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04/01/2020 ConJur - Os nudges antiepistêmicos da delação: entender para reformar

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LIMITE PENAL

Os nudges antiepistêmicos da delação


premiada: entender para reformar
20 de dezembro de 2019, 8h00 Imprimir Enviar

Por Alexandre Morais da Rosa e Janaina Matida

 Ouvir: para reformar 14:28

Bemol
ABRIR
Bemol Porto Velho

Nas últimas semanas a notícia de aprovação do


pacote anticrime pela Câmara dos Deputados
circulou pelos principais jornais. A aprovação
deveu-se, bem se sabe, a expressivos ajustes à
proposta de autoria do Ministro Sérgio Moro. LEIA TAMBÉM
LIMITE PENAL
Com vistas à proteção de direitos fundamentais
O espetáculo dos julgamentos do STF
de investigados e réus, a negociação política
garante a publicidade?
resultou, ao fim e ao cabo, na “desconstrução do
pacote Moro”1. Como já ressaltado, a proposta LIMITE PENAL
inicial “era a obra de um homem só, elaborada É (quase) elementar, meu caro
por ele, à la carte, conforme a sua microvisão de Watson: saber jogar na investigação
sistema penal”2 e, de fato, fez por merecer os
ajustes agora presentes. Neste texto, vamos LIMITE PENAL
abordar os riscos epistêmicos relativos às declarações prestadas pelo delator Cloud Act: Quando a investigação se
potencial, pois, se bem é certo que podemos comemorar a exclusão do plea dá nas nuvens americanas
bargaining da proposta final, o horizonte das delações premiadas
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confirmou-se como uma realidade sem volta atrás. E embora se diga que, O que há no fundo da nossa caixa de
para que o conteúdo declarado pelo investigado tenha peso, será exigida a Pandora?
sua corroboração por outros e diversificados elementos probatórios, não
devemos nos acostumar com o risco, sempre à espreita, de que se atribua LIMITE PENAL
injustificado peso a estes tais outros elementos probatórios e, via de Ainda precisamos falar sobre o falso
consequência, a palavra de uma pessoa finalmente configure suficiente para reconhecimento pessoal
mudar o curso de vidas inocentes.
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Mesmo com ajustes no pacote aprovado, a delação continua a merecer a Por que a sociedade tem girado tanto
atenção dos estudiosos que se preocupam com o estímulo indevido que a em torno do processo penal?
instauração de uma investigação pode chegar a representar à determinação
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correta dos fatos. Declarações deliberadamente falsas podem ganhar as

https://www.conjur.com.br/2019-dez-20/limite-penal-nudges-antiepistemicos-delacao-premiada-entender-reformar 1/7
04/01/2020 ConJur - Os nudges antiepistêmicos da delação: entender para reformar

páginas dos anexos a partir de um empurrãozinho, um nudge3 O processo penal, a teoria dos jogos e
antiepistêmico, que o sistema jurídico é capaz de gerar. Como se isso não as garantias fundamentais
bastasse, o problema das falsas declarações está longe de poder ser reduzido
às mentiras intencionalmente armadas por aqueles que querem apontar
algozes fictícios para lograr, assim, o desvio de atenção dos órgãos Facebook Twitter
acusatórios. Porque há também os erros honestos que, por golpes do regular
funcionamento da memória, são comissíveis por qualquer pessoa que tenha Linkedin RSS Feed
a genuína intenção de colaborar com o que sabe4. Outra vez, o desenho
institucional relativo ao instituto pode estar tendente a funcionar como
convite fácil a falsas hipóteses fáticas. Por essas razões, a preservação do
instituto da delação premiada em nosso sistema jurídico faz necessário
manter sob discussão os riscos epistêmicos5 que a atribuição de peso
probatório à palavra de alguém sempre deve merecer.

I. A sobrevaloração da confissão
Assumir todos os delitos imputados a si configura o pontapé inicial de toda
negociação que possa resultar em delação. “Colaborar” significa, em
primeiro lugar, não resistir às alegações feitas pelo órgão acusatório contra
si. Não é de hoje, contudo, que, com razão, questiona-se o potencial
epistêmico das confissões. A confissão, entendida como declaração do
sujeito de haver cometido um delito, seria instrumento de conhecimento do
fato se e somente se a declaração corresponde ao que realmente ocorreu. Do
contrário, tratar-se-ia de uma mera alegação daquele que pretende atingir
resultados processuais que podem ser incompatíveis com a determinação
adequada dos fatos. Ora, quando a afirmação de que se cometeu um delito
pode fazer cessar a prisão provisória, as conduções coercitivas, o bloqueio a
bens e as recorrentes ameaças de overcharging6, o preço do silêncio ganha
contornos insuportáveis7. Dito de forma mais direta, a confissão de crimes
não cometidos é sistematicamente propiciada pela falta de simetria do jogo
processual como já sinalizado: "Na lógica da delação/colaboração premiada,
por exemplo, a ideia é desarmar o oponente, transformá-lo física, psicológica,
midiática e materialmente desamparado, tornando-o impotente às
possibilidades defensivas de resistência. Com isso, quanto mais rápida e
violenta for a investida, inclusive com ameaças a terceiros e familiares,
melhores os resultados8.

Sendo assim, é questionável a voluntariedade de que depende o próprio


valor epistêmico a ser atribuído à declaração de que se cometera um crime.
O constrangimento joga por terra qualquer valor epistêmico que se possa
inicialmente, por ingenuidade que seja, querer-se atribuir à confissão, pois o
medo não é, nem nunca foi, instrumento adequado à correta determinação
dos fatos9. Inegável, portanto, que o acusado se veja estimulado a tomar
cursos de ação capazes de produzir desvios na pescaria probatória10 que
lhe teve, até então, como alvo preferido. O cenário é propício à formulação
de anexos detalhados o suficiente para aguçar a curiosidade da acusação de
maneira que os métodos ocultos de investigação11 sejam redirecionados a
outros sujeitos, que não o acusado.

Dessa maneira, a regulamentação da delação deve considerar a diferença


entre mera coerência narrativa e cuidadosa determinação dos fatos. É preciso
evitar produzir perversamente estímulos à primeira que nos distanciem de
alcançar a segunda. Considerando a elevada coercitividade de que o órgão
acusatório se serve para conseguir a confissão, a delação se afasta do
potencial epistêmico desejável a todo e qualquer mecanismo de
determinação dos fatos posto em uso em sistemas de justiça
compromissados com a presunção de inocência e com um standard
probatório penal que se diga elevado, pois a condenação conseguida através
da sobrevaloração da confissão não alcança nem um, nem outro.
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II. A porta aberta aos erros honestos


Para além do estímulo perverso que o sistema jurídico oferece a versões
deliberadamente falsas no contexto das delações premiadas, há também o
risco de reprodução dos chamados erros honestos. Os erros honestos são
cometidos por aqueles que genuinamente acreditam numa informação que,
no entanto, é falsa12. Assim, se por um lado a memória dos delatores
configura-se num importante referencial para as investigações em face de
futuros investigados, por outro, é imperioso considerar os fatores que
podem contaminar a memória. A passagem do tempo é um desses fatores13,
dado que muitas vezes os delatores devem preencher seus anexos com
eventos de anos e anos atrás. A memória não funciona como uma máquina
fotográfica e seu frágil conteúdo se degrada com transcurso temporal. A
memória também não é um baú14 que armazena, intactos, os fatos aos
quais o órgão acusatório entende relevantes.

Além do transcurso temporal, no âmbito das delações também preocupa o


potencial sugestivo que a sua rotina pode apresentar: indicações para que
determinados nomes sejam citados, o estímulo para dizer aquilo que os
promotores querem escutar, podem produzir confusões entre fatos
desejados e fatos efetivamente vividos. Diretivas de como o relato do delator
deve ser produzido e integrado ao processo precisam ser formuladas tendo
em vista um genuíno compromisso do processo penal em evitar
condenações injustas, com respeito à presunção de inocência e a um
standard probatório mais elevado15. A epistemologia e a psicologia do
testemunho juntam-se ao garantismo processual penal numa dica de ouro: a
forma de produção importa no resultado a ser produzido. Há um longo
caminho regulamentatório a ser percorrido para que a delação possa, enfim,
deixar de funcionar como um grande amontoado de nudges antiepistêmicos.

1. LOPES Jr., Aury. et al. A desconstrução do pacote Moro. In Estadão, acesso


por: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/a-desconstrucao-do-
pacote-moro/?
fbclid=IwAR1zjxkbZ5HXBysa53n9lZdHy9N_0GUZcrdkvZYvTFJVkR98OuxLU2oL29A

2. Idem.

3. A noção de nudge (empurrãozinho) foi desenvolvida por Thaler e Sunstein


em obra homônima e significa “qualquer fator que altere significativamente
o comportamento de humanos” (p.17). Embora a obra se dedique
prioritariamente a tratar de nudges positivos (que alteram o comportamento
dos humanos para resultados positivos e desejáveis), é sempre possível que
uma arquitetura equivocada funcione como um nudge negativo,
propiciando comportamentos cujos resultados são indesejáveis. Nossa
afirmação, neste artigo, é que a falta de regulamentação da colaboração até
agora tem funcionado como um nudge negativo quanto aos compromissos
epistêmicos, isto é, de correta determinação dos fatos. THALER, Richard H.;
SUNSTEIN, Cass R. “Nudge”. Trad. Ângelo Lessa. Rio de Janeiro: Objetiva.
MORAIS DA ROSA, Alexandre; GOULART, Bianca Bez. O uso do nudge no
comvencimento judicial penal. https://www.conjur.com.br/2018-jul-
27/limite-penal-uso-nugde-convencimento-judicial-penal

4. Sobre o tema das falsas memórias, ver STEIN, Lilian Milnitsky et al.
“Falsas memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e
jurídicas”. São Paulo: Artmed Ed. 2010.

5. Os riscos epistêmicos da delação premiada foi tema de TCC de Antonio


Vieira no Master en Razonamiento Probatorio da Universitat de Girona. Sob
a orientação de Jordi Ferrer Beltrán, Vieira escreveu trabalho que foi

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transformado no artigo Riesgos y controles epistémicos en la delación


premiada: aportaciones a partir de la experiencia en Brasil, atualmente no
prelo em obra coletiva intitulada “Del Derecho al razonamiento probatorio”,
Jordi Ferrer Beltrán y Carmen Vázquez (orgs), da Marcial Pons, Espanha .

6. Boa definição de overcharging é oferecida por José Carlos Porciúncula:


“No overcharging, o Ministério Público imputa ao sujeito crimes dos quais
sabe que é inocente”. PORCIÚNCULA, José Carlos. Inconstitucionalidades e
inconsistências dogmáticas do instituto da delação premiada (art.4o da Lei
12.850/13). In “Arquivos da Resistência: ensaios e anais do VII Seminário
Nacional do IBADPP”, Diana Furtado Caldas, Gabriela Lima Andrade, Lucas
Carapiá Rios (orgs.). Florianópolis: Tirant lo Blanch.

7. VIEIRA, A. “Riesgos y controles epistémicos en la delación premiada...”,


pp. 12-13.

8. MORAIS DA ROSA, Alexandre; Bermudez, André Luiz. “Para entender a


delação premiada pela teoria dos jogos: táticas e estratégias do negócio
jurídico”. 2a ed. Florianópolis: Emais editora e Livraria Jurídica. p. 87.

9. Não por outra razão, John Langbein traça paralelo entre o plea bargaining
e a tortura. A parte de que adotem mecanismos mais ou menos severos de
coerção, ambos têm o objetivo de que o acusado ceda e se declare culpado.
LANGBEIN, J.H. “Tortura y plea bargaining” in (Maier y Bovino, coord.) El
procedimiento abreviado, Buenos Aires, Editores del Puerto, 2001. No
mesmo sentido e estendendo o paralelo da tortura à delação, VIERA,
Antonio. “Riesgos y controles epistémicos en la delación premiada...”, p. 9.
Além disso, sobre o questionável valor da confissão, Ibáñez. “Conferência: A
valoração racional da prova testemunhal”, ocorrida na UFRJ, em 25/10/2019,
no marco de colaboração entre o GREAT, o Matrizes do Processo Penal
Brasileiro e do IDDD. A partir de 1h15min Perfecto Andrés Ibáñez expõe
crítica ao apego que mesmo os sistemas jurídicos de corte acusatório ainda
nutrem a respeito da confissão. Acesso por:
https://www.youtube.com/watch?v=oBwSppIHs5w;

10. Para saber mais sobre o fenômeno da pescaria probatória (fishing


expedition), ver SILVA, Viviane Ghizoni da; SILVA, Philipe Benoni Melo e;
MORAIS DA ROSA, Alexandre. “Fishing expedition e encontro fortuito na
busca e apreensão: um dilema oculto do processo penal”. Florianópolis:
EMais, 2019.

11. PRADO, Geraldo. “Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a


quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos”. São
Paulo: Marcial Pons. 2014.

12. RAMOS, Vitor de Paula. “A prova testemunhal: do subjetivismo ao


objetivismo. Do isolamento científico ao diálogo com a psicologia e a
epistemologia”. São Paulo: RT, 2019.

13. DIGES, Margarita. “Testigos, sospechosos y recuerdos falsos: estudios de


psicología forense”. Madrid: Trotta, 2016.

14. A metáfora do baú é de Lilian Stein e foi usada em aula ministrada à


Defensoria Pública da Bahia, no âmbito do curso “Provas: questões
fundamentais”.

15. A preocupação com um desenho institucional com compromisso


epistêmico também mereceu atenção de Caio Badaró em MASSENA, Caio
Badaró. “A prova testemunhal no Processo Penal brasileiro: uma análise a

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partir da epistemologia e da psicologia do testemunho”. Revista Brasileira de


Ciências Criminais, vol. 156, 27, São Paulo: RT, 2019.

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Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR) e professor de Processo Penal na Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC) e na Universidade do Vale do Itajaí (Univali).

Janaina Matida é advogada, Doutora em Direito pela Universitat de Girona (ESP), professora
de Processo Penal da Emerj e consultora do IDDD.

Revista Consultor Jurídico, 20 de dezembro de 2019, 8h00

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COMENTÁRIOS DE LEITORES
3 comentários

MELHOR É O PROCESSO PENAL TRADICIONAL, POIS DEMORA ANOS, PRE


daniel (Outros - Administrativa)
20 de dezembro de 2019, 19h07

melhor é o processo penal tradicional, pois demora anos, prescreve, mas assegura anos
de honorários para advogados criminalistas. Dá para criar e manter filhos, netos e
bisneto com honorários de infindáveis recursos,

PARTE 02 DE 02
Klaen h (Funcionário público)
20 de dezembro de 2019, 11h12

Tal medida visa:


a) Explorar a aversão à perda (KAHNEMAN, D., & TVERSKY, A. (1979). Prospect theory: An
analysis of decision under risk. Econometrica, 47, 263-291), ao ressaltar o que o
colaborador/delator pode perder caso faça afirmações sabidamente falsas; e,
b) Proporcionar o compromisso prévio perante outros (CIALDINI, R. B. 2008. Influence:
Science and Practice, 5th ed. Boston: Pearson), quando o colaborador/delator lê em voz
alta o documento e assina-o na presença dos demais atores do processo penal.
É claro que para se considerada um nudge, a medida proposta acima não pode ser
obrigatória, ficando, dessa forma, a cargo do colaborador/delator a opção de assinar e ler
em voz alta – ou não – o documento.

PARTE 01
Klaen h (Funcionário público)
20 de dezembro de 2019, 11h10

Entendo que, ao contrário dos articulistas, a falta de regulamentação da


colaboração/delação premiada não se configura em um nudge, pois, conforme Cass
Sustein e Richard Thaler explicaram:
“Um nudge [...] é qualquer aspecto da arquitetura de escolha que altera o comportamento
das pessoas de um modo previsível sem proibir quaisquer opções nem alterar
significativamente seus incentivos econômicos. PARA QUE UMA INTERVENÇÃO SEJA
CONSIDERADA UM MERO NUDGE, DEVE SER FÁCIL E BARATO EVITÁ-LA.”
O “empurrão” no sentido de fazer afirmações sabidamente falsas no âmbito da delação
premiada, não é fácil nem barato de ser evitado, haja vista que a alternativa (se
manifestar apenas sobre fatos conhecidamente verdadeiros e suportados em provas)
pode implicar em, no mínimo, supressão da liberdade. Assim, a situação colocada pelos
articulistas trata-se de um incentivo econômico clássico, o qual direciona o
colaborador/delator à produção forjada de “provas”.
Um nudge aplicável à colaboração/delação premiada (quando esta vier a ser regulada)
poderia ser a disponibilização de um documento ao colaborador/delator, anexo aos
Termos do Acordo de Colaboração, ressaltando a sua sujeição ao compromisso de dizer a
verdade (art. 4º, § 14, da Lei Federal nº 12.850/2013) e as consequências de fazer

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