Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
net/publication/275580449
CITATIONS READS
0 366
2 authors, including:
SEE PROFILE
Some of the authors of this publication are also working on these related projects:
All content following this page was uploaded by Lucas Catib De Laurentiis on 28 April 2015.
Roberto Dias
Doutor em Direito do Estado pela PUC-SP. Professor de Direito Constitucional da PUC-SP.
Coordenador da Graduação da FGV Direito SP.
Lucas De Laurentiis
Mestre em Direito Constitucional pela USP. Doutorando em Direito Constitucional pela USP
e Albert-Ludwigs Universität. Pesquisador convidado do Instituto Max Planck em Freiburg.
Introdução
Pretendemos, neste artigo, analisar como o Supremo Tribunal Federal, no
Brasil, e o Tribunal Constitucional Alemão têm, ao longo do tempo, decidido questões
que envolvam a liberdade de reunião, como elemento essencial à preservação da
democracia.
A democracia, como lembra Norberto Bobbio,1 tem uma regra procedimental
básica: as decisões devem se dar pelo consenso da maioria. Trata-se de uma –
mas não a única – regra que pretende dar legitimidade ao regime. Mas exatamente
por prever o consenso da maioria, há um pressuposto lógico: a existência de uma
minoria que se opõe ao grupo majoritário. Assim, uma democracia, em que vigora o
1
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Trad. Marco Aurélio Nogueira. 4. ed.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, especialmente p. 41 e seguintes.
R. bras. Est. const. – RBEC | Belo Horizonte, ano 8, n. 30, p. 649-669, set./dez. 2014 649
2
NOVAES, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra, 2006, p. 33-35.
3
DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: uma leitura moral da Constituição norte-americana. Tradução de
Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 319.
4
BERLIN, Isaiah. Dois conceitos de liberdade. In: Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios.
Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 259.
650 R. bras. Est. const. – RBEC | Belo Horizonte, ano 8, n. 30, p. 649-669, set./dez. 2014
5
A Constituição de 1891, vigente à época, previa, em seu art. 72, §§8º e 12, o seguinte: “§8º – A todos é
lícito associarem-se e reunirem-se livremente e sem armas; não podendo intervir a polícia senão para manter
a ordem pública”. “§12 – Em qualquer assunto é livre a manifestação de pensamento pela imprensa ou pela
tribuna, sem dependência de censura, respondendo cada um pelos abusos que cometer nos casos e pela
forma que a lei determinar. Não é permitido o anonimato”.
6
Lembre-se que, em função da redação ampla do §22, do artigo 72, da Constituição de 1891 e da defesa
ardorosa de Rui Barbosa a favor da efetividade das garantias individuais – defesa essa verificada sobretudo nas
sustentações dos Habeas Corpus nº 300, relator Ministro Costa Barradas, j. 30 de abril de 1892 (Estado de
sítio), e Habeas Corpus nº 406, relator Ministro Barros Pimentel, j. 2 de agosto de 1893 (Jupiter) –, desenvolveu-
se no Brasil a denominada “doutrina brasileira do Habeas Corpus”, identificada pela aplicação dessa garantia
constitucional à defesa de todo e qualquer direito constitucionalmente protegido – não só à liberdade de
locomoção. Essa peculiaridade da época explica o cabimento do Habeas Corpus na defesa do direito à liberdade
de reunião. A aprovação da Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926, que limitou o cabimento do
Habeas Corpus e criou o Mandado de Segurança, alterou essa configuração das garantias constitucionais.
7
Lembre-se que, quanto ao aspecto espacial do exercício da liberdade de reunião, a Lei nº 1.207/1950,
aprovada em pleno regime getulista, afirmava em seu artigo 3º caber à autoridade policial de maior categoria
(sic) da localidade, ao começo de cada ano, fixar as praças destinadas a comício. Tal limitação, de duvidosa
constitucionalidade, tem sido aplicada em períodos eleitorais com base na remissão do artigo 254, §1º, do
Código Eleitoral brasileiro, mas também em períodos não eleitorais, em razão de portarias de delegacias de
política regionais. No Estado de São Paulo, há inúmeros exemplos dessa natureza. O diário oficial de 14 de
R. bras. Est. const. – RBEC | Belo Horizonte, ano 8, n. 30, p. 649-669, set./dez. 2014 651
março de 2014 apresenta diversos desses casos: nele, são encontradas portarias de Delegacias delimitando
os locais em que a manifestação pública está autorizada nos Municípios de Presidente Prudente, Caraguatatuba,
Ilha Bela, Ubatuba, entre outros. Isso mostra o descompasso entre a teoria, que em geral reconhece que tal
possibilidade de limitação do exercício do direito de reunião não foi recepcionada pela ordem constitucional
instituída em 1988, e a prática institucional, que, sem maior reflexão e controle, aplica conceitos e instrumen-
tos de alta carga autoritária.
8
No acórdão, há menção ao art. 141, §§5º, 11 e 12, da Constituição de 1946, assim redigidos: “§5º. É livre a
manifestação do pensamento, sem que dependa de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas,
respondendo cada um, nos casos e na forma que a lei preceituar pelos abusos que cometer. Não é permitido
o anonimato. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros e periódicos não dependerá de licença
do Poder Público”. “§11. Todos podem reunir-se, sem armas, não intervindo a polícia senão para assegurar a
ordem pública. Com esse intuito, poderá a polícia designar o local para a reunião, contanto que, assim proce-
dendo, não a frustre ou impossibilite”. “§12. É garantida a liberdade de associação para fins lícitos. Nenhuma
associação poderá ser compulsoriamente dissolvida senão em virtude de sentença judiciária”.
9
Vale lembrar que a Constituição de 1967, com EC nº 1/1969, no art. 153, §27, estabelecia o seguinte:
“Todos podem reunir-se sem armas, não intervindo a autoridade senão para manter a ordem. A lei poderá
determinar os casos em que será necessária a comunicação prévia à autoridade, bem como a designação, por
esta, do local da reunião”.
652 R. bras. Est. const. – RBEC | Belo Horizonte, ano 8, n. 30, p. 649-669, set./dez. 2014
10
Isso não significa que constituições promulgadas não tenham empregado conceitos indeterminados como
estes. Basta ver, por exemplo, o já citado art. 141, §11, da Constituição de 1946: “§11. Todos podem reunir-
se, sem armas, não intervindo a polícia senão para assegurar a ordem pública. Com esse intuito, poderá a
polícia designar o local para a reunião, contanto que, assim procedendo, não a frustre ou impossibilite”. Sobre
a liberdade de reunião e os conceitos indeterminados, Leonardo Martins assevera: “Muito levianos podem se
revelar argumentos baseados exclusivamente na proteção de conceitos jurídicos indeterminados como ‘ordem
pública’” (MARTINS, Leonardo. ADPF 187/DF: ‘Marcha da Maconha’, in Robério Nunes dos Anjos Filho (org.).
STF e Direitos Fundamentais: diálogos contemporâneos. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 302).
11
Art. 5º, inciso XVI.
12
Na verdade, foram três Decretos, o de nº 20.007, de 14 de janeiro de 1999, o de nº 20.010, do dia 20 do
mesmo mês, e o de nº 20.098, de 15 de março daquele ano. O primeiro vedava a realização de manifestações
públicas nos locais que indicava, exceto as de caráter cívico-militar, religioso e cultural. O segundo decreto,
que revogou o anterior, não especificava a natureza das manifestações, mas impedia que elas ocorressem nos
mesmos locais “com a utilização de carros de som ou assemelhados”. E o terceiro proibia “a realização de
manifestações públicas, com a utilização de carros, aparelhos e objetos sonoros na Praça dos Três Poderes,
Esplanada dos Ministérios e Praça do Buriti e vias adjacentes”, revogando as disposições em contrário.
13
Como o nome indica, é a praça onde se localizam o Palácio do Planalto (Executivo), o Congresso Nacional
(Legislativo) e o Supremo Tribunal Federal (Judiciário).
14
Na Praça do Buriti está o Palácio de mesmo nome, que é a sede do Governo do Distrito Federal.
R. bras. Est. const. – RBEC | Belo Horizonte, ano 8, n. 30, p. 649-669, set./dez. 2014 653
15
O Ministro desconsidera que, formulada em termos tão gerais e inespecíficos, essa questão tem pouco senti-
do. Isso porque, se é evidente que uma manifestação que requeira a diminuição de tarifas de trens e ônibus
não deve ser realizada em frente a um Hospital, a questão não é tão clara quando a manifestação busque
a melhoria do atendimento de saúde prestado naquele Hospital em específico. Fora isso, a proibição dessa
última manifestação pode ter a finalidade específica de proteger a saúde de pessoas doentes, mas também
a simples proteção do patrimônio particular, ou do local em que se localize o Hospital. Tudo isso indica que a
ação dos manifestantes pode ter significados variados, que são protegidos pela ordem constitucional também
de forma variada. Igualmente, o comportamento do Poder público frente a essas diversas formas de manifes-
tação terá significados e parâmetros de legitimidade variados em função dos direitos que se encontram em
conflito e da necessidade do uso da força pública. Ou seja, afirmar, como faz o Ministro Nelson Jobim, que a
liberdade de reunião não é um direito absoluto e que, por isso, admite relativizações, é simplesmente afirmar o
óbvio: o direito fundamental e a extensão de sua proteção, categorias e grandezas que devem ser trabalhadas
e delimitadas em cada situação concreta. Finalidade essa que só pode ser realizada por um trabalho analítico
e dogmático minucioso, não com questões gerais e retóricas, cuja resposta é tão certa, que torna a própria
necessidade do questionamento duvidosa.
16
No julgamento do mérito, em 2007, o STF, parcialmente com outra formação, reiterou o entendimento exposto
na Medida Cautelar. É verdade que o relator, Ministro Ricardo Lewandowski, deu mais ênfase à violação
654 R. bras. Est. const. – RBEC | Belo Horizonte, ano 8, n. 30, p. 649-669, set./dez. 2014
da proporcionalidade pelo decreto, e o Ministro Eros Grau apontou a inconstitucionalidade formal, pois as
restrições não poderiam ser veiculadas por decreto, mas apenas por lei.
17
Aliás, Celso de Mello, ainda na vigência da Constituição de 1967, com a Emenda nº 1/69, já desenvolvia a
ideia de direito-fim e direito-meio. O mesmo autor, acerca do status negativo e positivo do direito de reunião,
mencionava que, em regra, não cabe à autoridade pública intervir no exercício do direito de reunião, exceto
para garantir o seu exercício pelos indivíduos, para dissolvê-la se forem ilícitas e para preservar a ordem
pública (O direito constitucional de reunião, in Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo, v. 12, nº 54, p. 19-23, set.-out. 1978). Para uma análise crítica do acórdão proferido na ADPF
187, ver: MARTINS, Leonardo. ADPF 187/DF: ‘Marcha da Maconha’, in FILHO, Robério Nunes dos Anjos
(org.). STF e Direitos Fundamentais: diálogos contemporâneos. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 277-305. Este
autor concorda com a decisão do STF, que reconheceu a liberdade de reunião no caso de manifestação pela
descriminalização da maconha. Mas discorda da admissão da ADPF e do uso da “interpretação conforme a
Constituição como técnica de modulação de efeitos da coisa julgada” (p. 284 e 285).
18
Celso de Mello, no texto mencionado na nota anterior – publicado durante o regime militar e na época em que
ainda não era ministro do STF –, argumentava que a “assembleia destinada a promover propaganda de guerra,
processos violentos para subverter a ordem política e social, fomentar preconceitos de raça ou de cor, ofender
os bons costumes, ameaçar a ordem pública, menosprezar a dignidade e os brios nacionais, perturbar a paz
e causar desordem à tranquilidade pública, por exemplo, será considerada ilícita, sendo, assim, justa a sua
proibição” (O direito constitucional de reunião, in Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo, v. 12, nº 54, p. 19-23, set.-out. 1978). Já durante a vigência da Constituição de 1988, Fernando
Dias Menezes de Almeida argumenta: “Assegurar o direito de os indivíduos reunirem-se nada tem a ver, em
tese, com vedar-lhes a prática de racismo. Mas, se ao reunirem-se e manifestarem ideias, os indivíduos
cometem atos de racismo, tal conduta há que ser cindida, de modo que cada parte dela sujeita-se à prescrição
R. bras. Est. const. – RBEC | Belo Horizonte, ano 8, n. 30, p. 649-669, set./dez. 2014 655
Mas o STF se restringiu a decidir a questão que foi posta e analisou apenas a
constitucionalidade das manifestações que pregam a legalização do uso de drogas.
De qualquer forma, a nosso ver, o Estado não deveria proibir uma reunião com o
propósito de modificar uma lei criminalizadora de certa conduta, por mais que alguns
comportamentos sejam fortemente reprováveis. Não importa se o direito de reunião
se dá para reivindicar a revogação de uma lei que criminaliza o aborto, o consumo de
drogas, a pedofilia, a pederastia,19 a homossexualidade, o ato obsceno, o roubo, o
furto, a corrupção ou o dano ao patrimônio público.20 Como já mencionamos, citando
Dworkin, nem a maioria dos cidadãos nem o governante tem o direito de decidir o que
estamos aptos a ouvir. Isso seria infantilizar a população e os próprios governantes,
que não teriam capacidade de, ouvindo opiniões, decidir o que é certo ou errado.
de cada norma. Nem da norma que assegura a liberdade de reunião decorre que se possa praticar o racismo,
nem da norma que proíbe o racismo decorre que não seja lícito reunir-se” (Liberdade de Reunião. São Paulo:
Max Limonad, 2001, p. 233 e 234).
19
O Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001/69) prevê, no art. 235, o seguinte: “Pederastia ou outro ato de
libidinagem – Art. 235. Praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual
ou não, em lugar sujeito a administração militar: Pena – detenção, de seis meses a um ano”. Em 2013, o
Procurador-Geral da República ingressou no Supremo Tribunal Federal com Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF 291, Relator Ministro Roberto Barroso) para obter a declaração de não recepção
do referido art. 235 pela Constituição Federal de 1988. A ADPF ainda não foi julgada.
20
A discussão a respeito do conceito do direito de liberdade aflora nesse ponto. Vale lembrar que a primeira
parte do art. 4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, já previa que a “liberdade
consiste em poder fazer tudo o que não prejudique o próximo”. Kant, nessa mesma linha, definia a lei universal
do direito da seguinte forma: “age externamente de modo que o livre uso de teu arbítrio possa coexistir com
a liberdade de todos de acordo com uma lei universal”. E continuava dizendo que tal lei “é verdadeiramente
uma lei que me impõe uma obrigação, mas não guarda de modo algum a expectativa – muito menos impõe
a exigência – de que eu próprio devesse restringir minha liberdade a essas condições simplesmente em
função dessa obrigação” (KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Trad. Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 2003,
p. 77). Para Isaiah Berlin, o sentido negativo de liberdade deve ser alcançado quando se responde à seguinte
pergunta: “qual é a área em que uma pessoa ou um grupo tem permissão de fazer ou ser sem a interferência
de outras pessoas?” (Dois conceitos de liberdade, p. 229). Na definição de Norberto Bobbio, por “liberdade
negativa” deve-se entender “a situação na qual um sujeito tem a possibilidade de fazer ou de não fazer,
sem ser obrigado a isso ou sem que o impeçam outros sujeitos” (Igualdad y libertad. Trad. de Pedro Aragon
Rincón. Barcelona: Paidós, 1993. p. 97). A liberdade negativa pressupõe, então, a ausência de impedimento,
ou seja, a possibilidade de fazer. Mas também supõe a ausência de constrição, isto é, a possibilidade de
não fazer (BOBBIO, Norberto. Igualdad y libertad, p. 97). Essa forma de liberdade individual confunde-se
com o livre arbítrio do individuo. Por isso, José Afonso da Silva denomina essa liberdade de liberdade do
querer (Curso de Direito Constitucional positivo, p. 231). O problema dessa definição é sua ausência de
contornos jurídicos. Afinal, se a liberdade é definida pelo querer do agente, quais parâmetros jurídicos e
dogmáticos podem ser utilizados para avaliar a conformidade de uma ação com a ordem jurídica? É justificada,
portanto, a crítica segundo a qual tal forma de conceber a liberdade individual torna esse direito uma garantia
simplesmente formal, alheia a qualquer diferenciação valorativa ou material mais precisa. Ou seja: o resultado
dessa hipostasiação do significado da liberdade individual é a perda de seu sentido jurídico e a necessidade
constante de serem atualizadas restrições e ponderações de um conceito que tudo poderia abarcar. A busca
de uma definição mais específica e palpável da liberdade, agora definida em termos jurídicos, pressupõe
a identificação da finalidade da proteção de cada uma das liberdades protegidas pelo texto constitucional.
Ocorre que, no caso da liberdade de reunião e manifestação, essa finalidade não se encontra na defesa de
uma ideia específica, seja ela alinhada ou não com a visão moral prevalecente. Tal qual observamos no início
desse texto, o que define esses direitos é a defesa da pluralidade de ideias, não de uma ou outra ideia. Por
isso, o simples fato de uma manifestação pública defender um ponto de vista, seja ele contrário ou em defesa
da visão estabelecida de mundo, torna aquela manifestação digna de proteção. Nessa linha, na literatura
alemã: Benjamin Rustenberg, Der grundrechtliche Gewährleistungsgehalt, p. 186.
656 R. bras. Est. const. – RBEC | Belo Horizonte, ano 8, n. 30, p. 649-669, set./dez. 2014
Seria, também, uma forma paternalista e autoritária de agir, o que não se pode ad-
mitir em um Estado Democrático de Direito, como a Constituição brasileira de 1988
pretende que seja o Brasil. 21
21
Quanto a manifestações racistas ou antissemitas, por mais que os argumentos acima também pudessem
ser utilizados, o fato é o que Supremo Tribunal Federal, em 2003, ao julgar o Habeas Corpus 82.424-2/
RS, conhecido como o Caso Ellwanger, admitiu a condenação de um editor que publicou livros com conteúdo
racista e antissemita. Para o inteiro teor da decisão, conferir: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.
jsp?docTP=AC&docID=79052> (último acesso no dia 6 de julho de 2014).
22
BVerfGE, NJW 2002, 1031.
23
BVerfGE, NJW 2001, 2459.
24
SCHLINK/PIEROTH, Staatsrecht II: Grundrecht, 26. Auf., Heidelberg, C.F. Müller, 2010, p. 185.
25
SACHS, Verfassungsrecht II: Grundrechte, 2. Auf., Berlin, Springer, 2003, p. 359.
26
BVerfGE 128, 226.
R. bras. Est. const. – RBEC | Belo Horizonte, ano 8, n. 30, p. 649-669, set./dez. 2014 657
27
HOFFMANN-RIEM, Neuere Rechtsprechung des BVerfG zur Versammlungsfreiheit, NVwZ, 2003, p. 259. Na
jurisprudência alemã: BVerfGE, NJW 2002, 1031 (1032).
28
BVerfGE, 104, 92 (39) – Sitzblockaden III.
29
Observe-se que essas críticas se dirigem especificamente aos critérios de diferenciação aplicados pela ju-
risprudência. Em nenhum momento elas colocam em questão a necessidade de critérios de diferenciação
dogmáticos que indiquem as modalidades de manifestações protegidas pela ordem constitucional.
30
KNIESEL/POCHER, Die Entwicklung des Versammlungsrecht 2000 bis 2003, NJW 2004, p. 423.
31
SCHLINK/PIEROTH, Staatsrecht II: Grundrecht, p. 185.
32
Cf. MALGOLDT, Klein, Das Bonner Grundgesetz Kommentar, 2 Auf. Berlin: Franz Vahlen, 1957, art. 8, Anm. III 2.
33
Cf. CREMER, Freiheitsgrundrechte: Funktionen und Strukturen, Tübingen, Möhr Siebeck, 2003, p. 33.
658 R. bras. Est. const. – RBEC | Belo Horizonte, ano 8, n. 30, p. 649-669, set./dez. 2014
34
BVerfGE 92, 1 (18) – Sitzblockaden II.
35
KNIESEL/POCHER, Die Entwicklung, p. 423.
36
BVerfGE 73, 206 (257).
37
O tipo penal que reprime a conduta da coerção mediante força ou ameaça é o art. 240 do StGB. Sobre a não
incidência desse preceito em manifestações que bloqueiem a circulação de automóveis, v.: BVerfGE 92, 1
(16); 87, 399 (406). Na literatura: SCHLINK/PIEROTH, Staatsrecht II: Grundrecht, p. 187.
R. bras. Est. const. – RBEC | Belo Horizonte, ano 8, n. 30, p. 649-669, set./dez. 2014 659
38
Cf., nesse sentido: VGH München, NVwZ 1992, p. 76; OVG Münster, DVBl, 2001, p. 584.
39
BVerfGE, 111, 147.
40
BVerfGE, NJW 1993, 916 (917).
41
HOFFMANN-RIEM, Neuere Rechtsprechung, p. 261.
42
HOFFMANN-RIEM, Neuere Rechtsprechung, p. 265.
43
KNIESEL/POCHER, Die Entwicklung, p. 427 e ss.
660 R. bras. Est. const. – RBEC | Belo Horizonte, ano 8, n. 30, p. 649-669, set./dez. 2014
e ideias extremistas devam ser de plano excluídas do debate público de ideias abra-
çam uma visão ingênua e idealista do processo democrático de debate e formação
de ideias. É evidente, dizem os autores, que a Lei Fundamental como um todo é
contrária ao pensamento nazifascista. A origem histórica e a concepção teórica desse
documento levam facilmente a essa conclusão. A questão é na verdade como e de
que forma essa finalidade pode ou deve ser alcançada.
Uma das formas de conceber essa relação entre desiderato e efetividade da
Lei Fundamental vê o debate entre ideias, manifestações e pensamentos como parte
fundamental do jogo que leva ao progresso contínuo, mas nunca completo, da demo-
cracia. Democracia, nesse sentido, não é só a aceitação da diferença, mas também
a aceitação dos defeitos e desvios do pensamento. Pensar e agir democraticamente
são formas não apenas de tolerância ou respeito, mas de aceitação das limitações
da própria força normativa da Constituição. Democracia, nesse primeiro sentido, não
é só a forma de governo que aceita a pluralidade, mas também a que aceita a imper-
feição e se aceita como imperfeita.
A segunda forma de tratar essa questão seria exigir que o ideal almejado pela
Constituição fosse prontamente alcançado, que os inimigos da democracia fossem
rapidamente rotulados, calados e excluídos, que não houvesse nenhuma válvula de
escape para o pensamento fixo e pronto, desde sempre presente no texto consti-
tucional. A ideia ou manifestação que estivesse em desacordo com esse ideal de
perfeição constitucional seria posta na clandestinidade. Essa forma radical e intole-
rante de democracia pode ser defendida de diversas formas – uma visão absoluta
e intransigente da proteção dos direitos humanos seria uma delas. Mas nenhuma
delas é capaz de afastar a percepção de que não é ela a forma de democracia criada
pela Lei Fundamental de 1949.
R. bras. Est. const. – RBEC | Belo Horizonte, ano 8, n. 30, p. 649-669, set./dez. 2014 661
44
Uma análise semelhante é encontrada em: SACHS, Verfassungsrecht II: Grundrechte, p. 358.
45
O raciocínio vale para uma suposta manifestação, para utilizar o exemplo do Ministro Nelson Jobim, que ocorra
em frente a um hospital. A proibição dessa manifestação dependeria, antes de mais nada, de verificar se esse
ato tem a intenção específica de incomodar doentes, caso em que sua própria legitimidade constitucional
passa a ser questionável, ou se ela quer favorecê-los, clamando, por exemplo, pela melhoria do atendimento
médico hospitalar. Ademais, se os, mais uma vez supostos, autofalantes utilizados pelos manifestantes
não apresentam a capacidade objetiva de incomodar os enfermos – seja porque as paredes do hospital têm
proteção acústica, seja porque os autofalantes têm pouca amplitude sonora – não há razão para se limitar
o exercício do direito de manifestação. Todas essas questões deveriam anteceder à constatação de um
conflito de direitos fundamentais, pois em todos esses casos a solução será simplesmente negar ou afirmar
a proteção do direito fundamental protegido. Ao invés disso, o que se observa na jurisprudência recente é a
busca por generalizações e ponderações abstratas, nas quais os direitos são ditos “não absolutos” e a sua
proteção, “relativa”. O resultado dessa orientação não é só o perigo de uma perda do conteúdo normativo dos
direitos fundamentais (a esse respeito, cf.: Ernst-Wolfgang Böckenförde, Zur Lage der Grundrechtsdogmatik,
p. 59), mas também uma desorientação da jurisprudência e da dogmática constitucionais, que, ao invés
de buscarem pontos de convergência e identificação entre prática e teoria, recorrem constantemente à
metáfora da ponderação de bens e direitos constitucionais, sem indicar qual critério ou finalidade norteia
essa ponderação. Não é de se espantar que, nessa situação, prolifere a discussão acerca do ativismo judicial.
Afinal, quem não concorda com uma decisão que não apresenta nenhum ponto de reflexão e orientação além
da busca pelo equilíbrio de direitos fundamentais não tem outra saída a não ser dizer que essa decisão é
ativista. Ao contrário, quem concorda com o resultado de uma tal decisão só pode dizer que essa decisão não
é ativista, pois aplica os “valores” constitucionais na justa medida. Isso até que esse último se confronte com
uma decisão que contrarie seus interesses. Nesse caso, as posições se invertem e assim por diante, em um
jogo sem fim de oposições e desorientações que tornam a proteção dos direitos fundamentais cada vez mais
fluida e os resultados práticos dessa proteção, indeterminados.
662 R. bras. Est. const. – RBEC | Belo Horizonte, ano 8, n. 30, p. 649-669, set./dez. 2014
46
O fato de tal lei ter criado um órgão especialmente direcionado à identificação, ao controle e ao cadastro de
armas (Sinarm – Sistema Nacional de Armas) indica essa finalidade.
47
Nesse sentido, conferir o artigo 3º da Lei nº 15.556, de 29 de agosto de 2014, do Estado de São Paulo,
que restringe o uso de máscaras ou qualquer paramento que oculte o rosto da pessoa em manifestações e
reuniões: “Art. 3º – À proibição constitucional de portar armas nas manifestações e reuniões públicas, incluem-
se as de fogo, as armas brancas, objetos pontiagudos, tacos, bastões, pedras, armamentos que contenham
artefatos explosivos e outros que possam lesionar pessoas e danificar patrimônio público ou particular”.
R. bras. Est. const. – RBEC | Belo Horizonte, ano 8, n. 30, p. 649-669, set./dez. 2014 663
48
Art. 6º da Lei nº 10.826/03, regulamentada pelo Decreto nº 5123/2004.
49
A polêmica a esse respeito é grande no Brasil. O Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, editou a Lei nº 6.528,
de 11 de setembro de 2013, que, em seu art. 3º, inciso IV, e §3º, prevê: “Art. 3º – O direito constitucional à
reunião pública para manifestação de pensamento será exercido: [...] IV – sem o uso de máscaras nem de
quaisquer peças que cubram o rosto do cidadão ou dificultem sua identificação; [...] §3º – A vedação de que
trata o inciso IV do caput deste artigo não se aplica às manifestações culturais estabelecidas no calendário
oficial do Estado”. O Estado de São Paulo também editou a Lei nº 15.556, de 29 de agosto de 2014, proibindo
o uso de mascaras em protestos. No interior do Estado de São Paulo, mesmo antes da edição da referida
lei, decisões judiciais proibiram o uso de máscaras por manifestantes. Também surgiram, em alguns municí-
pios, como Campinas, propostas de lei para a proibição completa dessas condutas. A proposta enviada pelo
Ministério da Justiça para regulamentar o direito à liberdade de reunião foi na mesma linha. Também há um
intenso debate nos meios de comunicação a esse respeito. Os argumentos mais diversos foram lançados,
muitas vezes aleatoriamente. Dois exemplos: um representante da defensoria pública do Estado de São Paulo
sustentou, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, que dita lei seria formalmente inconstitucional, pois, a
seu ver, só leis penais podem restringir a liberdade e tais leis só podem ser editadas pelo congresso nacional
(Caderno Poder, dia 5 de julho de 2014). Não se sabe o que o dito defensor entende por “liberdade”, pois se
é certo que só o Congresso Nacional tenha competência para legislar sobre matéria penal (art. 22, I, CF), ao
Estado e ao Município competem criar condições para que se realize a mobilidade urbana de pessoas e veícu-
los, objetivo esse que também pressupõe a restrição da liberdade de locomoção – por meio da determinação
da mão de direção de uma via, por exemplo. Esses são dois aspectos distintos e inconfundíveis do regime de
restrições do direito fundamental à liberdade de ir e vir – aquele decorre de uma condenação, este, de uma
regulamentação do exercício desse direito. Sendo assim, seria primeiro preciso determinar se a proibição do
uso de mascaras em manifestações é uma pena – caso, deveras implausível, em que sua instituição competi-
ria à União – ou uma regulamentação do exercício do direito, caso em que compete aos Estados e Municípios.
Afirmar simplesmente que a instituição dessa “limitação” é uma competência exclusiva da União é concluir,
sem previamente determinar, a premissa da conclusão. Segundo exemplo: um representante de uma organi-
zação de direitos humanos sustentou que a restrição do uso de mascaras é contrária ao direito à presunção
de inocência, “já que não é possível prever que manifestantes com o rosto coberto cometerão crimes” (Projeto
que proíbe máscaras durante protestos é aprovado em SP, disponível em: <http://oglobo.globo.com/brasil/
projeto-que-proibe-mascaras-durante-protestos-aprovado-em-sp-13131723>, último acesso em 2 de agosto de
2014). A afirmação contém contradição interna, pois se o manifestante tem o direito fundamental de trajar
mascaras ou vestimentas em atos públicos, o princípio da presunção de inocência, que só incide quando al-
guém tenha de se defender da acusação da prática de um crime, não deve nem mesmo aplicação. O paradoxo
é interessante, pois indica o que se esconde por detrás da consciência coletiva: nem mesmo o mais ardoroso
664 R. bras. Est. const. – RBEC | Belo Horizonte, ano 8, n. 30, p. 649-669, set./dez. 2014
distintivo para a proibição do uso dessas vestimentas deve mais uma vez ser a inten-
ção beligerante dos manifestantes. Máscaras que ironizem governantes são comuns
em manifestações e representam uma forma legítima de manifestação de pensamen-
to. A mesma conclusão vale para máscaras que estejam relacionadas a orientações
religiosas. Restringir, em abstrato, a expressão de crenças e ideias dos manifes-
tantes é um ato desprovido de autorização constitucional. A Constituição assegura
a inviolabilidade de crença e religião, o que seria suficiente para afastar qualquer
possibilidade de controle sobre a vestimenta de fundo religioso (Burcas ou Niqabs,
por exemplo) utilizada por manifestantes. Aliás, há um forte potencial discriminador
na atitude do governante ou juiz que autoriza que manifestantes se vistam de uma
forma e não de outra.
Essa conclusão não é afastada pelo inciso IV do artigo 5º, da Constituição de
1988, que assegura a expressão de pensamento, mas veda o anonimato.50 Primeiro
porque não há reunião anônima: os manifestantes querem visibilidade para suas
ideias e ocupam espaços públicos ou privados com essa intenção. Se o objetivo fos-
se o anonimato, ficariam em casa. Segundo porque, se um oficial de polícia verificar
a necessidade de identificar algum dos manifestantes, basta que exija sua identifica-
ção civil. Só na falta desta, será o manifestante submetido à identificação criminal.51
Tudo isso independe de o manifestante vestir ou não máscaras. Finalmente, se al-
guns manifestantes não querem ver seu rosto exposto em meios de comunicação,
mas querem expressar seu descontentamento ou indignação, o uso de máscaras se
torna forma de exercício do direito de personalidade e imagem. Exigir que o manifes-
tante se exponha da maneira pretendida pelo Estado é uma violação a esses direitos
fundamentais.
Só há uma hipótese em que a utilização de máscaras em manifestações é cons-
titucionalmente proibida: se a vestimenta indicar a realização de um ato de caráter
paramilitar. Quando for comprovado que, ao utilizarem máscaras, os manifestantes
indicam a intenção comum de praticar atos de vandalismo, será admitida a proibição
da vestimenta. Como observa Hoffmann-Riem em relação à utilização de uniformes
militares ou símbolos de guerra, o ônus da prova recai aqui sobre a Administração
Pública.52 Na dúvida, a máscara deve ser permitida.
defensor da liberdade de manifestação consegue fugir da tentação de considerar o seu exercício como uma
forma de atividade criminosa.
50
Em sentido contrário, conferir o editorial da Folha de São Paulo, intitulado Equívoco Mascarado, publicado
no dia 15 de julho de 2014, e o artigo de Beatriz Horbach na edição de 6 de julho de 2013 do Observatório
da justiça constitucional, Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-jul-06/observatorio-constitucional-
restringir-manifestacoes-nao-inconstitucional>. Acesso em: 19 mar. 2014.
51
Conferir, nesse sentido, o art. 5º, LVIII, Constituição Federal de 1988: “o civilmente identificado não será sub-
metido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei”.
52
HOFFMANN-RIEM, Neuere Rechtsprechung, p. 264.
R. bras. Est. const. – RBEC | Belo Horizonte, ano 8, n. 30, p. 649-669, set./dez. 2014 665
53
Na Alemanha o artigo 8º da Lei Fundamental cria dois regimes distintos de restrições ao exercício do direito de
reunião. O primeiro, sem reserva legal, é aplicado às reuniões realizadas em locais fechados; o segundo, com
reserva de regulação em lei, dirige-se às manifestações que ocorrem a céu aberto (unter freiem Himmel).
54
Destacamos.
55
O art. 98 do Código Civil brasileiro se contenta com a distinção entre bens públicos e particulares.
56
A distinção entre esses conceitos é encontrada em: DIMOULIS; MARTINS, Teoria geral dos direitos fundamen-
tais. 3. ed., São Paulo: RT, 2011, pp. 160 e ss. De forma semelhante, na doutrina alemã: SCHLINK/PIEROTH,
Staatsrecht II: Grundrecht, pp. 76 e ss; Lothar H. Fohmann, Konkurrenzen und Kollisionen im Grundrechtsbe-
reicht, EuGRZ, 1985, pp. 52 a 54.
666 R. bras. Est. const. – RBEC | Belo Horizonte, ano 8, n. 30, p. 649-669, set./dez. 2014
57
Nesse sentido, cf. os arts. 70 e 72 do Código Civil e o julgamento do Mandado de Segurança 23.595/DF,
relator Ministro Celso de Melo, publicado no Informativo de Jurisprudência 185/2000.
58
Essa situação de conflito de direitos fundamentais tanto é admitida pela jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal, que há Súmula Vinculante (n. 23) regulando a competência para a solução dessa controvérsia.
59
Trata-se aqui de uma relação triangular envolvendo dois titulares de direitos opostos, em que o direito fun-
damental serve de parâmetro para a aferição da legitimidade da regulação estatal desse conflito. A doutrina
constitucional alemã recente considera que essa é uma situação típica em que direitos fundamentais surgem
como direitos reflexivos, vez que incidentes em casos de relações já ordenadas de direitos. A esse respeito,
cf.: Ralf Poscher, Grundrechte als Abwehrrechte: reflexive Regelung rechtlich geordneter Freiheit, Tübingen:
Mohr Siebeck, 2003.
60
Nos primeiros meses de 2014, o Brasil presenciou uma onda de casos em que “manifestações” eram
convocadas para ocorrer no interior de Shopping Centers. Esses encontros passaram a ser chamados de
“rolezinhos”.
61
Foi a situação enfrentada pelo Tribunal Constitucional alemão em Fraport (BVerfGE 128, 226).
R. bras. Est. const. – RBEC | Belo Horizonte, ano 8, n. 30, p. 649-669, set./dez. 2014 667
são parte do jogo democrático e da relação que todos, uns mais e outros menos, têm
com o público. O titular particular tem a liberdade de exercer a atividade que mais
lhe agrade ou que lhe dê maior lucro. Se sua escolha é trabalhar com a circulação do
público em seus estabelecimentos, deve assumir a responsabilidade de sua escolha.
No que diz respeito ao direito de manifestação, ele não pode proibir a realização de
reuniões pacíficas no interior de sua propriedade.
Observações finais
Apresentamos neste estudo duas perspectivas diferentes do direito de reunião:
a alemã e a brasileira. Observamos os pontos de contato entre elas, mas também
como elas se distanciam. O passado autoritário aproxima os dois países. Ambos
sabem que a ditadura se alimenta do controle da consciência e expressão. E sabem
que impedir o exercício do direito de reunião é uma das formas mais perversas desse
controle. Por isso, a jurisprudência atual, tanto a brasileira quanto a alemã, tem tido
muita cautela ao analisar os limites, constitucionais ou legais, do direito de mani-
festação pacífica. E aqui está um ponto de afastamento: a regulação legislativa e a
grande quantidade de decisões judiciais foram os elementos que fizeram surgir, na
Alemanha, um intenso debate doutrinário e público acerca das características e da
forma de exercício legítima do direito de reunião. Recentemente, o Brasil tem vivido
um quadro de proliferação de manifestações e a perspectiva de criação de uma nova
base normativa para regular esse direito fundamental. Observar a experiência inter-
nacional e apresentar de forma clara os contornos dogmáticos do direito de reunião
pode ser o primeiro passo, de muitos, na construção de um modelo – sempre inaca-
bado – de democracia fundado na liberdade de manifestação social. Nesse trabalho,
buscamos contribuir para que seja dado esse passo.
Abstract: The text presents the dogmatic features and contours of the fundamental right to free assembly
in the Brazilian and German constitutional law. Addresses controversial issues and judicial precedents from
these two countries. Finally, analyzes and proposes solutions to current problems of freedom to assembly
and discusses the relationship of its exercise with the development of democracy.
Key words: Fundamental rights. Freedom of assembly. The right to demonstrate. Comparative constitutional
law.
Referências
ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de. Liberdade de Reunião. São Paulo: Max Limonad, 2001.
BERLIN, Isaiah. Dois conceitos de liberdade. In: BERLIN. Estudos sobre a humanidade: uma antologia
de ensaios. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
668 R. bras. Est. const. – RBEC | Belo Horizonte, ano 8, n. 30, p. 649-669, set./dez. 2014
BOBBIO, Norberto. Igualdad y libertad. Trad. de Pedro Aragon Rincón. Barcelona: Paidós, 1993.
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Tradução de Marco Aurélio
Nogueira. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Zur Lage der Grundrechtsdogmatik nach 40 Jahren Grundgesetz,
München 1990.
CREMER, Freiheitsgrundrechte: Funktionen und Strukturen. Tübingen: Möhr Siebeck, 2003.
DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: uma leitura moral da Constituição norte-americana. Tradução
de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 3. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2011.
FOHMANN, Lothar H. Konkurrenzen und Kollisionen im Grundrechtsbereicht. EuGRZ (1985): 52-54.
HOFFMANN-RIEM, Neuere Rechtsprechung des BVerfG zur Versammlungsfreiheit. NVwZ (2003): 257-265.
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Tradução de Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 2003.
KNIESEL; POCHER. Die Entwicklung des Versammlungsrecht 2000 bis 2003, NJW (2004): 422-429.
MELLO, Celso de. O direito constitucional de reunião, Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo, São Paulo, v. 12, n. 54, p. 19-23, set./out. 1978.
MALGOLDT, Klein. Das Bonner Grundgesetz Kommentar. 2 Auf. Berlin: Franz Vahlen, 1957.
MARTINS, Leonardo. ADPF 187/DF: ‘Marcha da Maconha’. In: ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. (org.).
STF e Direitos Fundamentais: diálogos contemporâneos. Salvador: JusPodivm, 2013.
NOVAES, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra, 2006.
POSCHER, Ralf. Grundrechte als Abwehrrechte: reflexive Regelung rechtlich geordneter Freiheit,
Tübingen: Mohr Siebeck, 2003.
RUSTENBERG, Benjamin. Der grundrechtliche Gewährleistungsgehalt: Eine veränderte Perspektive auf
die Grundrechtsdogmatik durch eine präzise Schutzbereichsbestimmung, Tübingen: Mohr Siebeck,
2009.
SCHLINK/PIEROTH. Staatsrecht II: Grundrecht, 26. Auf., Heidelberg, C.F. Müller, 2010.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2005.
SACHS, Michael. Verfassungsrecht II: Grundrechte, 2. Auf., Berlin, Springer, 2003.
R. bras. Est. const. – RBEC | Belo Horizonte, ano 8, n. 30, p. 649-669, set./dez. 2014 669