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ANÁLISE E COMPARAÇÃO DE TEXTOS

Propomos a leitura de três versões da conhecida fábula “A cigarra e a


formiga”. A seguir, apresentamos, a título de exemplo, um exercício de análise e
comparação desses textos, o qual organizamos da seguinte forma:
1) Primeiro, analisamos brevemente cada texto, com observações sobre o
aspecto formal e semântico dos mesmos.
2) Segundo, apresentamos considerações sobre as semelhanças e diferenças
entre os textos, do ponto de vista formal e semântico, e refletimos sobre as
implicações dessas diferenças para o sentido global dos textos e para o efeito deles
sobre o público a que se destinam.
Lembramos que o procedimento em questão é apresentado como uma
possibilidade, e não como uma receita que deva ser rigorosamente seguida.
Dependendo do texto em análise e dos objetivos propostos, outros procedimentos
podem ser adotados.

TEXTO 1
A cigarra e a formiga
Esopo

Num belo dia de inverno as formigas estavam tendo o maior trabalho para secar
suas reservas de comida. Depois de uma chuvarada, os grãos tinham ficado
molhados. De repente aparece uma cigarra:
– Por favor, formiguinhas, me deem um pouco de comida!
As formigas pararam de trabalhar, coisa que era contra seus princípios, e
perguntaram:
– Mas por quê? O que você fez durante o verão? Por acaso não se lembrou de
guardar comida para o inverno?
Falou a cigarra:
– Para falar a verdade, não tive tempo, passei o verão todo cantando!
Falaram as formigas:
– Bom... Se você passou o verão todo cantando, que tal passar o inverno
dançando? E voltaram para o trabalho dando risadas.
Moral da história:
Os preguiçosos colhem o que merecem.

TEXTO 2
A cigarra e a formiga
La Fontaine (tradução de Bocage)
Tendo a cigarra em cantigas
Folgado todo o verão,
Achou-se em penúria extrema
Na tormentosa estação.
Não lhe restando migalha
Que trincasse, a tagarela
Foi valer-se da formiga,
Que morava perto dela.
Rogou-lhe que lhe emprestasse,
Pois tinha riqueza e brio,
Algum grão com que manter-se
Té voltar o aceso estio.
A formiga nunca empresta,
Nunca dá, por isso junta.
“No verão em que lidavas?”
À pedinte ela pergunta.
Responde a outra: “Eu cantava
Noite e dia, a toda a hora.”
“Oh! Bravo!”, torna a formiga,
“Cantavas? Pois dança agora!”

TEXTO 3
A cigarra e a formiga boa
Monteiro Lobato

Houve uma jovem cigarra que tinha o costume de chiar ao pé dum formigueiro. Só
parava quando cansadinha; e seu divertimento então era observar as formigas na
eterna faina de abastecer as tulhas.
Mas o bom tempo afinal passou e vieram as chuvas. Os animais todos, arrepiados,
passavam o dia cochilando nas tocas.
A pobre cigarra, sem abrigo em seu galhinho seco e metida em grandes apuros,
deliberou socorrer-se de alguém.
Manquitolando, com uma asa a arrastar, lá se dirigiu para o formigueiro. Bateu –
tique, tique, tique…
Aparece uma formiga friorenta, embrulhada num xalinho de paina.
– Que quer? – perguntou, examinando a triste mendiga suja de lama e a tossir.
– Venho em busca de um agasalho. O mau tempo não cessa e eu…
A formiga olhou-a de alto a baixo.
– E o que fez durante o bom tempo, que não construiu sua casa?
A pobre cigarra, toda tremendo, respondeu depois de um acesso de tosse:
– Eu cantava, bem sabe…
– Ah! … exclamou a formiga recordando-se. Era você então quem cantava nessa
árvore enquanto nós labutávamos para encher as tulhas?
– Isso mesmo, era eu…
– Pois entre, amiguinha! Nunca poderemos esquecer as boas horas que sua
cantoria nos proporcionou. Aquele chiado nos distraía e aliviava o trabalho. Dizíamos
sempre: que felicidade ter como vizinha tão gentil cantora! Entre, amiga, que aqui
terá cama e mesa durante todo o mau tempo.
A cigarra entrou, sarou da tosse e voltou a ser a alegre cantora dos dias de sol.
Breve análise dos textos
No texto de Esopo, a narração da história é seguida de uma moral. Como
personagens, aparecem a cigarra e as formigas. A ação se passa em lugar não
definido, num dia de inverno, e enfatiza o trabalho das formigas (a palavra
trabalho/trabalhar aparece três vezes no texto). As formigas são caracterizadas
como criaturas trabalhadoras, qualidade valorizada pelo narrador, o que é
evidenciado pela ênfase que ele dá a essa característica das formigas (“estavam
tendo o maior trabalho...; “pararam de trabalhar, coisa que era contra seus
princípios”) e também pelo juízo expresso na moral acerca dos “preguiçosos”,
representados na fábula pela cigarra. Já a cigarra, sendo uma “preguiçosa”, é
apresentada como sendo merecedora não só da situação de penúria em que se
encontra, como também do escárnio das formigas, que voltam ao trabalho “dando
risadas”.
A fábula põe em cena duas posturas distintas: a do trabalhador preocupado
com o futuro, e a daquele que não se preocupa. Embora, na visão das formigas e do
narrador, a cigarra apareça como uma desocupada, na visão da própria cigarra isso
não se confirma, pois ela diz que “não teve tempo” de guardar a comida porque
passou “o verão todo cantando”, ou seja, passou o verão ocupada com a sua arte.
Todavia, na fábula, essa atividade não é valorizada e nem sequer reconhecida como
um trabalho, por isso a cigarra é caracterizada como preguiçosa. Assim, a fábula
valoriza o trabalho que gera acumulação material.
A versão de La Fontaine é escrita em vinte versos distribuídos em cinco
quartetos. O episódio narrado se passada no inverno (“Na tormentosa estação”),
havendo referência à ação da cigarra no verão anterior, período no qual esta folgou
e cantou o tempo todo, tendo, como consequência, a situação de penúria na estação
seguinte. A caracterização da cigarra como criatura inconsequente e despreocupada
é enfatizada, como se pode observar, nas duas primeiras estrofes (versos 1 a 8). A
formiga é caracterizada como criatura rica e briosa (v. 10) que “nunca empresta,
nunca dá, por isso junta” (v 13-14). Diferentemente da versão anterior (Texto 1), esta
não apresenta moral explícita, embora, implicitamente, evidencie uma reprovação à
atitude da cigarra, que não foi diligente e precavida como a formiga. Observe-se que
aqui “formiga” está no singular, referindo-se a um único indivíduo. Não há ênfase no
trabalho, e sim na posse: a formiga não trabalha, pois já é rica. Assim, a fábula põe
em evidência duas situações: a do indivíduo que já tem e não o dissipa (não
empresta nem dá); e a do indivíduo que não tem e por isso deveria trabalhar para
ter, em vez de “folgar em cantigas”.
No texto de Lobato, há igualmente referência a dois tempos: um tempo bom
(de sol) e um mau tempo (de chuvas). A cigarra, desde o início, é considerada com
simpatia por parte do narrador, o que se evidencia nos adjetivos usados para
caracterizá-la e também nos diminutivos, que acentuam o tom afetivo: “jovem
cigarra”, “pobre cigarra”, “triste mendiga”, “alegre cantora”, “cansadinha”, “sem
abrigo em seu galinho seco”. Na voz da formiga, igualmente a cigarra é vista com
simpatia: “amiguinha”, “Tão gentil cantora”. Veja-se que a cigarra “só parava quando
cansadinha”, e seu divertimento não reside então em sua própria cantoria, e sim em
“observar as formigas na eterna faina de abastecer as tulhas”. Diferentemente das
versões anteriores, nesta, a ação da cigarra não é vista como diversão
inconsequente, mas como uma atividade importante, capaz de “aliviar” o trabalho da
formiga, que reconhece o valor da ação da cigarra e retribui acolhendo e cuidando
da vizinha. Dessa forma, a arte da cigarra é valorizada como um bem necessário,
tão importante quanto o trabalho da formiga. Na verdade, o canto da cigarra,
associado ao lazer/prazer, é positivado na fábula, enquanto o trabalho aparece como
algo custoso que exigiria um alívio, proporcionado, nesse caso, pelo gentil canto da
cigarra.

Considerações
Inspirado em Esopo, La Fontaine manteve o sentido geral do texto,
recriminando a atuação da cigarra, vista em ambos os textos como uma folgazã
inconsequente. A principal diferença entre os textos 1 e 2 reside na forma (o primeiro
em prosa e o segundo em versos), diferença que pode interferir na apreensão do
sentido da fábula, especialmente por parte da criança, que ainda não se apropriou
totalmente dos mecanismos de composição dos textos. Dessa forma, o texto poético
pode oferecer mais dificuldade para certos leitores iniciantes, devido ao ritmo
diferenciado, a ordem indireta das frases, o seccionamento dos versos, que dificulta
o encadeamento das ideais, etc. Contudo, a sonoridade do poema pode constituir
fator de interesse, já que as rimas e as repetições costumam chamar a atenção dos
pequenos leitores. Um outro aspecto interessante, que aparece tanto na versão em
prosa quanto na versão em versos, é o humor sarcástico, presente na fala final da
formiga. Jogando com o duplo sentido do verbo “dançar” (que pode significar “dar-se
mal”), a fábula mobiliza a competência linguística da criança, que precisa associar o
“dançar” primeiro com o “cantar” (enquanto atividade artística), e depois com a “dar-
se mal”, para daí alcançar o efeito de humor.
Em termos de sentido, as duas versões criticam o indivíduo que não é
precavido e que perde tempo com distrações enquanto deveria se ocupar em
garantir o futuro. Veja-se que a dimensão estética da vida humana, representada
aqui pela atuação da cigarra, não é valorizada, e sim a dimensão material, a
produção e acúmulo de bens. Além disso, valores como a solidariedade, a caridade
e a gratidão estão ausentes nos dois primeiros textos.
Bem diferente é a abordagem do terceiro texto, que inverte a lógica dos outros
dois, valorizando a arte e atribuindo a ela um papel de relevo na sociedade.
Textualmente, isso é feito de uma maneira que surpreende o leitor conhecedor da
fábula original, pois o diálogo inicial ente as duas personagens leva a supor que o
desfecho será o mesmo. Veja-se que a postura da formiga e até as perguntas que
faz à cigarra são semelhantes nas três versões. O texto de Lobato conta com esse
conhecimento prévio do leitor e promove uma ruptura na última fala, onde a formiga,
em vez de escarnecer a cigarra, como nos textos anteriores, solidariza-se com ela
em agradecimento pelos bons momentos proporcionados por sua cantoria. Nesse
caso, perde-se o efeito de humor, que é substituído pelo efeito surpresa, alcançado
pela quebra da expectativa.
No que se refere ao sentido global, pode-se dizer que o texto aposta na
solidariedade entre atividades/atitudes diferentes mas complementares: a atividade
laboral da formiga e a atividade artística da cigarra. Dessa forma, a fábula de Lobato
resguarda o lugar da arte e do lazer, equilibrando as dimensões estética/lúdica e
material da existência. Implicitamente, o texto também veicula uma crítica à postura
da formiga nos textos anteriores. Qualificando a sua personagem como “a formiga
boa”, o autor a contrapõe às outras, emitindo, indiretamente, um juízo de valor
também em relação a essas: as formigas dos outros dois textos, por oposição,
seriam as “formigas más”. Dessa forma, o texto de Lobato sinaliza qual seria a
postura ideal a ser imitada pela criança: a da formiga boa – grata, solidária e
caridosa, que valoriza igualmente a arte e o trabalho.

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