Você está na página 1de 67

TANTALA

O LIVRO DOS
SUPLÍC IOS
-2-
Rogério Ivano

TANTALA
O LIVRO DOS
SUPLÍC IOS

1 ª. E di çã o

E-lectra & Kan


Londrina
2009

-3-
-4-
ADVERTÊNCIA

Estas narrativas
c onstituem os fragmen tos
restantes de um Texto maior,
que hoje se enc ontra disperso
entre as várias memórias d e
distintos períodos históric os
ac umulados em outros tempos.
Parte delas foi desc oberta
soterrada sob camadas de
lembranç as desfeitas,
disf ormes e sem data. Foi
prec iso restaurá -la até a
mínima semelhanç a, mas que
ainda sim é diferente e
irredutível à sua realidade.
Neste caso, é prec iso

-5-
ac reditar estas narrativas
c omo verossímeis. Uma outra
parte f oi rec olhida das líng uas
que restaram d aqueles tempos,
recuperadas e traduzidas antes
que se perdessem na fala
c omum dos homens. Apesar
disso, ainda sim c ertas
palavras e loc uç ões podem ter
outros sig nific ados que já não
c abe em di aleto alg um. Outras
narrativas são hipóteses, pois
apenas af eiç oam o verbo às
c ondiç ões gerais da língua,
deixando inc ert as suas
explic aç ões. Diante desses
óbic es, o leitor deve se ater às
formas inc onc lusas de c ada
história, que press upõem uma
c ompreensão outra, si m bólica
e noturna. E por esta razão, se
dispor a não c ompr eender o
que não deve ter sentido.
-6-
Desta relaç ão nasc e o
sofrim ento destas narrativas,
que é a sede ins aciada da ág ua
que sempre esc orre entre os
dedos.

-7-
TANTALA

-8-
-9-
À
s margens do caudaloso
M'Showehô, que guarda em
seu leito profundo as
últimas respostas da terra, um
homem bom encontrou um
homem mau pela prime ira vez.
Nada disseram um ao ou tro, mas
mediram-se sem demora,
detendo-se em detalhes,
observando minúcias, sinais,
como dois estr anhos que querem
manter uma íntima distância
entre si.
Sem trocar palavra, o homem
mau voltou -se para o velho rio,

- 10 -
onde lançou seu anzol
enferrujado. Na ponta havia um
naco de carne escura e
nauseabunda.
O homem bom, por sua vez,
mediu a temperatura da água,
lustrou seu anzol de aço e
enganchou nele uma orquídea
cintilante. Fez uma reve rência e
arremessou sua linha ao longe,
quase atingindo a outra ma rgem.
Assim que sua isca tocou a
superfície do rio, um pavoroso
remoinho se abriu. Dele emergiu,
feio e colérico, o grande Mabuí,
Senhor d os Espelhos D’Água.
Trazia preso entre as enormes
garras ambos os a nzóis.
Mabuí avançou sobre o homem
bom e vocif erou:

- 11 -
“A quem queres julgar quando
me oferece a beleza trivial desta
parasita ? Reino no Abismo, onde
a luz não di storce a realidade.
Dê-me seus olhos e verás muito
além de si me smo!”
O homem bo m, aflito, tapou os
olhos, mas uma força
sobrenatural dominou suas mãos,
que volt aram-se contra o rosto
arrancando furiosamente os
glóbulos. Este ndeu-os a Mabuí,
urrando de dores pavorosas.
Mabuí veio até o homem mau e
disse:
“De que queres se saciar quando
me oferece um pedaço da sua
própria carne? Reino no Abismo,
onde me farto devorando a
escuridão. Dê -me sua língua e

- 12 -
sentirás a verdadeira fome que te
consome!”
O homem mau, antes que pudesse
retrucar, cravou os dentes na
carne do membro, que rolou ao
chão contorcendo-se como um
verme agonizante. Muito
contrariado, chutou -o para dentro
do rio, cuspindo o fel que lhe
empapava a boca.
O homem bom, aflito, apoiou-se
nos ombros do homem mau e
clamou:
“Juntos seremos fortes! Se des a
minha visão que serei a tua
palavra!”
Mabuí, sarcástico, troçou dos
homens:
“Em conversa de ce go e mudo
palpita quem é su rdo!”

- 13 -
K
ahay é uma terra dese rta.
Nela cresce uma espécie de
samambaia, áspera e escura,
que cobre muitas exte nsões ao
longo das suas planícies
monótonas. Os filetes d'água
escorrem lentos e convulsos,
suscetíveis às mínimas m udanças
do clima. Morrem em pequenos
sumidouros, onde ao redor
sobrevivem coisas minúscu las,
larvas, micróbios e outras
peçonhas invisíveis. Os insetos
são muitos, ferroam, picam,
mordem, sugam. Enxa meiam os
brejos, corrompem as várzeas,

- 14 -
transformando -as em lugares
lamacentos e traiçoeiros ,
composto s pela milenar
decomposição de corpos
invertebrados.
Em Kahay a vista nunca chega.
Nada de relevante foi
testemunhado em suas fronteiras,
não há uma digna lembra nça, uma
lenda, um relato, documento,
nada. Ela existe quase como uma
abstração. Sua paisagem agride
os olhos, evoca sentimentos
pífios, cabe em duas ou três
palavras. Não desperta o menor
interesse.
Em outros tempos, Kahay era
uma incômoda presença, uma
miragem irritante. "Tomar o
rumo de Kahay" queria d izer de
alguém que estava à beira de

- 15 -
desaparecer, não mandava
notícias ou mens agens, quase não
existia.
Hoje, Kahay não é nem mesmo
um lugar fantasma. Está indic ado
apenas em velhos mapas mentais,
há muito sem manuseio. Não
assombra o d esejo de aventura, a
coragem desbravadora, nem
mesmo metáforas passageiras.
Agora Kahay nos faz lembrar
apenas uma coisa : que em suas
entranhas os ossos de homens de
um outro te mpo, ainda por vir,
irão cumprir seu destino fóssil, e
que não terão esc olha nenhuma:
ou serão co nsumidos por novos
homens, ou se mostrarão aos
nossos olhos como peças de uma
era definitivamente exti nta.

- 16 -
- 17 -
Y wtú é o último homem
de sua raça. Nascido nos
ermos de Fakda, a os
cinco anos viu a mãe s umir pela
boca de um jaguar. Aos sete,
assistiu o pai ser m oqueado num
ritual de vingança. Sobreviveu
alimentando -se dos restos e
migalhas deixados pelos
viajantes que percorriam as
picadas f echadas do lugar em que
vivia. Quando el es
desapareceram, tornou-se parte
da natureza, vivendo
indistintamente entre os bichos e
as pla ntas.

- 18 -
Levado pelos ventos, Ywtú foi
para além dos vales sombrios que
dominam as fronteiras da região.
Viajou incógnito e ntre as raízes e
os vôos noturnos. Esca pou aos
grotões, enganou as perambeiras,
cruzou as f alésias.
Mas a s contrariedades da viagem
maltrataram seu semblante,
fazendo -o repulsivo. Ao chegar
próximo às primeiras vilas, sua
presença despertou as estórias
maldosas, as crenças
intransigentes, velh as mentiras,
exageros. Pintaram-no como a um
monstro misógeno, violento,
sedento de carne h umana.
Amaldiçoado pela imaginação do
povo, começou a ser caçado como
a uma besta maligna.

- 19 -
Ywtú rapidamente tratou de se
defender, e de modo instintivo
desenvolveu estrat égias que só
um homem de sua raça seria
capaz de conseguir: ora
transformava -se num estrepe de
lenho duro e venenoso, ora no
limo traiçoeiro que cobre as
pedras úmidas. Dormia junto com
a sombra de seus perseguidores,
ou ia apagando os rastros que
deixavam, fazendo se perderem.
Com esta artimanha t ratou de
viver sem que alguém soubesse
se estava perto ou longe, dentro
ou fora.
Esta incerteza há muito
atormenta o sono dos seus
inimigos. Caç adores armados de
armas perfura ntes e animais de
faro treinado vivem a va sculhar
os recantos mais extremos do

- 20 -
lugar, dos cumes agudos até o
subsolo escuro e frio. Para
financiar a caça, muitos
arruinaram seus negócios, outros
se perderam, deixando parentes e
amigos na saudade. Muitos ainda
não retornaram, empenhado s
incansavelmente em capturar
Ywtú, vivo ou morto.

- 21 -
C ontam os

certa vez, um homem


antigos
habitantes de Abna que,

tentou de todas as maneiras


convencer o diabo a co mprar-lhe
a alma, mas nunca obteve
sucesso. Ch amava-se Qakeo e era
um sujeito insuspe ito, mesmo
comum. Não s abia domar o fogo
selvagem, construir castelos de
areia ou tornar-se invisível na
multidão.
Qakeo tudo fez para colocar a
alma à venda. Primeiro, i nvocou
nomes. Em poesias e canções,
chamou pelo cão, pelo coisa -

- 22 -
ruim, tição, tentaçã o, beiçudo,
coxo, diacho. Disse o diabo.
Pintou a fi gura dele a óleo, a
carvão, com o próprio sangue.
Pôs asas negras, chifres
flamejantes, um longo rabo
bifurcado, patas cascudas e
língua sibilante.
Mas não conseguiu chamar a
atenção, não f ez negócio algum.
Insistente, meteu-se com a
escória da sociedade. Andou com
párias e desclassificados,
mendigou, praticou pequenos
furtos, aceitou a piedade e a
comiseração alheia. Ainda aflito,
impôs a si o flagelo, deixou as
feridas abertas, não rompeu as
pústulas. Expôs todas as
cicatrizes.

- 23 -
O diabo não se deu conta, n em
notou sua feiúra.
Qakeo, sem dar trégua, tratou de
plantar boatos, blefar, emitir
falsos testemunhos. Qu is a
discórdia e a intriga dominando
cada conversa, cada par ágrafo.
Tratou de inventar menti ras,
distorcer os fatos. Traía a
confiança, revelava segredos.
Exagerava, omitia. E squeceu-se
de toda vergonha.
Em troca, recebeu dois tabefes e
um longo se rmão.
Desiludido, Qakeo reto rnou à sua
vida ordinária. Voltou aos
afazeres de sempre, a passar
pelos mesmos lugares, travar os
mesmíssimos diálogos, como se
ninguém tivesse se i ncomodado
com nada do que tinha fe ito.

- 24 -
Por fim, aceitou de vez ser
alguém desprovido de t alentos e
ambições, que não sabia nem
mesmo se dar com dinheiro ou
paixões, e que jamais havia
pensado em poder, glória ou
sabedoria.
Nunca teve nada a perder.

- 25 -
Q uando estes extensos
planaltos formavam um
intricando arquipélago,
havia uma ilha distante chamada
Nalf. E m meio à sua primordial
floresta de per obas vivia Aagic,
criatura que tinha a idade dos
dias e das noites. Embora is olada
de tudo, conta-se que s ua fama
correu o mundo, rec ebendo em
cada lugar uma versão difere nte:
ora era um regato, uma árvore,
um osso; ora uma larva, um vôo,
um parto. Teria sido inúmeras

- 26 -
outras coisas, al gumas quase
improváveis.
Ninguém sab ia da sua forma
verdadeira, mas sua existência
era certa como o claro e o escuro.
A simples menção da sua
presença desperta va profunda
curiosidade. Há quem e nxergasse
presságios e pred ições do futuro
nos vestígios deix ados por Aagic.
Há mesmo quem convers asse com
os mortos através dos sinais que
Ela deixava.
Nem todos, porém, partilhavam
do mesmo modo o mundo criado
por Aagic. Por isso, desde épocas
remotas dois grupos de homens
tinham se espalhado pela ilha à
sua procura. Um deles quer ia
encontrá -la para que respond esse
à seguinte pergun ta: “há um

- 27 -
segredo para a vida ete rna?”; o
outro queria achá-la para cometer
o seu sacrifício, pois acredita va
que desse modo viver ia a fama
eterna.
Para ajudar nas buscas por Aagic,
os homens momentaneamente
uniram-se e criaram um único
deus. Nomearam-no O Onipotente
e O Onipr esente. Atribuíram-lhe
a própria criação do mundo. Foi
dotado de um poder milagr oso,
atento ao menor gesto de fé.
Fizeram-no conhec edor de tudo o
que está além da c ompreensão.
A esse deus os homens tributaram
todas as suas forças, fazendo -o
feroz e impied oso, mesmo cruel.
Descrer dele val ia um olho, uma
mão, uma pe rna. Fazer guerra em
nome dele era sentir -se

- 28 -
abençoado, mesmo que o olho e a
perna fossem de um i rmão.
Finalmente, muitos se
sacrificaram ou foram
sacrificados para torná -lo o que
era, ou o que deveria ter sido.
Pois se ninguém duvida va da
existência de Aagic, esse deus
não convencia a todos.

- 29 -
C erta vez, uma criança
sagrada p eregrinava pelo
deserto de Wiosodo,
muito seco e feroz. Já havia
muitas gerações que ela andava
mergulhada em suas areias,
percorrendo as trilhas movediças
abertas pelos longínquos ventos
glaciais, e que desapareciam
durante a noite, afuge ntadas pelo
frio da inve rsão. Se tinha dú vidas
sobre que direção devia t omar,
estava convicta de que precisava
sempre partir.

- 30 -
Num dia terrivelmente
escaldante, a criança
surpreendeu, a poucos passos
dela, um velho. Vestia chinelas
de couro e uma grossa túnica,
que o protegia contra o a rdor do
sol.
Num ímpeto, avançou atrás do
velho, mas não foi capaz de sair
do lugar. Seus pés desmoronaram
abruptamente, como uma
montanha flácida que de repente
vem abaixo. "Neste rumo já
andei!", last imou-se ela.
Era sempre assim: quando se
encontr ava a caminhar e m chão já
pisado, seu passo vir ava arei a e
confundi a-se com os grãos do
deserto.
Pesarosa, a criança que stionou:

- 31 -
“Se eu pudesse esquecer de onde
vem e para onde vai cada rota,
mesmo a ssim eu voltaria a cruzar
com as pegadas do tempo que
cobrem este dese rto?”
Sem saber o que dizia, ficou
confusa e angustiada, até que um
rubor de vergonha queimou suas
faces.
Então, para punir-se de seu gesto
insensato, arrancou com
violência os farrapos que cobriam
seu co rpo infantil e deu as costas
aos raios do sol inca ndescente,
que penetraram na sua carne,
cozendo-a sem piedade.

- 32 -
- 33 -
H
á décadas atrás , certo
homem, por má obra do
destino, acabou por
encontrar-se consigo mesmo.
Aconteceu na região de Apaioaq,
na época em que as cidades
brotavam do dia para a noite,
como fungos venenosos. O
encontro se deu na encruz ilhada
duma cidade dessas, de nome
provisório e p opulação nômade.
Pode ter sido em Alkjas, em
Visioz, Epoir ou Odsgu, que
agora se chama Adfa.
O homem, apanhado de surpresa
diante da aparição, primeiro se

- 34 -
amedrontou, depois desconfiou.
Era demais admitir a
possibilidade de enco ntrar com
alguém que fosse ele próprio.
Face à dúvida, começou a travar
uma conversar, sem saber
exatamente se era um diálogo ou
um monólogo.
“De onde eu venho?”
“De Biozir. ” – o outro respondeu.
“Para onde vou?”
“Para Wuituss. ”
“Aonde nunca irei?”
A essa pergunta, o outro
emudeceu. O homem esgarçou um
sorriso de triunfo, convicto de
que não era ele mesmo com quem
conversava, e i nsistiu:
“Aonde nunca irei?”
O outro, atônito, balbuci ou
qualquer coisa ininteligível.
- 35 -
Fechou os punhos e com grande
fúria ava nçou sobre o homem. Os
socos e pontapés vieram, às
dezenas. Abriram feridas nos
lábios, no canto dos olhos, na
maçã do rosto, na cabeça.
Hematomas irromperam. O
homem, aterrorizado, viu -se
atropelado por uma carru agem de
cem cavalos.
“Tolo, como pode deixar de ir a
algum lugar se eu consegui te
achar?!” - vociferou o outro,
enigmát ico.
Furioso, ainda sentenciou:
“De tudo que sei, nada te custa.
Mas se enganas a ti mesmo, não
merece af irmar quem julgas ser. ”
E deu as costas, para nunca mais
ser vi sto.

- 36 -
- 37 -
N
o povoado de Biozir,
uma história
improvável, mas plena
de razão, é repetida
incessantemente. Ela não faz
justiça a uma idéia lógica ou
sensata, e ainda sim é capaz de
convencer alguém da sua
probabilidade.
A versão mais conhecida dessa
história fala de um senhor de
terras muito ganancioso, que uma
vez pa ctuou com forças sinistras
para aumentar suas riquezas.
Ganhou o p oder de transformar

- 38 -
em ouro tudo que tocava. Pagou
caro por isso, uma vez que não
podia aproximar -se de nada sem
torná -la dura e fria.
A versão mais contraditória conta
que o senhor de terras, ao se ver
amaldiçoado pela própria
ganância, arrepende u-se
profundamente e passou a andar
entre os pobres e famintos,
fazendo virar ouro as vestes
rotas, a comida escassa e até as
chagas.
A versão menos aceita diz que a
maldição do homem não era a
capacid ade de tudo transformar
em ouro, mas a sua falta de
comedimento. Queria que tudo ao
seu redor reluzisse o dourado do
metal precioso, e nada e scapava

- 39 -
às suas mãos, fosse coisa, gente
ou outra matéria qua lquer.
É improvável, certamente, usar
do toque dos dedos para fazer
ouro das coisas, mas há quem
acredite. É improvável, ta mbém,
ser o ouro o que há de mais
valioso sobre a terr a, mas muitos
julgam assim. Entretanto, é
impossível acreditar que nenhum
homem jamais sonhou em ter uma
vida dourada, mesmo sabendo da
sua total falta de probabilid ade.

- 40 -
- 41 -
Ç . e Ñ. eram irmãos, unha e
carne. Partilhavam uma
tenda no povoado sertanejo
de Erwtaus. Tudo lhes unia: o
sangue, o corpo, as lembranças
de viagem, as horas de silê ncio, a
fome e o s ono. Um existia para o
outro, e desse modo cresceram,
unidos e frate rnos.
Um dia, porém, Ç. não quis mais
partir. Deu razões, expôs os
motivos, não arredou o pé. Ñ.,
sem querer explicar o
inexplicável, arrastou o irmão
para junto de si, e seguiram

- 42 -
adiante. Mas, a partir desse
momento, Ç. passou a agir
estranhamente, tornando -se mais
reservado, mais distante. Queria
ficar sozinho, respondia por
monossíl abos, não partilhava
mais as co isas.
Porém, antes que essa rusga
íntima tivesse seu desfecho
familiar, o destino pregou uma
peça. Enquanto cruzava os
campos secos do segundo
planalto, o povoado foi
surpreendido por uma horda de
selvagens. Eles avançaram
sedentos, empunhando longas
lanças e pesados porretes. D eram
em cima de todos, mulheres,
crianças, velhos, escravos. Com
golpes brutais de uma pedra
afiada, Ñ. foi separado de Ç.

- 43 -
Quando o último fiapo de carne
foi cortado, pela primeira vez
sentiram que só a morte os unir ia
novame nte. Ñ sobreviveu. Ç., no
entanto, foi levado pelos
selvagens e tratado como tal.
Nunca mais se soube dele.
Ñ., inconformado pela perda,
transformou Erwtaus em uma
poderosa fortaleza de guerra,
armada com disciplina e ódio.
Não exagerou: muitos anos
depois, os mesmos bárbaros
caíram sobre o povoado, ainda
muito medonhos, atrás de sangue
e fêmeas.
Foi uma batalha cruel e desigual.
Os guerreiros do povoado agora
tinham paus de fogo, que
derrubavam um homem se m
alguém ter encostado um dedo.

- 44 -
Os inimigos, apenas velhas armas
tribais e o culto a heróis já
esquecidos .
No auge do massacre, Ñ.
caminhava já vitorioso pelo
campo de batalha quando, de
repente, emergiu por entre os
corpos perfurados um bárbaro
enorme e horrível. Ao olhá-lo
bem no fundo do olho, sentiu-se
imensame nte aterrorizado : quem
era senão seu próprio irmão
desaparecido, Ç. Estava bem ali,
cego de fúria, sedento por lhe
fender a cabeça. Já não mais
homem, mas uma besta -fera, com
longos dentes afiados e unhas
cortantes.
Num grande urro, Ç. avançou
contra Ñ, vibrando uma enorme
clava. Nesse instante, Ñ. viu

- 45 -
aquilo em que tinha se
transformado, e com um tiro
arrancou fora a cabeça do irmão.
Em seguida, recarregou a a rma,
mirou contra o pe ito e matou -se.
Agora, sempre que em Erwtaus se
quer medir as diferenças, de
imediato vem à mente a história
dos irmãos siameses e a triste
lição que deixaram: ninguém se
separa um do outro se as
lembranças não forem cortadas
pela raiz.

- 46 -
- 47 -
T odos os habitantes de
Oirum, lugarejo nascido
em terras da extinta Real
Vila Rica del Guayrá, possuíam
um espécime de ytwez. Velho
costume dos nativos da região,
também era adotado por todos os
recém-chegados. Por trás da
mania havia a crença de que o
animal refletia os caracteres e os
humores d e seu dono. Desse
modo, sendo o bicho um retrato
da pe rsonalidade e da posição
social de cada dono, podia -se
travar rel ações de acordo com o
comportamento d ele.

- 48 -
No princípio, os y twez cumpriam
com suas atribuições e tratavam
de bem representar seus
senhores. Um ytwez colérico não
apenas soltava fogo pela boca,
calcinando tudo à volta, mas
também transmitia doenças e
parasitas. Um ytwez manso atraía
muitas simpat ias, embora todo
privado de seus instintos
bárbaros. O adestrado era
obediente, mas estúpido.
A capacidade mimética dos
bichos encantava a todos.
Passaram a ser trat ados de modo
cortês, não raro com mimos e
dengos. Não sofriam mais
castigos nem violências, não
morriam de fome nem de
indiferença. Reinou a paz
indolente, pois os conflitos mais
humanos entre os homens já não

- 49 -
aconteciam. A menor das ru sgas
era prevista pela reação dos
animais.
Mas os ytwez, cheios de si,
começaram a tiranizar seus
senhores, descaracter izando-se
enquanto espelhos. Arrast avam-
nos aonde queriam ir, exigiam da
melhor comid a e da melhor
bebida, horas de sono, afagos,
banhos e dive rtimentos. Muitos
senhores, h umildes, declararam-
se dependentes da soberania
moral e física dos b ichos.
Foi então que surgiram as
primeiras pinturas de ytwez.
Inicialmente feitas nas paredes
de pedr a, foram depois
entalhadas em madeira,
desenhadas em papel de
cânhamo, sedas, porcelanas e

- 50 -
pingentes. Muitos of ereceram a
própria pele, deixando -a ser
perfurada por mil agulhas para a
imagem do ytwez se fazer
penetra r.
A estratégia era sub stituir um
ytwez por uma imagem sua,
evitando a tirania mas
conservando sua presença.
Nesse momento, não se sabia
mais se eram os animais que
mentiam, se eram os homens que
estavam compreende ndo errado,
ou se um não estava enganando
ao outro.
Um dia, os bichos criara m asas e
sumiram nos céus, deixando o
seu lado humano entregue a si
mesmo.

- 51 -
O s sábios de Loigaois
possuem uma dura palavra
para nomear tudo aqu ilo
que é inexplicável: onij. Quem
se ocupa de algo que não se
explica faz da vida uma inútil
onij. Pois não há um motivo justo
em se meter a saber qual o
sentido das ve stes rotas do rei,
ou a razão da existência de quem
ainda nem morreu. A que serve
conhecer razoavelmente a medida
do infinito, o significado de
palavras que ainda não nasceram,
ou o sabor da própria carne,
cozida nas brasas? Tudo in útil.

- 52 -
Certa vez, um jovem e jocoso
aprendiz quis se entreter com os
sábios : escreveu um longo
tratado chamado "Princípios do
Onij: certezas e dúvidas sobre a
concepção do inexplicável".
Citava desde os primeiros
pensadores racionais até os
iconoclastas contemporâneos.
Para se garantir, fez também
exatas referências a textos
sagrados, à tradição oral, aos
oráculos. Confrontou
documentos, esclareceu
passagens obscuras, recolheu
lendas. Pôs nome e id ade na obra
e juntou-a entre as outras que os
sábios sempre man useavam.
Logo o jovem estava a rir pelos
cantos, surpreendendo co nversas
que se fiavam do seu trat ado.

- 53 -
_Como pode alguém não saber
dar explicação para a pass agem
do tempo? - escutou pelo vão de
uma po rta.
_ É inacreditável que haja uma
explicação para a incapacidade
de alguém arrancar a vida com as
próprias mãos, se basta tê -las! -
dizia um sábio, que discutia
consigo me smo.
O aprendiz ainda garg alhava da
sua peça, quando veio a escutar o
improvável. Um j ovem sábio, já
alquebrado e triste, virou -lhe e
disse, num su ssurro:
_ Fiz da minha vida apenas uma
onij. Duvidei dela.
Surpreendido pela sinceridade da
confissão, o aprendiz abre os
braços e consola o confessor.
Não contém as lágrimas e soluça:
- 54 -
_ Culpa-me, culpa -me! Fui eu
que prime iro tive dúvidas. Sou o
autor dos "Princípios do Onij".
O sábio afasta -o, excl amando:
_ És louco! Para tudo há uma
explicação, por isso ninguém
pode duvidar primeiro. Nem
todas as respostas foram dadas,
mas todas as dúvidas já estão
explicadas. Onij existe dentro de
nós. Apenas dorme.
O aprendiz se magoa, chora mais,
e corre para os braços de outros
sábios, proclamando sua culpa.
Ninguém lhe explica o porquê,
mas acaba isolado num canto
úmido e ape rtado de um claustro
sem por ta, passando a viver junto
dos fungos e das velhas
novidades, fora do alcance das
vistas.

- 55 -
U m dia, uma caravana de
raras especiarias
estacionou em Er jgo, uma
daquelas cidades mortas do
planalto de Jaael. Estavam a
caminho das afortunadas terras
do norte, onde as novas
povoações brilhavam
eletricamente à noite e tudo se
pagava com sacas de o uro.
Em tonéis e fardos, os
mercadores traziam essências,
ervas, óleos; em pequenos
baús e bolsos secretos,
escondiam os venenos, os
remédios e as drogas.

- 56 -
Todos em Erj go cobiçaram a
valiosa carga. Cada qual em sua
ambição tratou de espreitar os
forasteiros. Cada um
compreendeu o que o outro
desejava. Mancomunaram-se,
armaram-se, e numa noite
obscura caíram ferozes s obre a
caravana, que foi massacrada e
pilhada.
O povoado se regalou com o rico
butim. Fez festas de muitas
noites, relembrou velhas
cerimônias pagãs, experimentou
fartamente de tudo. Sentiram
novos sabores, viram novas
cores, tiveram sonhos irreais,
criaram novas palavras.
Reinventaram o próprio nom e,
das pessoas, das co isas e animais.
Descreveram paisagens que não
existia naquele lugar e em lugar

- 57 -
algum. As noites brilh aram até o
sol ficar a pino.
A vida foi esbanjada de maneira
impetu osa, como nunca houvera
sido antes. Combinaram óleos
com ra ízes, drogas e conservas,
pós e licores. C ada nova mistura
era batizada com algazarra e
sagacidade, pois prometia uma
vertigem inimaginável, mas
ansiosamente esper ada.
Quando uma outra caravana
aportou em Erjgo, os habitantes
louvaram os céus e se
bendisseram da sorte.
Acreditaram tratar-se de alguma
dádiva, que não sabiam por que a
mereciam, mas que devia ser
agradecida até pelo último
homem da cidade.

- 58 -
Em seu delírio, não viram que se
tratava de um bando de
saqueadores, sedentos por
qualquer coisa que pudessem
levar embora. Arrombaram,
tomaram, roubaram. Quando
encontraram os restos da
mercadoria da caravana
assaltada, exigiram mais. Mas,
não havia mais. Não acreditaram.
Vasculharam, exigiram, e só
foram embora quando torturaram
o último habitante da cidade ,
conve ncendo-se de que ninguém
sabia de mais n ada.
Erjgo não sofreu com o assalto
tanto como com a perda das
sustâncias usurpadas. Sem o uso
delas, não se sabia o que fazer da
confusão que havia se criado,
palavras, sonhos e pais agens que

- 59 -
só tinham sentido quand o usadas
com as misturas ce rtas.
Arruinados, sem condições de
recomeçar nada, pois esqueceram
sua história, os habitantes
esperaram. Durante anos ficaram
ansiosamente aguardando a
chegada de uma outra caravana,
abarrotada daquelas me rcadorias
preciosas. Mas ela não veio.
Mudaram Erjgo de lugar, uma,
duas, várias vezes, sempre à
espera do e ncontro, do assalto,
das vertigens. Instalavam-se
próximo a cidadelas moribundas,
que se recusa vam a transformar-
se em lugares definitivamente
mortos.
Da última vez que avistara m a
cidade, ela havia se perdido nos
campos de Fakla, vagando dias e

- 60 -
noites sem norte. Pensaram
mesmo que o destino a havia
aband onado.

- 61 -
- 62 -
E
m Lashna, todo homem
enterra metade da sua
geração. Mas o que deveria
ser uma lei da natureza, lóg ica e
inviolável, é uma h erança da qual
ninguém consegue abrir mão.
Porque nesse lugar, quem v ive é
sempre aquele que sobrevive
além do seu tempo. Não há
benção nem exceção, mas um
destino inexplicável. Em Lashna,
pais enterram filhos, os
padrinhos sepultam os afilhados,
os avós choram os netos, que
invariavelmente vão cedo, sem
deixar descendência. Não há
- 63 -
lenda ou mistério que tenha
salvado alguém desta sina.
No princípio, quando os
habitantes eram surpreendidos
pelos óbitos incomuns e
inevitáveis, não havi a o que
pudesse justiçar essa
circunstância da vida . A morte
foi mesmo amaldiçoada e
esconjur ada, tratada como uma
entidade fria e traiçoeira, incapaz
de pe rdão e misericórdia. Mas
isso não bastou para afastá -la
junto dos filhos e netos.
Depois, conformados com a sua
persistência e regularidade,
inventaram outras razões para a
sua presença indevida. A
primeira delas garantia tratar -se
de uma maldição divina, que
assolaria todas as gerações

- 64 -
futuras de Lashna. Mas a
calamidade l ogo foi
desacreditada, pois co mprometia
todo o fut uro.
Pesquisaram e pensaram ter
encontrado a causa numa doença
heredit ária, que condenava todo
aquele provido de certos
sintomas mortais. Sábios e
doutos davam o vaticínio,
interpretando funestamente as
febres e chagas derr adeiras. Mas
as exceções vieram, a cura
acontecia e a mais terrível
moléstia não garantia o fim de
ninguém.
Sem encontrar razão nos céus
nem no próprio corpo, a morte
encontrou consolo no
pensamento. Todos em Lashna
sabem e xplicar a teoria do c iclo

- 65 -
imperfeito que orga niza o ritmo
da vida. Diz ela que nada ne ste
mundo tem um fim em si mesmo,
pois tudo muda, entra em
metamorfose, e as respostas
variam conforme a perspectiva d o
alheio. Portanto, para cada um
que enterra seu próxi mo, basta
refletir sem escrúpulos até
renegar sua condição de pai ou
avô, mãe ou madrasta.
A história de Lasha é amplamente
conhecida por toda a região . Os
mais sagazes , entretanto, logo
advertem que este lugar não pode
existir, pois se quem enterra
aquele que deveria morrer
primeiro, todos est ariam e xtintos
no prazo de uma única geração.
Embora o raciocínio seja óbvio,
não explica a persistência dos

- 66 -
enterros. Eles hão de continuar,
pois n inguém jamais lá nasceu.

- 67 -

Você também pode gostar