma coisa
que não entendo e André a empurra com o corpo de
novo. No instante seguinte um brilho amarelo

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aparece ao redor de Daiane e tem um lobo onde ela


estava, ainda correndo. Ela olha para mim
rapidamente e então os dois lobos correm na
direção do gramado.
Só não paro de correr porque se tiver acontecido
alguma coisa, prefiro já estar me movendo. Mas
olho para Alexandre, que está bem atrás de mim.
— O que foi?
Ele bate o focinho na minha perna,
acompanhando minha velocidade.
Ótima resposta. Pena que não sei ler
pensamentos.
— Aconteceu alguma coisa? — Tento de novo.
Alexandre bate o focinho na minha perna de
novo e corre até estar um pouco à frente, seguindo
o mesmo caminho onde Daiane e eu estávamos
correndo. Tá, ele está muito tranquilo, acho que não
aconteceu nada mesmo. Então...
— Sério que você despachou Daiane mas vai
me fazer terminar de correr os cinco quilômetros?
Suspiro alto quando ele corre até onde estou e
depois alguns metros à frente, se vira e fica me
encarando. É. Ele vai me fazer terminar os cinco

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quilômetros.
Começo a correr de novo, virando no fim do
jardim e voltando por dentro deles, fazendo um
trajeto quase em ziguezague. Ainda bem que as
roseiras são muito bem cuidadas e podadas, senão
seria impossível correr aqui. Na verdade, já é um
desafio de atenção, porque não posso me distrair
demais senão vou acabar me machucando nos
espinhos. Alexandre continua correndo do meu
lado, tão tranquilo que tenho certeza que meu
ritmo, para ele, é quase uma caminhada leve.
Só diminuo o ritmo quando já estou acabando
mesmo. Estou bufando, quero desabar no chão e
ficar esticada na grama até minhas pernas voltarem
ao normal, mas já me acostumei com isso também.
E não estou tão morta quanto nas primeiras vezes
que corri essa distância.
Paro e olho para Alexandre, que ficou um pouco
para trás e está andando num passo mais lento que
o meu. Quer saber... Sorrio. Quando eu era criança,
meus vizinhos tinham dois cachorros, um labrador
e um husky. Sempre que saíam para passear com
eles, eram a atração da cidade, por motivos óbvios.
E vendo Alexandre andando nessa calma toda, não

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consigo deixar de me lembrar do husky. Sempre


achei eles parecidos com lobos mesmo. Eu gostava
de brincar com ele quando podia.
— Vem, Xandinho — falo, rindo.
Paro e penso no que falei. Não. Definitivamente
não. Alexandre bufa e dessa vez não tenho a menor
dificuldade para entender o que ele quer dizer. Não
mesmo.
Ele acelera o passo e vem na minha direção.
Vou andando de costas até bater na parede do
casarão, ainda rindo. Acho que deveria me
preocupar por ver um lobo desse tamanho vindo
atrás de mim assim, mas nem se quisesse
conseguiria ter medo de Alexandre.
O brilho amarelado aparece ao redor de
Alexandre assim que ele para na minha frente. No
instante seguinte ele está com os braços um de cada
lado de mim, me prendendo no lugar.
— Xandinho? — Alexandre pergunta.
Dou de ombros, sem conseguir parar de rir.
— Não quero nem saber de onde você tirou
isso...
Apoio a cabeça no seu ombro, tentando parar de

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rir. Nem eu sei, na verdade. Só saiu.


Alexandre dá um passo à frente, prendendo meu
corpo com o dele. Paro de rir na mesma hora, sem
nem me lembrar que estava morta de cansaço e
querendo desabar no chão.
Quando levanto a cabeça, ele está me encarando
com aquela expressão que já se tornou bem
familiar. Sorrio, mordendo o lábio, enquanto ele
abaixa a cabeça para beijar meu pescoço.
Admito que ainda não entendi como foi que isso
aqui aconteceu, eu e Alexandre. Só sei que não
quero que acabe.

···
PEGO MEU CELULAR ASSIM QUE ENTRO NO MEU QUARTO
para separar mais algumas roupas. Depois do
“incidente” eu estou pelo menos deixando o celular
carregado, para poder correr um olho sempre no
caso de Camila ter conseguido descobrir alguma
coisa sobre quem estava por trás daquilo e o que
queria. Ou quer. Não quero nem pensar que
podemos ter uma repetição daquilo tudo, mas... É
uma possibilidade.
Sem mensagens de Camila. Droga. Eu
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realmente tinha esperanças de que ela fosse


conseguir desenterrar alguma coisa, mas se já
passaram duas semanas e nada... Droga. Em
compensação, tenho uma mensagem do meu pai.
Não é nada demais, só ele perguntando se estou
bem e se estou “gostando da viagem”. Respiro
fundo enquanto digito uma resposta. Queria que ele
acreditasse quando eu falo que estou bem aqui,
melhor do que em qualquer outro momento da
minha vida, mas sei que isso não vai acontecer.
Então nem tento variar: uso as mesmas respostas
vagas de sempre.
Um ano. Só um ano, e então vou poder contar a
verdade, explicar tudo para ele.
Suspiro e olho as outras mensagens não lidas.
Tem uma de Bruna. Estranho, ela não fala nada
desde que me cobrou uma resposta sobre quando eu
vou “voltar”.
Bruna: Você está viajando mesmo?
Ah, não. Primeiro Marina, agora ela. Sério, qual
é a fofoca que está rolando com meu nome dessa
vez?
Laura: Estou, por quê?
Tiro o celular do silencioso e vou separar
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minhas roupas. Uma das melhores partes de morar


no casarão é não ter que me preocupar com roupas
sujas. Elas simplesmente desaparecem do meu
quarto e aparecem de novo, lavadas. Isso é a
definição de mordomia. De acordo com Lavínia, é
a vantagem de ter um brownie e uma duende
responsáveis pela casa. É da natureza deles cuidar
desse tipo de coisa. E eu que não vou reclamar
mesmo.
Dou um pulo quando o celular apita. É por isso
que normalmente deixo no silencioso o tempo todo.
Odeio esses barulhos.
Bruna: Nada não. Bobagem.
Bobagem coisa nenhuma.
Laura: Primeiro Marina, agora você. De onde
veio isso?
Bruna: Eu ouvi um comentário de Rick numa
das ‘festas’ dele. Algo sobre você não estar
viajando coisa nenhuma, só estar presa naquele
casarão histórico.
Bruna: Lerdeza minha ter levado a sério. Ele já
estava bêbado e ainda está puto com o pé na
bunda.
Paro encarando o celular, sem conseguir pensar
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em uma resposta. Rick falou alguma coisa sobre eu


estar presa no casarão? Como assim? Abro a caixa
de mensagens de novo. Rick só me mandou
mensagens nos primeiros dias, logo que vim para o
casarão. Okay. Isso não é bom. Eu devia ter
pensado que isso era estranho antes, ainda mais
depois de como terminei com ele. Rick não teria
me deixado em paz assim. Ele ia cobrar uma
satisfação, ia tentar voltar, nem que fosse só para
ser ele a me dar o pé na bunda depois. Vi os amigos
dele fazerem isso vezes demais para achar que não
ia acontecer a mesma coisa comigo.
Mas então...
Droga, preciso de um calendário.
Saio do quarto e praticamente corro para a
minha sala. Tenho o calendário que deixo do lado
do meu notebook, e posso aproveitar para anotar
tudo no computador. Melhor assim. Menos chances
de eu fazer confusão. Não que eu ache que vou
precisar anotar muita coisa... Acho que minha
paranoia foi longe demais dessa vez.
Ou melhor, eu espero muito que isso seja só
minha paranoia.

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···
A LEXANDRE
— ALEXANDRE, LIGAÇÃO DE LÍLIAN.
Olho para Jorge, que está parado na porta da
cozinha. O que Lílian quer agora? Ela não falou
mais nada desde que ligou para dizer que tínhamos
uma ameaça aqui, e eu preferia que tivesse
continuado sem dar nenhum dos seus avisos. E seja
lá qual for o motivo da sua ligação agora, com
certeza não é boa coisa.
Coloco o prato que tinha acabado de pegar de
volta no lugar. A comida vai ter que esperar.
— Vou atender no escritório. Não é para
ninguém me interromper — aviso.
Jorge assente enquanto passo por ele e vou para
o escritório que fica no primeiro andar. Não quero
nem imaginar o que aconteceu agora... Porque se
Lílian está ligando, é porque alguma coisa deu
errado ou vai dar errado.
Fecho a porta atrás de mim, conferindo se ela
realmente está fechada. O que quer que Lílian

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tenha a dizer, não quero metade do casarão ouvindo


essa conversa. Só então pego o telefone em cima da
mesa e espero o clique de quando Jorge desliga a
extensão.
— Lílian — falo, como cumprimento.
— A garota humana — ela começa.
Laura. Respiro fundo. Era só o que me faltava,
uma visão de Lílian envolvendo Laura.
— O que tem ela? — Pergunto.
— Se ela ficar aí, vai morrer.
Não. Não mesmo. Eu não ouvi isso.
— O que... — começo.
— Você ouviu. Se a garota continuar aí, com
vocês, ela vai morrer.
Não se fizermos alguma coisa antes. Lavínia já
gritou sua morte duas vezes e conseguimos evitar.
O que quer que Lílian tenha visto, vamos conseguir
evitar, também.
— Deve ter algum jeito. Se falar o motivo...
— Acha que eu estaria ligando para falar isso
se fosse só uma possibilidade, ainda mais quando o
assunto é uma garota humana que não tem a
menor importância para mim?
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Não respondo.
— Futuro imutável, Alexandre. Você sabe o que
isso significa. Se ela ficar aí, vai morrer.
Lílian desliga sem falar mais nada.
Futuro imutável. O termo dos videntes para
quando não importa o que tentem fazer, o resultado
sempre vai ser o mesmo.
Encaro o telefone na minha mão. Não quero
acreditar nisso. Laura... Não Laura. Se eu ligar de
volta para Lílian, pedir detalhes... Não vai adiantar
nada. Futuro imutável. Enquanto ela estiver aqui,
isso não vai mudar.
Coloco o telefone no lugar e me sento. Nunca
teria imaginado um aviso desses. Se bem que devia
ter esperado algo do tipo. Quando algo está indo
bem demais na minha vida...
Não. Não. Eu já fiz merda uma vez porque
estava preocupado só comigo. Essa previsão não
tem nada a ver comigo e nem vou fingir que tem. É
a vida de Laura que está em jogo, qualquer coisa
me envolvendo não tem que ser prioridade. Não
vou repetir o que fiz antes – colocá-la em risco
tentando me proteger. Então...
Alguém bate na porta. Só tem uma pessoa no
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casarão que Jorge não avisaria para não me


interromper.
Me levanto e abro a porta. Laura está parada do
outro lado, com um calendário e o celular na mão,
parecendo preocupada.
Não é justo. Quero acreditar que vou conseguir
proteger Laura de qualquer coisa que possa
acontecer, mas não consigo duvidar do que Lílian
falou. E não tenho a menor condição de conversar
com Laura agora.
— Preciso resolver um problema. É urgente?
Ela me encara por um instante antes de balançar
a cabeça, ainda parecendo preocupada.
— É só uma coisa que pensei. Eu espero.
Assinto e fecho a porta de novo.
Nunca gostei de lidar com Lílian. Sempre fico
com a impressão de que sou uma peça num
tabuleiro de xadrez, sendo movida sem saber o
objetivo final. Desde que a conheci, sempre foi
assim. É difícil acreditar que suas escolhas fazem
alguma diferença quando alguém está te dizendo
que isso ou aquilo vai acontecer. Mesmo assim,
Lílian nunca errou antes. É por isso que todos do
Outro Mundo a obedecem quando ela fala alguma
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coisa, mesmo que não confiem nela.


Mas Lílian não está aqui. E da outra vez ela
falou que tudo estava caótico demais para ter
certeza do que estava vendo, então talvez essa seja
a vez em que ela está errada. Talvez...
Saio do escritório e vou direto para a porta dos
fundos. Ninguém me para no caminho, o que é
excelente agora. Pelo horário, Caio já está na mata,
então é para lá que vou. Se qualquer coisa tiver
acontecido, ele vai ser a primeira pessoa a notar.
Entro no meio das árvores, batendo de leve no
tronco delas. Não faço a menor ideia da lógica por
trás disso, mas sempre que faço isso Caio aparece
depressa. É melhor que ficar dando voltas tentando
descobrir onde ele se enfiou.
— E aí, Xandinho?
Respiro fundo e me viro para ele. É claro que
todo mundo já ficou sabendo dessa brincadeira de
Laura. É óbvio que Caio vai me cumprimentar
usando esse apelido ridículo. Só que ninguém sabe
que foi a última vez que ouviram Laura fazendo
alguma brincadeira comigo.
— Alguma anormalidade aqui? — Pergunto.
Caio me encara por um instante e pula para o
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chão. Estreito os olhos. Se ele estiver pensando em


perguntar qualquer coisa, não é uma boa hora. E se
estiver pensando em dar qualquer resposta
espertinha, também é uma péssima hora.
— Nada — Caio responde.
Fecho os olhos e respiro fundo de novo. Eu
ainda tinha esperanças, mesmo sabendo que, se ele
tivesse visto qualquer coisa diferente, já teria
mandado um aviso para o casarão.
— Movimentação nos limites da propriedade?
— Insisto.
Ele balança a cabeça.
— Nada além dos humanos trabalhando no
condomínio, e o pai de Laura está garantindo que
ninguém chegue perto da cerca.
Assinto. Pelo menos uma coisa boa, então. Uma
preocupação a menos para nós, mesmo que não seja
a resposta que eu queria.
E Caio mencionar o pai de Laura só me faz
pensar em como isso tudo é injusto. Ele descobriu
sobre nós e, antes de entender o que tinha visto, já
estava sendo ameaçado. Eu senti seu medo, quando
falei com ele. Estava aterrorizado, e mesmo assim
mandou Laura para cá. Não tinha certeza de que ele
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faria isso. Mas então Laura veio, deixou tudo para


trás, aprendeu sobre nós, foi atacada mais vezes do
que gosto de pensar, e mesmo assim construiu seu
lugar entre nós... E agora vou fazer ela abandonar
tudo de novo.
Minha esperança era de que alguma coisa nova
tivesse acontecido aqui. Alguém se aproximando,
algo diferente... Não sei. Qualquer coisa que
pudesse me dizer que Lílian estava errada e que
havia uma ameaça externa que conseguiríamos
controlar. Mas não tenho como me iludir.
Me viro e saio da mata sem dizer nada,
ignorando Caio quando ele me chama. Laura vai
morrer se ficar aqui. Isso quer dizer que ela precisa
ir embora... E ir de uma forma que nem pense em
voltar para cá.
Paro antes do jardim e olho para as janelas do
terceiro andar. Sei exatamente como fazer ela
nunca mais querer colocar os pés no casarão.
Eu disse que a defenderia. Só nunca imaginei
que teria que escolher entre protegê-la ou perdê-la.

···
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L AURA
AINDA ESTOU COM O CALENDÁRIO NA MÃO, MESMO QUE
não tenha voltado para a minha sala. Me encosto na
janela do meu quarto, olhando para fora. É paranoia
minha. Só pode ser. Imaginação demais.
Coincidência...
E quanto mais eu tento me convencer de que
isso é impossível, mais acredito que estou certa.
Marina me mandou mensagem perguntando
onde eu estava no dia depois do “incidente”. Na
segunda-feira, quando eu ainda estava esperando
Alexandre voltar para o casarão. E ela falou que
ouviu alguém em Monte das Pedras comentar que
eu não estava na Nova Zelândia. Do mesmo jeito
que Bruna ouviu Rick falar que eu estava no
casarão. E Rick... Recebi quatro mensagens dele
nesse tempo todo desde que estou aqui. Três no
sábado, logo que cheguei no casarão. Uma no
domingo, onze e pouco da manhã. Depois disso,
mais nada. Silêncio completo.
Bruna ouviu Rick falando que eu estava presa
aqui. A última mensagem de Rick foi depois de
Gustavo aparecer no casarão e tentar me atacar. É
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demais imaginar que Rick conhece Gustavo? E que


Gustavo contou para ele? E se ele sabe disso... Do
que mais ele sabe?
Meu pai entrou na propriedade do casarão sem
saber e viu o que não devia. A mesma propriedade
que o pai de Rick queria comprar para construir o
condomínio. Meu pai trabalha para o pai dele e
estava em horário de trabalho quando as proteções
ao redor do terreno do casarão foram derrubadas.
Quais as chances de isso tudo ser coincidência?
Olho para baixo. Alexandre está atravessando o
jardim, voltando para o casarão. Estranho. Pensei
que o que quer que ele precisasse resolver, fosse
fazer isso do escritório. Pelo menos foi o que
pareceu pela forma como ele fechou a porta na
minha cara.
Ele olha para cima e para, me encarando. Abro a
boca para falar que vou descer, mas Alexandre
corre na direção do casarão, pula para uma das
sacadas do segundo andar e de lá para a minha
sacada. Puta merda. Ainda estou de boca aberta
quando ele passa por cima do parapeito e se
acomoda encostado nele, de braços cruzados.
Okay, acho que agora entendo o que ele queria
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dizer quando falou que essa altura não era nada


demais para um meio metamorfo.
— O que foi?
Respiro fundo e conto minha ideia maluca – a
coisa toda de Rick e seu pai estarem por trás das
proteções sendo derrubadas e dos ataques de
alguma forma, as mensagens de Marina e Bruna,
como Rick parou de me mandar mensagens
depressa demais... Alexandre não diz nada, só
continua parado no lugar, de braços cruzados,
enquanto falo.
— É improvável, mas...
— Tão improvável quanto você se aproximar de
mim por interesse, porque é a única forma de
conseguir ir embora daqui?
O quê? Encaro Alexandre, sem ter certeza do
que ouvi. Não. Eu não estou ouvindo coisas. A
expressão dele, fechada de um jeito que eu nunca vi
antes, deixa isso bem claro.
— Foi só por isso que se aproximou de mim? —
Ele repete. — Para conseguir escapar?
De onde foi que isso veio?
— Não!

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— Tem certeza?
Desvio o olhar. Droga. Droga.
Por que é que nunca imaginei que isso pudesse
acontecer? Eu estou numa casa cheia de
metamorfos que escutam demais...
— Eu pensei nisso — admito, sem conseguir
olhar para ele. — Mas vi que era uma idiotice. Não
foi por isso que me aproximei de você.
Deveria ter sido. Mas não, foi porque eu estava
curiosa sobre Alexandre, o homem que fazia as
pessoas de Monte das Pedras atravessarem a rua
para não passarem ao lado dele, mas que por algum
motivo estava interessado em mim.
— Entre em contato com sua família. Diga que
está voltando de viagem.
Olho para ele, sem ter certeza de que entendi.
Alexandre está de costas para mim, apoiado no
parapeito e olhando para baixo, para as roseiras.
— Você conhece os riscos — ele continua. —
Sabe o que vai acontecer se contar o que sabe ou se
seu pai falar sobre o que viu. Mas está livre para ir.
— Eu...
— Você já tem aquele cartão de crédito.
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Encomende lembranças da sua viagem e mande


entregar aqui. Quando chegarem, você vai. Ou
invente alguma história sobre ter despachado suas
coisas e elas ainda demorarem um pouco a chegar.
Ele está me mandando embora.
Não. Não mesmo.
Dou um passo para a frente.
— Alexandre...
Ele balança a cabeça. Não tenho tempo nem de
esticar uma mão para tentar segurá-lo antes que ele
passe por cima do parapeito e pule da sacada.

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C A P Í T U L O T R I N TA E DOIS

A LEXANDRE
NÃO ME SURPREENDO QUANDO ESCUTO PASSOS RÁPIDOS E
pesados subindo a escada. Mesmo que seja raro
qualquer um do bando subir aqui, no “meu” andar,
sei o que fiz. Não importa o que eu diga, sei que
Laura não vai ser a única com raiva de mim. Nem
julgo ninguém por isso.
Os passos param. Faço um esforço para ouvir
melhor e percebo que mais alguém está subindo.
Isto não vai ser bonito. Pelos passos, diria que são
Lavínia e Rodrigo... E provavelmente Caio.
Deveria ter imaginado isto. Pelo menos tenho
certeza de que Paula vai entender o meu lado,
mesmo que não goste.
Os passos voltam a subir a escada. Respiro
fundo e minimizo as janelas abertas no meu
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computador. Não sei bem por que estava tentando


trabalhar. Não tenho cabeça para nada depois de
ouvir Laura me chamando, quase dependurada na
sacada, e então perceber que ela estava chorando
quando entrei no casarão de novo. Não foi fácil
passar direto pelo terceiro andar, onde fica o quarto
dela, sem ir até lá e retirar o que falei, tentar me
desculpar de alguma forma. Mas não posso. É
melhor assim. Mesmo que ela me odeie por isso,
pelo menos vai estar viva. Isso é o que importa.
Me levanto e dou a volta na mesa. Algo me diz
que ninguém vai bater na porta e esperar ser
convidado para entrar. Laura pode se orgulhar
disso, na verdade. Nos anos desde que formamos o
bando, é a primeira vez que eles me desafiam assim
– porque é óbvio que é isto que vão fazer. A única
pessoa que sempre teve coragem de me falar
exatamente o que estava pensando é Paula, por ser
minha amiga mais próxima. Amara também, às
vezes, e ela já deixou claro o que pensa do que fiz.
Não foi uma surpresa agradável ir tomar banho e
descobrir que a água do meu chuveiro não
esquentava de forma nenhuma. É o tipo de coisa
que acontece quando se irrita a duende da casa.
A porta é aberta de uma vez só e bate na parede.
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Levanto as sobrancelhas. Caio entra na sala, com


aquele caminhar leve de quando ele está pronto
para atacar. Rodrigo e Lavínia vêm logo atrás. Faço
um esforço para manter os braços soltos. Cruzá-los
agora só vai deixar claro que estou na defensiva. E,
mesmo que não tire a razão deles, eu nunca vou
estar na defensiva com alguém do meu bando. Foi
escolha deles ficar aqui, obedecer a mim. É hora de
lembrar que isso não vale só para quando
concordam com minhas decisões.
— Você não tinha o direito de fazer isso! —
Caio praticamente rosna.
Não respondo, só o encaro. Ele sustenta meu
olhar por alguns segundos e então olha para o chão.
Ótimo.
— Pode até ser direito seu mandar ela embora, a
casa é sua — Lavínia fala, parando ao lado de Caio
e esticando um braço para empurrá-lo para trás. —
Mas precisava falar aquilo?
— Como se você não tivesse ficado sabendo
daquela conversa. Não é nenhuma novidade. —
Rodrigo para ao lado de Lavínia. — Todo mundo
ficou sabendo.
Inclino a cabeça. Não sei se estão fazendo de
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propósito ou não, mas eles estão bloqueando o


caminho até a porta que dá para o corredor e até a
porta que dá para o meu quarto.
Só então presto atenção no que Rodrigo falou. É
verdade. Quase metade do bando ouviu aquela
conversa de Laura no telefone. E foi Rodrigo quem
me contou o que ela falou, porque eu estava
trancado no escritório. Não me esqueci de nada
disso, muito menos sobre ela ter falado que já tinha
se envolvido, mesmo sem querer.
Balanço a cabeça.
— Ela não pode ficar aqui.
— E daí? — Lavínia aperta o braço de Caio e
não tenho certeza se é para o segurar ou para ela
não avançar. — Precisava falar aquilo?
Precisava. Era minha única opção.
— E o que você falaria para ela ir embora sem
insistir em ficar e sem nem pensar em voltar?
— E por que ela precisa ir? — Caio insiste.
— Lílian ligou — conto. — Se Laura ficar aqui,
ela vai morrer.
— Eu já... — Lavínia começa.
— Futuro imutável, Lavínia — interrompo. —
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Você sabe o que isso significa.


— Desde quando você age como um
cachorrinho adestrado de Lílian? — Rodrigo
pergunta.
Estou com uma mão ao redor da sua garganta e
o segurando alguns centímetros acima do chão
antes dos outros dois entenderem o que aconteceu.
Posso aceitar muita coisa que nenhum outro alfa
aceitaria, mas existe um limite. Podemos ser o
único bando misto, mas isso não quer dizer que vou
aceitar esse tipo de insulto. Muito pelo contrário.
— Se você quer agir como uma criança teimosa,
não é problema meu. E é melhor fazer isso fora do
meu bando. — Me viro para Caio e Lavínia, sem
soltar Rodrigo. — Vocês podem duvidar o quanto
quiserem, mas eu tenho meus motivos para não
discutir quando Lílian me liga para contar algo que
previu e que está ligado ao bando. Se não estão
satisfeitos, sabem como ir embora.
Lavínia abaixa a cabeça, mas Caio mostra os
dentes antes de dar um passo atrás. Sustento seu
olhar por um instante antes de me virar de volta
para Rodrigo.
— Vai me causar problemas?
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Ele continua perfeitamente imóvel. Isso é


resposta o suficiente. O coloco no chão. Rodrigo
puxa o ar com força, mas não tenta me encarar de
novo. Excelente.
— Vocês três, ajudem Laura com o que ela
precisar. Quanto antes ela estiver fora do casarão,
melhor.
Os três saem sem dizer mais nada. Continuo
parado no meio da sala, encarando a porta fechada.
Eles estão certos. Eu nunca deveria ter falado
aquilo. Nunca deveria ter agido daquele jeito. Mas
se é uma certeza que Laura vai morrer se continuar
aqui... Eu faria muito pior que isso para ela ir
embora.
E não estou sozinho aqui. Me viro na direção da
porta interna. Tenho a impressão de que ouvi
alguma coisa vinda de lá, mas agora não estou
escutando mais nada...
— Vai fazer alguma coisa? — Pergunto
Ryan se materializa, sério, e balança a cabeça.
— Só queria ter certeza de que eles não iam
fazer nenhuma loucura. Não sou velho o bastante
para ter visto o Templo da Vida, mas ouvi histórias
demais sobre suas profetisas. Lílian é uma bruxa,
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não uma mulher do templo, mas mesmo assim não


é bom duvidar de uma profecia assim.
Engulo em seco. Se eu tivesse qualquer dúvida
sobre o que fiz, isso teria acabado com elas. Não
sei do que Ryan está falando, mas se um sidhe
antigo está dizendo que o melhor é confiar na
previsão, vou acreditar. Especialmente porque o
sidhe em questão também se preocupa com Laura.
— Você... — começo.
— Já falei com alguns dos outros fey para irem
para a cidade. Vão vigiar Laura — ele avisa.

···
L AURA
— VOCÊ VAI FICAR BEM? — RODRIGO PERGUNTA.
Assinto. Não sei se vou, na verdade. Mas não
tenho outra resposta para dar.
Ele suspira e não fala mais nada enquanto
dirige. Foi Rodrigo quem me levou para o casarão,
e agora é ele quem está me levando embora. Faz
sentido. De uma forma nem um pouco boa, mas
faz.
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E quem diria que eu ia me sentir mal por estar


indo embora do casarão...
Foi estranho descer para tomar café hoje de
manhã. Não teria descido se não fosse meu
estômago estar gritando comigo – não jantei ontem.
Não consegui, depois daquela conversa com
Alexandre. Se é que posso chamar aquilo de
conversa. Não queria saber quem tinha ouvido ele
falar aquilo comigo e me mandar embora. Se
pudesse, ia ter desaparecido. Então, me tranquei no
quarto.
Não nego que chorei. Eu devia ter feito alguma
coisa, ido atrás de Alexandre, discutido e feito ele
me ouvir na marra. Sei disso. Mas... E se tivesse
ido atrás e ele se recusasse a me ouvir? Ou não
acreditasse? E se... se eu acabasse piorando as
coisas? Então não fiz nada. Não tive coragem. Não
quis correr o risco de olhar para Alexandre e ver ele
me encarando como se eu fosse ninguém. Não
depois... Não depois de tudo.
Eu não esperava que ele descesse para o café da
manhã – e Alexandre realmente não desceu. Mas
foi estranho ver quase todo mundo nas mesas
quando entrei na cozinha. Até mesmo uns tantos

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dos fey mais velhos, os que não se misturavam com


os outros, estavam lá. Ninguém falou nada
enquanto eu pegava dois pães de queijo e uma
xícara de café. Foi só quando já estava me
levantando para subir de volta para o meu quarto e
terminar de fazer as malas que Caio bateu com sua
caneca na mesa e soltou um “ele não devia ter feito
isso”. Tive que sair da cozinha quase correndo
quando todos começaram a assentir e resmungar,
senão ia começar a chorar.
Alexandre não devia ter feito isso. Devia ter me
deixado explicar, pelo menos. Depois desse tempo
juntos, achei que ele me conhecesse o suficiente
para saber que eu nunca ia fazer algo assim. Tudo
bem que foi coisa de um mês, mas mesmo assim.
Ele deveria saber.
Agradeço mentalmente quando Rodrigo
continua dirigindo sem falar nada. Não estamos
indo para minha casa. Posso ter aceitado ser
mandada embora sem discutir, mas não consigo
voltar para lá. Assim que acordei, antes de ir tomar
café, eu liguei para a minha avó. Ela e minha mãe
são um pouco brigadas: minha mãe acha que ela é
uma má influência. Então é exatamente para a casa
dela que vou. Ela amou quando pedi para ficar lá
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por algum tempo e avisou que não ia falar nada


para minha mãe. Não que isso vá adiantar alguma
coisa. Algum vizinho vai me ver entrando na casa
da minha avó e contar para ela. Sem falar que tenho
que mandar mensagem para o meu pai e para
Marina.
E vir para a casa da minha avó tem mais uma
vantagem: ela não vai ficar fazendo dez mil
perguntas. Se eu falar que não quero tocar em um
assunto, ela vai aceitar. Se eu fizer isso na minha
casa... Minha mãe nunca vai me dar sossego.
— Eu peguei seu celular mais cedo — Rodrigo
começa.
Balanço a cabeça. Pegou meu celular? Quando?
Mas nem vale a pena perguntar isso. Estou
completamente fora do ar desde ontem.
Enfio a mão no bolso do meu short. O celular
está aqui. Pelo menos isso.
Rodrigo balança a cabeça.
— Foi de manhã, e eu devolvi. Só... Eu salvei
alguns números na sua agenda. Se precisar ou se
quiser falar com a gente...
Certo, então. Continuo olhando para fora. Não
vou chorar. Não vou.
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Minha avó mora no centro, a três quarteirões de


distância da igreja matriz. Desde que meu avô
morreu, quando eu tinha nove anos, minha mãe
insiste para ela ir morar conosco. Diz que não é
seguro uma mulher de seus mais de setenta anos
morando sozinha, que se acontecer alguma coisa
não vai ter ninguém por perto para ajudar... Tá, é
uma preocupação válida, mas minha avó tem suas
amigas da igreja que aparecem na casa dela o
tempo todo. Isso sem mencionar que, da última vez
que levamos ela no médico, os resultados dos
exames dela estavam melhores que os meus. Essa
velha tem uma saúde de aço e faz questão de
esfregar isso na cara da minha mãe.
Rodrigo estaciona na frente da grade azul clara.
A casa fica um pouco afastada da rua, com um
jardim pequeno na frente, ao lado da entrada da
garagem. A parede branca – ou que pelo menos
deveria ser branca – não mudou nada desde que eu
era criança, mas nos quase seis meses desde a
última vez que vim aqui, minha avó mandou pintar
a grade na frente da janela da sala e na frente da
porta. Elas eram do mesmo azul claro das grades do
portão, mas agora estão vinho. Levanto as
sobrancelhas. Não quero nem imaginar o que
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minha mãe falou quando viu isso. Se bem que pode


ter sido esse o motivo para os seus resmungos de
que minha avó estava ficando louca, pouco antes da
confusão toda e de eu ir para o casarão.
E eu nunca devia ter ouvido minha mãe e parado
de vir sempre para a casa da minha avó. Suspiro
enquanto desço do carro e coloco a mochila no
ombro. Minha mãe cismou que foi minha avó que
colocou na minha cabeça as ideias estranhas de ir
para BH e mais outros tantos “péssimos hábitos”
que eu tenho. De certa forma, não deixa de ser
verdade. Mas ela foi a melhor influência possível,
se eu parar para pensar, apesar de todos os
problemas. Não era à toa que eu sempre escapava
para cá na primeira chance que tinha, quando era
mais nova.
— Quer ajuda para levar tudo para dentro? —
Rodrigo pergunta.
Assinto, sem querer olhar para trás e ver minhas
malas no passeio, antes de bater o interfone. Vejo a
cortina na janela da sala balançar pouco antes da
porta ser aberta e minha avó sair. Não importa
quantas vezes a gente fale que é mais fácil ela só
abrir o portão pelo interfone, ela insiste em dizer

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que é falta de educação não ir receber uma visita no


portão.
— Laurinha!
Faço uma careta, tentando sorrir e segurar o
choro ao mesmo tempo. Só ela me chama assim, e
faz muito tempo que não ouço esse diminutivo.
Escuto a risada abafada de Rodrigo e me viro
para ele, estreitando os olhos.
— Nem ouse — aviso.
— Nem ouse o quê? — Ele faz uma expressão
inocente que não me enganaria mesmo se eu não o
conhecesse.
— Estou falando sério!
— Laurinha, meu bem, você tem que parar de
sumir assim!
Me viro de volta para minha avó, que está
abrindo o portão. Paro olhando para ela por um
instante. Minha avó é baixinha – quase uma cabeça
mais baixa que eu. Seu cabelo quase todo branco
está cortado curto, agora. Outra coisa que
provavelmente fez minha mãe ir à loucura.
— Vou parar, prometo.
Ela me encara e cruza os braços. Reviro os
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olhos. Já estava me esquecendo que em alguns


pontos minha avó é bem tradicional.
— Bênção, vó.
— Deus te abençoe — ela responde e me puxa
para um abraço.
Droga. Tinha conseguido esquecer de tudo por
alguns segundos, mas esse abraço... Aperto minha
avó e respiro fundo. Não vou chorar agora. Não
posso.
— E quem é o bonitão ali no carro? — Ela
pergunta em voz baixa.
Respiro fundo de novo antes de me afastar.
— Rodrigo, essa é minha avó, Dona Marília.
Vó, esse é o Rodrigo, meu amigo. — Coloco ênfase
na palavra “amigo” só por via das dúvidas.
Rodrigo sorri para minha avó.
— Muito prazer, Dona Marília.
Nem escuto a resposta da minha avó quando
percebo que isso é uma despedida. Droga. Não
devia ter me escondido no quarto hoje de manhã.
Devia ter me despedido direito de todos os amigos
que fiz no casarão, porque não sei quando vou ver
eles de novo. Eles raramente vêm na cidade, por
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motivos óbvios. E agora vou me despedir de


Rodrigo... Droga, eu vou sentir falta da implicância
dele com a minha playlist. E as brincadeiras. E...
Eu vou sentir falta de morar no casarão. Ponto.
Quando dou por mim, estou parada no meio da
sala, com minhas malas apoiadas na parede e minha
mochila no sofá.
— Não posso ficar, estão me esperando em
casa. — Escuto Rodrigo falar.
— Ah, se estava em Belo Horizonte com certeza
estão te esperando. Não pode demorar, então —
minha avó responde.
Em BH? Ah, a história de que Rodrigo estava
em BH, vindo para Monte das Pedras, e me buscou
no aeroporto. Droga. Preciso pelo menos me
lembrar de todas as histórias para encobrir o que
realmente aconteceu.
— Lau? — Rodrigo chama.
Olho para ele e sorrio. Ou melhor, tento sorrir.
Não acho que consegui.
— Obrigada pela carona.
Rodrigo suspira e me puxa para um abraço.
Acho que é a primeira vez que ele faz isso, mas não
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me incomodo. Preciso disso.


— Já sabe, qualquer coisa é só avisar — ele
fala, me soltando e ignorando enquanto enxugo os
olhos. — E a gente vai combinar de se encontrar,
nem que seja para repetir aquele dia no bar.
Será? Mas não falo nada, só o acompanho até o
portão. Minha avó fica parada na porta de casa, sem
falar nada enquanto eu espero Rodrigo ligar o carro
e sair. Suspiro. É, tudo o que é bom dura pouco. E
acho que a melhor parte da minha vida acabou.
Minha avó fecha a porta atrás de mim assim que
entro. Achei que ela fosse esperar até eu arrastar as
malas para um dos quartos, pelo menos, mas pela
forma como ela cruza os braços e me encara, já sei
que não vai.
— E então, Laurinha? Vai me contar o que
aconteceu?
Bem que eu queria. Mas não posso.
— Arruma uma viagem do nada, vai para fora
do país sem falar quando volta, passa um mês e
meio mal dando notícias, e agora resolve voltar sem
falar nada? E com um amigo de Monte das Pedras
que ninguém conhece? O que você andou
aprontando, menina?
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Balanço a cabeça e caio sentada no sofá


estampado.
— Nada, vó. Juro. Não fiz nada errado.
— Então por que é que você está com essa cara
de que está segurando o choro.
Porque estou.
Balanço a cabeça com força e não falo nada. Se
falar, vou chorar.
— Ah, Laurinha... — minha avó começa e se
senta do meu lado. — O que foi que aconteceu?
Dessa vez não foi sua mãe, não é?
— Não — murmuro.
Ela suspira e olha para cima. Quase sorrio. É a
mesma expressão exasperada de todas as vezes que
cheguei aqui com raiva ou quase chorando por
algum motivo e não queria falar sobre o que
aconteceu.
— Vem para dentro. Fiz o bolo de cenoura que
você gosta. Vamos ver se ele ainda te anima.
Levanto a cabeça.
— Com chocolate?
Minha avó se levanta e assente, antes de ir na
direção da cozinha. Me levanto e vou atrás dela.
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Não acho que alguma coisa vai conseguir me


animar agora, mas o bolo de cenoura com cobertura
de chocolate da minha avó é uma coisa de outro
mundo. E ele me faz pensar em bons momentos.
Preciso disso.
Quase uma hora depois, estou terminando de
colocar minhas coisas num dos quartos vazios. A
casa da minha avó é grande, com cinco quartos, e
como ela mora sozinha agora, posso escolher onde
vou ficar. Também já falei que quero ficar aqui até
resolver o que vou fazer da vida. Não quero voltar
para a casa da minha mãe e todas as brigas. Pelo
menos aqui, minha mãe vai medir o que fala e
como fala, para não ofender minha avó.
Abro a última mala, procurando meu pijama, e
dou de cara com uma revista grossa por cima das
minhas roupas. Eu não coloquei isso aqui. Puxo a
revista e viro. É uma daqueles guias turísticos em
brochura, aqueles bem grossos mesmo... Sobre a
Nova Zelândia.
Quem colocou isso aqui? Abro o guia, mal
vendo o texto em inglês. Tem um bilhete pregado
na primeira página.
Estude bastante.
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Vai precisar de material quando voltar.


Engulo em seco. Não preciso de assinatura para
saber quem escreveu isso. Reconheço a letra de
Alexandre. E a de Amara, bem menor, na metade
de baixo do papel.
Acho que vai precisar disto, de qualquer forma.
Espero que ajude.
Ainda me lembro de esconder a revista no meio
das minhas roupas, antes de desabar na cama.
Alexandre já tinha arrumado esse guia turístico
gigante, porque não ia me manter presa no casarão.
Pelo bilhete... Ele ia me dar a revista em algum
momento antes de eu sair do casarão. Bem antes.
Mas então...
Afundo a cabeça no travesseiro e nem tento
segurar o choro desta vez.

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C A P Í T U L O T R I N TA E TRÊS

L AURA
FOI DIFÍCIL. NÃO PENSEI QUE IA SER TÃO COMPLICADO
assim voltar para o “mundo normal”, mas não tinha
parado para pensar no tanto que me acostumei com
o casarão e as pessoas de lá. Com as brincadeiras, a
forma como ninguém estava nem aí para o que os
outros faziam, apesar das fofocas, e no fim das
contas todos se ajudavam. Com Alexandre, com
estar tão confortável com alguém, me sentir tão
bem a ponto de começar a pensar num futuro... A
pensar no futuro, sem medo. Sei que o casarão não
é uma regra de como os grupos do Outro Mundo
funcionam, mas foi o que conheci. E agora...
Passei ontem e anteontem sem nem colocar o pé
para fora da casa da minha avó. Não quero lidar
com a falação e as fofocas sobre a minha viagem.

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Ou melhor, não quero lidar com nada de Monte das


Pedras. Nada. Muito menos com minha mãe, que
apareceu ontem e fez um escândalo. Por um lado,
estou feliz que ela tenha vindo tão depressa. Eu
ainda estava tão dopada por causa do que aconteceu
no casarão que não consegui nem prestar atenção
no que ela falou. Só ouvi algo sobre eu ser uma
vagabunda irresponsável que não tem a menor
consideração pela sua família, mas isso não é nada
novo. É a fala favorita da minha mãe sobre mim. E,
antes que a coisa ficasse realmente feia, minha avó
entrou no meio. Não tive notícias da minha mãe
depois disso. Nem quero.
Meu pai veio me ver no mesmo dia, depois que
saiu do trabalho. Ele é a única pessoa com quem eu
poderia falar o que aconteceu, mas... Não quero
falar sobre o meu tempo no casarão, sobre tudo o
que aconteceu. Falar só vai me fazer sentir mais
falta de tudo, ficar lembrando do que perdi. E eu
teria que mencionar Alexandre. Não quero pensar
nele. Então, só disse que estava tudo bem, que eu
tinha convencido as pessoas lá a me deixarem
voltar para casa, com a garantia que nem eu nem
meu pai falaríamos nada. Ele aceitou sem
questionar, o que é a maior prova de que ainda
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estava com medo do que podia acontecer. Aliás, eu


nunca perguntei quem meu pai viu. Acho que agora
é tarde demais para fazer isso.
Marina me mandou mensagem avisando que
não ia vir aqui para evitar brigas com a nossa mãe,
que já ameaçou não deixar ela ir para BH. Melhor
assim. Eu já estou causando problemas demais só
por ter falado que não vou voltar para a casa dela,
que vou ficar na casa da minha avó. Se Marina vier
aqui, minha mãe vai começar toda aquela falação
sobre más influências e destruir a própria vida de
novo. E, conhecendo Marina, ela vai ficar tão mal
por causa disso tudo que não vai conseguir se
concentrar em estudar. Ela não é como eu, nunca
foi de comprar brigas, mesmo que achasse que
estava certa. É melhor ela se concentrar no
vestibular, não em entrar no meio dessa confusão
entre eu e nossa mãe.
Respiro fundo, salvo o arquivo que está aberto
no Photoshop e então fecho o notebook. Pelo
menos ainda tenho meu trabalho. Estou quase
terminando as ilustrações do pacote daquele autor –
é impressionante o tanto que rendo quando passo
literalmente o dia todo no computador. Não tenho
nada melhor para fazer, mesmo. E, nesse meio
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tempo, mais duas pessoas já entraram em contato


querendo orçamento. Dois dos contatos de
Alexandre.
Coloco o notebook no chão, ao lado da minha
cama. Sim, estava trabalhando na cama. Sim, tem
uma mesa bem na minha frente e eu fiquei com
preguiça de levantar. Não importa.
Ainda não consigo acreditar em como tudo
acabou assim, do nada. Num minuto eu estava feliz
com Alexandre, sem previsão de quando sairia do
casarão e achando isso ótimo. Tinha amigos que se
preocupavam comigo, não com o que os outros iam
falar de mim. Estava com alguém que eu sabia que
nunca ia rir de mim, que nunca diria que meus
sonhos eram idiotice. No minuto seguinte... Nada.
Eu não tinha mais nada. Tudo o que eu já
considerava parte da minha vida, que eu pensava
que mesmo quando pudesse voltar para casa ainda
ia estar ali... Os amigos que fiz, Alexandre... Tudo
desapareceu.
Meu celular apita, no chão ao lado do notebook.
Estico o braço para pegá-lo. Certo, nem tudo. Pelo
menos os amigos eu não perdi... Acho.
Lavínia: No bar, hoje, às oito. Mesmo lugar da
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outra vez. Sem desculpas.


Encaro a tela do celular. Até que seria bom
sentar para beber com Lavínia de novo, mas...
Sentar para beber com ela, se bobear mais alguém
do casarão, fingir que nada aconteceu, e depois
voltar para isso aqui? Trancada na casa da minha
avó porque não quero encarar o resto da cidade e
ver o que a minha vida provavelmente vai ser daqui
para a frente?
Laura: Estou trabalhando.
Lavínia: Você leu quando falei “sem
desculpas”? Posso pedir o endereço da sua avó
pro Rodrigo e te buscar aí, se preferir.
Argh. E o pior é que não duvido nada que ela
faça isso. Consigo imaginar muito bem Lavínia
parando na porta da minha avó e buzinando, só de
pirraça. E aí vai ser mais uma rodada de fofocas
pela cidade, porque ela já é conhecida como uma
das “esquisitas” só porque usa o cabelo cacheado
bem volumoso e gosta dele assim. Sei que minha
avó não vai se importar com algo assim – de acordo
com ela, já chegou na idade em que não está nem aí
para as fofocas. Na verdade, ela provavelmente vai
gostar de qualquer coisa que me tire de casa.
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Suspiro. Não tenho muito opção mesmo.


Laura: Tudo bem.
Lavínia: Ótimo!
Ótimo. Certo. Muito ótimo. Só que não. Droga.
Pior que eu sei que se atrasar quinze minutos
que seja, ela vai aparecer aqui na porta buzinando.
Ou seja, de volta para o bar. De certa forma, de
volta para onde tudo começou. E... Hoje é quinta.
Quase dois meses desde aquele dia, quando eu
terminei com Rick e acabei passando umas tantas
horas bebendo com pessoas do Outro Mundo. Não
parece que faz tão pouco tempo. Tanta coisa
aconteceu... Não. Na verdade, não é nem uma
questão de quanta coisa aconteceu ou não. Mas sim
de como minha vida mudou completamente. Eu
mudei. E agora é tarde demais para voltar atrás,
mas não sei como seguir em frente.
Droga.
Jogo o celular no colchão e me levanto. Já são
seis e quinze da tarde, ou seja, tenho que começar a
pensar em me arrumar. E de preferência comer
alguma coisa antes de sair, se Lavínia resolver que
quer beber, porque do jeito que estou não vou
recusar. E se começar a beber agora, vou beber
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muito.

···
QUANDO ENTRO NO BAR, PRECISO FAZER UM ESFORÇO
para ignorar os olhares. Se eu tivesse alguma
dúvida de que a cidade inteira ficou sabendo da
minha “viagem”, isso acabaria com elas. Mas o que
eu faço ou deixo de fazer não é da conta de
ninguém além de mim. Eles têm as vidas deles,
deveriam se preocupar mais com elas. Respiro
fundo e levanto a cabeça, indo na direção da
escada.
Desço para o terceiro ambiente do bar, aquela
sala um pouco mais baixa que as outras duas. Já são
oito e dez, mas acho que cheguei antes de Lavínia,
porque parece que não tem ninguém aqui...
— Lau!
Olho para o lado da parede. Alguém juntou duas
mesas e Lavínia está sentada lá, junto com Caio,
Rodrigo, Aline, Paula...
Paro onde estou, sem nem tentar segurar as
lágrimas. Não vou conseguir mesmo. Vir aqui foi
uma péssima ideia. Devia ter ficado em casa,
pedido minha avó para inventar alguma história ou
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deixar Lavínia chamando no portão. Qualquer coisa


que não fosse vir aqui.
Dou um passo atrás. É melhor ir embora.
Melhor que ficar me lembrando do casarão, de
como me sentia bem lá...
De Alexandre.
— Não ouse!
Pronto, agora estou ouvindo coisas, porque juro
que essa voz é de Camila. Mas ela está em BH. Sei
disso porque ela me mandou um monte de
mensagens que li e não tive coragem de responder.
Definitivamente, hora de ir embora. Nem importo
se estou chorando, se vão me ver assim na rua... Já
estão falando de mim para todo lado mesmo, o que
vai ser mais uma fofoca no meio da lista?
— Laura, você não ousa!
Uma mão segura o meu braço e me viro de uma
vez, quase dando de cara com Camila. Enxugo os
olhos com as costas da mão, de qualquer jeito,
piscando depressa. Camila? Aqui? Mas não estou
confundindo. Não tem como. Nunca que eu ia
encontrar outra mulher toda vestida de preto e com
o cabelo comprido e branco aqui em Monte das
Pedras.
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— O que é que você está fazendo aqui?


Ela bufa.
— Vindo atrás de você, é óbvio. Se estava
pensando em ir embora, esqueça. Por que é que
você não respondeu minhas mensagens?
Abro a boca para responder, mas nem sei o que
dizer. Não respondi porque... Porque nada. Porque
não queria falar com ninguém. Não queria repetir o
que aconteceu, e Camila ia me fazer contar
exatamente o que houve para eu sair do casarão e...
E eu estou chorando de novo. Droga.
— Já entendi — ela murmura e me puxa na
direção da mesa.
Ninguém fala nada quando me sento e abaixo a
cabeça, tentando parar de chorar. Não vou ficar
assim aqui. Não vou. Droga. E eu odeio Alexandre
por estar me fazendo passar por isso. Porque sim, é
culpa dele por ter sido um idiota e não ter me
ouvido.
E eu não vou ficar chorando por causa de um
cara que não podia nem parar dois minutos para me
ouvir. Me recuso. Lavínia e o resto do pessoal já
conseguiram me fazer vir para cá, até Camila está
aqui, não vou passar a noite chorando. Não vou.
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Vou aproveitar, de uma forma ou de outra.


Respiro fundo. Acho que escuto Camila falando
que abraços e coisa do tipo não vão ajudar, que eu
não gosto disso. Agradeço mentalmente. É verdade,
não gosto. Mas agora se mais alguém vier me
abraçar eu definitivamente não vou conseguir parar
de chorar.
Levanto a cabeça e enxugo os olhos. Camila me
encara e estreita os olhos.
— Ainda bem que você não costuma usar
maquiagem.
Mostro o dedo do meio para Camila e ela ri. Isso
já é uma discussão velha nossa.
— Está vendo, Rodrigo? Você nunca conseguiu
fazer ela apelar a ponto de te mostrar o dedo... —
Caio comenta.
— Já sei que vou ter que me esforçar mais —
Rodrigo responde e se encolhe quando Aline dá
uma cotovelada nele.
E isso me lembra...
— Eu achei que você só conhecia André e
Daiane — falo para Camila.
Ela sorri e Lavínia bufa, ao mesmo tempo em
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que empurra um copo limpo na minha direção. Só


então percebo que já tem algumas garrafas de
cerveja na mesa. Ainda bem que comi antes de sair
de casa.
— Todo mundo conhece a Camila dos lobos —
Aline revira os olhos.
— Ou, pelo menos, qualquer um do Outro
Mundo nessa região já ouviu falar dela — Paula
completa. — Estou bloqueando nossa conversa,
pode falar sem se preocupar que ninguém vai ouvir
o que não deve.
Camila revira os olhos.
— Eu falei que tinha uma posição alta na
matilha.
Tá, falou, mas não pensei que isso queria dizer
que todo mundo sabia quem ela era. Dou de ombros
e só então entendo o que Paula quis dizer. Ninguém
além de nós vai ouvir nada sobre seres mágicos e
toda a confusão do Outro Mundo. Quase sorrio.
Não é a mesma coisa, mas não é tão diferente assim
das brincadeiras na mesa da cozinha do casarão.
Tomo um gole de cerveja. Nem vi quando
alguém encheu meu copo, mas isso não me
surpreende. Me lembro da outra vez que bebi com
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eles.
E por algum motivo isso me lembra de outra
coisa. Olho para Lavínia e então para Camila.
Desde que a conheço, Camila tem o cabelo branco.
Não loiro platinado ou acinzentado. Branco
mesmo. Quase da mesma cor que o cabelo de
Lavínia fica quando ela usa seus poderes.
— Seu cabelo tem alguma coisa a ver com... —
Gesticulo, na direção do cabelo de Lavínia.
Camila levanta as sobrancelhas. Certo. Pensei
que ia ser óbvio.
— Alguma coisa mágica, sei lá — tento
explicar. — Que nem o cabelo de Lavínia fica
branco quando ela grita.
Camila se vira para Lavínia na mesma hora.
— Fica?
Lavínia assente. Pelo visto, mesmo que
aparentemente elas já se conhecessem, Camila
nunca viu Lavínia usando os poderes. Na verdade,
pensando bem, acho que ela não tem motivos para
ter visto mesmo.
— Cabelo branco e cacheado, agora estou com
inveja mesmo. — Camila suspira e se vira para

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mim. — Não, na verdade meu cabelo é branco por


inveja. Felipe se transforma num lobo branco. Eu
sempre achei o pelo dele lindo, então quando
descobri como fazer pegar, descolori meu cabelo,
só para ver como ia ficar. Acabou que gostei e a cor
ficou.
— Ei! — Aline quase pula na cadeira. — Isso
fez efeito no seu pelo?
Camila balança a cabeça.
— Só no cabelo. Continuo sendo uma loba
ruiva. Paciência.
— Droga.
— Eu acho que um gavião com penas verde
fluorescente seria um pouco demais, sabe — Paula
comenta.
Rio quando Aline resmunga alguma coisa que
não entendo. Não acho que seria exagero... Seria
interessante. Mas seria complicado esconder o
“gavião mutante”.
Quando dou por mim, já estou rindo com eles,
contando casos do tempo que passei no casarão
para Camila, e perdi as contas de quantos copos de
cerveja bebi. Aliás, já estou perdendo as contas do
que bebi, isso sim. Sei que já teve rodada de tequila
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e alguns drinks, mas não prestei atenção no que


estavam pedindo. Amanhã vou me arrepender
disso, mas quer saber? Não me importo.
— Ei, isso me lembra... — Camila começa,
inclinando o seu copo na direção de Paula. —
Vocês descobriram alguma coisa sobre aquela
confusão?
Abaixo a cabeça na mesa. “Aquela confusão”.
Ótima forma de resumir. E eu não vou deixar esse
assunto acabar com meu bom humor. Não mesmo.
— Nada até hoje — Paula responde.
Ei.
Levanto a cabeça de uma vez. Como é que não
lembrei disso antes?
— Eles estavam atrás de mim — falo e todo
mundo se vira na minha direção. — Aquele dia.
Eles foram atrás de mim. E se...
Caio sorri e acho que vejo seus dentes afiados.
Mas pode ser só efeito do álcool, porque quando
pisco ele está com a aparência completamente
humana de novo.
— Acha mesmo que não tem ninguém te
vigiando aqui?

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Abro a boca para responder e paro antes de


entender direito o que ele falou.
— Tem?
— Ryan colocou três dos fey vigiando a casa da
sua avó e você, se sair — Lavínia conta.
— Não que seja provável que aconteça alguma
coisa. Um ataque na cidade chamaria atenção
demais, o que faria o Conselho se envolver —
Paula explica. — E tenho a leve impressão de que,
quem quer que esteja por trás disso não quer o
Conselho envolvido.
— E qualquer um que entrasse na cidade e
fizesse alguma coisa estaria desafiando Ivan
diretamente — Aline completa.
Desafiando Ivan?
— Mas ele não deu o território para Alexandre?
Camila sorri.
— Ele pode até ter dado, mas ninguém que
conheça o mínimo sobre Ivan vai ter alguma ilusão
de que ele não vai fazer nada se atacassem a cidade
de alguma forma.
— E ninguém gosta de desafiar Ivan — Rodrigo
completa.
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Espero ele explicar o motivo, mas Rodrigo só


pega seu copo e toma mais um gole de cerveja.
Acho que é cerveja. Ninguém mais fala nada, então
me viro para Camila e levanto as sobrancelhas. Ela
suspira.
— Isso é de antes de eu nascer. Sei que Ivan e
Lílian fizeram alguma coisa juntos que deixou a
maior parte do Outro Mundo com medo deles. E sei
que foi assim que ele conheceu Dara, sua
companheira.
Que é meio demônio, pelo que me lembro.
Certo. Não quero saber detalhes. Já sei demais,
já aconteceu coisa demais, não quero mais nada me
complicando a cabeça.
E o assunto muda para fofocas da matilha de
Camila e de BH. Ótimo. Melhor assim. Não que
isso seja muito normal, mas... É melhor que ficar
falando de política do Outro Mundo.
Já é quase meia noite e o bar está fechando
quando pedimos a conta. Enfio a mão na bolsa e
tiro minha carteira. Espero que alguém esteja em
condições de fazer as contas para dividir isso.
— Eu estou pagando — Paula avisa assim que
vê o que estou fazendo.
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Balanço a cabeça e começo a tentar calcular


mentalmente quanto tenho que pagar.
— Laura, é sério — Lavínia fala. — Nós
estamos pagando.
Paula mostra um cartão de crédito que eu
conheço. Aquele cartão de Alexandre, que na
verdade é para uso do casarão. Certo. Não vou ficar
mal por causa disso. Não vou.
— E aliás, Jorge mandou avisar que se você
tentar pagar o que usou no cartão de novo, ele vai
ter que tomar medidas drásticas — Paula continua.
— Ele transferiu de volta para você.
Droga. Ontem, quando me lembrei das coisas
que comprei usando o tal cartão, disse para minha
avó que fiquei devendo uns amigos que me
emprestaram o cartão de crédito por causa de umas
emergências. Ela me emprestou dinheiro para pagar
o que gastei no cartão de Alexandre, já que ainda
vou demorar um pouco a receber pelas ilustrações,
e transferi para a conta que Jorge me passou.
— Eu... — começo.
— Ele não devia ter feito isso — Caio fala.
Sinto meus olhos encherem de água. É a mesma
coisa que ele falou logo antes de eu ir embora do
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casarão.
— Você não vai pagar um centavo — Rodrigo
repete, e nunca vi ele tão sério. — Não foi justo...
— Isso tudo não foi nem um pouco justo com
você. É assim que o Outro Mundo funciona, mas...
— Paula balança a cabeça.
Se é assim que o Outro Mundo funciona, estou
começando a entender porque eles escolheram se
afastar das matilhas e grupos tradicionais e
formarem o bando. Apesar de que o bando –
Alexandre – fez a mesma coisa comigo.
— Não importa o que aconteça, você é uma das
nossas e vai continuar sendo — Lavínia fala.
Assinto, tentando não chorar. Droga.

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C A P Í T U L O T R I N TA E Q U AT R O

L AURA
ACORDO COM O CHEIRO DE BOLO DE CENOURA. EU
definitivamente estou mal-acostumada. Se bem que
Amara deve ter caprichado, se o cheiro está
chegando até aqui. Rolo na cama, criando coragem
para me levantar.
E quase caio no chão.
Droga. Droga.
Respiro fundo e abro os olhos, vendo meu
quarto na casa da minha avó. Por um momento
achei que ainda estava no casarão. Droga. Culpa da
ideia idiota de Lavínia de ir para o bar.
Me sento na beirada da cama e abaixo a cabeça.
Tá, não vou dizer que ontem à noite foi ruim. Foi
ótimo, na verdade. Eu estava precisando disso, de
sair e me divertir com amigos. Podia muito bem ter
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mandado mensagem para Bruna ou outra das


meninas aqui, mas sei bem que não ia dar certo.
Elas iam continuar nas conversas de sempre, nas
fofocas e tudo mais, e eu não ia ter a menor
paciência. Não agora, depois de ter passado quase
dois meses no casarão.
No fim das contas, já tinha passado de meia
noite quando conseguimos sair do bar. Nem me
surpreendi quando Paula falou que estavam de
carro, mas admito que foi uma surpresa quando
Camila avisou que ia me levar em casa. Pelo visto
ela tinha vindo em Monte das Pedras só por minha
causa mesmo e já ia voltar para BH. Até falei para
ela dormir aqui, porque não era seguro pegar
estrada depois do tanto que bebemos, mas Camila
só riu. De acordo com ela, o metabolismo dos
metamorfos é rápido o bastante para o efeito do
álcool não durar. Ela já estava praticamente sóbria
e qualquer resto de efeito de álcool ia passar antes
de sair da cidade. Não sei se fico com inveja ou
com pena dela.
Mas... Camila dizer que só fez esse bate e volta
porque estava preocupada comigo me fez ficar com
a consciência pesada. Preciso parar de ignorar
minhas mensagens. Pelo menos falar um “oi, estou
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viva” da próxima. Não que eu espere que vá ter


uma “próxima”.
E tem uma caneca vazia na mesinha do meu
quarto. Como é que ela foi parar ali? Encaro a
caneca de coraçõezinhos, tentando me lembrar. Ela
não estava aqui quando saí para o bar, então... Ah,
o chá. Quando cheguei em casa, minha avó já
estava dormindo, mas tinha deixado um bilhete
falando que fez chá para mim. Acho que isso
explica porque minha cabeça não está estourando,
já que misturamos não sei nem quantas bebidas no
fim da noite.
Com um suspiro, me levanto e vou para a
cozinha. Não vou perder o bolo quentinho
acabando de sair do forno por nada nesse mundo.
— Bom dia — falo assim que entro na cozinha e
vejo minha avó de frente para a pia, terminando de
passar o café.
— Bom dia! — Ela se vira para mim e sorri,
antes de colocar mais água fervendo no coador.
Vou direto para o armário pegar dois copos – ela
só tira as xícaras quando tem visitas – enquanto ela
termina. Não adianta nem eu tentar pegar o bolo
agora, ela não vai deixar enquanto o café não
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estiver pronto. Não que isso vá demorar muito.


— E então, sua noite foi boa?
Assinto enquanto pego a bandeja de bolo e
coloco na mesa. Foi ótima, tirando a parte de me
lembrar do que eu perdi. E isso porque nem pensei
em Alexandre...
Droga.
Não vou pensar nele. Não vou.
— Não vai falar nada, Laurinha?
Suspiro.
— Foi ótimo, vó. — Me forço a falar. — A
Camila estava aqui. Aquela minha amiga de BH,
lembra que falei dela?
— Ah, então você tinha motivo mesmo para
voltar para casa tarde.
Sorrio quando minha avó traz a garrafa de café
para a mesa e se senta. É, ela acha bom eu sair, eu
ter amigos fora daqui. Se fosse minha mãe... E eu
preciso parar de ficar pensando justamente em tudo
que não quero pensar.
Corto um pedaço de bolo até antes de colocar o
café. Bolo de cenoura quentinho. Eu amo isso.
— Espera esfriar, menina. Vai te dar dor de
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barriga.
— Eu lavo o banheiro depois — respondo de
boca cheia.
Minha avó balança a cabeça e ri. Termino de
comer e sorrio, puxando a garrafa para colocar café
para mim. Isso me lembra...
— Obrigada pelo chá.
— Fez efeito ou não precisava?
Estreito os olhos e minha avó sorri. Sério, às
vezes eu queria muito entender como é que minha
mãe pode ser daquele jeito se a mãe dela é assim.
Não faz sentido.
Continuo comendo em silêncio. Eu amo esse
bolo. Minha avó suspira e pega um pedaço.
— Aquela sua amiga chamou aqui mais cedo, te
procurando.
O quê? Engulo o pedaço de bolo que está na
minha boca.
— Que amiga? — Não falei com ninguém desde
que voltei, por que é que alguém vai vir me
chamar?
— A que trabalha na papelaria.
Ah.
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— Bruna.
Que provavelmente está me xingando porque
não respondi quando ia voltar para Monte das
Pedras, apareci aqui e não dei sinal de vida. E do
pessoal daqui... Bruna não é a pior pessoa. Bem
pelo contrário. Ela só tem um certo gosto grande
demais por fofocas alheias, mas pelo menos é de
confiança, se é que isso faz sentido. Se tem uma
pessoa que eu sei que nunca espalhou nada que
contei para ela e que realmente fosse segredo, é
Bruna.
— Essa mesmo. Ela falou que volta mais tarde.
Abaixo a cabeça na mesa. Preciso inventar uma
boa história. Droga. O bom humor que eu tinha
conseguido por causa do bolo já desapareceu. Mais
histórias, mais complicações, mais me lembrar que
eu não deveria estar aqui...
E eu nem olhei para aquele guia turístico. Vou
ter que arrumar uma senhora de uma história para
Bruna não ficar me perguntando sobre a “viagem”.
Argh. Como é que vim parar nessa confusão?
Certo, a resposta para isso é fácil. Beeem fácil.
Bato a cabeça no tampo da mesa uma vez antes
de suspirar alto e levantar a cabeça. Minha avó está
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sorrindo, mas não é aquele sorriso leve que me


acostumei a ver. Esse é pesado... Resignado, eu
acho.
— Quer que fale com ela que você não está? —
Ela pergunta.
Tentador. Mas isso não vai adiantar muito.
Tenho que parar de me esconder. Por mais que seja
irritante... Continuar fazendo isso não vai me levar
a lugar nenhum.
Balanço a cabeça.
— Não precisa.
Minha avó assente e não fala mais nada.
Agradeço mentalmente enquanto termino de comer.
Preciso decidir o que vou falar, não só com a Bruna
mas com qualquer pessoa que vier me perguntar
sobre a viagem.
E preciso decidir o que vou fazer da minha vida.
Ficar escondida aqui só vai acabar me fazendo
voltar a como era antes. Desistir de tudo por que é
mais fácil e... Não vou fazer isso de novo.
Lavo a louça depressa assim que termino e corro
para pegar meu celular enquanto minha avó ainda
está terminando de tomar café. Se vou insistir nisso
das ilustrações e tudo mais, vou precisar de ajuda.
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E vou precisar sair daqui.


Laura: Preciso de ajuda.
Encaro minha lista de contatos, sem enviar a
mensagem. É uma coisa simples, até idiota. Mas...
Respiro fundo e seleciono o número de Camila e o
de Rodrigo. É simples, mas é o primeiro passo para
construir a vida que eu quero. Envio a mensagem
para os dois.
Rodrigo: Bom dia para você também. Espero
que não acorde sua avó ouvindo Britney Spears.
Sorrio. Devia ter imaginado que ele não ia
perder a oportunidade.
Laura: Não, ela acorda mais cedo que eu.
Ele responde com três emoji de risada, ao
mesmo tempo em que vejo uma notificação de
mensagem de Camila. Certo, vou terminar de falar
com Rodrigo primeiro.
Rodrigo: O que você precisa?
Respiro fundo de novo. Eu vou fazer isso. Eu
realmente vou fazer isso.
Laura: Divulgação. Quero viver das
ilustrações, sair de Monte das Pedras, mas preciso
de dinheiro, de uma renda mais ou menos estável...
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Rodrigo: Quer que a gente espalhe seu


portfólio pelos contatos?
Laura: Isso. E qualquer coisa que achar que
vai dar resultado.
Rodrigo: Pode deixar. Vou falar com o pessoal.
Ryan e alguns dos fey mais velhos provavelmente
têm contatos fora do Brasil ainda... Isso deve
ajudar.
Contatos fora do país? Para receber em dólar ou
euro? Meu sonho.
Laura: Ajuda demais!
Rodrigo: Pode deixar então.
Rodrigo: E como está a ressaca?
Estreito os olhos. Ele não perde uma.
Laura: Não tenho ressaca.
Tenho truques e sorte, como foi o caso do chá
que minha avó fez, senão ia estar com a cabeça
estourando depois da mistura de bebidas de ontem
à noite, mas isso não vem ao caso.
Ele responde com mais um emoji de risada e
sorrio. Não vai demorar nem vinte minutos para o
casarão inteiro estar sabendo que pedi isso. E sei
que vão espalhar o link. Já estavam fazendo isso
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antes, mas agora, depois que Rodrigo falar que eu


vou tentar viver disso mesmo...
Fecho os olhos com força. Chega de chorar. O
que aconteceu, aconteceu. Não adianta querer que
fosse diferente. Então eu vou seguir em frente.
Aproveitar tudo o que aconteceu, o que eu aprendi,
e usar para o melhor. Isso.
Abro os olhos e encaro o celular de novo,
abrindo a outra mensagem não lida.
Camila: Fala.
Laura: Preciso saber a faixa de preço de
aluguel de quarto aí. Individual. Não precisa ser
nada demais, só um lugar que dê para morar
mesmo e que não seja ferrada. Acho que é mais
fácil você que está aí ter noção disso.
Camila: Vai voltar para BH?
Laura: Pretendo.
Camila: Ótimo. Vou olhar aqui e te falo. E vou
avisar Felipe para dar aquela espalhada no seu
portfólio também.
Laura: Muito obrigada.
Camila: “Muito obrigada” nada. Dá um jeito
na vida e volta logo para cá.
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Típico de Camila. Balanço a cabeça, sorrindo.


Se fosse tão simples assim... Mas preciso ter mais
dinheiro guardado, porque vou gastar com aluguel,
com alimentação, com contas... Não é só juntar
minhas malas e cair fora daqui.
Laura: Pode deixar.
Volto para a cozinha fazendo contas mentais.
Tenho um resto de dinheiro na poupança, o que
sobrava do meu salário depois que eu pagava as
contas. Não é muita coisa, mas acho que daria para
pagar alguns meses de aluguel, se eu arrumar
algum lugar mobiliado. E não preciso preocupar
com transporte, porque vou trabalhar em casa
mesmo. Comida... Sempre posso viver de miojo se
for o caso. É, acho que se conseguir mais alguns
trabalhos, tomo coragem para fazer isso.
E, de certa forma, tenho que agradecer a
Alexandre por isso. Por mais que o que ele fez
ainda esteja doendo... Se não fosse por isso eu
nunca teria nem coragem de pensar em voltar para
BH por conta própria.

···
BRUNA ME ENCARA DE CIMA A BAIXO ANTES DE SE

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sentar no muro baixo que separa o jardim da rampa


da garagem. Reviro os olhos. Bem que eu estava
certa em imaginar que ela viria aqui no seu horário
de almoço. Foi a conta de terminar de arrumar a
cozinha e ela já estava batendo o interfone.
Encosto o portão e me sento ao lado dela. Pelo
menos Bruna se lembra que minha avó gosta de
dormir depois do almoço. Como ela é a discrição
em pessoa – só que não – é melhor ficarmos aqui
fora mesmo.
— Então é assim? Não vai falar nada? — Ela
começa.
Me inclino para trás, até estar quase encostando
nas margaridas.
— Você vai fazer um interrogatório de qualquer
jeito. — Dou de ombros. — Mais fácil esperar você
perguntar o que quer saber e me contar o que
andaram falando por aqui.
Bruna chega um pouco para trás, cruza as pernas
e se vira para me encarar.
— Bom, eu acho que você não foi para outro
país de última hora para fazer um aborto porque
estava traindo o Rick e acabou engravidando, então
posso cortar isso da lista de perguntas.
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Bato o cotovelo com força na divisória dos


canteiros, mas consigo não cair em cima das flores.
— O quê?!
A filha da mãe ri. Me levanto e viro o braço.
Lindo, ela está rindo e eu estou com um esfolado
daqueles no cotovelo. Isso vai passar uns dois dias
ardendo.
— Nada mais justo que eu me divertir às suas
custas depois do seu sumiço — Bruna fala.
Xingo em voz baixa e ela ri outro tanto.
Mas Bruna não ia ter inventado aquela coisa
toda sozinha, só para me dar um susto.
— Falaram isso mesmo? — Pergunto.
Ela assente.
— Duas versões: uma que você engravidou de
Rick e descobriu logo depois do barraco no bar; e
outra que você estava traindo ele com aquele
esquisito e engravidou dele.
Preciso de alguns segundos para entender de
quem ela está falando.
— Alexandre? Alguém achou que eu estava
traindo Rick com Alexandre?
Bruna dá de ombros.
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— Viram vocês dois juntos depois que você


terminou com Rick, e a história é que vocês
pareciam bem à vontade juntos.
Nos viram juntos... O dia que Alexandre me
acompanhou até em casa, um dia depois que
terminei com Rick, porque nem eu nem Paula
tínhamos ideia do que podia acontecer. Meu Deus.
Só isso, e virou essa bola de neve?
— Ele foi comigo até em casa para o caso de
Rick resolver fazer alguma besteira.
Bruna abre a boca para responder, para e
balança a cabeça.
— Fez bem, porque ele ficou muito puto.
Balanço a cabeça. Não quero acreditar que
alguém chegou nessa conclusão só por ter visto nós
dois andando juntos, mas não consigo duvidar.
Estou acostumada com o nível de falação das
pessoas aqui. Quem conta um conto... Pois é. Mas é
bizarro que alguém tenha achado que estávamos à
vontade. Eu ainda estava morrendo de medo de
Alexandre naquele dia. Foi só depois, quando eu já
estava no casarão há alguns dias...
Chega, não vou ficar pensando nisso. Não vou.
— Lau, que cara foi essa...?
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Droga.
— Não muda de assunto, Bruna. O que é que
estão falando, de verdade?
Ela suspira alto.
— Não é aquela coisa de todo mundo está
falando... Mas essa história correu sim. Que você
foi viajar para fazer um aborto às escondidas,
porque não queria que ninguém soubesse que tinha
engravidado de um dos dois. — Bruna dá de
ombros.
— Puta merda.
Ignoro quando ela levanta as sobrancelhas e me
encara com uma expressão de choque bem fingida.
Posso não falar muito palavrão, mas a situação
merece.
— Grávida. Argh. Esse povo... Sério, alguém
devia estudar esse povo — resmungo.
Nunca na minha vida fui irresponsável a ponto
de precisar me preocupar com isso. Tive várias
brigas com Rick porque ele queria que eu tomasse
anticoncepcional só para a gente poder transar sem
camisinha, mas eu sempre dizia que mesmo se
começasse a tomar – e realmente estava pensando
no caso, por medo de acontecer algum acidente –
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ele não ia parar de usar a camisinha. Ele sempre


insistia, e o resultado sempre era o mesmo. Essa é
uma das poucas coisas que eu nunca cedi para
evitar discussões. Não ia brincar com isso. E foi a
mesma coisa com Alexandre. Sempre usamos
camisinha, com a diferença que não precisei
discutir com ele nem insistir nenhuma vez.
Aí agora vem esse povo doido e de mente
poluída de Monte das Pedras dizer que eu estava
traindo meu namorado, engravidei e fugi para outro
país para fazer um aborto... Puta merda, eles não
têm nada melhor para fazer não?
Bruna dá de ombros de novo.
— Por incrível que pareça, essa história só não
se espalhou para valer porque Rick entrou no meio.
— Ela estreita os olhos e começa a bater os dedos
na perna. — Foi assim que ouvi aquilo sobre você
não estar viajando. Um pessoal estava especulando
sobre o seu sumiço e a viagem, falaram dessa
história aí e Rick entrou no meio, puto. E tive a
impressão que não foi a primeira vez que ele fez
isso.
Me viro para Bruna de uma vez.
— Como é que é?
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Ela assente.
— Rick entrou no meio quando estavam falando
isso. Acho que ele já estava meio bêbado, mas
tenho certeza que falou que não estava viajando
coisa nenhuma.
E falou que eu estava no casarão. Respiro fundo.
No meio dessa confusão toda, quase esqueci da
minha teoria maluca sobre Rick e o pai dele
estarem por trás do que aconteceu, do ataque no
casarão. Mas com Bruna falando isso... Que outro
motivo ele teria para dizer isso? Como ele sabia?
— Lau? O que foi? Você está pálida.
Balanço a cabeça com força.
— Nada. Nada, só... Por que é que Rick entrou
no meio? E pior, inventando essa história de eu não
estar viajando... — Balanço a cabeça de novo,
tentando me acalmar. — Boa coisa não é. Ele não
ia ter feito isso à toa.
Bruna assente, séria.
— Ah, não foi à toa mesmo. Com certeza.
Vindo daquele ali? Com certeza tem coisa. Ele não
falou nada com você ainda?
Droga. Droga. Ele vai vir atrás de mim. Eu já

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tinha pensado nisso, no casarão, mas também


esqueci completamente nessa confusão toda.
Depois do pé na bunda público que eu dei nele, ele
vai vir atrás de mim, vai querer voltar, só para
depois ser ele a terminar comigo, da forma mais
humilhante possível. E o pior é que vou ter que
aceitar voltar com ele. Ou, pelo menos, conversar,
sair e tudo mais. Se ele realmente está envolvido
naquela coisa toda...
É estupidez. Eu sei que é. Não preciso me meter
no meio dessa confusão. Não estou mais no
casarão, não preciso me preocupar com o que está
acontecendo. Sei disso. Mas não consigo virar as
costas para os meus amigos. O que quer que esteja
acontecendo, eles não fazem ideia do que é e de
quem está por trás. E se me aproximar de Rick me
ajudar a descobrir a verdade...
Isso, excelente ideia. Nossa, muito boa. Tão boa
quanto minha última ideia de me aproximar de
alguém com segundas intenções, não é? Droga.
— Não falou nada nem mandou mensagem —
respondo a pergunta de Bruna, balançando a
cabeça.
Ela suspira e revira os olhos.
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— Não vai demorar muito, então, especialmente


se você estava no bar com os esquisitos ontem à
noite. Aliás... — Bruna levanta as sobrancelhas. —
Eu não fazia a menor ideia de que você era tão
amiga deles assim. Nem deu sinal de vida para a
gente, mas estava no bar com eles.
Não estou nem um pouco surpresa que ela já
esteja sabendo que eu estava no bar ontem de noite
e com quem. Monte das Pedras. Nada de novo
nisso. E... Certo, eu devia ter dado sinal de vida,
ainda mais para Bruna, que acho que é minha
amiga mais antiga. Quer dizer, é a única pessoa
aqui que eu realmente chamaria de amiga,
pensando bem. Mas já tenho uma explicação
pensada para isso, que nem está longe da verdade.
— Conheço alguns por causa do sebo — explico
e continuo quando vejo que ela não entendeu. —
Paula também é uma dos “esquisitos”, esqueceu? E
uma das minhas amigas de BH conhece eles
também. Ela estava aqui ontem, por isso saí.
— Sei.
É a minha vez de levantar as sobrancelhas.
Conheço esse tom de voz. Não vou cair nessa e
ficar tentando me explicar até acabar me
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complicando. Bruna adora fazer isso. Ela suspira.


— Tá bom, tá bom. Mas então... O que foi essa
coisa da viagem? E para quem não estava nem
querendo voltar, estar de volta aqui um mês e
pouco depois...
Respiro fundo. Era pedir demais que o horário
de almoço dela acabasse antes de chegar nessa
pergunta, não era? Pelo menos consegui pensar no
que responder antes que ela chegasse aqui.
— É complicado. — Dou de ombros. —
Arrisquei, apostei, e não deu certo.
E, de certa forma, nem estou falando nenhuma
mentira. Encaro as grades do portão. Arrisquei bem
mais do que devia, no casarão. Não deu certo. E eu
nem sei o motivo.
Balanço a cabeça quando vejo Bruna abrindo a
boca para falar alguma coisa.
— Não quero falar disso, de verdade. Agora
não.
Ela estreita os olhos.
— Está bem. Mas não ache que vai escapar de
me contar o que foi isso.
Balanço a cabeça de novo. Sei que não vou. E
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realmente espero conseguir contar o que realmente


aconteceu para ela. Preciso contar isso para alguém
que não seja do Outro Mundo e que não vai achar
tudo absolutamente normal. Um ano. Menos que
isso, na verdade. E então tudo vai mudar.
— Gente, você está bem fora do ar hoje. Pior
que seu normal — Bruna comenta.
Sorrio e dou de ombros pela milésima vez. Não
adianta nem tentar negar. Ela bufa e se levanta,
batendo a mão na bunda para limpar a poeira.
— Eu vou cobrar essa história, hein.
— Pode cobrar. Ainda te conto o que aconteceu.
Só... Não agora — falo e me levanto, pegando a
chave para abrir o portão de novo.
Bruna para no portão e se vira para mim.
— Ótimo. E eu quero ser informada quando
Rick der as caras.
Reviro os olhos.
— Fofoqueira.
— Sempre! Até mais.
Sorrio enquanto Bruna desce a rua, voltando
para a papelaria da sua família. A reação dela
quando souber o que realmente aconteceu nesse um
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mês e pouco que eu estava “viajando” vai ser


hilária.
E agora não consigo parar de pensar no que
pode acontecer quando o Outro Mundo resolver
mostrar para a humanidade que existe. Como isso
vai acontecer? E onde? O quando... pelo menos sei
que posso começar a me preparar. Me lembro
muito bem que ninguém no casarão estava muito
otimista sobre isso, mesmo que aceitassem que era
necessário. E sou realista o suficiente para imaginar
o que pode acontecer.
Volto para dentro de casa, tentando não fazer
muito barulho quando tranco a porta. Minha avó
com certeza está dormindo, senão estaria na sala
me esperando para saber se Bruna tinha alguma
coisa interessante para contar.
Me sento na minha cama e abro o notebook.
Acho que hoje consigo terminar a última ilustração
do pacote, e aí vou começar a correr atrás de mais
serviço em sites de trabalho freelance.
O Photoshop ainda está abrindo quando escuto o
barulho do meu celular vibrando, no chão. Me
estico para ver o que é. Uma notificação de
mensagem.
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Rick: Fiquei sabendo que voltou. Podemos sair


um dia desses? Acho que precisamos conversar
direito.
Respiro fundo. Bruna estava certíssima. Encaro
a mensagem. Responder ou não?
Deveria ignorar isso, eu sei. Ia ser mais fácil.
Não quero Rick na minha vida. Acho que só agora
estou entendendo de verdade o que algumas
colegas de faculdade falavam sobre caras escrotos...
Mas sempre achei que isso fosse normal e eu a
estranha, por não aceitar e ficar incomodada.
Depois do tempo que passei no casarão, com
Alexandre... Sei muito bem que nunca mais vou
tolerar um Rick na minha vida. Não. Eu mereço
coisa melhor. No mínimo, mereço alguém que não
vai dizer que as coisas que eu amo são brincadeira
de criança.
Mas... E se ele realmente estiver por trás das
coisas que aconteceram no casarão? E se eu
conseguir descobrir alguma coisa para comprovar
isso, para entender o que estão fazendo... Posso até
usar a forma como fui mandada embora para criar
mais uma história – é o que mais estou fazendo
esses dias mesmo – de como estou furiosa com o

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pessoal do casarão... Sei lá. Nesse tempo todo,


ninguém conseguiu descobrir mais nada. Se o único
jeito de ter certeza de se estou certa ou não é
aguentando Rick, vou fazer isso.
Laura: Tudo bem.
Rick: Amanhã, fim da tarde? Onde você
prefere?
Ele está me perguntando para onde vamos? Uau,
ele realmente está fazendo um esforço, porque
antes eu só recebia o aviso de para onde íamos e
que horas.
Laura: Pode ser. Na praça mesmo, qualquer
coisa de lá a gente decide.
Rick: Marcado. Fica bem.
Levanto as sobrancelhas. Ele está se esforçando
demais. Na melhor das hipóteses, aposto que já está
fazendo planos de como me humilhar para dar o
troco naquela cena no bar. Droga. Eu devia ter
pensado melhor antes de fazer aquilo, mas não me
arrependo.
E também não vou me arrepender de ter
aceitado sair com ele. Ou vou descobrir o que está
acontecendo, ou ter certeza de que ele não tem nada
a ver com os ataques no casarão.
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Mas se tiver...
Eu sou uma idiota. Mas não tão idiota assim.
Olho minha lista de contatos e sorrio quando
vejo o nome que estou procurando. Se não tivesse
certeza que Aline ia ficar furiosa, eu daria um beijo
em Rodrigo só por ter salvo o número de Ryan na
minha agenda. Depois dos comentários sobre ele
ser o mais velho ali, até pensei que ele não ia ter
celular.
Laura: Vou sair com Rick amanhã. Alguém já
deve ter repassado minha teoria por aí, se é que
você não ouviu quando falei... Se isso não for
paranoia minha, alguém pode nos vigiar?
Envio a mensagem. Fico encarando o celular
por alguns minutos, esperando uma resposta, mas
nada. Solto o ar com força e volto para o
Photoshop. Provavelmente é paranoia minha, sim.
Tenho certeza que Ryan sabe o que pensei, sobre
Rick e o pai dele. Alguém com certeza ouviu aquela
conversa minha com Alexandre e vai ter repassado
para os que não ouviram.
Quase pulo quando sinto o celular vibrar,
encostado na minha perna.
Ryan: Alguém vai acompanhar vocês.
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Solto um suspiro aliviado. E isso é outro sinal


de que eu deveria ter terminado com Rick muito
tempo atrás. Se estou aliviada por ter alguém nos
vigiando, porque não sei o que ele pode fazer...
Meu celular vibra de novo e eu gelo quando
vejo a segunda mensagem.
Ryan: Não é paranoia.

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C A P Í T U L O T R I N TA E CINCO

A LEXANDRE
DESCER PARA O JANTAR FOI UMA PÉSSIMA IDEIA. ENCARO
meu prato, sem muita vontade de comer, mas me
recuso a deixar que os membros do meu bando me
coloquem para fora da cozinha simplesmente por
estarem agindo como se eu não estivesse aqui. Não
que essa reação seja inesperada. Nem depois de
contar – de novo – sobre o aviso de Lílian, eles
concordaram comigo. As únicas pessoas que não
estão me ignorando por completo são Ryan e Paula,
que é o que eu imaginava que aconteceria.
Continuo a comer, tentando ignorar o clima
tenso ao redor da mesa e a forma como todos estão
sentados longe de onde eu estou. Não pensei antes
de descer – foi puro hábito. Laura me deixou
acostumado a vir jantar nesse horário, ao invés de

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continuar descendo para comer quando sabia que


quase ninguém ia estar aqui. Não vou repetir isso.
— Ei, Ryan, você ainda tem contatos fora?
Olho para a porta. Eu nem sabia que Rodrigo
estava no casarão. A última vez que o vi, ele estava
conversando com Caio e indo na direção da mata.
Ryan se vira para Rodrigo, daquela forma lenta
e relaxada que deixa todos tensos. Ele estava
parecendo mais amigável enquanto Laura estava
aqui, mas agora... É mais um que está voltando a
como era antes.
— Contatos fora?
Rodrigo assente e se senta de frente para Ryan,
na outra mesa. Nem me surpreendo quando ele
finge que minha ponta dessa mesa não existe.
— Fora do país.
— Para quê?
Na verdade, não é só uma questão de estar
voltando ao normal. Todos estão tensos, mesmo
que tentem esconder isso. Tensos e irritadiços,
quase como na época que o bando se formou e
ainda não estávamos acostumados a conviver.
Quem diria que uma humana faria tanta diferença...

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Rodrigo se inclina para frente.


— Espalhar o portfólio da Lau. Ela falou que
está precisando de uma força para se mudar.
Isso ele faz questão de falar alto o bastante para
eu não conseguir ignorar de forma alguma. Respiro
fundo. Não deveria me surpreender com isso. É
óbvio que Laura vai embora. É o que ela queria,
desde antes de vir para cá. Foi por isso que ela
começou a pensar em vender suas ilustrações. Por
que não imaginei que faria isso agora? É sua
chance de sair de Monte das Pedras. O que quer
dizer que qualquer chance de eu conseguir vê-la vai
desaparecer. Não que ache que ela vá querer me
ver, de qualquer forma.
E eu não tenho que ficar mais irritado só porque
Ryan relaxa assim que escuta o nome de Laura.
— Me passe tudo depois que vou repassar para
quem eu conheço — Ryan responde.
— Certo.
Suspiro. Bom, pelo menos Rodrigo falou isso
em um lugar onde posso ouvir. Depois de tudo, o
mínimo que posso fazer é ajudar Laura a conseguir
o que quer. Isso quer dizer voltar a conferir quem
entre os meus contatos pode estar interessado ou
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pode conhecer alguém que vá se interessar pelo


trabalho dela.
— Ela te contou que vai sair com o ex?
— Henrique?
Olho para o lado da mesa a tempo de ver Ryan
assentir. Achei que estavam mudando de assunto,
mas a menos que alguém do Outro Mundo que a
maioria aqui conhece de repente tenha arrumado
um ex chamado Henrique...
O que Laura pensa que está fazendo?
— Não sabia! — Rodrigo responde.
— Mas já? — Aline pergunta.
Ryan dá de ombros.
— A gente estava conversando mais cedo.
Eu espero muito que esse “esteja conversando”
seja Ryan conferindo se ela está segura, como me
prometeu. Não quero pensar que ela continua
conversando com todo mundo normalmente... Se
bem que por que não faria isso? A única pessoa que
foi um filho da puta com ela fui eu. Nada mais
justo.
— Nem uma semana e ela já está voltando com
o ex? Garota rápida. Assim que eu gosto — Lavínia
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comenta.
Aline assente.
— Nada de ficar choramingando por quem não
merece.
Respiro fundo e fecho os olhos. Eles sabem que
eu estou ouvindo, é óbvio. Então não vou reagir.
Nada disso muda os fatos e eu prefiro que Laura
me odeie do que deixar que ela morra. Não me
arrependo do que fiz.
— Ei, Paula! Chegou tarde! — Rodrigo
praticamente grita.
Solto o ar de uma vez. Até isso soa forçado. Da
mesma forma como a conversa antes de Rodrigo
chegar na cozinha soava forçada, não importa o
tanto que estivessem rindo. Tudo falso. Chega a ser
infantil, mas não vou falar nada. Posso dar mais
alguns dias para eles aceitaram que fiz o que
precisava.
— Trabalho — Paula responde enquanto passa
direto por todo mundo e se senta ao meu lado.
— Não vai solidarizar com eles? — Pergunto.
Paula olha para a outra ponta da mesa e então de
volta para mim.

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— O quê? Ficar nessa pirraça? — Ela balança a


cabeça. — Liguei para Lílian.
Empurro meu prato para a frente. Se ela queria
me fazer perder o apetite, conseguiu. Acho que
nunca mais vou conseguir ouvir o nome de Lílian
do mesmo jeito. Por mais que ela tenha nos ajudado
várias vezes – me ajudado – dessa vez o preço foi
alto demais.
— Queria ver se ela não me dava mais algum
detalhe, mas... — Paula dá de ombros e para,
encarando o tampo da mesa.
Suspiro. Se ela tivesse falado comigo antes, eu
teria pedido para não ligar, justamente por isso.
Lílian não faz boas previsões. Pelo menos, nunca
soube que ela visse qualquer coisa que não fosse
problemas.
— O que foi agora?
Paula respira fundo.
— Lílian falou que o tempo de paz no casarão
acabou.
Balanço a cabeça, devagar. Não diria que
tivemos nenhum “tempo de paz” desde que viemos
para cá. Sempre tivemos algum problema diferente.
Gustavo, o Conselho, esses ataques...
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— Paula... — começo.
— Ela estava com medo, Alexandre. Lílian
estava com medo.
A encaro, sem querer acreditar no que estou
ouvindo. Se Lílian viu algo preocupante o
suficiente para ela ficar com medo...
Podia não ser aqui. O Conselho ainda estava se
preparando para revelar nossa existência. Podia ter
algo a ver com isso. Mas mesmo assim...
— Avise os outros — falo, indicando a outra
ponta da mesa com a cabeça. — Vamos estar
preparados.

···
L AURA
É ESTRANHO ESTAR ME ARRUMANDO PARA SAIR COM
Rick depois de tudo o que aconteceu.
Especialmente levando em conta o que eu suspeito.
Estou sendo idiota, mas pelo menos sei que não
vou estar sozinha. Confio em Ryan. Se ele disse
que alguém vai nos acompanhar, já fico mais
tranquila. Especialmente se esse “alguém” for um

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dos fey mais velhos, os que não se misturam. O


pouco que vi deles... Só posso agradecer por Ryan,
que é o mais velho, gostar de mim.
Paro na frente do espelho. Me arrumando é
modo de dizer, na verdade. Estou usando uma
camiseta, uma blusa de mangas compridas fina,
calça jeans e tênis. Nada além do meu normal. E
meu cabelo está preso no rabo de cavalo de sempre.
Não tem nada de diferente... Só o fato de que vou
sair com Rick. Não tinha notado o tanto que
realmente não quero fazer isso.
— Laurinha?
Me viro para minha avó, que está parada na
porta do quarto. E ela está séria, mais séria que
quando cheguei aqui sem querer contar nada sobre
o que aconteceu no tempo que estava “viajando”.
— Vai sair com quem?
Respiro fundo. Lá vem.
— Com Rick.
Minha avó fica ainda mais séria. Tinha me
esquecido de como ela sempre detestou Rick. É,
aprendi a lição. Da próxima vez, vou escutar se ela
falar que alguém não presta.

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— Não está pensando em voltar com ele não,


não é?
Balanço a cabeça com força. Não mesmo! Se
fosse só por mim, nem saía com ele hoje.
— Não tem nem perigo — falo.
Ela assente, ainda séria.
— Ótimo. Porque se voltar com ele, já fique
sabendo que ele não coloca o pé dentro da minha
casa. E eu vou pensar seriamente se vou deixar
você continuar aqui.
Balanço a cabeça de novo, lentamente. Por essa
eu não esperava. Não é que eu esteja pensando
nessa possibilidade, mas... Não esperava ouvir isso.
— Não vou voltar com ele, vó. Só estou saindo
hoje para colocar todos os pingos nos is. Mas não
quero isso para minha vida de novo, não.
Minha avó me encara por alguns segundos antes
de assentir.
— Ótimo.
Fico olhando para a porta enquanto ela se vira e
vai andando pelo corredor. Realmente, como foi
que eu aguentei Rick por tanto tempo, quando até
minha avó tem asco dele? E o pior... Como é que
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tanta gente na cidade tem certeza de que ele é o


cara perfeito, o príncipe encantado? Não consigo
entender.
Solto um suspiro alto quando o interfone toca.
Não quero ir. Prefiro mil vezes ficar no
computador, mexer em alguma das minhas
ilustrações. Na verdade, quero ir revirar os sites de
trabalho freelance, mas a casa da minha avó não
tem internet, então só consigo ver isso pelo celular,
que não é lá grandes coisas. Pelo menos saí hoje
mais cedo e fui na lan house enviar as ilustrações
terminadas para o meu cliente. Agora é esperar a
resposta.
Esperar a resposta e sair com Rick, na verdade.
Pego meu celular e o enfio no bolso da minha
blusa de frio, onde já coloquei uma nota de dez
reais. É mais que o suficiente para um cachorro
quente e não vou para nenhum outro lugar com
Rick.
Minha avó nem dá sinal de vida enquanto saio
de casa. É, ela realmente não gosta de Rick. Tenho
que lembrar de perguntar se tem algum motivo
específico para isso. Minha avó pode não ser uma
das velhas fofoqueiras da cidade, mas isso não quer
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dizer que não escute o que estão falando.


Rick está parado no portão. Respiro fundo mais
uma vez antes de sair. Eu vou fazer isso. E tudo vai
correr bem.
Ele me encara, mudando o peso de uma perna
para a outra, claramente sem jeito. Rick, sem jeito?
Certo. E tudo bem, pode até ser verdade, porque eu
não faço a menor ideia do que falar com ele. Não
depois do que aconteceu nas últimas vezes que nos
vimos e depois do que Bruna falou.
Tranco o portão e, quando me viro para ele de
novo, Rick já parece mais tranquilo. No controle.
Desde quando eu reparo nisso?
— Você está bonita. Emagreceu, não é? — Ele
comenta.
É bizarro pensar que dois meses atrás eu ia ficar
feliz por ele ter reparado. Hoje? Só consigo pensar
que é patético que isso seja a primeira coisa que ele
fale.
Assinto, sem ter certeza de como responder.
Não é a mesma coisa, não mesmo. Acho que nem
quando voltei de BH senti essa estranheza toda.
— Comecei a correr — consigo falar, dando de
ombros.
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Rick levanta uma sobrancelha e começa a andar


na direção da praça. Pelo menos ele não resolveu
fazer gracinha e vir de carro. Juro que pensei que
ele ia fazer isso, que nem quando voltei para Monte
das Pedras e ele fazia questão de me levar para
qualquer lugar de carro... Mesmo que a distância
fosse só dois quarteirões.
— Você, correndo? Quem conseguiu esse
milagre?
— Ei!
Ele dá de ombros, olhando para mim
rapidamente enquanto continuamos a caminhar
— É sério, você pode até gostar de andar, mas
no seu passo. Se eu andar um pouco mais depressa
já começa a resmungar.
Tá... Isso não é uma mentira. Admito que
sempre reclamei de ter que “andar correndo” para
acompanhar Rick.
— Uma amiga que fiz na viagem. Ela me
convenceu.
E eu estou ficando acostumada demais a contar
mentiras para encobrir o que aconteceu de verdade.
Vou acabar é fazendo um caderninho de anotações
para lembrar de quais histórias inventei para quem
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e tentar juntar isso tudo.


Rick assente, enfiando as mãos nos bolsos. Esse
é um gesto que eu conheço bem. É ele se
controlando para não me segurar.
— E como foi essa viagem?
É impressão minha, ou o tom de voz dele está
leve demais? Quase forçado?
Dou de ombros.
— Foi boa. Pena que tive uns imprevistos.
Rick olha para mim, obviamente esperando que
eu conte mais. Dou de ombros de novo. Não vou
falar mais nada. Minha história vai ser essa: a
viagem foi ótima, mas tive problemas que não
quero mencionar que me fizeram voltar mais cedo.
E não quero falar sobre isso mesmo.
— Só isso? Você foi para fora do país e não vai
comentar nada?
Respiro fundo. É, a tentativa de se passar por
uma pessoa legal não durou nada mesmo.
Cruzo os braços.
— Não.
E se dependesse de mim, daria a volta agora e ia
para casa. Mas... Ainda quero tentar saber se Rick
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está no meio dessa confusão, de alguma forma. Eu


aguentei ele por anos. Posso aguentar por alguns
minutos. É por um bom motivo.
Não falamos mais nada até chegarmos na praça.
Vou direto para o carrinho de cachorro quente e
peço um completo, sem nem esperar para ver o que
Rick vai querer fazer. No que depender de mim,
nós não vamos sair daqui. Lugar público, sempre
tem bastante gente por aqui de noite... Pois é.
Rick acha um banco vazio fora da parte mais
aberta da praça. Penso seriamente se não é melhor
insistir para ficarmos onde tem mais gente, mas
acho que não precisa. Ele está fazendo esforço
demais para me deixar à vontade, apesar de tudo.
Pelo menos para o normal dele.
— Eu só queria saber se você estava bem
mesmo — ele começa.
Assinto, me concentrando no cachorro quente.
Sei que preciso conversar com ele, mas não sei
como quebrar essa estranheza.
— E pedir desculpas. Eu fui um idiota aquele
dia no bar.
Levanto a cabeça. Rick pedindo desculpas.
Acho que o fim do mundo chegou.
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— Tudo bem — murmuro.


Não está tudo bem. Longe disso. Mas... Não vou
ficar rendendo. É esperar demais. E não consigo
acreditar que esse pedido de desculpas tenha sido
sincero.
— Tudo bem mesmo? — Ele insiste.
Solto o ar com força e reviro os olhos. Rick ri. E
isso é normal – ou o que era o nosso normal,
quando eu ainda aceitava tudo o que ele queria.
E como se isso fosse um sinal de que tudo
estava de volta ao normal, Rick começa a contar os
casos de quando eu estava “viajando”. Quando dou
por mim, já estou rindo e respondendo... É mais
fácil do que tentar continuar calada e eu preciso
fazer ele falar, não preciso?
É estranho ver que ele realmente está tentando.
A forma como está conversando comigo agora é
diferente, e pela primeira vez parece que ele está
me ouvindo de verdade. Não sei como nunca notei
isso antes... Ou talvez seja só paranoia minha. Não
que eu consiga acreditar nisso depois daquela
resposta de Ryan, ontem. E não que eu vá acreditar
que Rick mudou. Não sou tão idiota assim. Só é
interessante que ele esteja tentando pelo menos dar
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essa impressão. É mais esforço que pensei que ele


fosse fazer.
Já está relativamente tarde – para o padrão de
Monte das Pedras – quando falo que quero voltar
para casa. Já são quase nove horas da noite e,
depois de conversar sobre sei lá quantas coisas,
Rick não falou nada que fosse suspeito.
Conversamos até sobre meus anos em BH, e nada.
Nem a reação que ele tinha antes, de raiva. É como
se ele realmente tivesse percebido as cagadas que
fez e estivesse tentando mudar. Conhecendo Rick,
nada é mais suspeito que isso.
Estou abrindo o portão da casa da minha avó
quando ele segura meu braço com força. Me viro
para Rick, sem entender.
— Eu sei onde você estava, de verdade — ele
fala em voz baixa.
Solto meu braço com um safanão, fazendo um
esforço para não reagir.
— Está falando de quê?
Ele balança a cabeça, sério, e levanta as mãos.
— Eu sei onde você estava. Sei que não estava
viajando. Se quiser falar sobre isso, estou aqui.

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Destranco o portão depressa e entro, o fechando


atrás de mim antes de Rick conseguir dar um passo.
— O que foi que você bebeu? — Pergunto
através da grade.
Ele só balança a cabeça de novo e se afasta.
Corro até a porta da sala e entro. Só quando já
tranquei a porta, fechei a janela da sala e conferi se
a porta da cozinha está fechada, consigo me sentar
e respirar fundo.
Eu queria uma confirmação de que ele estava
envolvido. Acho que consegui.
Tiro meu celular e seleciono o número de
Rodrigo.
Laura: Rick sabe que eu estava aí.
Espero, segurando o celular com força. Minha
avó me chama e avisa que tem comida na cozinha,
mas agora não consigo nem me levantar. Preciso
saber o que Rodrigo vai responder primeiro.
Não preciso esperar muito.
Rodrigo: Seu ex?
Laura: Isso. Ele acabou de dizer que sabe onde
eu estava. E não tem como interpretar de outro
jeito.
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Rodrigo: Merda. A gente já suspeitava dele


desde antes da sua teoria, mas... Você sabe que a
família dele quer comprar uma parte da
propriedade, né?
Droga. Eu queria que fosse paranoia minha.
Queria mesmo. Isso...
E pelo menos agora eu tenho certeza de que
alguém ouviu minha teoria sobre Rick e a família
dele.
Laura: Sei.
Agora, se a família de Rick realmente está
envolvida nisso de alguma forma... Não foi por
acaso que meu pai viu o que não devia. Não foi por
acaso que eu fui parar no meio disso tudo. Não tem
como ter sido. Mas, por quê?
Eu queria estar errada. Queria mesmo.
Rodrigo: Estou repassando isso aqui.
Obrigado.
Assinto, encarando o celular, antes de perceber
o que estou fazendo e digitar uma resposta.
Laura: Só me conte o que descobrirem. E aviso
se ele falar mais alguma coisa.
Porque não posso fugir agora. Respiro fundo.
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Deveria. O mais esperto seria me afastar de Rick de


vez, se possível ir para BH logo, sair daqui. Mas
agora eu estou envolvida de verdade, não é mais só
azar. Não foi só uma coincidência. Não sei se
estavam atrás de mim ou da minha família – porque
foi por bem pouco que não mataram todos nós.
Respiro fundo de novo. Eu vou continuar até o
fim
Paula: Você não precisa insistir nisso para
descobrir alguma coisa. Já confirmou para nós.
Encaro o celular por um instante antes de
entender que Rodrigo deve ter falado com ela.
Hierarquia... E ela está logo abaixo de Alexandre
na hierarquia do bando.
Laura: E de que vai adiantar eu fugir ou me
esconder?
Não preciso esperar a resposta dela. Se tiveram
esse trabalho todo, não acho que simplesmente
parar de falar com Rick vá fazer alguma diferença.
Ou até mesmo mudar de cidade. Não.
Paula: Tome cuidado. Sabe que Ryan tem
alguém perto de você, se precisar.
Laura: Vou tomar.

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E se não fosse por Ryan ter colocado algum fey


para me vigiar, eu nunca arriscaria fazer isso, para
falar a verdade. Mas... Estou cansada de só fugir e
me esconder. Preciso entender o que está
acontecendo, de verdade, e não vou deixar meus
amigos na mão.

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C A P Í T U L O T R I N TA E SEIS

L AURA
— VOCÊ SABE QUE NÃO GOSTO DESSA “FOGUEIRA” DE
vocês.
Suspiro e me viro para minha avó, que está
parada na porta do quarto, enquanto eu tento enfiar
uma caixa de cerveja na mochila. Sei que isso não
vai prestar, mas não queria levar na mão.
— Seja honesta, vó. Seu problema é que Rick
também vai.
Ela resmunga alguma coisa baixo demais para
eu ouvir, mas tenho quase certeza que minha avó
acabou de soltar um palavrão. Quem diria.
— Aliás, nunca perguntei qual é seu problema
com ele.
— Além do fato de que ele é um babaca? — Ela
responde.
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Rio. Não vou nem sonhar em discordar disso.


Rick é um babaca. E um babaca que acha que está
me enganando com sua encenação sobre “ter visto
que fez bobagem e estar mudando”. Sim, ele falou
isso, com essas palavras.
Já faz duas semanas desde que ele disse que
sabia que eu não tinha viajado. No outro dia, ele já
veio pedir desculpas por ter sido agressivo, que não
era sua intenção, mas tinha ficado preocupado... O
que, levando em conta que conto nos dedos de uma
mão as vezes que Rick admitiu que estava errado,
só me fez ter mais certeza de que ele queria alguma
coisa especificamente comigo.
Eu tinha certeza que alguma coisa ia acontecer
na lua cheia, de novo, mas ela foi semana passada.
Não aconteceu nada aqui e nem no casarão – e
Paula também está achando isso estranho. Tudo
está calmo demais, tranquilo demais... E depois de
tudo o que aconteceu, não consigo nem me sentir
feliz por isso. Só estou mais tensa.
Pelo menos já tenho certeza de que este vai ser
meu último mês em Monte das Pedras. Paula me
convenceu que se eu não descobrir nada nesse
tempo, as chances de conseguir alguma coisa

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depois são bem baixas, de qualquer forma. Então


não vale a pena insistir em ficar aqui. E eu consegui
fechar uns tantos trabalhos. Estou indo na lan house
quase dia sim dia não, enviando tanto ilustrações
prontas quanto thumbnails, porque o pessoal
realmente espalhou meu portfólio e me indicou
para quem conheciam.
E isso inclui Alexandre. Tenho dois novos
clientes que falaram que eu fui recomendada por
ele. E esse foi o único sinal de vida dele que tive.
Mais nada... Não que eu esperasse por isso. É
melhor assim. Muito melhor.
Suspiro e coloco a caixa de cerveja no chão.
Vou ter que levar na mão, mesmo, mas pelo menos
Bruna vai vir me buscar. Rick queria fazer isso,
mas ele vai dar carona para alguns amigos e eu não
tenho paciência para eles. Então usei aquela velha
desculpa de que vir me buscar ia fazer ele dar uma
volta à toa, mas era caminho para Bruna. E o
restante do pessoal que sei que vai, está no carro de
Gisele.
— A gente só vai acender uma fogueira e beber
um pouco, vó. Ninguém está indo lá para agarrar
ninguém — falo.

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Pelo menos, esse era o combinado desde a


primeira vez que resolvemos ir para o meio do
mato: achar um lugar para acender uma fogueira e
beber e comer em paz. Já faz um bom tempo isso,
foi antes de eu ir para BH, depois de uma festa
junina em que a gente só queria beber um pouco
em volta da fogueira, mas os adultos não deixaram.
Então resolvemos fazer isso por conta própria.
E aliás, como é que naquela época Rick não
reclamava por eu beber cerveja? Ele ficou mais
babaca com o tempo, foi isso?
— Eu só não gosto de ver você com ele,
Laurinha. Rick era um bom garoto, mas está
ficando igual ao pai. E aquela família... — Minha
avó balança a cabeça. — Eles não se preocupam se
estão pisando nos outros, desde que consigam o que
querem.
Essa é uma ótima descrição de Rick, na verdade.
— Eu sei. Já falei que não vou voltar com ele.
— Então por que continua saindo com ele?
Respiro fundo e me levanto, encarando minha
avó.
— Porque ele está aprontando alguma coisa e eu
quero descobrir o que é.
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Ela sustenta meu olhar e então assente.


— Só tome cuidado.
— Estou tomando, vó.
Juro que estou.
Dou um pulo quando alguém buzina duas vezes
na porta de casa. Só pode ser Bruna. Minha avó
ainda está me encarando, mas pego minhas coisas
depressa.
— Bênção, vó! — Falo, já passando por ela e
correndo para a porta.
Não espero para ouvir se ela me respondeu ou
falou mais alguma coisa.
Já faz uns anos que sempre fazemos a fogueira
no mesmo lugar. Achamos esse espaço dois anos
antes de eu ir para BH e nunca mais mudamos,
mesmo que eu mesma não estivesse aqui todos os
anos. É um espaço rochoso, subindo a serra, no
meio do mato. Sei que algumas pessoas acampam
aqui, às vezes, mas no meio do ano é frio demais
para isso, então o lugar é todo nosso. A Hilux de
Rick está parada logo na entrada da trilha, com um
Uno que imagino que seja de Gisele logo atrás.
Nunca vi o carro dela antes, mas acho que vamos
ser só nós aqui.
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Rick e os amigos dele vieram mais cedo, antes


de escurecer, para pegar galhos e acender a
fogueira, e a essa altura sei que já começaram a
beber faz tempo. Gisele e as meninas devem ter
vindo relativamente cedo por isso. Mesmo que o
nosso acordo seja de nos divertirmos, sem nenhuma
pegação enquanto estamos aqui, ela e Samara estão
solteiras. Depois do tanto que ouvi elas falando que
eu era uma idiota por não aproveitar Rick, não
gostar de ter um namorado atencioso e tudo mais,
sei que não vão perder a oportunidade de ir atrás
dele. Só não falo um “vão felizes” porque não acho
que elas merecerem aguentar Rick. Ninguém
merece.
— As últimas a chegar — Bruna fala, parando o
Corsa da sua irmã atrás do carro de Gisele. Juro que
não sei como esse carro ainda aguenta subir até
aqui.
— Está achando ruim?
— Não mesmo. Quer dizer que a fogueira já
está quentinha.
Rio enquanto pego minhas duas caixas de
cerveja e desço do carro, empurrando a porta com a
bunda. Não demora nem cinco minutos para
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chegarmos na fogueira e sorrio com os gritos de


“atrasadas”.
— Não é minha culpa se vocês resolveram vir
cedo — Bruna retruca.
Não falo nada enquanto coloco as cervejas
dentro da caixa de isopor de um dos amigos de
Rick e fico com uma na mão. Alguém teve a ótima
ideia de comprar salsichas e Cláudia e Beto estão
segurando espetos com elas na direção da fogueira.
Não sei se isso vai prestar, mas vale a diversão.
E... Por algum tempo, é bom estar aqui. Sem
preocupações, sem pensar no Outro Mundo ou em
qualquer coisa ligada a eles. Só bebendo com os
amigos, rindo de casos e piadas, como nos velhos
tempos. De certa forma, queria que isso fosse real.
Que minha vida realmente fosse simples assim,
mas nunca foi. E, de qualquer forma, isso aqui é só
uma ilusão.
A salsicha que Cláudia estava tentando assar cai
do espeto e dou um pulo com o estrondo. Acho que
bebi demais. Solto uma gargalhada e olho ao redor.
Não fui a única que pulou, pelo menos. Gisele
quase caiu da pedra onde está sentada e Lucas
derramou cerveja. Cláudia está encarando o espeto
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e a fogueira como se não fizesse a menor ideia do


que aconteceu.
— O que vocês colocaram nessas salsichas? —
Ela pergunta.
Rick ri alto.
— Não faço a menor ideia. Estavam esquecidas
lá em casa.
— Eca!
Não sou a única a falar isso, mas estou rindo.
Ainda bem que trouxe chips, porque não vou nem
chegar perto dessas salsichas. Não mesmo.
— Por favor, alguém trouxe mais comida? —
Beto pergunta, encarando o espeto que está
segurando.
Levanto meu pacote de cheetos.
— Como é que você gosta dessa porcaria?
Ainda mais o de requeijão? — Lucas pergunta.
— Deixa ela, ela come estrogonofe com feijão.
— Bruna responde.
— Ei, se não querem, melhor pra mim!
Bruna ri e enfia a mão no meu pacote de
cheetos, antes de pegar outro espeto e enfiar uma
salsicha nele. Louca. Tenho minhas dúvidas de que
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isso de assar as salsichas na fogueira vai dar certo,


de qualquer forma. Especialmente depois que
começamos a beber.
Estou fingindo prestar atenção numa história
que Rick está contando, coisa que aconteceu na
construtora, quando a salsicha de Bruna também
cai.
— Sobrevivente! — Beto levanta seu espeto,
com a salsicha que está tentando assar.
— Ei, pelo menos a minha não explodiu! —
Bruna retruca.
Rio junto com os outros. Realmente, quando a
salsicha de Cláudia caiu foi quase o barulho de uma
explosão...
Paro de rir e encaro a fogueira. Foi como o
barulho de uma explosão longe de nós. Quase o
mesmo barulho que eu ouvi naquele dia, no
casarão.

···
A CERVEJA JÁ ESTÁ ACABANDO QUANDO RICK PARA DO
meu lado, segura minha mão e me puxa. Vou antes
de pensar direito no que estou fazendo. Droga.

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Devia ter bebido menos. Rick ri e me puxa para o


meio das árvores.
— Ei! Sem agarros! — Samara grita.
Empurro Rick, repetindo a mesma coisa.
— Só vamos conversar! — Ele grita de volta e
aperta meu pulso com força.
Bato no seu peito, mas ele continua me puxando
para o meio das árvores.
— Ei! Rick! Me solta!
Ele me puxa com mais força e escuto uma risada
vindo da fogueira. Merda. Eu não devia ter bebido.
Não devia ter relaxado. Não devia...
Tento me soltar de novo, mas Rick parece nem
notar. Ele praticamente me arrasta para fora da
vista dos outros – e eu vou, porque sei que se
tropeçar ou qualquer coisa do tipo ele vai me
arrastar.
— Rick!
— Para com isso, Laura. Só quero conversar.
Conversar. Sei.
Puxo meu braço para trás com força e Rick
xinga, mas não me solta. Merda.
— Me solta!
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Cadê o fey que Ryan falou que ia me vigiar?


Puta merda, eu...
Rick me puxa e me empurra na direção de uma
árvore. Bato nela de costas e ele para na minha
frente, prendendo meu corpo. Puta merda. Tento
acertar um chute no meio das pernas dele, mas Rick
sabe exatamente o que está fazendo e não consigo
nem fazer isso. E cadê meus amigos? Grandes
amigos, esses.
Rick segura meu rosto com força, me obrigando
a olhar para ele.
— Eu sei exatamente onde você estava esse mês
que sumiu. Sei o que eles são. Sei o que você é. É a
última vez que vou falar isso, Lau. Você precisa
escolher um lado. E não adianta chorar.
Nem notei que estava chorando. Só quero sair
daqui. Devia ter fugido quando tive a chance.
Sumido de Monte das Pedras. E...
As palavras de Rick fazem sentido. Ele sabe o
que eu sou. Aquela coisa estranha, peeira, que
acalma os lobos.
Que controla os lobos.
O que foi que Alexandre falou naquela reunião?
Que eu sou a única que tem uma chance de
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controlá-lo se ele perder o controle. Sem mim, a


única opção é Ryan.
Balanço a cabeça, sem nem tentar parar de
chorar.
— O que eu sou? Do que você está falando?
Rick suspira e solta meu rosto.
— O que eles fizeram com você enquanto
estava presa naquela casa?
Minha respiração falha. Se eu ainda tinha
alguma ilusão de que ele estava dando um chute,
isso acaba com ela. Ele sabe. Ele realmente sabe. E
isso quer dizer...
Não. Não.
Balanço a cabeça de novo, sentindo as lágrimas
escorrendo. Não posso parar de chorar agora. E...
Só tem uma coisa que eu posso fazer.
— Eles queriam que eu fizesse uma coisa para
eles.
— Que coisa?
Balanço a cabeça mais uma vez, com força, ao
mesmo tempo em que tento me soltar. Conheço
Rick. Sei o que preciso falar.
— Não sei. Não me contaram. Falei que não ia
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ajudar eles. Que não ia trabalhar com monstros.


Eles...
Eles estão atrás de Alexandre. E quando
conseguirem fazer ele perder o controle – porque é
só uma questão de tempo, se estão insistindo tanto
assim – não vai sobrar ninguém. Vai ser um
massacre. Eu vi Alexandre em modo monstrão,
matando metamorfos como se fossem mosquitos.
Nada demais. Simples.
Não tento segurar um soluço e balanço a cabeça
de novo. Eu vou fazer isso. Eu vou.
A expressão de Rick fica mais suave e ele se
afasta um pouco, só o suficiente para não estar mais
me prensando contra a árvore. Não falo nada
quando ele me puxa para um abraço. Só vou. Passo
os braços ao redor do seu pescoço e escondo o
rosto no seu peito. Isso tem que funcionar. Tem
que.
— Ah, Lau... — Rick passa a mão na minha
cabeça, bagunçando meu cabelo. — Eles te
machucaram?
Não respondo, só soluço de novo, me forçando a
continuar chorando. Ele continua passando uma
mão pelo meu cabelo, com a outra subindo e
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descendo pelas minhas costas. Me seguro ainda


mais no seu pescoço, procurando o ponto certo.
— Lau, não precisa ficar assim — ele continua,
me apertando como se isso fosse me acalmar. —
Eu vou te ajudar. Eles não vão viver. Não no nosso
mundo.
Aperto o ponto no seu pescoço. Mais que
quarenta segundos e posso causar dano cerebral.
Mais de três minutos e posso matar. Me aperto
contra o corpo de Rick, tentando fazer parecer que
só estou me agarrando nele, que o lugar que estou
apertando é por puro acaso.
— Lau? — Ele aperta minha cintura. — Lau!
Ele bate nas minhas costas e puxa meu ombro,
tentando fazer eu me soltar, mas calculei bem
minha posição. Isso deveria ser rápido. Mas na
posição que estou... Rick soca minhas costas, mas
não estou nem prestando atenção na dor. E ele não
me leva a sério o bastante para pensar em me
machucar de verdade. Não assim.
Rick me empurra de uma vez contra o tronco da
árvore e um gemido baixo escapa, junto com o ar.
Mas não solto. Não posso soltar.
— Lau! — Sua voz está começando a perder a
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força e é isso que eu quero. — Vadia... Te mato...


E não duvido que ele esteja falando sério, agora,
mas... Não consigo ter medo. Só consigo me
lembrar do barulho que ouvimos mais cedo, que
parecia uma explosão. Foi uma explosão, tenho
certeza.
Continuo segurando até que sinto o corpo de
Rick ficar mole e seu peso cair em mim. Espero
mais alguns segundos, mas quase consigo ouvir a
voz de Daiane falando que isso pode matar um
humano. Espero que isso não aconteça. Apesar de
tudo... Espero mesmo.
Quando solto os braços, Rick escorrega para o
chão.
Respiro fundo. Eu fiz isso. Eu fiz. E agora tenho
que dar um jeito...
Primeiro preciso sair daqui. E descobrir o que
aconteceu no casarão. E pedir alguém para cuidar
de Rick... Apagar sua memória ou sei lá. Mas,
como...?
Respiro fundo de novo.
— Socorro! Ajuda! Alguém me ajuda!!! —
Grito enquanto começo a correr de volta para a
fogueira, mesmo que eu mal consiga ver por onde
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estou passando. — Me ajuda! Ele desmaiou!


Lucas! Beto!
Quase dou de cara com Lucas. Ele segura meus
braços e me encara.
— Lau, o que foi? O que...?
— Rick. Ele desmaiou. Do nada, só... Caiu.
Alguém chama ajuda, chama uma ambulância,
alguma coisa...
Ele me solta e cambaleio antes de me apoiar no
tronco de outra árvore. Beto passa correndo por
mim, atrás de Lucas. Não demora nada para Bruna
e Samara aparecerem também.
— O que foi? — Bruna pergunta.
Só balanço a cabeça, ainda chorando, e me sento
no chão, encostada na árvore. Isso tem que dar
certo. Tem que dar certo, por favor.
Bruna se senta ao meu lado, sem falar nada, e
Samara acompanha os meninos. Escuto ela
discutindo com ele, dizendo que não podem mover
Rick, que isso pode piorar qualquer coisa... E eles
dizendo que nenhuma ambulância vai vir buscar ele
aqui em cima. Isso. Levem ele para o hospital.
Eles passam por nós, carregando Rick e indo

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direto para o carro. Escuto Gisele gritando alguma


coisa, alguém respondendo, mas não consigo
prestar atenção. Eu fiz isso. Eu posso ter matado
Rick. Mas... O que ele fez? O que foi aquela
explosão?
— Lau?
Olho para Bruna. Acho que ela já estava me
chamando antes, porque está parecendo
preocupada.
— Vou tirar o carro do caminho para descerem
com Rick e volto, está bem?
Assinto.
— Não saia daqui — ela completa.
Assinto de novo. Não vou sair. Provavelmente
vou precisar do carro dela.
Bruna se levanta e vai na direção da fogueira.
Escuto enquanto ela discute com alguém antes de
se afastarem. Só então respiro fundo e tiro meu
celular do bolso. Começo a digitar uma mensagem,
mas não. Não tenho tempo para esperar uma
resposta. Seleciono o número de Rodrigo e aperto o
botão “chamar”.
O som do celular chamando me deixa ainda

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mais nervosa. Preciso fazer um esforço para não me


levantar e começar a andar de um lado para o outro.
Foda-se. Me levanto e vou andando na direção da
fogueira. Por favor, Rodrigo, atenda logo. Atenda.
Não tenho muito tempo...
— Alô.
— Você falou que eu podia ligar se precisasse
de alguma coisa — começo, depressa. — Rick... Eu
usei aquele truque que a Daiane me ensinou. De
apertar o pescoço. Estão levando ele para o
hospital. E ele sabe de tudo. De vocês, do casarão,
de mim... Ele... Ele vai me matar se eu ainda estiver
aqui quando ele acordar.
— Vamos cuidar disso — Rodrigo me
interrompe. — Mas o melhor seria você colocar
sua família em um carro e sair da cidade. Vai para
BH, fale com Camila para achar um lugar seguro,
algo assim.
Respiro fundo. Ele está tenso. Rodrigo não fala
desse jeito, tão depressa e ao mesmo tempo
parecendo distante.
A explosão.
— O que aconteceu?
— Você não precisa saber.
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— Rodrigo! Eu ouvi a explosão! O que


aconteceu?
Escuto a voz de Lavínia no fundo, mas não
consigo entender o que ela falou.
— Derrubaram as defesas. Paula... — Ele
engole em seco. — Não sei como fizeram isso.
Ninguém sabe. Ela... Eles a mataram.
Puta merda. Paula. Mataram Paula. Não...
— Alexandre se transformou e foi atrás deles.
Preciso de alguns segundos para entender o que
ele quer dizer. A lua cheia já passou, isso quer dizer
que ele se transformou porque quis... E que o
monstro vai estar totalmente no controle. E
lobisomens sem controle... Engulo em seco.
— Eu...
— Laura, preciso ir. Vamos resolver isso. E dar
um jeito em Rick.
Resolver isso...
— O que vai acontecer?
— Lau...
— Ryan vai atrás dele, não é? O que ele vai
fazer?
O silêncio de Rodrigo é resposta o suficiente.
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Droga. Droga.
Eu devia fugir. Devia seguir o conselho dele e ir
para BH antes de Alexandre chegar na cidade. Mas
se ele chegar aqui... Se ele chegar em qualquer
lugar...
Vai ser um massacre. E depois ele vai morrer.
— Me fala onde ele está.
— Lau...
— Porra, Rodrigo, vocês sabem que eu consigo
parar ele! Me fala!
— Não temos certeza dessa vez. E se alguma
coisa acontecer com você...
— É problema meu. Não ter certeza não é “não”.
É melhor que a opção de Ryan.
Escuto vozes abafadas do outro lado. São várias
pessoas, disso eu tenho certeza, mas não consigo
ter certeza de quem está falando.
— Vou te manter informada — Lavínia fala e
escuto Rodrigo retrucar alguma coisa no fundo. —
Ele está indo para a área do condomínio.
— Obrigada.
Ela desliga o celular e eu olho para baixo. Parei
na beirada das pedras onde acendemos a fogueira, e
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se a lua estivesse no céu eu conseguiria ver o


terreno onde estão construindo o tal condomínio.
Não estou longe.

···
BRUNA PARA DO LADO DA CERCA AO REDOR DA ÁREA DO
condomínio. Eles não se deram ao trabalho de fazer
muros nem nada do tipo, afinal de contas estamos
no meio do nada e a construção começou faz pouco
tempo. Qualquer coisa além de uma cerca seria
gastar dinheiro à toa pensando numa possibilidade
mínima. Pelo menos, me lembro do meu pai falar
isso. Agora, não tenho tanta certeza. Não duvido
que isso também tenha sido de propósito.
O que não consigo entender é o que querem
fazer. Porque não tenho dúvidas de que o pai de
Rick está nessa também. Desde que Lavínia falou
que Alexandre estava vindo para cá, não tenho a
menor dúvida. Não pode ser coincidência,
especialmente depois do que Rick falou. A questão
é: por quê? Para quê?
Olho para o meu celular e para a última
mensagem.
Lavínia: Estão na construção. Alexandre quase
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atacou Aline quando ela voou baixo demais.


Cuidado.
Não é difícil entender por que Aline também
está aqui. Na verdade, me surpreende que Rodrigo
não esteja, também. Eles são os que fariam mais
questão de se vingar, porque se mataram Paula...
Fecho os olhos com força. Estou tentando não
pensar nisso. Não quero nem imaginar como
conseguiram, sendo que Paula era uma das bruxas
mais fortes... Paula, que me deu o único emprego
onde eu me sentiria bem nessa cidade. Que me
vendeu, mas que salvou minha vida com isso. E
agora...
Balanço a cabeça com força. Não posso ficar
pensando nisso agora. Senão...
Não.
Laura: Estou aqui. Vou entrar.
A resposta vem na mesma hora.
Lavínia: Cuidado, Lau. Se não der certo, você
faz o que precisar para escapar. Ryan já está aí.
Laura: Certo.
Mas vai dar certo. Tem que dar.
— Lau? — Bruna me chama. — Tem certeza
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que quer ficar aqui? É...


Enfio o celular no bolso e abro a porta.
— Tenho, pode...
Paro quando Bruna segura meu braço, com
força. Me viro para ela, sem cabeça para discutir de
novo. Já tive que praticamente implorar para ela me
trazer aqui, porque ela queria de todas as formas
me levar para o hospital, porque eu estava em
choque, agindo de forma estranha e sei lá mais o
quê. Sei que ela acha que não contei o que
aconteceu de verdade no meio das árvores, sei o
que ela suspeita. E ela não está errada em dizer que
estou em choque, também... Eu acho. Essa coisa de
não sentir nada direito, de me sentir deslocada,
afastada do mundo real... Acho que é estar em
choque, não é?
— Volta para a cidade — falo. — Se puder...
Avise minha avó que eu estou bem, só vou dormir
fora e volto amanhã.
Ela me puxa quando tento sair do carro.
— Nem vem. Vou te esperar aqui. Não sei que
loucura que foi essa que você arrumou, mas...
Bruna para de falar quando escuta o primeiro
uivo. Olho para fora, tentando descobrir de que
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direção o som veio, mas nunca consegui fazer isso


direito. Um segundo uivo responde, e então mais
outro. Espero que seja Alexandre e talvez alguém
do casarão. Engulo em seco, me lembrando dos
lobos me cercando no jardim. Isso não vai
acontecer de novo.
— Isso não foi um cachorro — ela murmura.
— Não.
Puxo meu braço e dessa vez ela me solta.
Quando me viro, ela está apertando o volante com
força.
— Lau... O que está acontecendo?
Respiro fundo. Bem que eu queria saber. Bem
que eu queria saber mesmo.
— Só vai, Bruna. Volta pra cidade. Fala com
minha avó.
— Eu...
Escuto o barulho de algo arranhando o teto do
carro. Bruna grita e aperta o volante com mais
força ainda, mas eu escuto o grito de um gavião se
afastando. Aline?
— Vai, Bruna. Eu vou ficar bem. E um dia te
conto o que aconteceu aqui.
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Pelo menos, é o que espero.


Saio do carro e bato a porta antes que ela fale
mais alguma coisa. Bruna acelera na mesma hora e
pega a estrada de volta para Monte das Pedras, sem
nem meia hesitação. Se esse gavião foi Aline, tenho
que agradecer depois, porque senão ela ia continuar
insistindo e provavelmente ia ficar aqui por perto,
me esperando.
Olho para a cerca de arame farpado. Pelo menos
a noite está clara o bastante para eu ver a cerca. A
lua minguante mal nasceu, nem vai me ajudar
muito quando estiver na área da construção
propriamente dita. Se fosse semana passada, com a
lua cheia, ia ser muito mais fácil. E meu celular não
tem lanterna.
Isso não vai prestar.
Puxo um dos fios da cerca e me abaixo,
passando uma perna por cima dele. Eu odeio arame
farpado. Odeio. Empurro o fio para baixo, o
máximo que consigo, e passo o tronco, antes de
passar a outra perna. Meu tênis agarra no arame,
mas pelo menos foi só o tênis. E eu passei antes dos
uivos começarem de novo, senão teria dado um
pulo de susto. Olho ao redor, não que isso adiante
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alguma coisa. Queria ter certeza de que os uivos


são uma forma de avisarem que estou aqui, porque
é coincidência demais terem começado assim que
passei pela cerca, mas não tenho como saber.
Mas, se forem... Estão avisando quem?
Um gavião voa baixo na minha frente. O mesmo
de antes? Só pode ser. E espero muito que seja
Aline, porque o acompanho. Minha outra opção é
tentar andar pela área enorme do condomínio, no
escuro, sem cair em nenhum buraco...
E isso me faz tirar meu celular do bolso. Ele não
tem lanterna, mas a luz da tela é melhor que nada.
O aponto para o chão e começo a andar na direção
que o gavião foi.
Ia ser mais fácil se eu ao menos conhecesse o
lugar. Se soubesse onde os prédios estão sendo
construídos, onde vão ser as ruas e tudo mais, ia ser
muito mais tranquilo. Mas não, eu nunca vim aqui
de dia. Só corri o olho em uma maquete na casa de
Rick, pouco antes de terminar com ele, e foi coisa
rápida. Não lembro de nenhum detalhe. Então só
olho para o chão de terra e tento não tropeçar em
nada nem enfiar o pé em nenhum buraco.
Quantas coisas em uma construção podem ser
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transformadas em armas? Tudo. Especialmente


para as pessoas do Outro Mundo. Não que eles
precisem, mas... Um calafrio me atravessa quando
escuto os uivos de novo, mais perto de mim.
E quantas coisas em uma construção desse
tamanho podem ser usadas para fazer uma
armadilha?
Paro quando penso nisso. Faz todo sentido. É
uma armadilha, mas para quê? Que querem
Alexandre não é novidade... Que me querem
também... Droga, não tinha pensado nisso. Estou
entrando na armadilha por vontade própria. Idiota.
Mas não vou voltar atrás. Tem que ter algum jeito.
Se eu não estiver aqui, Ryan vai matar Alexandre,
então vou arriscar. Talvez estar aqui mude as
coisas. Talvez a gente ache um jeito. Mas não vou
aceitar que tudo termine assim.
O gavião passa por mim mais uma vez e vira
para a direita. Certo. Lá vamos nós. Aponto o
celular para o chão e começo a andar na direção
que ele foi. Consigo ver os lugares onde já cavaram
para começar os alicerces e acho que estou no que
vai ser uma rua. Pelo menos não tem nenhum
buraco no meu caminho. Mais na frente consigo ver

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as pilhas que acho que são de tijolos e aquelas


coisas de metal. Fora isso, nada. E nenhum ruído.
Paro quando percebo isso. Está tudo silencioso
demais. Os uivos pararam e eu não escuto nem um
grilo. Absolutamente nada. É quase como se até os
insetos estivessem se escondendo de um predador...
Eu estou perto. Engulo em seco. Não tive tempo
para sentir medo da outra vez, mas agora... Se isso
é o que acontece porque Alexandre está por perto,
consigo entender porque a primeira reação do
Conselho é mandar matar os lobisomens. Consigo
sentir aquela aura de violência, mesmo que não
consiga ver nada nem ouvir nada..
Dou um pulo quando escuto o primeiro grito e
meu celular cai no chão, com a tela para baixo. Isso
foi... Mais um grito. E são gritos humanos, tenho
certeza. Me abaixo, procurando meu celular,
enquanto tento me acalmar. Mais gritos e acho que
ouvi um som meio molhado que...
Não preciso fazer esforço para entender o que
está acontecendo: Alexandre. E não consigo nem
sentir medo ou pensar que ele não deveria estar
fazendo isso. Mas os gritos fazem eu me lembrar
daquele dia, de como ele matou os lobos...
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Para quê alguém ia querer Alexandre fora de


controle? Para causar um massacre, óbvio. Mas de
quê isso serviria? Duas opções. O Outro Mundo
poderia ser revelado para a humanidade da pior
forma possível, com um massacre. E depois disso,
ninguém nunca mais ia conseguir ver o Outro
Mundo sem pensar no que aconteceu aqui, mesmo
que a humanidade não se virasse contra eles em
massa. Ou então... Isso forçaria o Outro Mundo a se
esconder ainda mais, porque se revelarem sua
existência pouco depois de um massacre assim vai
ser impossível as pessoas não ligarem as duas
coisas, o que levaria ao mesmo problema da
primeira opção.
Mas então para quê me querem? Não consigo
nem imaginar, mas... Tenho quase certeza de que
minha ideia sobre o motivo de quererem Alexandre
está certa. Tudo está ligado com o Outro Mundo se
mostrar para a humanidade, desde o começo.
Respiro fundo. Não posso ficar parada aqui.
Mas se continuar sem meu celular não vou ter
como falar com Lavínia e não vou conseguir ver
nada. Com os buracos que fizeram para as
construções e as coisas que estão pelo chão... Me
abaixo e tateio, tentando achar o celular. A tela
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apagou, porque não consigo ver nem um fio de luz.


Espero muito que não tenha quebrado. E espero que
esteja por perto, porque não vou ficar parada aqui
procurando por ele. Se não achar depressa...
E não vou prestar atenção nos gritos. Não vou.
Alguma coisa encosta no meu pulso e dou um
pulo para trás. O que...?
Uma mão me segura e sinto uma pontada de dor
na cabeça.

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C A P Í T U L O T R I N TA E SETE

L AURA
ESCUTO UM RUÍDO MOLHADO E ENTÃO O BARULHO DE
alguma coisa se partindo. Mas... Eu estava andando
pela área do condomínio, não estava? E tudo estava
em silêncio... Então o que foi que aconteceu?
Me lembro de uma mão aparecendo do nada e
me segurando, e então a dor na cabeça. Merda. Eu
desmaiei. Só pode. Quero levantar a mão e tentar
ver como minha cabeça está, porque ela ainda está
doendo, mas tem alguma coisa me segurando.
Alguma coisa não. Alguém está segurando meus
braços para trás. E... Não sei o que está
acontecendo, mas não quero que quem quer que
seja saiba que estou acordada. Qualquer coisa para
me dar uma vantagem e pelo menos entender o que
está acontecendo. Droga. Como foi que vim me

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meter nisso?
Abro os olhos lentamente. Ainda é de noite e
ainda estamos na construção, se os tijolos
quebrados na minha frente servirem de indicação.
Não deve ter passado muito tempo, então. E quem
está me segurando está atrás de mim, o que quer
dizer que posso tentar ver o que está acontecendo.
Pelo menos os gritos pararam... Droga. O ruído
molhado. Eu não acredito...
Viro a cabeça de uma vez e então fecho os olhos
com força, engolindo em seco. Não posso passar
mal agora. Não. Mas isso explica o cheiro metálico
que estou sentindo. Devia ter imaginado antes...
Mas por quê eu ia imaginar algo assim? Imaginar
Alexandre... Engulo em seco, me forçando a virar a
cabeça para o outro lado. Ele está terminando o que
começou com as pessoas que estavam gritando. Os
que mataram Paula, espero. Engulo em seco de
novo. Não queria ter visto isso.
As mãos que estão me segurando me apertam.
— Ele está calmo agora. Tinha que ver quando
ele os alcançou, mais cedo.
Não me surpreendo nem um pouco quando
escuto a voz do pai de Rick. Seu Antônio tinha que
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estar por trás disso tudo mesmo. Não faz sentido de


outra forma. O que me surpreende é seu tom de voz
casual, como se não estivéssemos perto demais de
um lobisomem... Não quero nem pensar no que
Alexandre está fazendo. E, pensando nisso, como é
que Alexandre não está dando nenhum sinal de que
o ouviu, nem de que sabe que estamos aqui? Ele
não deveria estar se concentrando na presa já morta
– é mais fácil pensar assim – com nós dois tão
perto.
— Alexandre! — Chamo.
Nenhum sinal de que ele me ouviu. Gelo, sem
nem tentar me soltar. Se Alexandre não me ouviu,
tenho certeza de que tentar escapar não vai ser tão
simples quanto parece. O que eu posso fazer?
Será que... Me lembro de Rodrigo falando que
não tinha certeza de que Alexandre ia me ouvir.
Será que ele perdeu o controle de vez? Mas não.
Não, isso não pode ter acontecido, não assim. E não
faz sentido Alexandre nos ignorar assim.
— Ele não pode nos ouvir. Nenhum deles pode.
Meus amigos cuidaram disso — seu Antônio fala,
naquele mesmo tom de voz calmo e casual.
Poderíamos estar na sala da sua casa, e ele usaria o
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mesmo tom. Isso é o que faz um arrepio me


atravessar.
Mas isso também explica porque ele só está me
segurando, sem ter se preocupado em me prender
de verdade ou tampar minha boca. E se ele tem
“amigos” que conseguiram fazer Alexandre não
nos notar...
— Você está trabalhando para alguém do Outro
Mundo.
Agora as coisas fazem sentido. Quer dizer, um
pouco de sentido, pelo menos.
Sinto um movimento atrás de mim, mas não
consigo nem tentar adivinhar o que seu Antônio
está fazendo. Tem um perfume de flores no ar, mas
não parece estar vindo dele. O quê...?
— Para alguém, não. Com alguém, porque sem
mim eles não conseguiriam fazer isso. Não teriam
pensado em bloquear os poderes da bruxa, porque
isso os afetaria também. — Ele balança meus
braços, me empurrando um pouco para frente,
quase como se estivesse indicando os... corpos.
Não tenho certeza de que estou entendendo o
que ele quer dizer, mas... Então as pessoas que
Alexandre pegou não são humanos? Estava
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pensando que fossem, para estarem na construção


com seu Antônio. E o que ele quis dizer com
bloquear os poderes e isso afetar os outros...
Paula. Paula está morta por causa dele. Não
preciso entender tudo o que ele quer dizer para ter
certeza disso: se não fosse seu Antônio, nada disso
estaria acontecendo.
Um gavião voa baixo sobre nós.
— Aline!
Não tenho certeza que é ela, mas o gavião
também parece não ter me ouvido ou nos visto. Ele
passa sobre Alexandre, que levanta um braço
monstruoso e tenta pegá-lo. Seu Antônio se inclina
para trás e me puxa com ele.
Por favor, Alexandre, por favor. Se ele
consegue retomar o controle quando eu estou por
perto, poder ou não me ver não deve fazer
diferença. Mas então ele já deveria parecer
consciente, como da outra vez. Não devia estar
concentrado em quebrar... Engulo em seco e desvio
os olhos.
— Eu sabia que você ia vir atrás do seu monstro
de estimação — seu Antônio fala. — Avisei
Henrique que não podia confiar em você, mas ele
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insistiu em dizer que queria ter certeza, que você


não era uma dessas que trabalharia com eles. E veja
só o que aconteceu. Você está aqui, quando deveria
estar naquela clareira bebendo com meu filho. —
Ele aperta meus braços ainda mais. — Acho que
sua escolha foi bem clara.
— Por que isso tudo? — Pergunto, tentando
ignorar um grunhido satisfeito vindo de Alexandre,
um instante antes de eu ouvir o barulho de algo se
rasgando. Não devia ser assim. Não mesmo. Ele
devia estar consciente, não brincando com os
homens que matou. Como... Quem conseguiu fazer
isso, para ele nem notar nossa presença aqui?
— Não consegue adivinhar? — Seu Antônio
sacode meus braços. Travo os dentes para não falar
nada. — Eles querem se mostrar para a humanidade
nos termos deles. Isso quer dizer nos encher de
mentiras. Tentar nos fazer acreditar que são
inofensivos, quando na verdade são monstros.
Então nós vamos garantir que todos vejam os
monstros. Isso aqui é só o começo. E quando tudo
tiver terminado... Não vamos ter outra opção além
de exterminá-los.
Minha teoria estava quase certa, então – sobre

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alguém querer que o Outro Mundo se revelasse


com um massacre. E não quero pensar nas
consequências disso.
Não sei como não estou com medo. Na verdade,
uma parte de mim está gritando mentalmente, mas
não consigo fazer isso. Não consigo sentir nada
além dessa calma gelada. Se seu Antônio conseguir
o que quer... Não vou deixar isso acontecer. Não
vou.
Mexo os braços, só o suficiente para parecer que
estou tentando reagir e para ter certeza de que não
estou machucada. Perfeito. Só falta uma coisa.
— Para quê eu?
Seu Antônio suspira, ainda parecendo tão calmo
que é como se a cena quase na nossa frente não
fosse nada demais. Só consigo ver um monstro
aqui, e com certeza não é Alexandre.
— Para ele. Se precisarmos levá-lo para algum
lugar, você é nossa forma de fazê-lo obedecer. Ou
só o deixar calmo o bastante para conseguirmos
sedá-lo. Tanto faz. E se a raiva dele pela bruxa não
for o suficiente, sempre podemos te matar também,
não é? Ele gosta de você, tenho certeza. Não tem
como não gostar, levando em consideração o que é.
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Ele está louco. Completamente louco.


E eu acho que ouvi ameaças de morte demais,
porque desta vez isso nem me preocupa. Eles –
quem quer que eles sejam – não vão me matar. Vou
conseguir escapar. Só preciso me soltar e correr na
direção de Alexandre, e isso não vai ser difícil.
Mexo os braços de novo. Seu Antônio não está nem
preocupado com a possibilidade de eu tentar fugir.
Mas isso também não é surpresa. Ele é o pai de
Rick, o mesmo Rick que me subestimou tanto que a
essa hora deve estar no hospital. Posso fazer isso.
E posso aproveitar que ele parece não ter
problema nenhum em continuar falando.
— E você vai deixar ele matar todo mundo só
para... — Balanço a cabeça, sem conseguir
terminar.
— Nem todo mundo. Quem merece sobreviver
já está fora da cidade a essa hora. Teria sido muito
mais fácil se eles tivessem feito o trabalho deles
direito, sabe, e ido atrás da sua família. — Sinto sua
respiração na minha bochecha. Ele deve ter
inclinado o rosto para frente. — Aí só
precisaríamos mostrar as provas para as pessoas
certas, atacar aquela casa em peso, e pronto. As
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coisas se resolveriam sozinhas. Mas não, vocês


precisavam complicar tudo.
O gavião voa baixo de novo, gritando.
Alexandre levanta a cabeça e ruge. Me encolho por
puro instinto. Estava esperando um uivo ou algo do
tipo, mas esse som...
Por favor, não tenha perdido o controle de vez,
por favor.
O cheiro de flores fica ainda mais forte e
balanço a cabeça. Isso não está certo. Pode até ser o
perfume de seu Antônio, mas não, esse cheiro é
estranho demais para ser um perfume. Olho ao
redor, tentando entender de onde isso está vindo.
Mal consigo sentir o cheiro do sangue agora, só as
flores...
E consigo ver Ryan, parado a alguns metros de
distância, olhando para mim.
Pisco e balanço a cabeça, mexendo os braços
para disfarçar e não parecer que estou encarando
alguma coisa. Mas não tem mais ninguém onde ele
estava. Na verdade, tudo está tão escuro que eu
nunca conseguiria ver alguém nessa distância.
Mas Ryan está parado lá, olhando para mim.
Consigo ver isso claramente. Ele assente e então
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desaparece de novo.
Respiro fundo. Por favor, que isso não tenha
sido uma alucinação. Porque se Ryan está me
vendo, isso quer dizer que provavelmente consegue
me ouvir. E se consegue me ouvir... Posso
aproveitar e conseguir mais respostas, terminar isso
de vez, antes de tentar escapar.
E eu vou conseguir escapar, porque eles sabem
onde eu estou.
— E você acha que isso vai fazer diferença? —
Pergunto. — Ele não vai ser o primeiro lobisomem
a fazer um massacre. O Outro Mundo escondeu
isso todas as outras vezes, vão esconder de novo.
— Não desta vez. Isso aqui foi filmado. Todos
os passos dele estão sendo filmados. E tenho meus
contatos para garantir que nada se perca como
costuma acontecer. Não são todos que querem que
a humanidade saiba sobre os monstros, sabia?
Engulo em seco. Sabia. Não me esqueci de
Oswaldo se transformando e avançando para mim,
naquele jantar. Mas... O Conselho envolvido?
Oswaldo ou alguém como ele, trabalhando com seu
Antônio? Não, não consigo ver isso acontecendo.
Mas consigo ver alguém como Oswaldo fazendo
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isso para impedir que o Outro Mundo se mostre


para a humanidade, porque vão precisar de anos até
que todos se esqueçam do massacre de Monte das
Pedras. É o que pensei mais cedo. Isso eu consigo
imaginar. Eles manipulando seu Antônio para fazer
o trabalho pesado para eles, para arrumar pessoas
que não iam sobreviver...
Respiro fundo e me concentro em ignorar os
sons molhados que vêm da direção de Alexandre.
Não devia ter pensado nisso. Agora não consigo
parar de imaginar o que seu Antônio e o Conselho
prometeram para essas pessoas...
O cheiro de flores fica mais forte de novo. São
crisântemos? Mas isso não faz sentido... E agora o
cheiro está ficando mais fraco, mas parece ser de
lírios...
Olho ao redor de novo, esperando ver Ryan.
Isso é coisa dele, tenho certeza.
Alexandre parou o que estava fazendo. Paro,
olhando para ele, esperando para ver se ele está me
vendo. Mas não. Ele inclina a cabeça para um lado,
depois para o outro, e se levanta lentamente. Ainda
bem que está escuro, porque assim só estou vendo
alguma coisa molhada pingando das suas garras.
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Não preciso ver cores. Não mesmo.


Seu Antônio aperta meus braços quando ele dá
um passo para a frente. Por favor, esteja
consciente, esteja nos vendo. Mas Alexandre só
inclina a cabeça para o lado de novo antes de se
virar e começar a correr na outra direção.
Travo os dentes com força quando seu Antônio
ri. Ele está louco, não existe outra explicação.
— Nem vou ter trabalho. — Ele sacode meus
braços. — Seu monstrinho de estimação está indo
direto para a cidade, sem eu nem precisar dar
nenhum incentivo para isso.
Não respondo. Não vou dar esse gosto para ele.
Só encaro a direção em que Alexandre correu.
Ele está indo na direção da estrada. Não
necessariamente na direção da cidade.
O cheiro de lírios fica forte de novo. Não olho
para os lados dessa vez. É tudo ou nada.
Jogo a cabeça para trás com força, ao mesmo
tempo em que giro os braços para fora e para cima.
Sei que acertei alguma coisa – seu nariz? Espero
que sim, porque ele me solta com um grito abafado.
Não espero para ver o que aconteceu, só saio
correndo na mesma direção que Alexandre foi. Não
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tenho nenhuma direção melhor para ir e consigo


ver um caminho limpo por aqui... Eu acho.
Um gavião grita, não muito longe de mim.
— Aline!
— Você não vai a lugar nenhum, sua vagabunda
amante de monstros!
A voz de seu Antônio está mais perto do que eu
esperava. Droga. Continuo correndo, sem nem
olhar para trás. Preciso alcançar Alexandre,
alguém. Juro que vi Ryan, não pode ter sido uma
ilusão.
O gavião voa na minha direção, baixo demais.
Tento me abaixar mas tropeço em alguma coisa e
caio rolando no chão. Não, não, não, não vou ser
esse clichê. Me viro depressa, em tempo de ver um
resto de brilho amarelado e Aline de pé na minha
frente, segurando o braço.
— Filho da puta, isso dói!
O quê...?
Seu Antônio está segurando um revólver. Puta
merda. Ele atirou em mim. Se Aline não tivesse
voado baixo, se eu não tivesse tropeçado... E ela
tomou o tiro que era para mim.

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— Ele é meu. — Ryan aparece na frente de


Aline e o cheiro de crisântemos e lírios fica mais
forte de novo.
Tenho a impressão de que consigo ver linhas
azuladas ao redor dele, mas não tenho certeza. É
quase como os raios verdes do dia que descobri que
Paula era uma bruxa, mas... Diferente, de alguma
forma. Só sei que esse não é o mesmo Ryan que se
sentou comigo na cozinha do casarão. Preciso fazer
um esforço para não começar a me afastar, porque
não posso ficar perto dele.
Seu Antônio atira de novo. Ryan levanta a mão,
sem se virar para ele, e uma nuvem cinza-azulada
aparece, engolindo a bala.
— Laura, vá atrás de Alexandre — ele fala,
ainda olhando para nós, aparentemente sem se
preocupar com o homem atrás dele. — Aline...
— Já sei!
O brilho amarelo aparece ao redor dela de novo
e no instante seguinte um gavião passa por cima de
mim, ainda voando baixo. Me levanto depressa e
vejo Ryan sorrir antes de se virar para seu Antônio.
Um arrepio me atravessa e as linhas azuladas
parecem tomar uma forma...
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Aline grita de novo e eu corro na direção que ela


está indo.

···
NÃO SEI COMO AINDA ESTOU VENDO O CAMINHO. TENHO
quase certeza de que foi alguma coisa que Ryan
fez, porque a noite está escura demais para isso ser
normal. E... Depois daquelas luzes, qualquer coisa
estranha eu vou achar que é culpa dele. Não sei
quanto tempo faz que estou correndo, só sei que
estou exausta e minhas pernas estão doendo. Pelo
menos, eu estava certa: Alexandre correu na
direção da estrada, não necessariamente na direção
da cidade.
Escuto um grito humano e logo depois um
rugido, antes do gavião que é Aline gritar, pouco à
minha frente. Não vou pensar no que o grito e o
rugido significam. Pelo menos estamos na direção
certa. E não estamos longe. Consigo correr mais
um pouco. Preciso conseguir.
Porque aquele grito e o rugido... Se Alexandre
está atacando mais alguém, se ele não estiver
consciente... É muito fácil o plano deles dar certo.
E é muito mais fácil tudo dar errado, de tantas
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formas diferentes.
Grito quando alguém me segura, com um braço
na minha frente. Acerto uma cotovelada em quem
quer que seja antes de continuar correndo. Não vou
deixar mais ninguém me segurar hoje.
— Porra, Laura!
Ainda dou mais alguns passos antes de
reconhecer a voz de Caio, e ele está me segurando
de novo. Balanço a cabeça e abro a boca para pedir
desculpas, mas não consigo falar nada. Estou
completamente sem fôlego.
O gavião se aproxima de nós. Vejo o brilho
amarelo um instante antes de Aline aparecer no
lugar dele.
— Não vou chegar mais perto — ela avisa. —
Vânia está lá.
Esse nome não me é estranho... Mas não vou
tentar descobrir quem é agora. Estou mais
preocupada com o que consigo ouvir mais à frente.
Não são gritos agora, nem aquele ruído molhado de
mais cedo, mas mesmo assim...
— Mais alguém do Conselho? — Caio
pergunta.

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Aline balança a cabeça.


— Não consegui ver. Não vou correr o risco de
chegar mais perto e Vânia me notar. Rodrigo
consegue ignorar as ordens dela, eu não.
A alfa das aves. A que estava no jantar no
casarão, também. Não esperava que fosse ela.
— Pelo menos dois vampiros — ela continua.
— O quê...? — Começo
Caio aponta para um lugar um pouco à frente.
Tem algumas árvores juntas e tenho certeza que é
logo antes da estrada...
Carros. Três carros parados entre as árvores,
fora da estrada. Não sei como estou conseguindo
ver, mas isso não importa. Seu Antônio falou que
teve ajuda do Outro Mundo. E as pessoas do Outro
Mundo estavam assistindo de longe. É a única coisa
que consigo pensar.
— O grito...?
Sei que não preciso explicar o que quero dizer.
— Gustavo — Aline responde
— Eles cercaram Alexandre — Caio explica,
me soltando.
Olho para os carros de novo. Três carros,
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quantas pessoas? Sei que Alexandre tem a fama de


perigoso e quase imbatível, mas e se forem demais?
Pelo que seu Antônio falou, parecia que estava
trabalhando com pessoas no alto da hierarquia do
Outro Mundo. Algo como membros do Conselho.
— Nós íamos notar se ele estivesse perdendo a
luta — Caio fala. — Mas não podemos chegar mais
perto. É arriscado demais.
— Você entendeu o que aconteceu, Laura? Ele
se transformou porque quis, fora da lua cheia.
Ninguém faz a menor ideia de se ele ainda está são.
Especialmente depois do que fizeram com Paula —
a voz de Aline quebra nas últimas palavras.
Assinto, tentando não dar um passo atrás
quando vejo aquele brilho amarelo pulsar ao redor
de Aline de uma forma que nunca vi antes. Paula
era a amiga mais antiga de Alexandre, e aposto que
foram atrás dela especialmente por isso. Mas ela
tinha uma história mais velha ainda com Aline e
Rodrigo.
Eles não podiam ter achado um alvo pior. Se
queriam deixar todo o casarão furioso,
conseguiram.
— Vamos deixar Alexandre cuidar deles.
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Depois identificamos os pedaços, se for o caso —


Caio fala. — E estamos cercando todos eles,
porque se Alexandre tiver perdido o controle de
vez, pelo menos vamos conseguir segurar ele aqui
até Ryan chegar. Ele está com o humano?
Balanço a cabeça. O quê? Estão cercando
Alexandre...
Aline assente.
— Está. Pelo que ele sinalizou para mim, Laura
já tirou umas respostas dele. Mas Ryan vai terminar
o serviço.
Balanço a cabeça de novo antes de entender que
estão falando de seu Antônio. Se eles ainda têm
cabeça fria o bastante para pensar em conseguir
respostas no meio disso tudo... Ainda bem que eles
são meus amigos. Não quero nunca dar motivos
para quererem se vingar de mim. Não se mesmo
depois disso tudo eles ainda estão pensando antes
de agir.
Me encolho quando Alexandre ruge de novo.
Dessa vez o som muda, vira algo que parece um
uivo e que parece não ter fim. Escuto mais gritos e
fecho os olhos com força quando alguma coisa voa
por entre as árvores e cai alguns metros à frente de
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nós. Graças a Deus não consigo ver direito o que,


mas a impressão que tive... Engulo em seco.
Parecia ser um braço.
— Eu posso parar isso — murmuro. — Ele vai
me ouvir.
Caio balança a cabeça e dá um passo na minha
direção.
— Ninguém sabe se ele vai te ouvir agora.
Sabemos pouco demais sobre o que você é para...
— Ele balança a cabeça de novo. — E nenhum de
nós vai conseguir chegar perto dele com você. Ele
vai nos atacar. Já tentamos.
Mas ele não vai me atacar.
Quero falar isso, mas não tenho coragem. Isso
aqui não é um conto de fadas, uma dessas histórias
onde “o amor supera tudo”. E mesmo eu fosse, não
seria o caso. Se Caio, que é um deles, não tem
certeza de que isso vai funcionar dessa vez...
— E é justo. É a punição que qualquer um dos
Conselhos daria para eles — Aline fala. — Se parar
Alexandre agora e eles viverem, vão ter que ser
caçados depois. É melhor assim.
Respiro fundo e solto o ar pela boca,
lentamente. Está frio aqui. Como é que não notei
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isso antes? Muito frio. Cruzo os braços, mas já sei


que isso não vai adiantar. E não vou sair daqui.
— Então a gente fica ouvindo enquanto... — Me
encolho quando escuto um barulho de algo sendo
quebrado e então caindo no chão. — Enquanto isso.
Os dois assentem.
— Quando ele acabar você pode tentar acalmar
Alexandre e fazer ele se transformar de novo —
Caio fala.
Engulo em seco. Tenho quase certeza de que
tem um “se ele ainda conseguir fazer isso” no fim
dessa frase.
Por favor, não.
— Eu espero que funcione — Aline murmura e
se vira para mim. — Espero de verdade. Senão...
Ela olha para trás rapidamente e então volta a
encarar o espaço de onde estão vindo os ruídos.
Não quero pensar no que está acontecendo. Não
quero pensar no que ela e Caio provavelmente
estão vendo, nem quero que alguém me faça ver
isso. Não preciso, minha imaginação já é o
suficiente.
E não é difícil entender porque Aline olhou para

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trás. É a direção onde Ryan está. Sem Paula aqui,


se Alexandre não me ouvir, só vai restar uma
opção. E não importa com quanta raiva dele eu
esteja, não quero nem pensar nisso.
E eu estou com frio, muito frio. Perto da
fogueira, quando a gente estava bebendo – e parece
que isso foi dias atrás – não estava tão frio assim.
Ou melhor, eu não estava sentindo tanto. Nem
quando entrei na área do condomínio. Mas agora...
Caio olha para mim e levanta uma sobrancelha.
Balanço a cabeça. Não importa o frio, eu não vou
sair daqui até isso acabar. E vou tentar não pensar
na origem dos grunhidos que estou ouvindo, ou dos
gritos abafados. Isso é outra coisa diferença entre o
Outro Mundo e a humanidade: para eles, isso é
normal. Não sei quantas pessoas estão ali, mas sei
que não estão sendo mortes rápidas. E, para eles,
isso não é nada demais. Essa é uma diferença que
eu não sei se conseguiria aceitar.
Não sei quanto tempo ficamos parados. Sei que
consigo ver minha respiração, de tão frio que está, e
que vou ter pesadelos com os ruídos abafados que
estou ouvindo aqui. Quase pulo quando Caio
coloca uma mão nas minhas costas. Não parece que

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nada mudou, mas...


— Com cuidado. Devagar — ele murmura, me
empurrando de leve. — E se não funcionar, corra.
Vai funcionar. Tem que funcionar.
Começo a andar na direção que ele aponta,
olhando para o chão. A noite está escura de novo –
voltou ao normal – e não consigo ver quase nada,
especialmente à medida que chego mais perto das
árvores. Mas não tem como errar a direção. Até eu
consigo saber de onde esse som molhado está
vindo... De novo.
Engulo em seco e paro entre duas árvores, com
a mão no tronco de uma delas. A estrada está bem
na minha frente e só posso agradecer pela noite
escura, porque...
Pedaços. Na verdade, parece que alguém
derrubou uma pilha de tijolos aqui, pelas silhuetas
mais escuras que vejo. Mas sei que são... pedaços.
Respiro fundo e dou um passo à frente, indo
para a estrada. O som do meu tênis no molhado me
faz querer dar a volta e correr para o mais longe
possível daqui. Mas não posso. Sou uma idiota por
estar aqui, mas... Não posso fugir.
Uma silhueta maior se mexe um pouco à frente.
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Respiro fundo quando vejo a cabeça monstruosa de


Alexandre se virar na minha direção. Ele não vai
me atacar. Preciso acreditar nisso.
E eu não quero pensar no que é que está na sua
boca.
— Alexandre... — começo.
Ele bufa e volta a se concentrar no que estava
fazendo. Engulo em seco quando escuto o som de
ossos se quebrando.
Ele não vai me atacar.
— Alexandre, acabou. Já chega.
Ele se vira para mim de novo. Fico onde estou.
Nem se quisesse ia ter coragem de dar mais um
passo no meio dessa... Bagunça. Não vou pensar no
que está no chão. Não vou.
— Você já pegou todos. Acabou, Alexandre.
Ele se levanta e vem na minha direção. Da outra
vez, quando ele matou os lobos, não achei que
fosse tão alto... Tão grande assim. Não sei se é
porque eu estava em choque ou... Não sei.
— Alexandre, chega. Se transforme de novo.
Aca...
Minhas costas batem em alguma coisa meio
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mole e molhada e sinto um peso estranho em cima


de mim. Balanço a cabeça, tentando clarear a vista.
Alexandre. Eu nem vi ele se mover e...
Caio estava errado. Eu nunca ia ter tempo de
correr.
Fico parada como caí, sentindo minhas costas
ficarem molhadas. Pelo menos o que está no chão
ainda está quente... Não vou pensar nisso.
Alexandre continua na mesma posição, me
encarando, com uma mão cheia de garras no meu
peito, me segurando no lugar.
— Por favor — murmuro. — Acabou.
Ele me encara por mais um instante antes de
abaixar a cabeça. Fecho os olhos e escuto quando
ele respira fundo perto demais de mim. Me
farejando. Ele vai me reconhecer. Ele precisa me
reconhecer.
Abro os olhos quando ele bufa, em tempo de ver
Alexandre levantar a cabeça. Não. Isso não é
Alexandre. Não consigo ver nada que seja
realmente ele nos olhos do lobisomem.
Não quero acreditar que ele perdeu o controle de
vez.
O lobisomem bufa de novo.
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— Alexandre, por favor...


Ele abre a boca. Engulo em seco. Não. Por
favor, não. Não sei se da outra vez as presas dele
pareciam tão grandes assim, ou se é só porque
agora ele está praticamente na minha cara e...
Eu não quero morrer aqui. Não assim. Não é
justo! Depois de tudo que aconteceu, Alexandre
terminar assim e eu... Não.
Ele se afasta. Quero pensar que isso é bom,
mas... Continuo sem ver nenhum sinal de
Alexandre ali. Eu estava errada. Todos nós
estávamos errados. Alexandre se foi.
A mão cheia de garras que está no meu peito me
solta. Continuo no mesmo lugar, sentindo meus
olhos arderem. Não vou fugir. É isso que o
lobisomem quer: uma presa que corre, para ele se
divertir. Fazer isso não vai adiantar nada. Nem
tentar resistir de qualquer forma.
Acabou.
A mão cheia de garras se fecha ao redor do meu
pescoço. Sinto as lágrimas escorrendo e nem tento
parar de chorar.
— Por favor, volte...

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Sinto uma garra fazendo uma linha pelo meu


pescoço e uma pontada de dor. Alexandre se abaixa
sobre mim e sinto o cheiro metálico de sangue. Por
favor, não.
Fecho os olhos. Não quero ver. Não quero.
O peso de Alexandre cai sobre mim de uma vez.
Aperto os olhos, sem saber o que esperar, mas...
Nada. Levanto uma mão, sem coragem de abrir os
olhos, e meus dedos encontram pele quente. Pele,
não pelos.
Abro os olhos. Alexandre está caído em cima de
mim, mas não dá sinal de vida nem quando sacudo
seu ombro. Estou sentido sua respiração, pelo
menos, mas...
É ele. É Alexandre em cima de mim, não o
lobisomem.
Olho para o lado em tempo de ver Caio e Ryan
se aproximando, junto com uma mulher que nunca
vi antes. Ela está sorrindo e tenho certeza que vi
presas. E parece que os olhos dela estão brilhando...
— Agora descansa, Laura.

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C A P Í T U L O T R I N TA E OITO

L AURA
ME VIRO NA CAMA, TENTANDO FUGIR DA LUZ. DROGA,
eu jurava que tinha fechado a cortina. Não queria
acordar cedo... Ainda mais levando em conta que
tive um pesadelo daqueles que faz parecer que eu
não dormi nada. Estou toda dolorida e mais cansada
do que quando vim dormir. Não quero acordar
agora. Puxo um travesseiro e jogo em cima da
minha cara.
Uma fisgada de dor no meu pescoço me faz
parar de me mexer. O quê...? Passo a mão no
pescoço. Tem uma linha um pouco mais alta aqui,
quase como se fosse um arranhão começando a
cicatrizar...
Jogo o travesseiro para o lado e me sento de
uma vez. Não foi um pesadelo. Rick, seu Antônio,
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Alexandre... Paula. Engulo em seco. Foi tudo real.


Respiro fundo e olho ao redor. O que eu estou
fazendo no casarão? A última coisa que me lembro
é... Alexandre em cima de mim, e aquela mulher
estranha falando para eu descansar. Puta merda.
Tenho certeza que vi presas quando ela se
aproximou... Vampira.
E eu não faço a menor ideia do que aconteceu
ou de como vim parar aqui. Estou usando um
pijama que não é meu, no quarto que era meu. Pelo
menos sei porque estou toda dolorida. Aquele
tempo correndo, mais os tombos...
E Alexandre.
Respiro fundo e me levanto. Ficar parada aqui
não vai me fazer entender o que aconteceu. E se eu
estou no casarão, limpa – tenho certeza de que caí
no sangue – quer dizer que estou segura. É a única
coisa que faz sentido. Me trouxeram para cá depois
que a mulher me fez apagar.
Minhas roupas estão em cima da mesa, dobradas
e obviamente limpas. Paro com a mão em cima do
meu casaco. Me lembro muito bem de ter caído no
chão, de sentir minhas costas ficando molhadas –
sangue – mas não tem nenhuma mancha aqui. Se
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não fosse pelo corte no meu pescoço e meus


músculos doloridos... e por estar no casarão, eu
realmente ia pensar que tudo foi um pesadelo.
Tem uma blusa verde-escuro e um short jeans
do lado das minhas roupas. Não são meus, mas se
estão aqui... Bom, não vou descer vestindo pijama.
Pego a blusa e minha calça jeans. Não sei se é coisa
do Outro Mundo ou só do pessoal do casarão, mas
se eles não sentem frio, eu sinto.
Alguns minutos depois, estou descendo para a
cozinha. Não está tão cedo quanto pensei – já deve
ser quase meio dia, na verdade – mas sempre tem
alguém lá. Não consigo deixar de sorrir enquanto
escuto os ruídos de sempre do casarão, mesmo que
não veja ninguém no caminho. Senti falta disso
aqui. Muita falta.
Caio, Rodrigo e Lavínia se viram quando entro
na cozinha. Os três estão sentados com os cotovelos
na mesa e tenho a impressão de que Rodrigo estava
de cabeça baixa antes de eu entrar. Nunca vi
nenhum deles assim, mas também...
Paula. Engulo em seco. Se não foi um pesadelo,
então Paula...
Não quero acreditar nisso.
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Me sento ao lado de Caio, que puxa a garrafa de


café ao mesmo tempo em que Rodrigo empurra um
copo na minha direção. Ninguém fala nada
enquanto coloco café no copo e tomo um gole, sem
nem sentir o gosto. Eu queria que tivesse sido um
pesadelo. Queria mesmo.
— Minha avó! — Falo de uma vez. — Eu não...
Não avisei que ia passar a noite fora. Pedi para
Bruna falar com ela, mas mesmo assim... O plano
era ter voltado de madrugada. A essa altura, ela já
deve estar morrendo de preocupação.
— Fui lá assim que amanheceu — Rodrigo
conta, balançando a cabeça. — Ela ia ficar sabendo
que aconteceu alguma coisa quando vocês estavam
fora, porque chegaram a entrar com Rick no
hospital. Falei que tinha te buscado e que você
estava na minha casa.
E minha avó sendo minha avó provavelmente
achou isso ótimo, ainda mais depois de como ela
foi com a cara de Rodrigo. Sorrio, mas não tenho
tempo nem de me divertir com essa situação antes
de perceber o que mais ele falou.
Rick deu entrada no hospital. Tive esperanças
de que alguém do Outro Mundo fosse encontrar
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com eles no meio do caminho e... Sei lá, fazer


alguma coisa. Mas se ele chegou no hospital...
Não importa. Ele não importa, nem as ameaças.
Eu vou sair daqui. Vou fazer minha vida fora de
Monte das Pedras. Não foi isso que decidi? Vai ser
mais fácil. Não vou precisar falar com ninguém,
nem precisar me justificar. Muito menos ver os
olhares acusadores...
Balanço a cabeça. O que estou pensando? Isso
nem faz sentido nenhum.
Respiro fundo e levanto a cabeça.
— O que aconteceu?
Rodrigo se levanta de uma vez e vai para a porta
dos fundos. Vejo o brilho amarelo antes que ele
desapareça de vista, deixando a porta aberta. Não é
difícil entender porque ele saiu assim. Cansei de
ver ele com Paula, tanto quando estávamos na
cozinha quando nas sessões de filmes de noite. E
eles já se conheciam desde antes de vir para o
casarão.
E eu não vou chorar.
— Eles derrubaram as proteções ao redor da
propriedade, de novo — Lavínia começa, em voz
baixa. — Invocaram demônios para nos atacar.
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Quando vimos o que estava acontecendo, já era


tarde demais. Paula estava lutando sozinha contra
um dos demônios. Eles a separaram de nós e...
— Prata e cobre — Caio murmura. — Eles
usaram prata e cobre para absorver e bloquear seus
poderes. Quando ela gritou, já estava longe demais
para qualquer um de nós chegar a tempo.
Engulo em seco. Quase tinha me esquecido do
dia em que Lavínia comentou sobre isso comigo.
Prata e cobre, as fraquezas dos povos do Outro
Mundo.
E foi isso que seu Antônio quis dizer quando
falou que alguém do Outro Mundo não pensaria em
bloquear os poderes de Paula. Não é um plano que
alguém do Outro Mundo faria.
— Eles pararam de atacar assim que Paula foi
arrastada para o terreno do condomínio — Caio
continua. — Os metamorfos e fey que a mataram
fugiram, os demônios desapareceram...
— E Alexandre foi atrás deles — completo.
Os dois assentem.
— Eles queriam causar um massacre para parar
os planos de contar que vocês existem... — Isso é
uma coisa que não entendi, e é muito melhor focar
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nos porquês, em analisar o que aconteceu, do que


deixar a ficha cair. — Mas por que aqui? Monte das
Pedras é uma cidadezinha do interior, e estamos no
Brasil! Algo que aconteça aqui não vai ter tanta
repercussão assim a ponto de atrapalhar os planos
no mundo todo.
— É aí que está. — Lavínia balança a cabeça.
— Digamos que essa é uma região influente para o
Outro Mundo. O Conselho que governa esse
território é um dos que tem mais autoridade no
mundo todo, por vários motivos. Se decidissem que
o Outro Mundo não pode se revelar, os outros iam
obedecer.
— Acho que não foi difícil reunir pessoas de
todas as raças... Não com todo mundo preocupado
com o que pode acontecer — Caio comenta e
suspira quando o encaro, sem entender. — Não
importa o que qualquer um do Conselho pense,
quando o Outro Mundo se revelar não vai ser tudo
flores.
Não. Não vai.
— E...
— Ryan tirou os detalhes dos planos do
humano, assim como as imagens das pessoas do
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Outro Mundo que estavam envolvidas — Lavínia


continua. — Ele está indo atrás deles agora, junto
com Nádia... Se você chegou a ver uma vampira, é
ela. Ryan a chamou porque ela tem uma forma de
viajar de um lugar para o outro tão rápido que é
quase um teletransporte. Ela nos ajudou a limpar a
bagunça toda na estrada e na construção.
Estreito os olhos, tentando me lembrar
exatamente do que aconteceu.
— Ela falou para eu descansar.
Caio assente.
— Uma compulsão. Eu não fazia ideia de como
você ia reagir depois daquilo tudo e... Era melhor
você dormir.
Abro a boca para discutir e mudo de ideia. Ele
está certo. Nem eu sei o que eu teria feito. Mas...
— Foi ela quem fez Alexandre se transformar?
Porque eu pedi. Eu tentei, e não adiantou. Tanto
que pensei que fosse morrer ali. Foi loucura ter
feito aquilo. Nunca deveriam ter me deixado chegar
perto de Alexandre.
Passo a mão no pescoço, sentindo o corte que
ele fez.

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Lavínia balança a cabeça.


— Foi você.
Olho para ela, sem saber o que responder.
— Nádia não é daqui — Caio começa. Estreito
os olhos. O que isso tem a ver? — E ela não é uma
das vampiras mais jovens... Ela sabe o que você é.
O que eu...
— Essa coisa de peeira? Todo mundo fala isso!
Que sabem o que eu sou. E que diferença isso faz?
Caio suspira.
— Pelo que Nádia falou, ela já conheceu outras
peeiras antes. E sabe como o que quer que faça
vocês serem diferentes funciona.
Tá, agora estou interessada, porque ninguém
soube me falar nada sobre isso. E não achei nada
útil no Google.
— Deixa eu ver se consigo me lembrar direito...
— Ela falou que os lobos são atraídos para
vocês, porque os acalmam — Lavínia interrompe.
— Mas isso nós já sabíamos. Além disso, se você
criar um vínculo com algum lobo, você pode se
comunicar com ele e controlá-lo.
Balanço a cabeça. Droga, nada de novo.
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— Nós já sabíamos disso tudo.


— Não. — Caio balança a cabeça. —
Comunicar e controlar, Laura. Alexandre já tinha te
obedecido antes. Nós contamos isso para ela. Mas,
de acordo com Nádia, isso era só o vínculo
começando a se formar. Não um vínculo completo.
Ele te obedeceu porque quis, da primeira vez.
Ele pode ter uma certa razão... Alexandre
chegou a falar alguma coisa no sentido de que o
lobisomem teria feito qualquer coisa para me
agradar. Então se foi uma escolha dele...
— O vínculo completo é criado através do
sangue — Lavínia fala. — Como foi que Nádia
falou? Sangue derramado sem medo, porque uma
peeira só vai ter controle sobre um lobo se não o
temer.
Coloco a mão no pescoço de novo, sentindo o
corte. Se o que essa Nádia falou estiver certo... Mas
não, eu estava com medo quando Alexandre me
cortou. Então não...
Eu estava com medo por ele. Com medo que ele
tivesse perdido o controle de vez e nunca fosse
voltar. Não com medo dele. E Alexandre se
transformou logo depois...
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Foi loucura. Não deviam ter deixado eu me


envolver. Não...
Balanço a cabeça com força. Acho que bati a
cabeça com mais força que pensei, quando caí,
porque estou pensando um monte de coisas que não
fazem sentido. Eu ia me envolver, eles deixando ou
não. E não tem ninguém me olhando de forma
acusadora.
Espera...
Respiro fundo. Não queria precisar fazer essa
pergunta.
— E Alexandre?
Caio e Lavínia trocam um olhar meio estranho.
— Ele se transformou em lobo assim que
recuperou a consciência — Caio conta.
— Ninguém sabe se foi uma escolha ou... —
Lavínia balança a cabeça. — Ele ignorou todos nós.
Não sabemos se ele consegue manter a forma
humana ou se foi tarde demais.
Ahhh, ele consegue. Comunicar e controlar, não
foi isso que falaram? Agora tudo faz sentido. E eu
estou com raiva, muita raiva.
— Ele está fugindo.
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Lavínia e Caio me encaram como se eu


estivesse ficando louca.
— Se ele estiver em forma de lobo, não vai
precisar falar com ninguém nem ter que se
justificar das acusações ou ver as pessoas se
afastando dele porque estão com medo.
Me levanto antes dos dois entenderem o que eu
quis dizer. Chega a ser irônico... Depois do tempo
que passei com medo de que alguém aqui
conseguisse ler meus pensamentos, eu consigo ler
os pensamentos de Alexandre, sem o menor
esforço. E sei exatamente onde ele está: no jardim,
entre as roseiras, deitado perto do banco onde
conversamos uma vez... Parece que uma vida atrás.
Limpo os olhos com as costas das mãos. Por que
é que estou chorando? Argh. Odeio isso. E consigo
ouvir Alexandre ainda se culpando por causa de um
arranhão. Se ele está tão mal assim por ter me
arranhado, por que foi que me mandou embora
daqui? Pensei que ele não se importava.
Paro no meio das roseiras. Ele me mandou
embora para me proteger. Consigo entender isso
claramente. Tudo aquilo... Ele só falou aquilo para
eu não conseguir reagir. E é por isso que ele ainda
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está furioso por terem deixado eu me envolver


nessa confusão toda... Porque ele me mandou
embora para me proteger, e no fim das contas foi
ele quem me colocou em risco.
Mas ele nunca pensou no que ia acontecer
depois que me mandou embora. No que isso ia ser
para mim.
Nem passou pela cabeça dele que me mandar
embora daquele jeito ia me machucar muito mais
que qualquer coisa que pudesse acontecer se eu
ficasse no casarão.
Respiro fundo e me viro de volta para o casarão,
fazendo um esforço consciente para ignorar os
pensamentos de Alexandre. Ele notou que eu estou
me aproximando, mas não quero saber o que está
pensando.
Eu mereço mais que isso. Engulo em seco e nem
tento enxugar as lágrimas dessa vez. Passei anos
me contentando com o que as outras pessoas
diziam que era o melhor para mim, e olha só onde
isso me levou. Eu pensei que Alexandre era
diferente... Não, ele é diferente. Mas não importa o
motivo, o que ele fez doeu demais. Ele me
manipulou da pior forma possível, enquanto eu
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estava com a consciência pesada por ter pensado


em manipulá-lo. Eu confiei nele. E, mesmo que ele
achasse que estava me protegendo...
Eu mereço mais que isso.
Volto para o casarão.
Lavínia e Caio estão parados na porta da
cozinha, mas agora Amara também está lá. Respiro
fundo e balanço a cabeça quando vejo Lavínia abrir
a boca. Não vou responder nada.
— Vocês vão fazer alguma coisa para Paula? —
Pergunto.
Não faço ideia de se o Outro Mundo faz a
mesma coisa que nós, ou se... Não sei.
Eles assentem.
— Vamos ter uma despedida ao pôr-do-sol —
Amara responde. — Você é mais que bem-vinda,
se quiser ficar.
Olho na direção das roseiras de novo e balanço a
cabeça. Mas não. Paula foi minha amiga... Foi mais
minha amiga que as pessoas que eu conheço desde
criança. Apesar de tudo, apesar da briga...
— Obrigada. Posso usar o telefone do casarão
para ligar para minha avó?
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Amara assente, mas Lavínia balança a cabeça.


— Estava me esquecendo... — Ela enfia a mão
no bolso do short que está usando e tira um celular.
— Aqui. Ryan falou que estava com o humano.
Meu celular. Não pensei que fosse ver ele de
novo depois que deixei cair no condomínio. E isso
me lembra de outra pergunta que estou evitando.
Mesmo que não importe mais... Preciso saber.
— Rick?
Caio sorri, mostrando os dentes afiados.
— Não precisa se preocupar com ele.
Mas ele deu entrada no hospital, não deu? Então
como...?
— Você não vai querer saber detalhes, Lau —
Lavínia avisa. — Vai por mim, não pergunte.
Respiro fundo. Certo, então.
— Tenho que saber de alguma história para
encobrir o que aconteceu?
— Vocês discutiram. Ele ficou com raiva e
resolveu ir embora mais cedo. No fim das contas,
descer a serra bêbado não foi uma boa ideia. —
Caio continua sorrindo. — Ele não resistiu aos
ferimentos e morreu no hospital.
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Não quero saber como fizeram isso... A


vampira. Nádia. Me lembro de alguém falando que
vampiros conseguem alterar as memórias das
pessoas.
E acho que deveria me sentir mal por isso. Rick
está morto por minha causa. Mas... Não consigo.
Não agora.
Assinto e entro na cozinha de novo. Preciso
comer alguma coisa. Não estou com fome, mas
também não acho que vou sentir fome tão cedo.
Então, comer alguma coisa e depois subo para o
meu quarto e ligo para minha avó.
— Laura? — Amara chama.
Me viro para ela.
— E Alexandre?
Balanço a cabeça. Não quero nem pensar nele.
— Ele está bem. Ou tão bem quanto... —
Quanto alguém pode estar depois disso tudo.
Engulo em seco. — Só está em forma de lobo
porque está evitando todo mundo. Uma hora dessas
ele cria vergonha na cara e volta.
Pego um pedaço de bolo de laranja e me sento.
Preciso sair daqui. Não vou ficar em Monte das

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Pedras. Esse lugar não é bom para mim. E o


casarão, que foi o único lugar onde realmente me
senti em casa... Não quero nem ficar perto de
Alexandre.
Olho para o meu celular enquanto dou uma
mordida no pedaço de bolo. Cinco mensagens de
Camila. A primeira é perguntando se está
acontecendo alguma coisa, porque ela está com
uma sensação ruim, e as outras são todas pedindo
para eu dar notícias. Suspiro. É, eu vou dar notícias.
Isso não estava nos meus planos. É loucura ir
para BH assim, sem me planejar direito,
praticamente sem dinheiro. Mas me recuso a
continuar aqui.
Laura: Posso passar um tempo no apartamento
de vocês? Coisa de uma semana, só o suficiente
pra eu achar qualquer buraco que dê pra alugar.
Nem me surpreendo quando a resposta vem na
mesma hora.
Camila: Se não incomodar de dormir no sofá, à
vontade. Vou ver se arrumo alguma coisa aqui
para você.
E ela não perguntou o que aconteceu. Levanto
as sobrancelhas. Isso é uma surpresa.
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Laura: Obrigada. Te conto tudo quando chegar


aí.
Camila: Vou cobrar.
Camila: Vem quando?
Quando? Boa pergunta. Mas... Eu tenho algum
motivo para ficar aqui? Não. Nenhum.
Laura: Amanhã de manhã.
Camila: Me liga quando estiver chegando que
te busco na rodoviária.
Fecho os olhos e respiro fundo. Está decidido.
Eu vou sair de Monte das Pedras. Queria esperar
até ter mais dinheiro guardado, mas... O que tenho
a perder? Então eu vou, e seja o que Deus quiser.
Vou dar um jeito de fazer isso dar certo.

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C A P Í T U L O T R I N TA E NOVE

A LEXANDRE
EU NUNCA PENSEI QUE SERIA FÁCIL. MAS TAMBÉM NÃO
achei que seria tão difícil assim. Suspiro enquanto
escuto os murmúrios indistintos de várias
conversas, no gramado depois do jardim. Depois
que Laura veio aqui e então voltou antes de chegar
até onde estou, ninguém mais se aproximou do
jardim. Não sei o que ela disse para eles – fiz
questão de não ouvir. O que quer que tenha sido,
ela estava certa em voltar para o casarão. Ela está
certa. Tem que seguir com sua vida, não continuar
presa a nós... a mim. Mesmo que o que eu mais
queira agora seja ter ela ao meu lado. E não vai
demorar muito, agora. O sol já está se pondo.
Assim que escurecer, vão fazer a despedida de
Paula e ela vai embora. De vez.

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Respiro fundo e solto o ar com força,


balançando as folhas de uma roseira perto demais
da beirada do canteiro. Acho que Laura não sabe,
mas esse era o lugar de Paula no jardim. Era para
onde ela vinha quando queria relaxar, tirar um
tempo para si mesma. Foi ela quem cuidou dos
jardins quando viemos para cá, no começo de tudo,
porque queria esse espaço. Me lembro muito bem
de quando chegamos no casarão: mato para todo
lado, galhos secos e espinhos para todo lado
quando tentei entrar no jardim. Mas ela só sorriu e
disse que ia cuidar das flores, até que elas
estivessem felizes o bastante para nos mostrar sua
beleza.
Paula. A minha amiga mais antiga. A pessoa
que sempre acreditou em mim, que desde o começo
insistia que eu era mais que o monstro que
esperavam de mim e que encontrou uma forma de
impedir que me caçassem, mesmo que isso a
colocasse em risco.
Se ela ainda estivesse entre nós, teria sido a
primeira a vir aqui e me arrastar pela nuca de volta
para o casarão e me obrigar a me transformar. Não
sei como ela faria isso, mas tenho certeza que daria
um jeito, porque é isso que Paula faz... Fazia. Ela
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diria que eu estava sendo dramático e que era


estupidez me culpar pelo que aconteceu. E não
importa saber o que ela diria, eu continuo me
culpando.
Se eu tivesse entendido o que estava
acontecendo antes. Se tivesse sido mais rápido. Se
tivesse pensando em dar ordens para ninguém ficar
sozinho.
Se não tivesse acreditado quando ela sugeriu
que poderíamos fazer um bando diferente de tudo o
que existia no Outro Mundo. Se não tivesse
escutado quando ela insistiu para eu não me
entregar nem fazer nenhuma loucura, porque
encontraria um jeito de me deixar seguro na lua
cheia. Se tivesse deixado os bruxos me banirem
para a dimensão dos demônios, como queriam.
Não importa o que Paula diria. Se eu não
estivesse aqui, ela estaria viva. Então o que
aconteceu é minha culpa.
E faz um certo sentido irônico que eu tenha
perdido Laura também. Senti seu toque, mesmo de
longe. Sei que alguma coisa mudou entre nós e
ouvi o suficiente da conversa que Caio, Lavínia e
Rodrigo tiveram com Nádia para deduzir o que
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acabou de acontecer: ela leu minha mente. Não


quero saber até onde ela foi, mas de alguma forma
sei que eu a machuquei ainda mais.
Laura entrou na minha vida por causa de Paula.
E agora vai sair dela quase junto com Paula.
Solto o ar com força de novo. É justo. Mesmo
que manter ela aqui fosse ser uma garantia de
segurança para mim, não vou fazer isso. Ela está
certa em se afastar. Nunca vou me esquecer das
palavras de Lílian: se ela ficar no casarão, vai
morrer. E mesmo que isso seja a minha morte, não
vou colocar a vida dela em risco de novo. Uma vez
já foi o bastante.
Uma vez? Me levanto e vou me deitar atrás do
banco, onde tem um pouco de sombra e estou ainda
mais escondido. Quantas vezes eu coloquei a vida
de Laura em risco, desde antes de trazê-la para cá?
Porque foi por minha culpa que usaram seu pai. Foi
uma das coisas que Ryan descobriu com o humano:
alguém notou meu interesse em Laura,
provavelmente aquele seu ex. A partir daí, criaram
aquele plano insano, com várias possibilidades,
calculado para se adaptar não importava o que eu
fizesse. Desde o início, ela estava marcada como

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um sacrifício.
Preciso fazer um esforço para não me
transformar quando me lembro do que o humano
falou. O lobisomem dentro de mim está mais forte,
de certa forma, depois do que aconteceu. Mais
difícil de controlar. Mas não sei se quero controlá-
lo quando me lembro que iam usar Laura como
uma refém, para garantir que eu fizesse o que
queriam. E então, a matariam. Isso também teria
funcionado. Se eles tivessem matado Laura, acho
que nem mesmo Ryan conseguiria me parar a
tempo. Eu teria feito o massacre que queriam.
Mas, no fim das contas, fui eu quem quase a
matou. Nem mesmo o perfume das rosas ao meu
redor consegue apagar o cheiro do sangue de Laura
da minha memória. Eu jurei que nunca a
machucaria, mas me lembro de pular sobre ela, das
minhas garras no seu pescoço e então o cheiro de
sangue. Precisei passar mais de duas horas no seu
quarto, quando Laura ainda estava desacordada, só
ouvindo sua respiração, antes de acreditar que tinha
feito só aquele primeiro corte. Pouco mais que um
arranhão. Ainda não tenho certeza do que fez o
lobisomem – eu – parar.

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E alguém está se aproximando do jardim.


Resisto à vontade de procurar algum lugar entre as
rosas, onde ninguém vai me ver, e realmente me
esconder. Não vou fazer isso. Mas vou continuar
como lobo. É melhor... Mais seguro assim.
Não demora muito para Lavínia aparecer no
caminho que vem até aqui, com uma expressão
fechada que só vi algumas vezes, quando ela estava
prestes a explodir sobre alguma coisa.
— Vou precisar chamar Laura para te forçar a se
transformar? — Ela pergunta, parando na frente do
banco.
Fecho os olhos por um instante. Não duvido que
ela faria isso. E também não duvido que Laura viria
e não pensaria duas vezes antes de me dar essa
ordem. Depois do que aconteceu, duvido que ela
tenha qualquer peso na consciência sobre me forçar
a fazer algo que não quero.
Ainda estou de olhos fechados quando me
transformo, sentindo o poder familiar correr por
todo o meu corpo e a sensação de dor, de estar
queimando de novo. Dizem que a transformação
dos metamorfos não dói, mas a minha sempre foi
assim.
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Quando abro os olhos, a expressão de Lavínia


suavizou.
— Ótimo. — Ela assente. — Eles precisam de
você.
Balanço a cabeça. Ninguém aqui precisa de
mim. A forma como resolveram toda a situação
sozinhos é mais que prova o suficiente disso. Eles
sabem trabalhar juntos, depois desses anos. Eu sou
só a ameaça, a força bruta para manter o Conselho
longe.
— Alguém dos bruxos veio? — Pergunto.
Lavínia assente, encarando o banco de cimento
ao meu lado. Ela sabe que este era o lugar favorito
de Paula.
— Lílian está chegando.
Uma bruxa sempre cuida da despedida de outra.
Mas, mesmo que Lílian fosse uma velha conhecida
minha e uma amiga de Paula, não imaginei que ela
fosse vir. Não Lílian Delaro, a bruxa mais poderosa
da região. Pensei que ela fosse mandar alguém, já
que Paula cortou todas as ligações com os bruxos
anos atrás.
E se Lílian está vindo, não posso me dar ao luxo
de continuar como lobo. Mesmo que eu confie nela,
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ela ainda é parte do Conselho.


Lavínia me encara dos pés à cabeça, sem falar
nada, e volta pelo mesmo caminho que veio. Olho
para baixo, conferindo minhas roupas, mas não tem
nada de errado. Não para os padrões do casarão,
pelo menos: camisa de jogo, calça jeans e tênis.
Suspiro e vou atrás de Lavínia. Não quero pensar
nos motivos para ela ter me encarado daquele jeito.
Preciso me forçar a continuar andando depois
que saio do jardim. Alguém demarcou três círculos
no gramado. O primeiro, só o suficiente para estar
ao redor de uma pessoa deitada. O segundo, três
metros mais largo que o primeiro, é o espaço
“limpo”, onde ninguém pode entrar. E o terceiro,
cinco metros mais largo que o segundo, é onde as
pessoas estão reunidas. Não é a primeira vez que
vejo a despedida de uma bruxa, mas é a primeira
vez que não estou em uma por obrigação.
Todos do casarão desceram, até mesmo os fey
mais antigos, os que eu raramente vejo. Paro ainda
perto do jardim, vendo como as pessoas se
espalharam, os pequenos grupos que sempre
existiram dentro do casarão. Paula sabia lidar com
todos eles, até mesmo com os antigos. Foi por

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causa dela que Ryan veio para cá, e ele trouxe


quase todos os outros fey.
E Rodrigo e Aline... Olho ao redor do círculo,
procurando por eles. Eu nunca soube como Paula e
eles se conheceram ou quanto se tornaram tão
próximos. Paula era uma das bruxas mais
poderosas dessa geração e tinha sido criada de
acordo, praticamente sem contato com qualquer um
que não fosse um bruxo. Mesmo assim, eu a
conheci num dia em que os três decidiram invadir a
fazenda de Ivan, por pura diversão. Na época, eles
já era inseparáveis.
Eles estão parados um pouco afastados dos
outros e Laura está com eles. Aline está de braços
cruzados, encarando o chão e apoiada em Rodrigo,
que está com um braço ao redor dos seus ombros.
Nunca vi os dois assim, tão... A única palavra que
me vem à cabeça é desolados. Mas Laura, para
compensar, está falando alguma coisa e
gesticulando, sem nenhum sinal de que está mal,
mesmo que eu tenha certeza de que também está.
Paula era sua amiga, apesar de nunca terem voltado
a conversar como antes depois que ela veio para o
casarão. Outra coisa que é minha culpa.

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Engulo em seco e desvio o olhar. Acho que foi


isso que Lavínia quis dizer quando falou que “eles
precisavam de mim”. Isso era o que eu deveria
estar fazendo, como líder do bando. Consolando os
outros. Garantindo que a dor não vai derrubá-los.
Mas não tenho condições de fazer isso.
Uma mulher está se aproximando, contornando
os jardins. Respiro fundo e sinto o cheiro de
ozônio. Não que eu precise disso para saber que é
Lílian. Como sempre, ela está vestida como uma
executiva e seu cabelo ruivo está preso em um
coque, mas mesmo de longe consigo quase sentir o
seu poder.
Fico onde estou, esperando por ela.
— Vocês mataram um humano — Lílian fala,
saltando qualquer cumprimento.
Levanto uma sobrancelha.
— Mais de um humano. Todos os que estavam
envolvidos nisso, junto com Vânia e os outros.
Ela estreita os olhos, provavelmente por causa
do lembrete de que o Conselho estava envolvido
nessa confusão.
— Estou falando do humano que foi para o
hospital.
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E como ela ficou sabendo disso? Não que seja


uma surpresa. Mas entendo sua pergunta: ela
precisa ter certeza de que o segredo não está
comprometido.
Não fui eu quem deu as ordens sobre Henrique,
mas ouvi quando Rodrigo contou o que fizeram.
— Fizemos parecer que ele sofreu um acidente
de carro por estar dirigindo bêbado. Uma vampira
alterou as memórias dos outros humanos.
Lílian sustenta meu olhar por um instante e
então assente, antes de se virar para os círculos. Ela
não vai perguntar se tínhamos motivos para matar o
humano – Rick. Lílian me conhece o suficiente
para saber que eu não aceitaria que fizessem isso
sem uma boa razão. E, se as ameaças que ele fez
para Laura não fossem motivo o suficiente, ele
também estava envolvido naquele plano. Foi uma
morte justificada. Eu só queria ter conseguido fazer
minha parte nela também, mas ainda estava
desacordado.
Entro no último círculo atrás de Lílian. Ela não
fala nada, só vai direto para o segundo círculo e
para logo atrás da linha. Aos poucos, as pessoas
reunidas vão fazendo silêncio, olhando para ela.
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Acho que todos no casarão já viram a despedida de


uma bruxa antes.
Não escuto o que Lílian fala, mas vejo quando o
corpo de Paula aparece, no círculo central. Não
quero ver, mas mesmo assim meu olhar fica preso
nos cabelos dela. Ruivos, não o castanho de
sempre, que ela usava para não chamar atenção. O
feitiço que ela usava para esconder a cor natural
dos cabelos – a cor natural de todos os bruxos – se
dissolveu quando ela morreu.
O fogo se levanta de uma vez, surgido do nada.
Fogo-de-bruxa. Lílian começa a cantarolar alguma
coisa, uma melodia estranha, sem palavras, que
parece fazer espirais no ar. E isso é o fim. Quer
dizer que Paula realmente se foi, que sua essência e
seu poder foram levados pelo fogo e que ela
atravessou os Véus da Morte.
Respiro fundo, tentando conter as lágrimas. De
alguma forma, meu olhar vai parar em Laura, que
ainda está com Aline e Rodrigo. Os dois estão
abraçados, chorando, mas Laura está olhando para
mim.

···
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AS ÚLTIMAS BRASAS JÁ ESTÃO MORRENDO QUANDO


Lílian dá um passo atrás, se afastando do círculo
desenhado no chão. Ela olha para Ryan, que está
parado ao lado da vampira. Nádia. Tenho a
impressão de que deveria saber quem ela é, mas
também tenho certeza de que ela não é daqui. Não
consigo ver a expressão de Lílian, mas Ryan
balança a cabeça de forma brusca enquanto Nádia
assente.
Desvio os olhos. Não vou tentar entender o que
aconteceu ali. Provavelmente eram só assuntos do
Conselho – Ryan confirmando que ele e a vampira
tinham cuidado dos humanos e caçado todos que
estavam envolvidos naquele esquema. E por mais
que eu só queira voltar para o jardim, para me
lembrar de Paula ali, viva, enquanto começávamos
a entender a loucura que era criarmos um bando
separado das políticas do Outro Mundo, não posso
fazer isso. É assim que quero me lembrar de Paula,
mas o bando é tão dela quanto meu. Não vou deixar
que tudo o que ela lutou para construir desmorone.
Gesticulo para Ryan, Lavínia e Rodrigo. Preciso
fazer mais um esforço para não atravessar os
círculos quando vejo que Laura ainda está abraçada
com Aline. Ela está viva, isso é o que importa. Está
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viva, está bem e está fazendo planos para ter a vida


que sempre quis. E mesmo que eu não seja parte
dessa vida mais, estou feliz por ela.
Vou na direção do casarão, passando por Amara
e Jorge. Eles assentem e param onde estão. Solto
um suspiro aliviado. Se eles entenderam que quero
privacidade, vão garantir que ninguém escute nossa
conversa, o que quer dizer que posso falar o que
preciso na cozinha.
Me encosto o balcão que separa o espaço onde
estão as mesas da área da cozinha propriamente
dita e espero. Lavínia é a primeira a entrar, seguida
por Rodrigo e por último Ryan, ainda conversando
com a vampira. Levanto as sobrancelhas e ele
balança a cabeça.
— Se nos chamou aqui para dizer o que estou
pensando, Nádia deve ficar. Ela é confiável e não
tem motivos para interferir na política da região —
ele responde.
Suspiro. Não queria ninguém de fora aqui,
agora, mas Ryan não insistiria nisso sem um bom
motivo.
— Vou direto ao assunto, então. Vocês três são
os mais fortes aqui e que têm um mínimo de
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disposição para lidar com o Conselho. Vão precisar


trabalhar juntos ou escolher um entre vocês para ser
o líder do bando, se não quiserem o Conselho
batendo na porta do casarão em breve.
Ryan não fala nada, só troca um olhar com a
vampira, que assente. Me viro para Lavínia e
Rodrigo, que estão parados na frente das mesas.
Eles não demoram muito para acompanhar meu
raciocínio. Lavínia se endireita, balançando a
cabeça com força, enquanto Rodrigo bate o punho
fechado na mesa.
Não vai demorar para chegar a lua cheia. Eu vou
me transformar e, sem Paula aqui, vou estar fora de
controle. Não é à toa que os lobisomens nesse
plano são caçados.
— Só vou continuar aqui o tempo que
precisarem para ter tudo sob controle, e então vou
me entregar para os bruxos — continuo quando
ninguém fala nada.
Os bruxos são minha única opção, na verdade,
mas não faço ideia do que vai acontecer. Sei que
existem casos de banirem lobisomens para o plano
dos demônios ao invés de matá-los. A questão é o
que vão decidir fazer comigo, levando em conta
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como desafiei o Conselho por anos.


— Laura... — Rodrigo começa.
Lavínia balança a cabeça de novo.
— Alexandre não vai falar nada com ela, não é?
— Ela me encara e seu cabelo começa a ganhar
mechas brancas. — Pelo menos isso. Você tem
consciência do que fez quando mandou ela embora.
Tenho. Eu sei o que fiz, sei o que isso custou
para Laura. E, se não soubesse, o que consegui
sentir vindo dela, aquela hora no jardim, foi mais
que o suficiente para deixar claro. Eu a feri de um
jeito que ela nunca pensou que eu seria capaz. Ela
confiou em mim e eu provei que não merecia sua
confiança.
— Mas nesse caso, se ela souber o que está em
jogo... — Rodrigo começa.
Balanço a cabeça e vejo Lavínia fazendo a
mesma coisa.
— Se eu tivesse tempo, ia me desculpar e provar
para ela que não queria ter feito aquilo, que era a
única opção que eu tinha. Tentar fazer ela entender
e me perdoar, isso se Lílian disser que é seguro.
Mas eu não vou me desculpar de qualquer jeito e
jogar isso em cima de Laura. Você a conhece bem
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o suficiente para saber que se ela ao menos souber


o que está em jogo, vai desistir de tudo para ficar
aqui, mesmo que esteja furiosa comigo... Com
direito.
E não vou colocar Laura nessa situação. Ela
merece mais que isso.
Ryan ri em voz baixa e me viro para ele.
— Imaginei que fosse pensar assim e creio que
tenho uma solução — ele fala.
Rodrigo cruza os braços e Lavínia estreita os
olhos. Olho de Ryan para Nádia, que sorri sem se
preocupar em esconder suas presas.
— Posso conter-te na lua cheia. Não será
agradável, mas é possível.
Encaro a vampira dos pés à cabeça. Não me
importo se estou sendo grosso, mas nunca ouvi
falar de um vampiro que fosse capaz de parar um
lobisomem em plena lua cheia, muito menos conter
um. O sorriso dela se alarga.
— Ryan não é o único que treinou no Santuário.
Ao contrário dele, eu sirvo. Posso conter-te.
Inclino a cabeça, mas sei que não vou conseguir
notar nada de diferente nela. Mesmo assim... Se

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Nádia serve ao Santuário, ela provavelmente é uma


das ceifadoras, ou seja lá qual é o nome correto.
Pelo menos não me lembro de Ryan mencionar
mais nada com relação às pessoas que ainda têm
uma ligação direta com o Santuário.
E se Ryan, que só foi treinado lá, tem o tipo de
poder que já vimos...
— Como você faria isso? — Pergunto.
— Tirando-te deste plano e deixando-te numa
área restrita no limbo. Seria um espaço pequeno,
mas completamente isolado. Tu não irias conseguir
escapar.
Lavínia inspira com força e não preciso olhar
para saber que seu cabelo está completamente
branco. O limbo. O espaço entre o nosso mundo e o
plano onde os demônios vivem. O espaço que
dizem as lendas que é o domínio da Morte.
Encaro Nádia de novo, tentando ignorar o seu
sorriso gelado. Não. Ela é jovem demais para ser a
Morte. Mesmo que seja uma vampira, consigo ter
uma noção do seu poder. Então... Ceifadora. O que
faz ainda mais sentido considerando o motivo para
Ryan ter pedido sua ajuda. Ela teria garantido que
nenhum dos envolvidos naquilo tudo escaparia.
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— Tem minha palavra — Ryan fala. — Ela


consegue fazer o que está propondo.
— E mais, eu vou precisar de estar perto de ti
durante esse tempo — ela completa.
Não estava duvidando e já imaginava a questão
da proximidade. Aquilo não seria um problema.
Agora...
— O que vai querer em troca disso?
Nádia balança a cabeça e olha de relance para
Ryan.
— Nada. Estou a cobrar um favor.
— E eu disse que um dia ia te pagar por ter tido
a coragem de se afastar da autoridade do Conselho
— Ryan dá de ombros.
Solto o ar com força. Não esperava por isso.
Nunca nem imaginei que algo assim fosse possível.
Mas Rodrigo e Lavínia já estão assentindo. É a
melhor opção. Na pior das hipóteses, tenho tempo
para pensar numa alternativa e manter o que
criamos aqui. Na melhor...
Não. Não vou criar esperanças.
Assinto.
— Estamos combinados, então. Estarei aqui um
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dia antes da próxima lua cheia — Nádia fala.


— Obrigado.
Ela sorri antes de se virar e sair da cozinha.
Escuto o suspiro aliviado de Rodrigo enquanto
Lavínia desaba em um dos bancos. Ryan só balança
a cabeça, olhando de um para o outro.
— Agora você tem tempo para aquele pedido de
desculpas elaborado que disse que queria fazer —
ele comenta.
Estreito os olhos e não respondo. Quase sinto
saudades da época em que nem mesmo Ryan faria
um comentário desses para mim. Quase. Tudo era
mais fácil, antes de Laura. Mas não quer dizer que
era melhor.
E falando em Laura... Me endireito. Tenho a
impressão de que ouvi a voz dela.
— ... Rodrigo? Ele falou que me levava para
casa — escuto o final da sua pergunta.
— Ele está lá dentro, menina, mas pediram
privacidade — Amara responde.
Rodrigo estica os braços acima da cabeça e olha
para a porta.
— Pode mandar ela vir, Amara.
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Sorrio. Laura tenta esconder, mas todos nós já


notamos como ela fica irritada quando nota as
diferenças entre nós, especialmente quando não
consegue ouvir alguma coisa que todos os outros
ouviram.
E ela está com aquela expressão um pouco
irritada quando para na porta da cozinha, olhando
para Rodrigo.
— Vamos? Senão vai ficar tarde e minha avó
vai ficar mais preocupada ainda.
— Certo. Vou pegar o carro.
Ele sai da cozinha e Laura fica parada na porta,
mudando o peso de uma perna para a outra. Ryan
levanta uma sobrancelha, olhando para mim, antes
de ir na direção dela.
— Boa sorte — ele fala e dá um tapinha no
ombro de Laura enquanto sai da cozinha.
Ela sorri e assente.
— Obrigada.
— Vai amanhã mesmo? — Lavínia pergunta.
Laura assente de novo.
— Não tenho por que esperar.
Amanhã... Ela está indo para BH amanhã? Isso
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eu não ouvi mais cedo.


— Você ia embora sem falar nada? — Pergunto.
Laura respira fundo e olha para qualquer lugar
da cozinha, menos para mim, o tempo todo com os
ombros caídos. Ela balança a cabeça e se endireita,
me encarando.
— E o que eu teria para falar? — Ela respira
fundo de novo. — Você disse tudo o que queria
quando me mandou embora, não foi? Fez o que
precisava para eu sair daqui. Entendi o recado.
Lavínia quase corre para a porta que dá para o
corredor. Respiro fundo. Só eu e Laura... E não
tenho como discordar do que ela falou.
— Se tivesse outro jeito... — começo e paro,
balançando a cabeça. Não faço a menor ideia do
que falar.
Laura suspira e encara a mesa mais próxima.
— Eu entendo — ela murmura. — Realmente
entendo. Quando você estava transformado eu
consegui ler a sua mente, eu acho. Você fez o que
era o certo. Só queria me manter viva. Eu entendo.
Engulo em seco. Ela pode entender, mas o tom
de voz dela não é o que eu esperaria ouvir junto

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com essa fala.


Quando Laura levanta a cabeça e olha para mim,
consigo ver as lágrimas nos seus olhos.
— Mas algumas coisas doem mais... — Ela
balança a cabeça. — Só “estar viva” não é o
suficiente. Eu só “estive viva” por tempo demais, e
achei que podia ter mais que isso com você. Que
valia a pena. Se eu tivesse morrido aqui no casarão,
por qualquer motivo que fosse, ia ter doído menos
que o que você fez. E teria sido por minha escolha,
pelo menos.
Laura continua me encarando, como se estivesse
esperando uma resposta. Mas o que eu posso falar?
Que eu sabia o que estava fazendo? Que sabia que
ia quebrar a confiança dela de uma forma
imperdoável e a jogar de volta na vida que tinha
passado anos lutando para deixar para trás?
Ela balança a cabeça de novo e atravessa a
cozinha, indo para a outra porta e a fechando atrás
de si. Fico encarando a porta fechada. Eu podia ter
falado alguma coisa para ela ficar? E se... Não sei.
Realmente não sei o que eu poderia ter feito. Passo
as mãos pelo cabelo e respiro fundo. Vou ter
tempo. Posso tentar corrigir isso.
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— Eu realmente estraguei as coisas para vocês,


não é?
Viro para trás de uma vez. Lílian está parada na
porta e não ouvi quando se aproximou.
Balanço a cabeça.
— Não importa. Prefiro que ela esteja viva,
mesmo que me odeie por isso.
Lílian suspira e balança a cabeça, encarando a
porta por onde Laura saiu.
— Tão dramático. Tinha me esquecido disso —
ela sorri e se vira para mim. — Mas eu também vi
que você vai ser feliz. É a única boa notícia que
tenho para você, mas é melhor que nada.
Respiro fundo. Conheço Lílian o bastante para
ler as entrelinhas do que ela falou. Ela pode ter
visto que vou ser feliz – e não vou perguntar como
ou quando. Saber detalhes sobre suas visões nunca
é uma boa ideia. E, pelo que falou, Lílian viu mais
coisas que têm a ver comigo ou com o casarão.
Olho para a porta por onde Laura saiu de novo.
Quero ir atrás dela, mas sei que não vai adiantar
nada. Não sei o que dizer, como me explicar, e ela
está com raiva demais, com direito. E o casarão
precisa de mim.
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Me viro para Lílian.


— O que você viu?
— É melhor irmos para o seu escritório.

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C A P Í T U L O Q U A R E N TA

L AURA
DOU UM PULO QUANDO ESCUTO O BARULHO DA
campainha. Eu odeio isso. E está meio cedo... Olho
para o relógio. Duas e meia. Droga. Perdi a noção
das horas de novo. Me levanto depressa e corro
para abrir a porta, sem nem me preocupar em olhar
quem é. Estava esperando eles, mas jurava que
ainda não era nem meio-dia.
— Vocês deviam ter me avisado que estavam
chegando! Eu ia buscar vocês no ponto!
Caio e Lavínia trocam um olhar antes de se
virarem para mim.
— Para quê? — Lavínia pergunta.
— Como se fosse difícil achar aqui. São só seis
quarteirões — Caio resmunga.
Seis quarteirões do ponto de ônibus até aqui, e
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minha casa é a última em um lote comprido com


várias casas. Se Daiane ou André estivessem com
eles, eu não ia estranhar terem achado aqui sem
problemas, porque pelo que Camila me contou
todos os lobos da região conhecem essa casa
segura.
Levanto as sobrancelhas.
— Ivan repassou a localização das casas seguras
dele para o bando — Lavínia explica. — Por via
das dúvidas.
Faz sentido. Se eles vão vir em BH, é melhor
terem como se virar se acontecer alguma coisa.
Me afasto para um lado da porta.
— Não reparem na bagunça. Eu ia dar uma
ajeitada na casa, mas...
— Perdeu a hora trabalhando, aposto — Lavínia
comenta.
Dou de ombros. Nenhuma novidade nisso.
Caio entra e se vira para mim, com uma sacola
de plástico grosso na mão.
— Sua avó mandou.
Pego a sacola de uma vez, com cuidado para
não balançar demais, e corro para a cozinha.
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Quando liguei para minha avó semana passada,


para contar como as coisas estavam indo, comentei
que Caio e Lavínia tinham avisado que iam vir
aqui. Ela disse que ia mandar algumas coisas para
mim, porque tinha certeza que eu estava vivendo de
porcarias. Na verdade, nem estou, mas nunca que
vou recusar comida da minha avó.
Tiro as três vasilhas de plástico de dentro da
sacola e coloco no balcão da cozinha. Melhor nem
olhar o que ela mandou, porque já esqueci de
almoçar. Se destampar uma dessas vasilhas tenho
certeza que meu estômago não vai me deixar fazer
nada antes de comer.
Quando volto para a sala, Lavínia acabou de
fechar a porta e está olhando ao redor, enquanto
Caio já desabou em um dos sofás. Faz meses que
não vejo nenhum dos dois. Desde a cerimônia que
fizeram para Paula, no casarão. Eu disse que não ia
voltar, e não voltei. Então, considerando que uma
boa parte do pessoal do casarão não gosta de sair de
lá... Pois é. Meses só conversando pelo celular e
pela internet. Daiane, Rodrigo e Aline vieram me
visitar algumas vezes nesse tempo, aproveitando
que precisavam vir em BH, e numa dessas vezes
Rodrigo até trouxe minha avó. Mas, dos outros,
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nem sinal.
— Então essa é a casa nova — Lavínia comenta.
Assinto. Pela primeira vez na vida, dei sorte. E
muita sorte, na verdade. Passei minha primeira
semana em BH dormindo no sofá do apartamento
de Camila e procurando algum lugar que eu
conseguisse pagar o aluguel. Não tinha imaginado
que o preço do aluguel de quartos ia ser
praticamente o mesmo que o preço de um
apartamento, mas foi o que aconteceu. Antes que
eu começasse a ficar preocupada para valer com
isso, Camila falou que Ivan tinha uma proposta
para mim. Ele ia me deixar alugar uma das casas
seguras da matilha, pagando metade do que seria o
valor normal, com a condição de que se algum
metamorfo precisasse ficar aqui, podia. Além disso,
eu não podia trazer convidados não autorizados
para cá. Levando em conta que “não autorizados” é
o mesmo que dizer “pessoas que não sabem sobre o
Outro Mundo” e que a essa altura as únicas pessoas
que me visitariam são justamente do Outro Mundo,
nenhum problema. E a casa já estava mobiliada,
para melhorar. Foi muita sorte. De acordo com
Camila, a lógica dele era que eu tinha arriscado
minha vida para ajudar o Outro Mundo, então
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merecia um pouco de ajuda deles em troca.


Dramático, mas não vou discutir.
— Achei que você já ia ter enchido a casa de
pôsteres — Caio fala.
Tento não olhar para o pôster que está enrolado
e encostado na quina da parede. Até pensei nisso,
mas...
— Coloquei os pôsteres que já tinha no meu
quarto e no escritório, mas não mandei imprimir
mais ainda.
Mesmo que eu já esteja aqui há meses, não
comprei muita coisa para a casa. Algumas coisas de
cozinha, alguns enfeites e velas que comprei na
feira hippie e espalhei pela casa, e só. Ainda quero
fazer uma decoração caprichada no quarto que
virou meu escritório, mas é melhor esperar até ter
mais dinheiro guardado antes de começar a fazer
isso.
— Eu falei que ela tinha trazido os pôsteres!
Estreito os olhos, encarando Caio por mais um
instante antes de olhar para Lavínia. Ela cruza os
braços e olha para o teto. Ceeerto.
— E o que mais poderia ter acontecido com
eles?
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Lavínia aponta para Caio. Ele revira os olhos.


— Ninguém tinha certeza se você tinha tirado os
pôsteres que pregou na sua sala, no casarão, ou se
Alexandre tinha pegado eles.
Reviro os olhos e me deixo cair sentada no outro
sofá. Era só o que me faltava.
— E por que diabos ele faria isso?
Caio abre a boca para responder e para. Me viro
a tempo de ver Lavínia balançar a cabeça para ele.
— Vai saber. Por que você não pergunta para
ele?
Estreito os olhos. Não. Eu não quero saber. Não
vou cair nessa.
— Melhorem. Já basta minha avó tentando
bancar a casamenteira a todo custo.
Lavínia ri e balança a cabeça de novo. Bando de
fofoqueiros e enxeridos.
E não vou negar que senti falta disso.
Suspiro e me levanto. Posso ter pulado o
almoço, mas são duas horas da tarde e os dois
estavam viajando.
— Vou colocar pão de queijo no micro-ondas
— aviso.
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— Não precisa! — Caio responde depressa, se


endireitando no sofá. — A gente não pode demorar.
— Vamos pegar um dos transportes dos povos
das fadas daqui a pouco. Só queríamos te ver
mesmo — Lavínia completa.
É claro que eles não podem demorar. Isso é
querer demais.
— Aliás, vocês não contaram para onde estão
indo.
Caio sorri e faz uma careta logo depois.
— Estou indo visitar uns parentes. Lavínia
pediu para vir junto.
Ele está indo visitar família e levando Lavínia?
Oi? Olho de um para o outro. Eu entendi o que
acho que entendi?
Caio dá uma gargalhada e Lavínia revira os
olhos.
— Não tem nada disso. Me faça um favor e tire
essa ideia da cabeça — ela fala.
Caio ri mais alto ainda.
Okay, então. Mas ainda estou esperando uma
explicação.
— Diz ele que tem alguém lá no povoado deles
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que conhece várias histórias antigas — Lavínia


conta. — Com tudo o que está acontecendo, acho
uma boa ideia aprender o que conseguir enquanto
ainda podemos viajar.
— Sem graça! — Caio resmunga.
Faz sentido. Alguém me explicou uma vez que
os seres do Outro Mundo nativos daqui não
costumam se misturar, então se Lavínia tem como
ir até um povoado deles para aprender alguma
coisa, é uma ótima oportunidade. Agora...
— Como assim, “enquanto ainda podem
viajar”?
Caio tira um cigarro de palha de um dos bolsos.
Ah não. Aponto para a porta.
— Lá fora.
Ele levanta uma sobrancelha e tira um isqueiro
de outro bolso.
— Nem vem. — Me levanto de uma vez e tomo
o isqueiro. — Você está na minha casa. Se quiser
fumar, é lá fora.
Caio ri e guarda o cigarro, antes de esticar a mão
para o isqueiro. Sem chances que vou devolver.
Conheço essa peste.

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— Eu gosto dessa nova Laura — ele comenta.


Eu também.
— “Enquanto podem viajar”? — Repito.
Lavínia dá de ombros.
— Eu não sei detalhes, mas considerando que já
faz quase seis meses desde que Paula comentou
sobre quando o Outro Mundo ia se mostrar...
Engulo em seco e assinto. Quase seis meses
desde aquele jantar com o Conselho, no casarão. O
que foi que Paula falou? Que ela teria uma amiga
humana que saberia o que ela era. E que depois
disso não demoraria muito. Um ano, no máximo.
Uma das previsões de Lílian, e a essa altura eu não
duvido mais das coisas que ela fala.
— Estão planejando se mostrar? — Pergunto.
— A gente não sabe — Caio fala.
— Não temos certeza de nada, mas estão
correndo boatos — Lavínia completa.
Suspiro. E se Camila não me contou nada, é
porque não pode. Às vezes eu odeio a hierarquia do
Outro Mundo.
— Isso quer dizer que é melhor eu estar
preparada para qualquer coisa, então.
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Os dois assentem, sérios. Droga. Queria só


aproveitar a visita de dois amigos que não vejo faz
tempo, mas nem isso.
O celular de Lavínia apita e ela praticamente dá
um pulo. Caio se levanta na mesma hora.
— E acabou a folga — ele resmunga.
Mas já?
— Vocês mal chegaram!
— Aqui é caminho para o transporte dos povos
das fadas. E se a gente demorar, só conseguimos
sair amanhã, isso se nos aceitarem no transporte.
— Como... — começo.
— Não pergunte — Caio avisa, já abrindo a
porta.
Eu odeio isso. Acho que eles fazem de
propósito, só para me matar de curiosidade.
— Então pelo menos passem aqui com tempo na
volta.
— Pode deixar — Lavínia fala.
Saio atrás deles e nem me ofereço para
acompanhá-los até o portão. São mais de trinta
degraus até lá – fiz questão de não contar – e sei
que eles não vão parar para conversar nem nada. Só
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fico parada na área de frente para mim casa,


olhando enquanto eles sobem até o portão e então
somem de vista. Às vezes eu odeio quando o
pessoal do casarão vem aqui, porque fico me
lembrando de como era antes. Por mais que eu
goste daqui e não abra mão do que consegui de
jeito nenhum, ainda sinto falta de lá.
Fecho a porta da sala. É interessante que Lavínia
e Caio não tenham respondido nem com um “você
também pode visitar a gente” automático. Isso não
deveria me incomodar, não quero voltar no casarão.
Mas mesmo assim dói.
Cinco meses desde que vim para cá. No
começo, eu me enfiei no trabalho como se não
existisse mais nada. Em parte era porque não sabia
se ia conseguir dinheiro para pagar as contas no
outro mês ou para comprar comida. Mas no fundo
eu estava mais me escondendo que qualquer outra
coisa. Não queria ter tempo para pensar no que
estava acontecendo em Monte das Pedras, não só
no casarão, mas com minha família, o pessoal que
eu conhecia, tudo... E não queria ninguém vindo
atrás de mim para oferecer seus sentimentos sobre
Rick ou coisa do tipo.

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Quando resolvi parar de ignorar o celular –


outra coisa que meu tempo no casarão me deixou
muito boa em fazer – tinha uma pilha gigante de
mensagens. No fim das contas, não me dei ao
trabalho de responder a maioria delas: eram de
gente que eu nem conversava direito ou até
daquelas minhas amigas que eu não acho que eram
tão boas amigas assim. Pelo que consegui entender
das mensagens, ninguém suspeitou que a morte de
Rick não tivesse sido um acidente mesmo, nem
questionaram o desaparecimento do pai dele e de
mais algumas pessoas da cidade. A única
explicação que consigo pensar é que a vampira,
Nádia, fez um ótimo trabalho alterando memórias,
porque tudo o que aconteceu não fez a menor
diferença para a cidade, aparentemente. De acordo
com as mensagens do meu pai, o condomínio ainda
estava sendo construído, sem nenhum tipo de
problema ou atraso. Eu pensei que pelo menos a
construtora teria algum problema para funcionar
sem seu Antônio, mas pelo visto estava bem
enganada.
Me encosto na porta e olho ao redor. Nem
parece que tudo aconteceu menos de meio ano
atrás. Às vezes parece que foi ontem, às vezes acho
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que foi anos atrás. É estranho. Foi pouco mais de


um mês, e minha vida toda mudou, de uma forma
que eu nunca teria imaginado.
Encaro o pôster enrolado, que por sorte Caio e
Lavínia não notaram. Assim que minhas finanças
estabilizaram um pouco, mandei fazer esse pôster,
dessa vez no maior tamanho que o site onde as
imprimo aceita. As outras, as que mandei imprimir
quando ainda estava no casarão, estão pregadas no
meu quarto e no escritório. Essa aqui, imprimi
pensando em colocar na sala, mas acabei só
deixando o pôster enrolado e encostado em um
canto. Era melhor assim. Agora...
Respiro fundo e desenrolo o pôster. É a
ilustração de Alexandre. A das roseiras. Não sei o
que me deu na cabeça para mandar imprimir
justamente ela... Mentira. Sei muito bem. Tem
quase seis meses desde que vim para BH, e não
consegui esquecer Alexandre. Era o que eu queria –
esquecer de qualquer coisa que tenha acontecido
entre nós, depois do que ele fez. Mas não consigo.
Apesar de tudo, ele fez bem para mim. Muito bem,
na verdade. Não tenho como esquecer que se estou
vivendo das minhas ilustrações hoje, em boa parte é
por causa do que ele fez, de como me ajudou. E...
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Talvez eu estivesse de cabeça quente demais,


quando falei com ele pela última vez, logo antes de
vir para o casarão. Tinha acontecido tanta coisa de
uma vez, e...
Puxo uma cadeira e subo nela para dependurar o
pôster. Aconteça o que acontecer, de certa forma
ele é um marco na minha vida, então merece estar
dependurado aqui. E talvez...
Desço da cadeira e pego meu celular, encarando
o pôster na parede. Eu estava fora do ar, naquele
último dia no casarão. “Cabeça quente” não é o
suficiente para descrever. Estava tentando ajudar
quem podia, não deixar ninguém pirar... Mas eu
também não estava muito bem. Estava assustada
com tudo o que aconteceu, tentando não chorar por
causa de Paula quando tinha tanta gente ali com
muito mais direito de chorar que eu – sei que isso é
burrice, mas não consegui evitar. E acabei
descontando isso em Alexandre.
Olho para o celular. Quase seis meses, e nesse
tempo todo não falei com Alexandre. Nenhuma
mensagem, nada. Não que eu tivesse esperado que
ele entrasse em contato depois de como fui embora.
Ele não é um desses caras que força a barra. Eu

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falei um “não” claro o suficiente, sabia que ele não


ia insistir. Então quem tem que fazer alguma coisa
agora sou eu. Isso nunca foi problema para mim
antes – ficava meses sem falar com Camila, antes
de ir para o casarão, e não era nenhum problema
puxar assunto depois. Mas isso é diferente. Não sei
o que dizer.
O que foi que Caio falou? Sobre terem pensado
que Alexandre tinha pegado meus pôsteres? Quem
sabe... Tiro uma foto do pôster na parede e
seleciono o número de Alexandre.
Suspiro. O que eu tenho a perder? Aperto
“enviar”.

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C A P Í T U L O Q U A R E N TA E UM

L AURA
O QUE LÍLIAN DELARO ESTÁ FAZENDO NA MINHA PORTA?
E não tem como ela ter vindo parar aqui por acaso:
minha casa é a última de um lote enorme. Ninguém
é louco de descer essa escadaria toda sem ter
certeza de que está indo para o lugar certo.
Puxo a cortina da janela do meu quarto de novo,
tentando ser discreta. Daqui consigo ver a área
perto da porta da sala e tenho certeza de que é ela.
Posso só ter visto Lílian uma vez – naquela
cerimônia para Paula, um ano atrás – mas ela não é
o tipo de pessoa que eu conseguiria esquecer,
especialmente depois das não sei quantas previsões
dela que ferraram comigo. Acho meio difícil
acreditar que tenha outra mulher ruiva, com o
cabelo preso em um coque impecável e que se veste

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como uma empresária que teria motivos para


aparecer na minha porta.
E eu não quero pensar em quais os motivos para
Lílian estar aqui. Nunca vi o nome dela sendo
usado para dar boas notícias.
Se bem que teve aquele aviso sobre quando o
Outro Mundo se revelaria. Isso não foi exatamente
uma má notícia – e faz pouco mais de um mês
desde que aconteceu. Foi muito estranho passar o
dia na frente da TV, vendo notícia atrás de notícia
sobre os seres mágicos se mostrando para a
humanidade, e mais estranho ainda ver Felipe – o
primo de Camila que me deu as informações que
precisava para começar com meus freelances – se
transformando de lobo em humano ao vivo.
Semana passada vi duas emissoras fazendo
especiais e tentando explicar as raças do Outro
Mundo. Eles até conseguiram falar algumas coisas
certas, mas eu queria muito ter visto a cara de
Camila assistindo aquilo.
Lílian toca a campainha de novo.
— Laura, eu sei que você está aí.
E levando em conta que falou isso em tom
normal, ela provavelmente sabe que estou aqui.
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Pelo menos ela não se virou para me encarar.


Sem chances de fingir que não estou em casa,
então. Não que eu ache que isso funcione com uma
vidente.
Respiro fundo.
— Já vai.
Ela olha na minha direção e assente.
Pensando bem, acho que a campainha ter tocado
bem na hora que desliguei o fogo não foi sorte.
Suspiro e abro a porta da sala. Até hoje não
consegui realmente processar que Lílian é uma
bruxa e uma vidente. Não que eu duvide ou ache
algo estranho depois do meu tempo no casarão. A
culpa é da aparência dela: terninho escuro, bolsa de
grife, cabelo e maquiagem impecáveis. É ridículo
isso, mas depois de crescer ouvindo e lendo
histórias com bruxas, é difícil ligar a imagem de
Lílian com uma delas. Paula e seus saiões se
encaixava mais no que eu esperava.
— Laura. — Ela assente, sorrindo. — Soube
que termos nos revelado foi bom para você.
Não vou perguntar como ela sabe. Ou ela viu
alguma coisa, ou alguém comentou com ela. Não

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fiz o menor segredo disso. O fato é que, um dia


depois que o Outro Mundo se revelou, todas as
minhas caixas de mensagem em todos os sites onde
posto meu trabalho estavam cheias. Precisei ler
umas tantas mensagens para entender o motivo:
mesmo que artistas que trabalham com fantasia
sejam comuns, eu era uma das poucas que
realmente retratava o Outro Mundo. Foi algo que
comecei a fazer depois que vim para BH e que
nesse quase um ano desde que saí de Monte das
Pedras acabou virando minha marca. O resultado é:
estou recusando clientes, porque simplesmente não
consigo encaixar todos dentro do prazo que
querem. Óbvio que perguntei se teria algum
problema por isso, antes de começar, e Ivan me
garantiu que o Conselho não ia falar nada, então
não pode ser por isso que ela está aqui.
O que Lílian pode querer comigo? Já não foi o
suficiente...
— Posso...? — Ela gesticula indicando a sala.
E eu estou sendo grossa. Me afasto para o lado.
— Claro.
Ela entra e fecho a porta. De alguma forma,
mesmo que esteja vestida parecendo uma
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empresária ou coisa assim, ela não parece


deslocada na minha sala. Indico um dos sofás e ela
se senta, colocando a bolsa no colo. Respiro fundo
e me sento no outro sofá.
— Não vou oferecer um café nem nada porque...
— começo.
— Porque eu já te atrapalhei a fazer brigadeiro e
provavelmente faz dias que você nem pensa em
fazer café — ela me interrompe e gesticula como se
isso não importasse. — Estou acostumada com
vocês que trabalham em casa. E, de qualquer
forma, não vou demorar. Só vim aqui porque te
devo uma explicação.
Me endireito. Lílian oferecendo explicações?
Pelo pouco que sei sobre ela, isso é quase um
milagre. Mas...
— Você deve mesmo — comento.
Ela inclina a cabeça e levanta uma sobrancelha.
Certo, então. Se ela quer que eu fale mais, vou
falar.
— Você viu que eu ia morrer se continuasse no
casarão e avisou Alexandre. Isso eu entendi. O que
não entendi é porque fez questão de fazer isso de
um jeito que ele fosse entrar em pânico. Se
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consegue ver o futuro, sabia que isso ia acontecer.


Foi exagero, ainda mais que Lavínia já tinha
gritado minha morte antes e tinham conseguido
evitar que acontecesse.
Isso foi uma coisa que eu só entendi nos últimos
meses: Alexandre entrou em pânico. Não foi uma
questão de não confiar em mim, de querer controlar
minha vida nem nada do tipo. Ele simplesmente
não conseguiu pensar em mais nada além do que
ela falou. Ainda estou me sentindo uma idiota por
não ter notado isso antes. Alexandre não age
daquele jeito. Ele nunca fez nada assim antes, bem
pelo contrário. Mas Lílian conseguiu deixar ele tão
assustado que... Bom, eu vi o resultado em primeira
mão. Agora, depois de alguns meses que voltamos
a conversar – só por mensagens, mas é melhor que
nada – isso parece óbvio. E, para ser honesta, não
sei se eu teria reagido tão bem se estivesse na
mesma situação. Não, mentira, tenho certeza de
que ia ter feito coisa muito pior.
Lílian assente.
— Eu sabia que ele ia entrar em pânico. Na
verdade, estava contando com isso.
Abro a boca para questionar, mas ela me cala
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com um gesto.
— Sobre quando Lavínia gritou sua morte...
Nossos poderes têm origens diferentes, e ainda é
perigoso demais te falar mais que isso. Mas eles
funcionam de forma diferente. É possível evitar
qualquer tipo de profecia, verdade. Mas uma
banshee só vê um fato: a morte. Eu vejo futuro e
passado. Consigo ver o que vai acontecer e as
consequências disto.
Ela para de falar e me encara. Tá, qual é a
diferença se ela consegue ver as consequências? Eu
ainda...
Os planos para Alexandre. Como queriam usá-lo
para causar um massacre e impedir que o Outro
Mundo se revelasse. Se eu não estivesse fora do
casarão... Ou melhor, se eu não tivesse subido a
serra com Rick para fazer aquela fogueira, não
estaria perto o bastante para parar Alexandre.
Não... Isso é exagero demais.
Balanço a cabeça.
— O que você realmente viu? — Pergunto.
Lílian sorri, com uma expressão irritante que
parece uma professora satisfeita com um aluno.

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— Se você tivesse ficado no casarão, teria


morrido lá. Isso é uma certeza. Era só uma questão
de tempo. O plano sempre foi te matar para fazer
Alexandre perder o controle. E, ao mesmo tempo,
você era minha única chance de parar Alexandre
quando eles agissem.
Quando eles agissem... Respiro fundo. Paula.
Ela sabia que Paula ia morrer e não fez nada.
Lílian balança a cabeça depressa.
— Eu não fazia ideia de que seria Paula, ou teria
interferido, não importava o custo. Ela era como
uma irmã para mim e ainda queria que fosse ela a
se sentar no Conselho e não... — Ela para e balança
a cabeça de novo, mais devagar. — Era uma
incógnita. Eu sabia que Paula era um alvo e ela
também sabia. Mas poderia ter sido qualquer um.
Não consegui ver detalhes. A questão é...
Meu celular apita e eu quase dou um pulo na
cadeira.
— Isso vai ser Camila te chamando para sair —
Lílian comenta.
Solto o ar com força. Deve ser bem irritante ter
que conviver com ela o tempo todo.
E eu acredito no que ela falou, sobre não saber
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que Paula ia morrer naquele dia. Não porque tenho


algum motivo para acreditar nela, mas pela sua
expressão e pelo seu tom de voz.
— Se é só isso, respondo depois — falo. — O
que você estava falando?
Lílian suspira e assente.
— Eu precisava de você fora do casarão e
disposta a ajudar, não importava o custo, porque
senão as consequências seriam muito piores.
— Um massacre — murmuro.
Ela balança a cabeça.
— Dois massacres. Tenho motivos para ter
insistido para o Outro Mundo se mostrar. A
humanidade precisa saber sobre nós enquanto ainda
temos tempo para controlar isso. Se demorássemos
demais, seria pior.
Respiro fundo. E eu não quero saber o motivo
disso. Engulo a curiosidade. Já tive o suficiente de
previsões na minha vida e continuo achando que é
melhor não saber o futuro.
— E tem mais uma coisa que preciso que você
veja.
Lílian abre a bolsa e tira um tablet. Não falo
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nada enquanto ela passa um dedo pela tela,


procurando alguma coisa. Ela assente e vira o tablet
para mim.
Ainda bem que estou sentada. É o casarão,
mas...
— O que aconteceu? — Pergunto num fio de
voz.
Ela suspira e muda a imagem no tablet. Agora é
uma foto do alto, da propriedade toda. Os jardins
estão totalmente queimados e uma boa parte da
mata ao redor do casarão também.
— Fanáticos — Lílian conta. — Não foi difícil
deduzirem que os estranhos do casarão eram do
Outro Mundo. Mesmo que Ryan e Nádia tenham
cuidado dos humanos que estavam envolvidos
naquele plano, algumas ideias deles já tinham se
espalhado.
Encaro a imagem, sem querer acreditar. E o
casarão... Janelas quebradas, paredes marcadas, a
porta aberta e torta...
— Alguém...?
Lílian balança a cabeça com força.
— Alexandre estava avisado de que isso

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aconteceria. Eles tiveram tempo de sair de lá. Mas


você... — Ela dá de ombros. — Eu precisava ter
certeza de que você ia estar com tanta raiva que não
ia nem pensar em continuar em Monte das Pedras.
Você precisava estar longe de lá quando isso
acontecesse, senão...
Senão eu ia ser o bode expiatório de quem quer
que tenha feito isso. A cidade inteira sabia das duas
vezes que eu estive no bar com o pessoal do
casarão. E sabiam que eu tinha trabalhado para
Paula, que morava lá. Se chegaram a ponto de fazer
isto... Engulo em seco.
Eu teria morrido se tivesse continuado no
casarão ou em Monte das Pedras, de uma forma ou
de outra.
Mas...
— Por que você se importa? Além de precisar
de mim para parar Alexandre, mas depois disso...
Por quê? Sou só uma humana, sem importância
nenhuma além do que já fiz.
Lílian puxa o tablet para perto de si e o desliga.
Por que tenho a impressão de que ela está tentando
evitar a pergunta? Não falo nada, só espero até que
ela suspira e guarda o tablet na bolsa.
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— Eu estava por perto enquanto Alexandre


morou em BH. Ele era instável, um híbrido, e
precisava ser vigiado caso se tornasse uma ameaça.
Eu fui o membro do Conselho responsável por
garantir que ele não fosse um risco. — Ela levanta
a cabeça e me encara. — Nunca pensei que alguém
que passou pelo que ele passou fosse conseguir
fazer tudo o que ele fez. Admito que fui uma das
que estava esperando pelo momento em que ele ia
perder o controle e seria banido, mas ele achou
opções, cresceu além disso e... Você tem uma ideia
do que ele conseguiu fazer.
Levanto as sobrancelhas. Isso não é uma
resposta.
— Mas isso não explica por que se importou se
eu morreria ou não.
Lílian balança a cabeça.
— Depois disso tudo, achei que ele merecia que
alguma coisa desse certo. E, pelo que sei do seu
passado, você também merece isso. — Ela dá de
ombros de novo. — Foi por isso que vim te dar
essa explicação, porque a culpa de tudo não foi dele
e não precisa ignorá-lo para sempre.
Lílian Delaro, uma das bruxas mais poderosas
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do mundo, está bancando o cupido? Sério mesmo?


Ela dá de ombros de novo e fecho a boca com
um estalo.
— Nós estamos conversando — conto.
E não vou olhar para o pôster enrolado.
Ela me encara e sorri, se levantando.
— Acho que te subestimei, então.
Me levanto e a acompanho até a porta. Lílian
ainda para e me encara mais uma vez, como se
estivesse me medindo de cima a baixo.
— Boa sorte, Laura. Não acho que vamos nos
ver de novo.
— Obrigada.
Ela se vira na direção da escada. Ainda fico
parada na porta por alguns segundos, escutando o
barulho dos seus saltos nos degraus. Espero mesmo
que não precise ver Lílian de novo.
Fecho a porta e vou para a cozinha. O brigadeiro
que eu tinha acabado de fazer quando ela tocou a
campainha até já esfriou. Pego a panela, a colher,
meu celular e volto para a sala. Droga. Devia ter
perguntado para onde o pessoal do casarão foi
depois daquilo, mas nem pensei nisso. Pelo menos
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sei que todo mundo sobreviveu... E nesse tempo eu


estou conversando tanto com Alexandre quanto
com todos os meus amigos do casarão. Se ninguém
comentou nada sobre o que aconteceu, só tem um
motivo: Alexandre deu ordens para não falarem
nada. E provavelmente Ivan concorda com ele, ou
Camila teria me avisado. Bom, eu tenho que
responder a mensagem dela, de qualquer forma.
Nem me surpreendo quando vejo que Camila
está me chamando para ir em um show essa noite.
Laura: Posso até ir, mas primeiro quero um
bom motivo para ninguém ter me contado o que
aconteceu no casarão.
Encho uma colher de brigadeiro e começo a
comer, esperando Camila responder. Não demora
muito.
Camila: Merda.
Camila: Eu avisei que não ia adiantar tentarem
esconder de você. Como ficou sabendo?
Camila: E foram ordens de Alexandre para o
pessoal do casarão. Ivan me proibiu de falar. Não
queriam te preocupar.
“Não queriam me preocupar”. Respiro fundo.
Qual é o problema deles? Argh.
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Laura: Lílian acabou de me fazer uma visita.


Camila: Caralho. Ela virou sua vida do avesso
também?
Okay, acho que não fui a única que recebeu uma
visita de Lílian, mas tenho a leve impressão de que
Camila teve notícias um pouco piores que as
minhas. Mas é só uma impressão mesmo, imagina.
Hmm. Talvez seja por isso que ela ainda está se
passando por humana. Vou ter que perguntar
depois – mas não por mensagem.
Laura: Não exatamente. Só me explicou
algumas coisas.
Camila: Sorte sua.
Camila: Te busco ou você vai de ônibus?
Levanto as sobrancelhas. Camila realmente não
sabe disfarçar quando não quer falar sobre alguma
coisa. Mas certo, não vou perguntar mesmo. Não
agora.
Laura: Não vou recusar a carona.
Laura: Mas eu quero saber o que aconteceu
com o pessoal.
E se Alexandre deu ordens para não me
contarem, não vou perguntar para Lavínia, Rodrigo
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ou Caio. Melhor aproveitar tudo o que Camila sabe


– o que nunca é pouca coisa – para só depois falar
com ele.
Camila: Estão aqui em BH.
Devia ter imaginado. Se bem que...
Laura: Mas e aquela história toda sobre se
afastarem da política e tudo mais?
Camila: Por agora, estamos mais seguros em
grandes números. E ter mostrado tudo para os
humanos mudou a dinâmica de poder aqui. Acho
que posso falar que nos deu um pouco mais de
liberdade.
O que quer dizer que as coisas estão melhores
para eles, mas que mesmo se estiverem
incomodados e preferirem o bando a como tudo
funciona aqui, é mais seguro ficarem juntos. Isso
não me surpreende. Desde a primeira vez que
entendi o que estava acontecendo no casarão, quem
eram aquelas pessoas, já sabia que ia dar confusão
quando se mostrassem para a humanidade. Por
enquanto, tudo está tranquilo, mas acho que boa
parte disso é porque todos ainda estão surpresos
com o que aconteceu. E o Outro Mundo soube
exatamente o que fazer para se apresentar. Ao redor
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do mundo todo, eles revelaram sua existência


salvando vidas e fazendo coisas que alguns jornais
chamaram de “heroicas”. Mesmo assim, com todos
os planos, Camila e Lavínia me pediram para ficar
em casa no “grande dia”, por via das dúvidas. E eu
obedeci, porque também estava imaginando que
alguma coisa ia dar muito errada. Não deu, mas por
quanto tempo isso vai durar? Uma hora os
problemas vão começar, então é melhor eles
ficarem juntos.
Laura: E Alexandre, também está aqui em BH?
Camila: Está.
Camila: Se você for aprontar alguma coisa, eu
quero saber.
Sorrio. Ah, ela vai ficar sabendo, sim.
Laura: Pode deixar. Até às nove?
Ela responde com um emoji vermelho de raiva e
eu rio. É bom deixar Camila curiosa, para variar.
Camila: Te busco às nove.
Coloco o celular no sofá, ao meu lado, e me
concentro no meu brigadeiro. Não acredito que vou
fazer isso, mas... Olho para a parede da sala e então
para o pôster enrolado e encostado na quina da

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parede. Já faz um bom tempo que a ilustração não


está mais dependurada ali – na verdade, só ficou
dois dias na parede. Tirei de lá porque estava
começando a pensar em “e se” demais, e agora criei
esse hábito maldito de ficar olhando para o pôster
enrolado. Nunca consegui guardá-lo, porque
sempre fico pensando que vou acabar pregando ele
no lugar de novo.
Quem é que eu estou tentando enganar? Quando
eu ainda estava pensando que Alexandre tinha sido
um babaca, ou então um idiota surperprotetor, era
diferente. Mas agora, depois de uns bons seis meses
que voltamos a conversar, que eu realmente entendi
o que aconteceu...
É loucura. Já ouvi histórias demais sobre dar
segunda chance para ex. Como é que falam
mesmo? Que voltar com ex é a mesma coisa que
comprar seu próprio carro usado – vem com os
mesmos problemas de antes e mais rodado? Mas
considerando os motivos que me fizeram ir embora
do casarão daquele jeito... Se os “problemas” de
antes são ele se preocupar comigo... Acho que
consigo viver com isso. Não consigo deixar de
pensar que vale a pena arriscar. Que a gente
poderia ter alguma coisa muito boa, se eu estiver
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disposta a tentar de novo.


Posso até estar sendo idiota, mas esse tempo
longe de Alexandre foi bom, no fim das contas.
Consegui esfriar a cabeça e realmente entender o
que aconteceu. Não sei se teria conseguido fazer
isso se tivéssemos conversado logo depois da
confusão toda. Acho que sempre ia ficar um resto
de desconfiança, sei lá. E esse um ano serviu para
eu organizar minha vida – correr atrás do que eu
queria, provar que consigo me virar e viver do que
amo fazer. Não tenho certeza de que as coisas iam
ter dado certo entre nós, de verdade, quando eu
ainda estava duvidando de mim mesma o tempo
todo.
E nesse um ano eu aprendi a correr atrás do que
quero.
Pego o celular de novo e seleciono o número de
Alexandre.
Laura: Show hoje, às dez horas. Quero
conversar com você.

···
A LEXANDRE
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ME APOIO NO PARAPEITO QUE CORRE AO REDOR DA


varanda e abro a mensagem no meu celular de
novo.
Laura: Show hoje, às dez horas. Quero
conversar com você.
Já faz horas desde que recebi isso, e não faço a
menor ideia do que esperar. É claro que eu vou. É
Laura. Por mais ridículo que isso pareça, é a
verdade. Mas não consigo nem interpretar o tom
dessa mensagem. Se esse “quero conversar com
você” é num bom sentido ou não. Sendo Laura,
realmente não tenho como saber.
Pelo menos é fácil saber show onde, já que ela
não falou. Mas nesses meses desde que voltamos a
conversar ela me contou casos o suficiente sobre as
vezes que foi para algum show ou evento no Matriz
com Camila. Só pode ser lá. E isso quer dizer que
ela sabe que estou em BH. Suspiro. Pode bem ser
esse o motivo para a mensagem. Eu dei ordens para
ninguém contar o que aconteceu no casarão,
porque... Não sei mais por que. Por que não era
seguro, mas isso é óbvio. Não. Eu não queria que
ela soubesse que eu estava aqui. Era melhor assim.
— Alexandre? — Daiane chama.
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Levanto a cabeça. Ela está parada no portão


baixo que dá para a minha casa, me encarando.
Quando evacuamos o casarão, o bando foi
forçado a se dissolver, pelo menos oficialmente. Eu
e os lobos viemos para a fazenda da matilha de
Ivan e estamos espalhados pelas casas menores na
propriedade. Depois de anos no casarão, nunca
teríamos paciência para ficar na casa principal,
junto com a maioria dos lobos que mora aqui. E
nesse tempo acabei me acostumando a ter lobos por
perto da minha casa o tempo todo, então não é
surpresa que não tenha ouvido Daiane se
aproximar.
Suspiro e estico o braço para acender a luz da
varanda. Ela também não precisa disso, mas é uma
forma de dizer que não me incomodo com ela vir
aqui.
— O que houve? — Pergunto.
Daiane sorri e dá de ombros, vindo se apoiar no
parapeito ao meu lado. Estreito os olhos. Isso não é
um bom sinal.
— Só queria saber se você precisa de carona.
— Se alguém for para BH mais tarde, não
recuso... — Paro de falar de uma vez. — Por que
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você está vindo oferecer carona?


O sorriso de Daiane fica ainda mais largo.
— Camila avisou que você provavelmente ia
precisar ir para BH hoje.
Solto o ar com força. Pelo menos já sei como
Laura ficou sabendo que estamos aqui. Achei que
Ivan tinha proibido Camila de contar para ela,
também, mas posso ter entendido errado. E se
Camila falou isso para Daiane...
Rosno e guardo o celular no bolso.
— Com quem mais Camila já falou?
— Acho que você vai descobrir quando
chegarmos no Matriz, não é? — Daiane ri. —
Saímos nove e meia. Sem atrasos.
Reviro os olhos quando ela se afasta sem
esperar resposta. Aposto qualquer coisa que se eu
atrasar eles vão esperar, porque vou ser o
entretenimento da noite. Era só o que me faltava.
Não que isso seja uma surpresa: é o normal do
casarão, especialmente quando o assunto é Laura e
eu. Já faz um ano que eles estão esperando para
saber o que vai acontecer, então não vou falar nada,
não importa quantas pessoas resolvam ir para o tal
show hoje.
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Depois que Laura foi embora do casarão, uma


das coisas que mais ouvi foram as perguntas sobre
por que eu não ia atrás dela. Minha primeira
resposta foi óbvia: não era seguro e ela continuaria
correndo risco se decidisse voltar. Mas Laura já
sabia o que estava em jogo, não ia voltar para
Monte das Pedras e muito menos para o casarão.
Eu podia ter ido atrás dela, tentado me explicar e
me desculpar pelo que fiz. A questão é que ela
deixou claro que não queria isso, naquele dia
depois da despedida de Paula. Laura deixou claro
que não tinha mais nada a falar comigo. Então eu
não ia insistir. Ela já teve um babaca na sua vida,
não precisa de mais um cara que não sabe aceitar
um “não”, como seu ex. Então... Não fiz nada.
Deixei ela ir.
Se Laura tivesse me dado meio sinal de que
havia uma chance, teria ido atrás dela.
Tiro o celular do bolso de novo. Nove horas. É
claro que Daiane ia vir falar comigo perto do
horário que decidiram sair. Era uma forma de ter
certeza de que eu não teria tempo para atrapalhar os
planos deles – mesmo que proibisse Daiane de ir,
não teria como repassar a ordem para os outros. E
ainda era cedo o bastante para terem certeza de que
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eu estaria em casa. A essa hora da noite, não


demoraria mais que meia hora para chegar no
Matriz, indo de carro.
Apago a luz da varanda. Só mais uma hora.

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C A P Í T U L O Q U A R E N TA E DOIS

A LEXANDRE
O MATRIZ É UM DAQUELES LUGARES QUE SE VOCÊ NÃO
estiver procurando por ele, não vai nem ver. Pelo
menos eu não teria notado a entrada se estivesse
passando na avenida. Ou melhor, não teria notado
em um dia que não tivesse nenhum evento aqui,
porque o passeio está cheio de pessoas de preto.
Até pensei em olhar quem vai tocar aqui hoje, mas
acabei desistindo. Ia vir de qualquer forma e saber
que é um show no Matriz que Camila convidou
Laura para vir já é o suficiente: ou é metal, ou é
gótico, possivelmente uma mistura dos dois.
Espero o segurança na porta conferir minha
identidade e entro, olhando ao redor. Não é um
espaço muito grande – parece ser mais ou menos do
tamanho da área superior do bar em Monte das

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Pedras, com mesas e cadeiras espalhadas, uma boa


parte já ocupadas, e o balcão do bar na parede
oposta à entrada. Não entendo como vão fazer um
show aqui... Tem um corredor na lateral esquerda,
que dá em uma porta fechada. Provavelmente um
segundo ambiente, então, onde acontecem os shows
propriamente ditos.
Eu espero que Daiane e os outros tenham
pensado no tamanho desse lugar e no que vai
acontecer se esse show encher antes de decidirem
vir. Metamorfos em lugares cheios sempre têm
problemas para se controlar. Pelo menos, é o que
sempre vi falarem. Sempre evitei qualquer lugar
com muitas pessoas ou muito barulho, por
segurança. Não podia correr riscos. Mas se Laura
vai estar aqui, não preciso me preocupar com isso.
Resisto à vontade de respirar fundo. Fazer isso
aqui não vai ser uma boa ideia, mesmo que ainda
não tenha tanta gente. Olho ao redor de novo. Laura
falou dez horas e já são quase dez e quinze – culpa
de Caio, que resolveu parar para comprar bebida.
Ela provavelmente já está aqui. Agora é só
conseguir achá-la... Três pessoas se afastam do
balcão do bar e me deixam ver uma mulher de
cabelo branco de costas para nós. Camila. Isso quer
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dizer que Laura provavelmente está por perto. Vou


na direção dela.
— ... te vi beber assim — Camila está falando
quando me aproximo.
Não escuto uma resposta, mas agora estou
vendo Laura. Ela está meio escondida atrás de
Camila, sentada em um dos bancos e apoiada no
balcão. E acabou de abaixar um copo de alguma
bebida que não reconheço pela cor e
definitivamente não vou tentar reconhecer pelo
cheiro. Não em um lugar cheio assim.
— Desculpe o atraso, Caio resolveu comprar
bebida — falo.
As duas se viram para mim de uma vez. Pelo
visto Camila está bem acostumada a ignorar seus
sentidos aqui dentro, se não percebeu quando me
aproximei.
— Caio... — Laura começa e olha para Camila.
— O que foi que você fez?
Camila levanta as sobrancelhas e sorri.
— Eu? Nada.
Cruzo os braços. Laura estreita os olhos.
— Camila! — Daiane grita, ainda perto da porta
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Laura solta o ar de uma vez.


— Eu não acredito!
Camila ri e se afasta do balcão depressa, indo na
direção da Daiane.
— Eu vou matar ela — Laura resmunga.
Me apoio no balcão, onde Camila estava antes.
— Qual delas?
Laura bufa, pega o copo de novo e o coloca de
volta no balcão quando vê que está vazio.
Não pensei que ia ser tão estranho. Odeio essa
sensação de não saber o que dizer nem o que fazer.
É só... Pensei que não fosse ver Laura de novo, e
aqui estamos. E eu só consigo ficar olhando para
ela, reparando nas pequenas mudanças. Laura está
com o olhar mais leve, agora, sem aquele resto de
preocupação de quando estava no casarão. E ela fez
alguma coisa no cabelo. Não sei o quê, mas está
diferente.
Ela suspira e passa um dedo na boca do copo
vazio.
— Você veio.
— Eu falei que vinha.
Laura dá de ombros, ainda olhando para o copo.
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— Não tinha certeza. Depois de um ano... —


Ela dá de ombros de novo.
Um ano desde que ela foi embora do casarão.
Como se fosse fazer alguma diferença. Suspiro.
Laura é... É Laura. Não acho que algum dia eu vou
conseguir me esquecer dela e daqueles tempo que
passamos no casarão.
Não respondo e ela também não fala mais nada,
só fica passando o dedo pelo copo. Eu vou acabar
puxando esse copo, só para ver se assim ela olha
para mim de novo. Quero acreditar que esse
comentário sobre tempo é uma indicação de o que
ela quer conversar – se fosse só para reclamar sobre
eu ter proibido o pessoal de contar o que aconteceu,
ela não teria falado isso.
Laura se vira para mim de uma vez e para.
— O quê... — começo.
Ela balança a cabeça.
— O que aconteceu? Você está magro.
É claro que Laura ia reparar. Suspiro. Esse um
ano cobrou seu preço. Não parei para ver
exatamente o quanto eu emagreci, mas sei que não
me recuperei por completo de nenhuma das últimas
luas cheias.
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— A lua cheia. Eles acharam um jeito.


— Isso eu sei.
Levanto uma sobrancelha e Laura desvia o
olhar.
— Perguntei sobre isso para Lavínia pouco
depois que vim para BH. Antes da primeira lua
cheia. Se não tivessem dado um jeito, eu teria
voltado.
Engulo em seco. Não fazia ideia disso. Mesmo
depois de tudo, ela teria voltado.
— Eu não teria deixado.
Teria me entregado para os bruxos antes de
deixar ela se prender a mim desse jeito. Não era
justo.
Ela solta o ar de uma vez e balança a cabeça,
ainda encarando o balcão.
— Então... Acharam um jeito?
Assinto.
— Você se lembra de Nádia? Ela consegue me
prender. Não é fácil, mas funciona.
Mesmo que me deixe mais esgotado que
qualquer coisa. Não preciso me lembrar do que o
lobisomem faz para entender o que acontece depois
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que me transformo. O que Nádia faz é me prender


em um espaço vazio fora desse plano, e não é uma
área muito grande. Pela forma como sempre estou
exausto e dolorido quando me transformo de novo,
é óbvio que o lobisomem passa a maior parte do
tempo se jogando contra as paredes desse espaço e
tentando escapar.
Laura olha para mim de novo. Faço um esforço
para não me virar para qualquer outro lado,
enquanto ela me encara quase como se estivesse
procurando alguma coisa na minha expressão.
— Por que não me chamaram? — Ela pergunta.
Suspiro.
— Você não queria ficar no casarão.
Ela estreita os olhos, ainda me encarando. Isso é
novo. Essa certeza no olhar dela, isso não existia
quando ela ainda estava no casarão.
— Já faz um ano, Alexandre. Alguém podia ter
falado isso em qualquer momento nos últimos
meses, que fosse. Você poderia ter falado.
Balanço a cabeça. Para quê? Para Laura
aparecer só para ajudar? Por causa de algum tipo de
obrigação? Não. Eu não queria isso.

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Ela grunhe alguma coisa baixo demais para eu


entender, com o barulho do bar ao nosso redor, e se
vira para pedir uma cerveja. Continuo sem falar
nada, só encarando seu perfil. Não vou interpretar
nada demais no que ela falou. Não posso fazer isso.
Mesmo que... Por que ela se importaria?
Laura pega a long neck que colocam na frente
dela e dá um gole, antes de respirar fundo e se virar
para mim.
— Por que não falou nada?
Balanço a cabeça.
— Eu podia ter ajudado!
Não olho ao redor, mas sei que umas tantas
pessoas se viraram para nós. E se o pessoal do
casarão que está aqui por algum milagre não
estivesse tentando ouvir cada palavra nossa, agora
estão.
Laura pega sua cerveja e se levanta, ao mesmo
tempo em que segura meu pulso e me puxa para
uma das mesas perto da parede, na parte mais
escura do espaço. Ela se senta sem falar nada e faço
a mesma coisa, antes de suspirar.
— Você ia morrer se tivesse ficado no casarão.

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Ela olha para mim e balança a cabeça. De


repente nem parece que ela estava praticamente
gritando alguns segundos atrás.
— Eu sei.
Respiro fundo e olho ao redor. Tenho a
impressão de que ela está me medindo, pesando
cada resposta, e pela forma como ela se acalmou do
nada... Não sei se falei algo muito certo ou muito
errado.
— Vamos logo com isso — Rodrigo fala alto o
suficiente para eu ouvir, mesmo que esteja tentando
ignorar a barulheira ao nosso redor.
Me viro na direção de onde ele está, com Caio,
Daiane e Camila. É claro que tinham que ser eles
aqui. Óbvio.
Laura olha para eles e estreita os olhos. Camila
ri. Laura mostra o dedo do meio para ela. Bom que
ela não precisa ouvir para ter certeza que fizeram
algum comentário.
— Se vocês continuarem dando palpite onde
não devem, vão se entender comigo depois — falo.
Camila ri mais alto ainda, mas puxa os outros
para o corredor que notei mais cedo. Não que isso
vá fazer alguma diferença. Se eles fizerem um
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esforço, vão continuar conseguindo nos ouvir.


— Se fosse para ter plateia, eu tinha chamado
minha irmã e Bruna — Laura resmunga e toma
mais um gole de cerveja.
E isso é um assunto seguro, eu acho. Me lembro
da irmã dela e se não me engano Bruna é a amiga
que trabalhava na papelaria.
— Elas estão em BH?
— Bruna ainda está em Monte das Pedras, mas
de vez em quando aparece aqui. Marina está aqui,
conseguiu passar na UFMG.
O que a irmã dela queria fazer mesmo?
— Veterinária?
Ela assente.
— Minha mãe ainda está puta por ela ter
resolvido vir para BH, mas não tinha como proibir.
— Como assim?
Laura sorri.
— A lista dos aprovados sai no jornal. Óbvio
que boa parte da cidade viu e já estava dando
parabéns para Marina e para minha mãe. Não tinha
como ela proibir Marina de vir para BH depois
disso.
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Balanço a cabeça, sorrindo. Faz sentido, pelo


que Laura me contou sobre como a mãe dela se
preocupa com o que todo mundo vai pensar.
— Onde ela está morando? — Pergunto.
Não é com Laura, isso eu tenho certeza, senão
ela já teria mencionado a irmã antes.
— Arrumou uma república no centro. Morar
comigo ia ser mais perto, mas aí ela não ia ter como
evitar a briga e duvido que minha mãe fosse dar um
centavo para ela estudar, se fizesse isso. — Ela dá
de ombros e toma mais um gole de cerveja.
— E você falou que teria chamado as duas...?
— Porque as duas me fizeram contar todos os
detalhes do que aconteceu enquanto eu estava no
casarão depois que o Outro Mundo se revelou.
Pisco e balanço a cabeça devagar. Deveria ter
esperado alguma coisa assim, mas por algum
motivo nem pensei que ela teria contado tudo para
alguém, agora que pode.
— Bruna me deu carona até o condomínio,
naquela noite. Ela já sabia que tinha alguma coisa
estranha na história toda. E Marina me conhece. —
Ela dá de ombros de novo. — Além disso, tive que
contar algumas coisas para o meu pai também,
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coitado. Ele ainda estava com medo de você.


— Eu... — começo.
Ela balança a mão que está segurando a cerveja.
— Era necessário e etecetera, eu sei, não precisa
repetir.
Laura se vira para encarar a entrada do corredor.
Uma boa parte das pessoas que estavam perto do
bar ou nas mesas está indo para lá e o barulho que
eu estava tentando ignorar parou. Acho que era a
banda passando o som. Pelo menos, é a única coisa
que faz sentido.
— Finalmente — Laura murmura.
— Finalmente o quê?
— Vamos ter sossego.
Olho para o pessoal entrando no corredor de
novo, antes de me virar para ela. Então o assunto
todo sobre sua irmã foi por isso.
— Acha que conversar qualquer coisa aleatória
vai fazer eles perderem o interesse?
Ela toma mais um gole da cerveja.
— Não. Mas dá tempo para a banda começar a
tocar. Já terminaram de passar o som. — Ela
gesticula de qualquer jeito na direção da parede
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atrás do bar. — Aí eu garanto que não vão ouvir


nada.
— Sem graça! — Daiane resmunga.
Não faço a menor ideia de onde eles estão
sentados, mas não é nenhuma surpresa ela
responder.
— Alguém respondeu, não é? — Laura
pergunta.
Assinto.
— Daiane. E você parece até bem acostumada
com isso.
— Um ano vindo aqui com Camila e Felipe.
Bem acostumada.
Camila ri.
— Intimidade é uma bosta — Laura resmunga.
É a minha vez de rir.
Ela não fala mais nada enquanto as pessoas vão
saindo da área do bar. Espero até que uma música
instrumental começa a tocar, provavelmente uma
introdução... E não deveria ser uma surpresa
perceber que já ouvi isso antes. Alguém ouvia essa
banda no casarão, mas não vou conseguir
reconhecer qual é agora. As poucas pessoas que
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ainda estão aqui pegam suas bebidas e quase


correm para a outra área, até que sobra só mais uma
mesa ocupada, além da nossa. Cheguei a pensar
que Daiane e os outros iam ficar por aqui, mas não.
E se eles foram assistir o show, realmente não tem
chance de nos ouvirem.
Me viro para Laura.
— O que você realmente queria conversar?
Ela suspira e me encara, daquele jeito estranho
de novo.
— Quero respostas. Ter certeza de que entendi o
que aconteceu.
Assinto devagar. Isso não é o que eu esperava.
Não sei se quero pensar em tudo o que aconteceu
ou por que tomei as decisões que tomei, mas...
Depois de tudo, se Laura quer respostas, está no seu
direito.
Ela respira fundo.
— Por que proibiu de me contarem o que
aconteceu?
Sabia que ia chegar nisso, mas não esperava que
fosse sua primeira pergunta.
— Não queria que você se envolvesse mais com
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o que estava acontecendo. Era mais seguro se


ficasse longe, e você ia querer fazer alguma coisa.
Laura assente e tenho a impressão de que falei
exatamente o que ela esperava. Só não sei se isso é
bom ou ruim.
— E no casarão... Eu sei o que consegui captar
da sua mente aquele dia, mais ou menos, mas
mesmo assim... Por quê?
— Lílian ligou. Ela avisou que se ficasse no
casarão, você ia morrer. Fiz o que precisava.
E continuo não me arrependendo disso – fiz o
que precisava, tanto que Laura está na minha frente
agora.
Ela suspira.
— Você ainda não percebeu? Lílian estava
contando com isso. Ela sabia que você ia entrar em
pânico.
Encaro Laura por um instante e balanço a
cabeça.
— Como...?
— Ela admitiu isso para mim. Foi assim que
fiquei sabendo o que aconteceu no casarão e que
vocês estavam aqui.
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— Eu odeio videntes — resmungo.


— Concordo plenamente.
Ela continua me encarando. Mas se ela falou
com Lílian...
— Então você sabe — falo.
Laura balança a cabeça.
— Quero ouvir de você. Quero os seus motivos,
não os de Lílian.
Suspiro. Pelo menos essa resposta é fácil.
— Eu não podia deixar você morrer. Só isso.
Qualquer outra coisa... Não importava, desde que
você sobrevivesse.

···
L AURA
ENTÃO EU REALMENTE ENTENDI CERTO.
Suspiro. Dói ver Alexandre assim. Ele
emagreceu muito, e já não tinha onde emagrecer,
antes. Tem um cansaço na sua expressão que é
novo e que não desapareceu em momento nenhum
até agora. Nem quando ele estava rindo. E o pior é
que eu poderia ter evitado isso. Mesmo que não
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enquanto ele ainda estava no casarão, porque


entendo a coisa toda sobre minha vida estar em
risco, mas depois que eles já estavam em BH,
custava ter falado alguma coisa? Sei lá, se ele não
tivesse proibido os outros de me contarem, Lavínia
podia ter soltado um “então, a gente achou um jeito
para manter Alexandre seguro quando se
transforma, mas está meio complicado, será que
você pode quebrar um galho?” Argh. Será que
alguém pensou que eu recusaria?
E se eu ainda tivesse alguma dúvida sobre o que
fazer, essa minha reação ia servir para acabar com
ela.
Estico a mão na direção de Alexandre e ele
segura meu pulso logo antes de eu encostar no seu
rosto. Sustento seu olhar. Isso não é novo, e o que
estou vendo na sua expressão também não. Sorrio.
Já ficamos assim, antes, no começo disso tudo.
— O que você quer, Laura?
— Uma segunda chance. Começar de novo,
dessa vez sem os problemas todos e ver até onde
isso vai, de verdade — falo.
Alexandre respira fundo e solta minha mão.
Solto o ar quando meus dedos encostam na sua
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pele. De certa forma, isso é uma resposta. E não


vou negar que estou aliviada: já faz um ano. Não ia
julgar se ele tivesse soltado um “bola para a
frente”. Mas se ele ainda está me encarando desse
jeito, parecendo que não sabe como responder ou
reagir enquanto acompanho as linhas das suas
cicatrizes com os dedos...
— Mas dessa vez vai ser diferente — continuo,
ainda olhando nos seus olhos. — Sem pânico. Sem
“fazer o que precisa fazer independente do custo”.
A gente conversa. Não foi isso que você falou, uma
vez?
Ele fecha os olhos por um instante e suspira.
Sorrio. Ótima hora para me lembrar desse detalhe.
— Se acontecer alguma coisa... — ele começa.
— A gente conversa. Eu não sou idiota. Não
vou ignorar um aviso e muito menos uma previsão
de Lílian.
Alexandre segura minha outra mão e entrelaça
nossos dedos antes de voltar a me encarar.
— Vai ser um risco para você. Isso ainda não
terminou. Nós vamos ter problemas com a
humanidade.
É óbvio que vão. E eu vou estar em risco de
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qualquer forma, porque não vou virar as costas para


os meus amigos.
— Eu sei, e estou disposta a correr o risco. —
Suspiro. — Se isso for um “não”, fale de uma vez.
Mas se não for, pare de tentar me proteger a
qualquer custo. Não é assim que as coisas
funcionam. E alguns riscos valem a pena.
Ele balança a cabeça.
— Não é um não. É só... — ele para e balança a
cabeça de novo.
Homem complicado. Não que seja difícil
entender o raciocínio dele, agora. Conheço
Alexandre bem o bastante para imaginar o que está
passando na sua cabeça, considerando seu passado.
— Eu não vou desaparecer e você não vai me
perder. Além disso, Lílian falou que você merecia
que alguma coisa desse certo. Acho que isso quer
dizer que aquela ameaça de antes já acabou.
Alexandre respira fundo.
— Você sabe que se ela te falou isso, foi com
uma segunda intenção, não é?
Reviro os olhos.
— Lílian bancando o cupido? Segundas,
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terceiras e quartas intenções, provavelmente. Não


preciso conhecer ela direito para saber.
— Então...
— Então não importa. No fim das contas a
decisão ainda é nossa.
Ele me encara por mais um instante e dá um
sorriso lento. Pela primeira vez desde que ele
chegou, aquele cansaço no seu olhar quase
desaparece.
— Se tem certeza... Não sei se você ter vindo
para essa mesa foi uma ótima ou péssima ideia.
Levanto as sobrancelhas.
— Se a mesa não estivesse no caminho, eu já ia
ter te puxado — ele explica.
Sorrio. Olhando por esse lado...
— Então foi uma péssima ideia.
— Ou ótima, porque não sei se vou conseguir
parar depois de um beijo.
Engulo em seco e um arrepio me atravessa.
Senti falta desse olhar.
Passo a língua pelos lábios.
— Sabe, não estou fazendo muita questão de
assistir esse show — falo. — E minha casa nem
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fica tão longe.


Alexandre já está de pé e parado atrás de mim
antes de eu terminar de falar. Rio e me levanto, já
procurando minha comanda na bolsa enquanto ele
me puxa na direção da saída.
A vantagem de ir embora cedo e quando a banda
está tocando é que não tem fila para pagar. E isso é
melhor ainda, porque agora estou com pressa.
Tenho um ano de atraso para tirar.
— Não podemos só desaparecer assim... —
Alexandre comenta assim que termino de pegar.
Assinto. Não vou sumir sem falar nada. Pego
meu celular e seleciono o número de Camila.
Laura: Estamos indo para casa.
Jogo o celular dentro da bolsa de novo. Ela vai
avisar os outros e não vou esperar uma resposta –
até porque não sei quando ela vai ver o celular. Mas
sei que Camila vai reclamar por eu estar indo
embora cedo, porque ela só consegue virar a noite
nos eventos quando estou com ela para “acalmar
sua loba”.
— Pronto.
Alexandre segura minha mão e me puxa para

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fora do Matriz.

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EPÍLOGO

L AURA
Sete anos depois
OLHO PARA O MONITOR NO ENCOSTO DA CADEIRA NA
minha frente. Tenho certeza de que ele está
mostrando um mapa, mas não consigo ver detalhes
de nada, só cores borradas. Me viro para
Alexandre, sentado ao meu lado, e estreito os olhos.
Ele sorri de forma convencida, levantando as
sobrancelhas. Argh.
Quando Alexandre disse que ia me dar uma
viagem de presente e que era uma surpresa, achei
que fosse ser igual às outras. Não foi a primeira vez
que ele perguntou se eu podia tirar uma semana de
folga em um mês ou outro, porque queria me levar
para conhecer algum lugar. Nesses sete anos juntos,
viajamos mais do que eu imaginei que fosse viajar
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na minha vida toda. E ele sabe que quase morro de


curiosidade quando pergunto para onde vamos e ele
solta um “surpresa”. Pelo menos das outras vezes
eu descobri para onde estava indo quando fomos
pegar ônibus ou avião. Mas dessa vez...
Realmente não pensei que fosse nada de
diferente quando Ryan e Bárbara apareceram na
nossa casa. Bárbara nunca tinha nos visitado antes,
mas não era estranho alguém do pessoal do casarão
passar por lá. Mesmo que o bando não exista mais,
todo mundo manteve contato. Mas dessa vez eles
estavam ali porque Alexandre não queria que eu
soubesse para onde estávamos indo até chegarmos
lá.
Juro que achei que era brincadeira. Ou que não
ia funcionar. Mas funcionou. Droga.
Esses anos serviram para eu aprender bastante
sobre os poderes do Outro Mundo. Os bruxos
conseguem afetar o corpo humano e objetos
inanimados, de acordo com sua especialidade.
Alguns, trabalhando em grandes grupos,
conseguem afetar o meio ambiente. E foi
justamente por isso que Alexandre pediu Ryan para
conversar com os outros fey e ver se alguém podia

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fazer esse favor para ele, ao invés de pedir um dos


bruxos. Alguns fey conseguem afetar o ambiente de
uma forma que até hoje não entendi direito. E, de
acordo com Alexandre, ia ser mais fácil controlar
os sons e imagens ao meu redor do que forçar meu
corpo a não ouvir ou ver o que ele queria.
O resultado? Desde que chegamos no aeroporto
eu estou vendo coisas borradas e ouvindo zumbidos
sempre que aparece alguma informação sobre para
onde vamos ou alguém fala sobre a viagem por
perto. Não consigo nem ver as horas na tela que
está na minha frente. A única coisa que sei é que
estamos em um voo internacional. Não tinha como
esconderem a sala VIP onde esperamos o
embarque, nem o tipo de avião onde estamos – tem
monitores pregados no encosto das cadeiras, pelo
amor de Deus! – nem o tempo que faz desde que
decolamos. Mesmo que eu não consiga saber
exatamente quanto tempo. Mas, fora isso, não
consegui ouvir nem ver nada.
— Te odeio — resmungo, cruzando os braços.
Alexandre ri em voz baixa e se vira para mim,
segurando minha mão.
— Controle esse ódio que já estamos chegando.
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— Chegando onde?
Ele só ri ainda mais. Não que eu tenha pensado
que ele ia responder, mas não custa ter esperança. É
a primeira vez que viajamos para tão longe assim.
Das outras vezes, mesmo quando fomos para algum
lugar que não dava para chegar de ônibus, sempre
foi algo mais perto. Era arriscado demais ir para
onde não tínhamos como pedir ajuda caso o pior
acontecesse.
Por dois anos depois que o Outro Mundo se
revelou, tudo continuou bem. Cheguei a pensar que
ia dar certo, que não teríamos problemas, porque
todos estavam deslumbrados com os seres
sobrenaturais. Mesmo assim, eu insisti com
Alexandre para ele continuar se passando por
humano o máximo de tempo que podia. Levando
em conta os motivos que eles tiveram para se
mostrar, eu não conseguia acreditar no que estava
acontecendo. E estava certa, no fim das contas.
Depois de dois anos os ataques começaram, sutis.
Aquela propaganda negativa, tentando mudar a
opinião das pessoas sobre o seres do Outro Mundo.
E daí para pior.
Três anos depois de se mostrarem, o Outro

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Mundo voltou a se esconder. Se bem que esconder


não é a palavra certa. Eles simplesmente recuaram
para seus territórios. Era mais seguro, porque
começou uma verdadeira caça às bruxas. Cheguei a
ouvir alguns fey dizerem que a primeira caça às
bruxas foi isso também – o Outro Mundo tentando
se revelar – e, depois de ver o que aconteceu aqui...
Não duvido. Enquanto pudemos, Alexandre e eu
continuamos em BH, por causa de Camila. Ela
tinha ordens de Lílian para se passar por humana
até tudo terminar, o que queria dizer anos sem se
transformar, ou se transformando só dentro do
apartamento. Estar perto de mim a ajudava a
manter o controle. Mas, no fim das contas,
acabamos indo para a propriedade da matilha de
Ivan. Ela estava cercada com mais proteções que
consigo me lembrar e nenhum humano que não
fosse convidado conseguia entrar lá.
Isso durou cerca de um ano, até o Outro Mundo
se organizar e decidir até onde estavam dispostos a
ir. Eu já tinha aprendido que os contos de fadas
mais próximos da verdade eram os mais
sanguinários e violentos, mas a maior parte da
humanidade ainda pensava nas versões modernas
dos contos de fadas ou nos romances que até hoje
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gosto de ler. Quando viram a verdade, mesmo que


parte dela...
Não digo que foi uma guerra. Mas foi um banho
de sangue, dos dois lados. E foi preciso meses até
humanidade e Outro Mundo decidirem negociar.
Chegaram a me convidar para ser uma das
negociadoras do Outro Mundo – eles pensaram que
pedir os humanos que estavam ao seu lado para
participarem dos debates seria melhor. Eu fui, mas
só como uma de vários representantes. Quem se
tornou o porta-voz do Outro Mundo na nossa
região foi um amigo de Camila e Felipe, que
dividia o apartamento com eles e que também é
humano.
E agora faz quase dois anos desde que os
acordos entre a humanidade e o Outro Mundo
foram feitos. Não vou dizer que tudo está perfeito –
não está. Mas a caça às bruxas terminou. O Outro
Mundo parou os ataques e não está mais preso nos
seus complexos. É um começo, pelo menos. Ainda
me lembro de Ryan me contando sobre quando o
Outro Mundo e a humanidade viviam juntos e da
imagem que tive a impressão de ver: luzes fortes e
azuladas, ruas de pedra, edifícios altos de algum
tipo de arquitetura estranha, com símbolos
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dourados pintados pela parede, enquanto humanos


e fey trabalhavam juntos em uma oficina... Não sei
se existe a menor chance de ver algo assim um dia,
mas vou manter a esperança.
Ou seja, com toda essa confusão, nós nunca
viajamos para longe. Era arriscado demais. Foi o
mesmo motivo para não termos nos casado
oficialmente: arriscado demais, caso alguma coisa
desse errado. Alexandre não quer me colocar em
risco e, no fim das contas, eu prefiro ter uma vida
com ele, mesmo que sem um casamento, do que
insistir nisso e acabar morrendo se a humanidade e
o Outro Mundo começarem a lutar de novo.
Se bem que agora tudo está mudando. Quem
sabe...?
— Vai me falar pelo menos quanto tempo de
voo? — Pergunto.
Alexandre continua sorrindo enquanto balança a
cabeça. Certo. Tenho certeza que já se passaram
mais de oito horas. Nós jantamos no avião, eu já
tirei um bom cochilo, já amanheceu e já nos
ofereceram café da manhã. Para onde ele pode estar
me levando que seja tão longe assim? Nenhuma das
viagens que fizemos foi por acaso, todas tinham
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alguma coisa que um de nós queria muito conhecer.


Não consigo pensar em nada que...
Ah, não.
— Se você estiver me levando para a Nova
Zelândia, eu vou te bater.
Alexandre ri tão alto que algumas pessoas se
viram para nós. Mau humor de viagem? Uma
pessoa não pode nem rir que têm que olhar com
cara de bosta? Mas não ficam encarando por muito
tempo. Quer dizer, não descaradamente. Alexandre
não está mais se passando por humano e qualquer
um consegue notar que tem algo de diferente nele.
É como aquela aura de violência contida que me
assustava, quando nos conhecemos.
— O dia que eu te levar para a Nova Zelândia,
vai ser para passar pelo menos um mês lá — ele
fala, ainda sorrindo.
E nós só vamos ficar uma semana aqui. Onde
quer que aqui seja. Argh.
Olho pela janela, não que isso adiante alguma
coisa. Só consigo ver o mar. Tenho a leve
impressão de que mesmo se ainda estivéssemos
sobrevoando o Brasil, eu ia ver só o mar.
— Relaxe, você vai gostar — Alexandre fala e
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aperta minha mão.


Resmungo alguma coisa em resposta, ainda
olhando pela janela, e escuto sua risada baixa.
Não tenho a menor dúvida de que vou gostar. E
é justamente por isso que estou tão curiosa.

···
SAÍMOS DO AVIÃO DIRETO PARA A FILA DA IMIGRAÇÃO.
Solto um suspiro assim que calculo mentalmente o
tempo que vamos ter que esperar. Odeio isso. E
espero que Alexandre tenha separado meus
documentos direitinho, porque eu não fazia nem
ideia de que íamos fazer uma viagem internacional.
E também espero que ele tenha preenchido o tal
formulário que entregaram dentro do avião direito.
Ele não me deixou nem ver o que estava nele. Não
que eu ache que fosse conseguir ler qualquer coisa
que me desse uma dica de onde estamos.
Alexandre entrelaça os dedos com os meus e me
puxa para o lado. Tem mais três balcões da
imigração, mas um eu sei que é para quem tem
visto e outro para quem está viajando de primeira
classe ou algo assim. Ele me puxa para o outro, o
que está sem fila. Tá. Não vou discutir.
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Não consigo nem entender o que eles estão


falando enquanto Alexandre entrega os formulários
para a mulher sentada ali e pega nossos
documentos. Até diria que é porque estão falando
em outra língua, mas o zumbido no meu ouvido
deixa claro que é por causa do que Bárbara fez.
Argh.
A mulher assente, devolvendo os passaportes.
Nem tento olhar, não vai adiantar.
Alexandre me leva por outro caminho, direto
para onde temos que pegar as malas. Espera, foi só
aquilo na imigração? Nenhuma pergunta, nada
sobre intenções, quanto tempo vamos ficar e coisa
do tipo? Abro a boca para perguntar, mas
Alexandre está com aquele sorrisinho convencido
no rosto. Argh. Ele planejou isso tudo, certo. Não
vai adiantar perguntar. Só quero saber como ele
conseguiu nos passar tão depressa pela imigração.
E sem filas.
As áreas de retirada de malas sempre parecem
ser escuras. Não sei porque, mas sempre tenho essa
impressão. Aqui não é diferente, mesmo que seja
um espaço grande e bem iluminado. E cheio.
Espero enquanto Alexandre procura nas televisões

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gigantes em qual esteira estão saindo as malas do


nosso voo. Não vou conseguir ler: tem o nome de
onde estamos nos monitores.
Quase meia hora depois, finalmente saímos. A
área de desembarque está cheia – na verdade, tudo
até agora estava cheio e a impressão que eu tenho é
que esse é o maior aeroporto por onde já passei. E
não consigo ouvir praticamente nada sem o
zumbido maldito. Se bem que isso é uma dica de
onde estamos. A única outra língua que sei o
suficiente para entender tanto assim é inglês. Então
só preciso fazer a lista de países de língua
portuguesa ou inglesa e pronto, já tenho uma ideia
de onde estou.
Suspiro. É mais fácil esperar chegarmos e
Alexandre usar o amuleto que Bárbara deu para ele,
para desfazer essa coisa.
Passamos pelo meio das pessoas esperando e
vamos para a saída do aeroporto. Já estamos quase
na porta quando tenho a impressão de ver alguém
que conheço e me viro de uma vez. Nádia está
vindo na nossa direção.
Alexandre sorri e para, também. Ela é outra
pessoa que aparece com uma certa frequência na
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nossa casa. Depois do tempo que ela passou


mantendo Alexandre preso na lua cheia, eles se
tornaram amigos. Só queria entender como ela
consegue praticamente se teletransportar de um
lugar para o outro, já que todo mundo diz que
ninguém do Outro Mundo tem algum poder desse
tipo.
— Por favor, me diga que está aqui para nos
buscar, e não porque escapamos de alguma coisa
que não deveríamos com essa viagem — Alexandre
fala.
Nádia ri.
— Se tivesses escapado de alguma coisa, não
me veriam a chegar.. — Ela balança a cabeça,
sorrindo. — Como eu já estava na região, pediram-
me para vos vir buscar. É mais fácil assim.
Levanto as sobrancelhas, olhando de um para o
outro. Eu entendi o que falaram, mas não fez o
menor sentido.
Alexandre ri e passa um braço ao redor da
minha cintura, me puxando para mais perto.
— Não adianta perguntar, curiosa.
— Droga — resmungo.

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Nádia balança a cabeça antes de olhar para trás e


gesticular para a acompanharmos. Vamos para um
corredor lateral que eu tenho a leve impressão de
que é uma área de acesso restrito e não deveríamos
estar aqui.
— Alexandre, vais ter que segurá-la — ela
avisa. — Laura, não te soltes. O que eu vou fazer é
seguro para o Outro Mundo, mas para uma humana
sozinha, nem tanto.
Assinto, ao mesmo tempo em que Alexandre me
puxa até eu estar de frente para ele e me abraça
com força. Passo os braços ao redor do seu
pescoço. Nádia assente e para atrás de nós,
colocando uma mão no braço de Alexandre.
O corredor ao nosso redor desaparece. Ao invés
disso estou no meio do nada, mas o nada tem uma
cor azulada que me faz lembrar daquele dia, de
quando Ryan apareceu. Afundo a cabeça no
pescoço de Alexandre quando o cheio de
crisântemos e lírios fica forte por um instante, antes
de desaparecer. É a mesma coisa daquela noite, de
quando seu Antônio... Engulo em seco. Faz anos
que nem penso nisso. Mas é o mesmo cheiro que
senti antes de Ryan aparecer, as mesmas cores que

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vi ao redor dele.
O azul desaparece. Estamos em uma sala escura,
mas consigo ver a silhueta de um sofá e acho que
uma estante. Continuo me segurando em Alexandre
enquanto Nádia se afasta. Alguns segundos depois,
ela acende a luz.
— E isto é o mais perto que vos posso trazer.
Mais perto? Dou um passo atrás quando
Alexandre me solta. Nós não ficamos nem dois
minutos dentro daquela coisa azul. Se era tão perto
assim... Não. A coisa azul é a forma estranha de
Nádia viajar, o quase teletransporte que eu nunca
entendi.
— Obrigado — Alexandre fala.
Olho ao redor. A sala não tem nada além do
sofá, da estante cheia de livros e DVDs e de uma
TV gigantesca embutida na parede. Uma porta,
nenhuma janela. Olho ao redor de novo e então
para Nádia. Uma sala segura para vampiros?
Ela assente.
— Se algum de nós vier aqui, pode passar o dia
nessa sala.
Nem acho isso estranho, a essa altura. Quase

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todos os prédios do Outro Mundo – qualquer coisa


deles, na verdade – tem uma sala segura que pode
ser usada por vampiros. O que não entendo é o
motivo disso, quando quase ninguém se dá bem
com eles. Nádia é uma exceção, por causa do tal
trabalho dela, que até hoje ninguém me contou qual
é porque não é seguro para mim.
E...
— Aqui? — Pergunto.
Alexandre ri em voz baixa e tira uma escultura
de metal do bolso. É um símbolo estranho, que
tenho certeza que deveria conhecer mas que não
consigo identificar, feito de curvas e nós. Quando
vi pela primeira vez, pensei que era um padrão
celta, mas não é bem isso.
Ele levanta uma sobrancelha para mim e quebra
uma das linhas da escultura. Fecho os olhos,
sentindo uma vertigem estranha, e logo depois
aquela sensação de pressão nos ouvidos.
— Por favor, me diga que isso é o feitiço ou o
que quer que seja se desfazendo — murmuro.
Alexandre segura meus braços e me apoio nele,
esperando a vertigem passar.
— É, mas não deveria te afetar assim.
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Balanço a cabeça e respiro fundo. Não quero


saber de vertigem. Hora de saber o que Alexandre
andou aprontando.
— Não importa.
Respiro fundo de novo. Isso. Está passando.
Abro os olhos e dou de cara com Alexandre me
encarando, preocupado. Sorrio.
— Onde é que nós estamos? — Pergunto pela
milésima vez.
— Já vai ver. — Ele sorri e levanta a cabeça. —
Nádia?
— Eles já estão à espera.
Alexandre assente e me puxa na direção da
porta. Saímos em outra sala, essa bem menor e sem
nenhuma mobília, com uma porta à nossa direita.
Alexandre fecha a porta atrás de nós com cuidado.
Dessa vez nem é difícil entender o motivo: consigo
ver a luz entrando por debaixo da outra porta. Ou
seja, essa sala é uma medida de segurança para
nenhum vampiro que estiver no outro cômodo ficar
no sol por acidente.
Paro e olho ao redor assim que saímos da sala.
Estamos em um salão com paredes de vidro. Lá

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fora, ainda é começo do dia. Umas sete horas da


manhã, eu acho. E tem mapas e esquemas pregados
nas paredes, mostrando...
Stonehenge.
Alexandre me trouxe para Stonehenge.
Como... Como é que ele soube que é meu sonho
conhecer Stonehenge? Acho que nunca comentei
nada e...
Puta merda.
— Laura?
Balanço a cabeça, sem conseguir sair do lugar.
Isso aqui deve ser o centro de visitantes. Mas está
tão cedo que acho que as horas de visitação ainda
não estão abertas. Quer dizer, se é que estão
aceitando visitantes. Eu pesquisei sobre viajar para
cá vezes demais. Além do preço, depois que o
Outro Mundo se revelou só abrem o parque para
visitação umas poucas vezes por mês e é quase
impossível conseguir comprar ingressos.
Eu estou em Stonehenge.
— Laura?
Balanço a cabeça de novo e olho para
Alexandre. Ele está me encarando com uma
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expressão preocupada. Vejo quando ele assente de


leve e sua expressão começa a se fechar, daquele
jeito que quer dizer que ele está tentando esconder
alguma coisa... Ele está achando que não gostei, é
isso?
Pulo em Alexandre, passando os braços ao redor
do seu pescoço. Ele me segura pela cintura, mas já
estou com minha boca na dele, mesmo que ainda
esteja tentando não chorar. Esse é o melhor
presente que ele poderia me dar e essa é a única
forma que tenho de mostrar isso.
Me afasto antes de nós dois perdermos qualquer
bom senso e enxugo os olhos.
— Como...? — Começo e paro, sem conseguir
terminar de falar.
Alexandre ri e passa os dedos debaixo dos meus
olhos, terminando de secar as lágrimas.
— Seu papel de parede.
Olho para ele, sem entender, e então me lembro.
A primeira vez que conversamos, quando eu ainda
trabalhava para Paula. Quando ele viu minhas
ilustrações. Eu minimizei as janelas e o papel de
parede era Stonehenge. Mas acho que foi a última
vez que usei aquela imagem. Então, como?
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— Você só viu isso uma vez — murmuro.


Alexandre sorri e segura minha mão, me
puxando na direção da saída.
— Mas eu te conheço. Quando alguma coisa é
importante para você, você não fala nada sobre ela.
Você guarda, porque é melhor manter em segredo e
ter esperanças do que comentar e descobrir que é
impossível. De todas as paisagens que vi você usar
como papel de parede, Stonehenge foi o único lugar
que você nunca disse que queria visitar.
Porque eu pensava que ia ser impossível.
Ele olha para mim e ri, enquanto empurra a
porta de vidro.
Paro do lado de fora e respiro fundo. Estamos
no interior, mesmo que Stonehenge fique
relativamente perto de Londres, e eu amo esse
cheiro de mato. Não é a mesma coisa que o
casarão, ou os lugares que fizemos trilhas, mas... É
bom, do mesmo jeito. E quase consigo sentir
alguma coisa diferente no ar.
Andamos quase uma hora até chegarmos em
Stonehenge propriamente dito. Não consigo falar
nada, só olhar ao redor, vendo a grama baixa e uma
ou outra estrutura de pedra que não sei o que são,
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sem acreditar que estou aqui. Quando consigo ver


as pedras pela primeira vez... Ainda não acredito
que isso está acontecendo.
Alexandre vai direto para o cordão de
isolamento que marca até onde os turistas podem ir.
Já sabia disso por causa das minhas pesquisas, mas
ele simplesmente passa por baixo do cordão e para,
me esperando.
— Mas será que...? — Começo.
— A organização que gerencia Stonehenge é
formada por fey e bruxos — ele conta, levantando a
corda para mim. — Já foi tudo combinado.
Claro. Deveria ter imaginado isso. Faz todo
sentido.
Respiro fundo e passo por baixo da corda. Eu
estou em Stonehenge. Eu vou poder chegar perto
das pedras, entrar nos círculos e...
Não consigo acreditar nisso.
Um casal que estava do outro lado vem na nossa
direção. O homem tem o cabelo daquela cor
castanha que no sol fica com reflexos
avermelhados: um bruxo. A marca de um bruxo são
os cabelos ruivos ou avermelhados, mesmo que
alguns deles prefiram esconder isso, como Paula
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fazia. A mulher é loira, baixinha e um pouco gorda,


e se move de uma forma estranha... Os movimentos
dela, mesmo os mais simples, são delicados demais
para serem humanos. Fey, aposto.
— Bem-vindos — o homem fala, em inglês. —
Vamos servir de guias para vocês, hoje, e estamos à
disposição para o que precisarem.
Não me surpreendo quando nenhum dos dois se
apresenta. Já notei que isso é o normal do Outro
Mundo. Mas... Estou em Stonehenge com um
bruxo e uma fey como guias. Posso dar pulinhos e
sair gritando?
— Obrigado — Alexandre responde. — Acho
que se puder dar as explicações normais... Laura
ainda não está em condições de começar a fazer
suas mil perguntas.
Dou uma cotovelada nele e o bruxo ri. Não que
seja mentira. Não consigo pensar em uma pergunta.
Quero saber de tudo e ver tudo.
— Por aqui — o bruxo gesticula e nos leva para
perto das pedras do lado de fora.
Mal consigo ouvir enquanto ele explica sobre
calcular estações e ver eventos planetários ou seja
lá o que for, sobre como os humanos dataram as
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pedras e as teorias sobre as funções de Stonehenge.


Ainda não consigo acreditar que estou aqui.
Paro na frente de uma das pedras, encarando os
desenhos meio apagados nela. Tinha me esquecido
desse detalhe. Será que alguém do Outro Mundo
estava aqui quando elas foram levantadas e pode
contar o que realmente aconteceu? E se...
— Vocês vieram para Stonehenge para abençoar
a criança?
Me viro para a mulher fey. Ela está parada perto
de mim, com a cabeça inclinada para a direita, me
encarando. Alexandre e o bruxo estão um pouco
para a frente.
— O quê? — Pergunto, sem ter certeza de que
entendi certo. Meu inglês está um pouco
enferrujado.
— Vocês vieram para Stonehenge para abençoar
a criança? — Ela repete. — Isso não é comum, mas
também não seria a primeira vez.
O quê?
— Criança? — Minha voz é pouco mais que um
sussurro.
A mulher sorri e tenho a impressão de que estou

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vendo pele verde, com uma textura parecida com a


de um tronco de árvore, e cabelos que na verdade
são água. Ela se aproxima, andando devagar, como
se não quisesse me assustar.
— Posso? — Ela levanta uma mão.
Assinto.
A mulher coloca a mão na minha barriga e fecha
os olhos. Sinto alguma coisa me atravessando, mas
não consigo nem descrever a sensação. E então...
Consigo sentir. Não sei como, não sei o que ela fez,
mas consigo sentir essa vida dentro de mim.
Coloco uma mão na barriga, ao lado da mulher,
que ainda está de olhos fechados. Eu estou grávida.
Sei que já faz algumas semanas que decidimos
parar de nos preocupar com isso, porque temos uma
vida estável o suficiente para uma criança, mas...
Não esperava por isso. É uma surpresa e...
A mulher se endireita e abre os olhos, dando
alguns passos para trás. Alexandre parece se
materializar atrás de mim, segurando meus braços.
— Laura? O que foi?
Me viro para ele, sorrindo, com os olhos cheios
de água, e coloco sua mão na minha barriga. Ele
me encara por um instante, sem entender. Consigo
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ver exatamente quando ele percebe o que estou


tentando dizer: seus olhos se arregalam e nunca vi
Alexandre com uma expressão tão aberta e
surpresa.
Nem me surpreendo quando ele me abraça com
força e me beija, porque também não sei o que mais
fazer. Vamos ter uma criança. Uma criança que vai
crescer nesse mundo novo. E, mesmo que eu não
viva para ver isso, talvez ela esteja aqui para ver o
Outro Mundo e a humanidade vivendo juntos de
verdade, como naquela imagem que eu vi, anos
atrás.
Aqui, entre as pedras de Stonehenge, consigo
acreditar que esse futuro é possível.

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os próximos laçamentos, assine a lista de emails
aqui. A newsletter é enviada mensalmente e
prometo não fazer spam ;)

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AGRADECIMENTOS
Esse livro foi aquele caso de tanta gente
envolvida, direta ou indiretamente, que é até difícil
agradecer. Refém da Noite é um projeto que foi
abandonado uma vez, reestruturado, abandonado de
novo, antes de finalmente render, e se chegou nesse
ponto é por causa de todas essas pessoas.
Então, em ordem.
As betas da primeira versão: Jéssica Miguel,
Débora Almeida, Manuela Aguiar, Renata Barbosa.
Muito obrigada pelo tempo de vocês, pela
paciência tanto com minha demora para escrever
quanto com os resmungos e por todos os puxões de
orelha, cobranças e surtos. Se não fosse vocês, esse
projeto com certeza teria voltado para a gaveta por
mais uns tantos anos.
Pessoal do Wattpad: eu nunca imaginei que essa
história ia ter o retorno que teve, especialmente
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quando eu ainda estava tão insegura com ela. É


meio surreal ver os comentários e o número de
leituras – aquele surreal que eu ainda olho e não
tenho certeza de que estou vendo certo. Muitíssimo
obrigada a todos que leram, comentaram e
indicaram esse livro. Vocês não têm ideia do tanto
que me fizeram (e ainda me fazem) surtar com isso.
Shay: muito obrigada pelos comentários de
zoeira que acabaram sendo levados a sério e pelas
correções e informações úteis ao longo da escrita.
Nádia Santos e Sky Oliveira, muitíssimo obrigada
pelas "traduções".
Betas da reescrita: além das que já tinham
acompanhado a primeira versão, Lara Loures, Kris
Monneska, Isabela Fleury Florentino, Fernanda
Barone e Marcelo Rocha. Muito obrigada pela
disposição de encarar essa reescrita louca, pelas
cutucadas, pela paciência e por todos os
comentários e sugestões.
Pessoal do Covil e todo mundo que se divertiu
com meus resmungos, todo mundo que teve
paciência com as perguntas aleatórias.
Todo mundo que me apoiou até aqui e que deu
uma chance para minha escrita: muito obrigada!
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Sem vocês, nada disso teria saído da gaveta.

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