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SOCIOBIODIVERSIDADE

E SUSTENTABILIDADE
NO CERRADO
CONHECIMENTO TRADICIONAL
E EDUCAÇÃO PARA A
SUSTENTABILIDADE

AGROECOLOGIA, SOBERANIA
E SEGURANÇA ALIMENTAR E
NUTRICIONAL

BIODIVERSIDADE E
RECURSOS NATURAIS

Organização
Regina Coelly Fernandes Saraiva
Nina Paula Laranjeira | Tânia Cristina da Silva Cruz
Leonardo Pereira Fraga
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Organização:
Regina Coelly Fernandes Saraiva
Nina Paula Laranjeira
Tânia Cristina da Silva Cruz
Leonardo Pereira Fraga

Revisão Técnico/Científica:
Andréa Leme da Silva
Flaviane Canavesi
Renato Caparroz

Apoio técnico:
Jonathas Felipe Aires Ferreira

Revisão de texto:
Leonel Gomes da Silva

Projeto gráfico e diagramação:


Fabio Martins

Fotos cedidas:
Antônio Felipe Couto Júnior
Francielly Reis (Capa Lobo Guará)
Leciane Moreira da Mata
Nehewane Pankararu Braz
Uakyre Pankararu Braz

Brasília, Brasil
Novembro de 2021

Maria Júlia Martins Silva


Diretora

Márcia Abrahão Moura Renato Caparroz


Reitora Vice-Diretor

Enrique Huelva Unternbäumen


Vice-Reitor

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasília

S678 Heloiza Faustino dos Santos - CRB 1/1913

Sociobiodiversidade e sustentabilidade no cerrado [recurso eletrônico] / organização,


Regina Coelly Fernandes Saraiva ... [et al.]. - Brasília : Universidade de Brasília, 2021.
155 p. : il.
Inclui bibliografia.
Modo de acesso: World Wide Web:
<http://unbcerrado.unb.br/>.
ISBN 978-65-86503-55-5.
1. Cerrados - Alto Paraíso de Goiás (GO). 2. Biodiversidade.
3. Sustentabilidade. 4. Veadeiros, Chapada dos (GO). I. Saraiva,
Regina Coelly Fernandes (org.).
CDU 502/504 (81:251)

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SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS.................................................................................. 5

APRESENTAÇÃO....................................................................................... 7

PARTE 1
CONHECIMENTO TRADICIONAL E EDUCAÇÃO PARA A SUSTENTABILIDADE 12

O desaparecimento
das plantas medicinais do Cerrado: implicações nas práticas de curas de raizeiros(as),
benzedores(as), curandeiros(as) e pajés das comunidades indígenas Pankararu-
Pataxó e Aranã....................................................................................................19

Percepções sobre o desaparecimento das Sementes Crioulas na Comunidade do Sertão


– Alto Paraíso de Goiás.......................................................................................40

PARTE 2
AGROECOLOGIA, SOBERANIA E SEGURANÇA
ALIMENTAR E NUTRICIONAL................................................................ 54

Diversidade produtiva e transição agroecológica : um estudo de caso da Feira Popular da


Agricultura Familiar de Alto Paraíso de Goiás.................................................59

Do cerrado para a mesa: articulando agricultura familiar com alimentação escolar pelas frutas
nativas..................................................................................................................71

A Feira de Agricultores Familiares de Base Agroecológica do Centro de Atendimento ao Turista no


município de Alto Paraíso de Goiás..................................................................84

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SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

PARTE 3
BIODIVERSIDADE E RECURSOS NATURAIS................................................90

Áreas de Preservação Permanente estratégicas para os recursos hídricos na APA de Pouso Alto:
panorama, técnicas e custos para restauração..............................................93

Etnozoologia da comunidade rural do Sertão,


em Alto Paraíso de Goiás................................................................................ 104

Atropelamentos da mastofauna na Chapada dos Veadeiros: aspectos ecológicos e espaciais 114

Estudo do impacto socioambiental dos caramujos-gigantes-africanos,


Achatina fulica, sobre a população de Alto Paraíso de Goiás..................... 123

O caso do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros:


a relevância dos patrimônios naturais da humanidade e das reservas da biosfera para a
conservação da biodiversidade...................................................................... 134

A estruturação do rol de oportunidades de visitação no Parque Nacional da Chapada dos


Veadeiros (GO)................................................................................................. 145

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SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

AGRADECIMENTOS
A todos e todas que aceitaram e ou- sobre o Cerrado, sua riqueza natural e
saram participar da experiência de ensi- sociocultural, estão impressos nesta pu-
no e pesquisa tão rica e desafiadora que blicação.
foi a Especialização em Sociobiodiversi- À Nina Paula Laranjeira, diretora do
dade e Sustentalibilidade no Cerrado, Centro UnB Cerrado entre 2011 e 2017,
realizada pelo Centro UnB Cerrado, en- pelo apoio irrestrito para a realização da
tre os anos de 2017 a 2019. Estudantes, Especialização em Sociobiodiversidade
professores, professoras, técnicos e téc- e Sustentalibilidade no Cerrado, desde
nicas da Universidade de Brasília se de- a concepção do projeto do curso e sua
safiaram numa construção coletiva que conclusão na parceria na organização
resulta neste e-book. deste livro. Um sonho sonhado juntas
Ao Centro UnB Cerrado pelo apoio fi- que deu certo!
nanceiro por meio da Chamada Pública À Tânia Cristina da Silva Cruz, que as-
Interna Simplificada no. 001/2020/CER. sumiu a coordenação geral do curso em
Esse apoio tornou possível divulgar o 2018 e levou os(as) estudantes até às
conhecimento feito no e sobre o Cerra- bancas de avaliação, ajudando a fechar
do em um momento de tantos ataques o ciclo de formação tão desejado por to-
à ciência no Brasil. A sensibilidade e o dos(as). Parceria, compromisso e amiza-
compromisso dos pesquisadores e das de são palavras que sintetizam mais este
pesquisadoras e pesquisadoras do Cen- trabalho que realizamos juntas!
tro UnB Cerrado com o saber científico

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SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

À Direção do Centro UnB Cerrado, Um agradecimento especial aos(às)


pelo ânimo à Especialização e o estímulo autores e autoras, professores e pro-
para termos um livro publicado com os fessoras da Especialização, que mesmo
resultados de pesquisas realizadas por depois da conclusão do curso, aceitaram
estudantes do Centro. o desafio de voltar às pesquisas e se de-
Ao Núcleo de Alimentação Sustentá- bruçar na escrita para a divulgação cien-
vel e Produção Agroecológica, do Institu- tífica dos trabalhos sobre sociobiodiver-
to Biorregional do Cerrado (Naspa/IBC), sidade e sustentabilidade no Cerrado.
pelo apoio que resultou em pesquisas Gratidão ao Cerrado! Bioma, lugar,
sobre sementes crioulas e experiências paisagem, morada de todos(as) nós pre-
agroecológicas que fazem parte deste li- sentes neste livro! As pesquisas aqui re-
vro. gistradas são saberes, conhecimentos
Ao Leonardo Pereira Fraga, estudante gerados como saudação à natureza e
da Especialização, parceiro na organiza- aos povos do Cerrado.
ção deste e-book. A participação, estímu-
lo e suporte do Leonardo foram funda- Regina Coelly
mentais para a conclusão deste trabalho
coletivo. Ter uma representação dos(as)
estudantes nos ajudou a pensar em um
livro também voltado para estudantes
de outros níveis de ensino e formação.

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APRESENTAÇÃO
A Chapada dos Veadeiros ocupa uma por-
ção no nordeste do estado de Goiás bastante
peculiar, com presença de Cerrado de altitu-
de, berço das águas, e conta com diversas
unidades de conservação (UCs), com desta-
que para o Parque Nacional da Chapada dos
Veadeiros e a Área de Proteção Ambiental do
Pouso Alto.

Povos e comunidades tradicionais, en-


tre elas os quilombolas Kalunga, vivem na
região há séculos, em meio a novos cole-
tivos que também optaram por viver ali e
somaram forças na defesa pela conserva-
ção ambiental do Cerrado.

Foi no contexto da luta socioambiental que


a sociedade civil organizada, pesquisadores
e pesquisadoras mobilizados(as) pela defesa
do Cerrado e pela sustentabilidade pensa-
ram e trabalharam para trazer a Universida-
de de Brasília (UnB) para a região, providen-
ciando recursos de emendas parlamentares
e um terreno para a edificação da sede de
um centro de pesquisa e extensão que se de-
bruçasse sobre o Cerrado e seus povos.

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SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

2011 Assim, foi criado, em 2011, o Centro de Estudos do Cerrado da


Chapada dos Veadeiros (Centro UnB Cerrado) da UnB em Alto Pa-
raíso de Goiás (GO), região de reconhecida diversidade biológica e
sociocultural do Cerrado.

A missão do Centro UnB Cerrado é promover a conservação da biodiversidade


e o desenvolvimento regional sustentável da Chapada dos Veadeiros, por meio da
produção, da divulgação e da aplicação de conhecimentos científicos e do diálogo de
saberes. Essa vigorosa missão tem se desenvolvido, desde a criação do Centro, por
meio de inúmeras atividades de extensão, ensino e pesquisa.
2017

Em 2017, um grupo de professores e professoras se mobilizou


para impulsionar a pós-graduação no Centro UnB Cerrado e pro-
moveu o curso de Especialização Latu Sensu em Sociobiodiversida-
de e Sustentabilidade no Cerrado. O curso contou inicialmente com
32 estudantes, que se desafiaram a estudar a sociobiodiversidade
e sustentabilidade no Cerrado. Ao longo da formação, os(as) estu-
dantes percorreram módulos de estudos voltados para a sociobiodi-
versidade, paisagem e território, produção e consumo sustentável e
educação para a sustentabilidade.

Esses eixos temáticos fundamentaram discussões, olhares e produção de pes-


quisas que apresentamos nesta publicação de divulgação científica de trabalhos de
conclusão de curso realizados por estudantes pioneiros(as) nas ações do Centro UnB
Cerrado voltadas para a pós-graduação.
Concluíram a especialização 14 estudantes. Nesta publicação de divulgação das
pesquisas apresentamos 12 trabalhos, distribuídos em três partes que dialogam com
a sociobiodiversidade e a sustentabilidade no Cerrado: 1. Conhecimento tradicio-
nal e educação para a sustentabilidade; 2. Agroecologia, soberania e segurança
alimentar e nutricional; 3. Biodiversidade e recursos naturais. Essa divisão teve
como referência os módulos desenvolvidos e o eixo central da proposta do curso:
ser interdisciplinar e acolher diferentes áreas de conhecimento.
Essa publicação é resultado do olhar de quatro biólogos(as), um químico, uma
bacharela em turismo, um licenciado em geografia, uma nutricionista, uma analista
internacional, uma licenciada em letras e uma licenciada em educação do campo,
todos(as) orientados(as) por professores(as) da Universidade de Brasília, vinculados
ao Centro UnB Cerrado, ou convidados(as), que aceitaram o desafio de dar aulas na
Especialização e acompanhar as pesquisas.

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SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

No início de cada parte, apresentamos, de forma sintética, as pesquisas realizadas, mas


também trazemos algumas reflexões que dialogam com as temáticas em que foram di-
vididos os trabalhos. Os estudos versam sobre diversidade biológica e sociocultural em
localidades da Chapada dos Veadeiros, e em outros locais, como o norte de Minas Gerais
(registrado na pesquisa da estudante indígena Toá Kãnynã Pankararu), experiências agro-
ecológicas, feiras, soberania e segurança alimentar, tendo o Cerrado como cenário.
O(a) leitor(a) vai encontrar nesta publicação, além dos resumos das pesquisas, peque-
nos excertos ‘‘Você sabia?’’, que criamos com a intenção de proporcionar mais informações
sobre conceitos e(ou) temas abordados nas pesquisas, como forma de estimular a busca
pelas versões completas dos trabalhos dos(as) pesquisadores(as) especialistas em Socio-
biodiversidade e Sustentabilidade no Cerrado. No final de cada resumo é possível acessar
o link dos trabalhos completos disponíveis no Repositório Institucional da UnB.
Cabe destacar que nesta publicação optamos por apresentar as pesquisas utilizando
a flexão de gênero masculino e feminino, visando garantir a representatividade das mu-
lheres, estudantes, pesquisadoras, professoras, leitoras, bem como das entrevistadas e
participantes das pesquisas. As versões finais das pesquisas nem sempre trazem a flexão,
como vocês poderão observar. Reconhecemos ainda nossa limitação na utilização do gê-
nero neutro, mas, ainda assim, desejamos que todas as pessoas, homens, mulheres e to-
das aquelas que não se identificam com os gêneros feminino e masculino, sejam acolhidas
nesta publicação de divulgação científica.
A Especialização em Sociobiodiversidade e Sustentabilidade no Cerrado foi uma experi-
ência singular para todos(as) nós. Divulgar as pesquisas dos(as) estudantes é parte da ex-
periência final de um processo muito rico de aprendizagem, construção de conhecimento,
compromisso científico, bem como de muita amizade entre os(as) estudantes, professo-
res(as) e técnicos(as) do Centro UnB Cerrado, construída ao longo de um ano e oito meses
de trabalho duro. Esta publicação é resultado de uma travessia que teve início em 2017
e fecha seu ciclo no final de 2021. Desejamos que à medida que leiam os trabalhos aqui
apresentados, possam se interessar em conhecer e se aprofundar nas pesquisas sobre a
sociobiodiversidade e a sustentabilidade no Cerrado.
Esperamos que gostem das pesquisas!
Brasília (DF), novembro de 2021.

Regina Coelly Fernandes Saraiva | Nina Paula Laranjeira


Tânia Cristina da Silva Cruz | Leonardo Pereira Fraga

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SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

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SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

RAP DA SEMENTE CRIOULA

Tô mandando essa rima


Tô aqui na União
Cantando esse Rap
Com todos meus irmão
Falo das sementes
Que vão fazer a Salvação
A semente do Veneno
Eu não quero não!
Quero independência e transformação
Crioula é a semente
Para nossa plantação!
Garantindo pras famílias
Uma boa nutrição
Garotada do Moinho
Atitude eu vou propor
Ontem hoje sempre
Agradeço ao Amor
Solo fértil, água limpa
Saúde e Comunhão
Vai ser na Terra Viva
E será a Redenção...

Autoria: Cláudia Lulkin e jovens bolsistas do Moinho, Alto Paraíso de Goiás

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SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

PARTE 1

CONHECIMENTO
TRADICIONAL E
EDUCAÇÃO PARA A
SUSTENTABILIDADE
Regina Coelly Fernandes Saraiva
Tânia Cristina da Silva Cruz

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SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

S
ociobiodiversidade é um campo de Em seu caráter sociocultural, a sociobio-
conhecimento relativamente novo. diversidade diz respeito aos povos que se
As primeiras discussões datam dos destinam a viver a vida (social) numa relação
anos 90 e de suas implicações no campo dos de equilíbrio e acolhimento com a natureza
saberes ambientais1. O aprofundamento da e sua diversidade e está fortemente associa-
crise ambiental e a busca pela sustentabilida- da a elementos étnicos e raciais, sendo, por-
de, em suas dimensões ambiental, social, cul- tanto, um campo de saber afeto a povos e
tural, política e econômica, deu a esse campo comunidades tradicionais, povos indígenas
de saber ainda mais importância e premên- (ou originários), quilombolas, camponeses e
cia nos últimos anos, diante da necessidade camponesas, agricultores e agricultoras fa-
de construção de alternativas para modelos miliares, que podemos sintetizar como po-
societários que não dialogam com a vida2. vos do campo. É a partir da tradição, da me-
A palavra sociobiodiversidade é formada mória, da cultura e de seus elementos que
por socio + bio + diversidade. Socio abrange esses povos conservam a biodiversidade3.
os elementos da vida social como a cultura, A tradição do cuidado, da interdependên-
a história, a memória, a ancestralidade. Bio cia e da conectividade com a vida e sua diver-
se refere à vida e a seus aspectos biológicos. sidade (biodiversidade) estão presentes nos
Diversidade quer dizer multiplicidade, plura- modos de cuidar, plantar, colher, manejar e
lidade, abastança; associada aos elementos garantir a vida pelos povos do campo em sa-
da natureza, diz respeito à variedade de es- beres acumulados. Desse modo, constitui-se
pécies e ecossistemas. A sociobiodiversidade o conhecimento tradicional como parte in-
institui o diálogo entre elementos sociocultu- trínseca da sociobiodiversidade e seu univer-
rais e a natureza numa relação de alteridade, so sociocultural.
de encontro, de convivência. Esse campo de conhecimento foi se afir-
mando como parte da valorização de cadeias
produtivas associadas aos biomas brasileiros
e à agricultura familiar. Políticas públicas vol-
tadas para a sociobiodiversidade foram se
configurando no sentido de valorizar e reco-
nhecer o papel de atores e atrizes do campo
e seus diálogos com a diversidade da vida4.

1 Ver Enrique Leff. Saber ambiental. Sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. Petrópolis, Rio de Janeiro:
Vozes, 2001; e Convenção de Diversidade Biológica (CDB), de 1992, artigo 8(j) que reconhece oficialmente a importância dos
saberes tradicionais para a conservação da biodiversidade.
2 Sustentabilidade surgiu como debate fundamental a partir das questões ambientais nos anos 60 e 70, Significa ações
e processos humanos comprometidos com a garantia e preservação da vida do planeta, seus biomas e ecossistemas. Para
aprofundamento do debate e questões relativas à sustentabilidade ver Leonardo Boff. Sustentabilidade. O que é – O que não
é? Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2012.
3 Ver Victor M. Toledo; Narciso Barrera Bassols. A memória biocultural: a importância das sabedorias tradicionais. São
Paulo: Expressão Popular, 2015.
4 Ver Brasil. Plano Nacional de Promoção das Cadeias de Produtos da Sociobiodiversidade. MDA. MMA. MDS, Julho, 2009.

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SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

No contexto da pandemia que estamos biodiversidade. Desse modo, podemos afir-


vivendo, a sociobiodiversidade ganhou ain- mar que a defesa da sociobiodiversidade é
da mais força, na medida em que sua valo- parte da pauta política comprometida com
rização significa reconhecer a importância a garantia da vida, o acesso à terra e a sus-
de produtos da agrobiodiversidade5 e ali- tentabilidade. Lutar pela presença dos sabe-
mentos saudáveis capazes de abastecer po- res tradicionais associados à biodiversidade
pulações rurais e urbanas. Nesse sentido, significa lutar contra projetos que se preten-
políticas de fortalecimento dos produtos da dem hegemônicos e negam direitos.
sociobiodiversidade associados aos biomas A resistência assume diferente formas e
como o Cerrado têm se afirmado como prá- forças, e compreender esse aspecto é funda-
tica política no enfretamento à agricultura a mental entre aqueles que atuam e defendem
serviço do capital, que tudo transforma em os povos do campo.
mercadoria, desconectada da biodiversida-
de6. No âmbito desta publicação, entendemos
que a valorização da sociobiodiversidade (e
Ainda que tenha ocorrido avanços no sen- do conhecimento tradicional) demanda a
tido do reconhecimento dos saberes ambien- construção de ações para a construção de
tais da sociobiodiversidade, não podemos um novo modo de pensar a vida, a socieda-
esquecer que direitos de povos e comuni- de, o mundo. Alguns fundamentos embasam
dades tradicionais, indígenas, camponeses e a construção dessa nova narrativa, que sig-
camponesas, agricultores e agricultoras são nifica, entre outros aspectos, a superação
reiteradamente ameaçados. Práticas histó- da crise ambiental (que é também é política,
ricas de exclusão social, expulsão da terra, social e econômica). Apresentamos a seguir
ameaças e outros processos violentos ocor- alguns princípios/ideias-força que entende-
rem cotidianamente, ameaçando a vida e a mos podem contribuir para a valorização da
sociobiodiversidade, os direitos dos povos
do campo e a construção da sustentabilida-
de. São eles:

Bem viver – Concepção de vida conectado com o planeta para sustentar uma
a prosperidade que não diga respeito somente a prosperidade monetária e mate-
rial, mas tome como base a vida e a biodiversidade. Esse modo de vida deve partir
da reafirmação de elementos culturais, históricos, ancestrais para o desenvolvi-
mento de solidariedades atreladas ao respeito à natureza.

Vida em comunidade – Qualquer ação para a sustentabilidade que se queira efe-

b tiva não pode prescindir do protagonismo comunitário, da educação popular e da


participação ampliada dos povos e comunidades tradicionais, povos indígenas (ou
originários), quilombolas, camponeses e camponesas, agricultores e agricultoras
familiares.

5 Diversidade biológica nas culturas agrícolas. Ver Luiz Carlos Pinheiro Machado. Agrobiodiversidade. In: Roseli Salete
Caldart, Isabel Brasil Pereira, Paulo Alentejano e Gaudêncio Frigotto (Orgs). Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro,
São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Expressão Popular, 2012.
6 Ver Stéphane Guéneau, Janaína Deane de Abreu Sá Diniz e Carlos José Sousa Passos. Alternativas para o bioma Cerra-
do: agroextrativismo e uso sustentável da sociobiodiversidade. Brasília, DF: IEB Mil Folhas, 2020.

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SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Valorização territorial – O desenvolvimento local/territorial, tão afeto ao atendi-

c mento das necessidades básicas dos povos do campo (indígenas, quilombolas e


outros), tem de oferecer oportunidades de melhoria na sua qualidade de vida e
para o bem viver sem a necessidade de deslocamentos forçados devido às condi-
ções locais deficientes para sua permanência.

Trabalho solidário, colaborativo e em rede – O trabalho solidário, sem explora-


d ção e em rede deve ser a base para as ações de consumo, comércio, produção,
serviço, finanças e tecnologias no sentido de promover a realização dos povos
do campo, assegurando-lhes as condições materiais satisfatórias para o exercí-
cio ético de sua liberdade por meio de participação coletiva, cooperação, auto-
gestão, democracia, autossustentação, promoção do desenvolvimento humano,
equidade de gênero, responsabilidade social e preservação ambiental.

Cidadania Ambiental – A cidadania ambiental refere-se ao conjunto de condi-


e ções que possibilitam aos povos do campo (e da cidade) atuar na defesa da vida,
garantindo o direito ao meio ambiente, à qualidade de vida e à produção do ali-
mento saudável. No Brasil, a cidadania ambiental é um legado dos movimentos
ambientalistas7 e tem sido construída a partir de ações de educação ambiental
comprometidas com a sustentabilidade da vida.

Tecnologia social como metodologia de intervenção e organização social de


f povos e comunidades tradicionais – A tecnologia social é aqui entendida como o
“conjunto de técnicas, metodologias transformadoras, desenvolvidas e(ou) aplica-
das na interação com a população e apropriadas por ela, que representam solu-
ções para inclusão social e melhoria das condições de vida8”. Trata-se de incentivar
o “campo do fazer” dos povos e comunidades tradicionais e outros, em atuação
com instituições públicas, sociedade civil organizada, movimentos sociais, para a
produção de conhecimento de modo a aproximar os problemas sociais de suas
soluções. Essa perspectiva torna premente o diálogo entre os saberes populares
e acadêmicos na construção do conhecimento nas dimensões sociocultural, am-
biental, econômica e política.

7 Ver Maria Helena Ferreira Machado. Os novos movimentos sociais e a emergência da cidadania ambiental. In: Elisa-
bete Matallo Marchesini de Pádua e Heitor Matallo Júnior (orgs). Ciências Sociais, complexidade e meio ambiente: interfaces e
desafios. Campinas, SP: Papirus, 2006
8 ITS BRASIL - Instituto de Tecnologia Social. Caderno de Debates. Série Conhecimento e Cidadania 1, Tecnologia Social,
São Paulo: ITS, 2007, p. 29.

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SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Os textos que apresentamos nesta pri- O conhecimento tradicional, saberes e fa-


meira parte são resultados de pesquisas que zeres a partir das sementes crioulas em uma
tratam da sociobiodiversidade no Cerrado, comunidade tradicional da Chapada dos Vea-
do conhecimento tradicional e da educação deiros, o Sertão, está registrado na pesquisa
para a sustentabilidade. Todos dialogam com de Selma de Almeida Bernardes e Nina Paula
os princípios anteriormente apresentados. Laranjeira. O olhar da comunidade, homens
São trabalhos comprometidos com experi- e mulheres, sobre as sementes crioulas nos
ências e práticas voltadas para a construção revela os desafios diante das rupturas do co-
da sustentabilidade e a superação da crise nhecimento tradicional e como (re)construí-
ambiental. O primeiro trabalho, de Cleonice -lo
Maria da Silva (Toá Kãnynã Pankararu), Môni- Compreendemos que a valorização da
ca Celeida Rabelo Nogueira e Renata Corrêa sociobiodiversidade é uma estratégia funda-
Martins, registra a pesquisa sobre a erosão mental na construção da sustentabilidade.
do conhecimento e como isso pode trazer Os trabalhos desta primeira parte nos dei-
implicações nas práticas de curas de raizei- xam esse aviso atencioso. Esperamos que
ros(as), benzedores(as), curandeiros(as) e gostem e que as pesquisas aqui sistematiza-
pajés. O estudo trata das comunidades indí- das possam inspirar outros trabalhos volta-
genas Pankararu-Pataxó e Aranã e de como dos para traduzir a riqueza sociocultural, os
o conhecimento desses povos originário têm saberes e os fazeres biodiversos, os desafios
resistido diante dos desafios e possiblidades e como a educação ambiental pode ser um
do desaparecimento de seus saberes. forte instrumento de construção de novas
O papel estratégico da educação ambien- narrativas sociais conectadas com a vida e a
tal na formação de sujeitos comprometidos biodiversidade.
com a sustentabilidade é apresentado por
Maria José Ferreira da Silva e Tânia Cristina
da Silva Cruz no segundo trabalho. A experi-
ência educativa realizada no Colégio Estadu-
al Moisés Nunes Bandeira, em Alto Paraíso
de Goiás, e seus diálogos para a sustentabi-
lidade são registrados na pesquisa, que se
desenvolveu a partir de projetos e ações
educativas junto com jovens estudantes,
professores e professoras da escola.

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SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Foto: Thamyris Andrade

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SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

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SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

O desaparecimento
das plantas medicinais
do Cerrado: implicações
nas práticas de curas
de raizeiros(as),
benzedores(as),
curandeiros(as) e
pajés das comunidades
indígenas Pankararu-
Pataxó e Aranã

Cleonice Maria da Silva


(Toá Kãnynã Pankararu)9
Mônica Celeida Rabelo Nogueira10
Renata Corrêa Martins11

9 Bióloga, indígena da etnia Pankararu. Atua no Distrito Sanitário de Saúde Indígena no município de Araçuaí (MG);
especialista em Sociobiodiversidade e Sustentabilidade no Cerrado pelo Centro de Estudos do Cerrado da Chapada dos Vea-
deiros (Centro UnB Cerrado) da Universidade de Brasília, em Alto Paraíso de Goiás, Goiás. E-mail: clncsilva19@gmail.com.
10 Antropóloga, doutora em Antropologia Social pela UnB. Professora adjunta da UnB. Atua no Centro UnB Cerrado e na
Faculdade UnB Planaltina. E-mail: celeida@unb.br
11 Bióloga, doutora em Botânica pela UnB. Professora do Centro UnB Cerrado de 2017 a 2019. E-mail: renatacerrado@
gmail.com

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SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

1. O que é a pesquisa?

O
bioma Cerrado abriga rica socio- Quando os colonizadores, chamados pe-
biodiversidade que se adapta e los povos originários de invasores, chegaram
assume características próprias ao Brasil, o território mineiro era dominado
e peculiares. O processo acelerado de ex- por inúmeros povos indígenas como os Ma-
tinção da diversidade de espécies de plan- xakali, Poté, Naknenuk, Pojichá e Aranã. Mui-
tas medicinais é uma realidade trágica que tos registros informam que a colonização ex-
vem ocorrendo em diversos ecossistemas pulsou todos esses povos de seus territórios
que formam o Cerrado (BARBOSA, 2002). originários (SOARES, 2015). Nesse período,
Nesse espaço territorial, vivem vários povos com o violento processo de desterritoriali-
indígenas e uma grande diversidade de po- zação, muitas nações desapareceram, como
vos tradicionais, que fazem uso sustentável exemplo, Poté, Naknenuk (hoje, nomes de ci-
da biodiversidade em uma relação ancestral dades de Minas Gerais) e Pojichá.
com as diversas formas de vida. Entre esses
povos que habitam esse rico espaço, encon-
tram-se representantes dos povos Pankara-
ru e Pataxó, das aldeias Cinta Vermelha-Jun-
diba (Araçuaí), e Aranã, da Fazenda Alagadiço
(Coronel Murta) localizadas na região do Mé-
dio Jequitinhonha, nordeste de Minas Gerais
(MG), em uma área de transição de Cerrado,
Caatinga e vestígios de Mata Atlântica.

Os Pankararu, originários do Vale do São Os dois grupos se estabeleceram no nor-


Francisco, Sertão Pernambucano, do tronco deste de Minas Gerais, formando novas al-
Macro-Jê, tiveram seu território invadido por deias. Uma delas é conhecida como Aldeia
colonizadores, senhores de engenho, escra- Cinta Vermelha-Jundiba (SOARES, 2015).
vagistas e missões religiosas (ARRUTI, 1996).
Os Aranã, tronco Macro-Jê, família linguís-
A língua não é falada localmente. Alguns
tica Krenak, foram dados como extintos,
membros desse grupo se comunicam em lín-
ressurgindo no final do século XX. O grupo
gua Xerente, idioma da família Jê.
Aranã contemporâneo remonta sua história
O povo Pataxó é originário do litoral da a partir de um ancestral aldeado em Itamba-
Bahia. Do tronco Macro-Jê e família linguís- curi, região do Vale do Rio Mucuri, Minas Ge-
tica Maxakali, atualmente a língua falada é a rais (CALDEIRA, 2001).
patxohã, em fase de revitalização.

20
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

O diagnóstico do desaparecimento dos usos tradicionais de plantas medicinais motivou a


pesquisa e sistematização desse conhecimento junto às comunidades indígenas Pankararu-
-Pataxó e Aranã. Realizou-se análise e reflexões sobre impactos nas práticas e processos de
cura, ainda utilizados por esses povos, considerando a medicina tradicional como um patrimô-
nio ancestral, do qual as populações originárias e tradicionais são guardiãs.

Figura 1: Povos indígenas em Minas Gerais (século XXI).

Fonte: Associação Indígena Pankararu-Pataxó (SOARES, G. C. Na trilha guerreira dos BORUN)

Legenda:
1. Xukuru-Kariri (Caldas), 2. Puri (Araponga), 3. Kaxixó (Martinho Campos), 4. Pataxó
(Itapecerica e Carmesia), 5. Krenak (Resplendor), 6. Pataxó Hã-hã-hãe (Frei Gaspar), 7.
Mokuriñ (Campanário), 8. Maxakali (Santa Helena, Ladainha, Bertópolis e Teófilo Otoni),
9. Aranã (Coronel. Murta), 10. Pankararu (Araçuaí), 11. Xakriabá (São João das Missões)

21
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

2. Como a pesquisa foi realizada?

P
or meio da vivência e pesquisa par- A sistematização da pesquisa, realizada em
ticipante nas comunidades (BRAN- 2018, demonstrou que as plantas (ervas me-
DÃO e STREK, 2006) emergiu a dis- dicinais) podem ser divididas de acordo com
cussão acerca dos impactos negativos da seu uso, indicação ou recomendação, como:
degradação ambiental e da perda da diver- plantas espontâneas (conhecidas também
sidade de plantas medicinais sobre as práti- como indicadoras ou orientadoras), plantas
cas e processos de cura, física e espiritual, e de uso feminino, plantas de uso masculino,
nos rituais realizados por raizeiros(as), ben- plantas de uso infantil ou em recém-nasci-
zedores(as) e também pajés das comunida- do, plantas de uso em animais domésticos,
des indígenas da Aldeia Cinta Vermelha e da plantas repelentes e plantas ritualísticas
Fazenda Alagadiço. Essa discussão potencia- (benzimento e pajelança). Nos quadros 1 a
lizou-se com a colaboração de dois interlocu- 8, apresentamos uma lista de plantas siste-
tores praticantes da medicina tradicional. A matizadas a partir da pesquisa de campo nas
primeira interlocutora, Toá Kãnynã Pankara- comunidades. Outros estudos auxiliaram no
ru, uma das autoras deste texto, é conside- registro dos usos e indicações das plantas
rada, pela comunidade indígena Pankararu, medicinais utilizadas.12
guardiã da cultura e da espiritualidade do As plantas ritualísticas identificadas neste
seu povo (como todos os Pankararu e Pa- estudo apresentam-se em dois grupos: as de
taxó que moram em Minas Gerais, ela tam- benzimentos e as de pajelança ou de cura.
bém é migrante). O segundo interlocutor, Considerando a dimensão e a complexidade
representante do povo Aranã, residente na do uso, cada uma delas é utilizada em dife-
Fazenda Alagadiço, é considerado o principal rentes espaços e por diferentes praticantes
conhecedor das práticas de benzimentos da da medicina tradicional que conhecem pro-
região e atende não somente os indígenas, fundamente as formas de manuseio adequa-
mas também moradores das áreas circunvi- do e as inúmeras recomendações de uso.
zinhas.
Notam-se algumas diferenças importan-
A região do Vale Jequitinhonha apresenta tes entre o uso dessas plantas. As plantas
uma diversidade de ambientes que acolhe ritualísticas de benzimentos podem ser usa-
as mais diversas ervas e plantas medicinais: das por qualquer pessoa que tenha boas
chapada, capão, tabuleiro, carrasco, caatinga, energias e dons espirituais, de acordo com
brejo, campo (DIAS e LAUREANO, 2009) identi- sua crença e em uma dimensão menos pro-
ficou-se na pesquisa cerca de 70 plantas na- funda. O executor do benzimento estabelece
tivas encontradas em diversos ambientes de uma relação de fé entre o indivíduo e a divin-
áreas de transição do Cerrado ou cultivadas dade e pede benção ou proteção à pessoa
nas hortas, quintais e pomares. necessitada.

12 Na pesquisa, não foi utilizada a nomenclatura científica para o reconhecimento e a identificação da diversidade de
plantas citadas, apenas os nomes populares utilizados por raizeiros(as), benzedores(as) e pajés da comunidade local e da
região.

22
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

As plantas ritualísticas de pajelança ou as


utilizadas por curandeiros(as) só podem ser
usadas por pessoas que se conectam a uma
dimensão sobrenatural mais profunda. Há
um preparo mais disciplinado. Não é qual-
quer um que pode trilhar os caminhos do
universo da pajelança ou do curandeirismo,
devido aos mistérios e aos segredos em tor-
no da utilização dessas plantas, que reque-
rem um conhecimento sobrenatural dos ri-
tuais para o uso correto.
As plantas ritualísticas de benzimentos e
de pajelança são injustamente ameaçadas
por crenças religiosas fundamentalistas. São
plantas conhecidas pelos curandeiros(as):
ajuká ou jurema, aruanda ou capim-caboclo,
amescla e arruda. Outras plantas atingidas
por preconceitos são as usadas por partei-
ras, raizeiros(as) e curandeiros(as), conheci-
das como: sete-junta, vassourinha, mirra e
tipi.
Para os benzedores(as), raizeiros(as) e pa-
jés, a vida dos seres está em equilíbrio, tudo
está conectado em forma de uma “teia de
aranha”. A ausência de algumas plantas tem
como consequência a ruptura da teia que
alimenta e nutre o organismo físico e o es-
piritual. “O bom alimento fortalece a alma”,
afirma a benzedeira Toá Kãnynã Pankararu.
O conhecimento que os pajés possuem
sobre a flora local e a manipulação das er-
vas é digno de reconhecimento e não con-
siste numa forma paliativa ou atrasada de
lidar com problemas de saúde. Ele resulta de
anos de observação e prática e depende da
transmissão de conhecimentos por meio da
oralidade.

23
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

3. Importância da pesquisa
para a sociobiodiversidade e a
sustentabilidade no cerrado

A
perda e a degradação territorial Os impactos são percebidos com muita
que incidem sobre o desapareci- preocupação e resiliência pelas comunida-
mento de algumas plantas (ervas des indígenas Pankararu-Pataxó e Aranã. A
medicinais) usadas nos rituais, bem como capacidade de criar e recriar novas estraté-
preconceitos religiosos externos, que in- gias para manter suas práticas, defender o
terferem violentamente nas práticas e nos Cerrado, suas culturas, suas identidades, re-
processos de cura, nos saberes e nos co- solver novos problemas que afetam a saúde,
nhecimentos, são fatores que impactam a doenças como diabetes e depressão, é o ca-
perda da identidade de benzedores(as), rai- minho que tem sido buscado por essas co-
zeiros(as), curandeiros(as) e pajés e, conse- munidades.
quentemente, no uso das ervas medicinais e A pesquisa demonstrou que é necessário
ritualísticas. e urgente reconhecer o valor da medicina
Análise e reflexões críticas sobre os dados tradicional dos povos do Cerrado, através da
obtidos demonstraram que, além do desa- valorização e do respeito do conhecimento
parecimento das plantas medicinais, ações indígena. Construir, reconstruir e fortalecer
sociopolíticas e religiosas implicam direta e redes ou teias, como fazem raizeiros(as),
indiretamente nas práticas de cura e ritualís- curandeiros(as) e pajés em seus mundos na-
ticas de benzedores(as), raizeiros(as), curan- turais e sobrenaturais.
deiros(as) e pajés, que sofreram e ainda so-
frem impactos importantes desencadeados
pelos modelos hegemônicos e epistemicidas
da atual sociedade capitalista.

24
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Quadro 1: Plantas espontâneas

Nome Uso medicinal/indicação


Depurativo, diurético, vermífugo e fonte abundante de proteínas, vitaminas
Beldroega
A, B e C, cálcio, fósforo e ferro
Capeba Diurético e desopilante do fígado
Carurus Tratamento de anemia e desnutrição
Dente-de-leão Tônico, combate à febre, depurativo, antidiarreico, anti-hemorrágico e
diurético

Joá-manso Diurético e tratamento de inflamação dos olhos


Jurubeba Desintoxicante do fígado, tratamento da inapetência e tônico
Lágrima-de-nossa-senhora Diurético, tratamento de pressão alta e amuleto de proteção (físico e
espiritual)

Lírio do brejo Tratamento de gripe e bronquite; antirreumático; cardiotônico; aumento da


imunidade; e oferenda para os seres protetores espirituais

Mastruço Tratamento de verminose, febre e problema estomacal; cataplasma para


luxação muscular e ossos; banhos; e benzimentos

Melão-de-são-caetano Tratamento de febre, problemas de pele e escabiose; e banhos para


parturiente

Mostarda Tratamento de problemas urinários e anti-inflamatório


Ora-pro-nóbis Expectorante e laxativo
Serralha Fortificante, laxativo, depurativo e tratamento de problemas do estômago e
do fígado

Tanchagem Cicatrizante, anti-inflamatório, expectorante e tratamento de infecções de


garganta e vias urinárias

Tiririca amarela Tratamento da desnutrição


Tomatinho Laxativo e tratamento de calos e abscessos
Laxativo e tratamento de problema urinário, cistite, uretrite, dores
Trapoeraba reumáticas, acalmar coceiras e escabiose

Urtiga Diurético e tratamento de paralisia


Tratamento de artrite, artrose, anemia e diabetes; depurativo; e
Urtiga-branca
benzimentos

Sagrada para os Pankararu


Diurético, tônico, tratamento de males do estômago, emoliente e febrífugo.
Vinagreira É muito importante para o povo Aranã, pois, dela, faz-se uma bebida muito
apreciada pelo grupo: o chamego

Elaborado por Cleonice Silva, 2018 a partir de Zurlo e Brandão (1989).

25
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Quadro 2: Plantas de uso feminino

Nome Popular Uso medicinal/indicação


Anchota ou enxota Tratamento de problemas aparelho reprodutor e uso no pós-parto
Artimijo ou Artemísia Uso no pós-parto, anti-inflamatório e regulador da menstruarão
Babatimão Tratamento de doença sexualmente transmissível (DST) e cicatrizante
Crista-de-galo Tratamento de DST, cicatrizante e anti-inflamatório das vias genitais
Mentrasto Tratamento de cólicas menstruais e anti-inflamatório uterino

Tiborna Aumento da fertilidade

Elaborado por Cleonice Silva, 2018.

Quadro 3: Plantas de uso masculino

Nome popular Uso medicinal/indicação

Catuaba Energético

Cipó-são-joão Tratamento de inflamação nas vias urinárias

Jurubebinha Fortificante

Nó-de-cachorro Tratamento de impotência sexual


Elaborado por Cleonice Silva, 2018.

Quadro 4: Plantas de uso infantil e em recém-nascido

Nome popular Uso medicinal/indicação


Alecrim Tratamento de cólicas e agitação
Alfazema Tratamento de agitação e dores
Poejo Tratamento de cólicas e gases
Alevante Tratamento de gases e dores

Hortelanzinho Calmante

Erva-doce Calmante e tratamento de gases


Cidreira-do-campo Tratamento de cólica, gases e agitação (mal estar, desconforto, incômodo)
Ruibarbo Uso no período de dentição
Sapê Uso no período de dentição
Elaborado por Cleonice Silva, 2018.

26
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Quadro 5: Plantas de uso em animais domésticos

Nome popular Uso medicinal/indicação


Anil Tratamento de verminose e parasitas na pelagem (pulgas)
Algodão Tratamento de inflamação
Mastruz Tratamento de verminose e inflamação e desintoxicante
Babosa Tratamento de infecção e parasitas na pelagem
Caraíba Tratamento de fraqueza e desânimo
Caroba Tratamento de fraqueza e desânimo
Faveleira ou Favela Vitamínico e suprimento alimentar
Gendiroba Anti-inflamatório

Jatobá Vitamínico e tratamento de anemia

Mamona-branca Verminose e tratamento de parasitas


Mamona-rocha Verminose e tratamento de parasitas da pelagem
Maracujá-nativo Calmante e vitamínico
Pinhão-bravo Tratamento de verminose e limpeza do intestino
Piteira Tratamento de fraqueza
Polista Tratamento de infecção e inflamação

Quina-preta Tratamento de infecção e inflamação e fortificante

Sucupira Tratamento de inflamação e parasitas


Batata-de-tiú Tratamento de infecção e picadas de animais peçonhentos (ex.: cobra)
Unha-danta Tratamento de infecção, inflamação e machucaduras
Elaborado por Cleonice Silva, 2018.

Quadro 6: Plantas com propriedade inseticida

Nome Uso medicinal/indicação


Arruda Combate pulgões em hortas e pomares
Cravo-de-defunto Repelente
Capim cidreira Combate carrapatos em animais
Citronela Repelente de pernilongos e mosquitos
Eucalipto Uso na preservação de grãos
Nee-Nim Combate lagartas
Saboneteira Combate insetos
Elaborado por Cleonice Silva, 2018.

27
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Quadro 7: Espécies ameaçadas e situação das práticas nos rituais Pankararu-Pataxó

Nome popular

Plantas de Plantas
ritualísticas Uso medicinal/indicação Situação das práticas
benzimentos
Vassourinha-do- Repelir o mal e conexão com os Ausência da prática
Ajuká encantados
campo
Guiné Junco Equilíbrio espiritual Com frequência
Quebra- Equilíbrio e conexão com o cosmo Pouca prática
Aruanda
demanda
Folha-de- Orientação espiritual Prática ausente
Mirra
arara

Pau-de- Fortalecimento espiritual Pouca prática


cheiro
Equilíbrio do ambiente Prática com frequência
Amesca

Cana-brava Coité Proteção e fortalecimento espiritual Pouca prática

Elaborado por Cleonice Silva, 2018.

Quadro 8: Plantas de benzimentos

Plantas de benzimentos Uso medicinal/indicação Situação das práticas

Vassourinha-do-campo Equilíbrio espiritual Frequente


Arruda Contra mal-olhado e inveja Frequente
Fedegoso Tratamento de quebranto e desequilíbrio emocional Frequente

Mastruz Tratamento de mal-estar e fraqueza Frequente

Amesca Equilíbrio do ambiente Pouco frequente


Elaborado por Cleonice Silva, 2018.

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SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

REFERÊNCIAS

ARRUTI, J. M. P. A. O reencantamento do mundo: trama CALDEIRA, V. O povo Aranã ressurge na história do

histórica e arranjos territoriais Pankararu. 1996. Dis- Vale do Jequitinhonha. Revista Expresso Notícias, Cape-

sertação (Mestrado em Antropologia Social) ‒ Museu linha (MG), n. 1, 2001.

Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio DIAS, J. E.; LAUREANO, L. C. (coord.). Farmacopeia Po-
de Janeiro, 1996. pular do Cerrado. Goiás: Articulação Pacari, 2009.

BARBOSA, A. S. A medicina das comunidades do Cerrado SOARES, G. C. Entrevista: Gera Soares fala sobre os
– PALESTRA: 3º ENCONTRO DE BENZEDEIRAS, PARTEI- índios Pankararu e Pataxó, no Vale do Jequitinhonha.
RAS E RAIZEIRAS DO CERRADO –GOIÂNIA, 2002, ITS/ [Entrevista cedida a] Nayá Fernandes. Diário de Minas,
UCG. p. 10. 2015.

BRANDÃO, Carlos R.; STRECK, Danilo R. (Org.). Pesqui- ZURLO, Cida; BRANDÃO, Mitzi. As Ervas comestíveis:
sa participante: o saber da partilha. São Paulo: Ideias descrição, ilustração e receitas. Coleção do Agricultor.
& Letras, 2006. Rio de Janeiro: Publicações Globo Rural, 1989. Link
de acesso ao trabalho completo: https://bdm.unb.br/
handle/10483/21526

29
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

VOCÊ sabia?
Bioma
Cerrado

B
ioma é um espaço geográfico natu- Os solos têm boa porosidade e os lençóis
ral caracterizado pela semelhança freáticos são permanentes, o que garante
das condições edáficas (relaciona- o suprimento de água a muitas plantas do
das ao solo), climáticas e fitofisionômicas (o Cerrado que têm raízes profundas e podem
“jeitão” que a vegetação do local tem). atingir camadas de solo permanentemente
No Brasil são identificados 6 biomas con- úmidas. Isso também justifica a floração de
tinentais e o Cerrado está entre os mais im- algumas espécies mesmo na época da seca,
portantes, pelo tamanho da área ocupada, como os ipês. É importante lembrar que a
pela riqueza biológica e pela importância parte subterrânea da vegetação do Cerra-
para as águas. do, como raízes, bulbos e rizomas, apresen-
ta biomassa muito mais elevada que a parte
O Cerrado brasileiro é conhecido como a aérea, ou seja, a massa da planta que está
savana com maior biodiversidade no mun- por baixo do solo é bem maior do que aque-
do. É também reconhecido como berço das la que vemos na parte de cima. As árvores
águas do Brasil, por ocupar a região central apresentam raízes profundas, espalhadas
do país, nascedouro das principais bacias hi- em um solo poroso em busca da água, du-
drográficas brasileiras. rante todo o ano – um Cerrado subterrâneo,
O bioma Cerrado é o segundo maior do um berço de vida em associação com mui-
Brasil, localiza-se principalmente no Planalto tos outros seres vivos, que muitas vezes nem
Central do país e se estende por aproxima- imaginamos existir.
damente 1,5 milhões de quilômetros quadra-
dos, com altitudes que variam entre 300m e REFERÊNCIA
1700m. Há duas estações bem definidas: a
MELO, S.de; ZANK, S.; SALGADO, G. O bioma Cerra-
seca, de maio a setembro, e a chuvosa, de
do. IN: ÁGUAS, C. P.; LARANJEIRA, N. P.; SILVA, C. T. da
outubro a abril.
(orgs). Águas e Saberes na Chapada dos Veadeiros.
Juiz de Fora, MG: Editora Águas, 2021. P. 56 a 60. Ca-
pítulo 8. Disponível em: naspaibc.wixsite.com/naspa.
Acesso em: 20 jun. 2021.

30
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Biodiversidade SOCIOBiodiversidade

B
iodiversidade ou diversidade bioló-
gica é o grau de variação de vida. O
termo pode ser entendido de várias
formas, já que descreve ao mesmo tempo a
variedade e a riqueza de todas as espécies
(diversidade de espécies), a variedade dos
genes contidos dentro de cada indivíduo de
tais espécies (diversidade genética) e tam-

S
bém a variedade de ecossistemas dentro de ociobiodiversidade é um conceito
uma área, bioma ou do próprio planeta (di- que expressa a inter-relação entre a
versidade de ecossistemas). diversidade biológica e a diversidade
Diante das ameaças que vem sofrendo de sistemas socioculturais.
a biodiversidade no planeta, em 1992, du- Entre os sistemas socioculturais conside-
rante a Conferência RIO-92, foi estabelecida rados, estão os sistemas agrícolas tradicio-
a Convenção Sobre Diversidade Biológica, nais (agrobiodiversidade), assim como as di-
por meio de assinatura de um tratado por versas formas do uso e o manejo de recursos
diversas nações. Até os dias de hoje é um naturais, realizados por povos originários,
dos principais instrumentos internacionais populações tradicionais e agricultores fami-
relacionados ao meio ambiente. No Brasil, liares, de acordo com seus conhecimentos e
este tratado foi formalizado pelo Decreto Le- culturas. São gerados dessa forma diversos
gislativo nº 2, de 1994, que, em seu Artigo 2, “Produtos da Agrobiodiversidade”, definidos
define a diversidade biológica: “significa a va- no mesmo documento como “bens e serviços
riabilidade de organismos vivos de todas as gerados a partir de recursos da biodiversida-
origens, compreendendo, dentre outros, os de, voltados à formação de cadeias produ-
ecossistemas terrestres, marinhos e outros tivas de interesse de povos e comunidades
ecossistemas aquáticos e os complexos eco- tradicionais e de agricultores familiares, que
lógicos de que fazem parte; compreendendo promovam a manutenção e valorização de
ainda a diversidade dentro de espécies, en- suas práticas e saberes, e assegurem os di-
tre espécies e de ecossistemas.” reitos decorrentes, gerando renda e promo-
REFERÊNCIAS vendo a melhoria de sua qualidade de vida e
do ambiente em que vivem”
O ECO. Dicionário Ambiental - O que é Biodiversidade.
MDA/MMA/MDS. Plano Nacional de Promoção das
7 agosto 2014. Disponível em: https://www.oeco.org.
Cadeias de Produtos da Sociobiodiversidade. Bra-
br/dicionario-ambiental/28548-o-que-e-biodiversida-
sília, 2009. Disponível em: https://bibliotecadigi-
de/. Acesso em: 01 out. 2021.
tal.seplan.planejamento.gov.br/bitstream/hand-
CONVENÇÃO SOBRE DIVERSIDADE BIOLÓGICA – cópia
le/123456789/1024/Plano%20Sociobiodiversidade.
do Decreto Legislativo no. 2, de 5 de junho de 1992.
pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 01 out.
Ministério do Meio Ambiente (MMA). Disponível em:
2021.
https://www.gov.br/mma/pt-br/textoconvenoportu-
gus.pdf. Acesso em: 01 out. 2021.

31
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Uma abordagem sistêmi-


ca para a Educação Ambien-
tal: um olhar pelo prisma de
linguagens, códigos e suas
tecnologias
Maria José Ferreira da Silva13
Tânia Cristina da Silva Cruz14

13 Formação, Licenciada em Letras, Pedagogia e Filosofia, atua como professora no Colégio Estadual Moisés Nunes Ban-
deira. Especialista em Sociobiodiversidade e Sustentabilidade no Cerrado pelo Centro de Estudos do Cerrado da Chapada dos
Veadeiros (Centro UnB Cerrado) da Universidade de Brasília, em Alto Paraíso de Goiás, Goiás. E-mail: araikeyans@gmail.com
14 Socióloga, doutora em Sociologia pela UnB. Professora adjunta da UnB. Atua no Centro UnB Cerrado e na Faculdade
UnB Planaltina. Email: taniacruz@unb.br

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SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

E além de nascer, o que de mais bonito ainda haverá


Além de viver, mais histórias bonitas eu quero contar
(“Imensidão”, Flávia Wenceslau)

1. O que é a pesquisa?

A
educação como ação transforma- Sorrentino et al. (2005) ressaltam que as
dora aciona mudanças de atitudes práticas educacionais voltadas para o meio
e mentalidades em toda e qual- ambiente auxiliam no processo de constru-
quer sociedade que deseja verdadeiramente ção do indivíduo, dando-lhe uma noção de
evoluir. Jacobi (2005) observa que as práticas coletividade importante para que, assim,
educativas devem buscar propostas pedagó- reconheça o seu papel como responsável
gicas que foquem mudanças importantes na pelo mundo no qual vive. Dias (2004) contri-
formação dos indivíduos, como modificação bui para essa visão ao avaliar que é função
de hábitos, atitudes e práticas sociais, priori- da educação ambiental ampliar a forma de
zando o desenvolvimento de competências, percepção individual e coletiva da socieda-
a capacidade de avaliação e a participação de, para que, tanto o sujeito quanto o gru-
dos educandos. Nesse sentido, a educação po, internalize os conceitos fundamentais
ambiental pode ter uma função transfor- de forma consciente e, assim, reconheça a
madora, promovendo um novo desenvolvi- necessidade de agir para mudar, sendo que
mento socioambiental sustentável, ao dar tais ações não devem se restringir somente à
aos sujeitos responsabilidade dentro desse sala de aula.
processo. Entende-se a educação ambiental Entre as competências técnicas em ações
como condição necessária para modificar o de educação ambiental, de acordo com os
quadro de crescente degradação socioam- Parâmetros Curriculares Nacionais para o
biental (JACOBI, 2003). ensino de ciências naturais (BRASIL, 1997),
está a capacidade investigativa do(a) estu-
dante sobre os resultados das intervenções
humanas no meio ambiente, por meio da
circulação e transformações dos materiais e
recursos existentes no nosso planeta, bus-
cando a construção de conhecimentos fun-
damentais que promovam a consciência e
preservação ambiental. Nesse sentido, o(a)
estudante necessita ser estimulado(a) a tra-
çar conexões entre a sua realidade e conhe-
cimento teórico dado em sala.

33
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

A educação ambiental transformadora O Colégio Estadual Moisés Nunes Bandei-


pode dinamizar as ações para uma socie- ra, estabelecimento oficial de ensino médio,
dade que se quer equânime, justa e frater- regido pela Secretaria de Estado de Educa-
na. Integrá-la a disciplinas como artes e lín- ção de Goiás, situado no município de Alto
guas portuguesa, inglesa, espanhola e suas Paraíso de Goiás, é um órgão executor das
literaturas, ministradas no ensino médio, é políticas educacionais definidas pelo Estado.
importante estratégia de integração e inte- A atividade educativa do Moisés Bandeira, de
ração para uma educação que promova a acordo com o Projeto Pedagógico de Curso
sustentabilidade, o bem viver e para a promo- (PPC) (PROJETO, 2014), visa ao pleno desen-
ção da valorização da sociobiodiversidade. É volvimento dos jovens que atende, propician-
a nova abordagem educativa, que conduz os do o preparo para o exercício da cidadania, a
jovens por um caminho de construção do vir orientação e a qualificação para o trabalho,
a ser humanamente e naturalmente susten- norteados por princípios morais, ambientais
tável (JACOBI, 2003). e de boa convivência social.
O ensino médio, derradeira fase da edu- Foi nesse Colégio que se desenvolveu
cação básica, segundo a Lei de Diretrizes e a pesquisa como parte do trabalho de lan-
Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394, çar um novo olhar sobre essa fase da edu-
de 20 de dezembro de 1996), é obrigatório, cação básica e promover reflexões sobre a
e cabe aos estados atender a todos os que educação para a sustentabilidade como um
concluem o ensino fundamental, segunda diferencial para o ensino médio, a partir da
fase, como estabelecido pelo Plano Nacional área de linguagens, códigos e suas tecnologias,
de Educação (BRASIL, 1996). Para isso, neces- especialmente no estudo das línguas portu-
sário se faz aumentar o acesso ao número de guesa, inglesa e espanhola, em interface com
vagas disponíveis, de forma que, nessa fase, outras ações desenvolvidas na escola. Sabe-
os jovens se preparem para vencer novos de- -se que a língua é uma ferramenta de poder
safios, com valores e atitudes sustentáveis e político, social e, principalmente, intelectual
em sintonia com a agenda global ambiental, (FOUCAULT, 1979). Entende-se que, por meio
e que aprendam a elaborar e a desenvolver do estudo das diversas línguas, os jovens po-
projetos de vida que os levem a atuar como dem se apropriar de informações e conheci-
agentes transformadores em suas comuni- mentos que os despertem para a compreen-
dades. É de fundamental importância que são de seu mundo e de seu tempo; para um
as escolas se adequem e se estruturem para mundo no qual o bem viver seja uma orien-
promoverem oportunidades de desenvolver tação para a convivência dos homens e das
conhecimentos em consonância com os usos mulheres e sua interação/integração com a
sustentáveis dos recursos naturais e o reco- vida do planeta. A pesquisa teve entre seus
nhecimento da sociobiodiversidade. objetivos identificar a prática educativa que
induza os jovens a refletir sobre a sustentabi-
lidade nos diversos aspectos formativos para
a integração do ser humano na teia da vida.

34
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Não posso respirar, não posso mais nadar


A terra está morrendo, não dá mais pra plantar
E se plantar não nasce, e se nascer não dá.
(“Xote Ecológico”. Luiz Gonzaga)

2. Como a pesquisa foi realizada?

A
pesquisa se fundamentou em uma perspectiva investigativa qualitativa, basea-
da em revisão bibliográfica, levantamento e interpretação de textos. Realizou-
-se pesquisa documental no projeto pedagógico da escola para identificar como
esse projeto dialoga com uma educação pautada para a sustentabilidade da vida. Além
disso, a observação da prática didático-pedagógica, desenvolvida por meio de trabalho
integrado em sala de aula e na realização da Semana de Meio Ambiente do Colégio Moíses
Nunes Bandeira, foi fundamental para atingir o objetivo da pesquisa.
Entre o segundo semestre de 2017 e o primeiro semestre de 2018, dialogaram o corpo
docente (10 professores) e discentes (cerca de 100 alunos) do Colégio Estadual Moisés Nu-
nes Bandeira, do turno vespertino, sobre o tema da pesquisa: a sustentabilidade da vida.

Figura 1: Educação Ambiental como disciplina integradora a partir de linguagens, códigos e suas
tecnologias na Semana do Meio Ambiente – Colégio Estadual Moisés Nunes Bandeira.

Fonte: Arquivo de Maria José Ferreira da Silva, 2018.

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SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

As ações para a Semana de Meio Ambiente do Colégio Moisés Bandeira (de 4 a 7 de junho de
2018) foram fundamentais para levantar dados e sistematizar dados da pesquisa. Professores
e professoras de Artes, Biologia, Educação Física e Matemática se mobilizaram para a prepa-
ração e a realização da Semana. Músicas foram utilizadas no ensino de línguas; estudos sobre
os Objetivos do Milênio (em inglês), os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e a
Agenda 21 foram discutidos em sala de aula e trabalhados com estudantes durante a Semana
do Meio Ambiente.
As atividades da Semana abrangeram os seguintes objetivos:

I colaborar para o desenvolvimento de uma educação de base socio-


ambiental, em que todas as disciplinas podem e devem trabalhar e
questionar os diversos temas que fazem parte da formação e das
vidas dos jovens, especialmente através do estudo das línguas;

II despertar o interesse dos alunos de ensino médio


pela valorização do ambiente e pelo conhecimento
da preservação da história e da educação local;

sugerir uma reforma didático-pedagógica para o


III ensino médio pautado numa educação para o bem
viver;

promover uma educação a partir do co-


IV nhecimento do ambiente que induza os
indivídubos, como elo primordial na teia
da vida e da sustentabilidade.

Temas pesquisados e sistematizados na Os (as) estudantes apresentarem seus tra-


Semana do Meio Ambiente Semana de Meio balhos para a comunidade escolar e local,
Ambiente do Colégio Moíses Nunes Bandei- analisando situações e propondo soluções e
ra: homem e meio ambiente; Alto Paraíso de intervenções de preservação, conservação,
Goiás ontem e hoje; cadeias produtivas sus- integração e interação do homem com a
tentáveis locais; agricultura simbiótica e pro- natureza.
dutores locais; monocultura no Cerrado; tec-
nologia e sustentabilidade; sustentabilidade
e resiliência; tecnologia e biotecnologia; e ci-
dades sustentáveis.

36
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

3. Como a pesquisa foi realizada?

A
pesquisa e ações realizadas no queremos viver e qual o legado para as
Colégio Moíses Nunes Bandeira próximas gerações.
trouxeram muitas reflexões sobre A pesquisa revelou jovens de Alto Paraíso
a sustentabilidade da vida. Entre elas desta- mais preocupados(as) com uma atitude res-
camos: ponsável e comprometidos(as) em direção
; preocupações com as mudanças climá- às transformações que a sociedade e o pla-
ticas que atingem o Cerrado, bem como neta exigem; uma juventude preocupada em
o desrespeito e perda da biodiversidade aprender para a vida e para contribuir para a
que compõe a vida do planeta. melhoria das condições ambientais locais da
; a necessidade do ser humano se reconhe- cidade de Alto Paraíso de Goiás; a urgência
cer como parte da natureza em ações de da defesa do Cerrado e de sua sociobiodiver-
preservação, conservação e recuperação sidade e o papel de cada um para um mundo
dos biomas e dos ecossistemas, quer se- mais equânime, fraterno e para o bem viver.
jam eles de macro ou microdiversidade, Por fim, a pesquisa demonstrou que a
pois o alerta é a ameaça do fim da vida na construção do conhecimento compartihado
Terra. entre professores, professoras e discentes
; o estudo das línguas tem de fazer sentido em busca de um conhecimento integrado,
na vida cotidiana dos(das) jovens e ir além dinâmico e colaborativo pode formar uma
das regras e da mera utilização gramatical grande rede de saberes compartilhados.
e devem ser utilizadas para a compre-
REFERÊNCIAS
ensão da vida e da sustentabilidade. A
educação para a sustentabilidade atra- BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Es-
vés do estudo de textos, imagens e ações tabelece as diretrizes e bases da educação nacional.
educativas são importantes ferramentas Brasília, DF: Presidência da República, 1996. Dispo-
de sensibilização para gerar mudanças. A nível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/
palavra, o texto e as artes são meios para L9394.htm. Acesso em: 2 jul. 2018.
sensibilizar os(as) jovens.
BRASIL. Ministério da Educação (MEC). Secretaria de
; a importância de interação entre área de Educação Fundamental (SEF). Parâmetros curriculares
conhecimento como linguagens, códigos e nacionais: ciências naturais. Brasília: MEC/SEF, 1997.
suas tecnologias e como elas podem con- Disponível em: https://cptstatic.s3.amazonaws.com/
tribuir para a construção da sustentabili- pdf/cpt/pcn/volume-04-ciencias-naturais.pdf. Acesso
dade para a vida, estimulando jovens a fa- em: 2 jul. 2018.
zer pesquisas e leituras sobre a realidade
CONHEÇA mais sobre o conceito de bem-viver. Rede
local e global.
Mobilizadores, Notícias, 4 jul. 2012. Disponível em:
; os 17 ODS e a Agenda 21 devem fazer http://www.mobilizadores.org.br/noticias/conheca-
parte de constantes discussões, interpre- -mais-sobre-o-conceito-de-bem-viver. Acesso em: 30
tações e análises nas aulas das diversas ago. 2020.
disciplinas, refletindo sobre o mundo que

37
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

DIAS, G. F. Educação ambiental: princípios e práticas. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização e tra-
São Paulo: Gaia, 2004. dução Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Gra-
al, 1979.
JACOBI, P. R. Educação ambiental, cidadania e susten-
tabilidade. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 118, p. PROJETO Político Pedagógico do Colégio Estadual Moi-
189-206, mar. 2003. sés Nunes Bandeira 2014-2018. Alto Paraíso de Goiás:
[s. n.], 2014.SORRENTINO, M. et al. Educação ambien-
JACOBI, P. R. Educação ambiental: o desafio da cons-
tal como política pública. Educação e Pesquisa, São
trução de um pensamento crítico, complexo e reflexi-
Paulo, v. 31, n. 2, p. 285-299, 2005.
vo. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 233-
250, ago. 2005.
Link de acesso ao trabalho completo:
https://bdm.unb.br/handle/10483/21532

38
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

VOCÊ sabia?
BEM 17 ODS e a
VIVER Agenda 2030

B
em Viver é uma concepção de vida

O
proveniente dos povos indígenas
andinos e Guarani. Indica uma for- s 17 Objetivos de Desenvolvimen-
ma de vida em harmonia com a natureza, na to Sustentável (ODS) foram ado-
qual esta não é apenas uma fonte de recur- tados em 2015 pela Organização
sos e matérias primas; é um ser vivo! A natu- das Nações Unidas (ONU), em prol de uma
reza é indivisível e intrinsecamente imbrica- Agenda Mundial de Desenvolvimento Sus-
da à vida dos seres humanos; somos parte tentável, que deve ser cumprida até o ano de
da natureza e a ela pertencemos. 2030. Os 17 ODS tratam sobre a erradicação
da pobreza, fome e agricultura sustentável;
(Trecho extraído na íntegra de: <http://www.ihu.uni-
de saúde e bem-estar; educação de qualida-
sinos.br/78-noticias/579449-para-salvar-a-humani-
de e igualdade de Gênero; água potável, sa-
dade-do-desastre-o-bem-viver;>. Acesso em: 25 ago.
neamento e energia acessível e limpa entre
2021).
outros temas.
(Trecho extraído na íntegra de: <https://sgssustentabi-
lidade.com.br/conheca-os-17-objetivos-de-desenvol-
Agenda 21 vimento-sustentavel>. Acesso em: 25 ago. 2021).

A
Organização das Nações Unidas (ONU) realizou, no Rio de Janeiro, em 1992, a Con-
ferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Cnumad),
mais conhecida como Rio-92. Resultou desse encontro a Agenda 21 definida como
um instrumento de planejamento para a construção de sociedades sustentáveis, em diferen-
tes bases geográficas, que concilia métodos de proteção ambiental, justiça social e eficiência
econômica.
(Trecho extraído na íntegra de: <https://antigo.mma.gov.br/responsabilidade-socioambiental/agenda-21/agenda-
-21-global.html>. Acesso em: 25 ago. 2021.

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SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Percepções sobre o
desaparecimento das Sementes
Crioulas na Comunidade do
Sertão – Alto Paraíso de Goiás
Selma de Almeida Bernardes15
Nina Paula Laranjeira16

15 Licenciada em Educação do Campo (LEdoC/UnB Campus Planaltina), atua como professora na Escola Municipal San-
to Antônio da Parida, Sertão, Alto Paraíso de Goiás. Especialista em Sociobiodiversidade e Sustentabilidade no Cerrado pelo
Centro de Estudos do Cerrado da Chapada dos Veadeiros (Centro UnB Cerrado) da Universidade de Brasília, em Alto Paraíso
de Goiás, Goiás. E-mail: selmacerrado@hotmail.com
16 Geóloga, doutora em Geologia. Professora Associada, aposentada pela UnB. Foi diretora do Centro da UnB entre
2011 e 2017, no qual permaneceu até 2019; atua como pesquisadora junto ao NEA/UnB (Núcleo de Estudos em Agroecologia)
e no Interssan/UNESP; membro associada do Instituto Biorregional do Cerrado-IBC, Alto Paraíso de Goiás, onde participa do
Núcleo de Alimentação Sustentável e Produção Agroecológica – Naspa/IBC. Email: ninalaranjeira@gmail.com

40
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

1. O que é a pesquisa?

O
bservar que a perda da riqueza Na pesquisa, buscamos observar, capturar
e da diversidade de sementes e sistematizar percepções da comunidade
e alimentos na comunidade do rural do Sertão sobre o desaparecimento das
Sertão, no interior do estado de Goiás, ocor- sementes crioulas. E, para tal, foi utilizada a
reu paulatinamente, assim como o desapa- pesquisa etnográfica — método que defende
recimento de variedades de sementes foi a exatamente o convívio do pesquisador com
motivação da pesquisa. O Sertão é um local os sujeitos e seu objeto de estudo, visando
com um contexto sociocultural e econômi- relatar como se organizam e se relacionam
co singulares, devido às riquezas naturais e entre si. Como pesquisadora, moradora do
à forma de cultivo do homem e da mulher Sertão, desde os quatro anos de idade, e fi-
do campo ainda preservados, relacionando lha de agricultores, para Selma de Almeida
os saberes, os fazeres, as relações sociais, o Bernardes foi possível perceber, ao longo do
cultivo agroecológico, a cultura local, a coo- tempo, a importância das sementes para a
peração e a proteção dessa forma de vida. comunidade, mas, ao mesmo tempo, o pro-
A pesquisa se desenvolveu em torno da se- cesso de desaparecimento das variedades
guinte problemática: sendo a comunidade de sementes nos cultivos.
do Sertão composta, em sua maioria, por
famílias de agricultores há várias gerações,
que impactos essa comunidade sofreu ou
sofre com o desaparecimento gradativo das
sementes crioulas?

Tratando-se de modos de produção agrí- A convivência com essa realidade levou a


cola, a família sempre se voltou para o pre- um percurso acadêmico com o objetivo de
paro da roça, que envolvia várias fases: es- agregar valores e conhecimentos à comuni-
colha das sementes crioulas, seguindo a lua, dade do Sertão. Inicialmente fazendo par-
até o plantar e o colher. Além da roça, havia o te do Centro UnB Cerrado, em um estágio,
feitio da farinha de mandioca e da rapadura, adentramos no mundo da agroecologia, que
a coleta do tingui para fazer sabão e o uso fortaleceu nossos saberes e fazeres campesi-
de plantas para medicamentos, bem como o nos (LARANJEIRA, GASPARINI E BERNARDES,
uso de materiais da natureza para a constru- 2012). Na sequência, veio a graduação em Li-
ção de casas. cenciatura em Educação do Campo (LEdoC),
que estimulou mais ainda a vontade de estar
na comunidade trabalhando com crianças e
jovens para a revalorização daquele conheci-
mento tradicional do uso de sementes criou-
las.

41
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Figura 1: Quintal familiar cultivado com diversidades de alimentos na Comunidade do Sertão.

Fonte: Arquivo de Selma Bernardes, 2018.

Saberes e fazeres da comunidade têm se cada vez mais perdas. Preocupada com es-
perdido e, para as gerações atuais, perme- sas questões, na LEdoC foi possível voltar os
adas pelos valores do capitalismo, viver no estudos para o currículo escolar e suas re-
campo passa a ser visto como dificuldade. lações com o projeto de vida dos jovens da
As sementes são vistas como pertencentes a comunidade do Sertão (BERNARDES, 2015).
um só dono, e o uso de tecnologias alteram Esse estudo sobre sementes crioulas é parte
as sementes. A falta de descanso da terra, a das preocupações levantadas na graduação
monocultura e o afastamento de coletivos e que foi possível aprofundar na especializa-
de homens e mulheres do trabalho na terra ção em Sociobiodiversidade e sustentabilida-
são os novos valores que vêm substituindo de no Cerrado.
saberes e fazeres tradicionais, provocando

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SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

2. Como a pesquisa foi realizada?

A
partir do acúmulo de conhecimen- Das 75 famílias moradoras no Sertão,
to sobre o Sertão, o tema das se- somente uma comercializa seus produtos
mentes crioulas veio como parte na feira ou em comércios na cidade de Alto
do compromisso de revalorizar saberes e fa- Paraíso de Goiás. Ainda falta organização
zeres tradicionais. local e municipal que favoreça todos com a
A pesquisa foi realizada no Sertão, povo- venda de produtos nas feiras do município.
ado rural do município de Alto Paraíso de O comércio local, com poucas exceções,
Goiás, localizado a cerca de 25 km da sede não prioriza a compra de produtos da agri-
do município, com acesso por estrada de cultura familiar para revender em seus es-
terra, a GO-239. Em 2018, havia cerca de 75 tabelecimentos. A prioridade é dada para
residências, conforme dados da Unidade de compra de produtos alimentícios vindos
Saúde da Família (USF), que formam uma po- de outros centros (Ceasa-DF e Ceasa-GO)17
pulação aproximada de 250 pessoas. Essas para abastecer a cidade, tornando a ali-
famílias constituem uma comunidade que há mentação mais cara e industrializada.
várias gerações permanece nessa região.
A comunidade do Sertão é constituída,
em sua maioria, por agricultores familiares,
aposentados e trabalhadores assalariados,
como: gerente de fazenda, tratoristas,
professores e professoras, diretor escolar,
coordenadora escolar, empreiteiros de roça-
da, cabeleireiro, artesãs de tapetes e colchas
de retalho, construtores, pastores, meren-
deira, serviços gerais na escola, diaristas, va-
queiros, pedreiros, eletricistas. Muitas famí-
lias, para complementar a renda, trabalham
com o agroextrativismo de baru, açafrão,
caju, pequi, cagaita, jatobá, mangaba.

17 Centrais de Abastecimento do Distrito Federal e Goiás.

43
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Na pesquisa, tivemos como base as seguintes questões:

1 Como se dá a percepção dos moradores mais antigos do Sertão frente ao desapa-


recimento das sementes crioulas?

2 Os agricultores mais jovens têm a mesma percepção sobre as sementes


crioulas que os mais antigos?

3 Existem ou já existiram propostas de criação de bancos de se-


mentes na comunidade?

Realizamos ampla descrição de modo a Em relação à escolha e à delimitação


envolver aspectos como história, religião, dos(as) entrevistados(as), na pesquisa, leva-
política, economia e ambiente entre entre- mos em consideração a faixa etária dos(das)
vistados(as) da comunidade. Associada à moradores(as), de forma a comparar vivên-
pesquisa etnográfica, numa abordagem qua- cias em épocas diferentes, e, ao mesmo tem-
litativa, histórias de vida, a partir de relatos e po, a disponibilidade deles(as), definindo in-
narrativas de história oral, fizeram parte da tervalos de idade e quantidade de pessoas,
coleta de dados. Na pesquisa, registramos totalizando 18 moradores(as) da comunida-
diversas narrativas de moradores do Sertão de:
sobre suas percepções frente ao desapareci-
mento das sementes crioulas.

a dez moradores(as) entre 60 e 88 anos (representando a geração mais idosa);

b quatro moradores(as) com idade entre 40 e 42 anos;

c quatro da geração mais jovem, entre 15 e 20 anos;

Tivemos dificuldade de encontrar moradores(as) de todas as idades, e, por isso, os inter-


valos de idade são irregulares. No terceiro grupo, por exemplo, não encontramos residentes
entre 21 e 25 anos — faixa etária em que os jovens saem da comunidade para trabalhar e es-
tudar na sede do município ou em centros maiores, principalmente, Brasília e Goiânia, capitais
mais próximas. Na faixa etária entre 43 e 59 anos, existem alguns/algumas moradores(as), mas
eles/elas preferiram não participar do estudo.

44
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Usamos as mesmas perguntas norteadoras em todos os grupos entrevistados. Foram elas:

a Como lidavam com as sementes antes?

b Como lidam com as sementes hoje?

c Por que mudou o uso com sementes crioulas?

d Quais impactos essa mudança trouxe ao longo da vida?

Figura 2: Sementes de feijão crioulo da comunidade do Sertão.

Fonte: Arquivo de Selma Bernardes, 2018.

As perguntas orientadoras permitiram O tempo delimitado pelas faixas etárias


desdobramentos conforme surgiam temas escolhidas é o fator preponderante para
como: hábitos e formas de relacionamento identificar diferentes percepções sobre as
dos agricultores entre si, com suas famílias e relações sociais entre os membros da comu-
com as sementes; diversidade das sementes; nidade, de acordo com a geração, e, princi-
possíveis rituais ligados ao plantio, ao mane- palmente, a percepção sobre a importância
jo e à colheita; economia e troca de sementes de ser guardião da semente, em vez de com-
na comunidade; objetivo do cultivo — subsis- prá-la.
tência e(ou) venda — e se esse objetivo se
mantém nos dias atuais.

45
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Realizamos a análise por faixa etária, a O ponto mais interessante é que, na maio-
partir das respostas às perguntas norteado- ria das respostas dadas, as sementes es-
ras usadas nas entrevistas. Analisamos os tavam sempre ligadas às mulheres. As(os)
pontos em comum e as possíveis divergên- filhas(os), principalmente entre os entrevista-
cias. Em relação ao perfil dos(as) entrevis- dos das faixas etárias de 40 a 42 anos e de 15
tados(as), realizamos uma breve descrição, a 20 anos, ligavam toda a movimentação em
quando havia algum fator que pudesse ser torno da semente às mães — estas separa-
considerado relevante. vam, guardavam, coletavam, armazenavam,
Para a análise e a discussão dos resulta- faziam os utensílios para guardar as semen-
dos, realizamos várias formas de aglutinação tes. Já para as entrevistadas do sexo femini-
das informações das entrevistas, na tentativa no, da faixa etária mais idosa, as sementes
de facilitar a compreensão dos resultados estavam relacionadas aos maridos — eles
encontrados. Como forma de identificar cuidavam, cultivavam. E, em alguns casos, as
as mudanças ao longo da história da mulheres ligaram o desaparecimento das se-
comunidade, realizamos a categorização das mentes crioulas à morte do companheiro.
respostas por faixa etária. A análise das narrativas trouxe muitas in-
O intuito de registrar a narrativa dos(as) formações importantes sobre a agricultura
entrevistados(as) e o enfoque etnográfico familiar na comunidade do Sertão, principal-
resultaram em grande complexidade dos da- mente nas falas dos mais velhos (entre 60 e
dos coletados, principalmente nas entrevis- 88 anos). Para eles, a questão das sementes
tas com os os(as) anciões(ãs). A riqueza e a está ligada a uma tradição, ao modo de vida
complexidade das respostas dadas por cada que foi desaparecendo. A diferença dessa
ancião em suas narrativas impediu que hou- percepção vem da própria forma de viver de
vesse uma linearidade em suas respostas. cada faixa etária. A realidade é que as poucas
famílias que ainda se mantêm na comunida-
Durante as entrevistas, buscamos obser- de não plantam mais como antes. Mudanças
var e analisar as percepções dos(as) morado- ocorreram, desde o uso de insumos agríco-
res(as) pautadas não apenas pela faixa etá- las e uso de veneno, pois muitas famílias não
ria, mas também nas questões de gênero. mantêm uma agricultura orgânica como nos
Para tal, entrevistamos oito homens e nove tempos antigos.
mulheres.
Os guardiões das sementes, em sua
maioria, estão muito idosos e já não conse-
guem praticar agricultura como antes. Toda
a sabedoria no trato e no armazenamento
das sementes está silenciada com eles, pois
sentem que as novas gerações acham que
estão ultrapassados e não valorizam sua sa-
bedoria. Ou seja, o saber tradicional e a cul-
tura agrícola estão sendo perdidos devido às
transformações sociais e tecnológicas que
chegaram ao Sertão.

46
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Nas narrativas, foi possível perceber a A variedade das sementes que existia an-
existência do saber tradicional, mas também tes diminuiu muito na comunidade, confor-
como ele vem sendo silenciado pelo tempo e me pode ser visto no quadro 1. Assim como
pelas transformações na comunidade. Sabe- variedades de espécies nativas de animais,
res vislumbrados nas narrativas, quando as peixes, aves e insetos, conforme a percep-
pessoas saem do anonimato, estão expres- ção dos moradores. Ainda assim é possível
sos neste estudo. Os(as) entrevistados(as) observar grande variedade de plantios nos
trazem, muito timidamente, seus saberes e quintais da comunidade, registrado no qua-
fazeres, por meio da cultura e da vida, que dro 2.
não podem ser perdidos. Como na fala de M.
D. (do grupo de 60 e 88 anos): “Às vezes a
gente fica até com vergonha de tá falando”,
quando foi pedido para fazer o “bendito de
chamar chuva”.18

Quadro 1: Registro de sementes que não existem mais, segundo moradores(as) entrevistados(as) no Sertão

Semente Variedade

Milho Branco, caiana, cunha, americano, três meses e asteca

Mulatinho, feijão mamona, roxinho, roxão, carioquinha, amarelo, fogo na serra, feijão catador,
Feijão de corda, pardinho, rosinha, preto, engope, caboclo, rim de porco e das grávidas

Buapo, preto, agulhinha, bico ganga, mindinho, beira campo, cabo de ovelha, amarelão ou
Arroz pratinha, pratão e barranqueiro

Batata Roxa, branca, amarela e coração de boi


Inhame Pé de anta, mangarito e birro
Fava Roxa, branca e roxinha
Croá Preto e amarelo
Rola pau, pão da china, onça, pé de burro, pixuri, rio verde, roxa, cacau, cascudinha, pim
Mandioca branco, sutinga, mata-formiga, vassourinha e casteliana

Cará-do ar Cará-do-ar
Guandu Guandu
Gergelim Amarelo

Banana Nanicão e ourinho

Cana Cana-caiana
Milho de pipoca Dente de alho

Elaborado por Selma Bernardes, 2018.

18 Reza (oração) para proteção das sementes.

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SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Mesmo diante dessa “erosão genética”, expressa na perda das variedades das sementes
crioulas, no seio das famílias entrevistadas, ainda existem sementes, pois o pulsar da vida
representado pelas sementes não se separa dos seus guardiões.

Quadro 2: Sementes ainda cultivadas nos quintais dos(as) moradores(as) entrevistados(as) no Sertão

Nome (iniciais) Sementes cultivadas

Inhame lebanca, cará-do-ar, mandioca pão, abóbora, jiló, quiabo, açafrão, araruta, chuchu, laranja,
acerola, jabuticaba, mamão, cana-caiana, abacate manteiga, uva, manga, maxixe, jaca, atemoia,
B.T.S. gergelim preto, pimenta-malagueta, jambo roxo e gengibre.

J.T.S. Mandioca, acerola e fedegoso.

E.M. (I) Banana-prata, quiabo, abóbora cabocla, jiló, tomate cereja e mandioca rio verde.

J.B.F. Banana-prata, jiló, mandioca rio verde, cana-caiana, melancia, jiboia e abóbora-jacaré.

A.C. Banana-maçã, banana-marmelo, banana-prata, quiabo, abóbora e mandioca.

M.G.M. Cebolinha verde, cará, inhame, coentro e couve-manteiga.

E.M. (II) Fava vermelha, mandioca, mamão, acerola e feijão de corda ou catador.

Inhame lebanca, cará-do-ar, mandioca pão, abóbora, jiló, quiabo, açafrão, araruta, chuchu, laranja,
I.B. acerola, jabuticaba, mamão, cana-caiana, abacate, uva, manga, maxixe, jaca, atemoia, , gergelim
preto, pimenta-malagueta, jambo roxo e gengibre.

Banana-prata, mandioca, açafrão, amendoim, gergelim/abacaxi, jiló/alface, berinjela/cenoura,


G.M.S. mamão, quiabo, maxixe, pimenta-malagueta, abóbora, maracujá e mostarda/coentro.

M.D.C.M. Banana-marmelo, mandioca rio verde, jiló, araruta, quiabo, açafrão, café, laranja, mexerica e taioba.

G.P.S. Mandioca, mexerica, batata-doce vermelha e laranja comum.


V.L.G. Mandioca, cana, abacaxi, banana-maçã e caju.

R.L.M. Banana-prata, mandioca, açafrão, manga, croá amarelo e abóbora.

B.A.T. Fava branca, mandioca e banana-marmelo.

B.F.S. Banana-prata, banana-maçã, banana boca virada, banana-nanica e mandioca.

Elaborado por Selma Bernardes, 2018.

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SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Mesmo com o desaparecimento de varie- Os entrevistados entre 40 e 42 anos e, mes-


dades de sementes, considerando a existên- mo os mais jovens, também têm percepções
cia das anteriormente relacionadas na comu- parecidas em relação ao desaparecimento
nidade do Sertão (vide quadros), é possível o das sementes. As sementes que existiam
resgate e a preservação, conforme referen- antes desapareceram consideravelmente
ciais teóricos dos trabalhos de Bessa, Ventu- da comunidade. No entanto a dualidade en-
ra e Alves (2017) e Bevilaqua et al. (2009). tre passado e presente é percebida de for-
Segundo esses estudos, há necessidade ma diferente nas faixas etárias mais novas.
de criação de mecanismos oficiais, incenti- Enquanto, as pessoas de 40 a 42 anos sen-
vos para aqueles(as) que são guardiões(ãs) tem falta do que vivenciaram na infância e
das sementes crioulas. Assim, pontuamos a adolescência com a família, também gostam
importância das inserções da universidade, das facilidades modernas, como, por exem-
por meio da extensão universitária, nas co- plo, máquina de lavar roupa, água encanada
munidades. dentro de casa, forno elétrico, geladeira, in-
ternet, WhatsApp, carro próprio, freezer, no-
A realização da Feira de Sementes e Mudas tebook, tablet, celular.
em Alto Paraíso de Goiás, todos os anos des-
de 2011, permite a troca de sementes criou- Já os mais jovens de 15 a 23 veem tudo
las e possibilita a revalorização das sementes como história, um “causo” contado pelos pais
que ainda existem, plantadas nos quintais e e avós. Para eles, a ligação entre as semen-
nas pequenas roças do Sertão, embora, na tes crioulas e sua história de vida tornou-se
visão dos(as) agricultores(as), antes as se- fragmentada devido às mudanças sociais em
mentes existissem em maior quantidade do que estão inseridos. As sementes ainda fa-
que agora. zem parte da sua vida, mas de forma diferen-
te dos seus pais e avós.

O resgate dos saberes e dos fazeres as- Com a pesquisa, foi possível perceber que,
sociados às sementes nas comunidades ao romper com o uso tradicional de entrevis-
tradicionais exige o envolvimento das gera- tas baseadas em perguntas e respostas para
ções mais novas. No Sertão, apesar de não coletar os dados necessários e optar pelo
terem vivenciado as experiências dos mais uso do método das narrativas com a história
velhos, na prática, os jovens trazem, em sua oral, os registros foram poderosíssimos, per-
essência, o desejo de continuidade da tradi- mitindo produzir significativo conhecimento
ção familiar. E o interessante é que, mesmo científico sobre os saberes e os fazeres da
tudo parecendo algo distante, alguns desses comunidade do Sertão e as sementes criou-
jovens trazem, no íntimo, o sentimento da las.
necessidade de um resgate do que está se
perdendo, porém não sabem como agir.

49
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Todo o percurso acadêmico comprometi- É importante que as crianças, filhas dos


do com a comunidade do Sertão gerou dados pequenos agricultores do Sertão, tomem
que permitiram um aprofundamento das in- consciência de que as sementes crioulas são
vestigações ao combinar histórias de vida e fruto da seleção realizada pelas gerações que
contextos socio-históricos, permitindo, inclu- os precederam, seus avós e bisavós, agricul-
sive, trazer à tona reminiscências da história tores(as) que podem ser considerados mais
de vida da pesquisadora Selma de Almeida tradicionais do que seus próprios pais, que
Bernardes, levando à compreensão de novos já sofreram a intervenção da dita “moderni-
sentidos capazes de produzir, sem dúvida al- dade” nas suas práticas agrícolas e das novas
guma, transformações na nossa forma de di- formas de cultivo, como, por exemplo, o uso
recionar novos estudos e mesmo o trabalho de venenos como alternativa a pragas que
como educadora na escola da comunidade. surgem devido ao empobrecimento do solo
Ao realizar este estudo, não buscamos ou à falta de biodiversidade.
apenas a coleta das informações, mas, subje- Durante o estudo, no diálogo com os au-
tivamente, buscamos dar incentivo aos mo- tores e com a vivência no trabalho com a
radores mais jovens para iniciarem o proces- escola do Sertão, foi possível promover o
so de coleta e armazenamento de sementes resgate das variedades de sementes criou-
crioulas, visando ao resgate das variedades las. Hoje a escola trabalha com processos de
ainda existentes na comunidade. sensibilização, principalmente entre crianças
Além disso, a pesquisa promoveu desdo- e jovens, filhos(as) dos(as) agricultores(as).
bramentos mais práticos, como, por exem- Isso ficou claro na fala dos dois entrevistados
plo, incentivar os moradores para a constru- (que também atuaram em formação no Cen-
ção de bancos móveis e o trabalho de resgate tro UnB Cerrado nos anos de 2012 e 2013),
da importância de se manter as sementes muito sensibilizados para a importância das
crioulas para crianças e jovens na escola, sementes crioulas e do papel de suas famí-
com várias atividades teóricas e práticas. lias e do seu próprio, na atuação como “guar-
Sendo possível propor a formação de ações diões autênticos dessa grande parte da di-
organizadas que articulem o Sertão com ou- versidade biológica agrícola e que percebem
tras comunidades rurais como o Moinho e o que pode ser a chave do futuro alimentar”
Assentamento Sílvio Rodrigues, para que dis- (ESQUINAS-ALCÁZAR, 2014) da comunidade.
tribuam e multipliquem essas sementes. Por outro lado, observamos que a ausên-
cia do apoio desmotiva os jovens, pois são
muitos entraves burocráticos enfrentados
pelos pequenos agricultores e agricultoras.

50
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Figura 3: Cará produzido e reproduzido no Sertão.

Fonte: Arquivo de Selma Bernardes, 2018.

3. Importância da pesquisa para a


sociobiodiversidade e a sustentabilidade
no Cerrado

A
s sementes crioulas, em nossa Ao passo que as sementes crioulas, nas
atualidade, possuem, sem ne- comunidades, são praticamente de todos:
nhuma dúvida, um diferencial em quem tem a semente passa para quem não
relação a quaisquer outras sementes mani- tem. O modo de vida dos(as) agricultores(as)
puladas nos laboratórios das empresas. Por familiares tem sustentabilidade, pois trocam
serem patenteadas pelas empresas, as se- não apenas as sementes, mas experiências
mentes de laboratório muitas vezes são de de todo o processo de vida, sejam eles no
difícil acesso para os(as) pequenos(as) agri- plantio, na colheita, no cuidado com o solo.
cultores(as) que não têm disponibilidade de Ou melhor, eles e elas amparam uns aos ou-
comprar os “pacotes agrícolas”. tros falando das experiências que dão certo
e das que não dão. O(a) agricultor(a) familiar
vive em comunhão com seus modos de vida.

51
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Portanto, considerando que a comunida- REFERÊNCIAS


de do Sertão, no interior do estado de Goi-
BERNARDES, S. A. O currículo escolar e suas relações
ás, está localizada no Cerrado, este trabalho
com o projeto de vida dos jovens estudantes da Escola
contribuiu para mapear impactos na dispo-
Santo Antonio da Parida. 2015. 83 f. Monografia (Licen-
nibilidade de sementes, com o desapareci-
ciatura em Educação do Campo) ‒ Universidade de
mento gradativo delas, bem como indicar
Brasília, Planaltina, 2015.
estratégias para aplicação de medidas, por
meio de políticas públicas. Como, por exem- BERNARDES, S.de A. Percepções sobre o desaparecimen-
plo, a criação de incentivos à manutenção in to das sementes crioulas na comunidade do Sertão – Alto
situ da agrobiodiversidade, com um sistema Paraíso de Goiás. Monografia (Curso de Especialização
de recompensa para aqueles que atendam Sociobiodiversidade e Sustentabilidade no Cerrado) -
aos requisitos que caracterizam um guardião Universidade de Brasília, Alto Paraíso de Goiás, 2018.
de sementes, garantindo acesso e benefício BESSA, M. M.; VENTURA, M. V. A.; ALVES, L. S. Semen-
nas políticas de crédito e seguro agrícola que tes Crioulas: Construção da Autonomia Camponesa.
atualmente sustentam o avanço e o estímulo Cadernos de Agroecologia, v. 11, n. 2, 2017.
ao uso de “sementes de laboratório”.
BEVILAQUA, G. A. P. et al. Desenvolvimento in situ de
Em virtude dos dados apurados e da re- cultivares crioulas através de agricultores guardiões
alidade em que vivemos, acreditamos que, de sementes. Cadernos de Agroecologia, v. 4, n. 1, 2009.
mesmo diante de tanta pressão que faz com
ESQUINAS-ALCÁZAR, J. Eliminar a fome requer inteli-
que haja “erosão genética”, ou seja, a perda
gência e ética. Revista do Instituto Humanitas Unisinos,
de sementes crioulas, ainda existem diversas
São Leopoldo. n. XIV, 2014.
famílias que trazem, em seu bojo familiar e
cultural, a tradição de proteger, trocar e cul- GODOY, A. S. Introdução à pesquisa qualitativa e suas
tivar diversas sementes crioulas, como foi possibilidades. Revista de Administração de Empresas,
demonstrado nos quadros 1 e 2. Ações estas v. 35, n. 2, p. 57-63, 1995.
que garantem e justificam sua preservação. LARANJEIRA, N.; GASPARINI, C. B.; BERNARDES, S.
(org.). Comunidade do Sertão: Alto Paraíso de Goiás.
Brasília: Universidade de Brasília, 2012.

Link de acesso ao trabalho completo:


https://bdm.unb.br/handle/10483/21533

52
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

VOCÊ sabia?

Pesquisa
etnográfica Sementes
crioulas
Abrange a descrição dos eventos que
acontecem na vida de um grupo e a devida Sementes crioulas são sementes tradi-
interpretação do significado desses eventos cionais, que foram mantidas e selecionadas
para a cultura do grupo, sempre dando ên- por várias décadas ou gerações, por agri-
fase para as estruturas sociais e o compor- cultores, comunidades tradicionais e povos
tamento dos indivíduos enquanto membros originários do mundo todo. Essas sementes
do grupo (GODOY, 1995). promovem a soberania alimentar das comu-
nidades e ajudam a preservar a sua cultura e
a riqueza genética das espécies vegetais. Por
isso são de vital importância para a sobera-
nia e segurança alimentar no mundo.

Erosão genética

Usamos o termo erosão genética para caracterizar o empobrecimento genético, ou seja,


quando a diversidade de plantas e animais vão se perdendo em função da atuação humana,
que decide que seres vivos serão mantidos ou não. Cada vez menor número de tipos de plan-
tas é cultivado e de animais são criados, havendo uma redução da variedade de características
genéticas que são preservadas. Esse fenômeno se dá, principalmente, pela forma como se
configuram os mercados de alimentos.

53
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

PARTE 2
AGROECOLOGIA,
SOBERANIA E
SEGURANÇA
ALIMENTAR E
NUTRICIONAL
Nina Paula Laranjeira

54
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

O
s textos que se seguem são resul- A ciência, junto com os movimentos so-
tados de pesquisas que tratam da ciais, tem tentado explicar/entender como
agroecologia e da segurança ali- está o estado da SAN de diversos grupos da
mentar e nutricional (SAN). Esses termos têm sociedade, se pode melhorar, e como. Tam-
sido usados tanto pelos movimentos sociais bém tem procurado acompanhar o processo
quanto nas políticas públicas e na academia. do que chamamos de transição agroecológi-
A luta popular dos movimentos sociais li- ca, ou seja, agricultoras e agricultores que
gados ao campo abrange a luta pela terra, plantavam com o uso de produtos químicos,
pelo direito de produzir e de decidir sobre mas que, agora, desejam passar para uma
sua própria alimentação, por sua soberania, agricultura de base agroecológica.
principalmente a soberania alimentar. A maior As políticas públicas, para serem realmen-
parte desses movimentos adotou como ban- te efetivas na melhoria das condições de se-
deira de luta a agroecologia, ou seja, a pro- gurança alimentar, no desenvolvimento rural
dução de alimentos de forma mais harmô- com sustentabilidade, nos processos de tran-
nica com os ambientes naturais, com maior sição agroecológica e no fortalecimento da
respeito aos ciclos da natureza, sem o uso de agroecologia, devem ser baseadas em estu-
agrotóxicos e outros produtos químicos, e dos científicos e na vontade popular, ou seja,
com justiça social, valorização e respeito das de quem está vivendo o problema. Políticas
culturas camponesas, tradicionais e originá- públicas devem propor e apoiar ações que
rias que, há séculos, ou mesmo milênios, se melhorem o estado de segurança alimentar,
dedicam a seus cultivos. de diversas formas, mas acentuamos a im-
portância do fortalecimento da produção de
alimentos de base agroecológica e da agri-
cultura familiar. O direito à terra e o acesso a
políticas públicas que promovam a produção
e sustentabilidade da agricultura familiar são
fundamentais para garantir a segurança ali-
mentar no campo e na cidade.

realização do direito de todos ao aces-


O conceito de SAN foi definido so regular e permanente a alimentos
na Lei Orgânica de Segurança Ali- de qualidade, em quantidade suficien-
mentar e Nutricional (Losan), Lei te, sem comprometer o acesso a outras
nº 11.346, de 15 de setembro de necessidades essenciais, tendo como
2006, no seu art. 3º: base práticas alimentares promotoras
de saúde que respeitem a diversidade
cultural e que sejam ambiental, cultu-
ral, econômica e socialmente susten-
táveis.

55
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Note-se que esse conceito vai além de ali- Em síntese, compreender o conceito de
mentar-se em quantidade e qualidade: o ali- SAN e a agroecologia é importante para os
mento deve garantir a saúde e os hábitos ali- que querem lutar pelo desenvolvimento ru-
mentares dos diferentes grupos sociais, bem ral com sustentabilidade e pela qualidade de
como também a sustentabilidade (ambien- vida das populações do campo e da cidade.
tal, cultural, econômica e social). Além disso, Movimentos sociais e ciência estão juntos
as demais necessidades básicas devem ser nessa missão.
atendidas, como saúde e educação. O con- Nesse momento de pandemia, por diver-
ceito de SAN, portanto, engloba questões sos motivos, tem ficado clara a necessidade
ambientais, culturais, sociais e econômicas, de refletir sobre o que consumimos. E quan-
e, nesse sentido, a agroecologia surge como do falamos em consumo, em primeiro lugar,
forma mais sustentável de produzir alimen- estão os alimentos, pelo fato de serem de
tos. Daí, a importância do apoio aos proces- consumo diário, algumas vezes por dia — in-
so de transição agroecológica. felizmente, não para todas(os).
A agroecologia, enquanto ciência, tem pre- Boa parte da alimentação mundial está
ocupações que vão além do uso de técnicas baseada no sistema alimentar industrial, ou
sustentáveis para produção de alimentos, seja, no grande agronegócio e no sistema
pois deseja construir conhecimento a par- financeiro. A produção de grãos — soja e
tir do diálogo horizontal entre os diferentes milho, por exemplo — está na base da pro-
conhecimentos, saberes e culturas (incluin- dução de alimentos industrializados. Esses
do diversas disciplinas científicas), na bus- grãos são considerados como commodities,
ca de soluções para a produção sustentá- ou seja, mercadorias negociadas nas bolsas
vel de alimentos. Por isso, é compreendida de valores internacionais. Alimento ou mer-
como uma ciência nova, uma ciência que cadoria? Eis a questão. O Brasil bate recordes
se reconhece como mais uma forma de de exportação de grãos enquanto a fome no
conhecer, assim como tantas outras. Então, país cresce de forma assustadora.
como ciência, está no campo da interdisci-
plinaridade e da transdisciplinaridade, no
qual o diálogo intercultural e interepistêmico
(entre diferentes formas de conhecimento)
é exercitado e fomentado, e a produção de
conhecimento se dá pela práxis: relação
estreita entre teoria e prática, produzindo
conhecimento contextualizado.

56
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Essa forma de produção vem trazendo Os dois primeiros trabalhos, escritos a


graves prejuízos ao meio ambiente, à saúde partir das monografias de Sat Nam (César
das(os) trabalhadoras(es) do campo, à vizi- Adriano S. Barbosa) e Claudia Lulkin, são
nhança das grandes lavouras e às(aos) con- pesquisas ativas, ou seja, ao pesquisar, cria-
sumidoras(es) de seus produtos, além de -se relações de aprendizado na interação
ampliar a fome e a desigualdade mundo afo- estabelecida durante a pesquisa: todas(os)
ra. Um sistema que emprega pouco no cam- aprendem, todas(os) ensinam, todas(os) se
po e ainda produz externalidades (impactos transformam. Isso quer dizer que trabalha-
para além das lavouras), pagas pela socieda- ram juntas e juntos, construindo uma forma
de, nas áreas da saúde e do meio ambiente. outra de fazer/pensar/sentir a produção de
Tais ônus (perdas de vidas humanas e não alimentos e a alimentação. Tanto Sat quanto
humanas; contaminação e degradação de Claudia participaram de um projeto criado
águas e solos; exclusão social de percentuais junto com as comunidades em que atuaram.
expressivos das populações do campo e da Sat com agricultoras e agricultores do Pro-
cidade; entre tantos outros danos) não estão jeto de Assentamento (PA) Sílvio Rodrigues
inseridos no valor pago pelas commodities. A e Claudia com comunidades escolares, em
riqueza produzida pela sociedade é investida escolas municipais de Alto Paraíso. Como
na tentativa de reduzir esses danos à saúde parceira e “orientadora” das duas pesquisas,
e ao meio ambiente, e, ainda assim, muitas apresentamos estas como pérolas forjadas
vidas são ceifadas. Como, então, não pen- por duas belíssimas criaturas, que muito se
sar em produção saudável de alimentos, em dedicaram ao desenvolvimento da agroeco-
produção familiar agroecológica no campo? logia, da segurança alimentar e da agricultu-
A intenção aqui não é esgotar as questões ra familiar do município de Alto Paraíso.
colocadas anteriormente, mas que elas pos-
sam ajudar na compreensão do contexto em
que as pesquisas que se seguem foram rea-
lizadas.

Um terceiro trabalho, do professor Luciano Rodrigues Campos e Tânia Cristina da Silva Cruz,
nos leva a um giro pela Feira Popular da Agricultura Familiar, que acontece aos domingos e
quintas-feiras, ao lado do Centro de Atendimento ao Turista (CAT). Essa feira foi criada por
um grupo de famílias de três associações do Assentamento Sílvio Rodrigues, com apoio da
Prefeitura de Alto Paraíso, da Secretaria Municipal de Agricultura, do Núcleo de Agroecologia
e Alimentação Sustentável (Naspa) — que, na época, fazia parte da Universidade de Brasília
(UnB) e, atualmente, é parte do Instituto Biorregional do Cerrado (IBC) —, da AmoAlto e da Co-
oper Frutos do Paraíso. Parte das famílias agricultoras que puxou a criação da feira faz parte
das famílias acompanhadas pelo estudo do Sat, enquanto algumas delas fornecem alimentos
para a alimentação escolar, foco do estudo da Claudia Lulkin.

57
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Sim, estamos falando sobre os espaços nosso próprio corpo até a escala planetária.
onde a agroecologia e a SAN são fortalecidas, Resgatar a conexão com a teia da vida é fun-
apoiadas, aprendidas e ensinadas. A Feira Po- damental para todas(os) que querem mudar
pular da Agricultura Familiar e a Feira de Se- hábitos e se reconciliar com a origem.
mentes e Mudas da Chapada dos Veadeiros19 Enfim, são muitas questões quando se
são espaços de fortalecimento e empodera- fala sobre esses temas e ainda mais quan-
mento da agricultura familiar e da agroeco- do nos referimos especialmente à Chapada
logia e, por isso, importantes para a garantia dos Veadeiros, território povoado inicialmen-
da SAN de Alto Paraíso de Goiás e região. te por indígenas e, depois, africanos e afro-
O Naspa executou três projetos financia- descendentes, que deixaram forte marca em
dos pelo Conselho Nacional de Desenvolvi- seu povo e sua cultura. Não podemos mais
mento Científico e Tecnológico (CNPq), tendo ignorar que a Chapada é esse território qui-
a agroecologia e a SAN no município de Alto lombola e kalunga, rural, da suça e dos frutos
Paraíso (além de outros municípios) como do Cerrado, da mandioca e do gergelim, da
focos importantes. As pesquisas de Sat e goiana e do goiano do campo, da viola caipi-
Claudia e a criação da Feira Popular da Agri- ra, da cultura tradicional e popular. Precisa-
cultura Familiar foram apoiados por esses mos falar sobre isso, reconhecer os conhe-
projetos, assim como a pesquisa de Selma cimentos e hábitos do lugar, para dialogar e
de Almeida Bernardes, encontrada na parte se misturar. Temos muito a trocar. E isso é
1 desta publicação. agroecologia.
Em síntese, os três artigos a seguir pro- Esperamos que aprecie a leitura dos tex-
metem fazer-nos refletir sobre a transição tos que se seguem!
alimentar, em direção ao alimento agroeco-
lógico, sustentável e com justiça social. Essa
transição significa mudar a base da alimenta-
ção para hábitos alimentares e de consumo
de produtos locais, pouco ou não processa-
dos e sazonais, e, por isso, mais sustentáveis
e também mais saudáveis.
Para que aconteçam tais mudanças de há-
bito, é importante entender a ruptura que
a cultura ocidental (globalizada) promoveu
entre nós, seres humanos, e o planeta Terra,
enquanto morada e provedor da vida. Essa
ruptura nos levou à desresponsabilização
pelo que comemos ou, de forma mais ampla,
pelo que consumimos (e descartamos). Os
resultados são dramáticos, desde a escala do

19 Iniciada pela Cooper Frutos do Paraíso e pelo Centro UnB Cerrado, em 2011, essa feira está viva até os dias de hoje,
ainda que, em 2020, em sua décima versão, tenha acontecido de forma virtual.

58
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Diversidade produtiva e transição


agroecológica : um estudo de caso
da Feira Popular da Agricultura
Familiar de Alto Paraíso de Goiás

César Adriano de Sousa Barbosa20

Nina Paula Laranjeira21

Flávio Murilo Pereira da Costa22

20 Bacharel em Química, mestre em Química Teórica pela Universidade Estadual Paulista (Unesp); Especialista em So-
ciobiodiversidade e Sustentabilidade no Cerrado pelo Centro de Estudos do Cerrado da Chapada dos Veadeiros (Centro UnB
Cerrado) da Universidade de Brasília, em Alto Paraíso de Goiás, Goiás. Coordenador do Núcleo de Alimentação Sustentável e
Produção Agroecológica, do Instituto Biorregional do Cerrado (Naspa/IBC). E-mail: barbosaaltoparaiso@gmail.com
21 Geóloga, doutora em Geologia. Professora Associada, aposentada pela UnB. Foi diretora do Centro da UnB entre
2011 e 2017, no qual permaneceu até 2019; atua como pesquisadora junto ao NEA/UnB (Núcleo de Estudos em Agroecologia)
e no Interssan/UNESP; membro associada do Instituto Biorregional do Cerrado-IBC, Alto Paraíso de Goiás, onde participa do
Núcleo de Alimentação Sustentável e Produção Agroecológica – Naspa/IBC. Email: ninalaranjeira@gmail.com
22 Engenheiro Agrônomo, doutor em Agronomia pela Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (Esalq) da Univer-
sidade de São Paulo (USP). Professor Adjunto da UnB, atua na Faculdade UnB Planaltina. Email: fmpcosta@gmail.com

59
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

1. O que é a pesquisa?

O
município de Alto Paraíso de Goi- Na região da Chapada dos Veadeiros, e,
ás, localizado na Chapada dos Ve- em especial, no município de Alto Paraíso,
adeiros, mantém ainda diversas muitos(as) agricultores(as) convivem com a
comunidades tradicionais. Desde a década necessidade de atender à crescente deman-
de 1990, o município vem atraindo pessoas da por esse tipo de alimento e estilo de vida,
de vários lugares do Brasil e do mundo, o que além do anseio de estabelecer sistemas pro-
lhe confere uma grande diversidade socio- dutivos que valorizem e respeitem a harmo-
cultural. A maioria desses “chegantes”, como nia e o convívio com a natureza.
são chamados os migrantes que se instalam
na localidade, valoriza a qualidade de vida,
representada, em parte, pelo interesse em
alimentos saudáveis, orgânicos e de origem
agroecológica.

Figura 1: Avaliação final no dia da inauguração da Feira Popular da Agricultura Familiar.

Fonte: Arquivos do Naspa/IBC 2015

Desde 2010, um grupo de agricultoras e agricultores do Projeto de Assentamento Sílvio


Rodrigues (PASR), localizado a 35 km da cidade de Alto Paraíso, vem se dedicando à produ-
ção de base agroecológica. Esse grupo foi estimulado pela implantação do projeto Produção
Agroecológica Integrada e Sustentável (PAIS ou Kit PAIS) e pelo projeto Agricultores Protago-
nistas de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN): Produção e Abastecimento de Alimentos23,
o que resultou na criação da Feira Popular da Agricultura Familiar de Alto Paraíso de Goiás, em
1º novembro 2015, conforme figura a seguir.

23 projeto do Naspa, aprovado na Chamada MCTI/CNPq n° 82/2013.

60
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Inaugurada por um grupo de 20 agriculto- Na presente pesquisa, buscamos enten-


res(as), a feira continua acontecendo todos der a relação entre a diversidade produtiva
os domingos na Praça do Artesão, ao lado do e os níveis da transição agroecológica das
Centro de Atendimento ao Turista (CAT). Do parcelas de agricultores participantes dessa
grupo inicial de agricultores(as), apenas seis feira no período de junho de 2017 a junho de
continuam participando atualmente dessa 2018. Objetivamos também estudar e avaliar
feira. Vários motivos foram apresentados como as práticas agroecológicas integradas
para justificar as desistências, entre eles: fal- a outros indicadores de transição podem in-
ta de produtos, falta d’água, problemas com fluenciar a permanência desses(as) agriculto-
pragas e fertilidade dos solos, além da difi- res(as) na feira.
culdade de manter uma produção contínua
ao longo do ano. A grande desistência des-
pertou o interesse em entendermos como o
avanço no processo de transição agroecoló-
gica poderia contribuir para a permanência
dos(as) agricultores(as) remanescentes na
Feira Popular da Agricultura Familiar.

1.1 Transição agroecológica


A transição agroecológica é um proces- O início do processo de transição se dá
so de reconstrução do modo de produção, pela mudança no sistema de produção, a
incorporando princípios e tecnologias de partir principalmente da redução no consu-
cunho ecológico, valorizando os recursos mo de insumos externos, sejam eles naturais
disponíveis na própria unidade de produção (esterco) ou sintéticos (GLIESSMAN, 2000).
e o saber dos(as) agricultores(as), além dos Segundo o autor, o primeiro nível de tran-
cuidados com o ambiente. Ressaltamos que, sição marca o início do processo de transi-
no caso específico do PASR, os(as) agricul- ção e refere-se ao incremento e à eficiência
tores(as) já se encontravam num processo das práticas convencionais para reduzir o
inicial de produção de base agroecológica, consumo de insumos externos, em especial
sem monocultivos e mecanização intensivos aqueles que são escassos e danosos ao meio
e com marcante presença de práticas tradi- ambiente. Essa etapa tem como principal ob-
cionais da agricultura familiar, como o uso de jetivo reduzir os impactos negativos ao ecos-
cinza para adubação e pequenos consórcios, sistema. O segundo nível é marcado pela
ou seja, a combinação de diferentes plantas implementação de práticas agroecológicas,
em um mesmo canteiro ou área de produ- com redução efetiva de insumos sintéticos.
ção. E, finalmente, o último passo da transição é
marcado principalmente pelo redesenho do
agroecossistema, com uso de recursos natu-
rais próprios, contribuindo com a permanên-
cia nas atividades de comercialização e com
a ampliação da quantidade de práticas agro-
ecológicas.

61
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Dentro de uma perspectiva mais emancipatória e mais sistêmica da Agroecologia, conside-


ramos também, além dessas mudanças na produção, que a transição agroecológica envolve
mudanças na vida das famílias agricultoras, pois elas vão incorporando, em seu cotidiano, os
princípios dessa ciência e reconhecem, no coletivo, a grande força para a propagação dos prin-
cípios agroecológicos e para a troca de conhecimentos, além da organização para o comércio
e para a criação de novos espaços políticos e sociais. Entre os princípios agroecológicos, está
também a busca de sistemas alimentares menos industrializados e mais naturais, bem como
de um desenvolvimento rural mais sustentável que fortaleçam a agricultura familiar.

VOCÊ sabia?

Agroecossistema Agroecologia

S E
ão sistemas criados ou modificados ntendemos a agroecologia como ci-
pelo ser humano, a fim de produzir ência, prática e movimento social,
alimentos. Nesses sistemas obser- pois ela aposta em um novo mode-
vamos relações ecológicas, complexas, entre lo, no qual a sustentabilidade é entendida de
seus componentes que são plantas, animais, forma ampla, com justiça social para os po-
e outros organismos vivos, o solo (parte mi- vos do campo e alimentação saudável para
neral e parte orgânica), os insumos utilizados o campo e para a cidade. Tal transformação
para a produção e também fatores socioeco- nos sistemas alimentares não é trivial, é um
nômicos. processo em construção, inclusive de uma
nova ciência, baseada no diálogo entre dife-
rentes saberes. Em termos de cultivo, a Agro-
ecologia busca reduzir ao máximo os insu-
mos externos e investir na fertilidade do solo
como forma de fortalecimento e saúde das
plantas. Por não usar agrotóxicos e outros
insumos químicos, produz plantas mais sau-
dáveis e representa melhoria para a saúde
de agricultoras e agricultores, e também de
consumidoras e consumidores (LARANJEIRA
et al, 2021, p. 124).

62
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Figura 2: Imagens da Feira Popular da Agricultura Familiar.

Fonte: Arquivos do Naspa/IBC, ano 2015.

63
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

2. Como a pesquisa foi realizada?

D
evemos a realização do presente sendo elas: Associação dos Produtores do
estudo ao Núcleo Transdisciplinar Assentamento Sílvio Rodrigues (APSR), União
de Pesquisa em Alimentação Sus- dos Produtores da Fazenda Paraíso (UNI-UP)
tentável e Produção Agroecológica (Naspa), e Associação dos Pequenos Produtores Ru-
na época, vinculado ao então Centro de Estu- rais Unidos e Região (Asprur).
dos do Cerrado da Chapada dos Veadeiros, Na pesquisa, registramos mensalmente
mais conhecido como Centro UnB Cerrado. a diversidade de produtos na feira e calcu-
Criado em dezembro de 2010, o Centro rea- lamos a média, ao longo do ano, para cada
lizou projetos de educação ambiental, agro- agricultor(ra). Para avaliarmos o estágio de
ecologia, segurança alimentar e nutricional transição agroecológica que se encontra
(SAN), sobretudo por meio do Naspa, que, cada família, visitamos e aplicamos um ques-
desde 2019, está vinculado ao Instituto Bior- tionário, registramos as práticas que estão
regional do Cerrado (IBC). em uso em cada parcela, além de outros in-
Em 2014, o Naspa atuou diretamente com dicadores, que serão apresentados adiante.
ações voltadas para a juventude local e um Indicadores são características produtivas
grupo de jovens que desenvolveu projetos de ou de organização comunitária, capazes de
agroecologia junto às suas famílias no assen- refletir o avanço no processo de transição, e
tamento Sílvio Rodrigues, em Alto Paraíso, serão apresentados a seguir.
estendendo depois a outros assentamentos Conhecendo bem as limitações na implan-
rurais da Chapada dos Veadeiros.24 Desses tação e na manutenção das práticas agro-
projetos, identificamos algumas famílias com ecológicas apresentadas aos(às) agriculto-
grande potencial de produção de base agro- res(as), definimos indicadores direcionados
ecológica.25 O trabalho conjunto entre essas à realidade da Chapada dos Veadeiros, es-
famílias do PASR, do Assentamento Mingau e pecificamente para esse grupo de agriculto-
do Naspa resultou na criação da Feira Popu- res(as) do PASR. Esses indicadores foram dis-
lar da Agricultura Familiar de Alto Paraíso de postos em categorias que refletem o nível do
Goiás, no avanço da transição agroecológica, processo de transição agroecológica de cada
no estreitamento de laços familiares, e alguns uma dessas parcelas. Para contribuir na aná-
deles contribuíram, de forma efetiva, para o lise, propusemos três categorias (níveis 1, 2
aumento da produção (BARBOSA et al., 2018; e 3), agrupando os indicadores. Levamos em
LARANJEIRA et al., 2014; LARANJEIRA; BARBO- consideração, entre outros indicadores, a di-
SA; DHELOMME, 2014), bem como no fortale- versidade média de produtos e o número de
cimento e empoderamento de associações, práticas agroecológicas observadas em cada
uma das parcelas.

24 Projeto de Assentamento (PA) Mingau, em São João D´Aliança; e PAs Terra Mãe, Boa Esperança e Córrego do Bonito,
em Colinas do Sul.
25 Algumas famílias já participavam da Feira do Produtor Rural de Alto Paraíso, que ocorre tradicionalmente aos sába-
dos naquela localidade.

64
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Participaram desta pesquisa nove famí-


lias agricultoras do Assentamento Sílvio Ro-
drigues, de Alto Paraíso (identificados pelo
número de suas parcelas), e um do Assenta-
mento Mingau, de São João d’Aliança (identi-
ficado por XX).

2.1 Categorias (níveis de 2.1.1 Categoria 1: roças iniciando


transição agroecológica) o processo de transição
agroecológica
Os indicadores aqui selecionados foram
inspirados na proposta do Movimento Agro- Para a categoria 1, propusemos indica-
ecológico de Camponês a Camponês (Ma- dores que denotam o início do processo de
cac), da Associação Nacional de Pequenos transição, com destaque para a constatação
Agricultores de Cuba (SOSA et al., 2012, p. do uso de: i) número de práticas agroecoló-
24), o qual possibilitou que mais de 100 mil gicas (entre um e três); ii) envolvimento fa-
famílias transformassem seu sistema de pro- miliar, aqui, considerado como fundamental
dução através de processos de base agroe- para o início do processo de transição; e, iii)
cológica num prazo de cerca de uma década. por fim, diminuição no consumo de insumos
externos às parcelas, principalmente insu-
mos sintéticos. Apresentamos, no quadro a
seguir, os indicadores propostos para a ca-
tegoria 1.

Quadro 1: Indicadores e parcelas classificadas como categoria 1

PARCELAS DO PASR (No.)


INDICADORES
109 41 23 75 72 74 10 44 13 XX
CATEGORIA 1

No. de Praticas Agroecológicas (entre 1 e 3) x x x x x x x x x x

Envolvimento Familiar x x x x x x x x x x

Sensibilidade para questões ambientais x x x x x x

Disposição ou prática para experimentação x x x x x x x x x x

Evidente diminuição dos insumos externos às


x x x x x x x x x x
parcelas
Elaborado por César Barbosa, 2018.

Nota: As parcelas destacadas em azul (74, 10 e 44) foram classificadas na Categoria 1; as demais, devido aos
outros indicadores apresentados nos quadros 2 e 3, foram classificadas em níveis mais elevados.

65
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

2.1.2 Categoria 2: roças em pleno processo de transição agroecológica


Para definição das parcelas que se encontram na categoria 2, demos mais ênfase à mudança
da forma de produzir, com: i) práticas agroecológicas em maior número (acima de três); e ii)
efetiva diminuição de insumos sintéticos (químicos), entre outros indicadores. Apresentamos
no quadro a seguir, os indicadores propostos para a categoria 2.

Quadro 2: Indicadores e parcelas classificadas como categoria 2

PARCELAS DO PASR (Nº)


INDICADORES
109 41 23 75 72 74 10 44 13 XX
C
Número de práticas agroecológicas
A x X X x x x X x
(entre quato e seis)
T
Participação em capacitações de
E x X x x X x
agroecologia
G
Agrobiodiversidade e integração dos
O x x X x
componentes da roça na produção
R
I Evidente diminuição dos insumos
x X x x x x X x
sintéticos.
A
Reafirmação da identidade
x x x X x
camponesa (como agroecológico)
2
Diversidade de produção
x X X x x x x X x
comercializada

Elaborado por César Barbosa, 2018.

Nota: As parcelas destacadas em amarelo (41, 23 e 13) foram classificadas na categoria 2.

66
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

2.1.3 Categoria 3: roças avançadas no processo de transição


agroecológica
Para definição das parcelas que se encontram na categoria 3 no processo de transição agro-
ecológica, destacadas em verde, no quadro 3, levamos em consideração, principalmente, o
redesenho dos agroecossistemas. Nessa categoria, levamos em consideração o compromisso
com: i) a difusão da agroecologia, por exemplo, promovendo eventos em suas parcelas (cursos,
oficinas, vivências etc.), observada nas parcelas 109, 75, 72 e XX; e ii) a participação em ativida-
des das organizações de base também não identificada na maioria delas, somente presente
nas parcelas 75, 72 e XX. Apresentamos no quadro a seguir, os indicadores propostos para a
categoria 3.

Quadro 3: Indicadores e parcelas classificadas como categoria 3

PARCELAS NO PASR (Nº)


INDICADORES
109 41 23 75 72 74 10 44 13 XX
Número de práticas
C x x x x x
agroecológicas (acima de sete)
A
Conhecimento sobre
T agroecologia e SAN
E
Difusor da agroecologia
G promovendo eventos, cursos, x x x x
O feiras etc,
R Ausência de químicos e
I transgênicos
A Produção para o mercado local x x x x x x x x x
Permanência nas atividades de
2 comercialização (tempo nas feiras x x x x x x x x x x
etc.)
Participação nas atividades das
x x x
organizações de base
Elaborado por César Barbosa, 2018.

Esse último nível não quer dizer necessariamente que as parcelas já sejam completamente
agroecológicas, mas que o processo avançou a ponto de poderem ser assim consideradas, e
mais, que o processo continua em curso. Mesmo as parcelas avaliadas nessa categoria não
contemplaram todos os indicadores aqui propostos, e mesmo uma das parcelas, a nº 13, que
apresentou elevado número de práticas, não foi assim considerada, por não contemplar ou-
tros indicadores.

67
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Indicadores como I conhecimento sobre Quanto à categorização utilizada para a


agroecologia e SAN e II ausência de quí- avaliação do nível do processo de transição,
micos e transgênicos ainda não foram iden- podemos perceber que é adequada. Na me-
tificados nesse grupo de agricultores(as), de- dida em que as parcelas pertencentes à ca-
monstrando que ainda há um certo caminho tegoria 1 (números 10, 44 e 74), apesar de
a ser trilhado rumo à culminância do proces- não apresentarem necessariamente as me-
so de transição agroecológica, mesmo para nores médias de diversidade de produtos,
as parcelas que se encontram na categoria estão realmente iniciando seu processo de
3. Nesse caso específico, ainda persiste o uso transição, o que pode ser comprovado pelos
de insumos sintéticos em alguns cultivos, indicadores e também pelo pequeno núme-
como no caso das culturas de milho e feijão. ro de práticas agroecológicas presentes nes-
A comprovação da ausência de transgenia sas parcelas, como observado na tabela a a
também exigiria um aprofundamento para seguir.
real constatação.

Tabela 1: PNAE/PAA,26 diversidade de práticas agroecológicas, permanência na feira e categorias.

Elaborado por César Barbosa, 2018.

Já as parcelas pertencentes à categoria 2 Podemos analisar a relação entre a diver-


(13, 23 e 41), consideradas já em pleno pro- sidade de produtos e os níveis de transição,
cesso de transição, apresentam quantidades comparando a média de produtos e a cate-
de práticas agroecológicas distintas (8, 4 e 4, goria de cada uma dessas parcelas. Obser-
respectivamente), acima da categoria 1, mas vamos que não há uma relação direta entre
não contemplam diversos outros indicado- as médias de produtos e o nível de transi-
res, o que justifica a categorização num nível ção. Dois fatores, principalmente, parecem
intermediário. Já as parcelas 109, 75, 72 e XX, influenciar para que algumas parcelas (44 e
da categoria 3, apresentaram médias ele- 74) apresentem alta diversidade de produtos
vadas de diversidade de produtos, também mesmo tendo apenas iniciado o processo de
possuem as maiores quantidade de práticas transição, que são o número de integrantes
agroecológicas implementadas nas suas áre- familiares envolvidos no cultivo e o tamanho
as de cultivo e foram categorizadas no mais das áreas de cultivo.
alto nível de transição, o que não quer dizer
que já sejam completamente agroecológicas,
mas sim que estão em processo avançado de
26 Programa Nacional de Alimentação Escolar, Lei n°
transição. 11.947/2009, e Programa de Aquisição de Alimentos, Lei nº
10.696/2003.
68
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

O mais importante aqui é que, dos sete O presente estudo permitiu ampliar a
feirantes das parcelas pertencentes às cate- compreensão da relação dos processos de
gorias 2 e 3, seis são fundadores da feira, ou transição agroecológica com a SAN na agri-
seja, estão desde o seu início, demonstrando cultura familiar. A diversidade produtiva e
claramente que níveis mais elevados do pro- a transição agroecológica têm garantido a
cesso de transição contribuem diretamente permanência na feira (e retroalimentam-se),
na permanência desses(as) agricultores(as) trazendo sustento para as famílias para além
na feira, e vice-versa, pois também percebe- da alimentação, ou seja, melhorando a SAN
mos que a própria participação na feira pro- delas, e garantindo alimentos saudáveis na
picia uma troca contínua de conhecimentos, cidade.
incentivando os(as) agricultores(as) a conti-
nuarem no processo de transição, incorpo-
rando novos conceitos e técnicas no cami-
nho rumo a uma produção agroecológica
(LARANJEIRA; BARBOSA, 2018).

3. Importância da pesquisa
para sociobiodiversidade e a
sustentabilidade no Cerrado

O
s indicadores de transição agro- para combinar conservação ambiental, pro-
ecológica propostos para as- dução de alimentos saudáveis e inclusão so-
sentamentos da Chapada dos cial de agricultores(as) familiares, contribuin-
Veadeiros, que levaram em consideração do, assim, para a conservação da Chapada
não somente as práticas agroecológicas, dos Veadeiros e do Cerrado, bem como para
como também atividades e comportamento a sustentabilidade de sua população rural.
dos(as) agricultores(as) rumo a uma produ-
ção agroecológica, se mostraram adequados
para o grupo estudado. A pesquisa serve de
incentivo para que os(as) agricultores(as)
continuem participando da Feira Popular da
Agricultura Familiar e avançando no proces-
so de transição agroecológica. Dessa forma,
os indicadores aqui propostos podem servir
como um caminho a ser trilhado pelas famí-
lias em transição rumo a uma produção cada
vez mais diversificada e de base agroecoló-
gica, e mesmo para aquelas que desejam
iniciar o processo. A produção agroecológica
vem se mostrando a cada dia mais essencial

69
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

REFERÊNCIAS LARANJEIRA, N. P. F. et al. Formação de jovens do


campo para a sustentabilidade na Chapada dos Ve-
BARBOSA, C. A. S. Diversidade produtiva e transição adeiros, Goiás. In: CONGRESO IBEROAMERICANO DE
agroecológica: um estudo de caso da Feira Popular da CIENCIA, TECNOLOGÍA, INNOVACIÓN Y EDUCACIÓN,
Agricultura Familiar de Alto Paraíso de Goiás. Mono- 2014, Buenos Aires. Anais […]. Buenos Aires: OEI, 2014.
grafia (Curso de Especialização Sociobiodiversidade e Disponível em: http://www.oei.es/congreso2014/me-
Sustentabilidade no Cerrado) - Universidade de Brasí- morias2014.php. Acesso em: 8 nov. 2018.
lia, Alto Paraíso de Goiás.
LARANJEIRA, N. P.; SARAIVA, R. C. F.; SILVA, A. da C.;
BARBOSA, C. A. S. et al. Curso de Agroecologia e Sus- LIMA, F. D. N. de. Território: Águas, terra e gente. IN:
tentabilidade no Cerrado oferecido pelo Centro UnB ÁGUAS, C. P.; LARANJEIRA, N. P.; SILVA, C. T. da (orgs).
Cerrado/Naspa. Cadernos de Agroecologia: Anais do Águas e Saberes na Chapada dos Veadeiros. Juiz de Fora,
VI CLAA, X CBA e V SEMDF, v. 13, n. 1, Brasília, 2018. MG: Editora Águas, 2021. Capítulo 8. Disponível em:
Disponível em: http://cadernos.aba-agroecologia.org. naspaibc.wixsite.com/naspa. Acesso em: 20 jun. 2021.
br/index.php/cadernos/article/view/365. Acesso em:
SANTILLI, J.; BUSTAMENTE, P. G.; BARBIERI, R. L. (ed.).
8 nov. 2018.
Agrobiodiversidade. Brasília: Embrapa, 2015. p. 21. (Co-
CAPORAL, F. R.; COSTABEBER, J. A. Agroecologia: alguns leção Transição Agroecológica, v. 2).
conceitos e princípios. Brasília: MDA/SAF/Dater-Iica,
SOSA, B. M. et. al. Revolução Agroecológica: o Movimen-
2004.
to Camponês a Camponês da Anap em Cuba. São Pau-
GLIESSMAN, S. R. Agroecologia: processos ecológicos lo: Expressão Popular, 2012. p. 100-110.
em agricultura sustentável. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2000. Link de acesso ao trabalho completo:
https://bdm.unb.br/handle/10483/21525
LARANJEIRA, N. P. F.; BARBOSA, C. A. S. Agricultores
protagonistas da segurança alimentar e da transição
agroecológica. Agroecología, 13, n. 1, p. 47-56, 2018.

LARANJEIRA, N. P.; BARBOSA C. A. S.; DHELOMME, A.


M. Juventude do campo e transição agroecológica.
Cadernos de Agroecologia: IV Seminário de Agroecolo-
gia do Distrito Federal e Entorno, Brasília, v. 9, n. 3,
2014. Disponível em: http://revistas.abaagroecologia.
org.br/index.php/cad/article/view/15983. Acesso em:
8 nov. 2018.

70
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Do Cerrado para a mesa:


articulando agricultura
familiar com alimentação
escolar pelas frutas nativas
Claudia Isabel Lulkin 27

Nina Paula Laranjeira28

27 Nutricionista e ambientalista. Especialista em Sociobiodiversidade e Sustentabilidade no Cerrado pelo Centro de Estu-


dos do Cerrado da Chapada dos Veadeiros (Centro UnB Cerrado) da Universidade de Brasília, em Alto Paraíso de Goiás, Goiás.
Atuou em vários períodos na Secretaria Municipal de Educação de Alto Paraíso, fortalecendo a compra da agricultura familiar
no PNAE e PAA entre 2011 e 2021. Em 2021 recebeu o selo NUTRILEGAL do Conselho Regional de Nutricionistas - crn1 por sua
atuação no PNAE. E-mail claudialulkin@gmail.com
28 Geóloga, doutora em Geologia. Professora Associada, aposentada pela UnB. Foi diretora do Centro UnB Cerrado entre
2011 e 2017, no qual permaneceu até 2019; atua como pesquisadora junto ao NEA/UnB (Núcleo de Estudos em Agroecologia)
e ao Interssan/UNESP; membro associada do Instituto Biorregional do Cerrado-IBC, Alto Paraíso de Goiás, onde participa do
Núcleo de Alimentação Sustentável e Produção – Naspa/IBC. Email: ninalaranjeira@gmail.com

71
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

1. O que é a pesquisa?

O
interesse e a curiosidade pelo A expansão da soja está diretamente liga-
uso das frutas nativas do Cerra- da à produção de ração para animais, pelo
do tratadas nesta pesquisa co- aumento da demanda de carne na alimenta-
meçaram em 2004 quando a Secretaria de ção humana. Atualmente, 90% da safra culti-
Saúde Municipal de Pirenópolis, Goiás, en- vada no mundo é destinada às indústrias de
comendou um estudo sobre multimistura — esmagamento, que transformam o grão em
a partir da visão e prática de Clara Brandão óleo e farelo. Esse último, por sua vez, servi-
29
— com a utilização dos alimentos locais. rá de ração para gado, frangos, porcos, entre
Aquela demanda inicial estimulou a busca outros, criados em confinamento. Essa utili-
por informações sobre os usos das frutas do zação explica o crescimento da demanda e o
Cerrado e, desde então, esse tema passou a consequente aumento de 60% da produção
ser central nas pesquisas e atuação político- de soja mundial entre 1995 e 2005 (SCHLE-
-profissional como nutricionista e ambienta- SINGER; NORONHA, 2006).
lista de Claudia Lulkin. A Chapada dos Veadeiros, região onde
O Cerrado é o bioma brasileiro que mais está localizada a cidade de Alto Paraíso de
sofreu alterações com a ocupação humana a Goiás, sofre por um lado grande pressão do
partir dos anos 1970. Com a crescente pres- latifúndio e da monocultura da soja, pelo
são para a abertura de novas áreas, visando uso de agrotóxicos e fertilizantes sintéticos,
incrementar a produção de carne e grãos e de sementes transgênicas. No embate a
para exportação, tem havido um progres- essas práticas, estão agricultores(as) fami-
sivo esgotamento dos recursos naturais da liares, que trabalham com culturas de base
região (BRASIL, 2019). Esse cenário atinge os agroecológica, cultivando feijão, café, milho,
frutos do Cerrado, como pequi, baru, buri- mandioca, batata-doce, amendoim, cana-de-
ti, araticum, cagaita, mangaba. Esses frutos -açúcar, banana, laranja, mexerica, mamão,
vêm diminuindo por meio de derrubada de maracujá, verduras em geral; criando gali-
árvores, para a produção de soja transgêni- nhas e gado, produzindo ovos e leite em pe-
ca, e por meio de queimadas, gerando difi- quena escala. Além dessas práticas, esses(as)
culdades para o uso e o comércio em feiras agricultores(as) comercializam frutos do Cer-
locais, promovendo, dessa forma, a perda da rado — jatobá, baru, pequi, bem como pol-
cultura alimentar tradicional dos frutos do pas de cagaita, mangaba, araticum —, como
Cerrado. parte do agroextrativismo que praticam. São
esses(as) agricultores(as) que fizeram parte
do contexto da pesquisa.

29 Clara Brandão, nutróloga brasileira que se popularizou por promover a ideia de usar uma multimistura, um comple-
mento alimentar contendo sementes, pós de folhas verdes secas e farelos de cereais, que pudesse ser agregado à alimenta-
ção cotidiana, combatendo a desnutrição (BRANDÃO, s.d.).

72
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Em 2017, em atenção aos propósitos da A partir do olhar da nutrição e da proteção


especialização em Sociobiodiversidade e ambiental, trouxemos para a pesquisa a impor-
Sustentabilidade no Cerrado (Centro UnB tância da conservação das árvores frutíferas
Cerrado), consideramos a importância e a e suas frutas, como papel fundamental na
necessidade de introduzir as frutas nativas manutenção da biodiversidade do Cerrado, na
do Cerrado na alimentação escolar, visando segurança alimentar e nutricional de comuni-
dar um salto de qualidade na alimentação dades do campo, e também na saúde coleti-
das escolas do município de Alto Paraíso de va. Essas frutas estão adaptadas ao clima, ao
Goiás e visibilidade para essa cultura alimen- solo, às temperaturas, e também os (re)criam
tar tradicional, parte da memória afetiva do e alimentam. Alimentam os animais e as pes-
território da Chapada dos Veadeiros. soas deste território. A utilização desses fru-
Alto Paraíso de Goiás, cidade onde foi rea- tos, mesmo os mais populares como pequi,
lizada esta pesquisa, está situada na Chapa- baru, buriti, araticum, cagaita, mangaba vem
da dos Veadeiros, a 230 km de Brasília-DF e a diminuindo: pela perda dessas árvores frutí-
420 km de Goiânia - GO. Segundo dados do feras com as queimadas, pela dificuldade em
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísti- colher, pela dificuldade de chegar às feiras,
ca (IBGE), em 2010, havia uma população de em função das estradas precárias; gerando
6.885 habitantes em uma área de 2.594 km2, perda dessa cultura alimentar.
sendo que 1.666 pessoas estão no campo O objetivo da pesquisa, que parte da ex-
(Emater local, comun. verbal, 20I7). periência e da prática profissional de Claudia
Lulkin, foi chamar a atenção para o valor das
árvores frutíferas, com seu papel ambiental, e
introduzir seus frutos na “merenda” escolar, o
que se transforma em saúde coletiva efetiva.
Compõe-se assim, de um lado, uma alimenta-
ção de alto valor nutricional, e de outro, o for-
talecemento da rede social dos(das) agriculto-
res(as) e extrativistas, e o resgate da cultura
alimentar local, a promoção da saúde huma-
na e do bioma, promovendo ainda novos usos
na gastronomia.

73
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

VOCÊ sabia?

Lei no 11.346

A Lei no 11.346, de 15 de setembro de 2006, em seu artigo 3o, assim definiu:


“Art. 3º - A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao
acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem com-
prometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares
promotoras da saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural,
econômica e socialmente sustentáveis.”
Tal conceito condiciona a segurança alimentar e nutricional não só à disponibilidade e ao
acesso aos alimentos em qualidade e quantidade adequada, como também à possibilidade de
escolha do que comer, de acordo com os hábitos culturais, além da garantia da saúde e de que
outras necessidades sejam atendidas. Dessa forma, essa Lei garante (e se baseia no) Direito
Humano à Alimentação Adequada e Saudável, e também a Soberania Alimentar e a proteção
do meio ambiente. (LARANJEIRA et al, 2021, p. 128)

74
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

2. Como a pesquisa foi realizada?

Desde 2012, a Secretaria Municipal de Educação de (SME) de Alto Paraíso de Goiás havia
compreendido a importância da compra de, pelo menos, 30% dos alimentos provindos da agri-
cultura familiar, prevista na Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009, que criou o Programa Na-
cional de Alimentação Escolar (PNAE), como uma política pública que garante alimentação sau-
dável para os escolares, sustentabilidade financeira para os(as) pequenos(as) agricultores(as) e
agroextrativistas locais e, ainda, manutenção da biodiversidade.

Programa Nacional de
VOCÊ sabia? Alimentação Escolar

O PNAE foi criado pela Lei nº 11.947, de 2009, determina entre outras coisas, que a alimen-
tação escolar deve ser “saudável e adequada, compreendendo o uso de alimentos variados,
seguros, que respeitem a cultura, as tradições e os hábitos alimentares saudáveis” (Art. 2º, I) e
inclui a educação nutricional nas escolas, como forma de incentivar hábitos alimentares e de
vida saudáveis. Além disso, o Programa visa também ao fortalecimento da agricultura familiar,
ampliando oportunidades de comercialização para seus produtos, como forma de melhoria da
segurança alimentar e nutricional, tanto nas escolas, quanto no campo.

Assim, a SME de Alto Paraíso já vinha ar- A partir de 2017, a atuação como nutri-
ticulando agricultores(as) familiares, quase cionista e gerente de merenda escolar pro-
todos(as) ligados(as) à cooperativa Cooper piciou ação prática nas escolas diretamente
Frutos do Paraíso, com sede na zona rural de com merendeiras e algumas professoras,
Alto Paraíso de Goiás, composta por agricul- dando condições para o desenvolvimento da
tores(as) e extrativistas de vários municípios pesquisa.
da Chapada dos Veadeiros e que tem sido de No ano de 2018, foi possível incluir as fru-
grande importância para os programas go- tas nativas na chamada pública de compras
vernamentais de compras para a alimenta- do PNAE. A chamada pública é o procedi-
ção escolar. mento administrativo voltado à seleção de
proposta específica para aquisição de gêne-
ros alimentícios provenientes da agricultura
familiar e/ou empreendedores(as) familiares
rurais ou suas organizações (BRASIL, 2016).

75
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Experiências anteriores mostraram que As escolas municipais e as conveniadas


as merendeiras têm papel chave para que — Escola Municipal Zeca de Faria, Escola do
novas preparações sejam aceitas, daí a im- Povoado do Moinho, Escola do Povoado de
portância de estar junto com elas, nas prepa- São Jorge, Escola Municipal Prof.ª Ana Aguiar
rações das receitas introduzidas na meren- (Arca), Escola Francisquinho da Associação
da escolar. Nascidas na região, conhecem e Paulo de Tarso, Escola do Povoado do Ser-
valorizam alimentos locais. Algumas já foram tão, Escola Humberto de Campos, na Cidade
cozinheiras em restaurantes vegetarianos de da Fraternidade, Centro Municipal de Educa-
Alto Paraíso, o que garantiu um conhecimen- ção Infantil (CMEI) Criança Feliz e Escola Vila
to especial no uso de verduras e legumes. Verde — receberam farinha de jatobá, fari-
Numa pequena cidade, o trabalho de nutri- nha de baru e polpas de araticum. Esses ali-
cionista com as merendeiras tornou possível mentos foram entregues juntamente com o
criar relações produtivas e criativas. estudo sobre as respectivas plantas.
Uma das estratégias da pesquisa foi, em Nas cozinhas que ficam na cidade — duas
2018, entregar para 16 merendeiras que atu- cozinhas na Escola Zeca de Faria, em dois
am em escolas do município o livreto Alimen- turnos; uma cozinha com dois turnos no
to, tradição e sustentabilidade – uso de plantas CMEI; uma cozinha com dois turnos na Esco-
alimentícias não convencionais – Pancs na Cha- la Municipal Prof.ª Ana Aguiar; uma cozinha
pada dos Veadeiros, editado pelo Núcleo de com um turno na Creche Francisquinho —,
Alimentação Sustentável e Produção Agroe- trocamos conhecimentos e modos de utilizar
cológica (Naspa), do Instituto Biorregional do os alimentos, principalmente como comple-
Cerrado (IBC) (GARCEZ; CARMONI; MARTINS, mento, como farinha de jatobá e baru, acres-
2017). Esse livreto serviu como material de cido a bolos de cenouras, que as crianças
educação alimentar. A partir do livreto e das adoram; a pães; ou à vitamina com abaca-
muitas conversas com elas, confirmamos a te. Na Escola Vila Verde, foram feitas recei-
importância do Cerrado como parte do seu tas práticas envolvendo pais e filhos. Frutas
patrimônio local e cultural. como mangaba, cagaita, pequi em lascas e
buriti, que constavam da chamada pública,
acabaram não tomando parte do cardápio,
pois se esperava a safra da época das águas,
no segundo semestre de 2018, o que não foi
possível fazer acontecer por mudanças na
SME.

76
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Com o propósito de introduzir as frutas Inúmeros materiais e livros foram levados


nativas do Cerrado na alimentação escolar, à sala de aula: o livreto anteriormente citado
foram mobilizadas professoras com perfil e materiais encontrados na Biblioteca Muni-
inovador e que conhecem o Cerrado. Uma cipal. Os alunos estudaram esse material e
professora das turmas de quinto ano do en- também perguntaram sobre as frutas nati-
sino básico da Escola Municipal Zeca de Fa- vas em suas casas, bem como criaram o livro
ria sentiu-se estimulada e respondeu rapi- e um convite para apresentar essa pesquisa
damente, escolhendo o dia 18 de abril, Dia à comunidade.
do Livro Infantil, com a ideia de elaborar um
livro no qual as crianças pudessem criar e
expressar conhecimentos sobre o Cerrado. A
diretora da escola e a coordenadora pedagó-
gica também apoiaram o projeto, buscando
material pedagógico para embasar a ação.

Figura 1: Livro elaborado pela turma do 5º ano da Escola Municipal Zeca de Faria,
com pequi, doce e castanhas de cajuzinho

Fonte: Arquivo de Claudia Lulkin, 2018.

77
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Além dessas estratégias, realizamos entrevistas semiestruturadas com 28 pessoas, de di-


versas idades, incluindo professoras, merendeiras, alunos de escola, técnicos da SME e consu-
midores(as) das feiras de Alto Paraíso de Goiás, a fim de avaliar o quanto essas pessoas ainda
conhecem e utilizam as frutas nativas do Cerrado.
Várias histórias/depoimentos resultaram destas entrevistas:

“Dá para encher o bucho e também repetir”


(jovem do Sertão, comunidade rural de
Alto Paraíso).

“Quando aqui cheguei passei a experimen-


tar as frutas dentro do Cerrado. Descobri a
mama-cadela que é uma delícia [...]. Expe-
rimentando e aprendendo” (depoimento
de entrevistada na feira). A mama-cade-
la é bastante conhecida e disponível em
áreas rurais).

“Quando criança, comia para matar a fome. Jato-


bá, baru, pequi, mangaba, cagaita, araticum,
cajuzinho. Saía a turma a catar no Cerrado.
Muito bom! Meu pai pegava muitos sacos de
frutas e levava para os visitantes na igreja.
Óleo de copaíba uso como remédio até hoje”
(depoimento de uma merendeira).

“Todas as frutas que conheci meu bisavô


plantava. O quintal era imenso e ele cui-
dou das plantas até seus 100 anos” (de-
poimento de servidora da SME, jovem
nascida na região).

78
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Figura 2: Mangaba recém-colhida no Cerrado. A partir das entrevistas, foi possível


constatar que muitas das frutas nativas do
Cerrado são conhecidas pela população lo-
cal, sendo que o pequi ainda é a fruta mais
popular. O cajuzinho, o baru, o jatobá, o ara-
ticum, a mangaba e a cagaita também são
muito conhecidos e ainda utilizados. Essas
árvores frutíferas se faziam presentes nos
quintais das famílias e podiam ser colhidas
no Cerrado, fazendo parte da memória
cultural. No Sertão, as frutas estudadas ain-
da fazem parte do cotidiano.
A partir das entrevistas, realizou-se uma
pesquisa bibliográfica sobre as frutas na-
tivas do Cerrado mais populares, buscan-
do informações sobre valores nutricionais
e funcionais, confirmando a importância
nutricional dessas frutas na alimentação
escolar. O resultado desse estudo gerou
planilha-síntese com as principais caracte-
rísticas de frutas nativas do Cerrado, que
Fonte: Arquivos do Naspa/IBC, ano 2016.
pode ser encontrada no site do Naspa30.

As frutas do Cerrado são ricas fontes de ção e a baixa imunidade. O estresse oxidati-
carotenóides, classe de compostos bioativos vo decorre de um desequilíbrio entre a gera-
abundantes em células vegetais. Os carote- ção de compostos oxidantes e a atuação dos
noides atuam nos tecidos e na pele aumen- sistemas de defesa antioxidante (BARBOSA,
tando a resposta imunológica contra agres- 2010), gerando doenças crônico-degenera-
sores causadores de processos inflamatório, tivas, incluindo câncer, Alzheimer, doenças
sendo, então, antioxidantes. O padrão da cardíacas, bem como envelhecimento pre-
alimentação atual é altamente lesivo para o coce. A pesquisa acadêmica sobre os frutos
organismo humano: há o aumento da quan- do Cerrado, mostrando o valor nutricional e
tidade de produtos provindos de animais funcional, como por exemplo as proprieda-
alimentados com grãos produzidos com des antioxidantes, fortaleceu a compreen-
alta quantidade de agrotóxicos, transgêni- são da importância dos frutos e das árvores
cos, além do processamento industrial, que para a manutenção desse bioma e para a
transforma alimentos em produtos alimentí- alimentação. Foi também possível justificar a
cios sem valor nutricional, com alta quanti- inserção desses alimentos nos cardápios das
dade de corantes, flavorizantes, conservan- escolas e nas chamadas públicas para com-
tes artificiais, bem como grande quantidade prar dos(das) agricultores(as).
de açúcar e sal refinados. O resultado desses
processos é o estresse oxidativo ou intoxica- 30 https://naspaibc.wixsite.com/naspa

79
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Carotenóides
VOCÊ sabia? Escolar
Aproximadamente 600 carotenóides são encontrados na natureza, constituindo o maior
grupo de corantes naturais, cuja coloração pode variar entre o amarelo claro, o alaranjado e o
vermelho, presentes em frutas, vegetais e flores (SCHALCH, s. d.).
Alguns podem ser convertidos em vitamina A; outros estão associados à redução do risco de
câncer e de outras doenças crônico-degenerativas, sem que estes sejam primeiro convertidos
em vitamina A. Esta função de combate a doenças, tem sido atribuída ao potencial antioxidan-
te dos carotenóides, que são capazes de sequestrar formas altamente reativas de oxigênio e
desativar radicais livres (isso é a capacidade antioxidante) (ROCHA, 2011).
Esses compostos bioativos também fazem a filtração da luz solar, facilitação da comunica-
ção celular e atuação na resposta imunológica do corpo. Destacam-se também algumas asso-
ciações, como a prevenção de doenças crônicas não transmissíveis, incluindo alguns tipos de
câncer (HORST, 2009).
Grande parte das FRUTAS NATIVAS do cerrado são especialmente ricas em carotenóides: o
buriti, o tucumã, o dendê, a macaúba, o pequi, o araticum, o jatobá, a pupunha são fontes po-
tenciais de carotenóides pró-vitamina A (ROCHA, 2011). Eles são responsáveis pela coloração
amarela ou laranja desses frutos.

80
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Assim, as escolas municipais e conve- Figura 3: Polpas de mangaba e cagaita .


niadas puderam receber a farinha de jatobá,
a farinha de baru e as polpas de araticum,
mangaba e cagaita, bem como produzir re-
ceitas com as frutas, inserindo-as nos cardá-
pios. Todo o trabalho de introdução dessas
frutas nos cardápios foi acompanhado por
meio de visitas semanais nas escolas.
As merendeiras receberam as fru-
tas nativas com naturalidade, incluindo nas
preparações como complemento nutritivo.
O que garantiu essa naturalidade foi a rela-
ção estabelecida; a parceria e sensibilização
construída por meio de conversas sobre a
importância do Cerrado.
Na cozinha do CMEI Criança Feliz, na
Páscoa, foram preparados bombons usando
receita tradicional, acrescidos de farinha de
jatobá e gergelim tostado no recheio.

Fonte: Arquivos do Naspa/IBC, ano 2018.

3. Importância da pesquisa
para a sociobiodiversidade e a
sustentabilidade no Cerrado

N
a perspectiva da sociobiodiversidade e da sustentabilidade do Cerrado, a pesquisa
revelou a necessidade do Cerrado em pé, como garantia para a conservação ambien-
tal e uso alimentar.
O estudo Do Cerrado para a mesa demonstrou a importância da conservação das ár-
vores frutíferas do Cerrado, seu papel fundamental na manutenção da biodiversidade desse
bioma, para segurança alimentar e saúde coletiva. Ressalta-se a importância de comunidades
comprometidas com seus usos e conservação, como as comunidades remanescentes de qui-
lombos, raizeiros(as), pessoas com conhecimentos tradicionais sobre as plantas medicinais do
Cerrado, camponeses(as) e agricultores(as) familiares, com seus modos de vida tradicionais, de
baixo impacto ambiental, e seu vasto conhecimento sobre este bioma.

81
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

A pesquisa demonstrou o alto valor nutri- As merendeiras, humildes na atitude de


cional e funcional dos frutos do Cerrado, po- ouvir e trocar informações, foram as pessoas
dendo, dessa forma, contribuir para a saúde mais receptivas nas escolas. Por terem um
coletiva. Além disso, também identificou que passado de vida mais simples e mais pró-
sua inserção entre os alimentos que chegam ximo da natureza, com menos acesso aos
à escola, promove o fortalecimento de redes mercados de alimentos, elas compreendem
de agricultores(as) e extrativistas, resgata a melhor a riqueza dos frutos do Cerrado. As
cultura alimentar local, promove a saúde hu- universidades, os pesquisadores, os viventes
mana na relação de conservação do bioma. do Cerrado já sabem dessa riqueza. Então
É, pois, de fundamental importância para este é o momento de se aproveitar tudo o
a manutenção do bioma recriar elos, que a que já é de domínio, tanto da ciência quanto
priori existem, considerando que muitos es- do povo local, e fazer essa mudança funda-
tudantes pertencem a famílias locais, que mental, vital para a continuidade do Cerrado
tem raízes no campo. No entanto, essa rela- e da Chapada dos Veadeiros. Valer-se dessa
ção vem sendo perdida com o crescimento riqueza e desse conhecimento pode repre-
do município, com a urbanização sem plane- sentar a resiliência desse bioma, que sofre
jamento e obrigando a saída dos jovens para grave pressão da transgenia, dos agroquími-
estudar fora e tentar uma vida que conside- cos, da vegetação exótica que destrói o solo
ram mais adequada. Introduzir as frutas na- e rouba a água. pesquisa permitiu divulgar o
tivas do Cerrado na alimentação escolar, va- conhecimento dos frutos do Cerrado e mobi-
lendo-se de políticas públicas vigentes é uma lizar para que as comunidades locais e o Bra-
forma de manter essas árvores frutíferas, sil não percam esse valor fundamental de se
deixando de desmatar o Cerrado para dar alimentar dos frutos nativos.
lugar às monoculturas lesivas, fortalecendo
REFERÊNCIAS
uma agricultura de base ecológica e incen-
tivando o agroextrativismo, principalmente BARBOSA, K. B. F. et al. Estresse oxidativo: concei-
no território kalunga, na Chapada dos Vea- to, implicações e fatores modulatórios. Revista de
deiros, que detém importante conhecimento Nutrição, Campinas, v. 23, n. 4, p. 629-643, 2010.
sobre este bioma ameaçado. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pi-
As entrevistas realizadas confirmam que d=S1415-52732010000400013&script=sci_abstrac-
as pessoas ainda conhecem e utilizam as fru- t&tlng=pt. Acesso em: 15 set. 2018.
tas nativas do Cerrado. Se puderem se apro- BRANDÃO, C. T. T. Trajetória pessoal da dra. Clara Bran-
priar, efetivamente, do conhecimento sobre dão e o surgimento da multimistura. [S. l.]: [s. d.]. Dispo-
o grande poder de regeneração orgânica nível em: http://www.multimistura.org.br/biografia.
desses alimentos, muito poderá contribuir htm. Acesso em: 22 maio 2020.
para a saúde local de forma simples, barata,
acessível, pois está tudo disponível no terri-
tório da Chapada dos Veadeiros.

82
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

BRASIL. Ministério da Educação. Fundo Nacional de De- ROCHA, W. S., et. al. Compostos Fenólicos Totais e
senvolvimento da Educação. Aquisição de produtos da Taninos Condensados em Frutas nativas do Cerrado.
agricultura familiar para a alimentação escolar. 2. 2ed. Revista Brasileira de Fruticultura, Jaboticabal - SP, v. 33,
Brasília: FNDE, 2016. Disponível em: https://www.fnde. n. 4, 2011, p. 1215-1221. Disponível em: http://www.
gov.br/index.php/centrais-de-conteudos/publicaco- scielo.br/pdf/rbf/v33n4/v33n4a21. Acesso em: 26 set.
es/category/116-alimentacao-escolar?download=- 2018.
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SCHALCH, W. A Importância dos Carotenóides. Nutri-
cultura-familiar-para-a-alimentacao-escolar-2-edicao.
ção em Pauta. s.d. Disponível em: http://www.nutri-
Acesso em: 22 maio 2020.
caoempauta.com.br/lista_artigo.php?cod=345. Aces-
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. O Bioma Cerra- so em: 29 set. 2020.
do. Brasília: MMA, 2019. Disponível em: www.mma.
SCHLESINGER, S.; NORONHA, S. O Brasil está nu! O
gov.br. Acesso em: 22 maio 2020.
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GARCEZ, N. C.; CARMONI, C.; MARTINS, R. C. Alimento, demais. Rio de Janeiro: Fase, 2006. 148 p. Disponível
Tradição e Sustentabilidade: uso das plantas alimentí- em: https://issuu.com/ongfase/docs/ograoquecres-
cias não convencionais – PANC na Chapada dos Ve- ceudemais. Acesso em: 21 ago. 2018.
adeiros. Alto Paraíso de Goiás: Centro UnB Cerrado/
Link de acesso ao trabalho completo:
Naspa, Universidade de Brasília, 2017. Disponível em:
https://bdm.unb.br/handle/10483/22281
https://www.slideshare.net/cerradounb/alimento-tra-
dio-e-sustentabilidade-uso-de-plantas-alimentcias-
-no-convencionais-panc-na-chapada-dos-veadeiros.
Acesso em: 20 jun. 2018.

LARANJEIRA, N. P.; SARAIVA, R. C. F.; SILVA, A. da C.;


LIMA, F. D. N. de. Território: Águas, terra e gente. IN:
ÁGUAS, C. P.; LARANJEIRA, N. P.; SILVA, C. T. da (orgs).
Águas e Saberes na Chapada dos Veadeiros. Juiz de Fora,
MG: Editora Águas, 2021. Capítulo 8. Disponível em:
naspaibc.wixsite.com/naspa. Acesso em: 20 jun. 2021.

83
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

A Feira de Agricultores Familiares


de Base Agroecológica do Centro de
Atendimento ao Turista no município
de Alto Paraíso de Goiás
Luciano Rodrigues Campos31
Tânia Cristina da Silva Cruz32

31 Licenciado em Geografia. Especialista em Sociobiodiversidade e Sustentabilidade no Cerrado pelo Centro de Estudos


do Cerrado da Chapada dos Veadeiros (Centro UnB Cerrado) da Universidade de Brasília, em Alto Paraíso de Goiás, Goiás.
Professor da Escola E-mail: lucianorodriguesrueg@outlook.com
32 Socióloga, doutora em Sociologia pela UnB. Professora adjunta da UnB. Atua no Centro UnB Cerrado e na Faculdade
UnB Planaltina. Email: taniacruz@unb.br

84
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

1. O que é a pesquisa?

A
pesquisa procurou dar visibilidade à Feira Popular da Agricultura Familiar de Alto
Paraíso de Goiás que ocorre no espaço de comercialização de produtos agroecológi-
cos, no município de Alto Paraiso de Goiás. Os objetivos do estudo foram: i) registrar
o processo produtivo, as formas de organização coletiva dos agricultores familiares, processos
e métodos de comercialização; ii) identificar qual o papel das políticas públicas voltadas à pro-
moção da agroecologia e dos mercados locais; e, iii) analisar as discussões que fomentaram o
surgimento e o desenvolvimento da agroecologia como prática agrícola voltada à conservação
da biodiversidade. Realizou-se também uma revisão de concepções sobre a agroecologia.

Figura 1: Centro de Atendimento ao Turista (CAT).

Fonte: Arquivo de Luciano Campos, 2018.

Em Alto Paraíso de Goiás existem duas feiras de pequenos agricultores. Elas se destacam
por serem relevantes pontos de apoio à comercialização dos produtos da agricultura familiar
de base agroecológica no município. Buscou-se com a pesquisa registrar a Feira que se realiza
no CAT, para um melhor conhecimento do público local dessa feira como alternativa saudável
de aquisição de alimentos locais.

85
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Figura 2: Bancas de artesanatos e hortaliças da Feira

Fonte: Arquivo de Luciano Campos, 2018.

A conservação da biodiversidade é parte Mudanças pretendidas por movimentos


da preocupação ambiental global. O desen- ambientalistas apontam caminhos inscritos
volvimento dessa nova visão de mundo vem na conservação da biodiversidade e na sus-
se construindo desde o início da tomada de tentabilidade. Mudanças edificadas em rela-
consciência da chamada crise ambiental, fru- ções mais solidárias e de igualdade, no pro-
to das consequências impostas pelo modelo tagonismo e na participação comunitária,
de desenvolvimento oriundo da Revolução buscando desenvolver a economia solidária,
Verde — a revolução do agronegócio basea- e o incentivo aos mercados locais, com re-
da na exploração crescente dos recursos na- lações econômicas mais simétricas. No mu-
turais. No bojo da ascensão do agronegócio nicípio de Alto Paraíso de Goiás, é possível
e sua indústria, vê-se também a manutenção reconhecer cenários de mudanças, inicia-
de relações sociopolíticas e socioeconômicas tivas locais que buscam concretizar uma
centradas na exclusão e nas desigualdades agenda mais sustentável.
sociais crescentes. Na crítica a esse cenário, Nesse sentido, a comunidade tem
surgem progressivamente atores e atrizes buscado formas e maneiras para se alcançar
sociais que se mobilizam para a mudança e novas relações produtivas, incentivando no-
o enfrentamento da crise ambiental global, vas práticas econômicas e sociopolíticas na
fruto da ordem capitalista em curso. cidade e organizando novas práticas de cul-
tivo e manejo nas formas de produzir.

86
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

2. Como a pesquisa foi realizada?

O estudo realizou-se junto à feira de agricultores familiares do CAT, no período de julho a


novembro de 2018.
A metodologia empregada no trabalho consistiu inicialmente em pesquisa bibliográfica e
revisão de literatura pertinente ao tema agroecologia. Nessa direção, o trabalho elenca as con-
tribuições de Altieri (2010), Aquino e Assis (2005), Dulley (2003), Primavesi (2008), e Rosset et al.
(2014). Essa revisão foi fundamental para investigar processos de transição agroecológica em
curso entre os(as) agricultores(as) da Feira do CAT. Em seguida foram aplicados questionários
e realizadas entrevistas junto à organização da feira de agricultores familiares do CAT, bem
como com famílias de produtores(as) que têm se dedicado à prática da agroecologia e que
participam da feira.

3. Importância da pesquisa
para a sociobiodiversidade e a
sustentabilidade no Cerrado

A
pesquisa analisou as práticas de Em Alto Paraiso de Goiás, tem-se buscado
transição agroecológica dos(as) dar visibilidade a iniciativas voltadas para a
pequenos(as) agricultores(as) da promoção e preservação da biodiversidade
feira. Surgiram questões sobre soberania do bioma Cerrado. A realização da feira de
alimentar e sua relação com as políticas agricultores familiares do CAT é um exemplo
públicas que buscam promover as práticas disso, pois incentiva a criação de empregos e
agroecológicas, a agricultura familiar e os os mercados locais, promove a permanência
mercados locais, como forma de desenvolver na terra das famílias de agricultores(as) e, ao
modelos agropecuários voltados à promo- mesmo tempo, cria espaços onde a comu-
ção da igualdade socioeconômica, do acesso nidade age, participa e contribui para a ma-
à terra e da manutenção da biodiversidade. nutenção de um modelo agropecuário mais
A pesquisa registrou as políticas públicas que alinhada com a manutenção da sociobiodi-
o Brasil e o município de Alto Paraiso de Goi- versidade.
ás vivenciaram, entre 2002 e 2015, voltadas Feiras de agricultores(as) familiares vis-
para incentivar práticas agroecológicas. lumbram uma visão de mundo voltada à
produção de alimentos mais saudáveis. Por-
tanto esses espaços devem ser incentivados
pela sociedade, pois se aproximam da pre-
servação ambiental e da promoção de uma
maior simetria nas condições socioeconômi-
cas da comunidade.

87
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

REFERÊNCIAS

ALTIERI, M. A. Agroecologia, agricultura camponesa e PRIMAVESI, A. M. Agroecologia e manejo do solo. Agri-


soberania alimentar. Revista Nera, Presidente Pruden- culturas, v. 5, n. 3, set. 2008.
te, ano 13, n. 16, p. 22-32, jan.-jun. 2010.
ROSSET, J. S. et al. Agricultura Convencional versos sis-
AQUINO, A. M.; ASSIS, R. L. (ed.). Agroecologia: prin- temas Agroecológicos, modelos, impactos, avaliação
cípios e técnicas para uma agricultura orgânica sus- da qualidade e perspectivas. Scientia Agraria Parana-
tentável. Brasília: Embrapa Informação Tecnológica, ensis ‒ SAP, Marechal Cândido Rondon, v. 13, n. 2, p.
2005. 80-94, abr.-jun. 2014.

DULLEY, R. D. Agricultura orgânica, biodinâmica, natu-


Link de acesso ao trabalho completo: https://
ral, agroecológica ou ecológica? Informações Econômi-
bdm.unb.br/handle/10483/21535
cas, São Paulo, v. 33, n. 10, out. 2003.

88
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

VOCÊ sabia?
Crise Revolução
ambiental Verde

Vivemos uma crise ambiental sem prece- A Revolução Verde consistiu na moderni-
dentes na história da humanidade. E tal crise zação da agricultura em escala global, a partir
ambiental seria a responsável por compro- de 1950. Trouxe para o campo as sementes
meter os recursos naturais, extinguir espé- geneticamente modificadas, os maquinários
cies da fauna e flora, levando ao fim as con- agrícolas e os insumos químicos. Apesar do
dições necessárias para a vida. Atribuímos a aparente desenvolvimento, aumentou o de-
origem da crise ambiental ao fenômeno da semprego no campo, desmatamento, com-
economia moderna e ao modelo de desen- pactação do solo, utilização desenfreada de
volvimento capitalista pautado na explora- fontes de água e a poluição causada por pro-
ção irrestrita de recursos naturais. dutos químicos.
(Trecho extraído na íntegra de: https://www.blogs. (Trecho extraído na íntegra de: <https://mundoedu-
unicamp.br/muitoalemdoverde/2018/05/02/criseam- cacao.uol.com.br/geografia/a-revolucao-verde.htm>.
biental/. Acesso em: 25 ago. 2021). Acesso em: 25 ago. 2021).

Agricultura
familiar Agricultura amiliar é a principal responsável pela produção
dos alimentos que são disponibilizados para o consumo da po-
pulação brasileira. É constituída de pequenos(as) produtores(as)
rurais, povos e comunidades tradicionais, assentados(as) da re-
forma agrária, silvicultores(as), aquicultores(as), extrativistas e
pescadores(as). Além disso, o(a) agricultor(ra) familiar tem uma
relação particular com a terra, seu local de trabalho e moradia.
(Trecho extraído com adaptações de: <https://www.gov.br/agricultura/pt-
-br/assuntos/agricultura-familiar/agricultura-familiar-1>. Acesso em: 25 ago.
2021).

89
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

PARTE 3
BIODIVERSIDADE E
RECURSOS NATURAIS
Leonardo Pereira Fraga

90
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

A
região da Chapada dos Veadei- O seguinte, “Etnozoologia da comunidade
ros está localizada no nordeste rural do Sertão, em Alto Paraíso de Goiás”,
do estado de Goiás. Apresenta as de Leciane Moreira da Mata e Renata Corrêa
maiores altitudes do Centro-Oeste brasileiro Martins, apresenta interações e usos da fau-
e uma grande diversidade de hábitats que fa- na numa comunidade tradicional da Chapa-
vorecem endemismos de plantas e animais. da dos Veadeiros.
Tais características motivaram a criação, em Os impactos causados por um molus-
1961, do Parque Nacional do Tocantins, cuja co exótico invasor em uma área urbana da
a denominação foi posteriormente alterada Chapada dos Veadeiros são abordados no
para Parque Nacional da Chapada dos Vea- terceiro trabalho, “Estudo do impacto socio-
deiros (PNCV). Em 2017, essa importante uni- ambiental dos caramujos-gigantes-africanos,
dade de conservação do Cerrado foi amplia- Achatina fulica, sobre a população de Alto Pa-
da de 65 mil para 240 mil hectares. raíso de Goiás”, de Lígia Cristina Cazarin Oli-
Além do parque, outras áreas de prote- veira e Maria Julia Martins Silva. A pesquisa
ção ambiental também estão presentes na avalia o conhecimento dos moradores quan-
região da Chapada dos Veadeiros. A Área to aos riscos, formas de manuseio e combate
de Proteção Ambiental de Pouso Alto (APA à espécie invasora.
Pouso Alto) estimula a preservação da fau- A quarta pesquisa realizada por Leonar-
na, da flora e dos mananciais numa extensão do Pereira Fraga e Clarisse Rezende Rocha,
de 872 mil hectares. Criada em 2001, a APA apresenta a problemática do atropelamen-
Pouso Alto também visa à promoção de pes- to da fauna silvestre na APA Pouso Alto. O
quisas científicas em uma região que vem trabalho “Atropelamentos da mastofauna na
enfrentando graves ameaças aos seus ecos- Chapada dos Veadeiros: aspectos ecológicos
sistemas e espécies nativas. e espaciais” destaca espécies de mamíferos
Nesta parte da publicação, apresentamos mais atropeladas e correlaciona os eventos
seis pesquisas que tratam da sociobiodiversi- de atropelamentos com as paisagens da APA
dade, dos patrimônios naturais presentes na Pouso Alto.
Chapada dos Veadeiros e de problemas que
afetam a região. O primeiro trabalho “Áre-
as de preservação permanente estratégicas
para os recursos hídricos na APA de Pouso
Alto: panorama, técnicas e custos para res-
tauração”, foi desenvolvido por Joana Jubé Ri-
beiro Queiroz e por André de Almeida Cunha.

91
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Dando continuidade, temos a pesquisa As seis pesquisas aqui reunidas proporcio-


de Luana de Souza Ribeiro e José Luiz de An- nam ao leitor diversos conhecimentos sobre
drade Franco “O caso do Parque Nacional a biodiversidade, bens naturais e vida silves-
da Chapada dos Veadeiros: a relevância dos tre da Chapada dos Veadeiros. Esperamos,
patrimônios naturais da humanidade e das ainda, que os trabalhos, ao discorrerem so-
reservas da biosfera para a conservação da bre os diversos desafios presentes, contribu-
biodiversidade”. O trabalho aborda meca- am para uma melhor gestão territorial dessa
nismos internacionais que reforçam a im- emblemática região do Cerrado brasileiro.
portância da preservação do PNCV e região; Uma excelente leitura!
apresenta um histórico da criação e manu-
tenção do parque e ressalta as vantagens de
uma gestão coparticipativa das unidades de
conservação.
O derradeiro trabalho, “A Estruturação do
rol de oportunidades de visitação no Parque
Nacional da Chapada dos Veadeiros (GO)”,
de Thamyris Carvalho Andrade e André de
Almeida Cunha, avalia o rol de oportunida-
des de visitação de atrativos naturais locali-
zados na área do PNCV. O trabalho também
apresenta subsídios para a construção e im-
plantação de um possível Plano de Uso Públi-
co para o parque.

92
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Áreas de Preservação
Permanente estratégicas
para os recursos hídricos
na APA de Pouso Alto:
panorama, técnicas e
custos para restauração
Joana Jubé Ribeiro Queiroz33
André de Almeida Cunha34

33 Bióloga, especialista em Sociobiodiversidade e Sustentabilidade no Cerrado


pelo Centro de Estudos do Cerrado da Chapada dos Veadeiros (Centro UnB Cerrado)
da Universidade de Brasília (UnB), em Alto Paraíso de Goiás (GO). E-mail: joanajube@
hotmail.com
34 Biólogo; doutor em Conservação e Manejo da Vida Silvestre pela Universidade
Federal de Minas Gerais. Professor adjunto da UnB. Atua no Centro UnB Cerrado, no
Instituto de Ciências Biológicas (IB) e no Centro de Excelência em Turismo (CET) da UnB.
E-mail: andrecunha@unb.br

93
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

1. O que é a pesquisa?

Visando à preservação e à conservação A pesquisa quantificou a área total de APP


da natureza, a legislação brasileira dispõe de sujeita à regularização na Área de Proteção
instrumentos, entre eles o Sistema Nacional Ambiental de Pouso Alto (APA Pouso Alto),
de Unidades de Conservação da Natureza Goiás, ao mesmo tempo em que revisou a
(Snuc) — Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000 bibliografia para apontar a metodologia eco-
—, que estabelece critérios e normas para lógica e economicamente mais eficiente para
a criação, a implantação e a gestão de áre- a restauração dessas áreas.Restauração en-
as protegidas, bem como o Código Florestal tendida como o tipo de recuperação que pre-
— Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012 —, tende estabelecer processos e a integridade
que ordena a proteção da vegetação nativa ecológica (BRASIL, 2012; DISTRITO FEDERAL,
(BRASIL, 2004, 2012). Essa última lei delimita 2017).
as áreas de preservação permanente (APP),
torna obrigatório o Cadastro Ambiental Ru-
ral (CAR), bem como a adesão ao Programa
de Regularização Ambiental (PRA) de toda
propriedade ou posse em que haja descon-
formidades relativas à supressão de vege-
tação em APP e reservas legais (RL), sendo
necessário, então, submeter um Plano de
Recuperação de Área Degradada (Prad). Com
isso em vista, em 2017, o Decreto nº 8.972,
instituiu a Política Nacional de Recuperação
da Vegetação Nativa (Proveg), com o objeti-
vo de impulsionar a regularização ambiental
das propriedades rurais brasileiras (BRASIL,
2017).

94
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

2. Como a pesquisa foi realizada?

2.1 Primeira etapa: caracterização da área de estudo


A APA Pouso Alto é uma unidade de con- Está inserida na região hidrográfica da ba-
servação (UC) de uso sustentável, a maior cia Tocantins-Araguaia, Alto Tocantins. Por-
do estado de Goiás — 872 mil hectares —, ção mais alta do planalto goiano, podendo a
está localizada na região nordeste do estado, altitude variar até 1.000 metros em uma pe-
abrange parte dos municípios de Cavalcante, quena extensão de área; o relevo dentro da
Colinas do Sul, Nova Roma, São João d’Alian- unidade é constituído por chapadões e pla-
ça e Teresina de Goiás, bem como a totali- tôs, por sua vez, margeados por depressões
dade do município de Alto Paraíso de Goiás. e terrenos planos e baixios, o que tem sido
Seu limite intersecta ou contém diversas áre- fator determinante para o uso e a ocupação
as de usos especiais, que são áreas sob res- do solo, sendo a ocupação agrícola mais pre-
ponsabilidade de fiscalização e gestão diver- sente nos vão e nos vales. Na abrangência
sas à Secretaria de Meio Ambiente, Recursos do PNCV, situa-se a região mais alta, — entre
Hídricos, Infraestrutura, Cidades e Assuntos 1.200 metros e o Pouso Alto, maior elevação
Metropolitanos (Secima)35, sendo elas: Par- do planalto central, com 1.691 metros de al-
que Nacional da Chapada dos Veadeiros titude (CTE, 2016).
(PNCV), Parque Municipal Abílio Herculano
Szervimsks e Parque Municipal do Distrito
de São Jorge, em Alto Paraíso de Goiás —;
Parque Municipal Lavapés, em Cavalcante;
24 reservas particulares do patrimônio na-
tural (ICMBIO, 2018); duas comunidades re-
manescentes de quilombo (CRQ), Kalunga e
Povoado do Moinho (FCP, 2016); pelo menos
19 povoados ou aglomerados (CTE, 2016);
sete projetos assentamentos federais (PA); e
um Projeto de Desenvolvimento Sustentável
(PDS) (CAR, 2017).

35 Secretaria vinculada ao governo do estado de Goiás.

95
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

2.2 Segunda etapa: levantamento dos passivos referentes às


áreas de preservação permanente
Para essa etapa, os dados foram obtidos As APP estão classificadas em: declividade
pelo projeto de promoção do CAR na APA de maior que 45º; topo de morro; borda de cha-
Pouso Alto, Goiás, realizado em 2017, atra- pada; rio com largura abaixo de 10 metros;
vés de parceria entre o Tropical Forest Con- rio com largura acima de 10 metros; nascen-
servation Act (TFCA), o Fundo Brasileiro para tes; lagos e reservatórios; e rios top — aque-
a Biodiversidade (Funbio) e o Ministério do les com largura de APP determinadas especi-
Meio Ambiente (MMA). ficamente pelo plano de manejo.
Para a delimitação das APP, o projeto As categorias associadas aos cursos d’água
TFCA/Funbio/MMA observou 53% da área to- formam o grupo das APP hídricas. Uma ob-
tal da APA (excluiu áreas de usos especiais e servação especial para a ausência de delimi-
áreas que, no momento do estudo, já pos- tação específica de APP de veredas. O plano
suíam CAR). Para a categorização, seguiu as de manejo é mais restritivo em relação à le-
definições do Código Florestal, adicionando gislação nacional determinando obrigatoria-
as especificidades do plano de manejo, do- mente um raio de 100 metros de vegetação
cumento que orienta a gestão e regramentos em torno das nascentes e olhos d’água pe-
da UC. renes, bem como um mínimo de 100 metros
também requerido nos rios top, nomencla-
tura que abrange os seguintes rios: dos Cou-
ros, das Pedras, Tocantinzinho, das Almas,
São Bartolomeu, Macacão, Preto e Claro. Da-
dos em formato shapefile obtidos de reposi-
tórios federais e estaduais foram sobrepos-
tos aos fornecidos por consultor responsável
pelo CAR; cálculos e extração de conteúdos
tabulares foram realizados e analisados no
programa ArcGIS 10.5 segundo a projeção
Cônica de Albers, o Sistema de Coordenadas
Geográficas e o Datum SIRGAS2000.

2.3 Terceira etapa: revisão bibliográfica


A revisão foi realizada para responder qual o método econômico e ecologicamente mais
eficaz para a regularização com objetivo de restauração.

96
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

3. Importância da pesquisa para a sociobiodiversidade e a


sustentabilidade no Cerrado
A pesquisa permitiu: I revelar o panorama das áreas de preservação permanente na APA
de Pouso Alto; e I I identificar o melhor método para restauração.
Quanto ao primeiro aspecto, os limites oficiais das faixas de proteção de vegetação na-
tiva somam 143.564 hectares, dos quais 115.640 hectares — 80,55% — são APP hídricas. Das
APP hídricas, 50,1% servem à proteção de cursos d´água com largura inferior a 10 metros e
17,5% são destinadas à preservação das nascentes (figura 1).

Figura 1: Áreas de preservação permanente com presença de vegetação nativa ou não e sua categorização na
APA de Pouso Alto, Goiás.

Elaborada por Joana Jubé, a partir de repositórios federais, estaduais e TFCA/Funbio/MMA (2017).

97
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Os déficits — dentro da área de estudo — 53% da APA também foram avaliados (figura 2,
em vermelho). Ao todo a desconformidade sumariza 5.665 hectares, 4,8% do total de APP. Do
total de desconformidade, 98,5% — 5.581,6 hectares — são APP hídricas; essas áreas devem
ser regularizadas para cumprimento da Lei nº 12.651/2012 e manutenção do sistema hídrico
tanto superficial como subterrâneo. As APP de nascentes participam com 17,8% do total de
degradação, o que equivale a 1.008 hectares de um total de 25.124 hectares.

Figura 2: Déficits de área de preservação permanente dentro da área do CAR da APA de Pouso Alto (2017), Goiás.

Elaborada por Joana Jubé, a partir de repositórios federais, estaduais e TFCA/FUNBIO/MMA (2017).

98
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

A figura 3 explicita as proporções dos déficits para cada categoria. A proporção nos dois
casos é maior às margens dos cursos mais estreitos que 10 metros (62,4% do total de déficit).

Figura 3: Gráficos das proporções das categorias de áreas de preservação permanente em déficit na APA de
Pouso Alto, Goiás.

Elaborado por Joana Queiroz, 2018, a partir de TFCA/FUNBIO/MMA (2017).

O município com maior passivo é Cavalcante, 1.994 hectares. Colinas do Sul tem 1.491 hec-
tares, e Alto Paraíso, 1.277 hectares a serem regularizados. São João d’Aliança, 503 hectares;
Nova Roma, 275 hectares, e Teresina de Goiás, 127 hectares. Na proporção do passivo de APP
em relação à área total do município inserida dentro da APA, São João d’Aliança tem a maior
proporção de suas APP em déficit — 2%. Colinas do Sul, 1%, Nova Roma, 0,8%, Cavalcante e
Alto Paraíso, 0,5%, e Teresina, 0,3%.
Quanto ao melhor método para restauração, a revisão de estudos realizada na área foi fun-
damental. A seguir, apresentam-se alguns aspectos observados nos estudos sistematizados:

Heterogeneidade natural de ambientes do Cerrado, favorecida


a pela alta biodiversidade e endemismo do bioma através de proces-
sos adaptativos (ARAÚJO 2006; CORTES, 2012; GIOTTO, 2010).

Heterogeneidade de composição florística em matas de galeria


b (CASEIRO, 2013; OLIVEIRA, 2010; REZENDE, 2004).

Comparação de 24 anos de sucessão vegetal pós-incêndio em mata de


c galeria (OLIVEIRA, 2010). Esses fatos explicitam que as espécies têm maior
probabilidade de sucesso ao colonizar e sobreviver em uma área quando
esse processo de colonização ocorre de forma espontânea.

99
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

d Observação do aumento maior na riqueza de espécies através das regenerações


do que plantio de mudas ou semeaduras mesmo após 36 anos de desmatamento
e uso de uma área de cerradão com agricultura e pastagem. Das espécies que co-
lonizaram as parcelas estudadas por ele, somente três certamente o fizeram por
sementes e 52 exclusivamente por rebrota (CAVA et al., 2016).

As matas secas exploradas por pastagem (SAMPAIO; HOLL; SCARIOT,


e 2007). Essas matas apresentaram prevalência da rebrota e maior eficiência
ecológica da regeneração natural em comparação com semeaduras e plan-
tio de mudas.

f Área de Cerrado Stricto Sensu ocupada por pastagem. A regeneração natu-


ral teve entre 66% e 100% de sobrevivência enquanto as espécies plantadas
perduraram entre 2,08% a 89,58%. Passados seis anos do plantio de mudas, a
composição florística das espécies sobreviventes mostrou disparidade de 91%
em relação à comunidade regenerante (CORTES, 2012).

g A profundidade das raízes de espécies arbóreas do Cerrado (MELO et


al., 1998).

A partir da sistematização da literatura foi possível constatar que a regeneração natural


assistida é, então, o método mais viável ecologicamente.
Outra contribuição da pesquisa foi apontar cálculos de custos para a regularização do
passivo total de APP da APA, de acordo com os valores por hectare de Cava et al. (2016) e Sam-
paio, Holl e Scariot (2007). Eles revelam a eficiência econômica da regeneração natural assisti-
da (tabela 1).

Tabela 1: Estimativa de custo de recuperação das APP na APA por diferentes metodologias

Regeneração natural
Método Plantio de mudas Semeadura
assistida/aragem
Custo por R$ 3.300,00– R$ 2.100,00− R$ 200,00−
hectare R$ 7.702,39 R$ 3.728,10 R$ 372,81
Custo total para
R$ 18.696.000,00– R$ 11.897.382,00– R$ 1.133.084–
área alvo de
R$ 43.637.274,00 R$ 8.671.813,00 R$ 2.112.125,00
estudo

100
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Os estudos sistematizados demonstraram REFERÊNCIAS


que o plantio de mudas, apesar de ser o mé-
ARAÚJO, G. H. M. F. Efeito do manejo sobre a qualidade
todo tradicionalmente mais utilizado, tem
do substrato e o desenvolvimento de espécies arbóreas
custo elevado, além de ser baseado baseado
do cerrado em uma cascalheira no Distrito Federal. Dis-
em uma visão dendrológica e sucessional.
sertação (Mestrado em Ciências Agrárias) − Faculdade
Além disso, na maioria das vezes, não recons-
de Agronomia e Medicina Veterinária, Universidade
titui comunidade vegetal similar à fitofisiono-
de Brasília, 2006.
mia original (ARAÚJO, 2006; REZENDE, 2004;
SILVA, 2007), pois inúmeros fatores deter- BRASIL. Decreto nº 8.972, de 23 de janeiro de 2017. Ins-
minam a germinação, o estabelecimento, o titui a Política Nacional de Recuperação da Vegetação
crescimento, a reprodução e a sobrevivência Nativa. Brasília, DF: Presidência da República, 2017.
das espécies (VIEIRA, 2006), como estresse Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
físico, relações interespecíficas, competição, ato2015-2018/2017/decreto/d8972.htm. Acesso em:
herbivoria, predação, patógenos (OLIVEIRA, 15 maio 2018.
2010), migração, armazenamento, dormên- BRASIL. Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012. Dispõe
cia (RICKLEFS, 2013). Mesmo a semeadura se sobre a proteção da vegetação nativa; altera as Leis
mostra menos eficiente do que a regenera- nºs 6.938, de 31 de agosto de 1981, 9.393, de 19 de
ção natural assistida. dezembro de 1996, e 11.428, de 22 de dezembro de
Conhecer cientificamente o processo 2006; revoga as Leis nºs 4.771, de 15 de setembro de
restaurativo contribui para a preservação da 1965, e 7.754, de 14 de abril de 1989, e a Medida Pro-
biodiversidade do Cerrado, aliando o aspec- visória nº 2.166-67, de 24 de agosto de 2001; e dá ou-
to socioeconômico à ecologia na região da tras providências. Brasília, DF: Presidência da Repúbli-
APA de Pouso Alto. ca, 2012. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12651.htm. Acesso
em: 15 maio 2018.

BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Sistema Nacio-


nal de Unidades de Conservação da Natureza ‒ Snuc: Lei
nº 9.985, de 18 de julho de 2000: Decreto nº 4.340, de
22 de agosto de 2002. Brasília: MMA/SBF, 2004.

CASEIRO, R. A. O Cerradão e o Cerrado Sentido Restrito


no Jardim Botânico de Brasília. Dissertação (Mestrado)
− Departamento de Botânica, Universidade de Brasí-
lia, Brasília, 2013.

CAVA, M. G. B. et al. Comparação de técnicas para res-


tauração de vegetação lenhosa de Cerrado em pastagens
abandonadas. Hoehnea, v. 43, n. 2, p. 301-315, 2016.

CORTES, J. M. Desenvolvimento de espécies nativas do


Cerrado a partir de plantio de mudas e da regeneração
natural em uma área em processo de recuperação, Pla-
naltina – DF. Dissertação (Mestrado em Ciências Flo-
restais) − Departamento de Engenharia Florestal, Uni-
versidade de Brasília, Brasília, 2012.

101
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

CTE. Plano de Manejo da APA de Pouso Alto. Goiânia: REZENDE, R. P. Recuperação de matas de galeria em
Centro Tecnológico de Engenharia, 2016. propriedades rurais do Distrito Federal e entorno. 2004.
Dissertação (Mestrado) − Departamento de Engenha-
DISTRITO FEDERAL. Secretaria de Estado do Meio Am-
ria Florestal, Universidade de Brasília, Brasília, 2004.
biente. Plano Recupera Cerrado – uma avaliação das
oportunidades de Recomposição para o Distrito Fe- RICKLEFS, R. E. A economia da natureza. Rio de Janeiro:
deral, DF, Brasil. Brasília: Sema-DF/Aliança Cerrado, Guanabara Koogan, 2003.
2017.
SAMPAIO, A. B.; HOLL, K. D.; SCARIOT, A. Does resto-
GIOTTO, A. C. Avaliação do desenvolvimento dos com- ration enhance regeneration of seasonal deciduos
ponentes arbóreos e herbáceos na recuperação de áre- forests in pastures is Central Brazil? Restoration Ecolo-
as degradadas na Bacia do Ribeirão do Gama, Distrito gy, v. 15, n. 3, p. 462-471, set. 2007.
Federal. 2010. Dissertação (Mestrado em Ciências Flo-
SILVA, J. C. S. Desenvolvimento inicial de espécies lenho-
restais) − Faculdade de Tecnologia, Universidade de
sas, nativas e de uso múltiplo na recuperação de áreas
Brasília, 2010.
degradadas de cerrado sentido restrito no Distrito Fede-
ICMBIO. Sistema Informatizado de Monitoria de RPPN. ral. 2007. Dissertação (Mestrado em Ciências Flores-
Reservas Particulares do Patrimônio Natural – RPPN. tais) − Universidade de Brasília, Brasília, 2007.
Brasília: Instituto Chico Mendes de Conservação da
VIEIRA, D. L. M. Regeneração natural de florestas secas:
Biodiversidade/SIMRPPN, 2018. Disponível em: http://
implicações para a restauração. 2006. Tese (Doutora-
sistemas.icmbio.gov.br/simrppn/publico. Acesso em:
do em Ecologia) − Departamento de Ecologia, Univer-
15 maio 2018.
sidade de Brasília, Brasília, 2006.
MELO, J. T. et al. Coleta, propagação e desenvolvimento
Link de acesso ao trabalho completo:
inicial de espécies do Cerrado. In: SANO, S. M.; ALMEI-
https://bdm.unb.br/handle/10483/21528
DA, S. P.; RIBEIRO, J. F. (ed.). Cerrado: ecologia e flora.
Brasília: Embrapa Cerrados, 1998. v. 1.

OLIVEIRA, M. C. Vinte e quatro anos de sucessão vege-


tal na Mata de Galeria do córrego Capetinga, na fazenda
Água Limpa, Brasília, Brasil. 2010. Tese (Doutorado em
Ciências Florestais) − Departamento de Engenharia
Florestal, Universidade de Brasília, 2010.

102
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

VOCÊ sabia?
Área de
PNMA Preservação
Permanente
A Política Nacional de Meio Ambiente no Define a Lei n. 12.651/2012, Área de Pre-
Brasil foi criada pela Lei N. 6.938, em 31 de servação Permanente (APP) como uma área
agosto de 1981. O objetivo da PNMA é a pre- protegida, coberta ou não por vegetação na-
servação, melhoria e recuperação da quali- tiva, com a função ambiental de preservar os
dade ambiental propícia à vida, asseguran- recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade
do à população condições propícias para o geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo
desenvolvimento socioeconômico em equi- gênico de fauna e flora, proteger o solo e as-
líbrio com o meio ambiente. Esta Lei reco- segurar o bem-estar das populações huma-
nhece o meio ambiente como patrimônio nas.
público a ser necessariamente assegurado e
protegido pelo poder público, tendo em vista REFERÊNCIA:
o uso coletivo.
https://www.embrapa.br/codigo-florestal/entenda-
-o-codigo-florestal/area-de-preservacao-permanente
Acesso em 13 out. 2021.

Reserva
Legal

A reserva legal é a área do imóvel rural que, coberta por vegetação natural, pode ser explo-
rada com o manejo florestal sustentável, nos limites estabelecidos em lei para o bioma em que
está a propriedade. Por abrigar parcela representativa do ambiente natural da região onde
está inserida e, que por isso, se torna necessária à manutenção da biodiversidade local.
Referência: https://www.oeco.org.br/dicionario-ambiental/27492-o-que-e-reserva-legal/
Acesso em 13 out. de 2021.

103
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Etnozoologia da
comunidade rural do
Sertão, em Alto Paraíso
de Goiás
Leciane Moreira da Mata36
Renata Corrêa Martins37

36 Bióloga, especialista em Sociobiodiversidade e Sustentabilidade no Cerrado pelo Centro de Estudos do Cerrado da


Chapada dos Veadeiros (Centro UnB Cerrado) da Universidade de Brasília, em Alto Paraíso de Goiás, Goiás. Mestranda do
Programa de Pós-Graduação em Recursos Naturais do Cerrado da Universidade Estadual de Goiás - UEG. E-mail: leciane.meio-
ambiente@gmail.com
37 Bióloga, doutora em Botânica pela UnB. Professora do Centro UnB Cerrado de 2017 a 2019. E-mail: renatacerrado@
gmail.com

104
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

1. O que é a pesquisa?

P
or meio de um “mergulho” na rica sociobiodiversidade da Chapada dos Veadeiros,
composta por quilombolas e sertanejos além da cultura indígena (COSTA, 2013), bus-
cou-se nesta pesquisa conhecer percepções do(a) morador(a) local, como observa o
ambiente natural à sua volta e transforma essas observações em conhecimentos. O estudo de
conhecimentos e saberes tradicionais sobre os animais constitui o campo de pesquisa da etno-
zoologia (COSTA-NETO, 2000; DE LIMA; FLORÊNCIO; DOS SANTOS, 2014; RODRIGUES, 2015). A
etnozoologia busca compreender a percepção das comunidades tradicionais quanto às formas
de uso e às influências dos animais nas formações culturais (COSTA-NETO, 2000).
O conhecimento etnozoológico de moradores(as) do Sertão foi o eixo da pesquisa, que teve
como objetivos levantar informações quanto ao perfil socioeconômico da comunidade e as
interações e usos da fauna na comunidade tradicional do Sertão, Alto Paraíso de Goiás, Chapa-
da dos Veadeiros. Além disso, as espécies animais destacadas pelos(as) moradores(as) foram
classificadas biologicamente, quanto ao total de citações, aos fatores de vulnerabilidade e às
citações por categorias de usos.

2. Como a pesquisa foi realizada?

E
ntre 2017 e 2018, realizaram-se diversas visitas à comunidade do Sertão, distante 30
km do centro administrativo de Alto Paraíso de Goiás. A comunidade está localiza-
da no Vão do Paranã e na zona de amortecimento do Parque Nacional da Chapada
dos Veadeiros (PNCV) (figura 1). Apresenta vegetação composta por matas secas sobre solos
amarelados (por vezes, avermelhados), os quais remetem ao nome da comunidade (figura 2).
Constitui região de importância histórica e cultural do município e possível local de início do
processo de ocupação da Chapada dos Veadeiros (BERNARDES, 2015; LARANJEIRA; GASPARINI;
BERNARDES, 2012)

105
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Figura 1: Vão do Paranã, caminho para a comunidade do Sertão.

Fonte: Arquivo de Leciane da Mata, 2018.

Figura 2: Vegetação e solo no caminho do Sertão.

Fonte: Arquivo de Leciane da Mata, 2018.

106
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Realizou-se a coleta de dados por entrevistas abertas e semiestruturadas (ALBUQUERQUE;


LUCENA; ALENCAR, 2008). Visitaram-se 34 domicílios e entrevistaram-se 29 pessoas, sendo
45% do gênero feminino e 55% do gênero masculino (figuras 3); 10 pessoas nativas da comu-
nidade e 19 não nativas vivem no Sertão, principalmente, devido a vínculos familiares. A maior
parte dos(as) entrevistados(as) tinham mais de 60 anos (55%); 35% tinham idades entre 30 e 60
anos; e somente 10% tinham menos de 30 anos.

Figura 3: Pesquisa de campo, Leciane Mata e Sr. Valdivino.

Fonte: Arquivo de Leciane da Mata, 2018.

A principal atividade dos moradores do Sobre as interações com a fauna, os(as)


Sertão é a agricultura familiar (plantios e pe- entrevistados(as) classificaram a fauna pre-
quena criação animal), desenvolvida por ho- sente na comunidade como “bichos do mato”
mens e mulheres: cultivo de hortaliças, man- (animais silvestres) e “animais de criação”
dioca, milho, feijão, banana, entre outros (domésticos/domesticados). Foram citados
alimentos de subsistência. O trabalho do- 102 animais (99 vertebrados e três inverte-
méstico, exercido principalmente pelas mu- brados). Desse total, relacionamos 16 espé-
lheres da comunidade, envolve os cuidados cies de animais silvestres com maior número
com casa, quintais, hortas e animais domés- de citações e com citações de categorias de
ticos e “de criação”, como galinhas e porcos. usos — místico/religioso, criação/estimação
A principal fonte de renda dos(as) morado- e(ou) medicinal (tabela 1).
res(as) é representada por benefícios e pro- O grupo faunístico das aves foi o mais sig-
gramas sociais, serviços autônomos, criação nificativo entre os moradores (38). Os mamí-
e venda de bovinos, pequeno comércio, ser- feros constituíram o segundo grupo faunís-
viços de caseiro, criação e venda de galinhas. tico mais conhecido (29), único com citações
relacionadas ao conhecimento ecológico
tradicional, como alimentação, reprodução
e dimorfismo sexual.

107
Tabela 1: Prováveis espécies relacionadas aos nomes vernaculares de animais da comunidade do Sertão, seguida do grupo, família,
espécie, total de citações pelos moradores, fatores de vulnerabilidade e citações por categoria de uso38

AVES
Família/espécie Fatores de Vulnerabilidade Citações por categoria de uso

Nome Status Místico/ Criação/ Espécie


Táxon provável Nº de citações Endêmica Rara Medicinal
vernacular Categoria religioso estimação cinegética

Tinamidae
Crypturellus Jaó 9 LC2 Sim
undulatus
Cariamidae
Cariama cristata1 Seriema 11 LC2 1 Sim

Falconidae
Herpetotheres Coã 9 LC2 8
cachinnans

108
Icteridae
Gnorimopsar chopi1 pássaro-preto 9 LC2

MAMÍFEROS
Myrmecophagidae
Myrmecophaga tamanduá- 10 VU2, 3 Sim
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

tridactyla bandeira

Tapiriidae
Tapirus terrestres Anta 11 VU2, 3 1

Cervidae
Mazama veado- 13 LC2 Sim
gouazoubira catingueiro

Pecari tajacu Caititu 11 LC2 1 Sim

38 A identificação das espécies ocorreu por meio de pistas taxonômicas (PEREIRA, SCHIAVETTI, 2010; MARTINS, 2008) e detalhes morfológicos dos animais descritos pelos(as) entre-
vistados(as). Para a nomenclatura científica das espécies da ornitofauna utilizou-se a bibliografia de Gwynne et al., (2010) e Piacentini (2015).
MAMÍFEROS
Família/espécie Fatores de Vulnerabilidade Citações por categoria de uso

Nome Status Místico/ Criação/ Espécie


Táxon provável Nº de citações Endêmica Rara Medicinal
vernacular Categoria religioso estimação cinegética

Canidae
raposa, 20 LC2
1
Cerdocyon thous cachorro-do-
mato
Chrysocyon lobo-guará 10 VU3-NT2 1
brachyurus
Felidae
onça-pintada/ 14 VU2
Panthera onca
preta, canguçu
onça-parda, 11 VU2
Puma concolor
onça-vermelha
Dasyproctidae

109
Dasyprocta sp. Cotia 12 - 2 Sim

RÉPTEIS
Boidae
Boa constrictor Jiboia 9 não consta 5 1 Sim

Eunectes murinus Sucuri 9 não consta 2 6


SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Viperidae
Crotalus sp. Cascavel 12 - 5 6

Fonte: Elaboração Leciane da Mata, 2018.


Legenda:
1
Espécies avistadas na comunidade.
2
Categorias de espécies ameaçadas conforme a Red List da IUCN (2017): VU = vulnerável; EN = ameaçada; NT = quase ameaçada; e LC = menor preocupação.
3
Risco de extinção conforme categorias da Portaria MMA nº 444/2014 (BRASIL, 2014): VU = vulnerável; EN = em perigo; e CR = criticamente em perigo.
Aves endêmicas conforme Braz e Hass (2014).
Mamíferos endêmicos conforme Paglia et al. (2011).
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

A pesquisa evidenciou diversas interações gona sp., Tetragonisca angustula e Apis mellife-
entre os(as) moradores(as) e os animais nos ra). Os domesticados citados foram: galinha
campos afetivos (criação/estimação), sendo (Gallus gallus domesticus), carneiro (Ovis aries)
os psitacídeos (papagaios e periquitos) as e boi/vaca (Bos taurus). A gordura ou banha
aves mais citadas pelos(as) entrevistados(as) desses animais foi a parte mais relatada
como preferidas para estimação. Na catego- como remédio no tratamento de doenças
ria místico/religioso, houve diversos relatos respiratórias principalmente.
entre eles: “O beija-flor, aquele preto com A caça foi pouco relatada e apresentada
verde, quando vem até a gente, traz notícias como forma de obtenção de alimentos no
ruins” (G. P. S., 76 anos); “Pessoas ofendidas passado da comunidade (com caças princi-
por cascavel eram tratadas com benzimen- palmente de tatus e veados). Os usos artesa-
tos” (B. S., 80 anos). nais estão relacionados a subprodutos como
Animais silvestres e domésticos foram ci- penas, utilizadas na confecção de petecas, e
tados para uso em práticas artesanais e me- couro, na montagem de camas e caixas para
dicinais. Algumas das citações envolvem as armazenamento de grãos.
espécies: cascavel (Crotalus sp.), capivara (Hy-
drochoerus hydrochaeris) e abelhas (Scaptotri-

Capivara (Hydrochoerus hydrochaeris)

Foto: Leciane Moreira da Mata

110
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

3. Importância da pesquisa
para a sociobiodiversidade e a
sustentabilidade no Cerrado

C
om a pesquisa, pretendeu-se reco- fológicos de algumas espécies, informações
nhecer o conhecimento e a sabedo- de interesse para a conservação. Além dis-
ria das pessoas da comunidade do so, o convívio com animais silvestres resulta
Sertão a respeito dos animais silvestres. no enriquecimento cultural, através da for-
O conhecimento tradicional traz informa- mação de crenças e mitos. O conhecimento
ções relevantes sobre os animais silvestres. científico unido ao conhecimento tradicional
Com as tarefas cotidianas, homens, mulhe- complementa os esforços em busca da pre-
res e crianças observam os animais e trans- servação do Cerrado, na Chapada dos Vea-
mitem conhecimentos sobre preferências deiros.
alimentares, aspectos reprodutivos e mor-

Udu-de-coroa-azul (Momotus momota).

Foto: Leciane Moreira da Mata

111
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

REFERÊNCIAS

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n. 2, p.45-54, jul.-dez. 2014.
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COSTA, V. S. A Luta pelo território: histórias e memórias to, Programa de Pós-graduação em Teoria e Pesquisa
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https://bdm.unb.br/handle/10483/21529
norama bibliográfico. Biooikos, PUC Campinas, v. 14,
n. 2, p. 31-45, 2000.

112
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

VOCÊ sabia?
Etnozoologia Lei da
Biodiversidade
É a ciência que trata do conhecimento zo- O conhecimento tradicional tem proteção
ológico tradicional e visa compreender as jurídica, a chamada Lei da Biodiversidade (Lei
percepções das populações humanas em n° 13.123, de 20 de maio de 2015), que serve
relação aos animais. Como uma ciência da para proteção e uso sustentável da biodiver-
conservação, a etnozoologia inclui o estudo, sidade. Essa lei dispõe sobre bens, direitos
o resgate e a valorização dos conhecimentos e obrigações relativos ao conhecimento tra-
ecológicos locais (De Lima et al., 2014). dicional associado ao patrimônio genético,
relevante à conservação da diversidade bio-
lógica, à integridade do patrimônio genético
recursos do país e à utilização de seus componentes,
faunísticos entre outros assuntos (BRASIL, 2015).
Com a aplicação e a implementação da
As interações e a utilização dos recursos nova lei, espera-se proteger a biodiversida-
faunísticos pelas populações humanas são de, o conhecimento, as comunidades tradi-
campos de estudo da etnozoologia. São cionais e proporcionar o desenvolvimento
exemplos de interações e utilização dos re- sustentável e a diversidade cultural efetiva-
cursos faunísticos: a criação/estimação, prá- mente.
ticas artesanais, medicinais, místicas e reli-
giosas, além da caça e da pesca.

113
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Atropelamentos da
mastofauna na Chapada
dos Veadeiros: aspectos
ecológicos e espaciais
Leonardo Pereira Fraga39
Clarisse Rezende Rocha40

Tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla) Foto: Leciane Moreira da Mata

39 Biólogo, Mestre em Ecologia pela Universidade de Brasília. Especialista em Sociobiodiversidade e Sustentabilidade no


Cerrado pelo Centro de Estudos do Cerrado da Chapada dos Veadeiros (Centro UnB Cerrado), em Alto Paraíso de Goiás, Goiás.
E-mail: leopfraga@gmail.com
40 Bióloga, Doutora em Ecologia pela UnB. Professora do Centro UnB Cerrado de 2017 a 2019. E-mail: rocha.clarisse@
gmail.com

114
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

1. O que é a pesquisa?

E
struturas rodoviárias são elemen- Com a pesquisa, buscou-se monitorar a
tos transformadores da paisagem mastofauna atropelada em trecho de rodo-
e causadores de diversos impactos via localizado na Área de Proteção Ambiental
sobre o meio ambiente (NEUMANN et al., de Pouso Alto (APA Pouso Alto). Mesmo com
2012; SEILER, 2001). A existência de rodo- diversas unidades de conservação presen-
vias na paisagem influencia diretamente o tes, as rodovias da Chapada dos Veadeiros
comportamento e o movimento da fauna possuem poucos meios de proteção para a
silvestre (ANDREWS, 1990). Cruzamentos de fauna silvestre. Assim, também buscou-se,
rodovias com pontos de passagem da fauna por meio da pesquisa: i) identificar pontos de
constituem locais de riscos para vidas huma- atropelamento da mastofauna; ii) relacionar
nas e silvestres (FORMAN, 1998; NEUMANN os atropelamentos com as estações do ano
et al., 2012). (seca e chuvosa); iii) relacionar os atropela-
Os atropelamentos são um dos efeitos mentos com a paisagem do entorno da rodo-
mais visíveis do tráfego de veículos sobre via; e iv) propor medidas de proteção para a
a fauna silvestre (CLEVENGER; CHRUSZCZ; fauna silvestre.
GUNSON, 2001; SEILER, 2001). Para a mas-
tofauna (conjunto de mamíferos de uma re-
gião), os atropelamentos constituem um im-
portante fator de perda da biodiversidade,
principalmente, em populações ameaçadas
de extinção (BEISIEGEL et al., 2013; FORMAN,
1998).

115
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

2. Como a pesquisa foi realizada?

Os estudos ocorreram na APA Pouso Alto, região da Chapada dos Veadeiros localizada
no nordeste do estado de Goiás. Monitorou-se um trecho de 34 km da rodovia BR-010, situado
ao sul da APA. O trecho monitorado está compreendido entre a entrada sul da APA (ponte so-
bre o Rio Tocantinzinho) — 14°25’44.53’’S; 47°30’26.64’’O — e o início do perímetro urbano de
Alto Paraíso de Goiás — 14°08’32’’S; 47°31’18”O (ver figura 1).

Figura 1: Localização da APA Pouso Alto e do trecho pesquisado da rodovia BR-010 .

Elaborada por Bárbara Zimbres.

Legenda:

Rodovia – trecho de interesse na BR-010;

PNCV – Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros.

116
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

VOCÊ sabia?

A
região do Planalto Central é entrecortada por im-
portantes rodovias federais, as quais partem de
Brasília em direção aos extremos do país. Como
a BR-010, essas rodovias são oriundas de projetos desen-
volvimentistas executados nas décadas de 1950 e 1970.
Ainda hoje, essas rodovias não apresentam infraestruturas
e medidas de proteção para a fauna silvestre.

Identificaram-se pontos de atropelamen- para cada mamífero atropelado. Para veri-


to da mastofauna no trecho da rodovia BR- ficar diferenças significativas entre os atro-
010. Os dados foram coletados de maio de pelamentos e as estações seca e chuvosa
2017 a abril de 2018, com a realização de (para a mastofauna e para as espécies mais
quatro monitoramentos por mês. Fotografa- abundantes), realizou-se o teste t, no softwa-
ram-se carcaças de mamíferos encontradas re R. Obteve-se a paisagem classificada do
nas faixas de rolamento ou nos acostamen- entorno da BR-010 (vegetação nativa, áreas
tos da rodovia, anotando-se sua localização agrícolas, silviculturais e pastagens) no Map-
(com base nas coordenadas geográficas e Biomas (https://mapbiomas.org). As análises
na quilometragem). Também, registraram- espaciais foram realizadas no ArcGIS e no R
-se data e estação do ano (seca ou chuvosa) (BARBOSA et al., 2017; ESRI, 2016).

Como resultados da pesquisa, identificaram-se 38 pontos de atropelamento da mastofauna


e registraram-se nove espécies de mamíferos (as carcaças de três mamíferos não puderam
ser classificadas devido às condições das carcaças). A espécie mais encontrada atropelada du-
rante o ano de estudos foi o cachorro-do-mato (com 17 carcaças). Também encontraram-se o
cangambá (cinco carcaças), a rasposa-do-campo (duas carcaças) e o lobo-guará (uma carcaça),
entre outros (ver tabela 1).

117
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Tabela 1: Mastofauna atropelada nas estações seca e chuvosa na rodovia BR-010, APA de Pouso Alto, Chapada
dos Veadeiros

Família/espécie* Nome popular Seca** Chuvosa** Total


Canidae
Cerdocyon thous Cachorro-do-mato 11 6 17
(Linnaeus, 1766)
Chrysocyon brachyurus Lobo-guará 0 1 1
(Illiger, 1815)
Lycalopex vetulus Raposa-do-campo 2 0 2
(Lund, 1842)
Chiroptera (Ordem)
Chiroptera NI*** Morcego 0 1 1
Cricetidae
Oecomys sp. Roedor 1 0 1
Dasypodidae
Dasypus septemcinctus Tatuí 3 0 3
(Linnaeus, 1758)
Dasypodidae NI*** Tatu 1 0 1
Didelphidae
Didelphis albiventris Saruê 1 1 2
(Lund, 1840)
Mephitidae
Conepatus chinga Cangambá 3 2 5
(Molina, 1782)
Muridae
Muridae NI*** Roedor 1 2 3
Myrmecophagidae
Tamandua tetradactyla Tamanduá-mirim 1 0 1
(Linnaeus, 1758)
Procyonidae
Nasua nasua Quati 0 1 1
(Linnaeus, 1766)
Total 24 14 38
Elaborado por Leonardo Fraga, 2018.
Notas:
*
Família/espécie – menor nível taxonômico associado à carcaça.
**
Seca/chuvosa – número de registros por estações do ano.

***
Mamíferos não identificados a nível de espécie devido às condições das carcaças.

118
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Com relação à sazonalidade, não se ve- Sementes e sobras agrícolas podem servir
rificaram diferenças significativas entre os de alimento para aves e pequenos roedores,
atropelamentos nas estações seca e chuvosa os quais atraem mamíferos maiores (HAN-
(tanto no conjunto dos mamíferos como em SEN; CLEVENGER, 2005; SEILER, 2001). Grãos
nível de cada espécie). Com relação à paisa- e outras culturas espalhadas nas rodovias,
gem do entorno, registraram-se mais atrope- oriundas do transporte de produtos agríco-
lamentos no subtrecho da rodovia que atra- las, promovem toda uma “cadeia alimentar”
vessa áreas de agricultura intensiva. Nessas nas pistas e acostamentos rodoviários (FOR-
áreas, a rodovia passa por grandes exten- MAN, 2000; SEILER, 2001). Assim, essas ca-
sões de lavouras mecanizadas com práticas racterísticas das áreas agrícolas aumentam
de agricultura industrial. as interações dos mamíferos com as rodo-
vias, o que acaba resultando em maior nú-
mero de indivíduos atropelados.

Figura 2: Mastofauna atropelada na rodovia BR-010, APA de Pouso Alto, Chapada dos Veadeiros

Fonte: 2A, 2C e 2D Leonardo Fraga; 2B Fernando Tatagiba

Legenda:
A cachorro-do-mato B lobo-guará C cangambá D raposa-do-campo.

Os atropelamentos são um importante mecanismo de perda da biodiversidade genética


em populações raras ou ameaçadas de extinção (FORMAN, 1998). Os atropelamentos repre-
sentam uma séria ameaça para o cachorro-do-mato no país (BEISIEGEL et al., 2013). O lobo-
-guará e a raposa-do-campo, também encontrados atropelados durante o estudo, constam
em listas de espécies ameaçadas de extinção (IUCN, 2017; BRASIL, 2014) (figura 2).

119
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

O monitoramento da mastofauna atropelada no trecho da rodovia BR-010, ao sul da APA


de Pouso Alto, apresentou perdas de espécies ameaçadas de extinção. Recomenda-se a insta-
lação de portal ou placas suspensas na entrada sul da APA (km 129-140 da BR-010), indicando
aos motoristas a entrada em área com medidas protetivas para a fauna silvestre. Também
recomenda-se a redução dos limites de velocidade na via, com a instalação de redutores de
velocidade e placas de alerta, principalmente nas áreas de agricultura intensiva.

3. Importância da pesquisa
para a sociobiodiversidade e a
sustentabilidade no Cerrado

N
a pesquisa, pretendeu-se contri- Assim, esta pesquisa representa uma con-
buir para a visibilidade dos atro- tribuição para a sustentabilidade do Cerrado,
pelamentos da fauna silvestre no uma vez que pretende conciliar a circulação
Cerrado brasileiro. O Cerrado é considerado de pessoas, bens e serviços com a preserva-
um hotspot da biodiversidade mundial, de- ção da vida silvestre. Os animais silvestres
vido à diversidade biológica presente e às realizam diversas funções ecológicas. Além
ameaças representadas pela expansão agro- disso, a vida silvestre também está presente
pecuária, pelo desmatamento e pela cons- na vida cultural de pessoas e comunidades.
trução de estradas (CARVALHO; DE MARCO; Por tudo isso, preservar os animais silvestres
FERREIRA, 2009; MYERS et al., 2000). A maior é preservar a sociobiodiversidade da Chapa-
parte dos modelos agropecuários praticados da dos Veadeiros e do Cerrado.
no Cerrado é integrada ao sistema agroali-
mentar mundial (PIRES, 2000). Nesses mode- REFERÊNCIAS
los, ocorre intensa supressão da vegetação
ANDREWS, A. Fragmentation of habitats by roads and
nativa e abertura de novas áreas para cultu-
utility corridors: a review. The Australian Zoologist, v.
ras consideradas commodities no mercado
26, p. 130-141, 1990.
internacional (principalmente grãos) (KLINK;
MACHADO, 2005; PIRES, 2000). Nesse cená- BARBOSA, A. M. et al. DeadCanMove: assess how spa-
rio, os encontros da fauna silvestre com as tial roadkill patterns change with temporal sampling
rodovias têm se tornado cada vez mais fre- scheme. R Package Version 0.5/r26, 2017.
quentes. BEISIEGEL, B. M. et al. Avaliação do risco de extinção
do cachorro-do-mato Cerdocyon thous (Linnaeus,
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120
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

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121
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

VOCÊ sabia?

Vítimas Funções
Silenciosas Ecológicas
Segundo o Centro Brasileiro de Estudos Muitas funções ecológicas desempe-
em Ecologia de Estradas (CBEE), da Universi- nhadas por grupos de animais são vitais
dade Federal de Lavras, Minas Gerais, 15 ani- para o ser humano. Assim, as funções
mais silvestres morrem atropelados, a cada ecológicas funcionam como verdadei-
segundo, no Brasil. Assim, estima-se que são ros “serviços naturais”. São exemplos
vitimados anualmente, nas rodovias do país, de funções ecológicas da fauna silves-
43 milhões de vertebrados de médio porte tre: polinização, dispersão de sementes,
e dois milhões de animais de grande porte controle de pragas, regulação populacio-
(como lobos, antas e onças). No Cerrado bra- nal, conservação da biodiversidade, en-
sileiro, a ampliação da malha rodoviária, a tre outras.
urbanização e a fragmentação dos habitats
naturais ocorrem de maneira acelerada, re-
sultando no risco de extinções locais de es-
pécies (BEISIEGEL et al., 2013; BRASIL, 2014).

122
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Estudo do impacto
socioambiental dos caramujos-
gigantes-africanos, Achatina
fulica, sobre a população de
Alto Paraíso de Goiás
Lígia Cristina Cazarin Oliveira 41
Maria Júlia Martins Silva42

41 Bióloga, especialista em Sociobiodiversidade e Sustentabilidade no Cerrado pelo Centro de Estudos do Cerrado da


Chapada dos Veadeiros (Centro UnB Cerrado) da Universidade de Brasília, em Alto Paraíso de Goiás, Goiás. E-mail: licazarin.
bio@gmail.com
42 Bióloga, doutora em Ciências Biológicas (Zoologia) pela Universidade de São Paulo (USP). Professora associada da
UnB. Atua no Centro UnB Cerrado e no Instituto de Ciências Biológicas (IB). E-mail: mjsilva@unb.br

123
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

1. O que é a pesquisa?

E
m 2018, a problemática da presen- Para desenvolver uma campanha de com-
ça do caramujo-gigante-africano em bate a uma espécie invasora, é necessário
Alto Paraíso de Goiás foi identifica- antes conhecer a extensão do problema e
da juntamente com a falta de informações diagnosticar o perfil de ocupação, a fim de
dos(as) moradores(as) da cidade acerca dos utilizar uma medida adaptada à realidade
perigos e do manejo correto desse molusco do local (COLLEY, 2010). Sendo assim, os ob-
invasor. Com isso, identificou-se a necessi- jetivos da pesquisa foram avaliar o impacto
dade de uma campanha de extermínio de socioambiental causado pelo caramujo-gi-
tais caracóis pelos(as) próprios(as) morado- gante-africano (Achatina fulica), aos(às) mora-
res(as), evitando problemas ambientais e so- dores(as) de Alto Paraíso de Goiás; constatar
ciais maiores. o conhecimento acerca dos riscos e proble-
mas causados pelo caramujo exótico inva-
sor; identificar se moradores(as) são capazes
de reconhecer o caramujo e diferenciá-lo do
caramujo-gigante nativo (Megabulimus sp.) e
analisar se conhecem as formas corretas de
combate e manuseio contra a espécie inva-
sor, para então nortear uma ação de educa-
ção ambiental e combate ao molusco inva-
sor.

2. Como a pesquisa foi realizada?

R
ealizou-se a pesquisa no município Além de cultura mística marcante, a região
de Alto Paraíso de Goiás (14°8’1”S; possui vocação para as atividades antrópi-
47°31’17”O), situado no nordeste cas, tais como expansão agrícola, exploração
goiano, na Chapada dos Veadeiros, com área mineral, extração de plantas nativas, caça e
de 2.593,905 km² e densidade demográfica turismo descontrolado, além da introdução
de 2,65 hab/km². Apenas 45,8% dos domicí- de espécies exóticas. A cidade possui mui-
lios possuem esgotamento sanitário, 91,9% tas pousadas e casas para temporadas, com
das vias públicas são arborizadas e 4,4%, ur- quintais grandes e com algum tipo de planta.
banizadas. A cidade possui muitas pousadas
e casas para temporadas, com quintais gran-
des e com algum tipo de planta.

124
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Alto Paraíso de Goiás é a porta de entrada Houve ainda busca superficial por exem-
para o Parque Nacional da Chapada dos plares pelos bairros da cidade e em algumas
Veadeiros, considerado, pela Organização residências. Os moluscos coletados (indiví-
das Nações Unidas para a Educação, a Ciên- duos vivos e conchas vazias) foram conta-
cia e a Cultura (Unesco), como Patrimônio dos, identificados, acondicionados em álcool
Mundial Natural. A região está inserida no a 70% e, depois, levados ao Laboratório de
Cerrado, que se caracteriza pela vegetação Bentos para tombamento na Coleção de Mo-
típica de savana tropical, é cercada de 120 luscos da Universidade de Brasília (CMUnB).
cachoeiras e diversas nascentes. Com 6.885 Marcaram-se as localizações das casas en-
habitantes, a destinação do lixo é feita sem trevistadas e dos locais onde ocorreram as
um tratamento adequado, sendo deposita- coletas por meio de GPS (Garmin Etrex 30).
do em lixão. Utilizaram-se os pontos para diferenciar os
Na pesquisa, utilizaram-se entrevistas se- locais onde houve coleta das amostras dos
miestruturadas gravadas, guiadas por ques- locais onde os moradores informaram ter
tionário não nominal, com a população e encontrado o caramujo-gigante-africano,
com o responsável pela Vigilância Sanitária dos locais em que os entrevistados informa-
de Alto Paraíso. A região do município foi di- ram aparecer o Megalobulimus sp. e daqueles
vidida em cinco zonas, considerando as áreas em que os entrevistados informaram nunca
urbanizadas: Norte, Sul, Leste, Oeste e Cen- ter aparecido nenhum dos caramujos apre-
tro. A região Norte foi composta pelos bair- sentados (figura 1).
ros Centro, Loteamento Residencial Eldora-
do e Vila Bandeira; a Sul, pelos bairros Novo
Horizonte e Monte Sinai; a Leste englobou
os bairros Estância Paraíso, Paraíso Velho e
Vale Azul; a Oeste incluiu os setores Cidade
Alta e Planalto e o Centro, compreendendo o
bairro Paraisinho. Em cada zona, visitaram-
-se dez residências, de forma aleatória, e re-
alizaram-se as entrevistas, juntamente com
a apresentação de duas fotos inseridas no
questionário e duas conchas, uma de Achati-
na fulica e outra de Megalobulimus sp. (espé-
cie de molusco nativa da região).

125
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Figura 1: Pontos de GPS marcados na pesquisa de campo.

Elaborado por Lígia Cazarin, adaptado de Google Earth, 2018.

Encontraram-se um total de 20 amostras concha do Megalobulimus sp. com caramujos


de caramujos, entre os dias 23 e 27 de julho que apareceram em suas casas. Entretanto
de 2018, período de seca na região. A bus- 86% dos(as) entrevistados(as) afirmaram já
ca ocorreu de forma superficial a partir da terem visto o caramujo na cidade, mais es-
indicação do(a) morador(a) sobre onde ele pecificamente nos bairros de Paraisinho e
havia visto um recentemente. Entre os(as) Novo Horizonte. Um dos fatores que distin-
entrevistados(as), 46% afirmaram ter encon- guiram os(as) moradores(as) que encontra-
trado um caramujo de grande porte em sua ram alguma das espécies em suas casas fo-
residência. Desses, 19 indicaram que o cara- ram os fatos de possuírem plantas em seus
mujo encontrado foi igual ao da foto e com a quintais, cuidarem diretamente do jardim e
concha semelhante à do Achatina fulica, en- serem moradores(as) de Alto Paraíso há um
quanto quatro pessoas associaram a foto e a tempo maior que um ano.

126
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

As reações diante dos caramujos variaram em desconforto, medo, nojo, jogar para longe ou
no lixo, matar, indiferença e simpatizar com o molusco (gráfico 1). Os(as) moradores(as) que re-
lataram incômodos com a presença do caramujo-gigante foram apenas os que se depararam
com o africano, sendo que 54% dos(as) moradores(as) entrevistados(as) relataram inconve-
nientes (gráfico 2). Mesmo com os problemas relatados, apenas 18 dos(as) entrevistados(as) já
realizaram alguma ação de combate contra o molusco invasor, alguns dos envolvidos alegaram
não ter responsabilidade com o combate e responsabilizaram apenas a prefeitura, enquanto
outros explicaram não ter coragem de matar os animais.
Gráfico 1: Reação dos(as) moradores(as) ao encontrarem o caramujo-gigante-africano

Elaborado por Lígia Cazarin, 2018.

Gráfico 2: Problemas causados devido à presença do caramujo-gigante-africano

Elaborado por Lígia Cazarin, 2018.

127
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

A forma de combate variou (gráfico 3), porém alguns dos(das) entrevistados(as) elenca-
ram dificuldade em combate ao molusco como o fato de não encontrar o lesmicida na região,
de nem todos(as) os(as) vizinhos(as) se envolverem no combate a essa espécie invasora e a
prefeitura não estar mais fazendo a coleta desses animais. O manuseio do caramujo (gráfico
4), na maioria dos depoimentos, foi de forma não direta, fosse através de utensílios como pá
ou colher de pedreiro, papelão e madeira, fosse por meio de luvas ou sacos de lixo, porém al-
guns ainda manuseavam diretamente com as mãos.
Gráfico 3: Ações desenvolvidas no combate ao caramujo-gigante-africano

Elaborado por Lígia Cazarin, 2018.

Gráfico 4: Forma de manuseio dos caramujos pelos(as) moradores(as)

Elaborado por Lígya Cazarin, 2018.

128
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Cerca de 80% dos(as) entrevistados(as) já Moradores(as) alertaram quanto à pre-


ouviram falar algo a respeito do caramujo- sença do caramujo-gigante nativo, que foi
-gigante-africano, e a informação mais citada encontrado nas margens da cidade com o
está relacionada à transmissão de doenças. Cerrado e em alguns relatos em regiões pró-
Porém apenas oito moradores conheciam as ximas a rios. Esse fato dá-se por esses mo-
formas corretas de combate, como esmagar luscos não se adaptarem bem ao ambiente
tanto a concha quanto os ovos e enterrar em antrópico, visto que não há descrição de tal
buracos impermeabilizados com cal. A res- espécie ocorrendo em cidades. Porém a pre-
peito das doenças transmitidas pela espécie ocupação com o controle da espécie de gas-
invasora, não houve nenhum registro junto à trópode invasora permeia o fato de que ela
Secretária Municipal de Saúde. pode ser uma ameaça às espécies do gêne-
Na entrevista com o agente da Vigilância ro Megalobulimus devido à desvantagem na
Sanitária, informou-se que houve uma ação competição por espaço e alimento, além das
desenvolvida pela prefeitura, nos anos de nativas entrarem em letargia e até morte na
2008 a 2010, em que foram distribuídas car- presença do caramujo-gigante-africano (ES-
tilhas, fornecidas pelo estado de Goiás, cons- TON, 2006).
cientizando a respeito da espécie do molusco Como devolutiva à sociedade, sugere-se
invasor, da forma correta de manuseio e de uma ação de educação ambiental que cons-
como combater a infestação, além de uma cientize sobre a correta identificação da es-
mobilização conjunta da população com pécie invasora, bem como o manejo e a for-
os agentes e os servidores municipais para ma de combater o caramujo. Essa ação pode
limpeza das ruas da cidade e dos quintais e ser feita através de palestras voltadas para
coleta dos caramujos. Porém a falta adesão os(as) moradores(as) que praticam agricul-
dos(as) moradores(as) e de seguimento a tura ou plantio de qualquer espécie em seu
campanha, bem como os terrenos abando- terreno, funcionários da prefeitura, estudan-
nados, contribuíram com a recolonizarão do tes e professores das escolas da cidade, em
ambiente pelos caramujos invasores. conjunto com um fôlder explicativo (figura a
seguir), em linguagem de fácil compreensão.

129
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Figura 1: Fôlder informativo e de devolução da pesquisa para a comunidade

Elaborado por Lígia Cazarin, 2018.

130
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

3. Importância da pesquisa
para a sociobiodiversidade e a
sustentabilidade no Cerrado

O
caramujo-gigante-africano perten- O Achatina fulica também é causa de pre-
ce à lista das 100 piores espécies ocupação ambiental, visto que se adapta fa-
exóticas invasoras do mundo, por cilmente a diversos ambientes, colonizando
representar uma praga socioambiental, cau- não apenas cidades, mas também florestas
sando problemas ao meio ambiente, à agri- nativas, bordas das florestas e florestas em
cultura e à saúde humana e animal (LOWE et regeneração (THIENGO et al., 2007). A voraci-
al., 2000); além de ser elencado na estratégia dade desse espécime, aliada ao fácil aumento
nacional sobre espécies exóticas invasoras, populacional, pode diminuir a disponibilida-
com crescente disseminação no Brasil. Nos de de alimento para a fauna nativa da região
locais onde a infestação não foi controlada, e causar alteração na paisagem natural, de-
tornou-se uma praga agrícola, pois ataca cul- vido ao consumo de biomassa, como brotos,
turas variadas e, em especial, a de hortaliças e plantas jovens e o meristema das plantas
de café (FISCHER; COLLEY, 2004). (ESTON, 2006). Tal risco ficou mais evidente
É transmissor de dois vermes perigosos quando moradores(as) relataram jogar os
para seres humanos: Angiostrongylus can- caramujos vivos no lixo, esses animais che-
tonensis, nematódeo parasita causador da gam ao lixão da cidade, que fica dentro de
meningite eosinofílica (ou angiostrongilíase área de proteção ambiental, e, devido à dis-
meningoencefálica); e Angiostrongylus costari- ponibilidade de alimento, encontram abrigo
censis, verme causador da angiostrongilíase e ausência no combate ou predação. Dessa
abdominal (ESTON, 2006; FISCHER; COLLEY, forma, a sua dispersão e possível desloca-
2004; THIENGO et al., 2007). O risco de serem mento para a área de mata nativa apresen-
transmissores acentua-se nas populações de tam sério risco ao Cerrado da região.
caramujo que entram em contato com ratos Sendo, assim, a pesquisa ajudou a iden-
silvestres e urbanos, os hospedeiros defini- tificar a presença dessa espécie invasora,
tivos do A. Cantonensis (FISCHER; COLLEY, mapear sua distribuição e orientar um plano
2004; THIENGO et al., 2010). de combate sustentável, priorizando a cons-
cientização dos(as) moradores(as) da região
acerca dos problemas causados pelo Achati-
na fulica, fornecendo o esclarecimento quan-
to à identificação correta do caramujo-gigan-
te-africano e aos mecanismos certos para o
combate do invasor, bem como ressaltando
a preservação da espécie nativa.

131
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

REFERÊNCIAS

COLLEY, E. Medidas de controle de Achatina fulica. In:


FISCHER, M. L.; COSTA, L. C. M. O caramujo gigante afri-
cano Achatina fulica no Brasil. Curitiba: Editora Cham-
pagnat-PUC-PR, 2010. p. 203-229.

ESTON, M. R. et al. Espécie invasora em unidade de


conservação: Achatina fulica (BOWDICH, 1822) no Par-
que Estadual Carlos Botelho, Sete Barras, SP, Brasil.
Revista do Instituto Florestal, São Paulo, v. 18, p. 173-
179, dez. 2006.

FISCHER, M. L.; COLLEY, E. Diagnóstico da ocorrência


do caramujo gigante africano Achatina fulica Bowdich,
1822 na Apa de Guaraqueçaba, Paraná, Brasil. Revista
Estudos de Biologia, Curitiba, PR, v. 26, n. 54, p. 43-50,
jan.-mar. 2004.

LOWE, S. et al. 100 of the world’s worst invasive alien


species: a selection from the global invasive species
database. [S. l.]: The World Conservation Union (IUCN),
2000. Disponível em: http://www.issg.org/pdf/publica-
tions/worst_100/english_100_worst.pdf. Acesso em: 9
set. 2018.

THIENGO, S. C. et al. Rapid spread of an invasive snail


in South America: the giant African snail, Achatina fuli-
ca, in Brasil. Biological Invasions, v. 9, n. 6, p. 693-702,
ago. 2007. Disponível em: https://link.springer.com/
article/10.1007/s10530-006-9069-6. Acesso em: 15
nov. 2018.

THIENGO, S. C. et al. The giant African snail Achatina


fulica as natural intermediate host of Angiostrongy-
lus cantonensis in Pernambuco, northeast Brazil. Acta
Tropical, Amsterdam, v. 115, n. 3, p. 194-199, set. 2010.

Link de acesso ao trabalho completo:


https://bdm.unb.br/handle/10483/21531

132
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

VOCÊ sabia?

Espécies Achatina
exóticas fulica

Espécies exóticas são organismos introdu- 1 O Achatina fulica é considerado como


zidos em ambientes diferentes de suas áreas uma das 100 piores espécies exóticas inva-
de ocorrência natural. Atualmente, as espé- soras do mundo (LOWE et al., 2000). Chegou
cies exóticas constituem uma das principais ao Brasil no final da década de 1980 para fins
ameaças à biodiversidade. Nas áreas onde comerciais e consumo humano (THIENGO et
não ocorrem naturalmente, as espécies exó- al., 2007). Atualmente, o A. fulica está disper-
ticas podem se proliferar descontroladamen- so em quase todos os estados brasileiros e
te e colocar em risco espécies nativas e seus no Distrito Federal.
ambientes naturais. Quando apresentam es-
2 O Achatina fulica é considerado o hos-
sas características, as espécies exóticas são
pedeiro intermediário de 20 espécies de ver-
conhecidas como invasoras.
minoses que acometem (como hospedeiros
definitivos) mamíferos como roedores, bovi-
nos, equinos, ovinos, primatas, canídeos, fe-
linos e humanos.

133
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO
O caso do Parque Nacional
da Chapada dos Veadeiros:
a relevância dos patrimônios
naturais da humanidade e das
reservas da biosfera para a
conservação da biodiversidade

Luanna de Souza Ribeiro43


José Luiz de Andrade Franco44

43 Analista internacional, Mestre em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília. Especialista em So-
ciobiodiversidade e Sustentabilidade no Cerrado pelo Centro de Estudos do Cerrado da Chapada dos Veadeiros (Centro UnB
Cerrado), em Alto Paraíso de Goiás, Goiás. E-mail: luanna.s.ribeiro@gmail.com
44 Historiador. Doutor em História pela UnB. Professor associado do Departamento de História da UnB e do Centro UnB
Cerrado. E-mail: jfranco@unb.br

134
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

1. O que é a pesquisa?

O
Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (PNCV) tem atualmente 240.586,56 hec-
tares e está localizado no estado de Goiás, na microrregião da Chapada dos Veadei-
ros. Na sua atual dimensão, ocupa 0,62% do território do estado. Abrange os muni-
cípios de Cavalcante, Alto Paraíso de Goiás, Nova Roma, Teresina de Goiás e São João d’Aliança,
bem como proximidades de Colinas do Sul. O PNCV foi criado em 1961 com o nome de Parque
Nacional do Tocantins e contava com 625 mil hectares de área protegida (ICMBIO, 2009).

VOCÊ sabia?
Area do
PNCV

O PNCV foi criado em 1961 com 625 mil hectares e perdeu mais de 90% da sua área nas
décadas seguintes. Como a ampliação de 2017, sua área ainda é 60% menor que seu tamanho
original.

135
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Figura 1: Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, com o tamanho atual,


de 240.586,56 hectares, e municípios arredores

Fonte: ISA (2020) ‒ Sistema Esri, Here, Garmin, USGS, NGA.

A área original do parque foi sendo conti- No entanto essa ampliação não se manteve
nuamente diminuída até atingir seu menor por muito tempo. O decreto de ampliação
patamar, de 60 mil hectares, em 1981. A sua foi revogado, e o PNCV voltou ao tamanho
primeira tentativa de ampliação ocorreu no estabelecido em 1990 (65.514 hectares). Ain-
ano 2000, quando o PNCV foi ampliado para da assim, em 2017, o PNCV foi ampliado para
mais de 200 mil hectares e designado como os seus atuais 240.586 hectares. Tendo em
Patrimônio Natural da Humanidade (PNH) vista essas questões, faz-se necessário en-
pela Organização das Nações Unidas para a tender a importância do parque, sua história
Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). No de criação e implementação, os processos
mesmo ano, foi instituída a Reserva da Bios- de alteração de sua área e qual o papel dos
fera (ResBio) do Cerrado – Fase II, da qual o mecanismos internacionais de conservação
PNCV faz parte como uma das áreas núcleo. natural nesse processo.

136
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

VOCÊ sabia?
Patrimônio Natural da
Humanidade (PNH)
Um Patrimônio Natural da Humanidade é um local de interesse natural estritamente delimi-
tado, com valor universal excepcional do ponto de vista da ciência, da conservação ou de gran-
de beleza cência. Atualmente, existem 23 PNHs em todo o planeta. No Brasil, exixtem apenas
sete áreas listadas como PNH (UNESCO, [202-]).

O tamanho da área do PNCV é importan- A importância ambiental do PNCV se dá


te, pois, atualmente, o mecanismo mais efi- pela sua localização em uma área prioritá-
ciente de conservação da biodiversidade é a ria para a conservação da natureza. Ele está
designação de áreas protegidas de proteção localizado no Cerrado, um bioma brasileiro,
integral, a exemplo dos parques nacionais. composto por formações florestais, savâni-
Essas áreas precisam de um tamanho sufi- cas e campestres. O Cerrado é o segundo
cientemente grande para minimizar o efeito maior bioma do Brasil em área e representa
de borda e para manter o funcionamento dos cerca de 23% do território brasileiro (consi-
seus processos biológicos, da sua cadeia tró- derando a sua área contínua e as áreas de
fica, da variabilidade genética das espécies e transição, essa porcentagem atingiria 37%).
da representatividade dos diferentes ecos- No Cerrado, está inserida 5% de toda a bio-
sistemas. Naturalmente, esse tamanho de- diversidade planetária e está contida a maior
penderá do bioma e da riqueza biológica do parte das águas que formam três das maio-
local. Áreas de alto endemismo (espécies ex- rias bacias hidrográficas brasileiras: São Fran-
clusivas de determinado local) ou com gran- cisco, Tocantins-Araguaia e Paraná (Platina).
des carnívoros (a onça-pintada, por exemplo) Estima-se mais de 6 mil espécies de árvores,
e espécies migratórias são especialmente de- 837 espécies de aves (29 endêmicas) e gran-
licadas. Tais espécies necessitam não apenas de endemismo em plantas lenhosas e abe-
de uma área suficientemente grande, mas lhas (417 espécies conhecidas do Cerrado).
também de recursos humanos e financeiros Porém também possui alto nível de devasta-
suficientes, de uma gestão eficaz e da conec- ção. O bioma já perdeu 46% da sua cobertu-
tividade com outros hábitats para a efetiva ra vegetal nativa e apenas 19,8% permanece
manutenção da biodiversidade (SOULÉ; TER- inalterada, o que o caracteriza como um dos
BORGH, 1999). hotspots mundiais, ou seja, uma região com
alta biodiversidade e que está ameaçada
devidos aos impactos ambientais causados
pela ação humana. Além disso, a origem das

137
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

formações vegetais do Cerrado data do pleistoceno


tardio (entre 2,58 milhões e 11.700 anos atrás). Isso
quer dizer que é um bioma antigo e, portanto, a sua
preservação deve ser prioritária, uma vez que pos-
sui uma difícil restauração se comparado com bio-
mas mais jovens (GOUDIE, 2006; ICMBIO, 2009;
KLINK; MACHADO, 2005; MYERS et al., 2000;
STRASSBURG et. al., 2017).

VOCÊ sabia?

Hotspots mundiais

Hotspots são regiões com alta biodiversidade e alta incidência de espécies endêmicas
que estão ameaçadas devido aos impactos ambientais causados pela ação humana. Esse
conceito foi criado pelo ambientalista inglês Norman Myers em 1988 e foi adotado pela
Conservação Internacional (CI) no ano seguinte.

Na região do PNCV e entorno podem ser O PNCV encontra-se em um dos pontos


observadas uma variedade de fitofisiono- mais altos do Cerrado, com locais que atin-
mias: cerrado rupestre, campo rupestre, gem mais de 1.600 metros de altitude, sobre
cerrado ralo, campo sujo, campo limpo, cer- a maior rocha de cristal do planeta (uma jazi-
rado denso, veredas, matas de galeria, mata da de quartzo). O parque tem grande riqueza
mesofítica e cerradão, com predominância biológica e apresenta porções significativas
(anterior à ampliação) de formações savâni- de áreas preservadas de ecossistemas ca-
cas estacionais campestres (campo rupestre, racterísticos do Cerrado. As áreas de altitude
limpo e sujo) e de porções extensas de cerra- apresentam características únicas e espécies
do stricto sensu (BRASIL, 2016; ICMBIO, 2009; endêmicas. Ao mesmo tempo, o PNCV está
LOEBMANN, 2008; MAZZETO SILVA, 2009). em uma área sujeita a crescente pressão an-
trópica. Além disso, devido à sua localização
de altitude e às formações florestais cerra-
dão e matas de galeria — em conjunto com
outras formações savânicas predominantes
na região e outros tipos de fitofisionomias

138
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

da área —, o local tem grande diversidade Todos esses fatores colocam o PNCV em
de fauna. Dentro do PNCV, foram identifica- uma área prioritária para a conservação da
das 20 espécies endêmicas, algumas delas já biodiversidade e, por isso, foi aprovado pela
ameaçadas de extinção. No Atlas da Fauna Unesco como PNH em 2001. Essa aprovação
Brasileira Ameaçada de Extinção em Unida- foi condicionada a um aumento da área do
des de Conservação, de 2011, vê-se que o parque para 235.970 hectares (na época, ain-
PNCV é a segunda unidade de conservação da estava com 65.514 hectares, o que foi con-
do bioma Cerrado com mais espécies amea- siderado insuficiente). Como essa ampliação
çadas registradas, com um total de 22 espé- não ocorreu efetivamente nos anos seguin-
cies. Com a expansão de 2017, esses núme- tes, a Unesco alertou quanto à inclusão do
ros devem se alterar, uma vez que a inclusão parque na lista de PNHs em perigo. A amplia-
de novas áreas trará a listagem de novas es- ção era necessária para viabilizar a proteção
pécies (NASCIMENTO; CAMPOS, 2011). dos ecossistemas já incluídos e de outros
a serem incluídos, como as formações de
mata seca, ameaçadas de degradação. Outro
aspecto importante da ampliação era o es-
tabelecimento de uma maior conectividade
no bioma para evitar a extinção de espécies
causada pela fragmentação de hábitat.
Além disso, em 2000, o parque também
foi designado como área núcleo da Reserva
da Biosfera do Cerrado - Fase II. A ResBio é
um modelo internacional de gestão integra-
da, participativa e sustentável dos recursos
naturais. Alguns de seus objetivos são: pre-
servação da diversidade biológica; promoção
da educação ambiental e do desenvolvimen-
to sustentável; e melhoria da qualidade de
vida das populações (COBRAMAB, 2000).

139
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

2. Como a pesquisa foi realizada?

C
om enfoque interdisciplinar das O reconhecimento do PNCV como PNH e
áreas de biologia da conservação, ResBio são importantes instrumentos sim-
história de áreas protegidas e po- bólicos. Porém, ainda que sejam articulados
lítica internacional, realizou-se a pesquisa a em nível internacional, dentro do escopo da
partir de análise documental digital dos re- Organização das Nações Unidas (ONU), e
latórios dos programas, das atas de confe- possam trazer uma abordagem mais técnica
rências e das reuniões da Unesco de 1972 e desdobrar-se em projetos e ações concre-
até 2017, disponibilizadas na base de dados tos, dependem de aprovações e da apropria-
digital da organização; do plano de manejo ção pelos governos nacionais (estaduais e
do PNCV, disponibilizado pelo banco de da- municipais inclusos). Contudo, levando em
dos do Instituto Chico Mendes de Conserva- consideração que as decisões no âmbito da
ção da Biodiversidade (ICMBio); do manual preservação e da conservação (em larga es-
de boas práticas dos patrimônios mundiais, cala) são feitas, sobretudo, no âmbito políti-
disponibilizado digitalmente na base de da- co em diferentes escalas (municipal, estatal,
dos do World Heritage Centre (WHC); dos de- nacional ou internacional), não se pode pre-
cretos de alteração do PNCV, em biblioteca terir a importância desses instrumentos que,
digital do governo federal; além de informa- embora não possuam poder vinculativo ou
ções disponibilizadas em sítios institucionais sancionatório, atuam como uma diretriz su-
governamentais da prefeitura de Alto Para- pranacional. O status que conferem às áreas
íso e de organizações não governamentais protegidas acaba por formar uma “blinda-
(ONGs), como a Funatura e o Instituto Socio- gem” tanto no âmbito internacional como no
ambiental (ISA). Pesquisaram-se também a li- âmbito nacional. Ter parte do acervo natural
teratura acadêmica, sobretudo dissertações reconhecido e inscrito na lista do PNH tem
de mestrado e teses de doutorado no tema efeitos positivos para o orgulho nacional, a
de conservação ambiental, Cerrado e PNCV, autoestima das comunidades, o incentivo ao
bem como outras fontes secundárias em tor- turismo e o acesso a financiamentos interna-
no dos temas centrais da pesquisa. cionais (LANARI, 2003).

140
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

No entanto a sua efetividade torna-se li- Vale destacar que, em seus 40 anos de
mitada quando o governo e a sociedade não existência, a Convenção do Patrimônio Mun-
percebem a importância dessas estratégias dial tornou-se o mais importante instru-
para a conservação da biodiversidade. Mui- mento internacional catalisador para o re-
tas vezes a própria ideia de conservação é conhecimento dos lugares naturais de valor
questionada. Portanto depreende-se que a especial e oferece reconhecimento interna-
conservação ambiental está intimamente cional a mais de 10% da extensão de áreas
ligada à política e à aceitação civil quanto a protegidas no mundo, detendo uma amostra
sua necessidade e sua viabilidade. Mas, nes- relevante e representativa dos sítios naturais
se sentido, os PNH e as ResBio têm uma im- mundiais. Seu papel seria de catalisadora
portância singular ao proporem ações para e atuaria aperfeiçoando a conservação e a
informar e educar sobre os patrimônios na- gestão de bens, fortalecendo a capacitação
turais e o papel da biodiversidade, além de e reunindo países em nome da promoção do
promoverem o conhecimento das comuni- valor da conservação. Por sua vez, o status
dades desses mecanismos e de incentivar a de ResBio serve de estímulo à adoção de ini-
participação dessa população nas decisões a ciativas conservacionistas em conjunto com
serem tomadas. Os PNH e as ResBio são im- a adoção de alternativas econômicas mais
portantes também para dar um aval “oficial” sustentáveis. E, ainda, abre oportunidades
para a proteção de determinadas áreas em para o financiamento nessas linhas de ação,
detrimento de outras atividades predatórias visando compatibilizar a melhoria da quali-
que possuem um lobby mais forte e atuan- dade de vida das populações locais e a con-
te. E, ainda, demonstrou-se como esses ins- servação do ambiente natural, partindo do
trumentos podem ser utilizados como fer- princípio que são questões complementa-
ramenta de proteção legal em um contexto res e mutuamente alcançáveis (COBRAMAB,
de crescente pressão social e política de uti- 2000).
lização dos recursos naturais de forma não O caso do PNCV, que foi criado com 625
sustentável e focados em ganhos de curto mil hectares, mas que acabou perdendo 90%
prazo. de sua área protegida ao longo de quatro dé-
cadas, ilustra muito bem os tipos de pressões
sofridas pelas áreas protegidas. Levando em
consideração que o PNCV teve sua expansão
assinada em junho de 2017, mês anterior a
reunião da Unesco, fica clara a relação com
sua ampliação, que estava suspensa desde
2003, ou seja, 15 anos sem a devida solução.
É bastante claro como esse argumento teve
um peso considerável para a ampliação do
PNCV. Além disso, o status do PNCV como
PNH, e a inclusão da região da Chapada dos
Veadeiros na ResBio do Cerrado amplia as
possibilidades de atração de projetos e fi-

141
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

nanciamentos internacionais para as ações alternativos, seja para incrementar formas


de conservação da biodiversidade e da so- tradicionais de desenvolvimento econômico
ciobiodiversidade, por meio de projetos de de maneira sustentada, seja, ao mesmo tem-
desenvolvimento sustentável. po, para o monitoramento de tais atividades
As ResBio funcionam como um instrumen- para verificação de sua sustentabilidade eco-
to adicional de conservação e são dependen- nômica, ambiental, social e cultural.
tes das políticas nacionais e regionais para Para tanto, as universidades e os centros
sua efetividade. Porém, internacionalmente, de pesquisa já estabelecidos em regiões pró-
inserem-se em um contexto maior de debate ximas seriam de suma importância na mon-
científico amplo, voltado para a conservação tagem e na consolidação de programas de
da biodiversidade e para o desenvolvimento monitoramento em longo prazo, ampliando
sustentável. o conhecimento da biodiversidade local e
A proposta da ResBios baseia-se no gran- regional. Sua contribuição também visaria à
de potencial do turismo na região, uma vez recuperação de ecossistemas do bioma do
que a área conta com grande beleza cênica Cerrado degradados por usos inadequados
e paisagens naturais impressionantes. O de- de recursos. Portanto a existência do PNCV
senvolvimento de atividades como turismo, foi considerada importante tanto do ponto
extrativismo adequado de plantas e outras de vista da promoção de atividade turística,
atividades similares sob os preceitos da sus- visando ao desenvolvimento sustentável,
tentabilidade teriam espaço para a sua apli- quanto por exercer um papel de concentra-
cação. Isso seria possível a partir da utilização dor de interesses da comunidade acadêmi-
e da valorização do conhecimento e da expe- ca. A sua designação como PNH também foi
riência da população local. Esse conhecimen- relevante para endossar a proposta de Res-
to local também seria o diferencial para o Bio (COBRAMAB, 2000).
estabelecimento de uma base de apoio logís-
tico e pesquisa na região, pois traria modelos

VOCÊ sabia?
Conselhos consultivos
das unidades de
conservação

O Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), de 2000, e o Plano


Estratégico Nacional de Áreas Protegidas, de 2006, preveem o funcionamento de conselhos
consultivos nas áreas protegidas, com a participação do poder público e da sociedade civil. O
conselho do PNCV pode ser consultado em ICMBio (2019).

142
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

3. Importância da pesquisa
para a sociobiodiversidade e a
sustentabilidade no Cerrado

Os mecanismos internacionais de con- Ainda há muito o que se compreender so-


servação dos quais o PNCV faz parte, como bre a história do PNCV, desde a sua criação
o PNH e a ResBio, são instrumentos de con- até a recente ampliação em 2017. Futura pes-
servação que podem ser utilizados não ape- quisa é essencial para esclarecer processos
nas para a conservação da biodiversidade da conflituosos e de refletir sobre como, a partir
região da Chapada dos Veadeiros, mas tam- de um conhecimento mais aprofundado des-
bém como ferramentas de apropriação e de ses processos, negociar e superar as tensões
participação da população local na tomada e os conflitos em torno de áreas protegidas.
de decisões, nos debates acerca da conser- Portanto, a partir de um maior entendimento
vação, na promoção da educação ambiental sobre a história do PNCV, é possível compre-
e na captação de recursos nacionais e(ou) ender melhor os conflitos ocorridos no pas-
internacionais para projetos de desenvolvi- sado e que permanecem ainda no presente,
mento sustentável. bem como as diversas percepções sobre a
Para isso, é fundamental que não apenas importância ou não do parque. Esse conhe-
gestores, mas também a população local te- cimento possibilita uma melhor reflexão na
nha conhecimento acerca desses instrumen- tomada de decisão, por parte de gestores
tos, bem como qual o seu significado e as e formuladores de políticas públicas, com
possibilidades de aplicação, para além de um maior conhecimento e com maiores possi-
título vazio. Esses objetivos estão expressa- bilidades de acerto e maior efetividade das
mente expostos nas resoluções da Unesco, ações propostas.
que explicitam a necessidade dos conselhos Por fim, considerando que o Cerrado é
serem formados por representantes de ins- um dos atuais hotspots de biodiversidade, o
tituições públicas, de organizações da socie- PNCV é um PNH e parte da ResBio do Cerra-
dade civil e da população residente, ou seja, do, ao mesmo tempo que há uma série de
fomenta a efetiva participação da população desafios na política nacional de conservação.
local, que comumente é excluída dos proces- Mostra-se relevante o desenvolvimento de
sos decisórios no âmbito nacional, estadual pesquisas em torno do tema, como forma
e(ou) municipal. Além disso, no debate polí- de orientar políticas públicas e delinear pos-
tico e econômico, esses instrumentos confe- sibilidades de atuação tanto do poder pú-
rem um status oficial às áreas protegidas e blico quanto da sociedade civil e do terceiro
funcionam como um elemento de dissuasão setor, com o objetivo de mitigar conflitos e
em relação a políticas de degradação am- encontrar soluções, levando em considera-
biental. ção a compatibilização entre a melhoria da
qualidade de vida das populações locais e a
conservação do ambiente natural na Chapa-
da dos Veadeiros.

143
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

REFERÊNCIAS

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são Periódica da Reserva da Biosfera do Cerrado ‒ 1994- tion priorities. Nature, v. 403, p. 853-858, 2000.
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[S. l.]: Unesco, [202-]. Disponível em: https://whc.unes-
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Brasília: ICMBio, 2019. Disponível em: https://www.
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ojs/index.php/made/article/view/16407/10887. Aces-
so em: 10 nov. 2018.

144
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

A estruturação do rol de
oportunidades de visitação no Parque
Nacional da Chapada dos Veadeiros
(GO)45
Thamyris Carvalho Andrade46
André de Almeida Cunha47

Foto: Thamyris Andrade

45 A íntegra do trabalho foi publicada originalmente na Revista Brasileira de Ecoturismo, v. 13, p. 365-392, 2020. Dispo-
nível em: https://periodicos.unifesp.br/index.php/ecoturismo/article/view/10227/7724.
46 Bacharel em Turismo, Mestre em Turismo pela Universidade de Brasília (UnB), Doutoranda do Programa de Pós-gra-
duação em Geografia da UnB. Especialista em Sociobiodiversidade e Sustentabilidade no Cerrado pelo Centro de Estudos do
Cerrado da Chapada dos Veadeiros (Centro UnB Cerrado), em Alto Paraíso de Goiás (GO). E-mail: thamyris.andrade@mail.uft.
edu.br
47 Biólogo; Doutor em Conservação e Manejo da Vida Silvestre pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor
adjunto da UnB. Atua no Centro UnB Cerrado, no Instituto de Ciências Biológicas (IB) e no Centro de Excelência em Turismo
(CET) da UnB. Email: andrecunha@unb.br

145
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

1. O que é a pesquisa?
A Chapada dos Veadeiros é uma região que visa cumprir um estratégico e importante pa-
pel de conservação do bioma Cerrado, que representa cerca de 22% do território nacional.
Destaque-se que o Cerrado é considerado um dos hotspots mundiais de biodiversidade por
apresentar abundância de espécies endêmicas e por lidar com uma perda elevada do hábitat
anualmente, portanto a sua necessidade de conservação é urgente.

VOCÊ sabia?
Em vista da urgência de serem estabelecidas áreas prioritárias para conservação ambiental
imediata, em 1988, o ecólogo conservacionista Norman Myers foi o primeiro a incluir o conceito
de hotsposts de biodiversidade no meio científico. Os denominados pontos quentes caracteri-
zam-se por abrigar um número enorme da diversidade biológica da Terra além de alto ende-
mismo de espécies, mas, em contrapartida, são também as regiões mais devastadas do plane-
ta (OLIVEIRA; PIETRAFESA; BARBALHO, 2008).

Em se tratando de uma área de grande De 625 mil hectares (quando em sua


interesse para a conservação da biodiver- criação por meio do Decreto nº 49.875, de
sidade, o Parque Nacional da Chapada dos 11 de janeiro de 1961) para 240.611 hecta-
Veadeiros (PNCV) é uma unidade de conser- res (ampliação por meio do Decreto de 5 de
vação de proteção integral (SNUC, 2000) que junho em 2017), com a expansão de sua área
exige da gestão do ICMBio uma atenção e de abrangência, cresceu também a necessi-
um comprometimento com o planejamento dade de subsídios e pesquisas que auxiliem
intenso para conciliar os interesses da con- na construção do Plano de Uso Público (PUP)
servação ambiental, das comunidades nati- da unidade.
vas e dos anseios dos praticantes do turismo
de natureza. Foto: Thamyris Andrade

146
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Nesse sentido, a pesquisa teve por ob- Para alcançar tal objetivo, valeu-se dos
jetivo geral, avaliar o rol de oportunidades seguintes objetivos específicos:
de visitação dos principais atrativos do PNCV
para subsidiar ações prioritárias de planeja-
mento de uso público.
a inventariar as diferentes oportunidades de visitação, através das
atividades existentes e potenciais do PNCV;

b classificar os atrativos por meio do método Rol de Oportuni-


dades de Visitação em Unidades de Conservação (Rovuc);

c orientar a diversificação da oferta de visitação do PNCV;

d subsidiar a construção de um PUP capaz de promover o ma-


nejo e a viabilização da diversificação das experiências de visita-
ção no PNCV.

Dessa forma, a partir dos objetivos traçados, a pesquisa desenvolve-se de modo a encontrar
caminhos e respostas para amparar a construção de um PUP eficaz e exequível para o PNCV
por meio da aplicação do método Rovuc.

VOCÊ sabia?
Esta abordagem tem por base o conceito de ROS (espectro de oportunidades recreati-
vas), um método consolidado e validado por pesquisadores e gestores desde meados do
século XX, nos parques dos Estados Unidos da América. O ROS ou Rovap pode ser utiliza-
do para diferentes objetivos, como: inventariar, planejar, avaliar ações de manejo e con-
ciliar demandas e oportunidades para a recreação em áreas naturais (CLARK; STANKEY,
1979). Assim, busca proporcionar atividades recreativas específicas para os visitantes, em
diferentes cenários ou ambientes, resultando em experiências e benefícios distintos, em
busca de atender as expectativas e satisfazer os usuários dos parques.

147
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

2. Como a pesquisa foi realizada?

N
uma perspectiva exploratória e Após a definição de uma lista de atrativos
descritiva, percorreram-se os ca- a ser trabalhada e a identificação das ativi-
minhos da pesquisa qualitativa por dades atuais e potenciais para cada um de-
meio do estudo de caso e de procedimentos les, fez-se a classificação de cada atrativo de
bibliográficos, documentais e de campo. Na acordo com os parâmetros, ou atributos do
busca pela valorização da prática do cam- Rovuc (ICMBIO, 2018).
po, buscaram-se aportes na experiência dos
guias de turismo da Chapada dos Veadeiros
em relação às suas percepções frente à reali-
dade existente no PNCV.

Nesse contexto, visando identificar, classificar e compreender a diversidade de atrativos


do PNCV, a pesquisa foi realizada em três momentos: i) planejamento dos objetivos e etapas
do trabalho; ii) reuniões de alinhamento e aprimoramento junto à equipe de uso público do
PNCV; iii) realização das oficinas. As oficinas foram realizadas em 2018 conforme o planeja-
mento a seguir.
Quadro 1: Planejamento das oficinas

OFICINA LOCALIZAÇÃO DATA PARTICIPANTES


Atrativos ao norte do Fazenda Miraflores 18/9/2018 13 participantes (4 gestores, 7 guias de
Pouso Alto turismo e 2 pesquisadores)
Atrativos ao sul do Pouso Auditório do PNCV 5/10/2018 11 participantes (3 gestores, 6 guias de
Alto turismo e 2 pesquisadores)
Elaborado por Thamyris Andrade, 2018.

Nas oficinas, coletaram-se dados relacionados a três etapas previstas no Rovuc (ICMBIO,
2018). A seguir, são detalhados os passos metodológicos para cada uma das três etapas.

2.1 Etapa I: caracterização do potencial de uso público do


Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros
A etapa de caracterização do potencial de uso público foi realizada a partir da combinação
dos principais documentos analisados para essa finalidade. Com o auxílio do Plano de Manejo
da Unidade de Conservação e do Diagnóstico da Unidade, realizados por estudantes da Univer-
sidade de Brasília (UnB), em parceria com o Laboratório de Biodiversidade e Áreas Protegidas
da UnB, foi possível contextualizar o estágio de implantação e de gestão em que se encontra o
PNCV. Dados esses que são apresentados no transcorrer deste estudo.

148
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

VOCÊ sabia?
Plano de Manejo e
PUP são documentos
diferentes

Plano de Manejo é um documento técnico elaborado por meio de diversos estudos


com o intuito de planejar a gestão e o uso sustentável dos recursos naturais no interior
de uma unidade de conservação (BRASIL, 2000).
PUP é um documento técnico não normativo e essencialmente programático que
contempla as estratégias, diretrizes e prioridades de gestão, com o objetivo de estimu-
lar o uso público, orientar o manejo, aprimorar as experiências e diversificar as opor-
tunidades de visitação na unidade de conservação (ICMBIO, 2019).

Foto: Thamyris Andrade

149
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

2.2 Etapa II: inventário dos atrativos e atividades do Parque


Nacional da Chapada dos Veadeiros

Definiu-se a escolha dos atrativos por Nessa etapa, os(as) guias tiveram a opor-
meio de um pré-levantamento realizado pe- tunidade de validar os atrativos selecionados
lo(a) autor(a) em parceria com os(as) gesto- e ainda acrescentar à lista algum outro atra-
res(as) do PNCV/ICMBio. Considerando a tivo considerado por eles/elas de alta perti-
elevada quantidade e diversidade de recur- nência, resultando em 11 locais ou atrativos
sos naturais e de beleza cênica do PNCV, se- ao norte e 16 ao sul do PNCV, conforme o
lecionaram-se apenas os atrativos com uma quadro a seguir. Cabe ressaltar que os dados
perspectiva de implementação no horizonte coletados sobre os atrativos foram obtidos
dos próximos 15 anos. No início dessa eta- a partir da participação e da experiência do
pa, houve uma reunião de alinhamento, an- grupo nas oficinas, não havendo visita in loco
tes das oficinas principais, para que, além de a esses atrativos.
elencar os atrativos a serem trabalhados, a
equipe mediadora, composta por pesquisa-
dores(as) e gestores(as) pudessem compre-
ender a metodologia de aplicação e de coleta
dos dados.
Para facilitar a aplicação do método, di-
vidiram-se os atrativos em relação à sua lo-
calização geográfica. Assim sendo, os atrati-
vos ao sul do Pouso Alto foram validados e
classificados por guias de turismo atuantes
nas cidades de Colinas do Sul e Alto Paraí-
so de Goiás, inclusive na Vila de São Jorge,
e os atrativos localizados ao norte do Pouso
Alto foram validados e classificados pelos(as)
guias de turismo atuantes nas cidades de Ca-
valcante, Teresina de Goiás e Nova Roma. O
convite aos(às) guias de turismo para a parti-
cipação das oficinas de trabalho foi feito por
parte da gestão do PNCV. Após o levanta-
mento inicial, elaborado pelos(as) pesquisa-
dores(as) e gestores(as), os atrativos listados
foram validados pelos(as) guias de turismo
no início das oficinas de trabalho.

150
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Quadro 2: Listagem dos atrativos estudados

ATRATIVOS AO NORTE DO POUSO ALTO ATRATIVOS AO SUL DO POUSO ALTO


1 Ponte de Pedra 1 Sertão Zen
2 Roncador 2 Anjos e Arcanjos
3 Fiandeiras lado norte 3 Cânions e Cariocas
4 Cruzeiro 4 Borrachudo Chapada Alta
5 Cozido 5 Macacos
6 Montes Claros 6 Jardim de Maytrea
7 Maria Teles 7 Morro da Baleia e Bailarina
8 Novo Mundo 8 Buracão
9 Santana 9 Travessia das Sete Quedas
10 Colemar 10 Saltos e Carrossel
11 Caminho dos Veadeiros 11 Simão Correia
- - 12 Abismo e Janela
- - 13 Fiandeiras lado sul
- - 14 Cachoeira do Dragão
- - 15 Barroco
- - 16 Rio Pretinho e Magic Canion

Elaborado por Thamyris Andrade, 2018.

2.3 Etapa III: oficinas para a caracterização das atividades


atuais e potenciais e para classificação dos atrativos ou
áreas de visitação

Após a consolidação da escolha dos atra- vuc (ICMBIO, 2018). Além dos atributos pro-
tivos a serem trabalhados em cada uma das postos pelo Rovuc, acrescentaram-se mais
regiões do PNCV (norte e sul), os(as) partici- seis: i) alvos prioritários para a conservação;
pantes das oficinas foram convidados a lis- ii) dificuldade de acesso; iii) grau de aceita-
tar todas as atividades existentes (atuais) e, bilidade de impactos ambientais negativos;
seguindo sua experiência, aquelas com po- iv) prevalência de aceitabilidade de impactos
tencial de ser desenvolvida em cada um dos ambientais negativos; v) grau de aceitabilida-
locais, denominados, aqui, atrativos. Na se- de de impactos sociais negativos; e vi) preva-
quência, os(as) participantes da oficina fo- lência de aceitabilidade de impactos sociais
ram conduzidos a classificar cada atrativo de negativos.
acordo com os atributos, adaptados do Ro-

151
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

3. Importância da pesquisa
para a sociobiodiversidade e a
sustentabilidade no Cerrado
3.1 Potencial de uso público da unidade de conservação
A visitação é uma das atividades de uso Além dos atrativos mencionados, o Plano
público de maior relevância prevista no Pla- de Manejo elaborado em 2009 previa ou-
no de Manejo do PNCV, e vem crescendo tros 16 atrativos, entretanto apenas um foi
constantemente. Até 2013, a visitação era implementado, a Trilha do Carrossel, aberta
condicionada à contratação de um guia de ao público em 2018. Dos outros 15 atrativos
turismo, no entanto, desde 2008, o ICMBio previstos no Plano de Manejo e não imple-
tornou facultativa a presença do guia de mentados, seis estão contemplados neste
turismo (BRASIL, 2008), o que oportunizou, estudo, auxiliando, assim, a tomada de deci-
aos(às) visitantes, a escolha de contratar ou são futura para priorização de ações de pla-
não um(a) guia/condutor(a). Essa nova con- nejamento. Com base na recente ampliação
duta é um dos fatores que pode explicar o do PNCV, a equipe gestora elaborou um novo
aumento do número de visitantes, assim Plano de Manejo, contemplando inclusive a
como o asfaltamento da rodovia (em 2014) área nova, mas este ainda não foi publicado,
que dá acesso à entrada principal do parque. e o PUP, complementar ao plano, ainda será
O Plano de Manejo em vigência é relati- elaborado posteriormente. Nesse sentido, o
vo à área anterior do PNCV, aprovado antes presente trabalho visa contribuir para esse
da ampliação de 2017, e prevê mais de uma planejamento futuro.
dezena de atrativos a serem disponibilizados
à visitação. No entanto, devido à limitação
de recursos financeiros, nem todos foram
implementados. Atualmente, cinco atrativos
estão abertos à visitação, incluindo: Saltos
e Corredeiras; Cânions e Cariocas; Trilha da
Seriema; Travessia das Sete Quedas (único
atrativo que oferece pernoite); e o mais re-
cente inaugurado, a Trilha do Carrossel.

152
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

3.2 Inventário dos atrativos e atividades existentes e


potenciais
No PNCV, existem cinco atividades inven- A partir dos resultados obtidos com a clas-
tariadas, contempladas nos atrativos abertos sificação de todos os atributos em todos os
para visitação, de acordo com os documen- atrativos, nota-se que a grande maioria dos
tos consultados e o site da instituição (ICM- atributos proporciona classes de experiên-
BIO, 2020). São elas: banhos, caminhada, cia prístina ou natural (ver gráfico a seguir).
caminhada de longo curso, visita para fins Analisando o conjunto de atributos para
educacionais e observação de fauna. cada atrativo separadamente, percebe-se
A diversidade e a quantidade de ativi- também a predominância de atributos das
dades atuais e potenciais identificadas pe- classes prístinas ou naturais. Ou seja, os
los(as) participantes para os atrativos tra- atrativos do PNCV analisados oferecem uma
balhados nas oficinas foi bem maior do que oportunidade de contato dos visitantes com
as identificadas até então nos documentos a natureza extremamente preservada, com
analisados para os cinco atrativos abertos nenhuma ou pouca intervenção humana
para visitação. Nos 16 atrativos na região sul na paisagem e nos atrativos. Alguns pou-
do PNCV, alguns com a visitação ordenada cos atrativos, tanto ao norte quanto ao sul,
e outros ainda não, identificaram-se 66 ati- apresentam alguns parâmetros classificados
vidades, das quais ao menos 43 já são rea- como seminatural ou rural, por estarem em
lizadas em algum atrativo, além de outras um contexto de paisagem mais próximo a fa-
que potencialmente podem ser realizadas zendas e áreas rurais, proporcionando dife-
em diversos atrativos. Para os atrativos ao rentes classes de experiência.
norte do Pouso Alto, ao menos 40 atividades
foram identificadas, das quais, ao menos 13,
já acontecem atualmente.

Gráfico 1: Classes de experiência obtidas a partir do Rovuc

Elaborado por Thamyris Andrade, 2018.

153
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Sobretudo os resultados indicam uma cada atrativo e com análises adicionais, con-
classificação predominantemente prístina sidera-se que a quantidade e qualidade de
para o conjunto de atrativos do PNCV, que informações sistematizadas aqui represen-
é caracterizada por uma área com a máxima tam um grande avanço e importante subsí-
conservação, mínima intervenção humana dio para a gestão do uso público na unidade
e baixa presença de visitantes, conforme a de conservação. A abordagem utilizada nes-
classificação do Rovuc. te estudo pode ser replicada para outras áre-
Realizaram-se com sucesso a aplicação as naturais no Brasil (ICMBIO, 2018). Dado o
da ferramenta do Rovuc e a identificação de detalhamento desbalanceado entre os parâ-
atividades, de acordo com as etapas estabe- metros de manejo comparado com os biofí-
lecidas para este trabalho. A parceria entre sicos e socioculturais, acredita-se que futuras
pesquisadores(as), gestores e guias locais revisões do Rovuc podem considerar maior
proporcionou aproximação, troca de experi- número de parâmetros biofísicos e sociocul-
ências e de diálogo, bem como fortalecimen- turais. Sobretudo a riqueza de informações e
to para a gestão integrada do turismo de considerações a partir dos resultados alcan-
natureza. Embora as informações resultan- çados reforçam a relevância do presente tra-
tes desse processo possam ser aprimoradas balho, conforme detalhado a seguir.
e detalhadas com trabalhos de campo em

3.3 Atividades existentes e potenciais


Existe uma gama de atividades ofertadas dade e diversidade de atividades que já são
para os visitantes do PNCV. Para os atrativos e que ainda podem ser ofertadas aos visitan-
com ordenamento do uso público trabalha- tes do PNCV.
dos nas oficinas (Saltos e Carrosel, Cânions e Os atrativos ao sul do Pouso Alto oferecem
Carioquinhas e Travessia das Sete Quedas), uma variedade maior de atividades em rela-
os(as) participantes identificaram ao menos ção aos atrativos do norte. Isso deve-se, em
15 atividades que já são realizadas atual- parte, ao fato de o portão principal da uni-
mente, número superior às cinco atividades dade ser localizado na área sul, que corres-
já catalogadas pela gestão. Assim, é preciso ponde ao eixo entre a cidade de Alto Paraíso
considerar a importância em trabalhar e criar de Goiás e a Vila de São Jorge, onde estão os
momentos de trocas de informações entre a atrativos com ordenamento do uso público.
gestão, os(as) guias e pesquisadores, o que É nesse eixo que se concentra a maior par-
traz enriquecimento e maior coparticipação te dos atrativos e do fluxo de visitantes do
para a otimização do uso público. É impor- PNCV e da Chapada dos Veadeiros como um
tante também que trabalhos futuros consul- todo. Há mais de uma década, a abertura de
tem e façam uma catalogação das atividades um portão norte para acesso ao PNCV tem
seguindo listagens já existentes (ICMBIO, sido trabalhada pelo PNCV e parceiros lo-
2020), para que seja possível padronizar e, cais, mas ainda não foi implementada. Esse
eventualmente, comparar tais números. So- acesso norte, pela cidade de Cavalcante, tra-
bretudo é surpreendente a elevada quanti- rá diversos benefícios e oportunidades para
a população local e em relação ao fluxo de
visitação do parque.

154
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

No somatório das atividades nos 11 atra- A pesquisa científica, amparada por meto-
tivos da região norte, existem 33 atividades dologias participativas, possibilitou a amplia-
existentes, 12 incipientes e 110 com poten- ção dos horizontes de discussão e trabalho
cial para serem realizadas. Já nos 16 atrati- referentes à diversificação de oportunidades
vos da região sul, listou-se um total de 112 de visitação no PNCV. Os resultados aqui al-
atividades e atrativos existentes, 141 poten- cançados são respostas aos objetivos pro-
ciais e 69 incipientes. Essa diferença no total postos no que diz respeito ao inventário das
de atividades por atrativos e na relação de diferentes oportunidades de visitação exis-
atividades existentes e atividades potenciais tentes e potenciais, à classificação desses
reflete o maior tempo de atividade do turis- atrativos, à orientação sobre a diversificação
mo na região sul, assim como o maior tem- da oferta de visitação e ainda ao auxílio na
po de exploração e de conhecimento dos(as) construção e na implantação do PUP da uni-
guias e gestores(as) sobre os atrativos dessa dade.
região. Por outro lado, o potencial da região Por meio do método utilizado, os resulta-
norte, que pode ser ainda maior, a depender dos obtidos foram capazes de identificar e
do maior conhecimento e tempo de explora- avaliar o rol de oportunidades de visitação
ção desses e de outros atrativos. dos principais atrativos do PNCV, para, as-
Por fim, cabe ressaltar que esse exercício sim, subsidiar a construção de um PUP que
preliminar foi feito para alguns atrativos se- traga elementos capazes de diversificar as
lecionados nas regiões nos arredores de Alto oportunidades de visitação de acordo com a
Paraíso, Vila de São Jorge e Cavalcante, com necessidade do público visitante e dos inte-
uma perspectiva de implementação nos pró- resses da unidade.
ximos 15 anos. No entanto diversos atrativos Para além dos objetivos propostos para
podem ser explorados, estimulados e imple- este estudo, observou-se que o trabalho par-
mentados nos arredores das cidades de Nova ticipativo dos(as) guias de turismo, em par-
Roma, Teresina de Goiás, São João d’Aliança e ceria com a gestão do parque, proporcionou
Colinas do Sul, que foram contempladas com maior riqueza e robustez às informações de
a recente expansão do PNCV (BRASIL, 2017). inventário e classificação dos atrativos, bem
Essas regiões possuem belezas cênicas e vo- como no estreitamento dos laços entre os
cações turísticas únicas e complementares atores envolvidos, com destaque para a im-
àquelas já analisadas, e são locais onde uma portância da atuação colaborativa dos(as)
das principais justificativas para a ampliação guias para a gestão da unidade. Mesmo não
do parque foi a chegada ou a ampliação do se aplicando nenhuma pesquisa relacionada
turismo e dos benefícios decorrentes. Logo à satisfação dos(as) participantes em relação
estudos como esse devem ser aprimorados às oficinas, foi possível observar o estreita-
e complementados para essas regiões, como mento dos laços entre os envolvidos e um
subsídio para elaboração do PUP do PNCV. ambiente ainda mais produtivo para o tra-
balho conjunto entre a gestão do PNCV e os
guias de turismo da Chapada dos Veadeiros.

155
SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

REFERÊNCIAS

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SOCIOBIODIVERSIDADE E SUSTENTABILIDADE NO CERRADO

Foto: Thamyris Andrade

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