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FREI LUÍS DE SOUSA, de Almeida Garrett

QUEM FOI MANUEL DE SOUSA COUTINHO?

Frei Luís de Sousa (Manuel de Sousa Coutinho, cerca de 1555-1632) sofreu vida
acidentada na Ásia e em África, onde prestou serviços a Filipe II de Espanha. Regressando a
Portugal, casou, por 1584-86, com D. Madalena de Vilhena, viúva de D. João de Portugal,
desaparecido na Batalha de Alcácer Quibir, a 4 de Agosto de 1578.
E, 1599 muda-se para Almada, nomeado capitão-mor dessa localidade. No ano
seguinte, devido à peste que assolou Lisboa, os governadores do reino pretenderam abrigar-se
em Almada, numa casa de Manuel que, por questões pessoais, lhe lançou fogo para não lhes
ceder abrigo.
Em 1613, após o falecimento da filha única do casal, D. Manuel e D. Madalena seguem
o exemplo dos condes de Vimioso, dando entrada ele no Convento de S. Domingos de Benfica
e ela no convento do Sacramento
D. Manuel, então Frei Luís de Sousa, desenvolveu alguns projectos literários até à sua
morte como A Vida de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, A História de S. Domingos Particular
do Reino e Conquistas do Reino, a partir de materiais deixados por Frei Luís Cácegas, num estilo
fluente, cheio de naturalidade e poder expressivo que marcou a prosa clássica portuguesa.
Correram diversas versões acerca da causa da morte para o mundo de D. Manuel e D.
Madalena, partindo uma delas de um biógrafo daquele, segundo o qual um peregrino trouxera
a notícia de que D. João de Portugal ainda estaria vivo na Terra Santa, 35 anos após o seu
desaparecimento, sendo o casamento de D. Manuel e D. Madalena impossível. Foi este facto
que deu origem a Frei Luís de Sousa, de Garrett.

CLASSIFICAÇÃO DA OBRA - DRAMA/ TRAGÉDIA?

Drama – é um género dramático, o mais importante do teatro sério depois da tragédia,


Drama é um género teatral que se caracteriza pelo sério das situações e pelo desenlace
funesto, mas não é trágico. Distingue-se, fundamentalmente, da tragédia por serem as
personagens que, por decisão própria, conduzem a intriga a um desfecho infeliz, ao passo que
na tragédia o destino se exerce inexoravelmente até final, limitando-se as personagens a lutar
contra ele, sem esperança, até à consumação do que tem de acontecer.

Tragédia - a tragédia clássica é o mais nobre dos géneros. O protagonista é geralmente


uma pessoa de estirpe elevada, justa e sem culpa que, apesar disso, percorre o caminho árduo
da desdita, embora tenha anteriormente conhecido a felicidade; existe uma personagem
colectiva (coro) com a função de prever e comentar o desenrolar dos acontecimentos,
manifestando a voz do bom-senso perante a exaltação das personagens; o assunto é
geralmente de cariz político e social, ou relativo a uma situação insólita; a linguagem da
tragédia é em verso e respeita a lei das três unidades (espaço, tempo e acção), não havendo
mudança de cenário, ocupando a acção o máximo de 24 horas e centrando-se num único
problema. A tragédia clássica tem o fulcro da acção num conflito (ágon) que leva as
personagens a interrogarem-se sobre a sua existência e o destino (ananké), fazendo com que o
indivíduo lance um desafio (hybris) às autoridades, aos deuse4s, às leis da Natureza ou à
ordem. Como reacção surge a punição, o castigo – a némesis divina, que tem como
consequência o sofrimento das personagens (pathos). Os acontecimentos desenrolam-se
segundo os actos das personagens; o conflito do protagonista adensa-se e avoluma-se (clímax)
e, por vezes, os acontecimentos precipitam a acção no seu curso através de alterações
(peripécias), que acabam por inverter o rumo dos acontecimentos em sentido inesperado,
dando lugar ao desenlace fatal (catástrofe) Um reconhecimento (anagnórise) é que muitas
vezes desencadeia esta mudança brusca. A catástrofe deve ser sugerida desde o início pois o
resultado da luta entre a hybris e o destino cruel é inevitável. Estes acontecimentos e este
conflito criam no espectador uma tensão, uma curiosidade e expectativa tais, levando-o a
participar dos sentimentos e apreensões das personagens (catarse) como forma de purificar as
paixões dos espectadores, semelhantes às do protagonista, através de uma acção geradora de
compaixão e temor.

A tragédia clássica em Frei Luís de Sousa

Almeida Garrett criou a acção de Frei Luís de Sousa à luz da tragédia grega,
concretizando os vários elementos trágicos numa acção repleta de ansiedade, de presságios na
qual cada membro da família protagonista vive o drama colectivo. Assim, D. Madalena
cometeu um crime de amor, ao amar Manuel de Sousa Coutinho enquanto casada com D. João
de Portugal, desafiou a ordem existente que seria guardar fidelidade ao marido (hybris); o
conflito (ágon) parte desta situação, desenvolvendo-se com a mudança de cenário – incêndio
do palácio de Manuel e mudança para o palácio de D. João de Portugal (peripécia) – e adensa-
se com o regresso e reconhecimento do primeiro marido julgado morto, na figura de um
Romeiro (anagnórise), imprevisto que provoca o desfecho com a morte de várias personagens
(catástrofe). O desenrolar dos acontecimentos dá-nos conta do sofrimento (pathos),
principalmente de Madalena com os seus profundos estados de melancolia e terror,
alimentados pelos presságios de Telmo (coro) que se intensificam através da fatalidade das
datas, destruição do retrato de Manuel e mudança de habitação (clímax), conduzindo ao
desenlace. O sofrimento age sobre os espectadores, despertando neles os sentimentos de
terror e piedade para os purificar (catarse).
Tal como na tragédia clássica, o fatalismo é uma presença constante. O destino
apresenta-se como a força que move os acontecimentos e o futuro das personagens, tornando
a obra na sua concepção essencialmente trágica – a família de Manuel não se pode furtar à
inexorabilidade do destino apesar da sua nobreza e integridade.
O drama em Frei Luís de Sousa

Almeida Garrett recorreu a muitos elementos da tragédia clássica, mas elaborou um


drama romântico onde sobressaem os estados psicológicos das personagens; substituiu o
verso pela prosa, utilizou uma linguagem coloquial, fluente e próxima das realidades vividas
pelas personagens e dos seus estados de espírito, bem diferente de uma linguagem clássica;
não se preocupou com algumas regras, como a lei das três unidades (apenas cumpriu a
unidade de acção); retirou a presença do coro (embora Telmo possa ter afinidades com esta
«personagem», na medida em que comenta, faz juízos de valor perante as situações que
vive/assiste); foi buscar a matéria à realidade do país, com um fundo histórico (batalha de
Alcácer Quibir).
Segundo Victor Hugo, o drama é uma peça que retrata a vida real das personagens
onde as regras podem ser alteradas. As personagens podem ser dotadas de sentimentos vivos
e profundos e o desfecho pode ser ou não trágico, não sendo no entanto revestido da tensão
que caracteriza a tragédia clássica.
A obra em estudo possibilita uma classificação dupla, tal como está patente nas
palavras de Almeida Garrett: «Contento-me para a minha obra com o título modesto de
drama; só peço que não a julguem pelas leis que regem, ou devem reger, essa composição de
índole nova; porque a minha, se na forma desmerece da categoria, pela índole há-de ficar
pertencendo sempre ao antigo género trágico» (in «Memória ao Conservatório Real»).
O ESPAÇO CÉNICO

Acto I Acto II Acto III


Palácio de Manuel de Sousa Palácio que pertenceu a D. Parte baixa do palácio de D.
Coutinho, em Almada João de Portugal, em Almada João de Portugal/ Capela da
Senhora da Piedade, na igreja
de S. Paulo dos Domínicos de
Almada
Câmara antiga Salão antigo Casarão vasto
(luxo e elegância) (melancólico e pesado) (sem ornato algum)
Peças de mobiliário: bufete Peças de mobiliário: não são Peças de mobiliário: banca
pequeno; cadeiras antigas; referidas velha com dois ou três
tambores rasos; contadores candelabros
Janelas: duas grandes janelas Janelas: não há; apenas uma Janelas: não há
rasgadas tribuna que deita sobre a
Capela de Nossa Senhora da
Piedade
Objectos decorativos: porce- Objectos decorativos: não há Objectos decorativos: utensí-
lanas; xarões; flores; livros; referências lios próprios da igreja (to-
tapeçarias; um vaso da China cheiras; cruzes; ciriais; um
de colo alto esquife-tumba; uma grande
cruz de pau; uma toalha
branca; um castiçal; um
hábito completo – túnica,
escapulário, rosário, cinto,
etc)
Metais: prata (metal Metais: prata Metais: chumbo (metal não
precioso) precioso)
Tecidos referidos: sedas e Tecidos referidos: não são Tecidos referidos: algodão
veludos referidos, mas fala-se de
resposteiros grandes,
pesados, que tapavam portas
e tribuna, ostentando as
armas dos condes de Vimioso
Retratos: um retrato; o Retratos: grandes retratos de Retratos: não há
retrato de Manuel de Sousa família – bispos, damas,
Coutinho, de quando era cavaleiros e monges; três
noviço de S. João de retratos em destaque –
Jerusalém retrato de D. Sebastião,
retrato de Luís de Camões e
retrato de D. João de
Portugal

ACTO I – Encontramos um ambiente de luxo, de opulência e de requinte, com um


certo ar exótico (xarões, vaso da China). Este espaço está relacionado com a acção e com as
personagens. O espaço, embora interior, permite a comunicação com o exterior, através de
duas janelas rasgadas, que deixam ver o eirado e o rio Tejo. Através das janelas, entra também
a claridade. Temos pois um espaço cheio de luminosidade e colorido, o que sugere alegria,
leveza. É neste espaço que Manuel e Madalena vivem felizes o seu amor. O espaço revela
igualmente traços do carácter das personagens que nele se inserem. O luxo, a opulência, o
requinte remetem para personagens que valorizam o bem-estar físico, os bens materiais. Os
livros reflectem preocupações eruditas, mas são também um «alimento» para as almas mais
fantasiosas, alimentando sonhos e devaneios.

ACTO II – O requinte e a elegância deram lugar à melancolia e à austeridade. O espaço


torna-se muito fechado – não há janelas e as portas e a varanda estão tapadas por reposteiros.
Não há contacto com o exterior, nem entra a claridade. O ambiente é escuro, pesado e triste.
Parece que «grades invisíveis» se formaram à volta da família, conduzindo-a inevitavelmente
para um fim trágico. Mesmo que tentem fugir, tal não é possível. Por essa razão, Madalena
não queria regressar à sua anterior casa, à casa que pertenceu a D. João de Portugal; tal seria
como regressar para os seus «braços». Seria uma ameaça ao seu amor e à sua felicidade. O
cenário deste acto adequa-se ao carácter de D. João de Portugal, também ele inflexível,
austero, de princípios rígidos e melancólico.

ACTO III – A austeridade é total. O espaço fechou-se completamente. Todos os


objectos remetem para o fim das personagens: a tomada do hábito e a morte (física e
psicológica). O espaço não apresenta um único objecto que remeta para uma vida terrena,
material. O «despir» do espaço também tem a ver com o despojamento dos bens materiais –
Manuel e Madalena têm que deixar tudo o que os ligava a uma vida terrena, material, de
felicidade. É como se «morressem» para a vida; nem a tumba falta no cenário. As porcelanas,
os xarões, as sedas, os veludos, a prata são substituídos por algodão, madeira e chumbo. É o
peso de uma vida de resignação, de sacrifícios que se abate sobre eles. Nem Maria é poupada,
morrendo em cena. A cruz de madeira, ainda por cima negra, remete para o calvário e a morte
de Cristo. Também as personagens «morrem» e também elas têm de percorrer a sua «via
dolorosa» (Manuel e Madalena). Ao mesmo tempo, este calvário, forçosamente percorrido por
elas, funciona como uma espécie de expiação dos pecados, de purificação, encontrando-se em
Deus a salvação das almas. Tomarem o hábito era a única atitude digna que poderiam ter
tomado. Ou era isso, ou era viverem para sempre em pecado, o que implicava a perdição das
suas almas.

A LINGUAGEM SIMBÓLICA DOS NÚMEROS

Três – Simboliza o princípio totalizador e mediação: é um número do céu; é


encontrado geralmente em contos de fadas como o número de provas a serem superadas, de
enigmas a serem resolvidos, etc. Na crença popular, é usado frequentemente como modo de
quebrar feitiços, ou afastar as ondas negativas (ex.: bater três vezes na madeira).

Tríades famosas: homem/ mulher/ filho


Fé/ amor/ esperança (virtudes cristãs)
Enxofre/ sal/ mercúrio (princípios básicos da alquimia)
Nascimento/ desenvolvimento/ morte
Pai/ Filho( Espírito Santo

Na obra, o três aparece ora associado à ideia de perfeição, de princípio totalizador


(7X3= 21), ora como meio de afastar a desgraça («Não, não, não, três vezes não» - Telmo).

Sete – Pode ser encarado positiva ou negativamente; pode ser encarado como
expansão de uma totalidade (7 igrejas; livros de 7 selos; 7 céus, etc.); também pode vir
associado ao mal (7 cabeças da besta do Apocalipse; 7 taças da ira divina; 7 demónios, etc.)
Na obra, o número 7 aparece isolado, ou associado a outros números (2 e 3), podendo
ter valor positivo ou negativo.
7 anos – após o desaparecimento de D. João de Portugal, em Alcácer Quibir, Madalena
procurou exaustivamente notícias sobre ele durante sete anos;
14 anos (7X2) – Manuel e Madalena estiveram casados 14 anos. Foram 14 anos de
uma relação amorosa perfeita (aparentemente); foi uma união tão perfeita, tão bem
conseguida, que até gerou um fruto (Maria);
21 anos (7X3) – D. João de Portugal esteve ausente 21 anos. Aqui o número 7 já tem
uma carga negativa. Sendo o 3 o número da totalização, este transmite a ideia do fim de um
ciclo: era necessário que se fechasse o ciclo aberto com o desaparecimento do 1º marido de
Madalena. O povo costuma dizer que «à terceira é de vez»: D. João de Portugal não voltou ao
fim de 7 anos, não voltou ao fim de 14 anos (7X2), pelo que necessariamente teria que voltar
ao fim de 21 anos (7X3) – o prazo tinha terminado. Aqui o 7 já adquire conotação negativa,
porque surge associado à ideia de acontecimento trágico.

3 = perfeição
7 = tragédia
21 (7X3) – tragédia perfeita

Treze – Considerado de mau agouro, número do mundo subterrâneo; é o número da


destruição do perfeito.
Na obra, Maria está com 13 anos de idade o que, por si só, já é um péssimo presságio.
Maria é a mulher-anjo, a mulher perfeita, pura e imaculada. Na realidade, os seus treze anos
revelam-se fatais, porque é com essa idade que Maria morre, que o «ideal de perfeição» é
destruído.

ESTRUTURA EXTERNA:

Acto I – 12 cenas
• Cenas I – IV – informação sobre o passado das personagens;
• Cenas V – VIII – preparação da acção: decisão dos governadores e decisão
de incendiar o palácio;
• Cenas IX – XII – acção: incêndio do palácio.

Acto II – 15 cenas
• Cenas I – IV – informações sobre o que se passou depois do incêndio;
• Cenas IV – VIII – preparação da acção: ida de Manuel de Sousa Coutinho a
Lisboa;
• Cenas IX – XV – acção: chegada do romeiro.

Acto III – 12 cenas
• Cena I – informações sobre solução adoptada;
• Cenas II – IX – preparação do desenlace;
• Cenas X – XII – desenlace

PROJECÇÃO DE GARRETT NA OBRA

Entre Garrett e Madalena existem muitas afinidades, quer ao nível do percurso de vida
de ambos, quer ao nível do carácter amoroso.
Garrett foi um romântico, tal como Madalena.

GARRETT Frei Luís de Sousa


Garrett casou com Luísa Midosi, de quem não Madalena casou com D. João de Portugal; não
teve descendência; tiveram filhos (na realidade, houve três
filhos);
Garrett conheceu Adelaide Pastou, por quem Madalena conheceu Manuel de Sousa
se apaixonou; Coutinho, por quem se apaixonou;
Garrett separou-se de Luísa e foi viver com Após a separação/ desaparecimento de D.
Adelaide, o grande amor da sua vida; João, Madalena casou com Manuel, o grande
amor da sua vida;
Desta relação nasceu uma filha única: Maria Do casamento nasceu uma filha única: Maria
Adelaide; de Noronha (na realidade chamava-se Ana de
Noronha);
Garrett viveu atormentado com a ideia da Madalena vivia atormentada com a
ilegitimidade da filha; possibilidade de Maria se tornar filha
ilegítima;
Adelaide ficou gravemente doente com a Maria ficou gravemente doente com
tuberculose. Garrett viveu atormentado com tuberculose;
a ideia de que Adelaide pudesse morrer, sem
que ele tivesse oportunidade de dar um
nome digno à filha;
Adelaide morreu tuberculosa. Garrett não Maria morreu tuberculosa: Maria morreu de
conseguiu legitimar a situação da sua filha; «vergonha», ao descobrir que passou a ser
filha ilegítima;
Luísa foi o impedimento à felicidade de D. João impediu a felicidade de Madalena;
Garrett; ela impossibilitou que este com o seu regresso, o casamento com
legalizasse a situação civil da ilha. Manuel foi anulado e Maria passou a ser uma
filha ilegítima,
PERSONAGENS (CARACTERIZAÇÃO)
D. Madalena de Vilhena

D. Madalena é nobre: «sangue de Vilhenas»; o epíteto «dona» só se dava, no século


XVII, às senhoras da aristocracia.
O seu nome evoca a figura bíblica da «pecadora», da Madalena adultera que tentou
seduzir Cristo e que depois foi Santa Madalena. Também Madalena de Vilhena foi atingida pela
mácula do «adultério», embora este não se apresente com as características pecaminosas e
grosseiras, que lhe costumam ser peculiares. Se Madalena pecou, fê-lo involuntariamente; o
seu «pecado», se existiu, foi «abençoado» pelo sagrado sacramento do matrimónio e com o
consentimento familiar e social. De facto, Madalena casou com Manuel partindo do
pressuposto de que o 1º marido estava morto, pelo que estava livre para casar 2ª vez.
Contudo, Madalena sente, no seu íntimo, que atraiçoou o seu 1º marido. Ela própria confessou
que se apaixonou por Manuel ainda em vida de D. João de Portugal. O seu corpo manteve-se
fiel ao seu marido, mas o seu coração não. Esta «infidelidade sentimental» continuou a afligir
Madalena, mesmo depois de casada 2ª vez, fazendo-a sentir-se culpada, embora tudo
apontasse para a sua inocência. É este sentimento de culpa, associado aos terrores de que D.
João ainda esteja vivo, que não a deixam ser feliz ao lado do único homem que
verdadeiramente amou. Também Garrett viveu o drama da infelicidade amorosa. Casado com
Luísa, Garrett apaixonou-se por Adelaide Pastor. O facto de se ter apaixonado por Rosa
Montufar, a viscondessa da Luz, está pois ligado a Madalena, percorrendo caminhos
semelhantes: primeiro o pecado – adultério; em seguida vêm os remorsos; depois surge a
penitência e finalmente a redenção, redenção essa que só poderá ser alcançada através de
Deus. Maria Madalena converte-se ao cristianismo; Madalena de Vilhena entra para o
convento, entrega-se a Deus.
Madalena é a mulher-anjo, mas de natureza demoníaca – é uma mulher tipicamente
romântica. O seu temperamento é, em muitos aspectos, semelhante ao de Garrett. Deixando-
se reger pelos sentimentos, Madalena recusa-se a ouvir, sistematicamente, a voz do bom
senso, da razão. Ela é uma «amorosa» por excelência e, embora se apresente como uma boa
mãe, sempre preocupada coma filha, Madalena coloca acima do amor maternal o amor
passional: o marido (Manuel) vem primeiro do que a filha. É esta paixão avassaladora que a vai
arrastar e, igualmente com ela, todos os que a amam, à perdição. Por amar cegamente
Manuel, esta arrasta-o para uma situação de adultério inconsciente, que irá destruir os dois e
irá destruir igualmente o fruto desse amor.
Madalena revela-se uma mulher desequilibrada, irracional. Os sentimentos de culpa
torturam-na, não a deixando viver o presente. A este propósito, a própria Madalena
estabelece um paralelismo entre o seu caso e o de Inês de Castro, que ela considera mais
afortunada, porque viveu plenamente feliz, enquanto ela viver cheia de remorsos e de receios
aterradores. A referência à trágica história de amor de Inês de Castro deixa adivinhar um
desfecho igualmente infeliz para a história de amor de Madalena.

Inês de Castro Madalena de Vilhena


Conhece D. Pedro e apaixona-se Conhece Manuel e apaixona-se perdidamente
perdidamente por ele; por ele;
D. Pedro casa com Constança; Madalena estava casada com D. João;
Relação amorosa entre Inês de Castro e D. Adultério «sentimental»: Madalena casada
Pedro, antes de Constança morrer com D. João, mas apaixonada por Manuel;
(adultério);
Relação amorosa entre Inês de Castro e D. Casamento de Madalena e Manuel, após a
Pedro, depois de Constança morrer. «morte» de D. João;
Possibilidade de D. Pedro e Inês se casarem;
Tragédia: aproveitando uma ausência de D. Tragédia??? Poderá a história de Madalena
Pedro, Inês é morta. terminar igualmente em tragédia???

Madalena parece ser uma personagem perseguida pelo infortúnio, marcada pelo
destino para o sofrimento. Deixa-se dominar por agouros, crenças, presságios e profecias que
vão no fundo agudizar os seus terrores quanto a um possível regresso de D. João.
Curiosamente, Madalena é capaz de assumir atitudes contraditórias. Por exemplo, quando o
romeiro está diante dela, Madalena não consegue perceber que este é o seu primeiro marido.
Só quando as circunstâncias são irrefutáveis é que ela consegue alcançar o sentido das
palavras do Romeiro. Mesmo assim, Madalena vai tentar resistir até ao fim. No último
encontro que tem com Manuel, antes de tomar o hábito, Madalena tenta demover Manuel,
adiantando a possibilidade do Romeiro ser um impostor e estar a mentir. Até ao final, ela
recusa-se a aceitar as evidências e só se conforma com a solução do sacerdócio, porque
Manuel não recua, mantendo-se firme na sua nobre decisão.
Em Madalena encontra-se ausente o amor à pátria. Não se nota qualquer preocupação
relativamente à ocupação de Portugal pelos espanhóis. Quando Madalena se insurge é porque
os governadores espanhóis lhe querem ocupar o palácio: esta reage por amor próprio e não
porque no seu íntimo exista algum sentimento nacionalista, ou patriótico. É o orgulho ferido
que faz com que Madalena se revolte contra a «ocupação».

MARIA

D. Maria de Noronha também é nobre. Conhecemo-la quando está com 13 anos, o que
é já um mau presságio.
Na história real, a filha de Madalena e Manuel chamava-se Ana de Noronha. Garrett
preferiu substituir-lhe o nome e denominou-a Maria, numa homenagem provável à sua filha
(Maria Adelaide). Além disso, o nome Maria serve para imprimir à personagem uma maior
pureza, porque se pode associar `Virgem Maria, mãe de Jesus Cristo.
Maria é uma personagem estranha. Menina-mulher, tem atitudes que não são
próprias da sua idade. Preocupa-se igualmente com assuntos pouco adequados a uma menina
de 13 anos. Maria é uma patriota, que defende a identidade e a liberdade do povo português e
de Portugal. O seu sebastianismo tem a ver com o nacionalismo, não perdendo ela uma
oportunidade para «atacar» os espanhóis. Maria é uma idealista, que gostava de poder
combater pela pátria. No entanto, ela tem consciência das suas limitações (condição de
mulher, doença, etc.); quase que adivinha as condições pouco nobres do seu nascimento («O
que sou… só eu sei, minha mãe… E não sei, não, não seu nada, senão que o que devia ser não
sou…»).
Maria está doente. Percebemo-lo logo no início, não apenas através dos indícios
apresentados na obra, mas também através das constantes preocupações de todos os
membros da família e de Telmo. Maria tem acessos de febre ao entardecer, sintoma típico dos
doentes com tuberculose. Tem igualmente uma audição apuradíssima, ouvindo aquilo que
mais ninguém consegue ouvir. Aos tísicos (doentes com tuberculose), era costume atribuir-se
uma capacidade auditiva invulgar. Era habitual dizer-se que «tinha ouvidos de tísico» a
propósito de alguém que ouvia muito bem.
Tem também um espírito sonhador e fantasioso, que a faz sonhar de olhos abertos e,
outras vezes, a dormir. Percebemos também que Maria sofre de insónias (claro, é uma heroína
romântica), porque coloca dormideiras (variedade de papoila) debaixo da almofada para
dormir. Ao dormir, Maria tem frequentemente pesadelos, que são como que «relâmpagos»
que surgem na sua mente e que pressagiam a desgraça. Quando vê o Romeiro pela 1ª vez,
Maria diz que já o conhecia dos seus pesadelos. Com os seus sonhos, as suas fantasias, o seu
sebastianismo, Maria acaba por atormentar inconscientemente a mãe. Contudo, se faz mal à
mãe, é sem querer e sem o perceber, porque quando vê a mãe triste, ela evita tocar nos
assuntos que costumam melindrar a mãe.
Maria é-nos apresentada como a vítima inocente, que é «sacrificada», sem ter
cometido pecado algum, quase como se a sua morte servisse para expiar os pecados dos
outros.
Demasiado pura, inocente, perfeita, transcendente (é uma mulher-anjo), Maria não
«suporta» viver num mundo carregado de defeitos e acaba por sucumbir. Antes a morte a ter
que continuar a viver numa situação tão vergonhosa e tão pouco digna. Maria estava doente,
pelo que poderia perfeitamente ter morrido devido a causas naturais (o seu estado de saúde
agravou-se vertiginosamente: as febres foram aumentando, acompanhadas por tosse e
golfadas de sangue), mas Garrett preferiu que Maria morresse de «vergonha», por estar mais
de acordo com o espírito da tragédia. A tragédia implica que a morte ocorra em circunstâncias
anormais. Não é o punhal que se crava no peito de Maria, cobrindo-lhe o peito de sangue, mas
é a vergonha que a faz desistir de viver.
A morte em palco de Maria serve para provocar o terror no espectador, mas também
se poder ver na sua morte uma forma de salvação. Salva-se a sua alma, que foi para o céu, a
quem sempre pertenceu. Maria foi um «anjo» que, durante algum tempo, viveu na terra, mas
depois «ganhou asas» e subiu aos céus.
Em relação a esta personagem, é de destacar o importante papel desempenhado por
ela no final da peça. Curiosamente, é através da sua boca que surgem as críticas mais sérias e
agressivas à sociedade de então. Maria critica a instituição religiosa, o sagrado laço do
matrimónio: «Que Deus é esse que está nesse altar, e quer roubar o pai e a mãe a sua filha…
Vós não sois marido e mulher». Maria critica a inflexibilidade dos princípios religiosos que
impedem que os seus pais lhe possam dar um nome digno e critica igualmente os preconceitos
sociais, que recriminam uma relação não abençoada pelos laços sagrados do casamento e que
estigmatiza os filhos nascidos dessas relações. É a voz de Garrett que se faz ouvir através dos
lábios de Maria; é o seu grito de revolta contra a situação injusta da sua própria filha, Maria
Adelaide. A escolha de Maria para tecer as críticas mais severas e também mais perigosas não
terá sido arbitrária. Quem poderia apontar o dedo acusador a uma menina que sempre
mostrou qualidades louváveis? Além do mais, tudo se perdoa a quem está à beira da morte!
Ainda por cima, Maria fala debaixo da dor da descoberta da sua real situação. É pois uma
Maria enlouquecida, dominada pela dor, que levanta a sua voz pelo que, atendendo ao seu
estado psicológico, é de desculpar o facto dela ter cometido alguns excessos.

MANUEL DE SOUSA COUTINHO

Manuel é igualmente nobre. O ingresso na Ordem Militar de S. João de Jerusalém,


também chamada dos Hospitalários, ou do Hospital, e por fim de Malta, era rigorosamente
limitado aos membros da aristocracia, aos quais se exigia certificado de nobreza. Manuel,
quando novo, pertenceu a esta ordem religiosa e é precisamente com o hábito de noviço da
Ordem de S. João de Jerusalém que Manuel aparece no retrato que se encontra na cenário do
Acto I. Curiosamente, a este propósito, Maria chega a comentar a saída do pai desta ordem
religiosa, como se instintivamente adivinhasse que mais valia ele não ter casado com
Madalena e não ter abandonado a vida religiosa que, aliás, será o seu destino final.
O nome de Manuel é bíblico. É um dos nomes do Messias e significa «Deus connosco»,
significado que não fica mal a esta personagem, dada a boa fé com que se casara com
Madalena, a tranquilidade e a paz de consciência que daí se adivinha. Manuel sente grande
contentamento por conviver com os frades de S. Domingos; revela desapego aos bens
materiais e desamor pela própria vida.
É uma personagem marcadamente clássica. Embora apaixonadíssimo por Madalena,
Manuel consegue manter uma frieza de espírito notável. Quando o coração (sentimento) e a
cabeça (razão) são confrontados, é quase sempre a cabeça que ganha. Manuel não deixa os
sentimentos apagarem a clareza de espírito e actua sempre de modo racional e equilibrado.
Quase sempre ele faz aquilo que é correcto; ele diz o que é o mais adequado. Quando
descobre a verdade sobre o Romeiro, Manuel não hesita na decisão de entrar para o convento,
separando-se de Madalena, única atitude digna de um homem igualmente digno, que não
aceitaria nunca viver numa situação menos clara. Embora amando Madalena, Manuel prefere
o afastamento: é novamente a razão a comandar.
Outro aspecto que aponta para a racionalidade de Manuel tem a ver com o facto deste
não ser nada apegado a superstições ou a crendices populares. Ri-se dos receios de Madalena,
porque agoiros e superstições nada têm a ver com o seu espírito prático e objectivo.
Contudo, alguns aspectos contraditórios poderão ser encontrados nesta personagem.
Nada sujeito a agoiros, Manuel acaba por, no final do Acto I (Cena XI), fazer relevância à morte
desastrosa do pai, quase adivinhando um fim também desastroso para si - «Meu pai morreu
desastrosamente caindo sobre a sua própria espada. Quem sabe se eu morrerei nas chamas
ateadas por minhas mãos?». Encontramos aqui um Manuel supersticioso, que se deixa
contagiar pelos temores de Madalena e que começa, também ele, a recear que o incêndio do
palácio possa trazer uma desgraça ainda maior.
A personalidade equilibrada e forte de Manuel sofre alteração acentuada no início do
Acto III. É um homem atormentado, cheio de remorsos, que desabafa com Frei Jorge. Aqui, a
sua personalidade quebra-se completamente. O seu discurso sofreu também alterações:
torna-se desconexo, com repetições, com afirmações contraditórias, com frases suspensas. É
um homem desorientado que pede simultaneamente a morte para a filha (a razão, a cabeça,
diz-lhe que seria a forma mais airosa de Maria sair de toda aquela situação sem sofrer e sem
passar pela vergonha de conhecer a bastardia) e a vida (o sentimento, o coração, diz-lhe que a
sua filha não pode morrer, porque é uma filha muito querida e muito amada). De salientar que
em Manuel, o amor paternal, o amor pela filha, é mais forte, desempenha uma função mais
importante do que o próprio amor de homem, o amor que sente por Madalena. Em relação a
Madalena, Manuel não perdeu o equilíbrio, tomou a decisão mais correcta e, como cavalheiro
exemplar que era, assumiu a responsabilidade de todos aqueles acontecimentos trágicos.
Declarando a mulher inocente de qualquer pecado (não é bem assim, porque sabemos que
Madalena se sente culpada por se ter apaixonado por Manuel ainda em vida de D. João de
Portugal), Manuel assume total responsabilidade pela situação em que colocou a mulher e a
filha, chegando a sentir pena do próprio D. João de Portugal.
Importante para Manuel é ainda o seu amor à pátria. Esse amor à pátria leva-o a
cometer actos de autêntica loucura: desafia a autoridade espanhola, arriscando-se a ser preso.
Ao incendiar o seu palácio, Manuel mostra grande espírito de sacrifício, estando disposto a
tudo pela pátria, pelo seu sentimento de bom português. Ver a sua casa «invadida» pelos
espanhóis era como se visse Portugal a ser invadido uma 2ª vez. Já que não conseguiu evitar a
invasão dos espanhóis e a consequente perda de independência de Portugal, pelo menos
evitava a «invasão» da sua casa e a perda da sua própria dignidade e identidade como
português. Desprezando todos os bens materiais, destruindo tudo aquilo que conseguira
juntar ao longo de toda uma vida, Manuel mostra o grande amor que sente pela pátria e deixa
antever já o espírito predisposto ao despojamento dos bens materiais. Destruindo o «ninho de
amor», onde fora feliz com Madalena, privando-se de todos os confortos materiais, Manuel
estava a preparar-se gradualmente para o despojamento total, que ocorrerá com a entrada na
vida religiosa. Estes aspectos já são românticos, como romântico é o seu apego à liberdade e a
escolha de uma vida marginal. Depois de destruir o seu palácio, Manuel passa a ser uma
espécie de fora-da-lei, que se vê obrigado a fugir e a esconder-se, mas que não abdica nunca
dos seus princípios. Ora, o herói romântico é também, frequentemente, uma fora-da-lei no
bom sentido, um homem com uma causa justa, que vive à margem da lei, perseguido por um
poder, uma instituição que é conotada negativamente. Neste caso, Manuel é digno de
admiração, porque desafiou uma autoridade estrangeira e opressora. Convém, contudo,
referir que, na realidade, Manuel de Sousa Coutinho simpatizava com os espanhóis e até
mantinha com Espanha relações amigáveis. De facto, ele incendiou o seu palácio para evitar
que lá se instalassem os governadores espanhóis, mas fê-lo mais por questões pessoais do que
por questões patrióticas, como Garrett apresentou na obra Frei Luís de Sousa.
Manuel surge ainda ligado ao mito romântico do escritor, uma vez que os românticos
viam a vida religiosa como um refúgio para as «tempestades» e sofrimentos da vida.

D. JOÃO DE PORTUGAL

É igualmente nobre (nobre conde de Vimioso) e evoca o nome bíblico de João (grande
apóstolo).
O aparecimento do 1º marido de Madalena processa-se em três fases. Embora
fisicamente ausente, durante mais de metade da obra, D. João de Portugal está sempre
presente.
A 1ª fase corresponde aos terrores de Madalena, aos agoiros de Telmo e ao
sebastianismo de Maria. A «presença» de D. João paira no ar, como se de um «fantasma»
incómodo e assustador se tratasse. Madalena não consegue esquecer o seu 1º marido e vive
atormentada com a ideia de que este possa regressar a todo o momento. Telmo,
propositadamente, «alimenta» os terrores de Madalena, como se sentisse um prazer mórbido
em fazer sofrer Madalena. Fiel ao seu único e verdadeiro amo, (D. João), sentindo os ciúmes
que este nunca sentiu, Telmo não vai permitir que Madalena seja plenamente feliz com
Manuel, invocando constantemente o seu 1º marido. Maria, inconscientemente, acaba por
desempenhar uma função semelhante. O seu sebastianismo leva-a a desejar que ainda esteja
vivo o jovem rei português e que este volte para tirar o povo do jugo espanhol. Para Madalena,
este sebastianismo é perturbante porque, partindo da crença de que D. Sebastião estava vivo
e havia de voltar, também se poderia pensar que D. João estava vivo e, também ele, poderia
regressar. Esta fase observa-se no Acto I.
A 2ª fase observa-se no Acto II e corresponde ao retrato. Quando a família se desloca
para o palácio que foi de D. João de Portugal, assiste-se a uma semi-materialização. D. João
não está presente fisicamente, mas deixou de ser apenas um «fantasma», para se
«materializar» no retrato. Não é o seu corpo, mas é uma reprodução dele. Esta é a fase
preparatória para o surgimento físico de D. João Este vai ocorrer no final do Acto II, embora só
no Acto III o Romeiro se assuma como D. João de Portugal, utilizando sempre a 3ª pessoa
gramatical. É como se não falasse de si mesmo, mas de outra pessoa. Só no acto III, quando
está diante de Telmo, este é reconhecido como D. João. De salientar ainda que a primeira vez
em D. João/ Romeiro entra em cena, no Acto II, tal ocorre na cena XIII, aparecendo novamente
o número treze como um mau presságio: é como se anunciasse a entrada de uma
personagem, que iria ser responsável pela tragédia que se abaterá sobre a família.
O que se pode observar de D. João de Portugal é que este é um homem austero, de
princípios rígidos: um português dos antigos, como dizia Telmo.
Célebre e carregada de significado é a expressão usada pelo Romeiro, quando Frei
Jorge e Telmo lhe perguntam quem ele é: Ninguém. Este «ninguém» está implicitamente
ligado com o facto de todas as pessoas, em especial Madalena, terem partindo do princípio de
que D. João de Portugal morrera no norte de África. Assim sendo, era como se ele já não
existisse no coração e na memória dessas pessoas. O ninguém» também poderá estar
relacionado com o progressivo esvaziamento da personagem. No passado, quando casado com
Madalena, D. João apresentava um conjunto riquíssimo de características: era nobre, tinha um
nome reconhecido e digno, tinha os seus bens materiais (por exemplo: o palácio de Almada),
tinha uma mulher que amava, tinha uma família, tinha um rei, tinha uma Pátria. Agora, D. João
de Portugal já nada tem: perdeu o nome (já só o conhecem como o Romeiro), perdeu os bens
materiais (o palácio em Almada está «ocupado» por outro «dono»), perdeu a mulher (que está
«casada» com outro homem), perdeu a família (que o julgou morto) e regressou a um lugar
que já não tem rei, nem identidade própria (pertence a Espanha). Por todas estas razões fácil é
perceber que o «ninguém» remete também para este progressivo «empobrecimento» da
personagem.
O «ninguém» poderá ainda ter outro valor: como Telmo afirmava «já não há daquela
gente». D. João de Portugal não funcionaria somente como uma personagem individual, mas
sim como uma personagem colectiva, um símbolo do verdadeiro povo português, do
português do passado glorioso como, aliás, se pode verificar através do nome «Portugal». Sem
rei, sem Pátria, sem directrizes, sem esperança no futuro, o povo português despersonalizara-
se, perdera a garra e o brio, perdera a raça e o orgulho. Este «ninguém» pode quase transmitir
esta ideia.
Para terminar esta questão, não esquecer que, em relação à história real de Manuel e
Madalena, nunca se apurou qual a razão que levou à separação e entrada num convento dos
dois, tendo circulado o boato de que o facto teria ficado a dever-se ao aparecimento do 1º
marido de Madalena. Contudo, nunca se conseguiu chegar a uma conclusão e, talvez por isso,
Garrett tenha também optado por manter um certo mistério à vota da personagem Romeiro.
Nem Madalena «vê» naquele homem envelhecido e amargurado o seu marido. No final, o
próprio Romeiro recusa-se a assumir a sua verdadeira identidade.

TELMO PAIS

Trata-se do leal escudeiro de D. João de Portugal. Não é de origem nobre, contudo


ocupa um estatuto privilegiado na família. É uma pessoa considerada por todos, tendo um
ascendente muito grande sobre Maria e Madalena. Maria nutre por ele quase um amor filial e
Madalena vê nele um «pai», um conselheiro, um confidente. Telmo faz a ligação entre o
passado e o presente. Tendo servido D. João na sua meninice, vê nele um filho, tendo-se
sempre recusado a aceitar que ele tivesse morrido na batalha de Alcácer Quibir. Telmo vai
atormentar os catorze anos de casamento de Madalena e é, com um mórbido prazer, que ele
aproveita as crenças, os receios e os terrores de Madalena para os alimentar ainda mais, não
permitindo nunca que Madalena se esqueça do seu 1º marido, lembrando-lhe sempre que
este poderá estar ainda vivo e regressar para reclamar o seu legítimo estatuto. Telmo chega
até a «sentir os ciúmes» que o marido sentiria ao ver-se atraiçoado. Telmo desempenha aqui o
papel do coro da tragédia grega, que tem a função de comentar, antecipar os acontecimentos
e de lançar avisos. Luís de Camões utiliza um trocadilho com o seu nome (Telmo e São Telmo).
São Telmo era considerado o advogado, o protector dos navegadores.
Além de atormentar directa e propositadamente Madalena, Telmo fá-lo também
indirectamente através de Maria, explorando a sua fantasia e o seu espírito sonhador. Telmo
vai desenvolver em Maria o gosto pelo sebastianismo. Relativamente a Maria, no início, Telmo
não a podia ver, porque era filha do seu rival, mas Maria foi crescendo e acabou por conquistar
o coração do velho escudeiro com toda a sua meiguice, ao ponto deste afirmar que gosta mais
dela do que os próprios pais. Quando colocado á prova, no Acto III, o coração de Telmo acaba
por pender para o lado de Maria. Colocado entre dois amores (D. João e Maria), Telmo mostra
nitidamente que o amor que sente por Maria é maior que o que sente por D. João. Telma
chega a sentir-se tentado a mentir, dizendo que o Romeiro era um impostor, mas os seus
rígidos princípios morais impedem-no de contar tal mentira. Também relativamente a Manuel
Madalena, as suas atitudes e sentimentos mudam. Após o incêndio, arrepende-se de nunca ter
dado o devido valor a Manuel e reconhece-o como um grande homem e um grande português.
Quando esteve diante do Romeiro, defendeu Madalena a que considerou a mais digna e
honrada dama de Portugal, deixando de lhe apontar o dedo acusador, como no Acto I.

CARACTERÍSTICAS CLÁSSICAS
- O conteúdo é de tragédia; é Garrett que o afirma na «Memória ao Conservatório
Real»;
- Número reduzido de personagens e de origem nobre;
- Felicidade ilusória; Madalena vive uma felicidade aparente;
- Os sentimentos de remorso (Manuel);
- O fatalismo; tudo se conjuga para que as personagens se precipitem para um fim
trágico:
* Os medos/terrores de Madalena deixam prever uma tragédia;
* O sebastianismo de Maria faz Madalena viver amargurada com o regresso de
D. João;
* O 2º casamento de Madalena, sem que o corpo do 1º marido tenha
aparecido, lança Madalena para um fim necessariamente trágico. Madalena é, em parte,
responsável pelo seu destino;
*A carta escrita por D. João, na véspera da batalha de Alcácer Quibir,
prometendo que regressaria é uma ameaça que paira sobre a cabeça de Madalena;
* A constante reprovação de Telmo, os seus agoiros, o seu sebastianismo
perseguem igualmente Madalena;
* A referência a Inês de Castro deixa no ar uma ameaça de tragédia (Acto I,
Cena I – monólogo de Madalena);
* A mudança do palácio de Manuel para o de D. João parece prender/
empurrar Madalena;
* Manuel, ao incendiar o seu próprio palácio, empurra Madalena para os
«braços» de D João. Manuel é, em parte, responsável pelo seu próprio destino;
* É o próprio Manuel que, ao incendiar o seu palácio, lembra a morte
desastrosa de seu pai, adivinhando quase que ele próprio está a ajudar o destino a conduzi-los
para um fim trágico;
* O fechamento do espaço: o espaço mais reduzido (cela), sem janelas e
austero «prende» as personagens numa «teia» invisível;
* A concentração do tempo (21 anos, 14 anos, 7 anos, 8 dias, um dia, hoje,
sexta-feira) tem igual função. Associado à 6ª feira (dia considerado aziago por Madalena –
celebrava-se 21 anos da batalha de Alcácer Quibir), temos o fatalismo do número sete,
associado ao número três; mais uma vez deixa adivinhar que aquele será o dia fatal, o dia em
que a tragédia se abaterá sobre a família;
* A própria Maria, diante do retrato do pai quando moço, sente pena por o pai
ter deixado a ordem de Malta, considerando que o hábito lhe ficava muito bem, deixa
antecipar quase a «morte» psicológica de Manuel e a reentrada na vida religiosa;
* O exemplo de soror Joana (tia de Maria) e do marido (acto incompreensível
para Madalena), mais uma vez, é um indício do destino final das duas personagens – convento;
- A unidade de acção; a tragédia grega exigia unidade de acção e aqui temos uma
acção única envolvendo uma família nobre portuguesa;
- A Hybris – desafio: Manuel desafia as autoridades espanholas ao incendiar o seu
palácio;
- O Pathos – sofrimento (de Manuel, de Madalena, etc.;
- A Agnórise – reconhecimento: a revelação da verdadeira identidade do Romeiro;
- O terror, a compaixão e a piedade: a tragédia deveria provocar sentimentos de terror
e de piedade no público. Quem ficará indiferente ao conflito interior de Manuel, à morte de
Maria, Manuel e Madalena?;
- Sobrevivência do coro, através de Telmo e dos salmos encontrados no Acto III;
- As personalidades de Manuel (até certo ponto), de Frei Jorge e de D. João de
Portugal.

CARACTERÍSTICAS ROMÂNTICAS

- A forma: está escrito em prosa;


- A feição nacionalista/ o patriotismo;
- O amor à liberdade – liberalismo;
- O cenário – não é um mero espaço, mas está carregado de significado;
- Não há unidade de espaço – o incêndio do palácio de Manuel obrigou à mudança de
espaço. A tragédia grega obrigava a que a acção decorresse no mesmo espaço (regra das 3
unidades – acção, tempo e espaço);
- Situações melodramáticas – morte de Maria em cena;
- Cenas violentas – incêndio do palácio;
- Amor – predomínio do amor sobre a razão, o que irá levar à desgraça;
- Sebastianismo;
- Crenças, agouros, visões, sonhos, mistérios;
- A religiosidade;
- O individualismo: a afirmação da própria individualidade;
- O tema da morte;
- O tempo – a noite;
- A mulher-anjo (Maria);
- A personalidade amorosa de Madalena;
- O herói marginal - Manuel

O TEMPO

Julho Agosto
1599 6ª Sáb. Dom. 2ª 3ª 4ª 5ª 6ª

28 29 30 31 1 2 3 4

A acção, no Acto I, inicia-se no dia 28 de Julho de 1599.

Já no Acto II, assiste-se a um salto no tempo de 8 dias, passando-se para o dia 4 de


Agosto, uma 6ª feira, 21 anos após a Batalha de Alcácer Quibir. É neste dia que surge o
Romeiro. Maria afirma: «Há oito dias que aqui estamos nesta casa…»

O Acto III decorrerá na madrugada do dia de Agosto.

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