Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
RIO DE JANEIRO
FEVEREIRO DE 2012
1
RIO DE JANEIRO
FEVEREIRO DE 2012
2
AGRADECIMENTOS
Aos professores Ronald Arendt, de quem tive o privilégio de ser aluno, e Ariane
Patrícia Ewald, por terem participado da avaliação deste trabalho;
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo principal apontar uma outra moeda
que o conhecimento não consegue abarcar, pelas suas inerentes
impossibilidades, isto é, a da então denominada “dinâmica do não saber”.
4
ABSTRACT
The present work has as a main objective to point out some issues that the
knowledge can’t hold, for its inherent impossibility, these are called ‘dynamic
of unknowing’.
5
ÍNDICE
INTRODUÇÃO 7
V. CONSIDERAÇÕES FINAIS 68
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 70
7
INTRODUÇÃO
Esta temática veio a mim como interesse por eu perceber que um dos
aprendizados do curso de Psicologia é exatamente o do aparente e contraditório espaço
do não saber. Digo isto porque, antes da faculdade, esperamos encontrar na mesma
respostas prontas e manuais para intervenção junto a questões psíquicas e, ao longo do
curso, vamos percebendo que estas “respostas” não vêm, e, ao contrário, as perguntas
só se multiplicam. Mais do que uma inquietação pelo aparente não aprendizado ou
tentativas de se alinhar conhecimento de abordagens teóricas divergentes, vem à tona a
percepção da aquisição deste aparente “não conhecimento”, como algo dinâmico,
como o maior aprendizado.
Não que isto “blinde” o texto para uma averiguação ou análise sobre aquilo que
está sendo escrito e se possa escrever “qualquer coisa”, pois, afinal, estamos no
“campo anárquico do não saber”. Contudo, para uma mínima coerência, não será do
intuito desta produção uma exatidão ou precisão técnica quanto aos termos
assinalados, mas uma aproximação e um contato que vise uma reflexão,
provavelmente sem conclusões imperiosas do campo do saber, tal como conhecemos.
8
Indubitavelmente ou, para uma maior coerência, sem o intuito de querer deixar
nada definido, só podemos compreender e bem visualizar como a questão do
conhecimento se estrutura hoje se nos remontarmos a uma das fontes históricas da
contemporaneidade ocidental: a Grécia.
palavras, não seria ela pertencente a um não saber que é apropriado pelo homem e,
posteriormente, seu conteúdo criativo trazido para o campo do conhecimento, num
constante e infindável percurso? Eis um aspecto da lógica de raciocínio e
desenvolvimento tecnológico-científico.
10
De fato, o ceticismo não pode ser visto apenas como uma mera má vontade ou
alto grau crítico em relação a qualquer conclusão, verdade ou conhecimento que possa
ser adquirido, mas a um alto teor de fidedignidade em relação ao que se pode
verdadeiramente afirmar sobre algo. Alguns podem alegar que, a depender apenas dos
céticos, não haveria hoje algo próximo do que chamamos de Ciência, o que pode ser
bem verdade, contudo suas colocações foram um lado “negativo” que, dialeticamente,
contribuíram em muito na engrenagem de um pensamento dito científico.
As fórmulas “não sei nada”, “não defino nada”, aparentemente simplórias, eram
respostas dadas pelos pirrônicos para discussões sem fim borbulhantes nas ágoras
gregas. Para Antístenes, que não é considerado cético, mas um defensor do
nominalismo na linguagem, “não há duas maneiras de designar uma mesma coisa. Se
não se entendem é porque acreditando falar de um mesmo objeto, na realidade falam
de outro. Se falassem do mesmo, se entenderiam; não podem se contradizer porque
não dizem nada.” (BROCHARD, 2009, p. 42-43).
Tal incerteza no campo teórico, como vimos, era apropriada na própria vida de
Pirro, sendo ele completamente indiferente e apático em relação à vida. Não se
interessava por nada, se limitava a viver. Segundo Tímon, discípulo de Pirro:
“[...] aquele que quer ser feliz deve considerar estes três pontos: em
primeiro lugar, o que são as coisas em si mesmas? Depois, que disposições devemos
ter em relação a elas? Finalmente, o que nos resultará dessas disposições? As coisas
não têm diferença entre si, e são igualmente incertas e indiscerníveis. Por isso,
nossas sensações e nossos juízos não nos ensinam nem o verdadeiro nem o falso. Por
conseguinte, não devemos nos fiar nem nos sentidos nem na razão, mas permanecer
12
sem opinião, sem nos inclinarmos para um lado ou para o outro, impassíveis.
Qualquer que seja a coisa de que se trata, diremos que não se deve mais afirmá-la do
que negá-la, ou que se deve afirmá-la e negá-la ao mesmo tempo, ou que não se deve
nem afirmá-la nem negá-la. Se estivermos dispostos a isso, diz Tímon, alcançaremos
primeiro a afasia, em seguida a ataraxia.” (BROCHARD, 2009, p. 68)
“Ele levava ainda tão longe a indiferença que um dia, tendo seu amigo
Anaxarco caído num pântano, continuou seu caminho sem socorrê-lo e, como foi
censurado, o próprio Anaxarco elogiou sua impassibilidade.”
(BROCHARD, 2009, p. 84)
É notória uma certa dose de incongruência, e por que não dizer de dogmatismo
em relação à forma de se proceder na vida. Se se deve viver como todo mundo, por
que não reagir também como todo mundo reagiria e se sensibilizar ajudando o amigo
que caiu no pântano ? Não virariam os próprios procedimentos de suspensão de juízo,
indiferença e imparcialidade uma forma de dogma, regra ou crença que desvirtuaria o
próprio ceticismo? É preciso um grau de certeza ou confiança para se agir como um
cético. Ou não? É como se o próprio convite à vida estendesse um tapete vermelho de
inevitável incoerência e parcialidade.
ser vista como sendo tão somente estas diferenciações e apreços particulares que cada
um de nós damos em relação a(o) que(m) nos cerca?
Segundo Tímon, a dúvida tem como consequência tornar toda ação impossível,
contudo isto não deve conduzir à inércia, mas à ação. Ela seria propiciada pelo critério
prático da ataraxia, que “permitirá distinguir, em meio às nossas representações,
aquelas que se deve seguir e aquelas que se deve descartar.” (BROCHARD, 2009, p.
97)
de fato existente, percebido. É de uma ordem difícil de ser expressado, porém passível
de ser percebido, como uma epifania. Isto é, algo existente que acaba fugindo do
campo da razão e do conhecimento bruto.
“Parece que a vista percebe a cor, as dimensões, as formas, mas ela não percebe nada
disso. Não percebe a cor de um homem: esta cor varia segundo as estações, as ações,
a natureza, a idade, as circunstâncias, a saúde, a enfermidade, o sono, a vigília.”
(BROCHARD, 2009, p. 142)
“Se você mente, você mente; ora, você mente, por tanto, você mente – Crisipo não
pôde sair disso” (BROCHARD, 2009, p. 144)
A solução da “ataraxia” não foi a única como critério para ação dada pelos
céticos, há, também, os não mais precisos “racional”, para Arcésilas, e o “provável”
para Carnéades. Contudo, se assim possível fosse numa vida prática, o não agir em
relação à vida seria recomendado por muitos céticos. Sinteticamente, a ação é
impossível a quem não tem crenças, para se agir é preciso se acreditar em algo ou ter
um propósito em relação ao mesmo. Como podem viver os céticos?
“Todo movimento exige uma causa, toda asserção, quer se refira ao presente, quer
se refira ao futuro, é verdadeira ou falsa, como não concluir que tudo se encadeia,
que todo acontecimento, qualquer que seja, depende dos acontecimentos anteriores, e
por conseguinte, é determinado antecipadamente, é certo e pode ser predito? E dizer
que tudo se encadeia, que o Fatum é a lei suprema do mundo não é dizer que tudo
acontece necessariamente, que não há lugar para a liberdade? [...] É este, em termos
um pouco diferentes, o eterno problema da presciência divina e do livre arbítrio.”
(BROCHARD, 2009, p. 159-160)
(BROCHARD, 2009, p. 170). Isto é, haveria uma união daquilo que é sensível com o
racional e o fenômeno indicaria o que é o mais provável e condizente a ser feito.
Dando um exemplo atual, ao se atravessar a rua, a sensação de calma proporcionada
pelos carros diminuindo suas velocidades, aliado à codificação do sinal vermelho
dirigido para eles, induz o pedestre a seguir com segurança. Não há a certeza absoluta
de que os carros, tresloucadamente, não resolverão acelerar e atropelar o passante,
porém é provável que isto não aconteça e ninguém deixará de atravessar uma rua pela
ausência desta precisão absoluta de segurança.
Seja pela via da fala ou da escrita, quase que por um processo de “associação
livre”, somos inclinados não diretamente ao saber, mas à expressão de algo que, assim,
17
se deixa ser conhecido. Assim, temos diversos tipos de saber, sejam eles legítimos,
verdadeiros ou não. Muitos filósofos céticos, apesar de defenderem que nada sabiam,
afirmaram muito mais do que sabiam, perdidos e engalfinhados neste parlant1.
Tal como vimos, a solução dada por Carnéades para a “ação”, dada em função
daquilo que é “provável”, já não faz dele tão cético assim:
“Os persas permitem que os filhos se casem com suas mães, os egípicios, que os
irmãos se casem com suas irmãs, a lei grega o proíbe. Quantas diferenças entre as
diversas religiões, entre as opiniões dos filósofos, entre as narrativas dos poetas!
Portanto, pode-se dizer que os homens pensaram sobre este ou aquele ponto o que
lhes pareceu verdadeiro, não o que é verdadeiro.” (BROCHARD, 2009, p. 265)
“Não podemos separar as coisas daquilo que as cerca, assim como não distinguimos
o azeite num unguento. Mas não separá-las é não conhecê-las em si mesmo”
(BROCHARD, 2009, p. 264)
Tais separações dos objetos daquilo que os cerca para que sejam “conhecidos”,
como visto na passagem acima, assim como a construção de modelos ou
estabelecimento de paradigmas, municiam a Ciência para um conhecimento
pragmático, contudo tais discriminações sempre deixam um lastro de não-
conhecimento. Este material que “foi deixado para trás”, “sem serventia para o
momento” pode ser impossível de ser extinto, configurando-se sempre como um não
saber.
A sabedoria, tal como sintetizada por François Jullien (2000), se caracteriza por
não privilegiar nenhuma idéia, visão, olhar ou “parti pris” sobre a realidade. Isto é, não
se enunciando ou privilegiando nada, a realidade será mantida tal como ela é, e não
haverá corrupção de sua autenticidade.
nada assim se apresente. A visão do sábio se assemelharia, assim, ao céu, cuja virtude
é “a totalidade dos processos em curso” sem “nada pôr à frente” (JULLIEN, 2000, p.
17-18).
Um sábio é aquele que não possui desejo ou idéia, ele se conduz de acordo com
um “real”, que é característico por sua transformação contínua, não se estabelecendo
ou fixando em ponto algum. A preocupação não é com uma verdade, mas com uma
imparcialidade que, exatamente por sua neutralidade, se demonstra mais fidedigna e
verdadeira do que qualquer outra “verdade” impositiva e científica.
Aquilo que é considerado o “real” pode ser da ordem do indizível ou, se não de
outra ordem, incapaz de ser expressado em sua totalidade pela via da linguagem ou
mesmo pela nossa língua.
“Ouve-se sempre esta mesma observação: que a filosofia não faz, propriamente,
nenhum progresso, que os mesmos problemas filosóficos que já ocupavam os gregos
ainda nos ocupam. Mas os que dizem isso não compreendem a razão pela qual deve
ser assim. Ora, essa razão é que nossa língua permaneceu idêntica a si mesma e que
ela nos desvia sempre para as mesmas questões. Enquanto houver um verbo ‘ser’
que parecerá funcionar como funcionam ‘comer’ e ‘beber’, enquanto houver os
adjetivos ‘idêntico’, ‘verdadeiro’, ‘falso’, ‘possível’, [...], os homens sempre virão
tropeçar de novo nas mesmas dificuldades enigmáticas e contemplar com um ar fixo
aquilo que nenhuma explicação parece capaz de esgotar.”
(Wittgenstein, 1931, apud Jullien, 2000, p. 189)
O homem de bem é considerado aquele não parcial, que age no mundo “para o
que a situação exige”. Podemos observar aqui uma similaridade para com certos
pensadores céticos.
21
“se ele se abstém de ter idéia própria sobre a questão, é para ficar inteiramente livre
de responder ao que a situação exige” (p. 26)
Se pudéssemos ousar apontar, hoje, algo que fosse exatamente o inverso (ou o
igual3) da sabedoria, seria aquilo que é conhecido na internet como “Gerador de
blábláblá”, isto é, um dispositivo que gera um determinado texto (de qualquer
tamanho) que pode se adequar a qualquer coisa. Tal façanha é alcançada pela
combinação de palavras-chave que expressam tudo, mas na verdade não expressam
nada, tal como se vê abaixo:
“É claro que a competitividade nas transações comerciais não pode mais se dissociar
das diretrizes de desenvolvimento para o futuro. Evidentemente, a complexidade dos
estudos efetuados faz parte de um processo de gerenciamento das novas
proposições.”
(Gerador de Blábláblá)
3
Em proposição dogmática de Enesidemo, compartilhada com Heráclito: “na realidade, no absoluto,
os contrários coexistem.” (BROCHARD, 2000, p. 282)
23
Talvez, a despeito dos mais de 2 milênios que separam uma passagem da outra,
de fato, não haja diferença alguma. Contudo, a proposta da sabedoria é a do caminho,
de maneira que o receptor de ambas as leituras esteja incluso neste processo. Para a
primeira passagem, o leitor pode, por exemplo, simplesmente durmir ou encarar isto
como uma brilhante crítica aos vocábulos e discursos vazios da Pós-Modernidade. Já
na segunda passagem, também novamente durmir ou ter a percepção da narrativa do
reconhecimento do “não saber” ali presente.
Um outro aspecto considerado pela sabedoria se refere àquilo que é dito como
oculto. Aquilo que é oculto e não conseguimos “ver” se dá justamente pelo seu caráter
imanente junto à realidade, isto é, é algo tão presentificado no dia-a-dia que ficamos
“cegos” para tal objeto. Assim, para haver uma percepção do oculto, seria necessário
um distanciamento (seja ele de que ordem for) da realidade, para que se pudesse captar
a existência deste oculto.
Por exemplo, aquilo que é entendido como sendo “normal” ou “natural” para
nós, em nossa cultura, poderá ser visto como completamente anômalo se nos
dirigirmos para as culturas orientais (e vice-versa). O caráter de certas características
óbvias e completamente defensáveis da nossa identidade por muitas vezes se revela
como algo completamente cultural e sócio-historicamente determinado.
Se pensarmos, por exemplo, numa tribo dita “primitiva”, tais como algumas dos
índios exterminados da América, perceberemos que, dentre seus processos culturais,
não há nada menos “evoluído”, em termos lógico-racionais, do que a nossa cultura
consumista e capitalista atual. Se por um lado algumas tribos tinham a dança da chuva,
25
Embora talvez tenha sido algum tipo de impulso crítico que se tenha levado ao
que aqui especificamos como um tipo de “sabedoria”, é preciso se destacar que ela, em
si, não tem nada de crítica ou revolucionária, sequer em intenção. Muito pelo
contrário, de um modo perspicaz, contudo bastante “cru” (no sentido de literal), a
tradição neoconfuciana assim a define: “o caminho do sábio não passa de uma lógica
da perfeita adaptação” (JULLIEN, 2000, p. 78).
Um bom exemplo de chegada a este “caminho” seria, por exemplo, tocar com
virtuosidade algum instrumento musical, de maneira que este ato se constitui um
“fundo” e não um objetivo. Qual o objetivo de se tocar um instrumento, de se produzir
música? É como algo que já responde por si, em ato.
Tais conceitos como verdade e razão, não se pode esquecer disto, são histórico-
culturalmente construídos e determinados. Não há nada de natural ou espontâneo em
se falar sobre tais questões e instrumentalizações: o sábio é um ser tranquilo.
Talvez não haja “definição” melhor para o sábio do que esta abaixo:
“É sábio aquele para quem, enfim, o mundo e a vida dizem por si”
(JULLIEN, 2000, p. 129)
A partir da sabedoria, a pergunta que se faz é o que fazer com isto, ainda que a
própria pergunta já pressuponha exatamente algo que já desvirtua a sabedoria, isto é,
ela se fala sob outros termos.
Por estas passagens, Jullien (2000) apresenta uma perspectiva de que seria
necessário refundar o conhecimento, e, por esta lógica da sabedoria chinesa, isto seria
estar disponível ao novo, numa espécie de “higiene do espírito”. A consciência crítica
seria exatamente uma indisponibilidade, característica entre os debatedores da arena
filosófica.
Para se ter um olhar atento àquilo que está oculto na imanência, é preciso ter
uma sensibilidade crítica, caso contrário tudo passaria desapercebido e completamente
“natural”. Nestas aparentes contradições da sabedoria ou tentativas de se corrompê-la,
podemos inferir sua íntima relação com a existência, de maneira que o existir, por sua
liberdade, acrescenta itens e perspectivas que, de modo intencional, irão querer atingir
a impertubabilidade da sabedoria.
Maltrapilho, Diógenes morava num barril, e sua vida é conhecida por nós hoje a
partir de anedotas, visto que ele em nada ou pouco escreveu, por julgar o estudo, a
leitura e a escrita aspectos completamente secundários para uma vida feliz.
“as coisas que uma pessoa precisa para sobreviver são bem poucas: alguma comida e
algum abrigo, além da possibilidade ir e e vir livremente”
(NAVIA, 2009, p. 50-51)
Era comum ver Diógenes, o mendigo soberbo, pedir por esmolas e comida, tal
como na simpática passagem abaixo:
“Ele se deu conta de que camundongos não precisam de um lugar especial para
morar e dormir e comem o que quer que encontrem pelo caminho. (...) Nem
distinções sociais, nem sistemas filosóficos elaborados têm significado algum na
vida dos camundongos.” (NAVIA, 2009, p. 75)
“Diogenes’ answer negates not only the desire for power, but the power of desire as
such” (SLOTERDIJK, 1993, p. 161)4
4
Em tradução do autor: “A resposta de Diógenes nega não só o desejo pelo poder, como o poder do
desejo em si.”
31
Diógenes, segundo Navia (2009) foi bastante influenciado por Antístenes, que
apontava que a virtude não é algo referente à reflexão, mas aos fatos e à prática.
Assim, os cínicos sempre tiveram uma postura eminentemente prática em relação a sua
filosofia, não preocupados com grandes conceituações. Chega a ser surpreendente,
grifo meu, que nos chegue aos dias de hoje a figura de Diógenes, pelo seu pouco
legado histórico sob forma escrita.
Navia (2009) nos conta de sua vida muito a partir do que foi escrito pelo
historiador e biógrafo Diógenes Laércio (Séc. III D.C.). Um legítimo refutador do
mundo, lúcido, pragmático, voltado para o mundo físico e racional, pode-se dizer sim
que Diógenes era aquele que indicava as incongruências de uma realidade cultural, em
sua época, que em nada carregava de “verdadeiro” que não a mera existência de suas
práticas, por mais injustificadas ou irracionais que fossem.
Pela visão de Diógenes, suas atitudes talvez nada mais fossem do que um
espelho invertido de sua sociedade, tal como no irreverente relato abaixo:
Oscar Wilde5 (1996, apud Navia, 2009) precisamente pontua que “cinismo é
apenas a arte de ver as coisas tais como elas são, em vez de como deveriam ser”. Já a
moral, para Sloterdijk (1993) seria o inverso, isto é, uma série de regras de como
deveríamos ser, embora, de fato, não sejamos.
5
Cf. WILDE, O. Sebastian Melmoth, citado no The Cynics: The Cynic Movement in Antiquity and Its
Legacy, ed. R. Bracht Branham e M.O. Goulet-Gazé (Berkeley e Los Angeles: University of
California Press, 1996), p. vii.
6
Em tradução do autor: “Numa linguagem moderna, o que Diógenes importunava seus
contemporâneos pode ser expresso resumidamente como ‘rejeição da superestrutura’. Superestrutura,
neste sentido, seria o que a sociedade oferece, em termos de conforto e sedução, para convencer as
pessoas a servir aos seus ideais, tais como deveres, promessas de redenção, esperança pela
imortalidade, objetivos, ambições, posições de poder, carreiras, artes, riquezas. Sob um perspectiva
cínica, tudo isto se trata de compensações para amenizar perdas que Diógenes não abre mão, tais
como: liberdade, conscientização, prazer em viver.”
33
Já Diógenes se retira daquilo que é vigente em sua sociedade, para criticar este
existente, isto é, desvela o oculto instaurando o seu “canino caos”, defecando em
público e ofendendo quem passa. Sua loucura é tão intensa quanto a meditação do
sábio, opostos de uma mesma moeda.
Se o sábio não fala, Diógenes também pode não falar, contudo ele vai correr,
acender uma lanterna, se portar como um cachorro, etc.
Neste sentido, o cinismo em sua perspectiva crítica, tal como em Diógenes, não
deixa de ser um ceticismo ao que está se apresentando aos seus olhos e, quanto à
sabedoria, todos se perguntam como ela pode surgir senão por um grande emaranhado
reflexivo anterior. Isto é, por mais que os três possuam contextos de formação
completamente diferentes e cada um fale sob os seus próprios termos, cinismo,
sabedoria e ceticismo se misturam e possuem pontos em comum destacados.
35
“The deadly arrows of truth rain down on the places where lies lull themselves into
security behind authorities.” (SLOTERDIJK, 1998, p. 102)7
Vivemos em tempos nos quais os discursos por muitas vezes possuem um viés
utilitário muito forte, isto é, a fala se dá na intenção de defender algum interesse que
esteja por detrás da fala ou mesmo se escuta, dentro de uma fala, tudo que a circunda
ou o que ela poderia querer significar, menos o que ela de fato expressa. O que se quer
dizer quando se fala algo? Que tal o algo-em-si ali presente? Numa fala cínica, seja
sob qual faceta seja, ocorre um claro distanciamento entre aquilo que é expresso e o
que de fato aquilo quer de fato significar ou implicar. Certamente, tais falas
encobridoras de outras falas mais polemizam e pulverizam determinadas discussões do
que esclarecem ou conciliam visões antagônicas.
7
Em tradução do autor: “As flechas mortais da verdade caem nos lugares em que as mentiras se
encontram seguras e preservadas pelo comando das autoridades.”
8
“Cinismo se trata de uma conscientização esclarecida de um modo falso.”
37
“I call it the logic of the ‘cynical structure,’ that is, of the self-repudiation of refined
ethics.” (SLOTERDIJK, 1998, p. 8)9
9
Em tradução do autor: “Eu chamo de de lógica da estrutura cínica, isto é, a da sonegação de uma
ética aprimorada.”
38
Não obstante isto, seguindo-se uma lógica de que, para a lógica do capital, o
céu não é o limite, o próprio “não saber” passou a ser algo apropriado dentro desta
lógica. Isto é, como ninguém de fato o controla ou o detém, pode-se livremente se
utilizar do “anárquico e ilimitado campo do não saber” como um meio ou ferramenta
de geração de capital.
Isto é feito de uma forma explícita, contudo não necessariamente cínica por não
sabermos de suas reais intenções (embora este ”não saber” acerca da intenção possa
ser aproveitado cinicamente também), por parte de diversos agentes. Cartomantes,
futurólogos, religiosos e seus dízimos, mágicos e seus truques são alguns exemplos.
não existe, apenas para citar um exemplo, é algo tão óbvio ou aparente quanto a sua
existência, e vice-versa. Vira questão de fé.
“As with Buddha, everything that could be said is said through its mere existence”
(SLOTERDIJK, 1993, p. 131)10
Sob o ponto de vista cético, é possível apontar que todos os pressupostos pelos
quais um contexto abarca devem ser falsos. Só são verdadeiros sob o ponto de vista da
existência, disto não se pode negar. Qualquer sandice ou descalabro, seja sob o ponto
de vista racional ou lógico, por mais falso que possa ser, tem sua autenticidade sob o
ponto de vista da existência. “Aquilo” existe. Em relação a isto não há discussão.
Dando como exemplo apenas uma situação, voltemo-nos para o nazismo: apesar de
sua inimaginável atrocidade e destempero, ele existiu.
10
Em tradução do autor: “Assim como com Buda, tudo o que pode ser dito já é dito pela sua simples
existência.”
40
Assim, apesar do discurso científico, nos seus ideais, tentar se desvincular deste
elemento cultural, em termos práticos, fora do laboratório, existe um certo grau de
indissociabilidade. Para ilustrar isto, podemos citar casos recentes de manipulação de
pesquisas sobre a eficácia de determinados remédios, em prol dos lucros da indústria
farmacêutica, diferentes resultados gerados por mecanismos de busca na Internet de
acordo com o perfil traçado sobre quem está realizando a pesquisa, dentre outros.
Quando trato nestes termos, envolvo toda e qualquer situação, prática, em que
vá haver algum tipo de julgamento sobre algo ou decisão a ser tomada. O extremo
relativismo, por si só, não ajuda em nada ou só auxilia num primeiro momento em que
se levantarão as possibilidades. O célebre momento se dá no posteriori, em que se fará
um corte ou imposição de limites, através do qual um critério, entre ganhos e perdas
mensurados, será estabelecido e uma opinião ou decisão será tomada.
Este termo é trazido aqui, pois, grifo meu, entendo como se fosse exatamente o
inverso do resultado de uma extrema contextualização e relativização que são feitas
mediante determinados assuntos. Não há dúvidas de que tais processos de dispersão
são úteis no entendimento dos processos que o circundam, contudo, seu pouco aval
prático, ou mesmo ausência de conclusão, nos conduzem não só a uma imobilidade,
como cumplicidade com os processos ocorrentes.
“On which side do our loyalties lie? Are we agents of the state and of institutions?
Or agents of our own vital interests that secretly cooperate in constantly changing
double binds with the state, institutions, enlightenment, counterenlightenment,
monopoly capital, socialism, etc… and, in so doing, we forget more and more what
we our”selves” sought in the whole business? (SLOTERDIJK, 2009, p. 114)11
11
Em tradução do autor: “Somos fiéis a qual lado? Somos agentes do Estado e das instituições? Ou
agentes dos nossos próprios interesses pessoais e secretamente cooperamos com o estado, instituições,
conhecimento, contra-conhecimento, capitalismo, socialismo, etc.. e, ao fazê-lo, nós nos esquecemos
cada vez mais a quem pertencemos de fato?”
12
Ou incluída sob a forma de produto, “marketeada”, o que, em essência, dá no mesmo.
42
ideológica que alguns mágicos das palavras queiram transmitir aos incautos do saber.
“Obedience is the first duty of children, and it later becomes the duty of a citizen.”
(SLOTERDIJK, 1998, p. 141)14
“Socialized human beings lost their freedom when their educators succeeded in
instilling wishes, projects, and ambitions in them” (SLOTERDIJK, 1998, p. 161)15
13
Em tradução do autor: “Quanto mais a educação é pensada sob uma forma sistemática, mais é uma
questão de pura sorte ou acidente se a educação, como iniciação de uma vida consciente, assim mesmo
ocorreu.”
14
“A obediência é o primeiro dever de uma criança, e posteriormente se torna o dever do cidadão.”
15
“Seres humanos socializados perdem sua liberdade quando seus educadores obtêm sucesso ao
incutir neles desejos, projetos e ambições,”
44
exagero do que já é existente, uma das perguntas que nos resta é qual será o resultado
final disto que não uma grande quebra ou ruptura, em todos os sentidos. E, não menos
importante, como se reestruturar, se houver de fato este “corte”, estando a geração
vivente no ápice de intensidade deste curso.
Não é por acaso que Sloterdijk (1998) pontua que a investigação sobre o
cinismo nos conduz a uma libertação das ilusões. Ele aponta que por muitas vezes o
cinismo é algo estruturante de ideais e ideologias, tal como o altruísmo no modo de se
pensar burguês:
postura kynical. A ironia é uma bela forma de desvelar o oculto, pôr em evidência e
deixar nu alguma contradição ou situação embaraçosa que, recontextualizada pelo
humor, pode apontar em qualquer direção, das mais engraçadas ou não.
Um olhar cínico certamente é aquele que faz evidenciar aquilo que lhe é
interessante, sendo, assim, mais do que um olhar, uma projeção e constituição de
égides políticas.
“Cynicism, says Bergler, is one of the forms in which people with extremely strong
emotional ambivalences (hates-loves, respects-contempts, etc) create a psychic
possibility for discharge.” (SLOTERDIJK, 1998, p. 405)17
17
Em tradução do autor: “Cinismo, aponta Bergler, é uma das formas com que pessoas com sérios
sentimentos de ambivalência (ódio-amor, respeito-desprezo, etc) criam uma possibilidade psicológica
para descarregá-los.”
18
“Todos têm o seu papel. É assim na nossa cidade. Ninguém está em sua própria pele.”
46
Podemos ter como ponto de partida do que hoje se constitui uma sociedade do
conhecimento o século XVIII. Conforme relatado por Gumbrecht (2010), este tempo
foi o da grande era dos dicionários e enciclopédias. Por detrás das grossas camadas de
conhecimento esmiuçado a cada página e os seus sem número de versões, havia a
crença utópica de que um dia o conhecimento sobre o mundo seria total. Certamente,
num dado momento da quarta trilionésima página, algum incansável cognoscente iria
parar de documentar o mundo com a certeza quase arquimediana19 de que o seu
trabalho estaria cumprido e o mundo já estaria todo exposto ali.
Hoje, as enciclopédias e dicionários não são mais tão usuais, contudo sua lógica
perdura pela rede mundial de computadores, obviamente com algumas diferenciações.
Continuamos tendo um sem-número de respostas e definições para os termos, e agora
relacionados com outros sem-número de contextos em que ele pode estar presente.
Eles se referem desde a um anúncio de alguma oferta imperdível ao vínculo do termo
com alguma celebridade. Há também um sem-número de pessoas que tentam,
colaborativamente, lhe passar algum tipo de conhecimento sobre o que você deseja.
Caso a sua dúvida seja mais elaborada e venha em forma de pergunta, também é
possível fazê-la e qualquer um irá lhe responder.
19
Eureka!
47
“Those who do not see the cynicism evident when press reports on torture in South
America are placed between perfume ads will also not perceive it in the theory of
surplus-value, even if they have read it a hundred times.”
(SLOTERDIJK, 2009, p. 315)21
20
Conjunção “e”, em português.
21
Em tradução do autor: “Aqueles que não percebem o evidente cinismo presente quando o jornal
noticia tortura na América do Sul entre anúncios de perfume não irão percebê-lo na teoria da mais-
valia, nem que leiam a mesma um milhão de vezes.
48
Tal lógica do “and” pode ser transposta também para as redes sociais virtuais,
em que, a cada instante, alguém escreve sobre algo ou sobre si. Após alguns minutos,
aquilo que foi escrito perde sua importância, sendo rapidamente coberto por outras
mensagens que seguem. O imediatismo e a avalanche de mensagens podem fazer
também com que sua mensagem seja retransmitida e bastante comentada. No final,
apenas algumas mensagens, geralmente as mais polêmicas, conseguem permanecer
por algum tempo maior na atenção das pessoas. Assim, a valoração das polêmicas não
se dá tanto pelo seu caráter contraditório ou de discussão sobre algo, mas por
simplesmente conseguirem atrair uma atenção e serem de fato lidas pelas pessoas.
“A preferência por palavras e sentenças simples, que podem ser agrupadas numa
olhada rápida, é uma das tendências anti-intelectuais e anti-humanísticas visíveis no
desenvolvimento da linguagem moderna, bem como da vida cultural em geral.”
(HORKHEIMER, 2007, p. 89)
“Os problemas não são resolvidos pelo fornecimento de informação nova, mas pela
rearrumação do que sempre soubemos” (MARCUSE, 1973, p. 169)
Seria por demais ousado, e talvez até mesmo inapropriado, apontar que o
homem chega a perder parte de sua humanidade quando, tão imerso em sua cultura,
não consegue visualizar ou mesmo tomar como possibilidade para si algo diferente
daquilo que já é habituado. Contudo, não se torna tão exagero apontar que, a despeito
do acesso a uma multiplicidade de conhecimento (e, por extensão, de conceitos),
possuímos uma lógica ou um tipo de razão longe de ser classificado como libertador
49
É revelador analisarmos que, por mais que na atualidade exista uma aparente
diversidade cultural22 na sociedade, ela sempre se dá como um conjunto de minorias
que, ainda que agrupado, não deixa de constituir uma ínfima parte do todo. Isto é, em
termos quantitativos, as minorias estão longe de representar uma diversidade, mas uma
marginalidade. Em termos qualitativos, isto se evidencia pelo próprio núcleo de
identidade de tais diversidades, muitas vezes, ocorrer muito mais como oposição ou
crítica ao socialmente estabelecido, do que propriamente a uma unicidade coesa que se
mantém. No final das contas, o que se deriva desta aparente diversidade é muito mais
um estudo de marketing e de “mercado de cauda”23 do que propriamente algo mais
substancial que cada subvertente cultural possa trazer.
“A mesma voz que prega sobre as coisas superiores da vida, tais como arte, amizade
ou religião, exorta o ouvinte a escolher uma determinada marca de sabão.”
(HORKHEIMER, 2007, p. 105)
que não seja tomado por esta aparente linha de produção e consumo arquitetada para o
cidadão, misto de trabalhador e consumidor?
Certamente a educação, grifo meu, pode ser uma das respostas a ser tomadas, ao
menos como tentativa, contudo não aquela técnica e preparatória para a lógica do
mercado, mas a que verdadeiramente ensine a pensar tal como prega Prado (1990).
Ter uma percepção de mundo crivada sob termos como custo, preço, benefício,
“custo de oportunidade”25, tempo, otimização e diversos traz o capitalismo para um
patamar muito além de um sistema econômico, mas para algo paradigmático, que
estrutura as diversas esferas de vida de uma sociedade.
24
Em tradução do autor: “O trabalho não é mais uma atividade da vida, não mais uma adaptação do
corpo e da alma diante das forças da natureza, mas uma atividade completamente estranha para o
propósito da vida, uma adaptação do corpo e da alma para o mecanismo.”
25
Expressão referente aquilo que você está abrindo mão em termos de oportunidades, ao optar por
determinada opção, numa escolha.
26
Reflexão apresentada e voltada para a ótica e subjetividade do cidadão comum, que se relaciona
com o seu mundo, e não para a ótica do acadêmico e cientista.
51
Dentro de uma lógica de uma razão objetiva, a qual será abordada com detalhes
no subcapítulo 4.6, vivemos a era do conhecimento técnico. Talvez nada melhor o
represente do que o simbólico, porém não menos substancial, “manual”. Poderíamos
representá-lo também como uma bula de remédio. O enxame de informações,
pensadas e escritas passo a passo, com uma irretocável precisão que lhe é tão
característica, completamente desprovida de humanidade em sua linguagem, o
caracteriza exemplarmente.
que a o tipo de razão aplicada será radicalmente diferente daquela empregada numa
abordagem da área das Ciências Humanas. Será?
O bem talvez seja uma das últimas forças políticas completamente autônomas
que, a despeito de diversas ideologias que possam surgir, clamará no âmago de cada
um a determinadas formas de agir.
54
Dada a intensidade e velocidade dos movimentos, tudo o que acontece hoje está
orientado para os seus próprios fins. Nenhuma ação ou pensamento consegue se
sustentar por si só, há de se ter um momento seguinte, oriundo do primeiro ato. A
lógica é de se render frutos, a razão é apenas um instrumental para algo maior.
O relógio que se acelera tem o poder de tornar pó tudo aquilo que não evolui,
que tenta se imobilizar, que não gere consequências consecutivas que sejam vantajosas
para o seu agente: lucro. Os fins que nunca se esgotam também não deixam de ser
meios, pois eles nunca terminam, de fato, de acontecer. Os fins não se acabam,
também se transformam em outros fins, ininterruptamente. Não se consegue nenhum
poder de reflexão, pois o momento seguinte é muito mais importante para a sua
atenção. O fim é fim não por alcançar uma determindo objetivo, mas por ser vazio,
falso, sempre remetedor a um momento a posteriori que nunca vem. Assim, o fim
acaba se tornando realmente um término.
Cabe, neste subcapítulo, inicialmente, uma conceituação sobre o que viria ser
cada um destes tipos de razão: a objetiva e a subjetiva. Tal como enunciadas por
Horkheimer (2007), a passagem abaixo dá o tom para o início de uma compreensão:
“Durante longo tempo predominou uma visão diametralmente oposta do que fosse a
razão. Essa concepção afirmava a existência da razão não só como força da mente
individual, mas também do mundo objetivo: nas relações entre os seres humanos e
entre classes sociais, nas instituições sociais, e na natureza e suas manifestações. Os
grandes sistemas filosóficos, tais como os de Platão e Aristóteles, o escolasticismo, e
o idealismo alemão, todos foram fundados sobre uma teoria objetiva da razão.”
(p. 10)
A razão subjetiva se coaduna com uma razão dita formalizada e pragmática. Ela
é empírica, materialista, traz consigo a tentativa de controle da natureza e do próprio
homem. Ela não se preocupa com a absoluta correção ou verdade, mas com a
funcionabilidade e eficácia daquilo que é proposto. Assim, grandes apontamentos e
incorreções apontados como sendo do campo do “não saber” são, em parte, oriundos
57
de uma teoria objetiva da razão em crítica à razão subjetiva, que aplainou diferentes
relevos.
Por um viés da teoria da razão objetiva, em seu ideal maior, pode não haver
espaço para um “não saber”. Contudo, pela sua inevitável glorificação e
mitologização, a ponto de virar questão de fé, há nela um campo livre e crítico de
delimitação deste espaço.
Horkheimer (2007) nos apresenta que, como herança dos sistemas clássicos da
razão objetiva, tais como o platonismo, temos a preservação da idéia de que “a verdade
é a consequência da linguagem na realidade” (p. 184).
Em analogia a estes dois conceitos, podemos trazer aos dias de hoje o mundo
das bolsas de valores e suas diferentes cotações para as ações. Há investidores que
acreditam, pelo uso de uma razão subjetiva, que pode haver distorções nas cotações
dos papéis negociados em bolsa, em função de uma distorção da percepção dos
investidores sobre tais empresas. Já há outros investidores, por uma razão objetiva, que
acreditam que o mercado é eficiente, isto é, os preços das ações refletem toda a
informação disponível sobre aquela empresa e isto já está “precificado”, não havendo
distorções em sua cotação.
”O dom da razão lhe foi concedido num mundo “onde tudo é dado e nada nunca
explicado” (ARENDT, 2008, p. 220)
58
Falar sobre sujeito e objeto, o que está agindo e sendo agido, controle,
submissão e diversos outros termos se torna por demasiado complexo na rede de
diversos atravessamentos não só da propria realidade, como da atualidade que
intensifica determinados processos.
Ao longo do presente texto, é dada uma certa ênfase à dita “lógica do capital”,
que não deixa de retornar neste momento. Esta presença se dá, pois, apesar do conceito
de humanidade não estar presente neste tipo de lógica, esta não deixa de nos implicar e
criar certos determinismos. Não existe, em sua essência, diferenciação alguma entre
“homem” e máquina, ou, entre homem e “coisa”. Ao contrário, na superfície, até
existe: as máquinas são sobrevalorizadas em função do seu provável menor custo ao
longo do tempo.
do trabalhador estar ali se utilizando de seus recursos humanos para desenvolver seu
ofício que ele deixe de ser uma mera peça em toda engrenagem maior que o engloba.
Assim, desde que Henry Ford defendeu salários melhores para os trabalhadores,
para que os mesmos pudessem consumir os carros que eles mesmos produziam, esta
discussão de sujeito e objeto soa como discutir quem veio primeiro: o ovo ou a
galinha.
“os chamados grandes indivíduos do nosso tempo, os ídolos das massas, não são
indivíduos verdadeiros, mas sim apenas criaturas geradas pela própria publicidade
em torno deles, ampliações de seus próprios retratos, funções dos processos sociais.
O super-homem consumado, contra quem ninguém advertiu mais aflitamente do que
o próprio Nietzche, é uma projeção das massas oprimidas, é mais King Kong do que
César Bórgia.” (HORKHEIMER, 2007, p. 164)
Ser individual por excelência, no sentido mais exótico e diferente dos demais,
acaba por adquirir uma faceta política (apenas os mais poderosos conseguem ser tão
descolados assim). Quando se fala em individualidade se fala também em “liberdade”,
pois esta é uma característica essencial para que a unicidade possa de fato se
manifestar:
O capitalismo traz consigo uma certa crença de que, na medida que cada um
busca pelos seus próprios interesses individuais (individualismo), a sociedade, como
um conjunto mantenedor desta liberdade de busca, se torna valorativamente melhor.
Neste sentido, é curioso pensar que o socialismo tenha acabado por se tornar, em sua
prática, um regime de cerceamento de liberdades.
“O indivíduo não tem mais uma história pessoal. Embora tudo se modifique, nada se
movimenta” (HORKHEIMER, 2007, p. 163)
Assim, num sentido mais filosófico e artístico, aquilo que se refere como “não
saber”, na esfera individual, se refere a própria individuação do sujeito.
Desconhecedor de si próprio, sendo ele, em essência27, algo além das categorizações e
opções que a sociedade trouxe para que ele escolhesse ser.
Soa de certo modo retumbante e, por que não dizer, pessimista e catastrófico
certas visões de mundo que existem sobre a atualidade, ao menos em suas aparências.
Marcuse (1973) apresenta uma leitura que decodifica o progresso tecnológico pelo seu
viés político, condicionador da servidão das grandes massas para com uma parca elite.
“A tecnologia não pode, como tal, ser isolada do uso que lhe é dado; a sociedade
tecnológica é um sistema de dominação que já opera no conceito e na elaboração das
técnicas.” (MARCUSE, 1973, p. 19)
“Em virtude do modo pelo qual organizou sua base tecnológica, a sociedade
industrial contemporânea tende a tornar-se totalitária.” (MARCUSE, 1973, p. 19)
27
Visão apresentada para o caso da existência de um real livre-arbítrio para o homem, distanciado de
um determinismo ou “fatum” que o implicassem em tomar “escolhas” previamente determinadas,
sendo assim, mera aparência de decisões.
62
Não é difícil observar este fenômeno numa simples ida à praia. Outrora algo
simples e, por ser uma beleza natural e pública, eminentemente gratuita, bastava de
fato ir e lá estar. Hoje, impera no íntimo consumista de cada um, a necessidade de,
uma vez na praia, alugar um guarda-sol, cadeiras de praia, consumir bebida, comida,
protetor solar, bronzeador solar, creme pós-sol para a pele, outro para o cabelo, fazer
uma massagem e por aí segue. O tratamento é digno da realeza e o conforto
irresistivelmente absoluto.
“As únicas necessidades que têm direito indiscutível à satisfação são as necessidades
vitais — de alimento, roupa e teto ao nível alcançável de cultura. O atendimento a
essas necessidades é o requisito para a realização de todas as necessidades, tanto das
sublimadas como das não-sublimadas.” (MARCUSE, 1973, p. 27)
“A sociedade ainda é organizada de tal modo que a procura das necessidades da vida
constitui uma ocupação de tempo integral e da vida inteira para classes sociais
específicas, as quais são, portanto, não-livres e impedidas de ter uma existência
humana. Neste sentido, a proposição clássica segundo a qual a verdade é
incompatível com a escravização pelo trabalho socialmente necessário ainda é
válida.” (MARCUSE, 1973, p. 129)
28
Pela lógica publicitária, preço e custo não existem, são detalhes frente aos benefícios angelicais dos
produtos que anuncia.
64
4.10– Linguagem
Por mais bem projetada e pensada que possa ser, a linguagem é sempre um
apontamento sobre algo específico no seu sentido, contudo com um inevitável lastro
decorrente da recepção da mensagem pelo destinatário. Isto ocorre pela inevitável
desinterpretação (ainda que mínima) e descolamento de sentido que as palavras
acometem em cada um de nós.
“Ao exibir suas contradições como sinal de sua veracidade, esse universo da locução
se fecha contra qualquer outra locução que se apresente em seus próprios termos. E
graças à sua capacidade de assimilar todos os demais termos nos seus, oferece a
65
“Se atribuirmos um sentido a alguma coisa presente, isto é, se formamos uma idéia
do que essa coisa pode ser em relação a nós mesmos, parece que atenuamos
inevitavelmente o impacto dessa coisa sobre o nosso corpo e os nossos sentidos.”
(GUMBRECHT, 2010, p. 14)
“a experiência estética como uma oscilação (às vezes, uma interferência) entre
‘efeitos de presença’ e ‘efeitos de sentido’ (GUMBRECHT, 2010, p. 22)
Para precisar bem a diferença entre aquilo que é da ordem do “sentido” e o que
é da ordem da “presença”, ainda que na prática existam sempre estas duas ordens, em
intensidades diferentes, GUMBRECHT (2010) exemplifica:
“É muito difícil – talvez impossível – não ‘ler’, não tentar atribuir sentido àquele
relâmpago ou àquele brilho ofuscante do Sol da Califórnia” (p. 135)
67
Não existe nada tão retrógrado hoje em dia quanto a determinados aspectos
físicos e presenciais do viver. Isto é, soa absurdo, para não dizer catastrófico, em
tempos de tanto poder e conhecimento concernente ao homem, ter que parar
determinada atividade para, por exemplo, “ir ao banheiro” ou “ficar preso no trânsito”
ou “precisar se alimentar” ou mesmo durmir. São como choques de realidade poder
cruzar oceanos em algumas horas, ir a outros planetas, se comunicar instantaneamente
com milhares de pessoas e, de repente, esbarrar em necessidades tão pueris e pobres de
sentido. Certamente é algo que, não duvido, será revisto e corrigido dentro do nosso
atual paradigma.
Delimitam-se assim alguns espaços que são referentes ao “não saber” e que
assim devem permanecer, para que não se confundam o que, simplificadamente, é da
ordem do saber e o que é da ordem do viver.
68
V. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Seria possível aqui, tal como num modelo imperioso do saber, tentar apontar e
abarcar todas as outras impossibilidades do “não saber”. Contudo, exatamente por
muitas serem completamente desconhecidas, foi possível apontar apenas algum filete
delas. Mais do que conseguir trazer algo que era desconhecido para o campo do
conhecimento, a tentativa foi a do que Sloterdijk (1993) chama de “amoralist freedom
of expression”.29
Seria insano e não foi da intenção deste trabalho negar toda a perspectiva de
conhecimento que nos apodera, mas apontar apenas que ela não é total, global como se
diz ser, que há muitos furos. A impalpabilidade do campo do “não saber” faz parecer,
por muitas vezes, se tratar de uma entidade quase que mística, contudo é sempre no
seio daquilo que se tenta configurar como conhecimento que ele aparece.
Apesar das aproximações e não tão rigidez frente a alguns conceitos, a tentativa
foi também a de um resgate das essências dos significados das palavras. A falta de
dialetização crescente da sociedade talvez seja fruto não de uma não inter-relação entre
perspectivas, porque ela é até feita, mas da pouca aderência aos significados dos
discursos. Tudo que o discurso técnico não consegue se apoderar parece facilmente
conversível a qualquer outra coisa que não o seu original.
29
Em tradução do autor: “liberdade amoralista de expressão”
69
A Psicologia termina por trabalhar com aquilo que não é visto, mas uma vez
presente nas mentes das pessoas, é trazido para o campo do discurso. Tal fala trará
sempre este novelo supramencionado e estruturações do abstrato, do concreto, do
saber e do não-saber ecoam, por mais díspares que sejam, sobre uma única existência
particular.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BROCHARD, Victor. Os céticos gregos, traduzido por Conte, Jaimir. São Paulo:
Editora Odysseus, 2009.
JULLIEN, F. Um sábio não tem idéia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
JUNG, Carl Gustav. Obras Completas Vol. VII/1. Psicologia do Inconsciente. Rio de
Janeiro. Vozes, 2002.
_________________________________
_________________________________
_________________________________