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André Alfredo Coelho1; Andréia Nunes Sá Brito1; Vicente Celestino Pires Silveira2
Resumo
No Bioma Pampa brasileiro, a partir dos anos 2000, políticas de fomento a produtividade
incluíram a categoria da Pecuária Familiar, até então invisibilizada e dependente dos
recursos locais. No paradigma da modernidade, estaria o processo de sustentabilidade no
Pampa albergando um dilema: ou os remanescentes do Bioma perdem seus manejadores
pela obsolescência social ou estes são absorvidos pelo projeto hegemônico que os torna
obsoletos, deixando os relictos campestres mais vulneráveis?
Introdução
A metade sul do estado do Rio Grande do Sul constitui a região do Bioma Pampa
brasileiro. Tratando-se essa região de um conjunto de ecossistemas sumariamente
campestres, sua socioeconomia se desenvolveu fortemente alicerçada na atividade
pecuária. Essa, por sua vez, de grande peculiaridade, é reconhecida por seu potencial de
conciliação entre produção e conservação ambiental, conforme eternizado no discurso do
ambientalista José A. Lutzenberger (1926-2002): “Em sua forma atual o Pampa é uma
das raras paisagens preciosas do Planeta em que a exploração humana se encontra em
relativa harmonia com o ecossistema.”
O processo de consolidação das sociedades pós-colombianas do Pampa brasileiro
teve sua origem na distribuição de latifúndios, denominados “sesmarias” (cerca de 13 mil
hectares de extensão) no século 18; com a função inicial de ocupação territorial e
demarcação de fronteiras. No decorrer dos séculos a exploração do gado asselvajado
existente, remanescente das Missões Jesuíticas extintas no século 17, resultou no
surgimento das “estâncias” e da classe estancieira.
1Doutorando(a) Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural (PPGExR) - Universidade Federal de
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Outra categoria social coexiste historicamente nesse território e foi mencionada
por estudos sociológicos do Pampa a partir dos anos 2000. Denominada de Pecuária
Familiar e tem como principal característica o trabalho com a pecuária de corte
bovina/ovina e o uso predominante da mão-de-obra familiar. Conforme Ribeiro (2016):
“(...) apesar de existente em número significativo – estimado por Ribeiro
(2002 e 2003) em cerca de 20.000 famílias na região do Pampa brasileiro
– não vinha sendo, historicamente, reconhecido pelas entidades
representativas da sociedade rural rio-grandense e pelos governos devido
a sua pouca organização, a sua pouca representatividade política e por se
tratar de uma categoria social, até então, pouco descrita e estudada. De
certa forma, até os anos 2000 (e de certa forma até hoje), foram
“invisíveis” à sociedade. Este desconhecimento também se estendeu aos
meios acadêmicos, pois, até recentemente não houve interesse e nem
estudos sobre este público.”
Esse mesmo autor, pioneiro na descrição do referido tipo social no Rio Grande do
Sul, caracteriza-lhe basicamente por famílias pequenas, com pouca estrutura de
maquinário e benfeitorias, majoritariamente em área própria e pouco ou nenhum uso do
sistema financeiro. Além disso, contam com práticas como a da reciprocidade (“troca de
serviços”), mas inserida em um fraco tecido social (redes, representação, associações,
etc); estiveram relativamente alheios ou vivenciaram de maneira incompleta o processo
de modernização agrícola.
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Metade sul do RS.
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Como consequência dessa modernização (oriunda da Revolução Verde4) a
dinâmica socioeconômica do Pampa sofre modificações expressivas. Num primeiro
momento, através da cultura do arroz na década de 1970, entretanto, neste caso, as áreas
ocupadas foram basicamente as áreas possíveis de serem irrigadas, com fomento
basicamente nacional. A agricultura avança também na década de 2000, com políticas
públicas de mercados internacionais fomentando a sojicultura (SILVEIRA; GONZÁLEZ;
FONSECA, 2017) e silvicultura na região, sendo um dos fatores predisponentes às
alterações de paisagem e das relações de produção e mercado. Neste cenário, o projeto
de desenvolvimento hegemônico, que até então agia com arbitrariedade em relação a
Pecuária Familiar, passa a incorporá-la na sua proposta de modernização.
Instaura-se portanto, sobretudo nas décadas seguintes, o discurso do
desenvolvimento em seu viés econômico, com políticas públicas de fomento à
produtividade e industrialização. Porém ao resgatarmos os discursos proferidos desde as
primeiras reuniões de lideranças mundiais (Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, Rio 92, Convenção-Quadro, Protocolo de Kyoto, etc) para discussão
do destino da humanidade, tornou-se consensual que a sustentabilidade, como adjetivo
necessário ao desenvolvimento, se atinge com a busca pela equidade entre os pilares:
econômico ←→ ambiental ←→ social.
Nessa perspectiva, a sociedade rural do Pampa apresenta evidências de
insustentabilidade, frente ao desequilíbrio decorrente do cenário socioeconômico
contemporâneo, com suas ações majoritariamente pautadas no eixo da economia. Em tal
contexto de notória reconfiguração socioespacial, erigiremos um dilema da
contemporaneidade para a sustentabilidade no bioma Pampa brasileiro; trazendo à luz da
reflexão a natural resistência da Pecuária Familiar ao projeto de desenvolvimento vigente
e a sua inserção como agentes econômicos mais ativos nas cadeias produtivas.
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Fenômeno vivenciado no Brasil principalmente nas décadas de 70 e 80. Consta do incremento tecnológico
e industrialização dos processos produtivos e de transformação na agricultura, com o objetivo do aumento
da produtividade das culturas e criações. Viabilizado por intermédio da modificação genética, motorização
e uso de agroquímicos aliada ao financiamento bancário e serviços de assistência técnica e extensão rural.
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CHARÃO, 2016; RIBEIRO; QUADROS, 2015) têm apontado a potencialidade de atores
sociais que manejam diretamente os Campos Sulinos5 para a promoção da
sustentabilidade nestes ambientes. Contudo, muitos enunciados que dão visibilidade à
Pecuária Familiar, atribuindo-lhes características camponesas, apresentam uma lacuna na
compreensão histórica desses atores como espoliados pela estrutura territorialmente
predominante nos Campos: a da estância; assim como pela lógica econômica do setor
pecuário dominante; propondo ou aceitando, muitas vezes, a continuidade dessa relação
desproporcional como alternativa de desenvolvimento (por meio de políticas de fomento
à produtividade).
Ademais a lógica modernizante que gerou o padrão de produção industrial
excludente para esses atores sociais, foi a mesma que no Brasil preteriu a reestruturação
fundiária em nome da produção em escala das commodities agrícolas nas grandes
propriedades. Assim grande parte dos remanescentes campestres ficaram situados em
regiões que apresentam barreiras geográficas naturais (basicamente solos rasos e relevo
acidentado) ao projeto de modernização, conforme aparente no mapeamento realizado
por Trindade; Volk; Rocha (2016). Nestes relictos há forte presença da Pecuária Familiar
(SÁ BRITO, 2011).
Percebe-se neste contexto, que na perspectiva de equilíbrio entre os eixos que
suportam a sustentabilidade, a Pecuária Familiar detém proeminência no “ambiental”,
com desenvolvimento desproporcional dos dois eixos restantes, resultando em duas vias
de invisibilidade (social e econômica) dessa categoria social. Esta não se identifica como
categoria diferenciada (camponesa). Neste ponto de vista o Estado também não a vê, nem
destina ações e políticas públicas específicas. De outra parte, como não participam
ativamente dos circuitos dos mercados e em geral estão no meio da cadeia produtiva
(produção de terneiros ao invés da terminação e venda para o abate), não são vistos
como agentes econômicos.
Apesar de bastante representativa, até 2003 essa categoria social não era
oficialmente reconhecida no Brasil, especialmente no Sul, onde a agricultura familiar é
mais comumente associada à figura do colono imigrante. A partir de então, com estudos
iniciados pela Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER), passa a ser
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Ecossistemas campestres do RS e SC inseridos nos biomas Pampa e Mata Atlântica.
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retratada em publicações e posteriormente contemplada por assistência técnica local.
Nesse ínterim, a relação da Pecuária Familiar com o seu ambiente de trabalho e
reprodução social começa a ser valorizada, tendo em vista o potencial de conservação
ambiental identificado nesse processo histórico, ascendendo à ótica científica atributos
como: os conhecimentos endógenos, as estratégias autônomas, a prestação de serviços
ambientais e ecossistêmicos.
Losekannn; Follman; Degrandi (2016), analisaram a qualidade da água que sai da
bacia hidrográfica do rio Ibicuí, situada em grande volume na Área de Proteção
Ambiental (APA) do Ibirapuitã, única APA do Bioma Pampa (região de expressivo
contingente de Pecuária Familiar). Verificou-se que a água que sai da APA adentra às
cidades com alta qualidade, deixando-as com grau de poluição quantificado. Além disso,
a manutenção dos campos pela prática da atividade pecuária, também pode garantir a
qualidade de serviços ambientais e ecossistêmicos, conforme demonstrado em Volk et al.,
(2017); ao passo que a intensificação pode ser prejudicial a esses processos.
Seguindo essa tendência científica mundial, que aponta para a sustentabilidade
como desafio para todas as áreas do conhecimento, as ações e pesquisas voltadas à
Pecuária Familiar também trazem esse conteúdo em seus discursos. Contudo, cabe
refletir sobre quais são os aspectos (eixos, dimensões ou enfoques) da sustentabilidade
que estão sendo considerados quando mencionamos os campeiros; e,
complementarmente, observar até onde esse discurso tem sua práxis e torna sustentável a
reprodução social desses manejadores do Pampa.
Nicola; Charão (2016), afirmam que o processo de desenvolvimento rural
sustentável à agricultura camponesa é multidimensional e complexo, sendo um grande
desafio à extensão rural. Porém, na ótica instrumental, onde projetos de desenvolvimento
são pensados dentro do paradigma da modernização, existe uma inclinação ao
assistencialismo agrotécnico como fator preponderante. Ademais, essa perspectiva
ignora o fato dos conflitos presentes nos territórios (estejam esses declarados ou não), que
configuram as relações sociais e a sua ocupação, tornando-o extremamente desigual o
espaço ocupado pelas diferentes categorias sociais. Ou seja, apesar de os discursos atuais
sobre desenvolvimento estarem blindados sob a égide da sustentabilidade, permanece
como grande narrativa (herdada da lógica moderna/modernizante) o aspecto econômico
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nas relações socioambientais.
Para Gell-Mann apud Veiga (2008), são sete as transições interligadas para se
alcançar a sustentabilidade, a nível global, no século 21: 1) Estabilização da população
globalmente e na maioria das regiões; 2) Práticas econômicas com: cobrança de custos
reais, crescimento em qualidade em vez de quantidade, modo de vida a partir dos
dividendos da natureza e não do capital; 3) Tecnologias com baixo impacto ambiental; 4)
Distribuição equitativa da riqueza; 5) Instituições globais e transnacionais mais fortes; 6)
Público bem informado sobre os desafios múltiplos e interligados do futuro; 7)
Predomínio de atitudes que favoreçam unidade na diversidade (cooperação, competição
não-violenta entre tradições culturais diferentes e Nações-Estados, bem como entre seres
humanos e outros da biosfera).
Nota-se que o componente ambiental aparece isoladamente em apenas uma das
transições necessárias, pois para as demais ele está intrincado nas novas relações a serem
estabelecidas entre a humanidade e seu meio. Tal abordagem nos conduz ao pensamento
complexo, no qual, segundo Morin (2014), o todo está na parte, bem como a parte está no
todo; não sendo possível abordagens pautadas no desmembramento dos eixos da
sustentabilidade, mas sim nas suas complexificadas relações.
Ainda seria possível observar diferentes dimensões para o adjetivo sustentável:
ética, cultural e temporal. Para esta última é, necessário atentar que estão ancorados nela
os três eixos principais: econômico, social e ambiental (LANDAIS, 1998). Ou seja, é
necessário que as condições econômicas, sociais e ambientais perdurem através do
tempo, tenham reprodutibilidade. E, sob essa ótica, se faz mister o questionamento sobre
ações que visam a sustentabilidade mas que têm um foco na situação presente e/ou a
médio prazo. Tais ações pontuais, que não estejam baseadas na aprendizagem
significativa e no empoderamento, visando a autonomia de indivíduos e coletivos,
dificilmente poderiam ser adjetivadas de sustentáveis.
Portanto, um dilema da sustentabilidade no Bioma Pampa aqui erigido, consiste
no rumo tomado pelo projeto de desenvolvimento hegemônico onde o aspecto
econômico se tornou dominante, enquanto que os problemas sociais e ambientais se
fazem evidentes. Muitas regiões de agropecuária empresarial apresentam expressiva
modificação paisagística. E, por parte da Pecuária Familiar, nota-se a preservação
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ambiental coexistindo com o êxodo rural e demais problemas sociais.
“No mundo pecuário, várias formas de criar bovinos e ovinos, nunca
foram analisadas antes de desaparecer, isso porque não havia pessoas
para registrar, ou mais simplesmente, não havia interesse. No mesmo
sentido que a queda da biodiversidade, as práticas agropecuárias
tradicionais precisam de muito tempo para serem construídas, mas
desaparecem rapidamente e com alta frequência, especialmente quando
não há uma nova geração para reproduzir os saberes locais, caso da
pecuária familiar do Rio Grande do Sul, caracterizada pela idade elevada
dos produtores e a falta de jovens pecuaristas.” (TOURRAND, 2016)
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Estas características remetem a outros importantes estudos sobre categorias sociais no
campo e, principalmente aqueles que se referem ao campesinato. Cuja origem no Brasil,
para Cunha (2012), deu-se por três formas:
“a) proveniente de antigas zonas agroexportadoras, como as áreas de antigos
engenhos de cana-de-açúcar, algodoeiras e cafeeiras - quando se formaram
arranjos entre proprietários e foreiros, colonos ou arrendatários,
trabalhadores camponeses que moram no interior da propriedade – e se
originam núcleos camponeses nos arredores destas propriedades, em “terras
livres; b) o denominado campesinato de fronteira, que consistiu na
implantação de núcleos camponeses que garantiram o povoamento de áreas
distantes, muitas vezes ligados à expulsão de povos indígenas; e c) o
campesinato que mais se aproxima do modelo europeu, que ocorreu no sul do
país, em conseqüência do incentivo, por meio de doação de terras pelo Estado
Imperial a imigrantes assentados em colônias.” (CUNHA, 2012)
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bovina a partir da abordagem de “regime sociotécnico”, pela qual destacam: o padrão
industrial baseado em grande estruturas, nas monoculturas, uso de agroquímicos,
máquinas e genética especializada. Tudo ancorado nos acordos de representação política
nos três poderes. Essa lógica predominante nos mercados da carne pode ser excludente
para a Pecuária Familiar, desqualificando seus produtos e processos, reforçando o seu
isolamento (dificuldades com vias de acesso e baixo dinamismo social das localidades
onde estão).
“Cabe salientar, ainda, que o regime sociotécnico prevalente se consolida
através de atributos cognitivos, culturais e sociais arraigados na mente das
pessoas, desde fazedores de política, passando pelos cientistas e técnicos (e
suas heurísticas), até os consumidores finais (impactados pelo marketing
balizado por um convencimento das vantagens higiênico-sanitárias dos
processos de industrialização da carne).” (NICOLA; CHARÃO, 2016)
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grupo social resistente/adaptado ao meio socioambiental que vive, e concomitantemente
como donos de compreensível razão à não adesão completa ao processo de
modernização. Assim a inclusão produtiva, com tecnologias exógenas, por vezes
descontextualizadas aos diversos modos de produção da Pecuária Familiar, substituem
e/ou ocultam a necessidade de projetos de desenvolvimento sincronizados com as
demandas locais.
Considerações finais
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sustentabilidade do Pampa albergando um dilema: ou os remanescentes do Bioma
perdem seus manejadores pela obsolescência social ou os manejadores são absorvidos
pelo projeto hegemônico que os torna obsoletos, deixando os relictos campestres do
Pampa ainda mais vulneráveis? Seria coerente depositar esforços de atuação em projetos
de desenvolvimento à Pecuária Familiar com a mesma lógica da modernização que os
restringiu como “relictos socioambientais”?
Deixemos tais indagações à luz da reflexão, finalizando na sequencia com a
pertinenente sentença de Malaquin (2008): A sustentabilidade de um sistema pecuário
pode ser valorada em relação a sua capacidade de gerar bem estar social.”7
REFERÊNCIAS
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Livre tradução dos autores.
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IBIRAPUITÃ. . In: 47 CONGRESSO SOBER. Porto Alegre - RS: 2009. Disponível em:
<http://www.sober.org.br/palestra/13/991.pdf>
MORIN, E. Ciência com Consciência. 16. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014.
310
NICOLA, N. P.; CHARÃO, F. Extensão Rural DEAER - CCR - UFSM. TRANSIÇÕES
EM DIREÇÃO AO USO SUSTENTÁVEL E CONSERVAÇÃO DOS CAMPOS
SULINOS GAÚCHOS: O LUGAR DA PECUÁRIA FAMILIAR, v. 23, mar. 2016.
SILVEIRA, V. C. P.; GONZÁLEZ, J. A.; FONSECA, E. L. Land use changes after the
periodcommodities rising price in the Rio Grande do Sul State, Brazil.Ciência Rural. v.
47, 2017.
311
VOLK, L. B. DA et al. Funções ecossistêmicas em vegetação campestre de dupla
estrutura acentuada. XXIV Reunión del Grupo Técnico e Forrajeras del Cono Sur, p.
106–108, 2017.
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