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SEBALD-O Dr. Henry Selwyn PDF
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Henry Selwyn
guais, a torre e as copas das árvores que mal se destacam na como um palco, abria-se sobre um grande terraço com balaustra-
planura. A praça do mercado, ampla e rodeada de fachadas silen- da de pedra, debaixo da qual jazia um gramado amplo e quadrado,
ciosas, estava vazia, mas não demorou muito para encontrarmos
rodeado de canteiros de flores, arbustos e árvores. Além do gra-
a casa indicada pela agência. Era das maiores no lugar e ficava
mado, a oeste, descortinava-se a paisagem, um parque com árvores
numa rua quieta perto da igreja com o seu cemitério gramado,
isoladas: tílias, olmos e carvalhos sempre verdes. Atrás, as ondu-
pinheiros escoceses e teixos, oculta atrás de um muro da altura de
lações suaves das terras aráveis e, no horizonte, as alvas monta-
um homem, e uma densa vegetação de louro e azevinho. Descemos
nhas de nuvens. Contemplamos longamente, mudos, aquela
um pouquinho pela entrada ampla e pelo terreno da frente, regu-
propriedade que descia e subia em degraus, levando o olhar para
larmente coberto de cascalho fino. À direita, depois dos estábulos
a distância, e pensávamos estar inteiramente sozinhos, quando per-
e galpões, erguia-se bem alto no claro céu de outono uma faia com
cebemos um vulto imóvel estirado na meia-sombra que um alto
uma colónia e ninhos de gralhas deserta àquela hora, no começo
da tarde, formando manchas escuras embaixo do telhado de folhas cedro, no canto sudoeste do jardim, deitava sobre a relva. Era um
que só às vezes se moviam. A larga fachada da casa em estilo clás- velho, com a cabeça apoiada no braço dobrado, parecendo intei-
sico estava coberta de videira, a porta, laqueada de preto. Usamos ramente absorto na contemplação do palmo de terra diante de seus
várias vezes a aldrava, um sinuoso corpo de peixe, de latão, e nada olhos. Atravessamos o gramado, que tornava nossos passos mara-
se mexia no interior da casa. Recuamos um pouco. As vidraças das vilhosamente leves, e fomos até ele. Mas só quando estávamos bem
janelas divididas em doze partes pareciam todas feitas de espelho perto é que nos percebeu, erguendo-se um pouco constrangido.
escuro. Não parecia haver ninguém morando lá. Lembrei-me da Embora alto e de ombros largos, parecia atarracado, sim, a gente
casa de campo na Charente, que eu visitara um dia vindo de podia dizer que parecia um homem pequeno. Talvez porque,
Angoulême, diante da qual dois irmãos loucos, um deputado, como logo veríamos, usasse óculos de leitura com aros de ouro e
outro arquiteto, haviam erigido em décadas de planejamento e olhasse por cima deles, sem levantar a cabeça, com certeza acos-
construção uma réplica da fachada do palácio de Versalhes, um tumara-se a essa postura curvada, quase subserviente. Tinha 05
cenário inteiramente inútil mas muito impressionante visto de cabelos brancos penteados para trás, mas uma e outra madeixa:
longe, cujas janelas eram tão brilhantes e escuras como as desta insistiam em cair sobre sua testa singularmente alta. / was countin^
casa que víamos agora. Teríamos certamente seguido adiante, sem the blades ofgrass, disse ele, desculpando-se pela contemplação en
nada resolver, se não nos tivéssemos encorajado mutuamente com que estivera mergulhado. It's a sort ofpastime of mine. Rathc
um olhar rápido, concordando em dar pelo menos uma olhada irritating, Iam afraid. Ele jogou com a mão uma madeixa branc
no jardim. Contornamos a casa, cautelosos. No lado norte as te- para trás. Seus movimentos eram a um tempo desajeitados
lhas estavam verdes, hera variegada cobria parte das paredes, um criteriosos; havia igualmente uma cortesia bastante antiquada n
caminho musgoso passava pela entrada de serviço e o galpão de maneira como se apresentou a nós, como dr. Henry Selwyn. Acrr>
lenha para a casa, entrando por sombras profundas, e finalmente, centou que certamente tínhamos vindo por causa da casa. Ate ond
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declarou um dia, por um lado revelavam-se cada vez mais difusos e Edward fora preparado lugar nas duas cabeceiras; para Clara e
e, por outro, cada vez mais claros e precisos. Só uma vez o vimos para mim, o lado oposto ao da janela. Estava praticamente escu-
receber visita. Se não me falha a memória, foi na primavera, em ro dentro de casa e também lá fora o verde se cobria de sombras
fins de abril. Quando Hedi estava na Suíça, o dr. Selwyn certa azuis cada vez mais acentuadas. Mas no horizonte ainda impe-
manhã veio até o nosso apartamento para dizer que tinha con- ravam a luz do ocidente e uma cadeia de nuvens cujas forma-
vidado para jantar um amigo a quem o ligavam muitas coisas ções nevadas ao anoitecer me faziam lembrar os mais altos
do passado e que ficaria muito contente se concordássemos em maciços dos Alpes. Aileen entrou com um carrinho que conser-
formar com os dois um petit comité. Quando, pelas oito horas, vava a comida aquecida, algo como um design patenteado dos
descemos até o drawing room mobiliado com vários sofás de anos trinta. Usava o vestido-avental cinza e fez seu trabalho
quatro lugares e pesadas poltronas, havia fogo aceso na grande muda, quando muito resmungando algumas coisas consigo
lareira para nos proteger do penetrante frio da noite. Das pare- mesma. Acendeu as luzes, colocou as travessas na mesa e dei-
des pendiam altos espelhos parcialmente manchados, que mul- xou a sala, arrastando os pés, como entrara. Nós mesmos nos ser-
tiplicavam o fogo refletindo imagens inquietas. O dr. Selwyn vimos e tivemos de carregar as travessas ao redor da mesa uns
vestia um paletó de tweed com cotovelos de couro e uma grava- para os outros. A entrada consistia em alguns poucos aspargos
ta. Seu amigo Edward Ellis, que ele nos apresentou como um verdes cobertos com folhas de espinafre marinadas. O prato prin-
cipal eram brócolis na manteiga e batatas cozidas em água com
conhecido botânico e entomólogo, era, ao contrário do outro,
hortelã, que, como explicou o dr. Selwyn, em fins de abril já atin-
magro e, enquanto o dr. Selwyn teimava em manter-se meio
gem o tamanho de nozes no solo arenoso de uma velha estufa.
curvado, seu amigo se mantinha bem ereto. Também vestia paletó
Por fim comemos compota de ruibarbo com açúcar e creme de
de tweed. O colarinho da camisa estava folgado demais no pes-
leite. Quase tudo daquela horta selvagem. Antes de sairmos da
coço enrugado, que se esticava e encolhia feito um acordeão,
mesa Edward conduziu a conversa para a Suíça, provavelmente
como o pescoço de certos pássaros ou de uma tartaruga; sua ca-
por achar que o dr. Selwyn e eu tínhamos nesse país um tema
beça era pequena, parecia de algum modo pré-histórica ou comum. Com efeito, o dr. Selwyn, depois de uma certa hesita-
involuída, mas os olhos brilhavam com extrema vivacidade. No ção, começou a falar dos tempos em que vivera em Berna pouco
começo falamos sobre o meu trabalho e os nossos planos para os antes da Primeira Guerra Mundial. Começou dizendo que no
próximos anos, bem como sobre o que, tendo crescido nas mon- verão de 1913, aos vinte e um anos, concluíra os estudos de me-
tanhas, pensávamos da Inglaterra, especialmente do plano e ex- dicina em Cambridge e logo depois fora para Berna a fim de
tenso condado de Norfolk. Começou a escurecer. O dr. Selwyn completar sua formação. Mas as coisas não tinham acontecido
ergueu-se e com alguma solenidade liderou o pequeno grupo como ele planejara. Ficava a maior parte do tempo na região do
cm sua marcha para a sala de jantar, anexa ao drawing room. Oberland bernes, cada vez mais entusiasmado com o alpinismo,
Sobre a mesa de carvalho, que teria facilmente acomodado trin- Passava semanas em Meiringen e Oberaar, onde conhecem um
i .\ convidados, havia dois candelabros de prata. Para o dr. Selwyn guia chamado Johannes Naegeli, naquele tempo com sessenta e
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cinco anos, com quem simpatizara desde o começo. Fora por se estivesse aguardando o sinal junto à porta, entrou Ailecn com
toda a parte com Naegeli, para o Zinggenstock, o Scheu- um carrinho e um projetor sobre ele. O grande relógio de bronze
chzerhorn e o Rosenhorn, o Lauteraarhorn, o Schreckhorn e o
Ewig-Schneehorn, e nunca em sua vida, nem antes nem de-
pois, se sentira tão bem como na companhia daquele homem.
Quando a guerra estourou e fui chamado de volta à Inglaterra
para me alistar no exército, disse o dr. Selwyn, a coisa mais difí-
cil, posso ver isso agora com clareza, foi separar-me de Johannes
Naegeli. Mesmo a separação de Hedi, que conheci em Berna no
Natal e com quem me casei depois da guerra, nem de longe me
custou tanto quanto me afastar de Naegeli, a quem ainda hoje
vejo acenando para mim na estação de Meiringen. Mas, disse o
dr. Selwyn um pouco mais baixo, como para si mesmo, talvez
eu esteja só imaginando isso porque em todos aqueles anos Hedi
foi ficando cada vez mais distante de mim, enquanto Naegeli,
sempre que surge em meus pensamentos, me parece cada vez
mais familiar, ainda que na verdade eu não o tenha visto mais
depois daquela despedida. Naegeli sofreu um acidente no per-
curso para Oberaar logo depois da mobilização e desapareceu.
Acredita-se que tenha caído numa fenda da geleira do Aare.
Recebi essa notícia numa das primeiras cartas que me chegaram
dourado no peitoril da lareira foi empurrado para o canto, as
quando estava na caserna e entrei numa grave depressão que
estatuetas Meissner — um casal de pastores e um mouro de rou-
quase me tirou da tropa. Enquanto a depressão durou, era como
pas coloridas com olhos revirados — foram afastadas, e a tela na
se eu estivesse soterrado debaixo de neve e gelo.
moldura de madeira que Aileen também trouxera foi posta diante
Mas, disse o dr. Selwyn depois de uma pausa mais longa, isso
do espelho. O leve zumbido do projetor começou, e a poeira da
são velhas histórias, e na verdade, continuou falando para Edward, sala, habitualmente invisível, tremulou brilhando no cone de \u/.
queremos mostrar aos nossos hóspedes retratos de nossa última como um prelúdio às imagens que logo viriam. A viagem fora leiia
viagem a Creta. Voltamos ao drawing room. As achas de lenha na primavera. A paisagem insular espraiou-se à nossa frente
rebrilhavam no escuro. O dr. Selwyn puxou o cordão de uma cam- como sob um véu verde-claro. Algumas vezes via-se lulward tom
painha presa à direita da lareira. Quase no mesmo instante, como binóculo e um recipiente para acondicionar espécimes, ou o d r.
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Selwyn com calções até os joelhos, bolsa a tiracolo e rede de apa- Singularmente, tanto Edward quanto o dr. Selwyn pareciam
nhar borboletas. Uma das imagens era absolutamente igual a juvenis nas fotos que nos mostravam, embora na época da via-
uma foto de Nabokov feita nas montanhas acima de Gstaad, que gem, dez anos atrás, já tivessem bem mais de sessenta. Senti que
eu recortara alguns dias antes de uma revista suíça. esse regresso ao passado deixava os dois emocionados. Talvez eu
só tenha pensado nisso porque nem Edward nem o dr. Selwyn
disseram ou tiveram o que dizer sobre essas fotos, ao contrário das
muitas outras que registravam a flora primaveril da ilha e toda sorte
de bichos rastejantes ou alados, de modo que, enquanto as fotos
tremiam levemente na tela, na sala reinava um silêncio quase ab-
soluto. Na última cena descortinava-se diante de nós o planalto
de Lasithi, fotografado de um passo ao lado norte. A foto devia
ter sido feita ao meio-dia, pois os raios do sol vinham ao encon-
tro de quem a contemplava. A montanha Spathi, com cerca de
dois mil metros de altura, sobressaindo na planura ao sul, parecia
uma miragem atrás da torrente de luz. No vale amplo viam-se
as plantações de batatas e verduras, os pomares, outros peque-
nos grupos de árvores, e a terra não cultivada era verde sobre
verde, atravessada por centenas das brancas velas dos cata-ven-
tos. Ficamos sentados vendo essa imagem, calados, tanto tempo
que por fim o vidro na moldura estreita se partiu e um risco es-
curo atravessou a tela. A tão longa vista do planalto de Lasithi,
fixada até estalar o vidro, me marcou profundamente, mas logo
a esqueci. Só voltei a lembrar-me dela alguns anos depois num
cinema de Londres, quando vi uma conversa que Kaspar Hau-
ser teve com seu mestre Daumer, na horta da casa deste, onde,
para alegria do mentor, Kaspar pela primeira vez consegue dis-
tinguir entre sonho e realidade, iniciando o seu relato com as
palavras: Sim, eu sonhei. Sonhei com o Cáucaso. A câmeru se
move da direita para a esquerda em amplo arco, mostrando o
panorama de um planalto, que podia ser na índia, cercado por
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cordilheiras, enquanto construções em forma de pagode com mas nos últimos tempos voltavam a toda hora. Ainda posso ver
fachadas estranhamente triangulares, como templos ou torres, no Cheder, a escola que eu frequentava em criança, o profes-
aparecem entre arbustos e matas verdes, extravagâncias que, na sor botando a mão em minha cabeça. Vejo os quartos vazios.
luz forte que ofusca a imagem, sempre me recordam as velas dos Vejo-me sentado bem no alto da carroça, vejo o lombo dos ca-
cata-ventos de Lasithi, que na verdade ainda não vi. valos, a terra castanha e ampla, os gansos no lamaçal das gran-
Em meados de maio de 1971 saímos de Prior's Gate, por- jas com os pescoços esticados e a sala de espera da estação de
que certa tarde Clara simplesmente comprou uma casa. Nos Grodno com o aquecedor no meio da sala, protegido por gra-
primeiros tempos sentimos falta da ampla vista, mas agora, em des e superaquecido, e as famílias de emigrantes instaladas ao
compensação, diante de nossas janelas, mesmo em dias sem redor dele. Vejo os fios de telégrafo subindo e descendo diante
vento moviam-se quase incessantemente as lancetas verdes e das janelas do trem, vejo as fachadas das casas de Riga, o navio
cinzentas de dois salgueiros. As árvores estavam a uns quinze no porto e o canto escuro do convés onde, com todas as limita-
metros da casa, e a dança das folhagens ficava tão perto da gente ções da circunstância, procuramos nos acomodar em alto-mar;
que muitas vezes, ao olhar para fora, pensávamos fazer parte lembro o rastro de fumaça, o horizonte cinzento, o subir e o
dela. O dr. Selwyn aparecia a intervalos bastante regulares, a descer do navio, o medo e a esperança que todos sentíamos;
casa ainda tão vazia, trazendo-nos verduras e ervas de seu quin- revivo tudo isso, disse-me o dr. Selwyn, como se fosse ontem.
tal — vagens amarelas e azuis, batatas e batatas-doces cuida- Depois de uma semana, muito menos do que esperávamos, che-
dosamente lavadas, alcachofras, salsa, sálvia, cerefólio e aneto. gamos ao destino. Entramos na foz de um grande rio. Por toda
Numa dessas ocasiões, aproveitando que Clara tinha ido à ci- parte, vapores grandes e pequenos. Depois da água, a terra pla-
dade, o dr. Selwyn e eu entramos numa conversa mais longa, na. Todos os emigrantes estavam reunidos no convés esperan-
que começou com o dr. Selwyn me perguntando se eu não sen- do que a Estátua da Liberdade emergisse do nevoeiro, pois
tia saudades de casa. Não soube bem o que responder, mas ele, todos tinham comprado passagem para Americum — como a
depois de refletir um pouco, confessou-me — não sei de outra chamávamos. Quando descemos em terra, ainda não alimen-
palavra para a situação — que no curso dos últimos anos sen- távamos qualquer dúvida de termos debaixo dos pés o Novo
tia cada vez mais saudades de casa. Quando quis saber o lugar Mundo, a elogiada cidade de Nova York. Mas na realidade,
a que essas saudades o levavam, ele me contou que na idade como percebemos somente depois de nosso navio ter zarpado
de sete anos tinha emigrado com a família de uma aldeia lituana novamente, estávamos em Londres. A maior parte dos emigran-
perto de Grodno. Fora no fim do outono de 1899 que seus pais, tes se conformou, por necessidade, com sua situação, mas
as irmãs Gita e Raja e o tio Shani Feldhendler tinham viajado alguns, apesar de todas as evidências contrárias, se agarravam
para Grodno na carroça do cocheiro Aaron Wald. Por décadas desesperadamente à crença de estarem na América. P o r t a n t o
as imagens dessa partida andaram sumidas da memória dele, cresci em Londres, num porão em Whitechapel, na ( í o n l s t o n
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Street. Meu pai, que era polidor de lentes, comprou com suas tempo ainda escondi minha origem. Nos anos vinte e trinta
economias parte da sociedade numa ótica que pertencia a um vivemos em grande estilo, do qual o senhor viu o que restou.
conterrâneo de Grodno chamado Tosia Feigelis. Frequentei a Gastamos nisso boa parte da fortuna dela. Eu trabalhava em
escola primária em Whitechapel, e ali, como num sonho, por meu consultório na cidade e como cirurgião no hospital, mas
assim dizer da noite para o dia, aprendi a falar inglês, pois, por os meus ganhos não teriam permitido aquele padrão de vida.
puro amor, eu bebia cada palavra dos lábios de minha linda e Nos meses de verão fazíamos passeios de carro pela Europa
jovem professora, Lisa Owen, e voltava para casa pensando nela toda. Next to íennis, disse o dr. Selwyn, motoring was my greatest
e repetindo sem parar tudo o que ela dissera durante o dia. Foi passion in those days. Todos os carros ainda continuam nas
também essa bela professora, disse o dr. Selwyn, que me ins- garagens e talvez valham algum dinheiro. Mas nunca conse-
creveu para exame de admissão na Merchant Taylors' School, gui vender nada, except perhaps, aí one point, my soul. People
pois estava convencida de que eu conseguiria uma das poucas have told me repeatedly that I haverít the slightest sense ofmoney.
bolsas de estudos concedidas anualmente a alunos pobres. Não cheguei sequer a providenciar uma aposentadoria para
Cumpri o que ela esperava de mim; a luz na cozinha da mora- minha velhice. This is why I am now almosí a pauper. Em com-
dia de dois quartos em Whitechapel, onde me sentava até tar- pensação, Hedi administrou bem o resto de sua fortuna, nada
de da noite quando o resto do pessoal já tinha ido há muito desprezível, e hoje é com certeza uma mulher rica. Ainda não
para a cama, nunca se apagava, como comentou várias vezes sei direito o que nos separou, o dinheiro ou o segredo de mi-
tio Shani. Eu estudava e lia tudo que aparecia na frente dos nha origem que ela finalmente descobriu, ou simplesmente o
olhos, superando as dificuldades com facilidade cada vez mai- arrefecimento do amor. Os anos da Segunda Guerra e as déca-
or. No fim do período escolar, quando tirei a melhor nota de das subsequentes foram para mim um tempo sem sentido e
minha turma nos exames finais, parecia-me ter percorrido um ruim, sobre o qual, mesmo que quisesse, nada teria a contar.
trajeto imenso. Tinha chegado ao auge da auto-estima e, como Quando em 1960 tive de fechar meu consultório e despachar
numa espécie de segunda confirmação, mudei meu nome de meus clientes, desfiz os últimos contatos com o chamado mun-
Hersch para Henry e o sobrenome de Seweryn para Selwyn. do real. Desde então quase só falo com plantas e animais. De
Singularmente, logo no começo de meus estudos de medicina, algum modo me dou bem com eles, disse o dr. Selwyn com um
feitos em Cambridge mais uma vez com bolsa, senti que mi- sorriso meio enigmático. Finalizando o discurso, levantou-se
nha capacidade de estudar diminuíra sensivelmente, embora e, o que foi altamente inusitado, ofereceu-me a mão em des-
também em Cambridge meus exames tivessem obtido as me- pedida.
lhores notas. O senhor já sabe como tudo continuou, disse o Depois dessa visita o dr. Selwyn nos procurou cada vc/.
dr. Selwyn. Veio o ano na Suíça, a guerra, o primeiro ano de menos e a intervalos cada vez maiores. Nós o vimos pela ú l t i -
t r a b a l h o na índia e o casamento com Hedi, a quem por muito ma vez no dia em que trouxe para Clara um ramo de rosas bran-
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