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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES


INSTITUTO DE PSICOLOGIA
CURSO DE PSICOLOGIA

UM TRAÇADO DA DINÂMICA DO “NÃO SABER”


NA MODERNIDADE DA INFORMAÇÃO

RENATO COSTA DE SANT’ANNA

RIO DE JANEIRO
FEVEREIRO DE 2012
1

RENATO COSTA DE SANT’ANNA

UM TRAÇADO DA DINÂMICA DO “NÃO SABER”


NA MODERNIDADE DA INFORMAÇÃO

Orientador: Profo. Dr. Jorge Coelho Soares

RIO DE JANEIRO
FEVEREIRO DE 2012
2

AGRADECIMENTOS

A Deus, se ele de fato existe;

A minha família, em especial ao meu irmão Daniel, pelo acompanhamento do


processo de feitura deste trabalho;

Ao meu amigo Régis, pelas discussões sem fim e atemporais;

A minha amiga Débora, pelas boas conversas e companheirismo em muitas das


discussões aqui trazidas;

Ao meu amigo Fábio;

Ao professor Jorge Coelho Soares, orientador da presente monografia, pelas


indefectíveis aulas ministradas, disponibilidade na indicação de obras e suporte
proporcionado;

Aos professores Ronald Arendt, de quem tive o privilégio de ser aluno, e Ariane
Patrícia Ewald, por terem participado da avaliação deste trabalho;

A todos os professores, colegas e funcionários do Instituto de Psicologia da UERJ, que


contribuíram para a minha formação.
3

RESUMO

Desembocando-se na sociedade hodierna, embasada por um conhecimento


que cresce exponencialmente e que nunca consegue ser apreendido
individualmente de um modo total, a gama de informações tende a englobar
tudo, parecendo não haver espaço para o campo do “não saber”. A capacidade
imaginativa do homem em pensar sobre questões ainda não cobertas pela
“sociedade do conhecimento” parece ser menor do que a catalogação maciça de
informações produzidas pelas mais diversas esferas da sociedade, sejam as
universidades, as Ciências ou o próprio senso comum. As questões funcionais
ou utilitaristas ganham seus espaços preponderantes frente a um pensamento
mais contemplativo, reflexivo e filosófico: o conhecimento adquire uma faceta
voltada para a ação e a performance.

O presente trabalho tem como objetivo principal apontar uma outra moeda
que o conhecimento não consegue abarcar, pelas suas inerentes
impossibilidades, isto é, a da então denominada “dinâmica do não saber”.
4

ABSTRACT

Arriving at contemporary society, based in a knowledge that grows


exponentially and can never be grasped individually in a entire way, the flow of
information tends to encompass everything. It seems that there's no room for a
'field of unknowing'. The imaginative capacity of human being to think about
issues not yet covered by the 'knowledge society' seems to be weaker than the
massive catalogation produced by the most diverse spheres of society, like
universities, Science or the common sense. The practical and functional
questions hold a privileged room against a contemplative and philosophical way
of thinking. The knowledge carries an intention focused on action and
performance.

The present work has as a main objective to point out some issues that the
knowledge can’t hold, for its inherent impossibility, these are called ‘dynamic
of unknowing’.
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ÍNDICE

INTRODUÇÃO 7

I. O SER CÉTICO GREGO E A FIDEDIGNIDADE


DE UMA AFIRMAÇÃO 10

II. O SÁBIO E SUA VISÃO DO CÉU 19

III. CINISMO: DOS HOMENS AOS CÃES 29

3. 1. Diógenes como personificação 29


3.2. “Kynicism” e “cynicism”: duas facetas nem um pouco inocentes 35
3.3 O “não saber” como instrumentação cínica 38

IV. O CONHECIMENTO ATUAL: FRAGMENTOS DE UM


ESPELHO ESTILHAÇADO 46

4.1 A cachoeira de informação 46


4.2 A alienação e abstração advindas da lógica do capital,
trabalho e consumo 48
4.3 A força do conhecimento técnico e consequente redução
de um pensamento crítico e imaginativo 51
4.4 A falta de materialidade científica do bem 53
4.5 Pragmatismo: pensamento voltado para a ação 54
4.6 A primazia da razão subjetiva sobre a objetiva 56
6

4.7 O homem como objeto, subjugado pelos seus pares 58


4.8 Individual, individualismo e social 59
4.9 Tecnologia, consumo, totalitarismo e sociedade 61
4.10 Linguagem 64
4.11 Expressão e transmissão de saberes, sentidos e presenças 65

V. CONSIDERAÇÕES FINAIS 68

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 70
7

INTRODUÇÃO

Esta temática veio a mim como interesse por eu perceber que um dos
aprendizados do curso de Psicologia é exatamente o do aparente e contraditório espaço
do não saber. Digo isto porque, antes da faculdade, esperamos encontrar na mesma
respostas prontas e manuais para intervenção junto a questões psíquicas e, ao longo do
curso, vamos percebendo que estas “respostas” não vêm, e, ao contrário, as perguntas
só se multiplicam. Mais do que uma inquietação pelo aparente não aprendizado ou
tentativas de se alinhar conhecimento de abordagens teóricas divergentes, vem à tona a
percepção da aquisição deste aparente “não conhecimento”, como algo dinâmico,
como o maior aprendizado.

Como se trabalhar, em termos de produção textual, um estudo sobre a dinâmica


do “não saber” na Sociedade da Informação ? Como apontar o contraditório, estando
imerso nele e não deixando de se utilizar dos seus elementos de coesão, isto é, a
linguagem? Há uma incongruência inerente ao presente trabalho, pela qual, uma
escrita fora da linha ou um andar no meio-fio se apresentam como inevitáveis. Estudar
a dinâmica do não saber, se é que ela de fato existe, já se tenta a constituir um saber e a
própria constituição de um texto acadêmico sempre visa este sentido. Em suma, a
própria abordagem ou essência da questão já se configura, de certo modo, corrompida
pela forma como ela será exposta. Será apresentada uma dinâmica do não saber com o
intuito de se conhecê-lo. Um legítimo paradoxo.

Não que isto “blinde” o texto para uma averiguação ou análise sobre aquilo que
está sendo escrito e se possa escrever “qualquer coisa”, pois, afinal, estamos no
“campo anárquico do não saber”. Contudo, para uma mínima coerência, não será do
intuito desta produção uma exatidão ou precisão técnica quanto aos termos
assinalados, mas uma aproximação e um contato que vise uma reflexão,
provavelmente sem conclusões imperiosas do campo do saber, tal como conhecemos.
8

Expressa-se o “não saber” como: 1) aquilo que não se tem conhecimento ; 2)


aquilo que não se terá conhecimento ; 3) causas multifatoriais que desembocam,
imprecisamente ou aleatoriamente, num determinado acontecimento (similar à Teoria
do Caos). Já a “dinâmica do não saber” como: 1) aquilo que, ainda que desconhecido,
atua e interfere na produção do conhecimento ; 2) aquilo que, em sua essência
ignorado, nos afasta da utopia de se adquirir um conhecimento e controle sobre tudo.

Ao se abordar a questão do conhecimento, podemos falar não só em termos


afirmativos, como é visto hodiernamente, no sentido da quantidade de informações e
conhecimento bruto crescente que possuímos, como também em termos estruturais.
Neste sentido, recaímos num sentido mais epistemológico no qual a própria
possibilidade do conhecimento pode ser questionada.

Indubitavelmente ou, para uma maior coerência, sem o intuito de querer deixar
nada definido, só podemos compreender e bem visualizar como a questão do
conhecimento se estrutura hoje se nos remontarmos a uma das fontes históricas da
contemporaneidade ocidental: a Grécia.

É do intuito da presente monografia trazer diversas fontes que representem o


espaço do não saber no campo do conhecimento e como elas podem, enfim, dialogar
ou aparecer, como pequenos furos, na sociedade do conhecimento atual. Hoje, na
forma e no conteúdo, é mais difícil refletir sobre os espaços do não saber e produzir
algo verdadeiramente original ou criativo do que repetir determinados pensamentos e
discursos que já remontam a algo existente, o dito conhecimento.

Não obstante todo o “fisiologismo operacional” dos métodos educacionais


hodiernos, aquilo que mais se espera por parte do dito “mercado de trabalho” é
exatamente o resultado de um “aprender a pensar”, que produza algo “novo”, “fora da
caixa” como se costuma dizer, algo além do aprendido, algo próximo a um “insight”.
Oras, se a criatividade, podemos resumir assim, se estruturaria para algo além daquilo
que já se sabe, não seria a mesma pertencente ao campo do não saber? Ou, em outras
9

palavras, não seria ela pertencente a um não saber que é apropriado pelo homem e,
posteriormente, seu conteúdo criativo trazido para o campo do conhecimento, num
constante e infindável percurso? Eis um aspecto da lógica de raciocínio e
desenvolvimento tecnológico-científico.
10

I. O SER CÉTICO GREGO E A FIDEDIGNIDADE DE UMA AFIRMAÇÃO

Um dos pontos de partida constituintes da atual sociedade é a sociedade grega,


pela herança que dela obtivemos. Uma de suas vertentes filosóficas é o ceticismo. O
ceticismo grego parte de uma postura radical em que se recusa todos os supostos
fundamentos das suposições aceitas na produção de um dito conhecimento
(BROCHARD, 2009).

Existe uma íntima relação entre o aspecto teórico em relação ao conhecimento,


defendido pelos filósofos, e sua procedência em suas vidas pessoais ou particulares.
Muita destas formas de se ver a questão do conhecimento transpassa a teoria para virar
uma questão prática e viva no cotidiano, tal como se observa no cinismo de Diógenes,
como veremos mais adiante.

De fato, o ceticismo não pode ser visto apenas como uma mera má vontade ou
alto grau crítico em relação a qualquer conclusão, verdade ou conhecimento que possa
ser adquirido, mas a um alto teor de fidedignidade em relação ao que se pode
verdadeiramente afirmar sobre algo. Alguns podem alegar que, a depender apenas dos
céticos, não haveria hoje algo próximo do que chamamos de Ciência, o que pode ser
bem verdade, contudo suas colocações foram um lado “negativo” que, dialeticamente,
contribuíram em muito na engrenagem de um pensamento dito científico.

No ceticismo, a dúvida não é vista como um entrave ou algo a ser superado na


construção do conhecimento, mas “um instrumento de sabedoria e de moderação, de
firmeza e de felicidade” (BROCHARD, 2009, p. 81).

O filósofo Pirro de Élis é considerado, por Brochard (2009), o introdutor do


ceticismo, sendo o pirronismo a manifestação de sua teoria. Sua defesa é a de que nem
os sentidos, nem a razão nos permitem conhecer as coisas tais como elas são. Isto é, há
11

uma impossibilidade de se conhecer a natureza das coisas, assim devemos agir de


acordo com as aparências.

O pirronismo não nega a aparência das coisas, contudo a percepção sobre as


coisas é diretamente afetada pela nossa disposição para com elas e para com nós
mesmos. Assim, ainda que não se negue a aparência, não há aí a produção de um
conhecimento ou verdade.

A questão da linguagem também é apropriada na defesa do ceticismo, no


sentido de que qualquer definição sobre algo é impossível, já que estaremos sempre
nos referindo a algo com outras palavras que não sejam ele próprio. Isto é, “tudo o que
se pode saber foi dito quando se designou uma coisa, quando ela foi nomeada, o que
existe realmente são os seres individuais: os conceitos são apenas maneiras de pensar e
não correspondem a nada real” (BROCHARD, 2009, p. 42).

As fórmulas “não sei nada”, “não defino nada”, aparentemente simplórias, eram
respostas dadas pelos pirrônicos para discussões sem fim borbulhantes nas ágoras
gregas. Para Antístenes, que não é considerado cético, mas um defensor do
nominalismo na linguagem, “não há duas maneiras de designar uma mesma coisa. Se
não se entendem é porque acreditando falar de um mesmo objeto, na realidade falam
de outro. Se falassem do mesmo, se entenderiam; não podem se contradizer porque
não dizem nada.” (BROCHARD, 2009, p. 42-43).

Tal incerteza no campo teórico, como vimos, era apropriada na própria vida de
Pirro, sendo ele completamente indiferente e apático em relação à vida. Não se
interessava por nada, se limitava a viver. Segundo Tímon, discípulo de Pirro:

“[...] aquele que quer ser feliz deve considerar estes três pontos: em
primeiro lugar, o que são as coisas em si mesmas? Depois, que disposições devemos
ter em relação a elas? Finalmente, o que nos resultará dessas disposições? As coisas
não têm diferença entre si, e são igualmente incertas e indiscerníveis. Por isso,
nossas sensações e nossos juízos não nos ensinam nem o verdadeiro nem o falso. Por
conseguinte, não devemos nos fiar nem nos sentidos nem na razão, mas permanecer
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sem opinião, sem nos inclinarmos para um lado ou para o outro, impassíveis.
Qualquer que seja a coisa de que se trata, diremos que não se deve mais afirmá-la do
que negá-la, ou que se deve afirmá-la e negá-la ao mesmo tempo, ou que não se deve
nem afirmá-la nem negá-la. Se estivermos dispostos a isso, diz Tímon, alcançaremos
primeiro a afasia, em seguida a ataraxia.” (BROCHARD, 2009, p. 68)

Ao mesmo tempo em que o comportamento de suspensão do juízo e completa


indiferença são praticados, há um outro similar aos dos sábios, que é o de “viver como
todo mundo, conformando-se às leis, aos costumes, à religião do seu país” (p. 73). Isto
é, se por um lado há uma indiferença em relação aos acontecimentos da vida, há uma
total sujeição frente aos costumes de sua sociedade. Contudo, não por uma ignorância
ou “alienação”, mas por uma opção, grifo meu.

A passagem a seguir exemplifica de modo cabal a indiferença e desapego em


relação à vida praticado por Pirro:

“Ele levava ainda tão longe a indiferença que um dia, tendo seu amigo
Anaxarco caído num pântano, continuou seu caminho sem socorrê-lo e, como foi
censurado, o próprio Anaxarco elogiou sua impassibilidade.”
(BROCHARD, 2009, p. 84)

É notória uma certa dose de incongruência, e por que não dizer de dogmatismo
em relação à forma de se proceder na vida. Se se deve viver como todo mundo, por
que não reagir também como todo mundo reagiria e se sensibilizar ajudando o amigo
que caiu no pântano ? Não virariam os próprios procedimentos de suspensão de juízo,
indiferença e imparcialidade uma forma de dogma, regra ou crença que desvirtuaria o
próprio ceticismo? É preciso um grau de certeza ou confiança para se agir como um
cético. Ou não? É como se o próprio convite à vida estendesse um tapete vermelho de
inevitável incoerência e parcialidade.

Na minha visão, o modelo cético teórico em relaçao ao conhecimento tem a sua


consonância, contudo o que dizer daquele conhecimento que, a despeito de não ser
rigorosamente exato como julgaria o ceticismo, encontra algum grau de autenticidade
e funcionalidade? E como lidar indiferentemente em relação à vida se a mesma pode
13

ser vista como sendo tão somente estas diferenciações e apreços particulares que cada
um de nós damos em relação a(o) que(m) nos cerca?

Um outro aspecto a ser levantado é se, necessariamente, a visão que se tem em


relação ao conhecimento há de ser transposta como conduta da vida particular como
uma única linha reta que conduz um ponto ao outro. Seria necessariamente uma
contradição adotar uma postura cética em relação ao conhecimento e ser
completamente tomado pelas emoções ao ver o amigo cair no pântano?

Há naquilo que é conceitual uma importância ímpar na compreensão do que se


está querendo expressar, contudo, no campo dos fenômenos, fixar-se à rigidez dos
conceitos pode, ao mesmo tempo que firmar uma coerência no campo da razão, se
tornar muito radical e “cego” em relação à vida, multifacetada.

Segundo Tímon, a dúvida tem como consequência tornar toda ação impossível,
contudo isto não deve conduzir à inércia, mas à ação. Ela seria propiciada pelo critério
prático da ataraxia, que “permitirá distinguir, em meio às nossas representações,
aquelas que se deve seguir e aquelas que se deve descartar.” (BROCHARD, 2009, p.
97)

A ataraxia é definida, de acordo com o Novo Dicionário Aurélio (1975), como


“um estado em que a alma, pelo equilíbrio e moderação na escolha dos prazeres
sensíveis e espirituais, atinge o ideal supremo da felicidade: a imperturbabilidade”.
Isto é, a ação seria determinada por um critério de uma ordem completamente
subjetiva, e por que não dizer, transcendental. Há uma clara constituição de um viés
completamente anti-metódico, que se distancia de uma lógica de um conhecimento
formal. Talvez fosse mais claro apontar, para alguns, que tal critério é na verdade um
completo “não saber” ou puro desconhecimento.

Contudo, dentro de uma perspectiva de meditação ou de algum culturalismo


oriental, tal “ataraxia” é, em termos fenomenológicos e vivenciais, algo mais nítido e
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de fato existente, percebido. É de uma ordem difícil de ser expressado, porém passível
de ser percebido, como uma epifania. Isto é, algo existente que acaba fugindo do
campo da razão e do conhecimento bruto.

O discurso cético se caracteriza sempre por uma desconstrução, isto é, pela


apresentação de um outro lado da moeda do conhecimento, tal como se observa nas
passagens abaixo:

“Parece que a vista percebe a cor, as dimensões, as formas, mas ela não percebe nada
disso. Não percebe a cor de um homem: esta cor varia segundo as estações, as ações,
a natureza, a idade, as circunstâncias, a saúde, a enfermidade, o sono, a vigília.”
(BROCHARD, 2009, p. 142)

“Se você mente, você mente; ora, você mente, por tanto, você mente – Crisipo não
pôde sair disso” (BROCHARD, 2009, p. 144)

A solução da “ataraxia” não foi a única como critério para ação dada pelos
céticos, há, também, os não mais precisos “racional”, para Arcésilas, e o “provável”
para Carnéades. Contudo, se assim possível fosse numa vida prática, o não agir em
relação à vida seria recomendado por muitos céticos. Sinteticamente, a ação é
impossível a quem não tem crenças, para se agir é preciso se acreditar em algo ou ter
um propósito em relação ao mesmo. Como podem viver os céticos?

Existe um paradigma vigente, oriundo das proposições abaixo expostas:

“Todo movimento exige uma causa, toda asserção, quer se refira ao presente, quer
se refira ao futuro, é verdadeira ou falsa, como não concluir que tudo se encadeia,
que todo acontecimento, qualquer que seja, depende dos acontecimentos anteriores, e
por conseguinte, é determinado antecipadamente, é certo e pode ser predito? E dizer
que tudo se encadeia, que o Fatum é a lei suprema do mundo não é dizer que tudo
acontece necessariamente, que não há lugar para a liberdade? [...] É este, em termos
um pouco diferentes, o eterno problema da presciência divina e do livre arbítrio.”
(BROCHARD, 2009, p. 159-160)

Em outras palavras, para se conservar uma liberdade, seria necessário afirmar


que nem todo movimento possui uma causa anterior. A nossa vontade seria um
15

movimento sem causas anteriores? O desconhecimento em relação aos porquês de


nossa vontade seria fruto de uma autonomia da mesma ou de uma ignorância de fato?
Aqui, o não saber, como instância em que não há nada para ser descoberto, se
apresenta como mantenedor da liberdade humana. Por esta lógica, o cético poderia ter
quaisquer atitudes em relação a sua vida que não haveria aí nenhuma incongruência
quanto ao seu pensamento teórico sobre o conhecimento.

Ademais, acredito, a ação humana se dá de uma forma intrincada. Isto é, pode


haver sim algo da ordem do não saber nela, que mantém a liberdade humana, contudo
há outras implicações ou causas, além da expontânea vontade, que a provocam. Seriam
elas inúmeros fatores e condicionantes, sejam sociais, biológicos, culturais e outros “–
ais”, que, somados à vontade (que é um legítimo ponto de interrogação e algo do
momento, quase transcendental), culminam numa determinada decisão ou ação.

Assim, o estudo psíquico humano e um proposta científica com fins de saúde


mental, carregariam consigo uma intrínseca ordem do não saber e de imprecisão. É
claro que todos os outros fatores e condicionantes podem ser trabalhados para que o
homem se dirija à saúde, e já há nisto uma considerável eficácia estatística, contudo há
sempre algo que não se fecha. Isto é, a vontade humana que, a despeito de tudo, quase
que instintivamente ou impulsivamente, se lança ao seu bel-prazer (ou “bel-acaso”).

É notória a íntima relação da Psicanálise com este tipo de visão de homem


ligado à sua vontade e o seu não-saber. O que seria o sujeito do inconsciente que não
esta “vontade”? É possível também fazer inter-ligações com uma abordagem
existencial-fenomenológica. Já todos os outros fatores e condicionantes citados
anteriormente, eficazes estatisticamente, também pode ser relacionados a uma
abordagem cognitivo-comportamental.

Para se definir um critério para a ação, Carnéades defende, na ausência da


possibilidade de uma certeza, a probabilidade. Ela seria, segundo ele, “determinada
pela vivacidade da sensação e pela harmonia das representações entre si”
16

(BROCHARD, 2009, p. 170). Isto é, haveria uma união daquilo que é sensível com o
racional e o fenômeno indicaria o que é o mais provável e condizente a ser feito.
Dando um exemplo atual, ao se atravessar a rua, a sensação de calma proporcionada
pelos carros diminuindo suas velocidades, aliado à codificação do sinal vermelho
dirigido para eles, induz o pedestre a seguir com segurança. Não há a certeza absoluta
de que os carros, tresloucadamente, não resolverão acelerar e atropelar o passante,
porém é provável que isto não aconteça e ninguém deixará de atravessar uma rua pela
ausência desta precisão absoluta de segurança.

Podemos observar que, com frequência, este outro lado, o da incompletude e


imprecisão do “desconhecido”, ainda que diminutos como no exemplo acima, ganham
contornos estratosféricos, que se agigantam nas mentes humanas. Assim, observamos,
neuroticamente: um elevado nível de segurança em condomínios fechados, farmácias
de remédios em banheiros residenciais, consumismos desvairados em shopping centers
e, por que não, no campo do conhecimento, um “mercado de trabalho” exigente e
fomentador de uma indústria de especializações e MBAs. Em tal sociedade os
aparentes “exageros” acabam por virar regra, padrão, numa lógica de verdadeira
cadeia produtiva.

No campo epistemológico, esta lógica de um sentido só se traduz na crença de


uma constante e infindável apreensão, produção e indexação do conhecimento como se
apenas este operacional existisse. De certa maneira, um conhecimento dito “formal” e
técnico pode, ideologicamente, aprisionar o próprio homem, no sentido de qualquer
pensamento diferente destas verdades produzidas ser taxado como falso. É claro que
existem áreas do conhecimento mais propensas para tal configuração, porém, em
outras áreas, a mera flexibilização em relação a formas de se pensar e de se produzir
um outro tipo de conhecimento são expurgadas e caracterizadas como “não
científicas” ou falsas.

Seja pela via da fala ou da escrita, quase que por um processo de “associação
livre”, somos inclinados não diretamente ao saber, mas à expressão de algo que, assim,
17

se deixa ser conhecido. Assim, temos diversos tipos de saber, sejam eles legítimos,
verdadeiros ou não. Muitos filósofos céticos, apesar de defenderem que nada sabiam,
afirmaram muito mais do que sabiam, perdidos e engalfinhados neste parlant1.

Tal como vimos, a solução dada por Carnéades para a “ação”, dada em função
daquilo que é “provável”, já não faz dele tão cético assim:

“Entre as representações verdadeiras e as falsas, não há, dizeis, diferença


específica. Sendo assim, com que direito se diz que umas se aproximam da verdade e
outras dela se distanciam? Ambas são igualmente suspeitas.”
(BROCHARD, 2009, p. 220)

“Os persas permitem que os filhos se casem com suas mães, os egípicios, que os
irmãos se casem com suas irmãs, a lei grega o proíbe. Quantas diferenças entre as
diversas religiões, entre as opiniões dos filósofos, entre as narrativas dos poetas!
Portanto, pode-se dizer que os homens pensaram sobre este ou aquele ponto o que
lhes pareceu verdadeiro, não o que é verdadeiro.” (BROCHARD, 2009, p. 265)

A lógica da probabilidade pode se fundamentar a partir da lógica das


aparências, isto é, um critério para a ação terminaria sempre por se vincular a algo
muito particular daquele que a experiencia. Conquanto, se a nível da vida particular de
cada um o imbróglio pode terminar por se resolver, um critério para determinação de
um conhecimento sobre a realidade, isto é, num nível objetivo e imparcial, continua.

“Não podemos separar as coisas daquilo que as cerca, assim como não distinguimos
o azeite num unguento. Mas não separá-las é não conhecê-las em si mesmo”
(BROCHARD, 2009, p. 264)

Em algumas áreas científicas de modo mais acentuado, e em outras menos,


observamos que a apropriação do conhecimento se distancia da própria “realidade
bruta dos fatos”. Isto é, a apropriação é feita, dada a complexidade de um assunto, a
partir da construção de modelos ou paradigmas, tal como definido por Kuhn (2006).
Não adentrando pormenorizadamente em sua conceituação, o importante a se trazer
neste espaço é que ele denuncia exatamente o lastro existente entre a realidade e a
conceituação teórica. Não obstante este aspecto, que um verdadeiro cético iria explorar
1
Do francês, significado “falatório”.
18

ao máximo em sua “denúncia”, tal abordagem paradigmática ou de construção de um


modelo é de serventia para a ciência, funcionalmente ou utilitariamente, alcançar
diversas realizações práticas.

Tais separações dos objetos daquilo que os cerca para que sejam “conhecidos”,
como visto na passagem acima, assim como a construção de modelos ou
estabelecimento de paradigmas, municiam a Ciência para um conhecimento
pragmático, contudo tais discriminações sempre deixam um lastro de não-
conhecimento. Este material que “foi deixado para trás”, “sem serventia para o
momento” pode ser impossível de ser extinto, configurando-se sempre como um não
saber.

Analogamente a isto, por exemplo, no campo da matemática, seria a divisão de


um número qualquer que não 0. Ainda que dividido infinitamente, um número sempre
carregará consigo um determinado valor, por menor que seja, da ordem do
infinitesimal. Seria a dinâmica do não saber, por mais discriminado e conceituado que
seja o conhecimento, similar a este infinitesimal que nunca se esgota? De fato, pouco
importa se este infinitesimal possa ser apresentado como pífio ou não importante
utilitariamente, contudo, conceitualmente ou estruturalmente, este aspecto pode fazer
toda a diferença.

Hodiernamente, vivemos uma sensação de que se aparenta saber sobre tudo


(para isto basta que se mudem os termos de pesquisa no Google, isto é, não é “ele” que
não sabe, mas você que não digitou os termos corretos). Mais do que isto, não sabemos
o que este “tudo” realmente significa, isto é, os limites do nosso conhecimento. Não se
sabe se um dia será possível voltar ou avançar no tempo ou se o teletransporte de
pessoas e objetos será algo além de uma obra de ficção. Em linhas gerais, tudo parece
ser questão de tempo, é imperioso não se admitir algo diferente disto: eis o nosso
paradigma.
19

II. O SÁBIO E SUA VISÃO DO CÉU

Chega-se o momento em que seria mais plausível (e eficaz) deixar as páginas


em branco e o efeito de uma simples caminhada seria mais evidente do que qualquer
texto que viesse a ser produzido2.

Retirando-se do jogo ou de qualquer problematização, isto é, não “entrando em


campo”, sem um “do quê, por quem ou por quê”, o que se entende como sabedoria
alarga o horizonte vital como um “assim” cujo propósito é se dizer por si só.
Perguntar-se “Que assim é este?” desvirtua a própria essência deste “assim”, contudo
assim se decorrerá este capítulo.

A sabedoria, tal como sintetizada por François Jullien (2000), se caracteriza por
não privilegiar nenhuma idéia, visão, olhar ou “parti pris” sobre a realidade. Isto é, não
se enunciando ou privilegiando nada, a realidade será mantida tal como ela é, e não
haverá corrupção de sua autenticidade.

Acalmam-se os ânimos, fecham-se as cortinas e instaura-se a serenidade.

A partir do momento em que se recusa ao que é apresentado como


“arbitrariedade de uma primeira idéia”, é possível se manter aberto à experienciação
do mundo tal como ele é, como numa simples caminhada sem propósito. Não é de se
estranhar que este “sem propósito” grite no texto como se estivesse prestes a ser
exterminado em sua simples leitura ou enunciação, dado o pragmatismo pedante dos
dias de hoje.

Contudo, é algo inerente a qualquer comunicação emitir uma mensagem que,


invariavelmente, irá pôr algo à frente de outras coisas que, na realidade das coisas, em
2
“’Eu gostaria de não falar’ [...] ‘O céu fala?’[...] dizer interrompe, dizer cria obstáculo (ao ‘isso’ que
não cessa de advir)” Confúcio (apud JULLIEN, 2000, p. 108)
20

nada assim se apresente. A visão do sábio se assemelharia, assim, ao céu, cuja virtude
é “a totalidade dos processos em curso” sem “nada pôr à frente” (JULLIEN, 2000, p.
17-18).

Um sábio é aquele que não possui desejo ou idéia, ele se conduz de acordo com
um “real”, que é característico por sua transformação contínua, não se estabelecendo
ou fixando em ponto algum. A preocupação não é com uma verdade, mas com uma
imparcialidade que, exatamente por sua neutralidade, se demonstra mais fidedigna e
verdadeira do que qualquer outra “verdade” impositiva e científica.

No pensamento chinês, aquilo que é considerado “negativo” é exatamente a


fixação em uma disposição particular de visão de mundo, sendo assim considerado
uma obstrução do curso, do “caminho” (o todo real) (JULLIEN, 2000).

Aquilo que é considerado o “real” pode ser da ordem do indizível ou, se não de
outra ordem, incapaz de ser expressado em sua totalidade pela via da linguagem ou
mesmo pela nossa língua.

Neste sentido, o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein precisamente pontua:

“Ouve-se sempre esta mesma observação: que a filosofia não faz, propriamente,
nenhum progresso, que os mesmos problemas filosóficos que já ocupavam os gregos
ainda nos ocupam. Mas os que dizem isso não compreendem a razão pela qual deve
ser assim. Ora, essa razão é que nossa língua permaneceu idêntica a si mesma e que
ela nos desvia sempre para as mesmas questões. Enquanto houver um verbo ‘ser’
que parecerá funcionar como funcionam ‘comer’ e ‘beber’, enquanto houver os
adjetivos ‘idêntico’, ‘verdadeiro’, ‘falso’, ‘possível’, [...], os homens sempre virão
tropeçar de novo nas mesmas dificuldades enigmáticas e contemplar com um ar fixo
aquilo que nenhuma explicação parece capaz de esgotar.”
(Wittgenstein, 1931, apud Jullien, 2000, p. 189)

O homem de bem é considerado aquele não parcial, que age no mundo “para o
que a situação exige”. Podemos observar aqui uma similaridade para com certos
pensadores céticos.
21

Sobre Confúcio, pensador chinês, Jullien (2000) aponta:

“se ele se abstém de ter idéia própria sobre a questão, é para ficar inteiramente livre
de responder ao que a situação exige” (p. 26)

Tal pensamento, dito confuciano, tenta abarcar o real em todas as suas


possibilidades, isto é, ele está sempre presente no processo, na medida em que ainda
não foi definido.

O que é dito como “possibilidade do meio” consiste em poder ir de um extremo


ao outro:

“a concepção chinesa se inscreve numa lógica do desenrolar, sendo o real concebido


de acordo com a categoria do processo: este meio é meio porque, podendo variar de
um extremo ao outro, a regulação é contínua” (p. 37)

Assim, a noção de verdade é completamente dissolvida de acordo com a


especificidade do caso encontrado. Temos, na sabedoria, em contraponto à filosofia,
não uma elaboração esquemática e desenvolvida de idéias, mas algo para se meditar o
funcionamento do mundo e do curso da vida.

Jullien (2000) apresenta que a consideração confuciana, assim, “dando o que


pensar”, possui um caráter tanto incitativo (no sentido não de dar uma lição, mas de
provocar o espírito de seu receptor), como indicativo (no sentido de começar a dizer
algo e orientar o outro).

“A filosofia ‘concebe’ – a sabedoria atravessa. Enquanto a primeira operação visa


absorver a diferença (num gênero comum: em busca de uma identidade de essência),
a segunda tende a ligar a diferença fazendo todos os casos abordados, por mais
diversos que sejam, se ‘comunicar’: de uma observação a outra, a consideração de
sabedoria não cessa de se ‘modificar’, mas, através dessa ‘modificação’ mesma, um
mesmo sem-sabor, renovando-se, não cessa de ‘passar’. (JULLIEN, 2000, p. 54)

A sabedoria possui um caráter tenso e transitório, de maneira que aquilo que é


apontado por ela não se configura como um conhecimento, no sentido daquilo que é
22

produzido ou adquirido. A partir do momento em que algo se estabelece pode já perder


sua validade, por já fazer parte de um outro momento. Assim, o sábio é o foco
exatamente nesta lógica da mudança.

Tal globalidade e imparcialidade da sabedoria conotam, grifo meu, uma


grandiosidade ímpar de se encarar a realidade. Encarar, aqui, não no sentido da
verdadeira “Arca de Noé” proposta pelo nosso paradigma vigente, de se saber tudo
sobre tudo e todos (“tudologia”) como um objeto, mas, de fato, propôr um approach
que seja possível.

Se pudéssemos ousar apontar, hoje, algo que fosse exatamente o inverso (ou o
igual3) da sabedoria, seria aquilo que é conhecido na internet como “Gerador de
blábláblá”, isto é, um dispositivo que gera um determinado texto (de qualquer
tamanho) que pode se adequar a qualquer coisa. Tal façanha é alcançada pela
combinação de palavras-chave que expressam tudo, mas na verdade não expressam
nada, tal como se vê abaixo:

“É claro que a competitividade nas transações comerciais não pode mais se dissociar
das diretrizes de desenvolvimento para o futuro. Evidentemente, a complexidade dos
estudos efetuados faz parte de um processo de gerenciamento das novas
proposições.”
(Gerador de Blábláblá)

A generalidade no discurso mantém tanto a não existência de erros (não se sabe


sequer sobre o que está se falando para haver incorreções) como a ausência de
expressão de coisa alguma (não se emite verdadeiramente nada).

No que se diferencia, então, da sábia passagem abaixo?

“Olho-o em cima, e quanto mais alto,


eu o penetro, e quanto mais duro,

3
Em proposição dogmática de Enesidemo, compartilhada com Heráclito: “na realidade, no absoluto,
os contrários coexistem.” (BROCHARD, 2000, p. 282)
23

eu o considero na frente, e de repente é atrás.”


(JULLIEN, 2000, p. 74)

Talvez, a despeito dos mais de 2 milênios que separam uma passagem da outra,
de fato, não haja diferença alguma. Contudo, a proposta da sabedoria é a do caminho,
de maneira que o receptor de ambas as leituras esteja incluso neste processo. Para a
primeira passagem, o leitor pode, por exemplo, simplesmente durmir ou encarar isto
como uma brilhante crítica aos vocábulos e discursos vazios da Pós-Modernidade. Já
na segunda passagem, também novamente durmir ou ter a percepção da narrativa do
reconhecimento do “não saber” ali presente.

Tal relativismo de interpretação, a despeito do tecnicismo dos manuais


modernos, é algo completamente ignorado no paradigma hodierno, como se o
“conhecimento” se estabelecesse imperiosamente e todos o entendessem naquele
“assim” determinado.

O mesmo se dá no campo da comunicação, publicidade, por exemplo, em que


um determinado sentido (por mais ilógico ou absurdo que o mesmo seja) é delimitado
e transmitido para ser rapidamente absorvido pelo receptor.

“Para a sorte todo mundo é igual”


(Slogan de Campanha Publicitária 2009 – Caixa Econômica Federal)

Tal slogan certamente desafia a inteligência do seu público-alvo, na medida em


que o conceito de sorte é justamente o privilégio ou a eleição aleatória de um (ou
“uns”) sobre os outros (leia-se multidão). Se assim se entende, o conceito de sorte é
justamente uns não serem iguais aos outros, pois a sorte privilegia apenas uma
milionésima parcela da multidão. Se para a sorte todo mundo fosse igual, todos
ganhariam na loteria e ela própria deixaria de ter sua razão de existir.

A má fé, ou golpe linguístico, do slogan reside em apontar que, antes do sorteio,


todos possuem a mesma possibilidade. Oras, mas a sorte só irá de fato ser assim
24

denominada no posterior do sorteio e haverá uma desigualdade brutal. Conclusão: para


a lotérica e sua equipe de publicidade, com seus fins de arrecadação, a sorte parece
bem igual apenas aos seus próprios interesses.

Um outro aspecto considerado pela sabedoria se refere àquilo que é dito como
oculto. Aquilo que é oculto e não conseguimos “ver” se dá justamente pelo seu caráter
imanente junto à realidade, isto é, é algo tão presentificado no dia-a-dia que ficamos
“cegos” para tal objeto. Assim, para haver uma percepção do oculto, seria necessário
um distanciamento (seja ele de que ordem for) da realidade, para que se pudesse captar
a existência deste oculto.

Por exemplo, aquilo que é entendido como sendo “normal” ou “natural” para
nós, em nossa cultura, poderá ser visto como completamente anômalo se nos
dirigirmos para as culturas orientais (e vice-versa). O caráter de certas características
óbvias e completamente defensáveis da nossa identidade por muitas vezes se revela
como algo completamente cultural e sócio-historicamente determinado.

Num processo de individuação (JUNG, 2002), o que se decorre de modo mais


“fácil” é a perda do referencial do outro, isto é, estando imersos em nossas percepções
sobre o mundo, a percepção da subjetividade do outro pode se tornar um grande ponto
de individuação

Para a sabedoria, a realização é tomar consciência daquilo que é evidente para


nós, isto é, ter a percepção exata daquilo que é por demais óbvio que acaba se tornando
oculto. Assim, não nos fixando nesta posição, podemos seguir o “caminho”, o fluxo
das mudanças, algo inerente à vida.

Se pensarmos, por exemplo, numa tribo dita “primitiva”, tais como algumas dos
índios exterminados da América, perceberemos que, dentre seus processos culturais,
não há nada menos “evoluído”, em termos lógico-racionais, do que a nossa cultura
consumista e capitalista atual. Se por um lado algumas tribos tinham a dança da chuva,
25

nós temos os shoppings. E para a incredulidade nossa para com as prescrições de um


“Pajé”, temos os nossos publicitários, que dirigem o sentido e o jogos das palavras ao
seu bel-prazer.

Embora talvez tenha sido algum tipo de impulso crítico que se tenha levado ao
que aqui especificamos como um tipo de “sabedoria”, é preciso se destacar que ela, em
si, não tem nada de crítica ou revolucionária, sequer em intenção. Muito pelo
contrário, de um modo perspicaz, contudo bastante “cru” (no sentido de literal), a
tradição neoconfuciana assim a define: “o caminho do sábio não passa de uma lógica
da perfeita adaptação” (JULLIEN, 2000, p. 78).

Um bom exemplo de chegada a este “caminho” seria, por exemplo, tocar com
virtuosidade algum instrumento musical, de maneira que este ato se constitui um
“fundo” e não um objetivo. Qual o objetivo de se tocar um instrumento, de se produzir
música? É como algo que já responde por si, em ato.

Tais conceitos como verdade e razão, não se pode esquecer disto, são histórico-
culturalmente construídos e determinados. Não há nada de natural ou espontâneo em
se falar sobre tais questões e instrumentalizações: o sábio é um ser tranquilo.

Assim, Jullien (2000) aponta que a sabedoria, em contraste com a filosofia, se


baseia numa lógica sem logos, em que os opostos (yin/yang, ser/não-ser, etc) não estão
ali para serem dialetizados, mas terem uma igual admissão, isto é, a co-existência.

É como se, grifo meu, a filosofia se ocupasse da Revolução Francesa in loco e a


sabedoria enxergasse tudo pelo alto e desvinculada temporalmente do processo ou se,
personalisticamente, não desse muita importância para o que fosse acontecer e tivesse
noção de que nada (ou pouco) poderia interferir.

“Permanecendo função de uma experiência individual, a sabedoria é, em seu


princípio, autoreferencial – à imagem do autocratismo do soberano, em vez de
26

reclamar a aprovação dos outros, ela é autoprovante e se basta.” (JULLIEN, 2000,


p.117)

Talvez não haja “definição” melhor para o sábio do que esta abaixo:

“É sábio aquele para quem, enfim, o mundo e a vida dizem por si”
(JULLIEN, 2000, p. 129)

Assim, chegamos à problemática da possibilidade da razão. Ela termina por ter


uma dupla característica em que ao mesmo tempo que ilumina um determinado
assunto, o parcializa, pela própria realidade ser incapaz de se fragmentar neste corte
feito pela razão. Já se diria que, ao se falar sobre tudo, não se fala sobre nada ou, ao se
tentar particularizar por demais um determinado assunto se termina por se desprezar
todos pequenos (ou macro) fatores que o determinam e moldam.

Neste mar aberto criado pelo homem (o conhecimento), pode-se criar um


verdadeiro “Titanic” de robustez e aplicabilidade, contudo nada apagará o fato de que
o mar nunca será terra firme e as coisas podem, de uma hora para outra, simplesmente
afundar.

A partir da sabedoria, a pergunta que se faz é o que fazer com isto, ainda que a
própria pergunta já pressuponha exatamente algo que já desvirtua a sabedoria, isto é,
ela se fala sob outros termos.

Este outro modus operandis da sabedoria impede qualquer fixação de prego


junto à parede, demonstrando-se de que não há necessidade de se colocar um quadro
na parede quando na janela em frente já está presente a vida como ela é, sem um
modelo capaz de replicá-la.

“a partir do momento em que não é mais a constituição de um objeto que é visada, a


atividade do conhecimento permanece na dependência da existência [...] Com efeito,
sentimos tanta dificuldade em pensar num conhecer que não tenha saído de nossa
clivagem, que não seja o conhecer grego, o da teoria do conhecimento”
(JULLIEN, 2000, P. 172)
27

Por estas passagens, Jullien (2000) apresenta uma perspectiva de que seria
necessário refundar o conhecimento, e, por esta lógica da sabedoria chinesa, isto seria
estar disponível ao novo, numa espécie de “higiene do espírito”. A consciência crítica
seria exatamente uma indisponibilidade, característica entre os debatedores da arena
filosófica.

É preciso que se grife um certo caráter idealístico para a figura do sábio,


sobretudo nos dias atuais. A crítica certamente acaba por se tornar um refúgio e um
alento para aqueles que, politicamente até, não querem coonestar com certas práticas
consideradas anti-éticas ou imorais. Como se depara o sábio com o imoral se ele não é
tomado de nenhum “eu particular” e se adapta a qualquer descalabro que possa vir a
surgir em seu meio? Certamente ele sequer se depararia com o surgimento deste tipo
de situação, por não compartilhar com este tipo de leitura do mundo.

É fato que a sabedoria, pelas suas próprias características de não se desenvolver


nada, ficou relegada ao longo da história a um segundo plano, frente à filosofia por
exemplo, ao menos no mundo ocidental. Por não haver paixão ou defesa, não há
perspectiva que se alastre. Contudo, não por isto, uma leitura que se pode ter, talvez
errônea, é a de que a sabedoria poderia servir à China Antiga e não mais aos dias
atuais ou ocidentais.

Como contraponto e à luz de uma defesa da crítica, não necessariamente ela


seja representativa de um “espírito tomado pela rebeldia”, mas uma própria
disponibilidade de um ser no seu tempo existente que, enviezado por uma razão, se
adequa ao seu mundo de uma forma digna, existencialmente. Da mesma forma que um
sábio pode ir de um extremo ao outro, o crítico também o faz.

É notório que tais aproximações e adequações, de modo a encaixar,


forçosamente, determinadas situações àquilo que foge da essência inicialmente
determinada fazem perder seu teor de veracidade. Ao mesmo tempo, se a idéia é
exatamente a do processo, que assim o faça, na certeza também de que, pelo lado da
28

sabedoria, não surgirá um “eu” a indicar qualquer inadequação. Enquanto um político


decide alguma desumanidade na canetada, o sábio não sai de sua meditação. Será?

Para se ter um olhar atento àquilo que está oculto na imanência, é preciso ter
uma sensibilidade crítica, caso contrário tudo passaria desapercebido e completamente
“natural”. Nestas aparentes contradições da sabedoria ou tentativas de se corrompê-la,
podemos inferir sua íntima relação com a existência, de maneira que o existir, por sua
liberdade, acrescenta itens e perspectivas que, de modo intencional, irão querer atingir
a impertubabilidade da sabedoria.

Remetendo-se ao início deste capítulo, em que para a sabedoria seria melhor


não enunciar nada, já constatamos um porquê: apesar dela transmitir algo e “dizer
muita coisa”, é da ordem do etéreo, algo que o vento precisa levar para que nenhum
filósofo a traga e queira duelizar.
29

III. CINISMO: DOS HOMENS AOS CÃES

3.1- Diógenes como personificação

O Cinismo é considerado uma corrente filosófica dos tempos de Grécia e Roma


caracterizada pela crítica às normas e convenções sociais. Os cínicos, denominados
“cães” (ou “dog”, deus em inglês, ao contrário), eram a face de uma “outra moeda” no
fazer social, que desafiava aquilo que era vigente sócio-culturalmente em seu tempo.

Um dos maiores representantes do cinismo foi Diógenes de Sínope, datado por


volta de 400 A.C., aquele que saía pelas ruas, durante o dia, com uma lanterna acesa à
procura de um ser humano e ninguém encontrava na multidão, senão que salafrários e
indignos.

Maltrapilho, Diógenes morava num barril, e sua vida é conhecida por nós hoje a
partir de anedotas, visto que ele em nada ou pouco escreveu, por julgar o estudo, a
leitura e a escrita aspectos completamente secundários para uma vida feliz.

Diógenes era pragmático: inteiramente voltado para a ação, preocupava-se com


o mínimo para que sua liberdade e independência fossem preservadas.

“as coisas que uma pessoa precisa para sobreviver são bem poucas: alguma comida e
algum abrigo, além da possibilidade ir e e vir livremente”
(NAVIA, 2009, p. 50-51)

Celibatário e desempregado por opção, Diógenes tinha como propósito o


desapego às necessidades escravizantes dos homens, e partia, no seu cotidiano, ao
ataque das convenções de sua época. Buscava uma vida “conforme à natureza
humana”, baseada no aqui-e-agora e de desenvolvimento de um estado impertubável e
de total autossuficiência.
30

Era comum ver Diógenes, o mendigo soberbo, pedir por esmolas e comida, tal
como na simpática passagem abaixo:

“A um que lhe disse ‘dar-te-ei unicamente se me persuadires’, seu comentário foi:


‘pudera eu persuadir-te de algo e ter-te-ia persuadido a te enforcares’” (NAVIA,
2009, p.60)

Uma das “lições” da filosofia cínica é a de dispensar o supérfluo e se adaptar a


toda sorte de situação:

“Ele se deu conta de que camundongos não precisam de um lugar especial para
morar e dormir e comem o que quer que encontrem pelo caminho. (...) Nem
distinções sociais, nem sistemas filosóficos elaborados têm significado algum na
vida dos camundongos.” (NAVIA, 2009, p. 75)

Assim, quaisquer necessidades outras, inclusive as das normas sociais, do que


as impostas naturalmente ao homem, como comida e condições mínimas de saúde (tal
como abrigo), se tornam, para Diógenes, obstruções de uma vida de sossego e
felicidade.

Conforme descrição de Navia (2009), Diógenes, impudente, fazia suas


necessidades em público, escreveu a favor do canibalismo e do incesto e foi contra
qualquer regra ou convenção social que “artificializasse o homem”. Isto é, para ele,
não há modo de viver mais natural que o dos animais e o seu apelido de “Cão”,
rotulado também para outros cínicos, era uma visão autêntica daqueles que o
observavam em sociedade.

“Noutro relato, conta-se que, quando Alexandre visitou Diógenes em Corinto e


indagou-lhe o que porventura desejaria dele, a resposta de Diógenes foi: ‘sai da
frente da luz’ (DL, 6.38) Nada precisava do imperador, a não ser que se desviasse da
luz solar que o aquecia.” (NAVIA, 2009, p. 177)

“Diogenes’ answer negates not only the desire for power, but the power of desire as
such” (SLOTERDIJK, 1993, p. 161)4

4
Em tradução do autor: “A resposta de Diógenes nega não só o desejo pelo poder, como o poder do
desejo em si.”
31

Diógenes, segundo Navia (2009) foi bastante influenciado por Antístenes, que
apontava que a virtude não é algo referente à reflexão, mas aos fatos e à prática.
Assim, os cínicos sempre tiveram uma postura eminentemente prática em relação a sua
filosofia, não preocupados com grandes conceituações. Chega a ser surpreendente,
grifo meu, que nos chegue aos dias de hoje a figura de Diógenes, pelo seu pouco
legado histórico sob forma escrita.

“Consta a propósito que, uma vez, argumentava-se sobre a realidade do movimento e


Diógenes levantou-se e saiu andando.” (NAVIA, 2009, p. 94-95)

Navia (2009) nos conta de sua vida muito a partir do que foi escrito pelo
historiador e biógrafo Diógenes Laércio (Séc. III D.C.). Um legítimo refutador do
mundo, lúcido, pragmático, voltado para o mundo físico e racional, pode-se dizer sim
que Diógenes era aquele que indicava as incongruências de uma realidade cultural, em
sua época, que em nada carregava de “verdadeiro” que não a mera existência de suas
práticas, por mais injustificadas ou irracionais que fossem.

Pela visão de Diógenes, suas atitudes talvez nada mais fossem do que um
espelho invertido de sua sociedade, tal como no irreverente relato abaixo:

“Quando chegaram notícias em Corinto de que Felipe e os macedônios se


aproximavam da cidade, toda a população mergulhou num frenesi de atividade,
alguns, preparando as armas, outros, transportando pedras, ou remendando as
fortificações, ou reforçando a muralha – todos se fazendo úteis à proteção da cidade.
Diógenes, que não tinha o que fazer e a quem ninguém estava disposto a perguntar
coisa alguma, tão logo se deu conta da faina dos que estavam à sua roda, pôs-se
subitamente a rolar seu tonel para cima e para baixo do Kráneion, com grande
dispêndio de energia. Quando lhe perguntaram por que fazia aquilo, retrucou: ‘só
para fazer-me parecer tão atarefado quanto o resto de vocês’ (História, 3) (NAVIA,
2009, p. 49-50)
32

Oscar Wilde5 (1996, apud Navia, 2009) precisamente pontua que “cinismo é
apenas a arte de ver as coisas tais como elas são, em vez de como deveriam ser”. Já a
moral, para Sloterdijk (1993) seria o inverso, isto é, uma série de regras de como
deveríamos ser, embora, de fato, não sejamos.

É importante salientar que a pobreza imposta a si por Diógenes é o preço pago


por sua liberdade, conforme pontua Sloterdijk (1993):

“In a modern language, what in Diogenes upset his contemporaries could be


expressed succinctly: “rejection of the superstructure”. Superstructure in this sense
would be what civilization offers by way of comfortable seductions to entice people
to serve its ends: ideals, ideas about duty, promises of redemption, hopes for
immortality, goals for ambition, positions of power, careers, arts, riches. From a
kynical perspective, they are all compensations for something a Diogenes does not
let himself be robbed of in the first place: freedom, awareness, joy in living.” (p.
165)6

Corroborando-se uma certa superficialidade em sua filosofia, não só por não


deixar muita material escrito, como por não se propôr a desenvolver muito as idéias
(isto seria um fardo a mais sobre a existência, por já demais “pesada”), a irreverência
de Diógenes tem uma certa consonância com o que aqui foi apresentado como
sabedoria.

Ambos, cinismo e sabedoria, se propõem a desvelar um “oculto” que, por


demasiado presente, não consegue ser visto. Contudo, eles o fazem de maneiras
completamente antagônicas: o primeiro pela via direta do combate no mundo físico e

5
Cf. WILDE, O. Sebastian Melmoth, citado no The Cynics: The Cynic Movement in Antiquity and Its
Legacy, ed. R. Bracht Branham e M.O. Goulet-Gazé (Berkeley e Los Angeles: University of
California Press, 1996), p. vii.
6
Em tradução do autor: “Numa linguagem moderna, o que Diógenes importunava seus
contemporâneos pode ser expresso resumidamente como ‘rejeição da superestrutura’. Superestrutura,
neste sentido, seria o que a sociedade oferece, em termos de conforto e sedução, para convencer as
pessoas a servir aos seus ideais, tais como deveres, promessas de redenção, esperança pela
imortalidade, objetivos, ambições, posições de poder, carreiras, artes, riquezas. Sob um perspectiva
cínica, tudo isto se trata de compensações para amenizar perdas que Diógenes não abre mão, tais
como: liberdade, conscientização, prazer em viver.”
33

verbal, digamos assim, com Diógenes apontando as lanternas para as pessoas e as


insultando, o segundo por uma instrospecção de nível meditatório.

Diógenes e um sábio se retiram das suas respectivas “partidas da sociedade” de


modos diferentes. O sábio nada formula ou questiona e participa como se nenhum “eu”
existisse, faz tudo como os outros, seguindo o fluxo. Participar do “jogo social” como
um adendo, desapercebido, é uma forma de retirada de cena, talvez como o próprio
meditar. Aliás, a meditação é um belo paradoxo: aquele que medita tenta se encontrar
mais conectado e presente no seu mundo, em busca de uma consolidação, uma
epifania, e ao mesmo tempo está completamente alheio ao que o cerca. Enquanto o
mundo acaba, o templo permanece intacto.

Certamente alguém com mais conhecimento contestaria o que acabou de ser


dito, diria que o sentido da meditação não é este o da alienação, muito pelo contrário, e
traria elementos que o justificassem. Infelizmente o “agir de acordo com as
aparências” (neste caso mais julgar do que agir), bastante preconizado por muitos
céticos, também é uma bela forma de reducionismo.

Já Diógenes se retira daquilo que é vigente em sua sociedade, para criticar este
existente, isto é, desvela o oculto instaurando o seu “canino caos”, defecando em
público e ofendendo quem passa. Sua loucura é tão intensa quanto a meditação do
sábio, opostos de uma mesma moeda.

Em Diógenes certamente não há um “eu”, mas um “bicho” ali presente, em sua


impulsiva e voraz crítica, irreverente cinismo, e o seu pragmatismo, para simplesmente
ter uma vida suficientemente boa, a ponto de se desfazer rapidamente de tudo que é
supérfluo, é atroz. É como alguém que põe fogo em sua própria casa para que a mesma
não seja levada por uma enchente.

Sua figura, seguindo seus conceitos de modo convicto (e permitindo-lhe criticar


os outros), é emblemática e típica de alguém preparado para o fim dos tempos.
34

Falando sob os termos da sabedoria, Diógenes fez da obstrução do “caminho” de sua


sociedade o seu próprio caminho.

Se o sábio não fala, Diógenes também pode não falar, contudo ele vai correr,
acender uma lanterna, se portar como um cachorro, etc.

Na sabedoria, foi dito que os contrários co-existem, Diógenes seria um destes


contrários, esta outra moeda de sua sociedade, portanto o seu cinismo pode ser visto
como uma parte integrante de uma sabedoria.

Ao se tratar de cinismo e sabedoria, será que estamos falando de fato de


essências tão diferentes ou no fundo podem ser quase a mesma coisa, em se alterando
apenas suas formas, ordens e/ou aparências? Seria Diógenes um sábio que cansou de
meditar?

Se Diógenes vivesse numa sociedade dita primitiva, em que se fizessem as


necessidades em público, talvez ele fosse o primeiro a fazê-lo de modo privado. Este é
genuinamente o caráter de uma “razão cínica”. Não se trata simplesmente de uma
defesa da verdade ou de um conhecimento, grifo meu, mas de uma lógica de subversão
frente aquilo que se apresenta naturalmente como verdadeiro sem nada, de fato, o
autorizar a sê-lo. Numa realidade multifacetada, que não se apresenta sob o termo de
uma “verdade”, qualquer perspectiva que se arroga da mesma, é passível de ser
criticada, satirizada ou posta sob a degola de um olhar cínico.

Neste sentido, o cinismo em sua perspectiva crítica, tal como em Diógenes, não
deixa de ser um ceticismo ao que está se apresentando aos seus olhos e, quanto à
sabedoria, todos se perguntam como ela pode surgir senão por um grande emaranhado
reflexivo anterior. Isto é, por mais que os três possuam contextos de formação
completamente diferentes e cada um fale sob os seus próprios termos, cinismo,
sabedoria e ceticismo se misturam e possuem pontos em comum destacados.
35

No sentido mais pejorativo, usual e atual da palavra “cínico”, é fácil perceber


quando o cinismo acontece, numa reação instantânea daquele que é confrontado com o
mesmo. Daí o termo adquirir um tom denuncista e acusatório por parte de quem lida
com o cínico. Já por parte de quem o pratica, e reconhece, em seu íntimo, o seu
próprio cinismo, não há representação mais genuína do que o sorriso estampado no
rosto, como quem se arvora do feito, algo para si brilhante. O cinismo é como um jogo
dialético em que sempre se ganha na defesa de um interesse, desde que se permaneça
no comando da expressão.

A percepção da lógica da razão cínica não se dá para aquilo que iríamos,


obviamente, classificar como “cínico”, mas à constatação de que nossas próprias
visões de mundo e particularizações também são cínicas. O próprio uso de roupas,
para cobrir nossas “vergonhas” ou “intimidades”, é um ato cínico de grandeza maior,
contudo o “cínico” nos dias contemporâneos, pelo contrário, seria aquele que é adepto
do nudismo e diz que não veste roupas porque isto não é natural. O nosso julgamento
moral sobre os outros é o que lhes rotula a etiqueta do cinismo. Contudo, em termos
lógicos, o cínico é tão cínico quanto o bem é o bem e o mal é o mal.

3.2- Kynicism and cynicism: duas facetas nem um pouco inocentes

Sloterdijk (1988) precisamente diferencia o cinismo sob duas facetas. A


primeira é a da crítica, tal como em Diógenes, voltada para a ação e contestação
daquilo que é apresentado e se denomina “kynicism”. O deboche, o sarcasmo, a ironia
e a “zombaria” geralmente se referem a esta primeira faceta. Utiliza-se destes recursos,
dentre outros, de um modo debochado (“kynical”), para se desfigurar aquela realidade
apresentada. Já a segunda faceta do cinismo, denominada “cynicism” se vincula ao
que é dominante na nossa cultura contemporânea, é defendido pela sociedade, contudo
possui uma linha tênue com uma falsa moralidade ou com alguns furos de integridade.
36

Em termos políticos, a faceta “kynicism” sempre irá se opôr ao “cynicism” e


vice-versa. Por exemplo, em invasão recente dos Estados Unidos da América ao
Iraque, em 2003, o presidente George W. Bush justificou o feito pela presença de
armas de destruição em massa. Desconfiava-se de que este não era o real motivo, ou
mesmo que isto fosse uma mentira, contudo, o poder vigente assim o fez e este foi o
discurso apresentado (“cynicism”). Inúmeras charges, imagens e material audiovisual
foram produzidos posteriormente, em cima disto, zombando e denunciando a respeito
das reais motivações desta invasão. Esta é a faceta “kynical”, contestando aquilo que é
vigente.

“The deadly arrows of truth rain down on the places where lies lull themselves into
security behind authorities.” (SLOTERDIJK, 1998, p. 102)7

Ambas facetas podem ser apresentadas como cínicas, uma em defesa de um


cinismo, obviamente não reconhecendo se tratar de um cinismo (“cynicism”) e a outra
denunciando, zombando e querendo desvirtuar esta falsa realidade apresentada
(“kynicism”).

“Cynicism is enlightened false consciousness” (SLOTERDIJK, 1998, p. 5)8

Vivemos em tempos nos quais os discursos por muitas vezes possuem um viés
utilitário muito forte, isto é, a fala se dá na intenção de defender algum interesse que
esteja por detrás da fala ou mesmo se escuta, dentro de uma fala, tudo que a circunda
ou o que ela poderia querer significar, menos o que ela de fato expressa. O que se quer
dizer quando se fala algo? Que tal o algo-em-si ali presente? Numa fala cínica, seja
sob qual faceta seja, ocorre um claro distanciamento entre aquilo que é expresso e o
que de fato aquilo quer de fato significar ou implicar. Certamente, tais falas
encobridoras de outras falas mais polemizam e pulverizam determinadas discussões do
que esclarecem ou conciliam visões antagônicas.

7
Em tradução do autor: “As flechas mortais da verdade caem nos lugares em que as mentiras se
encontram seguras e preservadas pelo comando das autoridades.”
8
“Cinismo se trata de uma conscientização esclarecida de um modo falso.”
37

Podemos dizer, grifo meu, que as visões de mundo, crenças, produção de


conhecimento e, em último instância, os estabelecimentos de verdades são
perspectivas que se impõem e, por assim serem, são passíveis de se tornarem cínicas.
Em tese, aquele que irá rotular ou denunciar algo como cínico será exatamente alguém
que discorda daquilo que é apresentado, denunciando algum furo ético ou moral ali
presente.

“I call it the logic of the ‘cynical structure,’ that is, of the self-repudiation of refined
ethics.” (SLOTERDIJK, 1998, p. 8)9

Em outras palavras, não basta meramente algum furo técnico ou específico e


científico, na melhor acepção da palavra, para que se condene uma perspectiva e a
apresente como cínica. Ela é considerada como tal por algum furo ético ou moral, má
fé, sem querer entrar nos preciosismos conceituais dos termos, pelo qual ela responde.
É como algo intencionalmente arquitetado ou aproveitado na situação em prol de
algum benefício outro.

9
Em tradução do autor: “Eu chamo de de lógica da estrutura cínica, isto é, a da sonegação de uma
ética aprimorada.”
38

3.3- O “não saber” como instrumentação cínica

O que isto propriamente tem a ver com a questão do conhecimento hodierno e a


dinâmica do “não saber”? Hoje, o conhecimento, dentre outros aspectos, possui uma
consonância com a lógica do capital, isto é, um conhecimento é quase dito como
“mais verdadeiro” se mais rentável for para quem o detém. Cada conhecimento,
verdade ou informação pode ser medida pela sua capacidade de arrecadação financeira
a quem o tiver. Isto é, adquiriu-se um caráter completamente pragmático para o saber.
Se eu sei sobre algo, o que eu posso fazer a respeito disto ou, com isto, para me
remunerar? O conhecimento se estabeleceu como um capital.

Não obstante isto, seguindo-se uma lógica de que, para a lógica do capital, o
céu não é o limite, o próprio “não saber” passou a ser algo apropriado dentro desta
lógica. Isto é, como ninguém de fato o controla ou o detém, pode-se livremente se
utilizar do “anárquico e ilimitado campo do não saber” como um meio ou ferramenta
de geração de capital.

Isto é feito de uma forma explícita, contudo não necessariamente cínica por não
sabermos de suas reais intenções (embora este ”não saber” acerca da intenção possa
ser aproveitado cinicamente também), por parte de diversos agentes. Cartomantes,
futurólogos, religiosos e seus dízimos, mágicos e seus truques são alguns exemplos.

Há o uso implícito do “não saber” também, por parte de publicitários, políticos,


cientistas, jornalistas, etc. Quando se coloca uso implícito é no sentido de que a
mensagem parte de pressupostos, que pertencem ao campo do não saber, como se
fossem verdades ou saberes sem de fato o serem. São pressupostos duvidosos, “fatos”
distorcidos, manchetes enviezadas ideologicamente, jingles ou campanhas
publicitárias cativantes (contudo fantasiosas ou surtadas sob o ponto de vista da lógica
ou da razão), etc. O combate a quem se ancora no desconhecido é muito difícil de ser
feito, pois este desconhecido é ao mesmo tempo arma e escudo do discurso. Se Deus
39

não existe, apenas para citar um exemplo, é algo tão óbvio ou aparente quanto a sua
existência, e vice-versa. Vira questão de fé.

É possível a defesa de muitos destes elementos supramencionados mediante o


termo universalista “contexto”. É preciso se contextualizar cada situação para que seja
compreendida a mensagem que aí se encontra, isto é, uma adequação ao todo.
Indispensável apontar que tais contextos são, na verdade, pressupostos a partir dos
quais os elementos estão ancorados. Nisto, recaímos invariavelmente, dentre outras
coisas, no campo da cultura. Pronto, a “verdade” foi dissolvida aí.

“As with Buddha, everything that could be said is said through its mere existence”
(SLOTERDIJK, 1993, p. 131)10

Sob o ponto de vista cético, é possível apontar que todos os pressupostos pelos
quais um contexto abarca devem ser falsos. Só são verdadeiros sob o ponto de vista da
existência, disto não se pode negar. Qualquer sandice ou descalabro, seja sob o ponto
de vista racional ou lógico, por mais falso que possa ser, tem sua autenticidade sob o
ponto de vista da existência. “Aquilo” existe. Em relação a isto não há discussão.
Dando como exemplo apenas uma situação, voltemo-nos para o nazismo: apesar de
sua inimaginável atrocidade e destempero, ele existiu.

“Contra fatos não há argumentos” (Ditado Popular)

Apesar de usualmente se pôr no conjunto de fatos muitas perspectivas e


pressupostos que já deixam de ser fatos (e sim interpretações do mesmo), no mundo
prático (e não no Absoluto), o ditado tem sua autenticidade. Uma de suas implicações,
grifo meu, se dá em relação a cultura. Porque a “verdade” se dissolve nela? Porque a
cultura é de uma ordem muito mais factual do que racional ou lógica. Ela está ou
existe, pura e simplesmente por costume, hábito ou construção histórica, não é da
ordem do questionável, mas do observável.

10
Em tradução do autor: “Assim como com Buda, tudo o que pode ser dito já é dito pela sua simples
existência.”
40

Assim, apesar do discurso científico, nos seus ideais, tentar se desvincular deste
elemento cultural, em termos práticos, fora do laboratório, existe um certo grau de
indissociabilidade. Para ilustrar isto, podemos citar casos recentes de manipulação de
pesquisas sobre a eficácia de determinados remédios, em prol dos lucros da indústria
farmacêutica, diferentes resultados gerados por mecanismos de busca na Internet de
acordo com o perfil traçado sobre quem está realizando a pesquisa, dentre outros.

Novamente, tal como abordado no “contexto”, pode-se apontar que não é


necessariamente a Ciência o problema, mas o uso que se faz dela. A questão, ao meu
ver, reside na constante apropriação e desapropriação de responsabilidades no
discurso, que, em última instância, nos levam a situações em que, dramaticamente e
cinicamente, temos diante de nós criminosos, contudo inocentes por não terem puxado
o gatilho.

Temos, assim, diante de nós um vasto campo de relativização, contextualização


e liberdade discursiva, sustentado pelo âmbito do “não saber” e pela constante
evolução e construção de uma cultura, hoje, genuinamente capitalista. Até que ponto é
interessante, a cada um, a atuação diante de tais dispositivos, inclusive democráticos,
de constante relativização, leia-se dispersão, de responsabilidades?

Quando trato nestes termos, envolvo toda e qualquer situação, prática, em que
vá haver algum tipo de julgamento sobre algo ou decisão a ser tomada. O extremo
relativismo, por si só, não ajuda em nada ou só auxilia num primeiro momento em que
se levantarão as possibilidades. O célebre momento se dá no posteriori, em que se fará
um corte ou imposição de limites, através do qual um critério, entre ganhos e perdas
mensurados, será estabelecido e uma opinião ou decisão será tomada.

Possuímos, em inglês, um termo não existente no português chamado


“accountability”. Bastante utilizado nas Ciências Contábeis, Nakagawa (2007) o
define como tendo um significado de confiabilidade, sendo o resultado de uma
evidenciação (prestação de contas). Isto é, a grosso modo, um processo de apropriação
41

de responsabilidades e prestação de contas frente aquilo que é feito. Trata-se de um


caráter ativo frente a responsabilização, atuando-se em todas as frentes e
evidenciando-se todos os pormenores diretos e indiretos dos seus atos. Em outras
palavras, é como se fosse a defesa de um determinado réu, sem que ele estivesse sendo
acusado de nada e nem processo houvesse.

Este termo é trazido aqui, pois, grifo meu, entendo como se fosse exatamente o
inverso do resultado de uma extrema contextualização e relativização que são feitas
mediante determinados assuntos. Não há dúvidas de que tais processos de dispersão
são úteis no entendimento dos processos que o circundam, contudo, seu pouco aval
prático, ou mesmo ausência de conclusão, nos conduzem não só a uma imobilidade,
como cumplicidade com os processos ocorrentes.

Quando se fala em accountability, aborda-se um determinado valor que é


destinado a um dado agente, havendo aí uma fidelidade. Quando ocorre um processo
de contextualização ou relativização, ao contrário, a generalização ou “a desculpa” faz
com que se perca esta apropriação ou pertencimento específico.

“On which side do our loyalties lie? Are we agents of the state and of institutions?
Or agents of our own vital interests that secretly cooperate in constantly changing
double binds with the state, institutions, enlightenment, counterenlightenment,
monopoly capital, socialism, etc… and, in so doing, we forget more and more what
we our”selves” sought in the whole business? (SLOTERDIJK, 2009, p. 114)11

Em tempos que publicitários e cientistas trabalham juntos, dogmatismos (nem


que por alguns segundos) são arrancados do campo do “não saber” e apresentados em
belo ordenamento. Em tempos que a ética está excluída12 da lógica do capital, aquilo
que é indefinível (o não saber) se torna o arcabouço cínico para qualquer construção

11
Em tradução do autor: “Somos fiéis a qual lado? Somos agentes do Estado e das instituições? Ou
agentes dos nossos próprios interesses pessoais e secretamente cooperamos com o estado, instituições,
conhecimento, contra-conhecimento, capitalismo, socialismo, etc.. e, ao fazê-lo, nós nos esquecemos
cada vez mais a quem pertencemos de fato?”
12
Ou incluída sob a forma de produto, “marketeada”, o que, em essência, dá no mesmo.
42

ideológica que alguns mágicos das palavras queiram transmitir aos incautos do saber.

Assim, o campo do não saber se torna um espaço a ser ocupado politicamente.


Ele é “vazio”, como uma terra improdutiva ou ainda não explorada, conquanto
invadida e apropriada por agentes de diversas ordens, com variados interesses. Por
mais que o discurso de evasão, leia-se contextualização, relativização e derivados, seja
intencionado para um entendimento sobre o que se estuda (até mesmo se configurando
como um saber do “todo”), é preciso se perguntar que tipo de brecha, interesse ou
ideologia está sendo acobertada (ou alimentada) por este tipo de discurso. Não existe
nestes termos meus uma condenação a respeito da ideologia acobertada, mas um
apontamento de que ela acaba se tornando intocável sem que o emissor da
relativização perceba. Na verdade ela nem é posta em cena, invisível por demais
presente.

Não há dúvidas de que a abordagem apaziguadora e congregadora tenha seu


valor e seja inclusive muito bem vista sócio-culturalmente. Contudo até que ponto é
interessante isto, sob o ponto de vista ético e científico, e não a cisão, radicalização e
unilateralidades que, ao menos, mantém uma essência, em termos de valor,
preservada?

Em tempos céticos, a verdade ou o saber era algo a ser seriamente perseguido, a


ponto de se duvidar a respeito da aquisição de um conhecimento. Hoje, não só o
discurso cético é ignorado como o conhecimento é algo a ser produzido e construído.
Não há mais o mesmo rigor filosófico no termo “verdade”, recaindo sobre o mesmo
não só uma banalização como uma certa desconfiança. Era um termo de certa
profundidade que, hoje, veio à superfície e se tornou não só plástico, como útil e
eficaz, na tecnologia dos nossos tempos.

Certamente se foi dito que a cultura é algo da ordem da evidência e do


observável, isto não significa que a cultura ocidental não venha se tornando cada vez
mais pensada, racionalizada e técnica, sob o ponto industrial. De fato, é pelo seu grau
43

de explicitude e quase incontestabilidade (ainda temos a contra-cultura), que a cultura


se torna a “galinha dos ovos de ouro” para o capital. Ela é a própria delimitação do
contexto e desenho mental da geografia em que o homem irá manifestar sua
humanidade, não restando muito para onde fugir. Exemplificando, é a constatação de
que o espaço físico urbano se restringe à cultura do capital, e nele só existem
construções de moradia, comerciais, vias de transporte em massa e placas publicitárias.
A natureza ou a arte é uma exceção, que resiste em selecionadas cidades.

Hoje, a cultura é arquitetada mais racionalmente do que outrora, não havendo


mais o mesmo espaço para um acaso, uma espontaneidade ou um “não saber”. Mais do
que uma não naturalidade, é a acepção do termo natural que está em modificação.
Cada vez mais o homem se apropria do rumo do seu futuro enquanto sociedade,
conquanto cada vez mais o indivíduo homem é apropriado e “levado a ser” de um
determinado modo, por uma educação integral e seus intervalos publicitários. O
mundo dos homens é levado a ser encarado como um mundo físico, com suas leis,
causas, efeitos e fórmulas. Para isto, basta observar que, a cada geração, o consumismo
é uma característica cada vez mais presente.

“The more systematically education is planned, the more it is a matter of accident or


luck whether education as initiation into conscious living still takes place at all.
(SLOTERDIJK, 1998, p. 84)13

“Obedience is the first duty of children, and it later becomes the duty of a citizen.”
(SLOTERDIJK, 1998, p. 141)14

“Socialized human beings lost their freedom when their educators succeeded in
instilling wishes, projects, and ambitions in them” (SLOTERDIJK, 1998, p. 161)15

Lipovetsky (2004) conceitou a datação da Hipermodernidade, para designar a


exacerbação dos processos vistos na Modernidade. Como um processo de acentuação e

13
Em tradução do autor: “Quanto mais a educação é pensada sob uma forma sistemática, mais é uma
questão de pura sorte ou acidente se a educação, como iniciação de uma vida consciente, assim mesmo
ocorreu.”
14
“A obediência é o primeiro dever de uma criança, e posteriormente se torna o dever do cidadão.”
15
“Seres humanos socializados perdem sua liberdade quando seus educadores obtêm sucesso ao
incutir neles desejos, projetos e ambições,”
44

exagero do que já é existente, uma das perguntas que nos resta é qual será o resultado
final disto que não uma grande quebra ou ruptura, em todos os sentidos. E, não menos
importante, como se reestruturar, se houver de fato este “corte”, estando a geração
vivente no ápice de intensidade deste curso.

Em tempos que, no mercado financeiro, o não saber é medido sob forma de


risco, nosso enraigado de certezas outras que não as aparentes (tais como as nossas
tecnologias) não seriam também aparadas por um cinismo ideológico maior?

Existe cinismo maior, nos nossos tempos, do que o contraste da linguagem


agradável e feliz publicitária, frente aos nebulosos escombros da linguagem dos
contratos advocatícios? As hipocrisias formalizadas dos asterísticos e letras miúdas, a
falsa simpatia do vendedor e as mentiras dos gerentes de banco (somente proferidas,
nunca escritas) são peripécias, quiçá tradições culturais, genuinamente nossas.

Não é por acaso que Sloterdijk (1998) pontua que a investigação sobre o
cinismo nos conduz a uma libertação das ilusões. Ele aponta que por muitas vezes o
cinismo é algo estruturante de ideais e ideologias, tal como o altruísmo no modo de se
pensar burguês:

“Bourgeois morality tries to maintain an illusion of altruism, whereas in all other


areas bourgeois thinking has long since assumed a theoretical as well as an economic
egocentrism” (SLOTERDIJK, 1998, p. 45)16

Como algo vigente , o cinismo é visto como algo corporificado e encarnado na


existência, sendo o homem urbano, por exemplo, um ser à procura de objetivos
ideológicos do seu tempo, tais como, consumir, trabalhar, etc.

A sátira e a ironia, embora nem todos a entendam, em tempos em que


humoristas são processados por fazerem piadas, são formas eficazes e comuns de uma
16
Em tradução do autor: “A moralidade burguesa tenta manter uma ilusão de altruísmo, enquanto que
em todas as outras áreas o pensamento burguês há tempos assumiu uma postura teórica e econômica
completamente egocêntrica.”
45

postura kynical. A ironia é uma bela forma de desvelar o oculto, pôr em evidência e
deixar nu alguma contradição ou situação embaraçosa que, recontextualizada pelo
humor, pode apontar em qualquer direção, das mais engraçadas ou não.

Um olhar cínico certamente é aquele que faz evidenciar aquilo que lhe é
interessante, sendo, assim, mais do que um olhar, uma projeção e constituição de
égides políticas.

“Cynicism, says Bergler, is one of the forms in which people with extremely strong
emotional ambivalences (hates-loves, respects-contempts, etc) create a psychic
possibility for discharge.” (SLOTERDIJK, 1998, p. 405)17

“Everyone has a role. It is so in our town. No one is in his own skin.”


(SLOTERDIJK, 1998, p. 480)18

17
Em tradução do autor: “Cinismo, aponta Bergler, é uma das formas com que pessoas com sérios
sentimentos de ambivalência (ódio-amor, respeito-desprezo, etc) criam uma possibilidade psicológica
para descarregá-los.”
18
“Todos têm o seu papel. É assim na nossa cidade. Ninguém está em sua própria pele.”
46

IV. O CONHECIMENTO ATUAL: FRAGMENTOS DE UM ESPELHO


ESTILHAÇADO

4.1- A cachoeira de informação

Podemos ter como ponto de partida do que hoje se constitui uma sociedade do
conhecimento o século XVIII. Conforme relatado por Gumbrecht (2010), este tempo
foi o da grande era dos dicionários e enciclopédias. Por detrás das grossas camadas de
conhecimento esmiuçado a cada página e os seus sem número de versões, havia a
crença utópica de que um dia o conhecimento sobre o mundo seria total. Certamente,
num dado momento da quarta trilionésima página, algum incansável cognoscente iria
parar de documentar o mundo com a certeza quase arquimediana19 de que o seu
trabalho estaria cumprido e o mundo já estaria todo exposto ali.

Apesar do esforço herculiano de catalogação do conhecimento, a infinidade de


descrições sobre os objetos do mundo, assim como a descoberta dos sentidos humanos
como uma outra variável na observação do mundo, fizeram com que o objetivo maior
não fosse alcançado.

Hoje, as enciclopédias e dicionários não são mais tão usuais, contudo sua lógica
perdura pela rede mundial de computadores, obviamente com algumas diferenciações.
Continuamos tendo um sem-número de respostas e definições para os termos, e agora
relacionados com outros sem-número de contextos em que ele pode estar presente.
Eles se referem desde a um anúncio de alguma oferta imperdível ao vínculo do termo
com alguma celebridade. Há também um sem-número de pessoas que tentam,
colaborativamente, lhe passar algum tipo de conhecimento sobre o que você deseja.
Caso a sua dúvida seja mais elaborada e venha em forma de pergunta, também é
possível fazê-la e qualquer um irá lhe responder.

19
Eureka!
47

Em tempos pós-modernos, não há busca sem resultados ou dúvidas sem


respostas. A verdade ou a fidedignidade de uma informação não são tão importantes
quanto a satisfação do consumidor na resposta que obteve. Isto é, torna-se irrelevante
se a informação obtida foi uma mentira, incorreção ou inverdade, o que importa é sua
crença e adesão naquilo: o cliente satisfeito sempre retorna (nem que seja para obter
uma resposta menos falsa ou mais verdadeira).

Hoje, ao se assistir a algum evento ou acontecimento, é possível pesquisar em


tempo real o que as pessoas estão “pensando” ou “opinando” sobre aquilo. É possível
contactar pessoas a qualquer tempo, não importa o que elas estejam fazendo, assim
como saber onde elas estão, a partir de dispositivos tecnológicos. Cada pensamento e
ato da existência de uma pessoa pode ser documentado e compartilhado com todos.

Sloterdijk (1998) nos apresenta a lógica do “and”20, pela qual se evidencia o


bombardeamento de informações e “notícias” às quais somos submetidos diariamente
pela mídia. Através de tal conjunção, se une, no noticiário, enunciados de todo tipo de
ordem, do banal ao essencial, numa diferença de alguns poucos segundos. Fala-se
sobre tudo, mas não se aprofunda ou se discute nada. As notícias são transmitidas
como cotações de ações na bolsa de valores que ora sobem, ora caem.

Para o autor, retrato de uma lógica de um desenvolvimento cínico, a lógica do


“and” da imprensa corresponde a uma equivalência de valores entre as notícias. A
inabilidade ou não intenção de distinção do verdadeiro do falso, ou de alguma reflexão
sobre o que é dado, são resultados da apatia de uma postura cínica: a indiferença.

“Those who do not see the cynicism evident when press reports on torture in South
America are placed between perfume ads will also not perceive it in the theory of
surplus-value, even if they have read it a hundred times.”
(SLOTERDIJK, 2009, p. 315)21

20
Conjunção “e”, em português.
21
Em tradução do autor: “Aqueles que não percebem o evidente cinismo presente quando o jornal
noticia tortura na América do Sul entre anúncios de perfume não irão percebê-lo na teoria da mais-
valia, nem que leiam a mesma um milhão de vezes.
48

Tal lógica do “and” pode ser transposta também para as redes sociais virtuais,
em que, a cada instante, alguém escreve sobre algo ou sobre si. Após alguns minutos,
aquilo que foi escrito perde sua importância, sendo rapidamente coberto por outras
mensagens que seguem. O imediatismo e a avalanche de mensagens podem fazer
também com que sua mensagem seja retransmitida e bastante comentada. No final,
apenas algumas mensagens, geralmente as mais polêmicas, conseguem permanecer
por algum tempo maior na atenção das pessoas. Assim, a valoração das polêmicas não
se dá tanto pelo seu caráter contraditório ou de discussão sobre algo, mas por
simplesmente conseguirem atrair uma atenção e serem de fato lidas pelas pessoas.

“A preferência por palavras e sentenças simples, que podem ser agrupadas numa
olhada rápida, é uma das tendências anti-intelectuais e anti-humanísticas visíveis no
desenvolvimento da linguagem moderna, bem como da vida cultural em geral.”
(HORKHEIMER, 2007, p. 89)

“Os problemas não são resolvidos pelo fornecimento de informação nova, mas pela
rearrumação do que sempre soubemos” (MARCUSE, 1973, p. 169)

4.2- A alienação e abstração advindas da lógica do capital, trabalho e consumo

Imerso em sua cultura hodierna, mais especificamente a ocidental, o homem se


relaciona com o seu mundo de uma forma bastante peculiar. Tal como no mundo físico
das grandes cidades há uma espécie de “artificialização” do meio ambiente, pelo seu
asfalto, outdoors e prédios, no mundo mental, ou, no imaginário, também há um viés
que se estabelece.

Seria por demais ousado, e talvez até mesmo inapropriado, apontar que o
homem chega a perder parte de sua humanidade quando, tão imerso em sua cultura,
não consegue visualizar ou mesmo tomar como possibilidade para si algo diferente
daquilo que já é habituado. Contudo, não se torna tão exagero apontar que, a despeito
do acesso a uma multiplicidade de conhecimento (e, por extensão, de conceitos),
possuímos uma lógica ou um tipo de razão longe de ser classificado como libertador
49

ou multifacetado. Em outras palavras, o constante fluxo de informações não elimina o


viés monolítico pelo qual elas são recebidas ou analisadas.

É revelador analisarmos que, por mais que na atualidade exista uma aparente
diversidade cultural22 na sociedade, ela sempre se dá como um conjunto de minorias
que, ainda que agrupado, não deixa de constituir uma ínfima parte do todo. Isto é, em
termos quantitativos, as minorias estão longe de representar uma diversidade, mas uma
marginalidade. Em termos qualitativos, isto se evidencia pelo próprio núcleo de
identidade de tais diversidades, muitas vezes, ocorrer muito mais como oposição ou
crítica ao socialmente estabelecido, do que propriamente a uma unicidade coesa que se
mantém. No final das contas, o que se deriva desta aparente diversidade é muito mais
um estudo de marketing e de “mercado de cauda”23 do que propriamente algo mais
substancial que cada subvertente cultural possa trazer.

O título do presente subcapítulo se refere propriamente à visão e percepção de


mundo que o homem hodierno é conduzido a ter em função da lógica do capital,
trabalho e consumo. Isto é, imerso em suas horas diárias de trabalho, outras tantas de
bombardeio publicitário (tais como no transporte público) e idas e vindas a
estabelecimentos comerciais consumindo diversos tipos de objetos e contextos, que
tipo de subjetividade é desenvolvida aí?

“A mesma voz que prega sobre as coisas superiores da vida, tais como arte, amizade
ou religião, exorta o ouvinte a escolher uma determinada marca de sabão.”
(HORKHEIMER, 2007, p. 105)

Como não confundir um trabalho exaustivo e mecânico (este, geralmente,


porém não necessariamente, dito “menos qualificado”) e suas rotineiras e fatídicas
idas a lojas adquirir objetos “recomendados” como a percepção de um verdadeiro
mundo e realidade para si? Como transcender, fora do campo da fantasia, um mundo
22
Por este termo me refiro, por exemplo, às diversas “tribos” e manifestações identitárias de grupo,
tais como os “punks”, “emos”, etc.
23
Termo referente à designação de Anderson (2006), para um mercado de produtos caracterizado pela
multiplicação de diversos nichos que, juntos, possuem um índice de vendagem similar ao de grandes
produtos únicos massificados, os chamados “hits”.
50

que não seja tomado por esta aparente linha de produção e consumo arquitetada para o
cidadão, misto de trabalhador e consumidor?

“Labor is no longer an activity of life, no longer an accommodation of the body and


the soul to the forces of nature, but a thoroughly alien activity for the purpose of life,
an accommodation of the body and the soul to the mechanism…” (SLOTERDIJK,
1993, p. 437)24

Certamente a educação, grifo meu, pode ser uma das respostas a ser tomadas, ao
menos como tentativa, contudo não aquela técnica e preparatória para a lógica do
mercado, mas a que verdadeiramente ensine a pensar tal como prega Prado (1990).

Ter uma percepção de mundo crivada sob termos como custo, preço, benefício,
“custo de oportunidade”25, tempo, otimização e diversos traz o capitalismo para um
patamar muito além de um sistema econômico, mas para algo paradigmático, que
estrutura as diversas esferas de vida de uma sociedade.

“o consumo ocupa o lugar de todas as atividades realmente relacionais”


(ARENDT, 2008, p.50)

Assim, temos também um “não saber” presente na percepção do homem sobre o


mundo, isto é, ele pode vir a ignorar um mundo que é muito mais rico em diversidade
do que aquilo que é apresentado no comercial do seu carro favorito. Como pensar,
perceber ou representar um mundo de uma forma imparcial, isto é, diferentemente
daquilo que é vivido por si?26

“no trabalho e no consumo, o homem é totalmente lançado de volta para si mesmo.”


(ARENDT, 2008 p. 50)

24
Em tradução do autor: “O trabalho não é mais uma atividade da vida, não mais uma adaptação do
corpo e da alma diante das forças da natureza, mas uma atividade completamente estranha para o
propósito da vida, uma adaptação do corpo e da alma para o mecanismo.”
25
Expressão referente aquilo que você está abrindo mão em termos de oportunidades, ao optar por
determinada opção, numa escolha.
26
Reflexão apresentada e voltada para a ótica e subjetividade do cidadão comum, que se relaciona
com o seu mundo, e não para a ótica do acadêmico e cientista.
51

4.3- A força do conhecimento técnico e consequente redução de um pensamento


crítico e imaginativo

Dentro de uma lógica de uma razão objetiva, a qual será abordada com detalhes
no subcapítulo 4.6, vivemos a era do conhecimento técnico. Talvez nada melhor o
represente do que o simbólico, porém não menos substancial, “manual”. Poderíamos
representá-lo também como uma bula de remédio. O enxame de informações,
pensadas e escritas passo a passo, com uma irretocável precisão que lhe é tão
característica, completamente desprovida de humanidade em sua linguagem, o
caracteriza exemplarmente.

O conhecimento técnico é de um esplendor em forma de linguagem, beira a


transposição da precisão dos cálculos matemáticos para o seu devido uso comunicativo
e operacional. Objetivo, impessoal, o conhecimento técnico representa o grande
domínio do homem sobre os objetos.

“A ciência da natureza se desenvolve sob o a priori tecnológico que projeta a


natureza como instrumento potencial, material de controle e organização. E a
apreensão da natureza como instrumento (hipotético) precede o desenvolvimento de
toda organização técnica particular.” (MARCUSE, 1973, p. 150)

Há um mundo em que o certo é verdadeiramente o certo, o não saber não é


sequer cogitado e tudo se encaixa naquilo que “é para ser feito assim”, junto com sua
fundamentação exemplificadora e demonstrável. Certamente um mundo fechado,
digno das ciências ditas “duras”, mesmo nelas há um paradigma que se apoderou,
contudo o conhecimento técnico procede este momento, deriva daquilo que já se sabe.

Há uma grande diferença qualitativa entre os campos de estudo do


conhecimento. Se tivermos como objeto edificações e as condições do solo e de
estrutura de um dado material para manter um prédio em pé, há uma forte suspeita de
52

que a o tipo de razão aplicada será radicalmente diferente daquela empregada numa
abordagem da área das Ciências Humanas. Será?

Em alguns contextos ou vertentes no campo das humanidades, sobretudo


aquelas que toma o homem como mero objeto, talvez não haja muitas diferenças
essenciais. Ao contrário, nestes, a lógica das ciências físicas foi até mesmo transposta
para ser aplicada ao homem.

A valoração do conhecimento técnico ou a visão de mundo estritamente sob tal


ótica necessariamente fecha espaço para um pensamento crítico ou imaginativo. A
crítica, de significado “pôr em crise” ou a imaginação, uma grande transcendência, não
se conjugam com um conhecimento que se arvora nas verdades aplicáveis que ele
conseguiu conquistar, ainda que para contextos específicos.

Focar na luz (conhecimento) ou no escuro (não-saber, imaginação) ou,


entendendo a crítica de algo como uma sombra para onde foi levada um feixe de luz,
expõe diversas formas de subjetividade e conforto, desconforto para o homem.

Pode-se fazer uma equivalência, em termos semânticos, entre as grandes e


filosóficas analogias, em que se fala sobre tudo sem se deter sobre nada (beirando o
não-sentido) e a extrema tecnicidade que um discurso pode carregar (beirando a maior
precisão que algo estudado possa vir a ter, falando-se “quase tudo sobre quase nada”).
Tal como um binóculo, será o ajuste entre o foco técnico e o analógico que poderá
proporcionar um interessante equilíbrio para o que Arendt (2008) denomina
compreensão:
“Somente a imaginação permite que enxerguemos as coisas em sua perspectiva
adequada, que tenhamos forças suficientes para afastar o que está demasiado
próximo, a fim de conseguir ver e compreender sem distorções nem preconceitos,
que tenhamos generosidade suficiente para transpor abismos de lonjuras, a fim de
conseguir ver e compreender, como se fosse uma questão pessoal nossa, tudo o que
está demasiado distante de nós. Esse distanciamento de algumas coisas e
avizinhamento de outras faz parte do diálogo da compreensão, pois, para suas
finalidades, a experiência direta envolve um contato próximo demais e o mero
conhecimento ergue barreiras artificiais.” (ARENDT, 2008, p. 346)
53

4.4- A falta de materialidade científica do bem

Em que se estrutura ou se baseia, cientificamente ou racionalmente, a noção de


que a vida possui maior valor do que a morte, de que o bem é melhor do que o mal (e
deixemos isto pela noção do senso comum mesmo)? Parece óbvio, intuitivo, instintivo
ou mesmo algo bastante enraizado educacionalmente de que ajudar uma senhora a
atravessar à rua é mais agradável do que empurrá-la para frente dos carros. Contudo,
em que esta benfeitoria que a maioria de nós carregamos se estrutura no campo da
razão?

“A afirmação de que a justiça e a liberdade são em si mesmas melhores do que a


injustiça e a opressão é, cientificamente, inverificável e inútil.”
(HORKHEIMER, 2007, p. 29)

Talvez o ecumenismo ou o ensino religioso, de qualquer ordem, seja não só


interessante como essencial para manutenção deste pilar. Apresentar a faceta do bem,
no seu sentido mais básico e sem pormenorizar, parece algo puramente sentimental.
Não acredito, grifo meu, que o mesmo perdure apenas por um conjunto de regras de
convívio em sociedade, tal como regras técnicas de um manual.

Falta à moral, ou mesmo à ética, uma profundidade ou densidade científica e


racional que a sustente, sem recorrer à tradição, religião ou sentimento. Assim se
apresenta o papel que a ciência e o conhecimento exercem, como um instrumento a
fundamentar e guiar a ação humana. Talvez esta falta, aqui apresentada, seja melhor
mesmo em sua ausência. Algo mais denso que sustente uma visão do bem, ainda que
em sua vaga essência, pode vir a ser uma faísca para desencadear um sistema político
totalitário.

O bem talvez seja uma das últimas forças políticas completamente autônomas
que, a despeito de diversas ideologias que possam surgir, clamará no âmago de cada
um a determinadas formas de agir.
54

O mundo se acelera contudo a discussão filosófica sobre o que realmente


sustenta o bem parece tão inócua quanto nos tempos gregos.

4.5- Pragmatismo: pensamento voltado para a ação

Dada a intensidade e velocidade dos movimentos, tudo o que acontece hoje está
orientado para os seus próprios fins. Nenhuma ação ou pensamento consegue se
sustentar por si só, há de se ter um momento seguinte, oriundo do primeiro ato. A
lógica é de se render frutos, a razão é apenas um instrumental para algo maior.

O relógio que se acelera tem o poder de tornar pó tudo aquilo que não evolui,
que tenta se imobilizar, que não gere consequências consecutivas que sejam vantajosas
para o seu agente: lucro. Os fins que nunca se esgotam também não deixam de ser
meios, pois eles nunca terminam, de fato, de acontecer. Os fins não se acabam,
também se transformam em outros fins, ininterruptamente. Não se consegue nenhum
poder de reflexão, pois o momento seguinte é muito mais importante para a sua
atenção. O fim é fim não por alcançar uma determindo objetivo, mas por ser vazio,
falso, sempre remetedor a um momento a posteriori que nunca vem. Assim, o fim
acaba se tornando realmente um término.

“A completa transformação do mundo em um mundo mais de meios do que de fins é


em si mesma a consequência do desenvolvimento histórico da produção.”
(HORKHEIMER, 2007, p. 106)

Pensar em termos de aplicabilidade, o que fazer com determinado


conhecimento, o que implicará determinado fato, ter o mundo como matéria prima e
instrumento é o que define o pragmatismo.

“O significado é suplantado pela função ou efeito no mundo das coisas e eventos.”


(HORKHEIMER, 2007, p. 27)
55

O pragmatismo é evidente se pensarmos pela lógica da enunciação de um dado


“problema”. Como o resolveremos? O seu pressuposto é a resolução de uma dada
situação, seja a do homem querer voar ou qualquer outro contexto. Contudo, por que
há de haver este enunciado, problema ou desejo? Quem o formulou? Por que o
formulou?

“Assim que um pensamento ou uma palavra se torna um instrumento, podemos nos


dispensar de ‘pensar’ realmente isso, isto é, de examinar detidamente os atos lógicos
envolvidos na formulação verbal desse pensamento ou palavra.”
(HORKHEIMER, 2007, p. 28)

Ainda que Horkheimer (2007) não tenha se referido diretamente à linguagem


publicitária, é difícil imaginar conceituação mais precisa para ela do que a exposta
acima. Em tempos que sugestões publicitárias parecem ser mais norteadoras de
atitudes do que uma autonomia de pensamento de cada um, que práticas impensadas
estaremos tendo hoje que ocasionarão em outras no amanhã? Em outras palavras, se o
pensamento pragmático for cada vez mais intenso e nos descolarmos cada vez mais
dos significados das ações e dos pensamentos, como imaginar um futuro?

Talvez nunca se tenha falado tanto em “fim do mundo” como atualmente,


tornando-se inclusive “clichê” e humorístico o assunto. No imaginário, ele seria algo
vindo dos céus, físico, como num grande filme hollywoodiano, contudo por que não
haveria de ser uma grande sequência de acontecimentos absurdos no seu sentido? Isto
é, uma deterioração caótica e progressiva da ordem ou da lógica das coisas tal como a
conhecemos. Se assim for conceituado, talvez o fim do mundo já esteja acontecendo,
sem que o percebamos tão cinematograficamente.

Descolar-se de um significado e projetá-lo quanto a sua eficácia para algum


objetivo outro também é uma forma de se ausentar no presente, de “correr para o
futuro”. Em nome deste futuro, qualquer absurdo, sem reflexão quanto ao seu
significado, pode ser feito no presente. Paralelamente, em termos de percepção do
tempo, num sentido mais lógico, o passado talvez nunca tenha se tornado tão
56

esquecido e desvalorizado quanto atualmente. Em outras palavras, para quem estivesse


vivendo em 1930 seria muito mais fácil lembrar da “semana passada” do que para
quem vive em 2012.

“a meditação, que visava a eternidade, é posta de lado pela inteligência pragmática,


que visa o momento seguinte” (HORKHEIMER, 2007, p. 108)

4.6- A primazia da razão subjetiva sobre a objetiva

Cabe, neste subcapítulo, inicialmente, uma conceituação sobre o que viria ser
cada um destes tipos de razão: a objetiva e a subjetiva. Tal como enunciadas por
Horkheimer (2007), a passagem abaixo dá o tom para o início de uma compreensão:

“Durante longo tempo predominou uma visão diametralmente oposta do que fosse a
razão. Essa concepção afirmava a existência da razão não só como força da mente
individual, mas também do mundo objetivo: nas relações entre os seres humanos e
entre classes sociais, nas instituições sociais, e na natureza e suas manifestações. Os
grandes sistemas filosóficos, tais como os de Platão e Aristóteles, o escolasticismo, e
o idealismo alemão, todos foram fundados sobre uma teoria objetiva da razão.”
(p. 10)

Enquanto a razão subjetiva se refere à faculdade da mente do homem em


raciocinar e processar um pensamento, a razão objetiva transcende este aspecto e
acredita, romanticamente até, de que o mundo é todo ordenado por uma razão maior.
Assim, se vinculam à razão objetiva termos como fé, verdade única e ontologia.

A razão subjetiva se coaduna com uma razão dita formalizada e pragmática. Ela
é empírica, materialista, traz consigo a tentativa de controle da natureza e do próprio
homem. Ela não se preocupa com a absoluta correção ou verdade, mas com a
funcionabilidade e eficácia daquilo que é proposto. Assim, grandes apontamentos e
incorreções apontados como sendo do campo do “não saber” são, em parte, oriundos
57

de uma teoria objetiva da razão em crítica à razão subjetiva, que aplainou diferentes
relevos.

Por um viés da teoria da razão objetiva, em seu ideal maior, pode não haver
espaço para um “não saber”. Contudo, pela sua inevitável glorificação e
mitologização, a ponto de virar questão de fé, há nela um campo livre e crítico de
delimitação deste espaço.

“Os dois conceitos estão entrelaçados, no sentido de que as consequências de cada


um não só dissolvem o outro como também conduz de volta ao outro. O elemento de
inverdade não reside simplesmente na essência de cada um dos dois conceitos, mas
na afirmação separada de um em oposição ao outro. Tal fenômeno resulta da
contradição básica da condição humana.” (HORKHEIMER, 2007, p. 179)

Horkheimer (2007) nos apresenta que, como herança dos sistemas clássicos da
razão objetiva, tais como o platonismo, temos a preservação da idéia de que “a verdade
é a consequência da linguagem na realidade” (p. 184).

Em analogia a estes dois conceitos, podemos trazer aos dias de hoje o mundo
das bolsas de valores e suas diferentes cotações para as ações. Há investidores que
acreditam, pelo uso de uma razão subjetiva, que pode haver distorções nas cotações
dos papéis negociados em bolsa, em função de uma distorção da percepção dos
investidores sobre tais empresas. Já há outros investidores, por uma razão objetiva, que
acreditam que o mercado é eficiente, isto é, os preços das ações refletem toda a
informação disponível sobre aquela empresa e isto já está “precificado”, não havendo
distorções em sua cotação.

Seja sob um viés ou sob outro, a situação do homem permanece como a de


alguém que foi arremessado, não se sabe de onde nem para onde, tal como na
passagem abaixo, evidência do atravessamento existencial:

”O dom da razão lhe foi concedido num mundo “onde tudo é dado e nada nunca
explicado” (ARENDT, 2008, p. 220)
58

4.7- O homem como objeto, subjugado pelos seus pares

Falar sobre sujeito e objeto, o que está agindo e sendo agido, controle,
submissão e diversos outros termos se torna por demasiado complexo na rede de
diversos atravessamentos não só da propria realidade, como da atualidade que
intensifica determinados processos.

Ao longo do presente texto, é dada uma certa ênfase à dita “lógica do capital”,
que não deixa de retornar neste momento. Esta presença se dá, pois, apesar do conceito
de humanidade não estar presente neste tipo de lógica, esta não deixa de nos implicar e
criar certos determinismos. Não existe, em sua essência, diferenciação alguma entre
“homem” e máquina, ou, entre homem e “coisa”. Ao contrário, na superfície, até
existe: as máquinas são sobrevalorizadas em função do seu provável menor custo ao
longo do tempo.

Pode-se defender de que isto se trata de um processo natural do avanço da


tecnologia, contudo isto não se dá apenas no campo da produção, mas também do
atendimento (as máquinas substituindo os homens para atender os clientes) e,
sobretudo, no dito “mercado consumidor”. Tecnicismos à parte, o que está por detrás
deste termo, assim como de “público alvo”, é uma grande subjugação dos
consumidores a meros objetos ou “peixes” que precisam ser pescados de um grande
rio. Talvez isto se configure mais claramente se pensarmos em termos das grandes
massas e menos no indivíduo avulso.

Pode-se apontar que os produtos são produzidos, divulgados e comercializados


pensando num determinado público que já existia, a dita “demanda”. Contudo, em que
medida esta demanda é genuína, e não algo provocado, quiçá produzido, por todo o
aparato cultural de consumo que a circunda? Em termos lógicos, não é pelo visual do
consumo ser uma atividade ativa por parte do consumidor que este não esteja no papel
de um objeto, consumido pela publicidade que o desejou. Assim como não é pelo fato
59

do trabalhador estar ali se utilizando de seus recursos humanos para desenvolver seu
ofício que ele deixe de ser uma mera peça em toda engrenagem maior que o engloba.

Assim, desde que Henry Ford defendeu salários melhores para os trabalhadores,
para que os mesmos pudessem consumir os carros que eles mesmos produziam, esta
discussão de sujeito e objeto soa como discutir quem veio primeiro: o ovo ou a
galinha.

“Quanto mais intensa é a preocupação do indivíduo com o poder sobre as coisas,


mais as coisas o dominarão, mais lhe faltarão os traços individuais genuínos, e mais
a sua mente se transformará num autômato da razão formalizada.”
(HORKHEIMER, 2007, p. 134-135)

4.8- Individual, individualismo e social

Parece-nos por demasiado evidente a noção de indivíduo, tal como a


referenciamos hodiernamente, como o sujeito que, magistralmente, escolhe as cores,
tamanhos e detalhes dos seus objetos de consumo customizáveis. Contudo, esta noção
de individualidade nem sempre existiu, sendo algo que historicamente ganhou relevo e
passou a fazer parte de nossas mentes.

“O homem emergiu como indivíduo no momento em que a sociedade começou a


perder a coesão e ele tornou-se consciente da diferença entre sua vida e a da
coletividade aparentemente eterna.” (HORKHEIMER, 2007, p. 141)

Conquanto, tal emergência do indivíduo não significa um descolamento por


completo de sua sociedade, ao contrário, se instalam aí tensões e ordenamentos entre
aquilo que é genuinamente mais individual e o que é da esfera social. Horkheimer
(2007) precisa, assim, que a imitação desenvolve um papel essencial neste
imbricamento do indivíduo em seu meio, assim como as “culturas de massas”,
verdadeiras pressões sociais sobre a unicidade.
60

Em relação aos ídolos e celebridades, indivíduos que se destacam no meio da


multidão, há o seguinte apontamento:

“os chamados grandes indivíduos do nosso tempo, os ídolos das massas, não são
indivíduos verdadeiros, mas sim apenas criaturas geradas pela própria publicidade
em torno deles, ampliações de seus próprios retratos, funções dos processos sociais.
O super-homem consumado, contra quem ninguém advertiu mais aflitamente do que
o próprio Nietzche, é uma projeção das massas oprimidas, é mais King Kong do que
César Bórgia.” (HORKHEIMER, 2007, p. 164)

Ser individual por excelência, no sentido mais exótico e diferente dos demais,
acaba por adquirir uma faceta política (apenas os mais poderosos conseguem ser tão
descolados assim). Quando se fala em individualidade se fala também em “liberdade”,
pois esta é uma característica essencial para que a unicidade possa de fato se
manifestar:

“O homem, que em si é livre, está irremediavelmente à mercê do funcionamento de


um mundo natural alheio a ele, de um destino que lhe é oposto e destrói sua
liberdade. Essa liberdade não livre representa a estrutura antinômica do ser humano
situado no mundo. Kant apresenta o homem como senhor e medida do homem, mas
ao mesmo tempo como escravo do Ser.” (ARENDT, 2008, p. 200)

O capitalismo traz consigo uma certa crença de que, na medida que cada um
busca pelos seus próprios interesses individuais (individualismo), a sociedade, como
um conjunto mantenedor desta liberdade de busca, se torna valorativamente melhor.
Neste sentido, é curioso pensar que o socialismo tenha acabado por se tornar, em sua
prática, um regime de cerceamento de liberdades.

De um modo geral, o individualismo observado nas sociedades ocidentais e


capitalistas se dá muito mais pela realização particular de anseios e desejos
compartilhados socialmente, do que por ser de fato uma individualidade sui generis.
Todos possuem os mesmos projetos e ambições de vida, cultuados na indústria
cultural, tais como casamento, compra de casa e carro próprios, viagens, ganhar
dinheiro e generalidades que culminam na “triste” constatação que segue:
61

“O indivíduo não tem mais uma história pessoal. Embora tudo se modifique, nada se
movimenta” (HORKHEIMER, 2007, p. 163)

Assim, num sentido mais filosófico e artístico, aquilo que se refere como “não
saber”, na esfera individual, se refere a própria individuação do sujeito.
Desconhecedor de si próprio, sendo ele, em essência27, algo além das categorizações e
opções que a sociedade trouxe para que ele escolhesse ser.

4.9– Tecnologia, consumo, totalitarismo e sociedade

Soa de certo modo retumbante e, por que não dizer, pessimista e catastrófico
certas visões de mundo que existem sobre a atualidade, ao menos em suas aparências.
Marcuse (1973) apresenta uma leitura que decodifica o progresso tecnológico pelo seu
viés político, condicionador da servidão das grandes massas para com uma parca elite.

“A tecnologia não pode, como tal, ser isolada do uso que lhe é dado; a sociedade
tecnológica é um sistema de dominação que já opera no conceito e na elaboração das
técnicas.” (MARCUSE, 1973, p. 19)

“A racionalidade tecnológica ter-se-á tornado racionalidade política”


(MARCUSE, 1973, p. 19)

“Em virtude do modo pelo qual organizou sua base tecnológica, a sociedade
industrial contemporânea tende a tornar-se totalitária.” (MARCUSE, 1973, p. 19)

Tal dominação e tendência ao totalitarismo se daria pela criação, por parte do


mercado e seus publicitários, das ditas “falsas necessidades”. Isto é, tudo aquilo que é
indispensável, em termos de objetos, para que tenhamos uma vida suficientemente boa
e saudável.

27
Visão apresentada para o caso da existência de um real livre-arbítrio para o homem, distanciado de
um determinismo ou “fatum” que o implicassem em tomar “escolhas” previamente determinadas,
sendo assim, mera aparência de decisões.
62

Não é difícil observar este fenômeno numa simples ida à praia. Outrora algo
simples e, por ser uma beleza natural e pública, eminentemente gratuita, bastava de
fato ir e lá estar. Hoje, impera no íntimo consumista de cada um, a necessidade de,
uma vez na praia, alugar um guarda-sol, cadeiras de praia, consumir bebida, comida,
protetor solar, bronzeador solar, creme pós-sol para a pele, outro para o cabelo, fazer
uma massagem e por aí segue. O tratamento é digno da realeza e o conforto
irresistivelmente absoluto.

“As únicas necessidades que têm direito indiscutível à satisfação são as necessidades
vitais — de alimento, roupa e teto ao nível alcançável de cultura. O atendimento a
essas necessidades é o requisito para a realização de todas as necessidades, tanto das
sublimadas como das não-sublimadas.” (MARCUSE, 1973, p. 27)

“As criaturas se reconhecem em suas mercadorias; encontram SIM alma em seu


automóvel, hi-fi, casa em patamares, utensílios de cozinha. O própriomecanismo que
ata o indivíduo à sua sociedade mudou, e o controle social está ancorado nas novas
necessidades que ela produziu.” (MARCUSE, 1973, p. 29)

“a doutrinação que eles (produtos) portam deixa de ser publicidade, torna-se um


estilo de vida” (MARCUSE, 1973, p. 32)

Assim, de necessidade nova em necessidade nova, o sujeito se escraviza junto a


estas dependências e, por consequência, de um maior tempo de trabalho que, por
muitas vezes, o emprega como mero instrumento no seu ofício. Assim, a existência do
trabalhador é equiparada a de uma “coisa”, que limpa estabelecimentos, constrói
prédios, vende objetos, etc. Para Marcuse (1973), tal equiparação a uma “coisa” é a
forma pura de servidão.

Pode-se dizer que, paralelamente a este processo, é defendido, no ideológico e


imaginário, que há de se empreender, como ofício, aquilo que se tem como “paixão”.
Assim, de um lado possuímos o apaixonado em seu trabalho e do outro o aficcionado
em seus objetos de consumo: o casamento perfeito. A despeito desta visão, talvez
genuinamente cínica, o mercado de trabalho e sua lógica econômica possuem
demandas que talvez não correspondam às verdadeiras “paixões” dos seus
trabalhadores.
63

“A sociedade ainda é organizada de tal modo que a procura das necessidades da vida
constitui uma ocupação de tempo integral e da vida inteira para classes sociais
específicas, as quais são, portanto, não-livres e impedidas de ter uma existência
humana. Neste sentido, a proposição clássica segundo a qual a verdade é
incompatível com a escravização pelo trabalho socialmente necessário ainda é
válida.” (MARCUSE, 1973, p. 129)

“a sociedade que projeta e empreende a transformação tecnológica da natureza altera


a base da dominação pela substituição gradativa da dependência pessoal (o escravo,
do senhor, o servo, do senhor da herdade, o senhor, do doador do feudo, etc) pela
dependência da ‘ordem objetiva das coisas’ (das leis econômicas, do mercado, etc).
Sem dúvida, a ‘ordem objetiva das coisas’ é, ela própria, o resultado da dominação,
mas é , não obstante, verdade que a dominação agora gera mais elevada
racionalidade – a de uma sociedade que mantém sua estrutura hierárquica enquanto
explora com eficiência cada vez maior os recursos naturais e mentais e distribui os
benefícios dessa exploração em escala cada vez maior.” (MARCUSE, 1973, p. 142)

Engendrar termos como totalitarismo em tempos tão livres, em que é possível ir


a shoppings e ter a doce28 liberdade de se comprar o que quiser, soa um tanto quanto
forte. Entre ingenuidades, fantasias e desigualdades sociais, radicalismos em que cada
existência humana experiencia, ter uma visão otimista parece questão de fé,
translúcida por óculos escuros de design e grife de algumas milhares de unidades de
dinheiro.

“O mundo dos campos de concentração.... não era uma sociedade excepcionalmente


monstruosa. O que vimos nele era a imagem e, sob certo aspecto, a quintessência da
sociedade infernal em que somos mergulhados diariamente.”
(MARCUSE, 1973, p. 89)

28
Pela lógica publicitária, preço e custo não existem, são detalhes frente aos benefícios angelicais dos
produtos que anuncia.
64

4.10– Linguagem

A linguagem pode ser conceituada como a forma de se comunicar determinada


mensagem. Talvez, por ser uma via indireta e de suposta menor valoração do que o
próprio conteúdo da mensagem, ela termine por abarcar bastante daquilo que
transcende, circunda e estrutura a razão de ser daquele conteúdo transmitido.

Por mais bem projetada e pensada que possa ser, a linguagem é sempre um
apontamento sobre algo específico no seu sentido, contudo com um inevitável lastro
decorrente da recepção da mensagem pelo destinatário. Isto ocorre pela inevitável
desinterpretação (ainda que mínima) e descolamento de sentido que as palavras
acometem em cada um de nós.

Hoje, vivemos o tempo da plasticidade, em que a linguagem não só necessita de


ser razoavelmente simples, para ser entendida por todos, e breve, para que se passe
logo para o momento seguinte, pois tudo que se perdura por algum tempo se torna
entediante. Superficial e descontínua, a linguagem realmente adquire o caráter de
outdoors vistos num carro em alta velocidade.

A linguagem hoje é manipulada, transformam-se sentidos por rearrumações da


ordem das palavras, entre sorrisos e efeitos passageiros. Sentenças ganham o
contorno de expressões faciais, mutáveis pelo humor, nível de atenção e
espontaneidade, pura instantaneidade.

Funcionalizada, a linguagem por muitas vezes apresenta termos opostos unidos,


em tentativa de coesão ou amenização de qualquer conflito. A este respeito, Marcuse
(1973) comenta sobre termos como “bomba limpa” e “garoa radioativa inofensiva”:

“Ao exibir suas contradições como sinal de sua veracidade, esse universo da locução
se fecha contra qualquer outra locução que se apresente em seus próprios termos. E
graças à sua capacidade de assimilar todos os demais termos nos seus, oferece a
65

perspectiva de combinar a maior tolerância possível com a maior unidade possível.


Não obstante, sua linguagem é testemunho do caráter repressivo dessa unidade. Essa
linguagem fala por meio de construções que impõem ao receptor o significado
oblíquo e abreviado, o desenvolvimento do conteúdo impedido, a aceitação do que é
oferecido na forma em que é oferecido.” (MARCUSE, 1973, p. 98)

A linguagem termina por representar, pela forma como é apresentada, fatos


indiscutíveis (ainda que não sejam) e sentenças hipnóticas, que fixam determinado
significado na mente do receptor. Hoje, há uma continuidade também entre os
diversos tipos de discurso, do jornalístico ao científico, como se única voz fosse.

Podemos dizer que a linguagem é um paradigma difícil de transcender, é o puro


aprendizado de um processo educacional. Conquanto, outros saberes só são
permitidos pelo desenvolvimento de outras linguagens, que expandam determinados
campos delimitadores. Talvez seja no fugidío campo do abstrato que exista o
caminho para a dita “produção de conhecimento” que não seja meramente mais de
um mesmo percurso, mas de fato outras possibilidades de se pensá-lo.

4.11- Expressão e transmissão de saberes, sentidos e presenças

Tomar como ponto de partida a noção de que a realidade é diferente da


representação que fazemos da mesma (representação tal chamada “conhecimento”) é
uma noção fenomenológica que amplia perspectivas de pensamento.

GUMBRECHT (2010) nos apresenta a noção de “presença”, como sendo aquilo


que está fora do campo da linguagem. Isto é, algo que possui um sentido inerente,
impossível de ser posto em palavras em sua plenitude ou representado, e que se
experiencia apenas pelo seu efeito de estar ali presente. Decorrente deste efeito, está a
sensação de “estar-no-mundo”, de uma forma substancial, física e não tanto
interpretativa.
66

“Se atribuirmos um sentido a alguma coisa presente, isto é, se formamos uma idéia
do que essa coisa pode ser em relação a nós mesmos, parece que atenuamos
inevitavelmente o impacto dessa coisa sobre o nosso corpo e os nossos sentidos.”
(GUMBRECHT, 2010, p. 14)

Decorrente desta afirmação, improvável não se lembrar da sátira, quase do


imaginário popular, de que os ignorantes são mais felizes e o conhecimento apenas
termina por conscientizar aquele o detém do quanto é lamuriosa sua vida. Talvez esta
noção seja oriunda da passagem acima, no sentido de que, ao fazer sentido em demasia
frente aos acontecimento da vida, esta armadura termine por separar o cognoscente da
própria experiência estética do viver.

“a experiência estética como uma oscilação (às vezes, uma interferência) entre
‘efeitos de presença’ e ‘efeitos de sentido’ (GUMBRECHT, 2010, p. 22)

A presença é algo eminentemente do “aqui-e-agora”, fugidío, volátil e


presentificado, algo que não se agarra. Vivemos, certamente, tempos em que, em vão,
se tenta “agarrar” este efeito de presença a qualquer custo, seja por televisões com
resoluções e tamanhos cada vez maiores, seja por celulares e câmeras que fotografam e
filmam tudo. Impossível não constatar que, por mais que o registro seja perfeito, o seu
momento registrado nunca volta em sua intensidade, a despeito da contínua
reprodução do mesmo a partir de telas. Ainda neste âmbito, há a constatação de que,
ao se tentar registrar o presente, ele se perde até mesmo naquele momento, pois a
preocupação é com o registro e não com a experiência.

Para precisar bem a diferença entre aquilo que é da ordem do “sentido” e o que
é da ordem da “presença”, ainda que na prática existam sempre estas duas ordens, em
intensidades diferentes, GUMBRECHT (2010) exemplifica:

“os debates parlamentares são um ritual adequado às culturas de sentido, ao passo


que a Eucaristia é um ritual prototípico das culturas de presença” (p. 112)

“É muito difícil – talvez impossível – não ‘ler’, não tentar atribuir sentido àquele
relâmpago ou àquele brilho ofuscante do Sol da Califórnia” (p. 135)
67

Não existe nada tão retrógrado hoje em dia quanto a determinados aspectos
físicos e presenciais do viver. Isto é, soa absurdo, para não dizer catastrófico, em
tempos de tanto poder e conhecimento concernente ao homem, ter que parar
determinada atividade para, por exemplo, “ir ao banheiro” ou “ficar preso no trânsito”
ou “precisar se alimentar” ou mesmo durmir. São como choques de realidade poder
cruzar oceanos em algumas horas, ir a outros planetas, se comunicar instantaneamente
com milhares de pessoas e, de repente, esbarrar em necessidades tão pueris e pobres de
sentido. Certamente é algo que, não duvido, será revisto e corrigido dentro do nosso
atual paradigma.

Assim, o componente de presença é aqui trazido também como um exemplo de


algo que também pertence ao campo do “não saber”. Neste caso, não tanto no sentido
do desconhecido, mas no sentido de que é algo que não pode ser transformado em
conhecimento, algo que não entra no campo da representação, algo que simplesmente
aí está e é para ser experienciado. Em analogia, não é possível para o homem ficar
divagando sobre os motivos filosóficos e científicos que o fazem ter a necessidade de
beber água enquanto ele morre de sede.

Delimitam-se assim alguns espaços que são referentes ao “não saber” e que
assim devem permanecer, para que não se confundam o que, simplificadamente, é da
ordem do saber e o que é da ordem do viver.
68

V. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma boa analogia para a ótica daquilo que chamamos de conhecimento é a


figura do peixe que vive em mar aberto. O oceano é o seu habitat natural, e ali ele de
fato tenta conhecer tudo que está ao seu alcance. Invariavelmente, ele dá alguns pulos
sobre a água e deslumbra o feixe de uma outra realidade que se apresenta acima dele.
Nós também só conseguimos pensar no meio em que estamos habituados, ainda que,
assim como o peixe, consigamos visualizar uma outra ordem inacessível de vez em
quando.

Seria possível aqui, tal como num modelo imperioso do saber, tentar apontar e
abarcar todas as outras impossibilidades do “não saber”. Contudo, exatamente por
muitas serem completamente desconhecidas, foi possível apontar apenas algum filete
delas. Mais do que conseguir trazer algo que era desconhecido para o campo do
conhecimento, a tentativa foi a do que Sloterdijk (1993) chama de “amoralist freedom
of expression”.29

Seria insano e não foi da intenção deste trabalho negar toda a perspectiva de
conhecimento que nos apodera, mas apontar apenas que ela não é total, global como se
diz ser, que há muitos furos. A impalpabilidade do campo do “não saber” faz parecer,
por muitas vezes, se tratar de uma entidade quase que mística, contudo é sempre no
seio daquilo que se tenta configurar como conhecimento que ele aparece.

Apesar das aproximações e não tão rigidez frente a alguns conceitos, a tentativa
foi também a de um resgate das essências dos significados das palavras. A falta de
dialetização crescente da sociedade talvez seja fruto não de uma não inter-relação entre
perspectivas, porque ela é até feita, mas da pouca aderência aos significados dos
discursos. Tudo que o discurso técnico não consegue se apoderar parece facilmente
conversível a qualquer outra coisa que não o seu original.

29
Em tradução do autor: “liberdade amoralista de expressão”
69

Apontar algumas mazelas ideológicas decorrentes da lógica econômico-política


atual não se configura necessariamente um pessimismo. Há perspectivas do mesmo
campo que podem ser apontadas como “maravilhas” e talvez sejam por algumas
maravilhas estarem tão ligadas a catástrofes que se torne tão criteriosas as separações
entre elas. Separar, desembaralhar, desfiar o novelo em que algumas contradições
estão expostas é um desafio não só político como multidisciplinar.

A Psicologia termina por trabalhar com aquilo que não é visto, mas uma vez
presente nas mentes das pessoas, é trazido para o campo do discurso. Tal fala trará
sempre este novelo supramencionado e estruturações do abstrato, do concreto, do
saber e do não-saber ecoam, por mais díspares que sejam, sobre uma única existência
particular.

“Se o homem tiver aprendido a ver e a conhecer o que a realidade é, agirá em


concordância com a verdade. Epistemologia é, em si, ética , e ética é epistemologia.”
(MARCUSE, 1973, p. 127)
70

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1993.
73

A Monografia “Um traçado da dinâmica do ‘Não Saber’ na Modernidade da


Informação”

Foi considerada ___________________________

Rio de Janeiro, 16 de fevereiro de 2012.

_________________________________

Prof. Dr. Jorge Coelho Soares


Orientador

_________________________________

Profa. Dra. Ariane Patrícia Ewald

Membro da Comissão Examinadora

_________________________________

Prof. Dr. Ronald João Jacques Arendt

Membro da Comissão Examinadora

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