Você está na página 1de 6

Violência de gênero ST.

5
Carolina Marra Simões Coelho
PUC-Minas / Benvinda
Rebeca Rohlfs Barbosa Gaetani
Instituto Albam
Palavras-chave: violência de gênero, grupos, empoderamento.

Metodologias de trabalho em grupos no enfrentamento à violência contra a mulher

Estima-se que, no Brasil, cerca de dois milhões de mulheres sofram, por ano, violência
praticada por seus companheiros (Venturi, Recamán, Oliveira, 2004; Brasil, 2004). Esse número
alarmante mostra a necessidade de mobilização social e de políticas públicas transversais que
trabalhem essa questão. Nas últimas três décadas, os movimentos feministas brasileiros vêm lutando
para que a violência contra a mulher seja reconhecida não como um problema privado – a ser
resolvido pelo próprio casal – mas como um problema público, que deve ser considerado como
prioridade pelo Estado. Um dos resultados dessa luta é a formulação de políticas públicas voltadas
para mulheres em situação de violência de gênero.
No entanto, embora esses programas sociais estejam em funcionamento na maioria dos
Estados brasileiros, não há uma perspectiva de gênero transversal a todas as políticas públicas,
tornando o atendimento precário em muitos setores e perpetuando as desigualdades entre homens e
mulheres.
Assim, os avanços obtidos nas últimas décadas são muitos, mas a violência ainda faz parte
do cotidiano de milhares de mulheres brasileiras. A violência de gênero é fruto de uma construção
social que demarca espaços de poder privilegiando os homens e oprimindo as mulheres. A violência
marca profundamente o corpo e os espaços psíquicos da mulher, tendo graves conseqüências para a
saúde física (ex: lesões corporais leves e graves, transtornos gastro-intestinais, doenças sexualmente
transmissíveis, fibromialgia) e psicológica (ex: depressão, ansiedade, tentativa de suicídio) da
mulher. Essa forma de violência atinge mulheres de todas as classes sociais, religiões, culturas,
raças e etnias, constituindo um problema social e de saúde pública. É uma violação aos direitos
humanos e um obstáculo para a cidadania.
Frente a esse problema, os movimentos de mulheres e as instituições governamentais e não
governamentais vêm empenhando esforços a fim de construir relações de gênero mais eqüitativas e
de traçar estratégias de enfrentamento da violência de gênero.
Neste artigo, pretendemos discutir a experiência de grupos de mulheres realizados numa
parceria entre um Centro de Referência a Mulheres em Situação de Violência - da Prefeitura
Municipal de Belo Horizonte/MG - o Juizado Especial Criminal (JECrim) e o Instituto Albam
(ONG).
Esses grupos - denominados Roda Viva - são compostos por mulheres que denunciaram a
violência de gênero e que deram prosseguimento à denúncia, resultando na aplicação de transação
penal a seus agressores. A lei que se aplica a grande maioria dos casos de violência contra a mulher
é a lei 9.099/95, que foi elaborada para julgar os crimes de "menor potencial ofensivo" (lesão
corporal e ameaça) e que criou os Juizados Especiais Criminais.
Um mérito da lei 9.099/95 foi publicizar a violência doméstica, uma vez que antes da lei,
dificilmente um caso de violência doméstica chegava ao judiciário. Por outro lado, a aplicação de
penas como multa e prestação de serviço à comunidade não têm alcançado o efeito desejado e têm
deixado às vítimas insatisfeitas e com sentimento de impunidade (Campos, 2003).
Durante muito tempo, as únicas transações penais para casos de violência doméstica e intra-
familiar eram as transações pecuniárias e o pagamento de cestas básicas. Essas medidas banalizam a
violência e a perpetuam, pois não fazem com que o agressor se responsabilize pelo ato cometido. A
partir de críticas e de resultados insatisfatórios destas transações penais, o Juizado Especial
Criminal de Minas Gerais buscou parcerias com instituições públicas e organizações não
governamentais para construir uma nova perspectiva de encaminhamento de casos de violência
contra a mulher, criando grupos de reflexão para os agressores e para as vítimas.
Analisaremos aqui três grupos de mulheres realizados desde o segundo semestre de 2005. A
análise dos encontros foi realizada a partir de relatórios elaborados por Carolina Marra S. Coelho,
Esther Lorenzo Outon e Rebeca Rohlfs B. Gaetani. O Grupo Roda Viva balizou-se no método de
Oficinas em Dinâmica de Grupo, sistematizado por Lúcia Afonso (2002; 2003), no qual o grupo se
propõe a trabalhar em cima de uma questão central, em um dado contexto social, buscando uma
elaboração que envolve "(...) os sujeitos de maneira integral, formas de pensar, sentir e agir"
(AFONSO, 2002, p.11). Cada grupo é realizado num período de dez encontros, de freqüência
semanal, com duração de duas horas cada. A participação das mulheres é voluntária.
O objetivo do grupo é propiciar às mulheres em situação de violência um espaço de reflexão
e elaboração, trabalhando a recuperação da auto-estima, o resgate da identidade, a construção da
cidadania e a desnaturalização da violência de gênero.
A metodologia utilizada permite trabalhar dimensões terapêuticas e pedagógicas com o
grupo. Assim, no decorrer dos encontros são passadas informações que permitem as participantes
buscarem mecanismos de reconhecimento e prevenção da violência. O processo grupal promove a
reflexão sobre a história de vida de cada uma, enfocando os custos da assimetria nas relações de
gênero, e possibilitando mudanças atitudinais direcionadas à maior equidade de gênero.
O grupo é um espaço de transformação - embora também esteja presente a resistência à
mudança - quando são trabalhadas dimensões como o vínculo e a comunicação entre os
participantes (Afonso, 2002). Frente a isso, nosso ponto de partida foi trabalhar a integração das
participantes e a identificação com os objetivos do grupo. O vínculo e a comunicação foram
trabalhados durante todo o processo grupal. A identificação entre as mulheres e o sentimento de
pertença ao grupo facilitou a integração e o desenvolvimento do trabalho. Em todos os grupos
pudemos perceber grande respeito entre as mulheres, mesmo as situações de conflito eram vistas
como algo positivo, pois a heterogeneidade dentro do grupo permitia às mulheres perceberem a
amplitude do problema da violência de gênero.
Podemos ver algumas diferenças entre as participantes a partir do perfil das mulheres. Este
perfil foi levantado em um questionário que dezesseis mulheres responderam individualmente. A
faixa etária das participantes variou entre 18 e 65 anos, sendo que a metade delas tem entre 40 e 50
anos de idade. Como sabemos, a violência de gênero é recorrente, podendo aprisionar as mulheres
durante anos, tornando-se cada vez mais freqüente e mais grave. Entre as participantes do grupo,
43% sofrem violência há mais de sete anos e 37,5% identificam o início da violência entre dois e
três anos. Apenas uma mulher denunciou a violência no primeiro episódio de agressão física.
Quanto à renda, 62,5% das mulheres têm renda de até dois salários mínimos, 18,75% não
têm renda e 18,75% têm renda entre dois e dez salários mínimos mensais. Quanto a escolaridade,
25% das mulheres estudou menos de 4 anos, 50% cursou o ensino médio (clássico ou técnico), 25%
cursou ou estava cursando o ensino superior. Ou seja, embora a escolaridade da maioria das
mulheres seja alta - 10 anos ou mais de estudo - em relação à média nacional (ver Sistema Nacional
de Informações de Gênero - SNIG-Br), o rendimento mensal ainda é baixo, embora 75% delas
declare que exerce atividade remunerada no mercado formal ou informal.
Entre as participantes do grupo, 68,75% declaram-se pardas e 31,25% declaram-se brancas.
É importante ressaltar a variável cor/raça, uma vez que no Brasil as discriminações de gênero e raça
acentuam as desigualdades e contribuem "para a configuração de padrões distintos de sofrimento,
adoecimento e morte" (Brasil, 2004, p.25).
Todas as mulheres que participaram dos grupos ainda estavam sofrendo alguma forma de
violência, portanto o foco dos grupos foi violência de gênero e empoderamento. Em cada grupo há
uma pequena variação de temas abordados, já que cada um tem suas particularidades. Mas há temas
que são trabalhados em todos os grupos por serem considerados fundamentais dentro do processo
de enfrentamento à violência, são eles: gênero, violência, direitos, comunicação, identidade, auto-
estima e projeto de vida. Trabalhamos ainda outros temas, mais flexíveis, de acordo com a demanda
de cada grupo, como paternidade, maternidade e sexualidade.
Desde o primeiro encontro, as mulheres apresentaram muita necessidade de falar e um
grande respeito em escutarem as histórias das outras. Só havia interrupção de uma fala quando
alguém exclamava: “Isso acontece igual na minha casa!”. Houve o reconhecimento de que a
violência de gênero é um problema amplo, que atinge muitas mulheres, de diferentes classes
sociais, raças, religiões etc, devendo ser enfrentado coletivamente. A identificação entre elas e o
interesse pelo tema trabalhado mobilizou as mulheres a participarem do grupo. Embora tenha
havido uma dificuldade inicial de sensibilizá-las para integrarem o grupo, após o início do processo,
a adesão e freqüência foi alta. Algumas mulheres relataram que os companheiros não queriam que
elas freqüentassem o grupo, mas que, apesar disso, elas iriam participar, mostrando o início de um
processo de autonomia e empoderamento.
Começamos com o trabalho do tema "identidade". As técnicas de apresentação levaram as
mulheres a refletirem sobre quem são. Nos três grupos, a identidade das participantes está
intimamente vinculada à violência e, ao se apresentarem, elas dão lugar de destaque às experiências
de anos de violência. A violência as define enquanto pessoas e mulheres. Elas demonstram
confusão e distanciamento em relação à sua subjetividade. Mulheres sem desejos, assujeitadas à
situação que as levou ao grupo e com pouca possibilidade de se transformarem.
A identidade é construída na relação do sujeito com o outro. As relações desiguais de poder
e a violência, a qual são submetidas nos relacionamentos amorosos - seja com os pais na infância,
seja com os companheiros na vida adulta - fazem-nas sentir-se ora cúmplices, ora vítimas da
situação que vivem. Ao trabalhar a identidade, as mulheres começam a questionar sobre o que
gostam, o que fazem e o que querem para o futuro. À medida que vão tomando consciência de suas
necessidades e interesses, sua confiança em si mesmas aumenta, dando um passo na direção do
empoderamento.
Para darmos continuidade a esse processo, o outro passo importante é trabalhar a auto-
estima, pois não basta nos debruçarmos em "quem eu sou", se eu me vejo pelo espelho do negativo.
Como sabemos, a auto-estima é construída desde que nascemos e por isso factível de crescimento.
As participantes do grupo possuem um nível de auto-estima muito baixo, o que dificulta o processo
de empoderamento. Portanto, reafirmamos a necessidade de trabalharmos este aspecto. Com o
decorrer do processo, o próprio grupo trás reflexões que conduzem a um aumento da auto-estima
das participantes. Esse processo é visível, pois a cada semana elas se apresentam mais cuidadosas
com elas mesmas, tornando-se mais participativas e se apropriando de suas potencialidades.
A identidade e a auto-estima estão relacionadas também aos papéis sociais de homens e
mulheres. Gênero é um conceito relacional que considera as relações de poder entre homens e
mulheres e indica que os papéis e as subjetividades de ambos são construções sociais. Abrange
dimensões psicológicas, sociais e culturais da feminilidade e da masculinidade (Almeida, 1996;
Coelho, 2005). A princípio elas acreditam serem naturais as desigualdades de gênero, atribuindo à
diferença sexual os lugares de homens e mulheres na sociedade. As reflexões sobre gênero
realizadas no grupo, permitiram, por exemplo, que elas identificassem quando reproduziam as
desigualdades de gênero com seus filhos e, algumas delas, conseguiram modificar a divisão de
tarefas dentro de casa, distribuindo com os filhos homens os afazeres domésticos.
Durante todos os encontros, os temas gênero e violência foram abordados de forma
transversal e, ao passo que tais temas são aprofundados, fica claro que a maioria das mulheres
reconhece apenas a violência física, enquanto as outras formas de violência (sexual, psicológica,
patrimonial) não têm visibilidade para elas. A violência está presente no cotidiano das mulheres e é
naturalizada por nossa sociedade, sendo difícil identificar quando são vítimas de discriminação e
opressão de gênero. Heleieth Saffioti (2004) indigna-se com o fato de que, em pleno século XXI, as
mulheres ainda tenham as "mentes dominadas", não percebendo quando são alvo de violência de
gênero. Um exemplo da naturalização da violência é a dificuldade das mulheres em identificarem se
eram vítimas de violência na infância. Nos questionários, todas afirmaram não ter sido vítima de
violência quando eram crianças, mas no decorrer dos encontros muitas relataram episódios de
agressões físicas, abusos sexuais e de serem obrigadas pelos pais a trabalhar.
As reflexões e elaborações proporcionadas pelo grupo, a partir de uma visão com "óculos de
gênero", possibilitaram às mulheres se reconhecerem em relações violentas e desiguais, percebendo
quando toleram abusos de seus companheiros. A identificação da violência causa um estranhamento
e um choque, ao mesmo tempo em que as motiva a sair desse ciclo de violência. O enfrentamento à
violência se dá de diversas maneiras, algumas mulheres passam a não permitir atos de violência,
outras começam a construir a possibilidade de separação, embora isso muitas vezes vá de encontro a
suas crenças e valores. Falas como: "minha mãe dizia que casar e morrer é só uma vez" ou "eu
achava que casamento é para sempre, acontecesse o que acontecesse" eram recorrentes.
As crenças e valores, a culpa, a vergonha, o medo, a esperança que o companheiro mude seu
comportamento e o amor aparecem em suas falas como justificativas para permanecerem na
situação de violência. No entanto, as reflexões no grupo permitiram a elas perceberem que são
educadas para serem submissas, perpetuar os papéis desiguais de gênero e suportar a violência
como algo natural.
Pudemos perceber que muitas participantes se deram conta da transformação que foram
experimentando nelas mesmas, desde quando começaram a participar do grupo. Observamos
mudanças no discurso e no modo de se expressar, mostrando autonomia e confiança. No entanto,
elas identificam a dificuldade de modificar sua atitude em relação ao companheiro, mas pequenas e
significativas mudanças são percebidas como alicerces para o rompimento do ciclo de violência.
Um grupo com dez encontros não é suficiente para mudar crenças e valores há muito
estabelecidos, mas temos a certeza que a possibilidade de participar de grupos de reflexão tem
levado essas mulheres a questionar os papéis cristalizados de gênero e seu posicionamento frente à
violência, abrindo a possibilidade de construírem relações mais eqüitativas de gênero.

Referências:
AFONSO, Lúcia (org.). Oficinas em dinâmica de grupo: um método de intervenção psicossocial.
Belo Horizonte: Edições do Campo Social, 2002.

AFONSO, Lúcia et alli. Oficinas em dinâmica de grupo na área da saúde. Belo Horizonte: Edições
do Campo Social, 2003.

ALMEIDA, Suely Souza de. Violência de gênero: público X privado. Tese (Doutorado em
Ciências Sociais). São Paulo: PUC-SP, 1996.

CAMPOS, Carmen Hein de. Juizados Especiais Criminais e seu déficit teórico. Rev. Estudos
Feministas, jan./un. 2003, vol.11, no.1, p.155-170.

COELHO, Carolina Marra Simões Coelho. Cidadania em políticas públicas voltadas para
mulheres em situação de violência de gênero. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social). São
Paulo: PUC-SP, 2005.

BRASIL. Presidencia da República. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Plano


Nacional de Políticas para as Mulheres. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres,
2004.

SAFFIOTI, Heleieth. Gênero e patriarcado – violência contra mulheres. In: VENTURI, Gustavo;
RECAMÁN, Marisol; OLIVEIRA, Suely de. A mulher brasileira nos espaços público e privado.
São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2004. p. 43-59.

VENTURI, Gustavo; RECAMÁN, Marisol; OLIVEIRA, Suely de. A mulher brasileira nos espaços
público e privado. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2004.

Você também pode gostar